domingo, 15 de setembro de 2013

Quantic love

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SINOPSE
Laila terminou o ensino médio e, enquanto decide que carreira seguir, consegue um emprego como garçonete no CERN, um dos centros de pesquisa nuclear mais avançados do mundo. Cercada de “nerds” por todos os lados, a protagonista de Quantic Love – O romance que resolve a equação do amor vai descobrir que a ciência pode ser sexy e que o amor é a energia mais poderosa do universo.
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“Gravitation is not responsible for people falling in love”. ALBERT EINSTEIN
“Sem ciência, o amor é impotente; sem amor, a ciência é destrutiva”. BERTRAND RUSSELL
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1. AS PORTAS DE SHAMBHALA Às vezes o futuro sussurra algo em nosso ouvido por um breve instante. Alguns chamam isso de premonição; outros, de intuição. Eu sei apenas que quando entrei naquele avião soube que tudo ia mudar. A Laila que deixava Sevilha com destino à Suíça não voltaria jamais. Minha permissão para trabalhar como garçonete no CERN era temporária, mas de repente entendi que haveria um antes e um depois daquele verão. Nervosa, abri caminho entre as pessoas que ajeitavam às pressas suas bagagens de mão. Assento 17A, janela. Seria um imenso prazer ver os Alpes do céu! Uma vez em meu assento, coloquei a bolsa entre meus pés e peguei o Moleskine que meu pai me dera de presente para a viagem. Fiquei emocionada ao olhar a primeira página do caderninho de capa preta, preso por um elástico. Ali, me esperava uma citação de Peter Mathiessen que resumia perfeitamente o pressentimento que acabara de ter: Um homem sai de viagem e é outro que regressa. Se havia algo que eu deveria reconhecer sobre meu pai era que ele sempre acertava nos presentes. As palavras do autor de El leopardo de las nieves — seu livro de viagens favorito — ressoavam agora com mais força dentro de mim, pois estava empreendendo minha odisseia particular. Enquanto a aeromoça dava indicações de segurança que ninguém entendia, voltei a ouvir dentro de mim a voz suave e serena de meu pai: — Mantenha os olhos bem abertos, Laila. Você vai viver uma experiência única no centro de pesquisas mais importante da Europa.
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Ponha as mãos para trabalhar nessa cafeteria, mas fique com o olhar distante, no horizonte. — Pai, só vou ficar lá por três meses… — protestei. Logo depois, já havia lhe dado um cálido abraço. Sabia exatamente o que viria em seguida: ele repetia aquela fábula oriental desde que eu completara quatorze anos, e isso acontecera havia quatro. — Você se lembra da história do caçador que encontrou Shambhala quando perseguia um cervo? Ao ver que se haviam aberto as portas do paraíso tibetano, o guardião o convidou a entrar, mas o caçador quis buscar a família. Quando voltou, a montanha tinha se fechado, pois as portas de Shambhala se abrem uma única vez na vida para cada pessoa. Cada oportunidade é única, Laila, e, se não aproveitá-la, acontecerá com você a mesma coisa que aconteceu com o caçador, que teve de continuar perseguindo cervos pelo resto de sua existência. Meu pai era um sonhador incorrigível. Talvez por isso tenha se casado com a pessoa mais prática e realista do planeta: minha mãe. Suas palavras foram um balde de água fria: — Só pense no trabalho, gaste pouco e deixe os garotos de lado. Pense que em três meses terá de voltar para cursar a universidade. Não quero que encha sua cabeça com besteiras. Por mais que circulem prêmios Nobel por lá, não se esqueça de que você não é Einstein, mas sim a garota que serve cafés com leite. Ao aterrissar no aeroporto de Genebra, me acovardei pela primeira vez desde que entrara naquela aventura. Senti que o céu nublado desabava em cima de mim. Todos os meus amigos estavam curtindo as férias, e eu chegava a um lugar desconhecido para trabalhar em uma coisa sobre a qual não tinha a menor ideia. Havia mentido no curriculum vitae ao dizer que tinha trabalhado como garçonete nos últimos dois verões em um camping da Costa Brava. De repente, desejei voltar ao avião e regressar à minha cidade ensolarada, ao mundo conhecido, onde tudo era tedioso e previsível, mas também seguro. “Respire fundo”, disse para mim mesma ao me dar conta de que minhas pernas tremiam na fila do controle alfandegário. “Você está se comportando como uma garotinha assustada.” Esse pensamento me deu a coragem necessária para enfrentar o ataque de pânico. Passei pela alfândega sem afastar os olhos do chão e me encaminhei ao setor de despacho de bagagens.
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Ali, um pôster imenso mostrava uma imagem de satélite do lugar onde passaria todo o verão. Escapou-me um sorriso diante daquilo que parecia uma mensagem de boas-vindas dirigida a mim. No meio da vista área, estava escrito: CERN: O LUGAR ONDE NASCEU A WORLD WIDE WEB Uma semana antes de pegar o avião, havia “googleado” tudo a respeito do lugar. Descobri que CERN1 é a sigla em francês do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, o laboratório de física nuclear onde foi construído o maior acelerador de partículas do mundo. Vinte e sete quilômetros de circunferência! Aparentemente, essa máquina gigantesca iria servir para compreender a origem do Universo. Uau! Recolhi minha mala na esteira e peguei a saída que levava ao ponto de ônibus, onde se amontoava um grupo de excursionistas jovens. Supus que se aventurariam em alguma rota dos Alpes. Ao meu lado esperava um velhinho com um paletó de veludo e um fino suéter escuro. Olhou-me através de uns óculos de armação antiga com seus olhos pequenos, mas alegres. Devolvi um sorriso tímido. Parecia um zelador aposentado. Quando chegou o ônibus que ia me deixar na porta do CERN, ocupei um assento perto do motorista, e o velhinho sentou-se ao meu lado. — Olá, jovenzinha — cumprimentou ele, em um inglês perfeito. — Você não é daqui, não é verdade? Muito nervosa, estava sem vontade de começar uma conversa. No entanto, a simpatia daquele vovozinho me impedia de ser mal-educada. Devolvi-lhe a saudação em inglês e acrescentei: — Estou vindo de Sevilha. — Uma cidade maravilhosa… Gosto muito de música flamenca e dos petiscos. Posso saber o que a trouxe à Suíça? — Vou trabalhar este verão no CERN, o laboratório de física que fica nos arredores de Genebra. — Conheço o lugar. — O ancião sorriu. Esperava que a conversa terminasse ali. Para evitá-lo, desviei o olhar distraidamente para a janela, mas o velhinho não tinha a menor intenção de ficar calado. — Você parece um pouco jovem para ser pesquisadora, ou, por acaso, é um geniozinho? 1 Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire. (N. da A.)
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— Não sou nenhum gênio… Trabalharei como garçonete durante os três meses de verão. Pude perceber a tristeza que acompanhara minha última frase. Um nó voltou a surgir em minha garganta quando pensei nos meses que me esperavam. Na escola, havia conseguido as melhores notas da classe. Ali, sim, me consideravam um geniozinho. Todos os meus professores afirmavam que eu seria uma universitária brilhante. No entanto, eu estava me encaminhando ao lugar com mais gênios por metro quadrado do planeta com a única missão de lhes servir café. Essa perspectiva fazia eu me sentir muito insignificante. Voltei a ter consciência de como estaria sozinha durante essas intermináveis semanas. Mordi o lábio e engoli a saliva com força para diluir a terrível sensação de que estava prestes a chorar. — Um destino curioso para se ganhar algum dinheirinho… “Velho intrometido!”, suspirei, incomodada, embora o mau humor me ajudasse a conter a vontade de chorar. Agradecida ao menos por isso, aceitei conversar: — Descobri uma agência europeia que oferecia esse trabalho para estudantes. No ano que vem quero entrar para a universidade e ainda não sei se vou estudar matemática ou física. Passar um tempo longe de casa me ajudará a decidir. Não achei necessário explicar ao bom homem que meus pais tinham fechado sua pequena livraria. A crise fora mais forte do que um sonho iniciado antes que eu nascesse. Enquanto meu pai procurava um trabalho qualquer, minha mãe começara a consertar as roupas das vizinhas, mas o que ganhava não era suficiente para cobrir as despesas de uma carreira universitária. — Acho que é uma decisão muito sábia, jovenzinha. Estou me comportando como um velho mal-educado. Nem sequer me apresentei: me chamo Murray. — Eu sou Laila. — Um belo nome, geniozinho. — É de origem árabe — expliquei. — Significa “bonita”. — Então, além de um nome bonito, é muito apropriado para você. Bem, se você vai se hospedar no CERN, terá de descer no próximo ponto. Vou anotar o número do meu telefone para você. Se precisar de qualquer coisa, filhinha, conte comigo. Dito isso, tirou uma caneta tinteiro do bolso e anotou vários números em um pedacinho de papel antes de dobrá-lo e oferecê-lo a mim.
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Ia agradecer de coração aquele gesto quando o ônibus chegou ao meu ponto. Desci de um pulo e peguei minha maleta no bagageiro. Antes de guardar no bolso o papel que o ancião havia me dado, li uma frase singular impressa no verso: “Os analfabetos do século XXI não serão aqueles que não souberem ler ou escrever, mas aqueles que não conseguirem aprender, esquecer o que aprenderam e aprender de novo.” ALVIN TOFFLER Guardei o papel em meu caderno. Havia decidido que seria meu cofre de pequenos tesouros. Ainda não tinha consciência de quantos deles acumularia ao longo dos meses daquele verão inesquecível.
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2. ANGELINA A estrada que dava acesso ao CERN terminava em uma guarita de vigilância. Eu precisava pegar a credencial que me permitiria passar pelo controle de segurança em um edifício anexo. Fui recebida por uma funcionária de aspecto soviético, com cara de poucos amigos. Ela estava atrás de um balcão decorado com plantas de plástico, no qual se destacava uma tela de computador. Balbuciando em francês, consegui explicar o objetivo de minha visita, e ela me fotografou com sua webcam. Por azar, teria de exibir aquela foto instantânea, na qual saí horrorosa, em meu badge — o crachá — durante toda a estadia no CERN. Depois de me dar uma pasta com o seguro médico e o contrato temporário, ofereceu-me um mapa com todos os edifícios do complexo do laboratório. Surpreendeu-me que fosse tão grande, embora formado por um sem-fim de pequenos blocos. — Você vai ficar hospedada aqui: edifício 41, porta da esquerda. Neste alojamento também estão os estudantes de verão. “Ótimo!”, pensei imediatamente, “Pelo menos encontrarei pessoas jovens”. Agradeci amavelmente todas as indicações que me dera e saí depressa. Maldição. Começara a chover. Cobri a cabeça com a pasta enquanto me dirigia às pressas ao controle de segurança. Envergonhada, exibi a credencial com minha pior fotografia até aquela data. Os agentes de segurança conversaram entre si em um francês muito rápido, e não consegui compreendê-los. Tinha certeza de que estavam rindo da minha foto, pois me saudaram sorrindo e me deixaram entrar.
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Não demorei a chegar à porta do meu alojamento, onde fui recebida por uma porção de bicicletas velhas e enferrujadas. Nenhuma delas tinha cadeado e eram todas iguais, com um pequeno logotipo do CERN no para-lama. Perguntei a mim mesma se poderia pegar uma emprestada e escapar para Genebra, que ficava a poucos quilômetros dali. Isso se parasse de chover em algum momento, claro. O feio e antiquado edifício de concreto me decepcionou. Esperava instalações mais modernas, até mesmo futuristas. Afinal, estava no laboratório de pesquisas mais avançado do mundo. No terceiro andar, não tive dificuldade de encontrar o quarto que haviam me atribuído, o 317. Ouvi uma música chata do outro lado da porta, o que significava que minha companheira de quarto estava em casa. Bati e esperei, mas ninguém respondeu, então resolvi entrar com minha própria chave. A música saía de um Mac que estava em uma das escrivaninhas do quarto. Era bastante amplo para duas pessoas, mas minha companheira não parecia ter a mesma opinião. Encontrei um sutiã preto de renda no chão ao lado de umas meias sujas. Havia duas camas encostadas nas paredes laterais do aposento. Uma delas estava completamente desfeita e a outra fazia a função de armário horizontal para um monte de roupas desordenadas. Fiquei plantada no meio do quarto, sem saber exatamente onde colocar minha pequena mala. Não dispunha de muita roupa, mas deveria esperar que minha companheira tirasse seus trapinhos da minha cama para que eu pudesse me instalar. Peguei em sua escrivaninha uma caderneta que se destacava no meio de papéis cheios de anotações e fórmulas. Pude ver seu nome nela, escrito com uma caligrafia perfeita: Angelina. Nesse exato momento, a porta do banheiro se abriu de supetão, e levei um susto. Uma garota totalmente nua e molhada dos pés à cabeça me repreendeu: — Posso saber que porra está fazendo com as minhas coisas? — gritou, arrancando a caderneta das minhas mãos. Olhou-me de cima a baixo com desprezo antes de acrescentar: — Então você é a estudantezinha com quem tenho de dividir esta merda de quarto?! Espero que não seja uma cleptomaníaca ou vai ter que se ver comigo. — Você se engana — respondi, em um inglês muito mais britânico que o dela —, não sou uma estudante de verão. Trabalharei
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no restaurante, e, sim… parece que vou ser sua companheira de quarto. Enquanto murmurava algo incompreensível entre os dentes, a expressão de seu rosto passou do aborrecimento à curiosidade. — Garçonete? Isso sim é uma boa notícia. Finalmente vou poder beber de graça. Dito isto, agarrou com os dois braços toda sua roupa de cima da minha cama e atirou-a, sem nenhum cuidado, na cadeira de sua escrivaninha. Apesar de estar completamente nua, aquela louca se movimentava pelo quarto com toda a naturalidade. E a verdade era que tinha um corpo que lhe permitia andar de biquíni ou nua com orgulho. Devia medir, no mínimo, um metro e setenta. Tinha pernas longas e curvas vertiginosas. Seus cabelos, completamente molhados, caíam sobre os ombros nus. Tinha pequenos olhos azuis e um nariz pontiagudo com a quantidade ideal de sardas para parecer atraente. Sua pele, de um bronzeado impecável, contrastava de maneira perfeita com os cabelos louros. Em comparação a ela, eu era uma morena discreta, que não surpreendia ninguém, embora meu pai sempre me dissesse que eu lembrava Audrey Hepburn. Claro que isso se devia ao seu amor incondicional… Estiquei a mão e nos apresentamos. Angelina fez comigo um high five, à maneira americana. — Voltou a chover… Porra! O que eu não daria para estar surfando na Tasmânia em vez de ficar enclausurada neste lugar nojento e cheio de freaks. Em uma tentativa de voltar a uma conversa cordial, perguntei: — Então, você é australiana? — Mas o que você é: garçonete ou Sherlock Holmes? Nasci na Flórida, mas há sete anos meu velho foi transferido para a Inglaterra. Abu, eu o chamo assim, é um respeitado e chatíssimo catedrático de Cosmologia da excelentíssima Universidade de Oxford. Arghh! — Que sorte ter um pai assim! — respondi, admirada. — Sim, claro, apaixonante. Por isso mandou Angie, a sua filha prodígio, para cá, a fim de seguir seus fabulosos passos e se transformar em outra cientista pedante que dorme com as ovelhas. Trancada e sem uma reles discoteca nas proximidades, sem poder se distrair um pouco. Que inferno! Batidas tímidas na porta interromperam nossa conversa.
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Aproximei-me e perguntei quem era sem abrir, pois minha companheira de quarto estava sem roupa. Como um raio, Angie se adiantou e escancarou a porta. Um rapaz moreno, com uma camisa polo listrada, contemplou-a, boquiaberto. Intimidado, afastou os olhos do corpo desnudo daquela louca. — Estão fazendo uma festa no corredor do quarto andar — gaguejou, sem parar de escaneá-la disfarçadamente. — Pensei que você gostaria de vir… — Vocês têm cerveja? — Sim, meus amigos se encarregam de ir até a França à procura de álcool. — Cool — respondeu, aliviada, enquanto pegava um vestido azul no monte de roupa. Depois de vesti-lo apressadamente, sem roupa íntima, agarrou o rapaz pelo braço e me disse por cima do ombro: — Durma bem, bebê. Depois fechou a porta com uma batida. Levei quase um minuto para processar a cena que acabara de viver. Cansada da viagem, desliguei a música do iTunes dela, vesti o pijama de verão e me deitei na cama. Depois selecionei em meu iPod Nano uma canção de Nikosia, “Melancholy nº 1”. Ela se encaixava perfeitamente ao meu estado de espírito. Enquanto a última luz da tarde se dissolvia, aquela calma reparadora logo se transformou em solidão e um certo temor. Lembrei-me de uma entrevista do psiquiatra Enrique Rojas que havia lido. Mencionava a fórmula: SOLIDÃO + TEMPO = depressão. Isso funcionava assim, “exceto com os intelectuais, que nunca se sentem sozinhos mesmo que ninguém esteja ao seu lado”, ele disse. Eu não era uma intelectual. No máximo, um saco cheio de sonhos, embora tampouco soubesse quais. Havia chegado a um destino invejável. Estava em um dos lugares mais fascinantes do mundo. Sobretudo para mim, que pretendia seguir uma carreira científica. Mesmo assim, sentia-me perdida e sozinha. E também um pouco pessimista. Tinha um humilde trabalho de garçonete e uma exibicionista louca como companheira de quarto. Tudo indicava que passaria o meu tempo livre naqueles meses completamente sozinha. Uma nova citação, desta vez do viajante Bruce Chatwin, veio à minha cabeça: “O que estou fazendo aqui?”
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Permiti-me derramar uma lágrima. Uma vez aberta a torneira, o pranto surgiu com facilidade. Abracei o travesseiro procurando um consolo. Aceitar aquele trabalho longe de casa havia sido uma péssima decisão. Antes que pudesse afastar essa ideia, adormeci.
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3. O LUGAR MAIS CHATO DO UNIVERSO Naquela minha primeira manhã no CERN, fui despertada por tímidos raios de sol. Graças aos roncos de minha companheira de quarto, não precisei nem de um segundo para me lembrar de onde estava. Abri os olhos lentamente e me espreguicei. Angie emanava um forte cheiro de álcool e tabaco. Depois de uma bela farra, era estranho que não tivesse me acordado ao chegar, pois eu costumava despertar com o voo de uma mosca. Vesti a calça jeans e uma camiseta, tentando não fazer barulho. Um esforço absurdo, pois com a ressaca que Angie devia estar, nem uma explosão nuclear no laboratório a teria acordado. Saí a tempo de não chegar atrasada no meu primeiro dia de trabalho. Graças ao mapa que haviam me dado na chegada, pude fazer um passeio de reconhecimento pelos arredores do Restaurante 1. Aquilo me pareceu um nome muito sem graça. No CERN havia duas cantinas batizadas com os números 1 e 2. Havia, certamente, muita ciência naquele espaço, mas pouca imaginação. Os arredores eram idílicos. As grandes janelas do restaurante davam para um belíssimo jardim verde com montanhas ao fundo, que pareciam tiradas de Heidi, a garota dos Alpes. Meia dúzia de cientistas desalinhados rondava as instalações àquela hora da manhã. A maioria vestia capas ou casacos impermeáveis contra a fina chuva que caía quase em silêncio. Embora faltassem quinze minutos para o início do meu turno, resolvi entrar e me apresentar ao gerente, que naquele momento estava contando as moedas da caixa registradora. Devia ter mais de quarenta anos, era gordinho e tinha cara de poucos amigos. Começou a conversar comigo em um francês tão fechado e atropelado que tive dificuldade de entendê-lo. Ensinou-me às pressas como funcionavam a cafeteira e a caixa registradora, assim como as geladeiras e alguns barris de Heineken que ficavam no armazém. Sussurrou algo
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incompreensível a respeito de uns cilindros de gás usados para dar pressão à chopeira. Aterrorizada, fiz um imenso esforço para compreender seu francês, embora não conseguisse absorver nada do que estava me dizendo. Depois de dez minutos de instrução, saiu grunhindo para cuidar do Restaurante 2, onde as geladeiras estavam descongelando por causa de um corte de eletricidade. Ao se despedir, disse: — Se surgir algum problema, você terá de se virar sozinha. Bye. Sozinha no comando da cafeteria, me senti como a cadelinha Laika a bordo do Sputnik 2, perdida na fria imensidão do cosmos. Enquanto esperava meu primeiro cliente — ou vítima —, respirei fundo. “Ânimo, Laila”, disse a mim mesma, “você foi a primeira da classe na escola. Preparar um café deve ser mole”. Nesse instante, dois sujeitos entraram na cafeteria e se sentaram a uma mesa longa. Aproximei-me para atendê-los com um vazio no estômago e recordei que, nervosa, não havia tomado café da manhã. Surpreenderam-me ao pedir um copo de leite com Nesquik. Foi um alívio. Pelo menos não teria que lidar com aquela cafeteira de aspecto infernal. Um minuto depois entrou um terceiro cliente, que chamou, imediatamente, minha atenção. Não apenas era bonito, mas destoava da fauna de cientistas que eu começara a ver. Alto e moreno, parecia mais um modelo de roupa casual do que um distraído cientista louco. Usava calça jeans nova, uma camisa de corte italiano desgastada e modernos óculos de sol, algo fora de contexto diante das incansáveis nuvens que cobriam o CERN. Comecei a limpar freneticamente o balcão para que não percebesse que eu prestava atenção nele. Resfolegou com resignação antes de se apoiar no balcão. Com a lentidão de quem tem tempo a perder, abriu seu iPad e começou a jogar Angry Birds, enquanto lançava olhares sonolentos às grandes janelas. De repente, tirou os óculos e me olhou. Entendi que até então não havia me visto. Dirigiu-me um amplo sorriso e, depois de um good morning com sotaque italiano, pediu um cappuccino. Aquele pedido me aterrorizou o suficiente para me tirar do estado apalermado no qual caíra. Meu Deus! Havia chegado o momento de enfrentar aquela máquina monstruosa sem ter a menor
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ideia de como se preparava um cappuccino. Por que não pedira um simples expresso? — Agora mesmo — disse, colocando uma xícara embaixo dos reluzentes braços do aparelho e apertando um botão vermelho. A dupla válvula começou a cuspir uma água esbranquiçada na xícara. Embora não tenha olhos nas costas, pude sentir que o belo cliente levava as mãos à cabeça. Segunda tentativa. Arranquei com dificuldade o braço da cafeteira e o introduzi no encaixe do pequeno moinho. Uma alavanca lateral fez com que o pó de café transbordasse da panelinha até se transformar em uma chuva amarronzada que caía em meus pés. Um suor frio percorreu minha espinha dorsal enquanto encaixava novamente o braço de metal em seu lugar. Botão vermelho. Desta vez obtive um caldo marrom que foi enchendo a xícara. Reuni coragem para lhe perguntar com fingido profissionalismo: — Quer o leite quente? Limitou-se a negar com a cabeça. “Ótimo”, pensei, pois não sabia como aquecê-lo. Disposta a terminar a tarefa, depois de acabar de encher a xícara de leite polvilhei a superfície com Nesquik e levei o cappuccino ao balcão. — Obrigado, lindinha. É nova aqui, não é mesmo? — Sim, por que diz isso? — respondi, na defensiva. — Recordaria seu rosto se o tivesse visto antes. Colocou os óculos de sol no alto da cabeça e me olhou com curiosidade. Tinha belos olhos castanhos. Intimidada, fugi de seu campo de visão o mais depressa possível e voltei à cafeteira com a intenção de limpá-la. No entanto, antes de alcançá-la, o petulante entrou sem nenhuma vergonha atrás do balcão e cortou meu caminho. — Posso lhe dar um abraço? — pediu. — Está brincando comigo? Antes que conseguisse reagir, me deu um abraço, do qual me safei tão depressa quanto pude. Sem saber o que dizer, percebi que o calor tomava conta da minha face. — Tenho que parabenizá-la — disse, com uma calma irritante. — É o pior cappuccino que já tomei na porcaria da minha vida. Humilhada, tive de fazer um enorme esforço para não começar a chorar. Pareceu notar minha consternação, pois usou um tom mais suave ao me dizer:
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— Venha, menina, vou ensiná-la a preparar um cappuccino de cinema. Dito isso, se dirigiu à cafeteira e me deu uma lição: — O segredo é encontrar a proporção adequada de café e espuma. Coloque sempre o leite antes de apertar “expresso”. Deve acrescentar a mesma quantidade de espuma e de leite. Venha comigo — acrescentou, segurando minha mão. — Vou lhe mostrar como se faz. Meu coração acelerou quando seus dedos se fecharam em cima da minha mão. Senti um calafrio ao mesmo tempo que rezava para que não tivesse percebido o efeito que produzira em mim. Assenti, fingindo que prestava atenção absoluta. — Entendeu? — Veja… — titubeei, percebendo que minha face se ruborizava de novo. — Menti no meu currículo ao dizer que já havia trabalhado como garçonete… A verdade é que não tenho a menor ideia de como funciona tudo isto. Ele recebeu aquela revelação com uma grande gargalhada. Depois me disse, entusiasmado: — Essa é a minha garota! Pode ficar tranquila. Chegou o bom Alessio para resgatá-la. — Eu sou Laila. Dei-lhe a mão, e ele a segurou por mais tempo que o normal. Ou assim me pareceu. Soltei a mão, um pouco incomodada. — O que você faz no CERN? — perguntei, olhando em seus olhos. — Perdoe minha indiscrição, mas… você não se parece com nenhum desses físicos que andam por aqui. Alessio sorriu maliciosamente e apoiou as costas no balcão. — Quer dizer que não tenho pinta de cientista… Está dizendo que pareço um bronco? “Que a terra me trague”, pensei, certa de que não encontraria no CERN cientistas tão belos. — Não é nenhuma ofensa — relevou ele. — Ao contrário, diante do que vi, acho que devo considerar isso como um tipo de elogio. Não se confunda. Apesar de falar italiano, sou suíço; de Lugano, para ser mais exato. Na minha cidade há uma cafeteria onde, segundo dizem, é servido o melhor cappuccino do mundo. Pegou-me pela cintura com a desculpa de me afastar para mexer de novo na cafeteira. Retirou a xícara e se dispôs a terminar sua obra. Segundos depois, colocou na minha frente um cappuccino fumegante, com um coração desenhado no creme.
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Parecia ter surgido de forma mágica, pois eu não o havia visto manipular o leite batido. Diante de seu olhar cheio de expectativas, levei a xícara aos lábios. — É delicioso — admiti depois de dar um gole. — Então… Se você não é cientista, o que está fazendo aqui? Se veio disputar meu posto de garçonete, já posso me considerar derrotada. — Sou jornalista, bem… quase jornalista. Pedi para fazer um estágio em um jornal esportivo, mas todas as vagas estavam ocupadas, e tive de aceitar uma vaga de bolsista na revista do CERN. Estava aberta porque este é o lugar mais chato do planeta. Ainda que, depois do show que você montou com meu cappuccino — sorriu, aproximando seus olhos hipnóticos dos meus —, eu já não tenha tanta certeza. — Está tentando me paquerar? — Me arrependi imediatamente depois de ter dito isso. — Não sou desses. Sou paquerado. O profissional disso é meu amigo Enzo. Tem uma técnica muito elaborada: quando entra em uma discoteca, pede um gim-tônica e escolhe uma vítima entre as garotas. Vai direto a ela e tira um cubinho de gelo de seu coquetel. Atira-o no chão, pisoteia-o e diz: “Boa noite. Agora que quebramos o gelo, já podemos ficar, o que acha?” — Patético… E funciona? — Nunca, pelo que eu vi. É a pior tática que conheço. Rimos juntos. Infelizmente, naquele instante apareceu o gerente. Seu rosto contraído revelava que não achara a menor graça em encontrar um cliente atrás do balcão. Alessio compreendeu a situação e saiu do espaço reservado aos garçons em menos de um segundo. A bronca que levei depois em francês foi de dar medo. Por sorte, só entendia três em cada cinco palavras, mas assenti com expressão de culpa. Quando o gerente acabou de gritar, atirou um pano na cafeteira e voltou a sair. Segundos depois, Alessio se materializou de novo no balcão, como se nada tivesse acontecido. — Você deveria agradecer ao velho, bambina. — Piscou um olho, maliciosamente. — A não ser que se anime a me seduzir, essa bronca será a coisa mais emocionante que viverá aqui. A domani. Acariciou meu queixo para se despedir, antes de sair pela porta de vidro que dava ao jardim. Justo naquele instante, Angie entrou na cafeteria.
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— Ora, ora… — murmurou com voz rouca. — O bebê tem um ás na manga! Posso saber de onde você tirou esse gostoso? — Bom dia, como vai a ressaca? — contra-ataquei, ignorando sua pergunta. — Está terrível… Convide-me para uma cerveja, por favor. É a melhor maneira de equilibrar os níveis de álcool. Vamos, tenha piedade desta pobre desgraçada. Aproveitando os novos conhecimentos adquiridos, preparei um cappuccino e o coloquei no balcão. Angie me olhou, resignada, enquanto bebia o café com cara de nojo. Sua expressão mudou quando me perguntou de repente: — Você já fez alguma vez com dois sujeitos, Laila? Fiquei calada para não dar um fora. A verdade é que nem sequer havia feito com um só. A americana achou que meu silêncio era uma negativa e acrescentou: — Eu também não. É praticamente impossível que dois gostosos ocupem um mesmo espaço-tempo. Primeira lição de física elementar. E a cerveja?
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4. NOTÍCIAS DA BASE LUNAR PARA: ANTONIO PAPÁ ASSUNTO: CRÔNICAS DO CERN I Olá, papi, Sinto muito ter demorado uma semana para lhe escrever. Parece mentira, mas já se passaram sete dias! Agora, olhando para trás, percebo que o tempo transcorreu de uma maneira muito estranha: rápida e lenta ao mesmo tempo. Vivi tantas coisas novas que tenho a impressão de estar aqui há um mês. Você já se sentiu assim alguma vez? Começo a compreender o que Einstein queria dizer quando afirmava que o tempo é relativo. Tenho tantas coisas para lhe contar que nem sei por onde começar! Estou dividindo um quarto com uma menina muito singular, Angelina. Ela está estudando física na Inglaterra e, além de ser muito, muito bonita mesmo, é um gênio. Sério, acho que é superdotada. Também é meio louca, mas nada que preocupe. Só tem dois anos a mais do que eu, mas entrou no CERN como summer student, um programa para licenciados do último ano. À noite, quando estamos no quarto, me conta o que aprendeu em suas aulas, e não entendo bulhufas. Sinto-me tão tola e insignificante ao seu lado! Tem até uma lousa no quarto, cheia de fórmulas e gráficos vertiginosos. Fico fascinada com a capacidade de Angie de parar no meio de uma explicação de física de partículas, contar uma fofoca amorosa de algum companheiro de classe e, depois de uma gargalhada, continuar com a demonstração matemática no ponto exato onde havia se interrompido.
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O pai deste gênio de minissaia é catedrático de Cosmologia em Oxford. Parece que é uma grande celebridade, mas é uma coisa de família. Um de seus antepassados foi Percival Lowell, um famoso astrônomo que teimou em procurar um novo planeta mais além de Netuno. Apesar de ter morrido antes de realizar seu sonho, um de seus discípulos, chamado Tombaugh, descobriu o planeta e o chamou de Plutão (aparentemente, as primeiras letras, PL, foram uma homenagem a Percival Lowell). O antepassado de Angie também era famoso por ser um pouco louco. Acreditava que Marte era coberto de canais, construídos pelos laboriosos marcianos. Talvez Angie não tenha herdado dele apenas uma cabeça privilegiada para a física… quem sabe! Ela não falou muito de sua mãe. A única coisa que sei é que resolveu procurar a iluminação espiritual na Índia e abandonou o professor e Angie quando ela era muito pequena. Faz anos que não têm notícias dela, mas parece que vive em um ashramdo Himalaia, uma espécie de comunidade administrada por um guru. Por mais difícil que pareça, Angie idealiza a mãe. Outro dia me ensinou a fazer “os ritos tibetanos da longa juventude”. São uns movimentos e alongamentos parecidos com a ioga. Acho que sente muita falta da mãe, apesar de quase não conhecê-la. Deve se sentir muito sozinha. Minha vida é muito menos interessante que a de Angelina. Bato ponto todos os dias no Restaurante 1. Já tenho o trabalho mais ou menos sob controle, embora ainda faça confusão com os pedidos. Outro dia um ogro vegetariano começou a gritar como um louco quando lhe servi um prato de fígado de cordeiro acebolado. Além de minha companheira de quarto, fiquei amiga de um estagiário de jornalismo. Chama-se Alessio e, embora esteja sempre criticando o CERN, acho que está pegando o gosto pela ciência. Ontem me contou que Eratóstenes conseguiu, no século III a.C., calcular o diâmetro da Terra com espantosa exatidão. Deixei que narrasse a história inteira apesar de eu e você a conhecermos perfeitamente. Carl Sagan conta esse caso em Cosmos, nosso documentário preferido. Você lembra? É espantoso que o tenha conseguido apenas com umas estacas e suas sombras! Escrevi toda a história na caderneta que você me deu de presente (eu já lhe disse que a achei o presente mais genial do mundo?!). Resolvi anotar nela todas as piadas que aprender aqui. Assim, quando voltar para casa, poderei contá-las a você sem esquecer nenhum detalhe. Eu lhe prometo adiantar algumas em cada e-mail!
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Para alimentar a caderneta, anotei que amanhã, no final da tarde, depois do meu trabalho na cafeteria, farei uma visita guiada às instalações do CERN. Você sabia que todos os que trabalham aqui podem virar guias oficiais, até mesmo eu, que sou só uma garçonete? É um trabalho voluntário. Não receberia nada, mas… seria atômico, você não acha? Enfim, sinto muito sua falta. Conte-me como estão todos e se vovó melhorou da artrose (dê-lhe um desses beijos metralhadora de minha parte :-). Eu te amo muito, papai! Laila P.S.: Quando ler o e-mail para mamãe, pule a história do Alessio, porfa… Não quero que fique chateada com o assunto dos garotos, está bem? É SÓ UM AMIGO.
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5. SEM VOCÊ ESTARIA PERDIDO Cheguei com alguns minutos de atraso à visita ao CERN, por culpa do último turno de refeições, que começou tarde devido a uma conferência de Nicolas Gisin, um especialista em telecinesia quântica. Aparentemente havia conseguido telecinesaralgumas partículas de Genebra a Lausanne, tipo Jornada nas Estrelas. Abri com um empurrão a porta que dava para um pequeno auditório do edifício principal. Ali começava o roteiro. A sala estava às escuras, levemente iluminada por uma tela onde se projetava um documentário sobre a origem do Universo. Minha repentina aparição me transformou em estrela, embora não pelo meu brilho, por alguns segundos. Um casal de velhinhos sorriu amavelmente para mim antes de voltar a se concentrar no filme. Além do casal, cinco sujeitos de terno estavam sentados na primeira fila. Pareciam vendedores de seguro. Um rapaz jovem com óculos enormes apareceu mancando atrás da porta. Eu a havia batido nele ao entrar. Tentei me desculpar, mas ele me interrompeu levando o indicador aos lábios. Depois me indicou com sinais que me sentasse. Envergonhada, desabei na primeira poltrona e tentei me concentrar nas explicações do documentário.
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Aparentemente, só havia perdido os instantes iniciais do Big Bang, a grande explosão que propiciou o início do Universo, há uns catorze bilhões de anos. A simulação por computador de como tudo começara era alucinante. Uma voz em off explicava como, depois da explosão, nosso Universo, então extremamente quente, começou a resfriar até que, da sopa cósmica, foram criados os constituintes da matéria: os quarks e os elétrons. Apesar de terem sido necessários três minutos para que os quarks se juntassem, criando os prótons e os nêutrons que se transformariam em núcleos atômicos, só depois de mais 380 mil anos os elétrons começaram a orbitar ao redor dos núcleos, formando os primeiros átomos. Era exatamente esse o objetivo do CERN: como se fosse uma imensa máquina do tempo, os cientistas pretendiam recriar os instantes iniciais do Universo. Com isso, tentavam entender a origem da matéria. Quando as luzes se acenderam, peguei meu Moleskine e comecei a fazer anotações. O rapaz que eu havia esmagado ao entrar era o guia e o palestrante, embora tivesse pouco mais de vinte anos. Era louro e de corpo atlético. Suas mandíbulas acentuadas emolduravam traços agradáveis, mas usava óculos muito antigos. Não o favoreciam nem um pouco. No entanto, a calça jeans, as botas de montanhismo e a camiseta desbotada contrastavam com a rançosa formalidade dos sujeitos de terno da primeira fila. Com um forte sotaque norte-americano, começou a explicar uma porção de curiosidades sobre a criação do laboratório, em 1954. Depois da Segunda Guerra Mundial, muitos cientistas emigraram para os Estados Unidos para dar continuidade a suas investigações. Na intenção de frear esse êxodo de cérebros, foi criado na Suíça, território neutro, este grande centro de pesquisas. Um espaço onde cientistas de todo o mundo poderiam se reunir, sem outro objetivo que não fosse o de fazer perguntas sobre nosso Universo e, com sorte, encontrar algumas respostas. O jovem guia ressaltou que as pesquisas do CERN são abertas a toda a humanidade e que nunca tinham objetivos militares. Interessada por aquele rapaz que falava tão bem, não suspeitava que, semanas depois, iria descobrir por que havia dado tanta importância a esse ponto. Depois desta observação, nos apresentou a menina mais bela do CERN: o Large Hádron Collider ou Grande Colisor de Hadrões.
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Sabia por experiência própria o que eram os ladrões, pois haviam entrado em minha casa há alguns meses, mas os hadrões eram um mistério para mim. — O LHC não é apenas o maior acelerador de partículas do mundo — explicou, apaixonadamente —, com vinte sete quilômetros de circunferência, mas também a máquina mais fria do universo, graças a seus -271,3°C. Pensem que a temperatura média do cosmos gelado é de -270,9°C. — E qual é a utilidade de enfiar o cosmos na geladeira? — perguntou um engravatado, fazendo-se de engraçadinho. — Os ímãs que atraem as partículas e as fazem girar são supercondutores e só funcionam a baixíssimas temperaturas. Para enfiar o Universo ainda mais “na geladeira”, usamos hélio líquido. Assim, quase conseguimos chegar ao zero absoluto, ou seja, -273,15°C. O jovem físico acompanhava suas explicações com movimentos enérgicos dos braços, como se quisesse representar a fria corrida das partículas. Percebia-se que adorava dar aquelas aulas. Enquanto o ouvia falar, totalmente hipnotizada, tive a agradável sensação de compreender, pela primeira vez, muitos dos conceitos que Angie mencionava por alto. Até então haviam me parecido cifrados e difíceis de acompanhar. — No CERN — continuou o jovem, limpando os óculos de armação antiga —, estudamos as partículas que formam a matéria, assim como as forças que agem entre elas: a gravitacional, a eletromagnética e as nucleares forte e fraca. — Creio que está se esquecendo de uma, jovem professor — interrompeu-o a velhinha com um amplo sorriso. — Esqueceu de mencionar a força mais poderosa de todas: o amor. O jovem conferencista ficou vermelho. Parecia perturbado, como um estudante a quem tivessem perguntado a única coisa que não havia estudado. Sua reação diante daquela pergunta inesperada conferiu a seus traços um calor que o tornava muito atraente. Depois de recuperar a compostura, disse: — Como sou solteiro, talvez isso signifique que ainda não fui capaz de resolver a equação do amor — disse, piscando um olho para a velhinha. — É uma incógnita que ainda terei tempo de esclarecer. Agora, por favor, me acompanhem. Um micro-ônibus está nos esperando e nos levará para ver o LHC.
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Depois de abandonar o pequeno auditório, quando nos acomodamos no veículo, os cinco engravatados se sentaram perto do guia e ficaram bombardeando-o com perguntas durante o trajeto. — O acelerador está em um túnel subterrâneo, não é mesmo? — De fato. Fica, conforme o declive do terreno, entre cinquenta e cem metros abaixo do solo. Quando as duas equipes acabaram de escavar em direções opostas o túnel circular, situado entre o lago de Genebra e os montes de Jura, se depararam com um erro máximo de um centímetro. Os engenheiros ficaram muito orgulhosos daquela proeza! — E quanto custou construir este enorme acelerador? — ouvi um deles perguntando. — Só a máquina ultrapassou os três bilhões de euros. Pode parecer muito dinheiro, mas os benefícios da pesquisa para a humanidade são incalculáveis. Por exemplo, a medicina deu passos gigantescos graças à tecnologia desenvolvida pelo CERN, como os raios X ou a radioterapia de elétrons e prótons contra os tumores, e não podemos nos esquecer de que foi aqui que nasceu a World Wide Web. Quinze minutos depois, chegamos a um complexo cinzento com aparência de galpão. Nosso guia nos mostrou uma maquete em escala do chamado CMS, um dos detectores de partículas do laboratório. Explicou que era do tamanho de uma catedral. — No túnel que está embaixo de nossos pés são acelerados dois feixes de prótons, em direções opostas e a velocidades próximas à da luz. Andam tão depressa que estas partículas conseguem dar onze mil voltas em todo o acelerador a cada segundo. Ao longo dos vinte e sete quilômetros do LHC, há seis grandes detectores chamados Atlas, CMS, LHCb, Alice, TOTEM e LHCf. Nestes seis pontos, os feixes de partículas colidem entre si para que possamos captar o que acontece nestas explosões minúsculas, mas de enorme energia. As informações que estes detectores recolhem durante um ano são tão grandes que se as copiássemos em CDs e os empilhássemos teríamos… uma coluna de vinte quilômetros de altura! Mais de duas vezes e meia o Everest. — Deve ser uma máquina enorme! — exclamou, impressionada, a velhinha. — Levando em conta que tem de detectar coisinhas tão pequenas… — E é. Imaginem que o sistema de ímãs deste detector, o CMS, é formado por dez mil toneladas de ferro, mais do que a Torre Eiffel, que só pesa sete mil toneladas. Embora tudo aquilo fosse, sem dúvida, fascinante, estava começando a me sentir esmagada por tantos dados. Apoiei-me na parede para respirar antes de voltar ao micro-ônibus, onde o casal de
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velhinhos discutia com os engravatados sobre a complexidade daquela obra titânica, que durou, como uma condenação, quinze longos anos. Sentia-me confusa e insignificante, quando ocupei o assento ao lado do guia sem me dar conta. Sua voz, grave e calma, me despertou da letargia. — O que achou da visita? Espero que não a tenha aborrecido muito. — Pelo contrário, fiquei encantada, de verdade… — A que se deve sua visita ao CERN? — perguntou com timidez. — Trabalho aqui. — Ora! Parece muito jovem para ser pesquisadora. Deve ser uma estudante prodígio. Em que departamento você está? Totalmente envergonhada, desviei o olhar para o chão do micro-ônibus e confessei: — Na verdade, trabalho como garçonete. Aceitei um emprego temporário para ganhar algum dinheiro e pagar a universidade. — Em qual dos dois restaurantes você está? — perguntou, como se não se interessasse pelo que eu iria estudar depois daquele verão. — No 1. Cheguei há pouco. Esta é minha segunda semana aqui. Pensei que seria uma boa ideia assistir a uma visita guiada para ter uma mínima ideia do que os cientistas fazem. Talvez assim entenda as estranhas conversas que ouço quando estão tomando café. — Acho fantástico! É a primeira vez que alguém do restaurante vem a uma de minhas visitas. Espero ter me explicado de maneira simples, embora o que acontece aqui embaixo possa ser chamado de qualquer coisa, menos de simples. — Você fez tudo muito bem — elogiei-o, sem poder evitar um sentimento de humilhação. — Até uma criança da escola primária o teria entendido. Até mesmo uma garçonete que só entrega os pratos do cardápio e serve cafés. — Não desmereça sua tarefa! Graças à cafeína, que bloqueia um neurotransmissor que facilita a aparição do sono, nós, cientistas, podemos nos entregar a nossas elucubrações mentais. Sem você, eu estaria perdido.
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6. MONDAY GLOOM Estava escurecendo quando, depois de um longo passeio, voltei ao alojamento muito mais exausta do que nos outros dias. Pensar cansa. Ao empurrar a porta da rua, fui assaltada por um cheiro de fritada, embora os quartos não tivessem cozinha. Subi a pé os três lances de escada e cheguei à porta 317. Lá de dentro vinha o ritmo de cavalgada de “Knights of Cydonia”, do Muse. Ao entrar, me surpreendi com o fato de a luz do quarto estar apagada. Distingui as silhuetas de duas garotas e três rapazes, observando com extrema atenção um forno de micro-ondas aberto. — Vem pra cá, Laila. — Angie fez um gesto com a mão. — Estamos fazendo um experimento quântico. O suave resplendor do eletrodoméstico iluminou um rapaz ruivo, com óculos estreitos, que se encarregou de me dar a explicação pertinente: — Estou demonstrando como as micro-ondas podem ionizar o gás de uma lâmpada e acendê-la. Espere e verás! Haviam colocado uma lâmpada com a rosca metálica dentro de um copo d’água. Depois de fechar o micro-ondas, o ruivo o acionou. Segundos depois, pudemos ver que, de fato, a lâmpada emanava luz por uns instantes. — Klaus, nos ilumine com sua teoria — pediu Angie com fingida solenidade. Minha companheira de quarto atirou para ele um dos marca-textos de nossa fantástica lousa. Nenhum outro quarto possuía uma, que eu soubesse. Na verdade, havia roubado esta da sala de um professor que achava antipático. Klaus começou a desenhar símbolos na superfície da lousa, enquanto explicava como a radiação levava os elétrons a saírem disparados dos átomos.
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Outro dos rapazes, um inglês muito magro, o contradizia: — Pois eu não creio que seja pela ionização. Certamente o metal funcionou como antena e transmitiu ao filamento da lâmpada a corrente necessária para acendê-la. — Os dois estão equivocados — interveio Angie. — É claríssimo, não estão vendo? Acende pela radiação do corpo negro. — Pois meu corpo branco ruge de fome — protestou uma estudante de cabelos cacheados que estava sentada no colo de um rapaz corpulento. — A pizza que Pierre trouxe do take away vai esfriar. Reaquecida no micro-ondas não vale nada. Em seguida, dividiu a pizza e a serviu em pedaços de papel toalha, enquanto Klaus, Angie e o magrinho continuavam discutindo diante da lousa o motivo pelo qual aquela lâmpada acendera. — Eu sou Chantal — apresentou-se, me dando um pedaço —, e este é meu namorado, Pierre. O rapaz me deu a mão timidamente enquanto eu lhes dizia meu nome. — Você também é uma summer student? — perguntou. — Não, trabalho como garçonete no Restaurante 1. Disse a ele em voz baixinha, enquanto mordia sem vontade a pizza de quatro queijos. Chantal se sentou ao lado de Pierre, marcando território, e acrescentou com um pouco de sarcasmo: — Que ironia que a façam compartilhar o quarto com Angie… uma garota do serviço e a estudante com melhor histórico escolar. Aquele comentário me feriu fundo. A expressão de Pierre denotava que se sentia desconfortável. Felizmente, nesse instante, Klaus interrompeu nossa conversa e apresentou a si mesmo e seu amigo Arthur, o inglês esquálido. Antes que eu conseguisse dizer alguma coisa, Chantal começou a falar sobre um exercício de física que vira naquela manhã. Os dois rapazes travaram um diálogo muito apaixonado, para quem conseguisse compreendê-lo, claro. Murmuravam algo sobre rupturas de simetria e dedução matemática de novas partículas. Eu me limitei a jantar em silêncio, querendo passar despercebida. Terminada a discussão, Pierre e Angie se afastaram do grupo e foram fumar ao lado da janela. Percebi que Chantal os vigiava com seus olhos azuis venenosos. Seu namorado belga, como ela, era calado, mas tinha jeito de bonachão. Ao conversar com Angie, mostrou-se mais animado do que estivera ao longo de toda a noite.
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Eu conseguia entendê-lo. Minha genial companheira de quarto estava belíssima. Havia recolhido seus cabelos dourados em um coque do qual sobressaíam algumas mechas desordenadas. Vestia uma minissaia e uma blusa de alça que envolvia seus seios firmes. Estava descalça. Chantal foi se desconectando cada vez mais da conversa à medida que sua expressão se azedava exponencialmente. “Como os outros não conseguem perceber que Chantal está prestes a explodir de ciúmes?”, pensei enquanto Klaus e Arthur riam às gargalhadas de um professor emérito com quem tinham aulas. Quando a paciência da belga atingiu o teto, foi atrás do namorado e começou a gritar com ele em uma língua que me pareceu holandês. Aquela briga não parecia incomodar Angie, pois se limitou a olhar a belga com autossuficiência, acendendo outro cigarro. Klaus e Arthur não se deram conta da situação, até que Chantal atravessou o quarto, furiosa, e saiu batendo a porta com força. Seu companheiro pediu desculpas a todos, vermelho de vergonha. — Não seja molenga, Pierre! — recriminou Angie. — Deixe ela ir embora, não vá atrás. O belga lhe devolveu um olhar de resignação e encolheu os ombros antes de sair às pressas atrás de sua metade da laranja. — Esse sujeito é um tonto — criticou Angie. — Não entendo por que se deixa ser controlado por esta amargurada. Deveríamos denunciá-la à Sociedade Protetora dos Namorados Atordoados. O que fazemos, garotos? Tiramos o coquetel da geladeira? — Parece excelente — disse Arthur. — Que diabos de mistura é essa? — Isso é segredo de Estado — riu Angie. — Precisaremos lhe dar um nome. Klaus riu da piada enquanto Arthur folheava um livro que, naquela mesma manhã, eu pegara na biblioteca do CERN. O título havia chamado minha atenção: O senhor está de brincadeira, Mr. Feynman? Só tivera tempo de ler a contracapa, mas, aparentemente, narrava histórias de um dos melhores físicos — e um dos mais excêntricos — do século passado. Além de ter recebido o prêmio Nobel por causa de suas contribuições à eletrodinâmica quântica, Feynman se destacou com sua paixão por tocar bongô e pelas mulheres.
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Estivera recluso com outros cientistas no Laboratório Nacional de Los Álamos, onde ajudara a criar a primeira bomba atômica. Era um lugar extremamente chato, não havia nada para fazer e, por isso, Feynman se entretinha abrindo as caixas-fortes do laboratório, pelo simples prazer de colocar sob suspeita a segurança daquela instalação militar. — Você está lendo esse livro, Angie? — perguntou Arthur, gaguejando levemente. — É um dos meus preferidos. — É da júnior — respondeu minha companheira, interrompendo por alguns segundos sua conversa com Klaus. Além de perceber que havia subido de categoria — uma semana antes era “a bebê” —, vi que o tímido inglês procurava pretextos para chamar a atenção de minha atraente companheira de quarto. Resolvi me apiedar dele e, por isso, monopolizei Klaus, permitindo que Angie ficasse livre para aquele rapaz muito reservado. Minha insegurança habitual se esfumou, pois estava convencida de que fazia uma boa ação. Lembrei como um amigo de meus pais havia entabulado uma conversa comigo no Natal passado. Sentado ao meu lado durante a ceia, me disse, se apresentando: “Eu arranco dentes, e você, o que faz?” Aquela abordagem selvagem me levara a rir, e resolvi repeti-la com Klaus: — Eu sirvo café no Restaurante 1, e você, o que faz? — Bem, até agora tomava café no 2, mas acho que vou mudar de lugar — respondeu, piscando um olho para mim. Tal como havia previsto, Angie se sentou ao lado de Arthur e começaram a conversar. Talvez estivessem comentando as histórias engraçadas do professor Feynman. — E, além de tomar café no restaurante errado, em que departamento trabalha? — Trabalho no projeto Alfa. Em vez de acelerar partículas, que é o que está na moda por aqui, nós as desaceleramos. — Então você é do movimento Slow! Recordava ter lido uma reportagem sobre aquela corrente que defendia a lentidão. Entre outras coisas, seus adeptos se opunham à cultura do fast food — preferem esperar duas horas por uma comida caseira — e aos supermercados 24/7. Aparentemente, o movimento não entusiasmava Klaus, pois disse:
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— Não, eu sou louco pelo McDonald’s. Isso tem suas vantagens, júnior. Não terá que reservar todo o fim de semana se eu convidá-la para jantar. Era óbvio que o ruivo estava tentando me conquistar, mas pelo menos era simpático. Agitava-se com nervosismo e tinha as unhas das mãos completamente roídas. Deu um gole de vinho antes de declarar: — Para efeitos práticos, o que fazemos é gerar antimatéria. — Antimatéria? — Da mesma maneira como tudo o que nos cerca — a matéria — é formado por partículas muito menores, a antimatéria é composta de antipartículas. — E essas antipartículas… existem na realidade? — Claro que sim! Quando nasce uma partícula, também é produzida sua antipartícula. O yin e o yang. Não se cria uma sem a outra. Nos instantes iniciais do Universo, durante o Big Bang, surgiram tanto as partículas de matéria como as de antimatéria. Armou-se uma grande confusão. Klaus agitava as mãos para ilustrar suas explicações. Era um sujeito alegre, embora sua camiseta retrô de Jornada nas Estrelas lhe desse um toque freak. Fascinada, quis gravar na mente tudo o que estava me contando para anotar mais tarde em minha caderneta. — Mas… — interrompi-o — quando as partículas da matéria se juntam com as da antimatéria, elas se destroem, não é verdade? Então, se foram criadas tantas partículas como antipartículas, não deveria ter sobrevivido nada em nosso Universo! O alemão serviu mais vinho em nossos copos de plástico e continuou a explicação. Notava-se que estava gostando de seu protagonismo diante de uma ignorante como eu. — Por algum motivo que ainda não compreendemos, houve uma desigualdade entre matéria e antimatéria. Esta batalha campal entre partículas e antipartículas foi vencida pela matéria e, assim, surgiram as estrelas, os planetas… e todos nós! — Então não é perigoso que vocês criem antimatéria aqui? — Nem um pouco, de fato nossa produção de antimatéria é tão insignificante que nem sequer conseguiria lhe fazer cócegas. — Isso parece muito com Anjos e demônios, o romance de Dan Brown, em que ameaçaram atirar o Vaticano pelos ares com uma bomba de antimatéria… É verdade que é uma arma tão perigosa? — Poderia ser, mas, no ritmo em que vamos no CERN, precisaríamos de dois bilhões de anos para produzir um simples
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grama de antimatéria para confeccionar uma pequena bomba. Não vale a pena. Fantasiando, preferiria usá-la para fazer viagens interestelares, como a Enterprise, de Jornada nas Estrelas. Terminou esta última frase apontando, orgulhoso, o desenho de sua camiseta. — Você é um alucinado que confunde ficção científica com realidade — provoquei. — Não estabeleça limites para o que o ser humano é capaz de criar — declarou solenemente. — Se prestar atenção, ao longo da história a humanidade conseguiu criar tudo aquilo com que sonhou. Certamente, para os contemporâneos de Jules Verne, quando ele escreveu Da Terra à Lua, a ideia de viajar ao espaço era uma loucura. Mas em 21 de julho de 1969, às 2h59, hora internacional, o comandante Armstrong se transformou no primeiro ser humano a pisar em nosso satélite. — Muitos duvidam de que isso tenha acontecido de verdade — interrompi —, acham que foi uma montagem. Dizem que não se explica o fato de não termos voltado à Lua desde então, dispondo de uma tecnologia infinitamente superior. — São falsos boatos que se espalharam como espuma. O programa Apolo realizou mais de uma alunissagem tripulada. Procure no site da NASA e poderá ver. Todos, menos o Apolo 12, foram nos anos 1970. Mas, deixando a Lua de lado, este não é o único exemplo da influência que a ficção científica teve na realidade. Conhece a história de Martin Cooper? Neguei com a cabeça, atordoada diante daquela avalanche de informações. — Martin era fã de Jornada nas Estrelas. Em um episódio, viu o capitão Kirk se comunicar com sua nave, a Enterprise, através de um aparelho sem fio. Ao ver aquela cena, Cooper se levantou da cadeira e exclamou: “Eu quero construir um desses.” Em 1973, no departamento de comunicações da Motorola, este homem realizava a primeira ligação em público usando o dispositivo que acabara de criar: o telefone celular. — Uau! Não tinha a menor ideia! — confessei, admirada. Conversar com aquele rapaz era fácil e apaixonante. No entanto, à medida que o vinho fazia efeito em mim, comecei a pensar em Alessio contra minha vontade e me esquentei. O jovem alemão continuou, alheio aos meus pensamentos. — Não tenho a menor dúvida de que, na ciência, o melhor está por vir. Vamos construir máquinas em escala atômica que
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revolucionarão a medicina. Conseguiremos gerar fontes de energia limpa e quase ilimitada como o projeto ITER, que trabalha com a fusão nuclear, em lugar da fissão atual. Em vez de separar os átomos violentamente, vamos fusioná-los, criar pequenos sóis na Terra. Será possível fornecer energia à rede elétrica entre 2030 e 2040. — A verborragia de Klaus parecia não ter fim. — Por outro lado, temos os computadores quânticos com sua brutal capacidade de processamento. Uma única dessas máquinas poderá processar mais informações do que todos os computadores do mundo trabalhando em paralelo. — Parece fantástico, mas também dá medo — refleti, contendo um bocejo. — Eu me pergunto como usaremos todo esse conhecimento e tecnologia. A ciência pode nos fazer avançar, mas também nos levar à autodestruição. Emocionado com o auge de seu próprio discurso, Klaus colocou o braço em meu ombro, concluindo: — Eu sou otimista a respeito deste assunto. Quem me dera poder viver um século inteiro para ver o futuro alucinante que nos espera! Estou certo de que será o máximo. Tal como afirma Arthur C. Clarke em sua terceira lei: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia.” Enquanto esperamos por todas essas maravilhas… — Seus olhos azuis se cravaram nos meus. — A verdade é que você não está nada mal. Fiz com que visse que aquela “direta” não me afetava e, depois de encher o copo do alemão, deslizei discretamente para minha cama, sem me importar que a festa seguisse seu curso. Antes de me esconder debaixo dos lençóis, eu me despedi: — Boa noite, meninos. Creio que a física não perceberá minha ausência por algumas horas.
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7. QUANDO O AZUL SE GASTA Acordei antes que o sol aparecesse. Havia passado a noite viajando em uma imponente nave estelar que era propulsionada por motores de antimatéria. Em meu sonho, Angie desenvolvia uma teoria com a qual conseguia fazer avançar em vários séculos a tecnologia atual. No entanto, os militares queriam usá-la para criar bombas e, naturalmente, exigiam que fossem os únicos a ter acesso àquele segredo. Neste ponto começava o pesadelo. Alessio havia se transformado no comandante das forças armadas que ordenara nossa captura. Passamos a noite inteira fugindo de soldados que queriam nos prender. No exato momento em que Chantal nos delatava aos militares, chegaram aquele charmoso guia do CERN e Klaus. Os dois faziam parte da resistência, assim como nós, e nos ajudavam a fugir das garras dos soldados em uma nave chamada Arcadia. Apesar de ser extravagante, aquele sonho estava banhado de uma triste realidade. Também nos meus pesadelos eu era a única que não entendia a metade das conversas, a que ficava à margem quando discutiam assuntos científicos. Vesti-me em silêncio, com a terrível sensação de ser a idiota do lugar. Estava cansada de me sentir tão insignificante e de minha imaginação ser sempre tão negativa. Depois de colocar o uniforme, olhei-me no espelho. Tratava-se de uma roupa espantosa: uma camisa creme e calças pretas que me deixavam ainda mais desengonçada do que já era. Se não fosse por meus cabelos medianos, qualquer um me confundiria com um garoto. Aquele pensamento me afundou um pouco mais na miséria.
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Quando saí do alojamento ainda não tinha amanhecido. O Restaurante 1 ainda estava fechado, então decidi dar uma volta pelas ruas desertas do CERN. O frescor da manhã me fez bem. Minha mente foi despertando e, aos poucos, o mau humor com que tinha acordado foi se dissipando. Enquanto caminhava, notei que cada uma das ruas daquele complexo caótico tinha o nome de um cientista. Nesse momento percorria a Route Schrödinger em direção ao cruzamento da Rue Perrin. Conhecia o primeiro, porque Angie falava dele toda hora. Havia me explicado que Erwin Schrödinger foi um dos pais da mecânica quântica. Desenvolveu uma equação que tinha seu nome e pela qual ganhara o Nobel em 1933. Também propôs o experimento mental que ficou conhecido como “o gato de Schrödinger”, para explicar os paradoxos da física quântica. Havia anotado em minha caderneta aquela história sobre um gato que podia estar vivo e morto ao mesmo tempo. Isso, sim, era extravagante! No entanto, o que mais me surpreendeu naquele físico não foi nem sua equação nem o paradoxo daquele gato fantasma. Pelo visto, era tão interessado pelas mulheres quanto pela mecânica quântica. Ao que parece, não desenvolveu a equação pela qual lhe concederam o Nobel em um laboratório rançoso e subterrâneo, mas em um romântico hotel dos Alpes suíços que frequentava com diversas amantes. Aconteceu depois de ter passado férias natalinas apaixonantes com uma bela jovem — ou duas, como dizem alguns. Schrödinger, que era casado, sabia mesmo o que era estar em dois lugares ao mesmo tempo… como as partículas. Quem sabe, pensei, talvez eu também pudesse me transformar na musa inspiradora de um atraente cientista que desenvolveria uma equação revolucionária graças às minhas carícias. Talvez estes físicos não fossem tão chatos como supunha antes de chegar ao CERN… Meu estado de espírito acabara de dar uma volta de cento e oitenta graus. Pela primeira vez me sentia feliz por estar naquele lugar privilegiado. Inspirei fundo, como se pudesse absorver a energia de nossa grande estrela, que começava a se mostrar timidamente no horizonte. Sempre gostei de madrugar, da sensação de estar roubando tempo do dia. Para mim, isso era estar na vantagem, enquanto o resto do mundo continuava dormindo. Como dizia um intelectual irlandês do
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século XIX: “Perca uma hora da manhã e ficará procurando por ela o resto do dia.” Fechei os olhos para desfrutar o calor que os primeiros raios de sol me davam de presente. Ao ouvir alguns passos se aproximando por trás, me virei, sobressaltada. — Desculpe, não queria assustá-la. Era o rapaz que fizera o papel de guia na tarde anterior e que, à noite, em meu sonho, me salvara dos malvados militares. Por alguns instantes, envolta na magia do amanhecer, não fui capaz de distinguir qual dos dois personagens passeava, insone. — Bom dia — cumprimentei, sentada à beira da calçada. — Gosto muito da cor avermelhada do céu, pouco antes do amanhecer. — É por causa da dispersão Rayleigh — disse com o olhar perdido no céu, através de seus óculos de armação antiga. — O que você disse? — Quando a luz do sol atravessa a atmosfera verticalmente, afeta um comprimento de onda que nós identificamos como a cor azul. Mas, durante o amanhecer e, sobretudo, quando o sol se põe, os raios horizontais de nossa estrela têm de atravessar uma zona muito mais ampla da atmosfera. Por isso, a luz que consegue chegar até a gente tem um comprimento de onda maior, que corresponde à luz vermelha. Está entendendo? — Parece complicado, mas acho que sim… Então, o pôr do sol é avermelhado porque o azul se gastou? — É uma maneira de dizer — riu ele —, embora, formulada assim, não soe muito romântica, não é mesmo? Ontem você chegou quando já tínhamos nos apresentado. Eu me chamo Brian. Estendi-lhe a mão e depois de dizer meu nome acrescentei: — Também gosta de madrugar, pelo que estou vendo. — Não creio que possa dizer que madruguei… ainda não me deitei. Passei a noite trabalhando em um projeto de pesquisa que me tira do sério. É uma coisa paralela ao trabalho que faço aqui, no CERN, e por isso devo voltar à minha sala dentro de uma hora. — Nossa! — exclamei com uma repentina simpatia por ele. — Tanta dedicação merece um cappuccino com expresso duplo. É um convite da casa. Conte com isso se passar daqui a pouco no Restaurante 1. — Muito obrigado — sorriu, visivelmente cansado. — É provável que abusarei da sua amabilidade, aceitando o convite.
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Ficamos em silêncio durante alguns segundos. Estava gostando daquela pequena intimidade que se instalara entre nós dois. O sol já estava totalmente fora do horizonte, e o azul começava a vencer a batalha contra o vermelho. — Preciso ir. Se chegar atrasada, meu chefe me dará uma bronca — disse, levantando-me. — Nos vemos logo! Desfiz meus passos em direção ao restaurante enquanto sentia, como se tivesse olhos invisíveis na nuca, o olhar de Brian ao me afastar.
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8. TRÊS QUARKS POR MUSTER MARK! A placidez com que o dia tinha começado não durou muito. Naquela manhã, a cafeteria estava bombando. Havia conferências importantes no auditório principal, que ficava no mesmo complexo do Restaurante 1. Durante os intervalos, chegava uma enxurrada de estudantes e pesquisadores com uma intensa necessidade de cafeína. Tinha visto Alessio entrar na cantina, mas deve ter entendido que estava muito atarefada, pois foi embora pouco depois. Brian não aparecera para tomar seu “café de recompensa” pela sua dedicação noturna à ciência. O desjejum foi tão caótico quanto o restante da manhã. Naquele dia, consegui superar meu recorde pessoal de pratos quebrados por hora. E o pior era que o mau humor dos garçons do turno das refeições era altamente contagioso. Mesmo assim, resolvi não me deixar atingir pela epidemia e continuei tratando os comensais com amabilidade. Inspirei-me em Marc, o incansável garçom da Nécora, a cantina da minha escola de Sevilha. Trovejasse ou nevasse, nunca faltava um sorriso quando atendia a sua agitada clientela. Uma tarde, quando cantarolava enquanto recolhia as mesas, perguntei como, diabos, conseguia estar sempre de bom humor. Contou-me sua teoria secreta: se atendesse, por exemplo, a um dos professores com amabilidade, quando este chegasse a sua classe sorriria para seus estudantes, e estes, por sua vez, seguiriam a corrente, tornando este mundo um lugar mais feliz e amável. A vítima seguinte do meu vírus de amabilidade contagiosa foi, casualmente, o mesmo vovozinho que me acompanhara no ônibus quando chegara ao aeroporto do Genebra. Sorrir para ele seria fácil. Ao me ver, fez uma careta simpática e piscou o olho para mim ao dizer:
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— Como vai, minha jovem genial? Essa fauna de cientistas loucos está se comportando bem com você? — Por ora estou conseguindo mantê-los na linha — brinquei. — Sou muito velho para que me surpreendam… mas intuo por suas palavras que mais de um doutorando tentou impressioná-la. Pensei durante alguns instantes antes de lhe dizer: — Suponho que seja inevitável se sentir idiota quando sua companheira de quarto é uma iluminada e todos seus amigos conversam sobre coisas que você é incapaz de entender. Quando falam comigo, parece que se dirigem a uma menina do jardim de infância. Chegam a pronunciar as palavras mais lentamente! Mas imagino que o senhor sabe do que estou falando, se também teve que trabalhar no CERN. — Mais ou menos… Mas não permita que a confundam. Atrás de todas essas palavras incompreensíveis se escondem pessoas com um baixo conceito sobre si mesmas. Para muitos, a ciência é uma armadura que os protege de um mundo de emoções que não compreendem. Nestes casos, só podem ser salvos por uma princesa sábia, como você. — Então ficarei atenta — respondi, agradecida por aquelas palavras —, para poder distinguir o cavaleiro que mereça ser salvo. Pensei na história de O cavaleiro preso na armadura, de Robert Fisher, cujo protagonista, de tanto travar batalhas e correr de um lado para outro, não consegue mais tirar a armadura. Incapaz de desfrutar os beijos e as carícias de sua família, para se livrar da couraça que aderiu ao seu corpo, deve passar por duras provas em sete castelos até perder as várias partes da armadura que aperta seus sentimentos. Enquanto recordava esta fábula, servi ao agradável ancião um cappuccino feito com todo o cuidado. Estava tão distraída, lembrando as façanhas do cavaleiro da armadura oxidada, que quase não vi Brian, que me saudava de uma mesa ao lado do jardim. Vestia uma camisa de flanela e estava com os cabelos louros encrespados, como se tivesse passado um tempo apertando os miolos. — Tendo em vista que você faz parte da elite — disse ele quando me aproximei —, já estava achando que não viria me oferecer o café que me prometeu hoje de manhã. — Não entendi… — Por acaso não sabe quem ele é? — disse apontando para o velhinho, que sorvia seu cappuccino lendo o jornal.
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— Você está se referindo a Murray? Acho que é um velho funcionário o CERN. Já deve estar aposentado. — É incrível! Você teve a oportunidade de conversar com um prêmio Nobel e a desperdiçou falando sobre qualquer besteira. Murray Gell-Mann é um dos cientistas mais geniais do nosso tempo. — Sua expressão foi do assombro à indignação. — Certamente se Justin Bieber entrasse na cafeteria você o reconheceria imediatamente. É triste que a sociedade dê tanta atenção a famosos que não contribuíram com nada além de entretenimento. Por outro lado, quase ninguém reconhece as pessoas que deixam marcas no mundo. Aquele idiota acabara de jogar em cima de mim um balde de água gelada. Suas palavras me atravessaram como uma lança venenosa, cuja peçonha ia paralisando meu corpo. Em poucos segundos, havia destroçado a pouca autoestima que acabara de acumular em minha frágil torre de cristal. Tive de fazer um esforço imenso para não começar a chorar ali mesmo e, por isso, preferi não responder. Sabia que, se falasse naquele momento, a ira se manifestaria em forma de lágrimas e ainda lhe daria mais motivos para pensar que eu era uma garota idiota. Simplesmente me afastei da mesa, arrastando minha alma pelos impolutos ladrilhos da cafeteria. Brian me seguiu, atordoado, e se adiantou, bloqueando meu caminho. Percebi como era alto. — Me perdoe. Fui um idiota. Não queria agredi-la. Falava em termos gerais. Magoei você, e não era essa minha intenção. Me desculpe. — Em uma coisa estou de acordo com você: é mesmo um idiota! Estou de saco cheio de que todo mundo me trate como se fosse uma retardada porque não tenho a menor ideia de como se resolve a equação de Schrödinger, porque não sei o que é o bóson de Higgs, nem essas benditas rupturas de simetria. Mas vou lhe dizer uma coisa: não me importa nem um pouco. Não quero ficar parecida com vocês, que têm a inteligência emocional de uma criança de quatro anos. Brian enxugou uma lágrima traiçoeira no meu rosto com sua mão, que era suave e morna. “Merda”, disse a mim mesma, fazendo das tripas coração, “se chorar agora, serei uma idiota completa”. — Não acho que você seja uma retardada — disse, afetado por aquela cena. — Exatamente o contrário. Nem começou a universidade
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e já usa termos de um físico. Embora, pelo que disse, não sei se isso é um elogio… “Fantástico, agora está achando que sou um bebê.” — Vou lhe propor um trato — continuou. — Se quiser, posso ajudá-la a entender o que os cientistas investigam aqui em umas sessões que, lhe prometo, serão divertidas. Em troca, você me ajudará a desenvolver minha inteligência emocional. — Não é necessário. Está perdoado. Além disso, pensei em fazer o curso para ser guia oficial do CERN — acrescentei, um pouco ferida —, e assim outros se encarregarão de fazer o trabalho sujo. — Sou eu quem dá esses cursos — sorriu. — De modo que espero vê-la na sala de aula. Elas acontecem todas as quartas-feiras, à tarde. — Quarta-feira à tarde… impossível. Tenho dois turnos exatamente nesse dia. Brian tirou um papel amassado de seus jeans e entregou-o para mim. — Então minha oferta continua de pé. Se quiser, poderemos começar na próxima quinta-feira, à noite. Vão exibir às oito, no cinema universitário de Genebra, um documentário sobre o último sonho de Einstein: a teoria unificada. Posso pegá-la de carro e iremos juntos. Não sabia se estava me propondo um encontro amoroso ou se, simplesmente, queria limpar sua consciência. Surpreendi-me desejando que o motivo daquele convite fosse o primeiro. Dobrei em quatro o papel e guardei-o no bolso do meu feio jaleco de trabalho. Depois me limitei a dizer: — Vou pensar. Nesse instante alguém passou o braço por meus ombros. Alessio, com todo o descaramento do mundo, me estampou um sonoro beijo na bochecha. E falou comigo como se Brian fosse invisível. — Como foi seu dia, bambina? Safei-me imediatamente de seu braço, enquanto o guia se despedia com um gesto de cabeça. Quando se afastou o suficiente, disse ao suíço. — Não sou nenhuma bambina. Posso saber qual é o motivo disto? — Ora, deveria me agradecer. Estou afastando as moscas varejeiras. Você e eu não somos como estes caçadores de fantasmas que passam o dia procurando coisas invisíveis.
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— Muito obrigada — respondi, irritada —, mas não preciso que você venha me resgatar. — Não tenho certeza disso… — Você sabe quem é Gell-Mann? Aquela podia ser a prova de que ambos vivíamos no mesmo mundo de ignorantes. — É claro! — exclamou Alessio, para minha surpresa. — Foi um físico que teorizou sobre os quarks, as menores partículas conhecidas. De fato, foi Gell-Mann quem as batizou de quarks, um nome curioso. Há uma boa anedota sobre isso… — Me esclareça — pedi, resignada. — Encontrou esta palavrinha em um romance incompreensível de James Joyce, intitulado Finnegans Wake. O trecho dizia algo como: “Three quarks for Muster Mark! Sure he has not got much of a bark. And sure any he has it’s all beside the Mark.”2 Mais uma vez, senti que era a única ignorante do recinto. Como se tivesse lido meu pensamento, Alessio segurou minha mão e mudou de assunto: — Deixando de lado os quarks, vim dizer que na noite da quinta-feira vai haver um show de jazz, em Paquís, um bairro de Genebra. Gostaria que fosse comigo. — Na noite da quinta-feira? Desviei o olhar para Brian, que parecia absorto em seus cálculos, sentado no terraço do restaurante. Então me decidi. — Na noite da quinta-feira não posso. Tenho um encontro. — Um encontro? — repetiu, contrariado. — Não sei que encontro pode ter neste lugar tão chato… se não for para ir ver um Super Kamiokande. — Um o quê? É uma atração para ficar capotando ou algo assim? — Procure na Wikipédia, bambina. E saiu como se nada tivesse acontecido. “Deveria aprender a me blindar como Alessio”, pensei, “Não há quem derrube sua autoestima.” Fui ao terraço recolher as xícaras de café abandonadas. Brian continuava concentrado em seus papéis. Um golpe de vento o fez voltar de novo à Terra, pois suas folhas se espalharam pelo chão. Larguei minha bandeja e o ajudei a recolhê-las. 2 Do inglês, “Três quarks por Muster Mark! Não tem muito caráter, e o pouco que tem não o usa”. (Nota: Finnegans Wake é considerado um dos romances mais crípticos e incompreensíveis da história da literatura.) (N. da A.)
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— Muito obrigado, Laila. Não esperava que lembrasse meu nome. Gostei daquele detalhe. — Na quinta-feira, estarei livre. Aceito seu convite — disse. — Você passa para me buscar às sete e meia no alojamento?
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9. COLAPSO DE ENCONTROS — Quero que amanhã você esteja deslumbrante — disse Angie em sua espreguiçadeira da piscina. — O bronzeado deixará você linda de morrer. Como às quartas-feiras eu trabalhava no turno da tarde, havíamos aproveitado para ir à piscina mais próxima. Fazia parte de um complexo esportivo do outro lado do controle de segurança do CERN. Naquela manhã, Angie havia matado as aulas para pintar minhas unhas à francesa em nosso quarto. Ao saber que havia marcado um encontro com um rapaz para ir ao cinema, começou a brincar comigo como se eu fosse uma boneca. Fazendo o papel de irmã mais velha, escolheu para mim um de seus vestidos mais sexy. Era preto e justo, com decote na frente e atrás, e tão curto que era aconselhável usá-lo com lingerie escura, nas palavras de Angie. Duvidava que me atrevesse a vesti-lo. Era lindo, mas eu não tinha curvas voluptuosas para realçar. Com um corpo mais próximo de uma tábua de passar, corria o risco de que ficasse grande no peito e estreito na cintura. — Quando estiver bronzeada, iremos à sauna — disse minha companheira com autoridade. — Suar um pouco limpará seus poros. Você tem de estar com uma pele radiante! — Pelo amor de Deus, Angie, já lhe disse que nem é um encontro. Brian só está tentando compensar sua grosseria. Além disso, achei que você não concordasse comigo por ter optado por seu convite em vez de ir com Alessio ao show de jazz. — É claro que você escolheu mal! Quem prefere dizer não a um gostoso para acompanhar um idiota a um documentário de física? — bradou. — Mas isso não significa que este Brian não tenha de ficar babando por você… Se você chegar ao encontro como uma princesa, doerá ainda mais quando der um fora nele.
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De bruços em minha espreguiçadeira, enquanto ouvia Angie, tentei relaxar arrancando folhas de grama. — De qualquer maneira, você fez bem em recusar o primeiro convite de Alessio — continuou. — É bom que o faça sofrer um pouco. Se achar que é muito fácil e inocente, perderá o interesse por você em um piscar de olhos. Se faça de dura, e ele a valorizará mais, embora duvide de que seja suficientemente esperto para ver o que você vale. Esse é um mal comum a todos os homens. O tecido impermeável da espreguiçadeira rangeu quando me virei para ver melhor minha companheira de quarto. Era claro que tinha algum problema com o gênero masculino. Supus que a relação com seu pai a afetara negativamente. Angie havia despido a parte de cima do biquíni. Um grupo de rapazes da nossa idade, a uns três metros de distância, a examinava atentamente. Nem sequer se incomodavam em disfarçar. Fumavam tabaco de enrolar e, infelizmente, a fumaça chegava até a gente. Nunca gostei do cheio desses cigarros. Pela desenvoltura com que conversavam, levantando a voz, imaginei que fossem pedreiros de alguma obra próxima. Um deles, musculoso como um fisiculturista, parecia disposto a se levantar para falar com Angie, mas o perigo veio do outro lado do recinto. O salva-vidas, um sujeito de uns trinta e poucos anos, se aproximou e nos informou: — Desculpem, mas é proibido fazer topless na piscina. — Eu sei — respondeu Angelina, descaradamente. — Li nos cartazes, mas acho a norma estúpida. A expressão do salva-vidas foi do desconcerto à irritação. Devia ser dos poucos que não sucumbiam aos encantos de Angie. — Se não colocar a parte de cima do biquíni, terei que pedir que saia das nossas instalações, sinto muito. — Angie — supliquei —, ouça-o… porfa. — Está bem — resmungou, abotoando o sutiã. — Vocês deveriam fazer uma enquete com os usuários desta piscina. Estou convencida de que a maioria gostaria que as normas fossem mudadas. Disse esta última frase em um tom bastante alto para que o grupo de jovens a ouvisse e dissesse alguma besteira em francês para o salva-vidas, que foi embora de mau humor. — Esses reprimidos me tiram do sério — reclamou Angie em voz baixa. — Você deveria ter se solidarizado comigo e também ter
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tirado a parte de cima. Além disso, vai ficar com umas marcas brancas horríveis. Amanhã se arrependerá. — Mas o que você está dizendo, Angie? Ficou louca? — exclamei, assustada. — Ninguém vai ver minhas marcas de biquíni. — Bem, você já conhece a lei: só a garota sabe como vai acabar um encontro romântico, porque resolve de antemão até onde quer chegar. E estou vendo que você escolheu se entediar — provocou. — Vou buscar alguma coisa para beber. Ignorando aquela provocação, fechei os olhos, sentindo o calor dos raios de sol que batiam em meu corpo e mergulhando em meus pensamentos. Estava ficando emocionada com tantos preparativos, embora o dia seguinte fosse mais uma aula particular do que um encontro. Fazia mais de um ano que nenhum garoto me convidava para sair. Não atraía especialmente meus companheiros de escola, ou pelo menos eles não faziam grandes esforços para se aproximar de mim dessa maneira. Além de não ter um corpo espetacular como o de Angie, tinha compreendido que tirar boas notas diminuía minha popularidade. Tampouco me lamentava por isso, pois no meio de meus colegas de curso não havia ninguém que achasse interessante. Angie chegou com dois mojitos e batatas fritas. — É curioso — confessei. — Há séculos ninguém me chama para sair, e ontem dois garotos diferentes me convidaram para um encontro na mesma noite. Que falta de sorte! — Você colapsou todas as possibilidades em um mesmo dia. — Angie, você gosta de falar de uma maneira estranha, não é verdade? — Estou me referindo ao princípio da superposição. — Ah, claro… — brinquei. — Isso explica tudo. — Sério, me ouça — começou, dando um gole em seu mojito. — Em física quântica, o princípio da superposição diz que tudo aquilo que é possível está acontecendo simultaneamente. A realidade não está definida, mas é um emaranhado de várias possibilidades. Para explicar melhor, são como múltiplas realidades em potencial. É quando você decide observá-las que uma delas se define como realidade. Este ato de observar ou medir é chamado de colapso da função de onda. — Está queimando meus miolos — respondi, sem entender o que pretendia me explicar.
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— É um dos princípios mais espantosos da mecânica quântica. A melhor maneira de entendê-lo é através do experimento da dupla fenda. Pegue essa caderneta que sempre carrega e anote. Obedeci e anotei a explicação deste experimento singular. Nele se disparam, como se fosse uma metralhadora, elétrons em uma parede com duas fendas. Quando se tratava do mundo microscópico, território da física quântica, os elétrons agiam de uma maneira que a mim pareceu pura magia. Em lugar de passar por uma das fendas, passavam pelas duas ao mesmo tempo. As duas possibilidades — passar pela esquerda ou pela direita — aconteciam ao mesmo tempo. Alucinante! Porém, no momento em que os cientistas quiseram observar como, diabos, os elétrons podiam passar por dois lugares ao mesmo tempo… aconteceu uma coisa incrível. Os elétrons decidiram de repente passar apenas por uma das duas fendas. É o que se chama de colapso de possibilidades. Foi assim que se soube que, no universo quântico, o observador condiciona o observado. Angie completou a explicação, rabiscando em minha caderneta alguns desenhos que ilustravam a experiência. — Em suma — concluiu minha companheira —, voltando ao que importa: potencialmente, estes dois garotos estavam pedindo um encontro ao mesmo tempo. Mas, só quando você resolveu lhes dar atenção, eles colapsaram a realidade e lhe pediram que saísse com eles e ainda por cima no mesmo dia. — O que eu faria sem você, Angie… — ri. — Agora estou entendendo tudo! — O que eu continuo sem entender é por que você prefere ver um chatíssimo longa-metragem com esse cientista em vez de ir ao show com o gostoso. — Bem, Brian me pediu primeiro. — Você é quem sabe… Vamos à sauna? Depois de terminar nossos mojitos, fomos diretamente à sauna, que ficava perto dos vestiários. Lá dentro, estavam três velhinhas que nos saudaram amavelmente em francês. Abriram espaço imediatamente e deitamos na madeira para que o calor depurasse nossos corpos. Angie havia desenhado todo um circuito de beleza para mim, que incluía máscaras capilares e cremes esfoliantes. — O que você acha do Brian? — continuou minha incansável companheira. — Já vi o suíço, e ele é bonito. — Para meu gosto, Alessio é um tanto convencido demais. — Isso não é ruim — julgou ela.
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— Eu sei. Devo reconhecer que é divertido. Sempre tem alguma coisa para contar. É verdade que é mais bonito do que Brian e sabe como tratar as garotas. Vive flertando todo o tempo. Quando me visita no restaurante, às vezes consegue enlouquecer meu coração. — Isso é um bom sinal. Significa que você gosta dele! — Por sua vez, Brian não sabe se vestir e enfia os pés pelas mãos com facilidade. Não é muito espontâneo, digamos. — Nesse momento tive dúvidas. — De fato, nem tenho certeza se ele gosta de mim. — Se não gostasse, ele não a teria convidado para ir ver a porra desse documentário amanhã — sentenciou. — Quem sabe! Talvez só esteja apaixonado pelos cálculos de Einstein. — Nem cálculos nem nada. Coloque um par de peitos na mira, e os números desaparecerão da cabeça desse pássaro de uma só vez. — Acho que não é desses, Angie… Duvido até mesmo que tenha me convidado por me achar atraente. Acho que é, simplesmente, um bom rapaz. Me viu mais perdida do que um polvo em uma garagem e quer me iniciar na física. — Porra nenhuma! Amanhã à noite não se interessará por outro físico além do seu, me leve a sério. Como pode ser tão ingênua? Por alguns instantes, cheguei a pensar que havia sido um erro não tomar sol de topless, como Angie. As palavras de minha amiga me demonstravam que eu não tinha nenhuma certeza sobre qual poderia ser o final daquela noite. — Aconteça o que acontecer amanhã, considere tudo como uma aventura pontual. Ouça: não convém se apaixonar por um cientista. Em longo prazo, a única coisa que importa são suas pesquisas. Eles se deixam absorver tanto pelo trabalho que acabam sendo um saco. Eu sei do que estou falando, Laila. Não quero que se repita com você a história de minha mãe. Ela era apaixonada pela vida e foi muito infeliz ao lado do meu pai. Por isso partiu para a Índia. Posso imaginar a tortura que era viver sob o mundo hermético de meu pai. A matemática e a física explicam a realidade só até certo ponto, mas essas duas disciplinas não bastam para aprender a viver, compreender a si mesmo e ser feliz. Sempre que surgia o assunto de seus pais, Angie ficava do lado de sua mãe. Eu não estava tão certa de que fosse objetiva quando julgava o pai. Cansada de falar de sua família, encerrou assim o tema que nos havia entretido ao logo de toda a manhã:
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— Aquilo que você precisa saber da vida, Alessio pode lhe ensinar melhor do que o próprio Einstein.
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10. O DOBRO DE NÚMEROS QUE DE NÚMEROS Podia sentir as borboletas se revirando como loucas em meu estômago. Fechei os olhos e respirei profundamente. Queria analisar racionalmente minha reação. Não podia estar tão nervosa exclusivamente porque gostava daquele sujeito. Quase não o conhecia! Talvez fosse, simplesmente, pelo fato de que, pela primeira vez em muitíssimo tempo, alguém tinha me convidado para sair. “Acalme-se, Laila”, pensei, “não se trata de um encontro romântico.” Ao abrir os olhos, me vi no espelho, enfiada no vestido de Angie. Devia reconhecer que fizera um bom trabalho. Graças à espuminha, aquele sutiã não ficava folgado no peito. As meias escuras davam um toque elegante às minhas pernas. Fiquei preocupada de voltar ao alojamento com elas desfiadas, porque não estava acostumada a usá-las. Mas o maior desafio era conseguir não tomar um tombo com aqueles sapatos pretos de salto alto. Ela insistira em emprestá-los sob a ameaça de parar de falar comigo por duas semanas se não os usasse. Voltei a sentir o nervoso em minha barriga, justo quando minha companheira de quarto fazia um lindo penteado no meu cabelo. Eu havia me negado categoricamente a deixar Angie passar maquiagem em mim, mas só conseguira que ela fosse discreta.
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Olhei o relógio com impaciência. Tinham passado apenas três minutos da hora combinada e já me sentia culpada. Angie insistira que devia chegar uns cinco minutos atrasada para me valorizar. Quase atropelei Arthur ao descer correndo as escadas do alojamento. — Aonde vai com tanta pressa? — perguntou. — E tão bonita? “Merda!”, pensei, “estou muito arrumada. Vou matar Angie.” — A nenhum lugar especial. Na verdade, vou a uma aula de física. E você? — Ah, claro, a uma aula… Eu combinei com Angie de repassar a pauta de amanhã. — Ah, claro — devolvi a punhalada, e ele enrubesceu. — Divirtam-se com a revisão. — Idem com sua aula… Desci o resto dos degraus fazendo malabarismos com os saltos pontiagudos daqueles malditos sapatos. Estive prestes a cair algumas vezes. Em frente à saída do bloco encontrei Brian, apoiado em um antigo Volkswagen. Usava os mesmos jeans desbotados do dia anterior e outra camiseta velha. Era claro que eu cometera um erro grave me vestindo tão sexy. Fiquei petrificada, sem saber o que fazer. Neste exato momento, levantou os olhos para mim. Por um segundo seu rosto refletiu surpresa, e seus olhos, atrás daqueles óculos horríveis, se abriram levemente, mostrando admiração. Depois desviou o olhar para o chão, e sua expressão adquiriu uma estudada máscara de indiferença. Talvez eu tivesse fantasiado tudo. — Preparada? Hoje vamos penetrar nos últimos pensamentos de Albert Einstein. — Muito obrigada por passar para me buscar, Brian — disse, morta de vergonha. — E por me levar a esse documentário de física. É muito amável de sua parte. Perguntei-me se teria percebido a tristeza em meu tom de voz. Havia esperado como uma tola algum comentário sobre o vestido ou sobre como estava bonita naquela noite. — De nada, Laila. A divulgação científica é do que mais gosto. Para meu espanto, estava visivelmente animado com aquele plano. Abri eu mesma a porta para ocupar o assento do copiloto. Não pude evitar imaginar como teria reagido Alessio. Certamente, depois
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de uma avalanche de galanteios, teria me acompanhado ao meu assento, antes de dar a volta e sentar-se ao volante. Nunca gostei desse tipo de cortesias, mas… diabos! De repente, descobri que gostaria que ele as fizesse. Estaria ficando ridícula? Preferi iniciar uma conversa antes de continuar pensando idiotices. — Eu gosto muito de aprender. Agradeço o cuidado, Brian. Neste lugar cheio de pessoas iluminadas, tenho um número infinito de coisas para conhecer. — Isso acontecerá sempre. Mesmo se fosse um prêmio Nobel, continuaria tendo a sensação de não saber nada. Por mais coisas que se saiba, sempre haverá um número maior de coisas por conhecer. Isso me recorda uma anedota de um livro muito divertido sobre Feynman: O que lhe importa o que os outros pensam? Talvez o conheça… Neguei com a cabeça, e meu instrutor começou a narrar: — Ao que parece, Feynman disse certa vez a um menino de oito anos: “Você sabia que há o dobro de números dos números?” O garoto achou aquilo absurdo e por isso respondeu: “Não, não há.” “Sim, há sim, e vou demonstrar para você. Diga um número.” O menino escolheu um número grande para começar: “Um milhão.” “Dois milhões”, respondeu o professor. O garoto disse mais quatro números, e Feynman sempre respondia com o dobro do número escolhido por seu interlocutor. Este menino, que se chamava Henry Bethe e acabaria sendo prêmio Nobel, de repente entendeu e desafiou Feynman: “Já sei. Então também há três vezes mais números do que números.” “Demonstre-o”, desafiou-o o professor depois de lhe dar uma cifra. Bethe respondeu com outra três vezes maior. “Então há um número maior que os demais?”, perguntou Feynman. “Não”, replicou Henry. “Para cada número há um duas vezes maior e outro três vezes maior. Inclusive, há outro que é um milhão de vezes maior.” “Exatamente! E essa ideia de crescimento sem limite, de que não há um número maior que todos, se chama infinito.” Quando acabou de contar aquela anedota, estávamos entrando em Genebra. Eu o ouvia, fascinada. Quando Brian falava, tinha a
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fabulosa capacidade de me hipnotizar. Eu me concentrei tanto no que explicava que cheguei a esquecer meu vestidinho, o penteado e a maquiagem com que tentara impressioná-lo. Simplesmente desfrutava sua companhia. Estacionamos diante do que não era um cinema convencional, mas um auditório da universidade de Genebra, onde projetavam filmes alternativos ou documentários, como era o caso. Depois de pagar as duas entradas, Brian me guiou à última fila. Por uns instantes fiquei tensa. Na escola, minha companheira de carteira a chamava de “fila dos sem-braço” porque, segundo ela, é onde se sentam os que pretendem passar a mão ou dar um amasso completo. — Tenho astigmatismo. — Brian jogou outro balde de água fria, apontando os óculos. — Vejo muito melhor daqui de trás, se não se importa. — Claro, claro — respondi, decepcionada. — Você manda. Antes que as luzes se apagassem, o lanterninha nos entregou um programa com informações detalhadas sobre o documentário, que tinha o título de A sinfonia inacabada de Einstein. O longa-metragem narrava como Albert, apesar de ser um dos promotores da teoria quântica, acabara renegando-a. Com suas descobertas, havia colocado os alicerces da nova física, mas não foi capaz de aceitar que a realidade era um acúmulo de probabilidades. Daí sua famosa frase “Deus não joga dados”, à qual Niels Bohr, em uma de suas conversas dignas de um choque de titãs, replicou “Albert, não diga a Deus o que tem de fazer.” Tinha acabado de ler esta frase quando as luzes se apagaram. Acomodei-me em minha poltrona. A escuridão dava ao ambiente uma intimidade que fez meu coração acelerar. Ao apoiar meu braço na cadeira, senti que nossos braços se tocavam suavemente. Gostei da sensação, e ele não fez nenhum movimento para se afastar. Precisei fazer um grande esforço para me concentrar no filme. Começava narrando a vida do jovem Albert Einstein como empregado de um escritório de patentes na Suíça. Brian inclinou a cabeça e sussurrou no meu ouvido: — É extraordinário que Einstein tenha publicado em 1905 quatro trabalhos que revolucionaram o mundo da física. Leve em consideração que ele não estava em nenhum centro de pesquisa, nem dava aulas na universidade. Era um funcionário subalterno. Fez tudo sozinho quando trabalhava em um escritório de patentes. No
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chamado “ano milagroso” apresentou sua teoria especial da relatividade e sua famosa fórmula E = mc2, que serviria para criar a bomba atômica. Ao que parece, enviou seus trabalhos a uma revista científica para que os publicasse “se houvesse espaço”. Encantava-me que me contasse aquilo. Por alguns instantes, minha imaginação voou, e me imaginei trabalhando como garçonete no CERN e publicando pesquisas que mudariam o mundo. Então, Brian se sentiria orgulhoso de mim e me convidaria para algo mais do que ver um documentário. Suas palavras me devolveram à realidade. — Nesse ano, não apenas escreveu sobre a teoria da relatividade, mas também publicou seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico. Graças a isso obteve o prêmio Nobel, e hoje as portas dos supermercados se abrem para nós quando chegamos perto. Antes de devolver os olhos à tela, ele me dirigiu um sorriso radiante. Perguntei-me se isso se devia a uma paixão por divulgar ou se gostava de sua aplicada estudante. E me limitei a devolver um sorriso como agradecimento. Tive dificuldade de entrar de novo no documentário. Imaginava como seria fácil mexer um pouquinho minha mão e colocá-la em cima da dele. Vá saber como reagiria… Não me atrevia a fazê-lo, mas girei a mão de maneira que ele pudesse agarrá-la com um leve movimento. O documentário terminava com a morte de Albert, em 18 de abril de 1955, no Hospital de Princeton. Dedicara seus últimos anos de vida à procura de uma teoria unificada. Sua aspiração era unir e resumir as leis fundamentais da física para compreender o cosmos inteiro, desde as estrelas imensas até as mais ínfimas partículas. Morreu sem realizar seu sonho. As luzes da sala foram acesas. Meu braço estava totalmente endurecido. Mantive uma posição incômoda durante toda a projeção, e o mais triste era que não consegui realizar meu objetivo. Olhei dissimuladamente para Brian e descobri, decepcionada, por que no último quarto da projeção não havia acrescentado explicações ao documentário. Ele tinha pegado no sono.
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11. O NÓ GÓRDIO
— E então, gostou? Com aquele lugar-comum, Brian forçou um início de conversa. Estava calado desde nossa saída do cinema universitário. Enquanto esperava minha resposta, o velho Volkswagen Polo derrapou ao pegar a última rotunda que deixava Genebra às nossas costas. — Muito, é uma pena que você tenha perdido o final. Não pude evitar dar àquelas palavras um leve tom de recriminação. Não conseguia acreditar que tivesse adormecido na fila dos sem-braço. Pelo meu corpo havia corrido tanta adrenalina diante da esperança de que acariciasse minha mão ou algo mais, que poderia ter passado uma semana inteira sem grudar os olhos. — Me desculpe, Laila — disse, envergonhado. — Estou me sentindo um professor lamentável. Que ridículo: pretendo que se apaixone pela ciência e acabo adormecendo. Não quero que pense que não gostei do documentário. Na verdade, já o vi mais de uma vez. Observei seu perfil, levemente iluminado pelas luzes do painel do carro. Estava com a mandíbula apertada. Talvez estivesse realmente chateado por ter adormecido. Uma mistura de insegurança e vergonha em seu rosto despertou em mim um estranho sentimento protetor. Ao olhá-lo naquele instante, me dei conta de que Brian não era apenas o charmoso divulgador que me hipnotizava com suas explicações. Havia algo mais profundo que me unia a ele. Senti um forte desejo de atravessar a armadura oxidada daquele cientista reservado.
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— Não se preocupe — disse, recuperando meu bom humor. — Você voltou a trabalhar a noite inteira? Desviou o olhar da estrada e me olhou por um instante nos olhos. Parecia surpreso com minha pergunta. — É isso — suspirou. — Das últimas quarenta e oito horas, dormi cinco. Me deixei envolver muito em um de meus projetos… Como você adivinhou? — Minha companheira de quarto me avisou que isso costuma acontecer com os cientistas. Vocês são tão apaixonados pelos seus trabalhos que chegam a esquecer todo o resto. — Se diz isso, não creio que tenha um bom conceito dos cientistas. Eu não compartilhava a opinião de Angie. Ao contrário, ficava admirada com o fato de Brian ter tanta paixão e força de vontade para mergulhar dias e noites em seus cálculos. Quis saber mais. — E de que trata sua pesquisa? Antimatéria, a origem do Universo… algo que tenha a ver com os quarks? — Não quero nem falar a respeito! Não quero arruinar ainda mais sua noite com essa chatice. Se começar a contar meu trabalho, será você quem pegará no sono. Rimos juntos. Nesse momento chegamos ao alojamento do CERN. Não queria que a noitada terminasse ali. E começava a buscar a melhor maneira de retê-lo. — Há alguns assuntos que o documentário não me esclareceu — disse-lhe, maliciosamente. Depois de estacionar o carro direito, Brian desligou o motor. Minha tática havia funcionado. Ele também parecia se alegrar de que a noite não acabasse tão depressa. Ou, pelo menos, foi o que me pareceu… — Sou todo ouvidos. Dispare — incentivou-me. — Eu sei que este documentário trata apenas dos últimos anos de Einstein e de seu sonho de encontrar uma teoria que unificasse todas as leis da física. Mas sempre senti curiosidade por sua relação com Mileva, sua primeira esposa. É verdade que ela o ajudou a fazer os cálculos matemáticos de suas famosas teorias? Por que não ficou famosa? — Mileva Marić tinha uma mente brilhante, e é provável que tenha ajudado o marido a examinar aquelas teorias. Imagine que quando se conheceram no Instituto Politécnico de Zurique, ela era a única estudante mulher da instituição. Einstein deve ter ficado
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fascinado. Naquela época, ser mulher e cientista era uma coisa insólita; não era fácil viver em um mundo reservado aos homens. — Que injustiça! — Há cartas de Einstein para Mileva nas quais fala de “nosso trabalho” ao se referir à teoria da relatividade. Por outro lado, ela era amiga do também sérvio Nikola Tesla, o primeiro a criar uma central elétrica, um gênio da energia. Além disso, ao receber o prêmio Nobel, Einstein entregou toda a importância àquela que já era sua ex-mulher… Você não acha curioso? Ficamos em silêncio por alguns instantes. Temi que, com essas conjecturas sobre Mileva, desse a noite por resolvida. — Quer subir ao alojamento? — Aventurei-me a propor. — Poderíamos beber alguma coisa. Seu rosto ficou levemente tenso e parou de sorrir. Devia estar avaliando o significado do meu convite. — Tenho uma garrafa de vinho espanhol, um Ribera del Duero. É excelente. Gostaria de convidá-lo, em agradecimento por me esclarecer tantas coisas. — Não diga besteiras, não precisa me compensar por nada — disse, mais relaxado. — Mas acho que vou aceitar seu convite. Quem pode recusar um bom vinho espanhol? Enquanto subíamos as escadas, rezei para que Angie não estivesse em casa. Tinha a capacidade de me tornar invisível ao seu lado. Respirei com alívio ao abrir a porta do quarto. Minha companheira e Arthur deviam ter se aborrecido com a revisão e encontrado uma coisa melhor para fazer em outro lugar. — Sinto muito, o vinho não tem o mesmo sabor quando não é bebido em taças de cristal — Desculpei-me ao encher os dois copos de plástico. Brian ficou parado na porta. Parecia indeciso. Fiquei apalermada com o braço esticado e seu copo na mão. Finalmente, o americano resolveu entrar com um sorriso tímido e aceitou a bebida. — Não se preocupe, o que conta é a companhia. Em seguida, retomou a conversa sobre Einstein e Mileva. Sabia uma porção de anedotas sobre os dois. Eu me sentei para escutá-lo na beirada da cama e ele ocupou, educadamente, a cadeira da minha escrivaninha. Por uns instantes fiquei no mundo da lua, sem acompanhar suas palavras, mas me agradava seu tom de voz grave e apaixonado.
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Desejei com ardor que acontecesse alguma coisa entre a gente, embora não conseguisse precisar exatamente o quê. Era melhor não fantasiar, pois ele em nenhum momento se mostrara interessado por mim. Mas, mesmo que não acontecesse nada, era agradável estar a sós com ele, observar como agitava as mãos, como hesitava e avaliava minhas reações quando me aproximava demais. Naqueles momentos, mais que um pesquisador de elite, parecia um adolescente inseguro que enfrenta seu primeiro encontro com uma garota. — O que mais me fascina em Einstein — continuou Brian — é sua capacidade de formular perguntas distintas. Por isso mesmo obteve respostas reveladoras. De acordo com suas próprias palavras: “se fizer sempre a mesma coisa, não espere resultados diferentes.” — Enfrentou um nó górdio — acrescentei, enquanto me perguntava o que poderia fazer de especial para atraí-lo. — Um nó o quê? — interrompeu-me, perplexo. — Górdio. Você não conhece a história? Meu pai a contara inúmeras vezes como exemplo do pensamento criativo. Achei ótimo poder explicar alguma coisa, para variar: — Uma lenda oriental que fala de um nó feito com duas cordas. Era tão complexo que ninguém havia conseguido separá-las. Segundo a tradição, quem fosse capaz de desatar o chamado nó górdio conquistaria o Oriente. Quando Alexandre Magno quis dobrar o Império Persa, um ancião se apresentou e desafiou-o a separar as cordas. Alexandre solucionou o problema de forma rápida e drástica: desembainhou sua espada e cortou de um talho aquele nó, separando as cordas. Problema resolvido. Brian me observava com os olhos arregalados, atento a cada uma de minhas palavras. Era a primeira vez que me aventurava a falar tanto. Até então, nossas conversas eram sempre unidirecionais: Brian me explicava coisas e eu ouvia. — É uma história fantástica — disse, admirado. — Você permite que a use em alguma das minhas aulas? — Claro que sim. Animada pelo vinho, fiquei tentada a pedir, em troca, um beijo. Felizmente, eu me acovardei. — É perfeita para explicar como Einstein chegou a deduzir sua teoria da relatividade. — A verdade é que eu nunca entendi esta teoria — reconheci. Para minha surpresa, Brian levantou da cadeira e, finalmente, sentou-se ao meu lado.
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— Uma vez, em uma entrevista, comentaram o mesmo que você disse e ele deu este exemplo: “Se você está ao lado de uma garota bonita há duas horas, acreditará que só se passou um minuto. Mas, se ficar sentado em cima de uma chapa quente por alguns segundos, acreditará que passaram duas horas. Isto é a relatividade.” O vinho começava a fazer efeito e me senti suficientemente descontraída para colocar em xeque meu acompanhante. — E para você… quanto tempo se passou? Duas horas ou um minuto? Nesse exato momento, a porta do quarto foi aberta. “Salvo pelo gongo”, disse a mim mesma, com tédio. Angie chegava um pouco bêbada de sua suposta sessão de estudos. Brian se levantou, incomodado, e me dispus a apresentá-los. — Eu conheço você — disse ela. Os dois se olharam, espantados. — Sim — continuou Angie. — Há algumas semanas você nos deu uma palestra sobre os ímãs supercondutores. Recordo porque já conhecia seu nome. Li no arxiv.org os artigos que publicou quando trabalhava no Laboratório Nacional de Los Álamos. Por que abandonou aquela linha de investigação? Esperava que publicasse outros resultados a respeito. — Faz tempo que deixei esse trabalho de Los Álamos — respondeu Brian, visivelmente inquieto. Deduzi erroneamente que o incomodava o fato de Angie ter nos encontrado a sós no quarto. Mais adiante descobriria que não tinha sido esse o motivo de seu nervosismo. — Na verdade, no último artigo que publicou na intranet do CERN, você cometeu um erro ao traçar os estados atômicos internos do Hamiltoniano. — Isso não é possível — defendeu-se, confuso. — Vou lhe demonstrar. Angie pegou um marca-texto e começou a escrever velozmente sinais e fórmulas marcianas na lousa branca enquanto justificava todos os seus passos. Em alguns minutos, os dois estavam envolvidos em uma intensa discussão matemática. Deprimida, terminei meu copo de vinho e caí na cama. Ambos pareciam desfrutar daquelas dissertações. Para piorar, Brian não ficava tenso nem na defensiva com ela. Pensei que não devia me enganar. Angie era o tipo de mulher que podia deixar Brian louco.
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Não apenas porque era belíssima, mas porque, além disso, falavam o mesmo idioma. Senti minhas pálpebras se fecharem e me entreguei ao sono com uma mistura de tristeza a resignação. Havia perdido a batalha antes de começar.
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12. O ÚLTIMO TEOREMA DE FERMAT
PARA: ANTONIO PAPÁ ASSUNTO: CRÔNICAS DO CERN II Olá, papi, Ontem fui com uns amigos visitar Genebra de bicicleta. O CERN as empresta a seus funcionários e estudantes, mas é necessário se inscrever em uma lista de espera. Não tinha conseguido nenhuma, mas um summer student que não estava com vontade de participar da excursão me cedeu a dele. Gostaria que você viesse conhecer a cidade. Tenho certeza de que gostaria muito do centro medieval. Parece tirado de um filme da Disney, com seus becos de paralelepípedos repletos de flores e plantas. Também é muito agradável o passeio ao redor do lago Leman, com o chafariz cujas águas se elevam a cento e quarenta metros: o Jet d’Eau. Exatamente em frente, construíram uma praia artificial. Achei muito divertido. Famílias inteiras aproveitam o calor do verão para dar um bom mergulho. De manhã visitamos o Palácio das Nações da ONU. É um belíssimo edifício, cercado de árvores centenárias. Gostei muito de ver pavões reais perambulando pelos pátios do palácio. Aparentemente, os terrenos foram cedidos por uma família suíça que colocou como única condição que deixassem seus pavões viverem livremente. Passaram-se mais de oitenta anos desde então, mas estes majestosos animais continuam passeando como reis em suas terras. Comemos na cantina da ONU. As garçonetes dali, sim, têm muito trabalho, pois há muita gente, muito mais do que no CERN. E eu me queixava! Falando de restaurantes, o gerente me parabenizou nesta sexta-feira pelo meu trabalho. Parece que foi a semana em que deixaram
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mais gorjetas no ano. Também chegaram comentários de que preparo um cappuccino excelente e sou muito amável com os clientes. Quando me chamou para uma reunião no armazém, achei que ia me despedir por algum motivo, pois sempre está de cara feia. Mas não foi o que aconteceu. Quando me elogiou, fiquei inchada como um desses pavões da ONU. Finalmente alguma coisa deu certo aqui! Você se lembra de que no último e-mail eu disse que estava pensando em virar guia oficial? Por ora não posso frequentar o curso, porque coincide com meu horário no restaurante, mas o professor que dá as aulas me propôs que tenhamos sessões particulares. Não esqueci que prometi enviar uma anedota científica em cada carta ;-) Hoje de manhã, Angie, minha companheira de quarto, me contou uma que sei que você vai gostar. É sobre Hilbert, um matemático do final do século XIX e começo do XX, cujas equações foram essenciais para a mecânica quântica. Este homem morria de medo de viajar de avião e sempre evitava os compromissos que o obrigassem a voar. No entanto, certa vez recebeu um convite de uma universidade muito prestigiada e não pôde recusá-lo. Hilbert anunciou que o tema de sua palestra seria “Demonstração do último teorema de Fermat”, um dos maiores enigmas matemáticos da história, o que fez lotar de curiosos a sala de congressos. No dia da conferência, Hilbert falou de matemática, mas não mencionou em nenhum momento o teorema de Fermat. Quando terminou, um estudante se atreveu a perguntar por que havia anunciado que naquela palestra demonstraria o último teorema de Fermat, se não havia falado dele. Hilbert respondeu: “Ah! O título da conferência… era apenas para o caso de meu avião se estatelar.” Dê um beijo em mamãe de minha parte. Amo muito vocês! Laila
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13. ESPUMA AMARGA Ao meio-dia daquela quarta-feira, voltei com Angie à piscina. Fazia um calor atípico para Genebra, embora fosse verão. “É em sua homenagem”, dissera-me Angie, “para que não sinta falta do sol de Sevilha.” Só me dava raiva ter de bater ponto dali a poucos minutos no Restaurante 1, enquanto os pesquisadores engoliam uma cerveja atrás da outra. O terraço do jardim estava cheio. Aparentemente, nem os cientistas mais aplicados conseguiam resistir a uma tarde ensolarada. Eu morria de inveja. Na mesa mais próxima da porta haviam se instalado Angie, Klaus, Arthur e o casal formado pela insuportável Chantal e seu cãozinho, Pierre. Já haviam bebido três rodadas de cerveja quando Brian chegou. Vestia uma bermuda cáqui e uma camiseta polo que caía verdadeiramente bem nele, muito melhor que os jeans e a velha camiseta que usara em nosso encontro. Pela primeira vez, estava penteado. Conhecendo-o, podia se dizer que estava vestido de gala. De trás do balcão, vi que Angie fazia um sinal com a mão para que ele se aproximasse. Achei que ficou alegre ao vê-la. Demorei mais do que devia para atender à mesa de Brian. Não o via desde a quinta-feira passada, quando fomos ao cinema. Ao final daquela noite, nem sequer me despedira dele. Não foi legal da minha parte. Esperava que na manhã seguinte ele aparecesse na cafeteria, o que não aconteceu. Isso não foi legal da parte dele. Fiz das tripas coração e fui ao terraço para anotar o pedido com o tom mais frio que consegui: — O que vai querer? Pareceu um pouco deslocado quando pediu uma cerveja. Depois ficou me olhando sem dizer mais nada. Felizmente, nesse momento, Klaus anunciava aos gritos o lançamento da série completa de Guerra nas estrelas, e ninguém percebeu a tensão entre nós dois.
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Dirigi-me, cabisbaixa, ao balcão para buscar sua cerveja. No entanto, Brian me alcançou antes. — No outro dia não fui muito cortês com você — desculpou-se. — Creio que a aborrecemos com nossa discussão. Enchi a caneca de cerveja com a espuma, evitando olhar seu rosto. Recriminei-o, mesmo sem querer: — Esperava que você fosse passar na cafeteria no dia seguinte, ou algum dia desta semana. Queria saber de você, mas você evaporou. Olhei-o nos olhos ao terminar a frase. E me arrependi no mesmo instante de ter revelado tão abertamente meus sentimentos. Eu o incomodara. — Sinto muito não ter passado antes. Tive que viajar para um congresso e voltei hoje de manhã. Na verdade, queria dizer que minha aula de guia do CERN foi transferida para amanhã à tarde, caso queira vir. Brian tinha alguma coisa que me deixava desarmada. Transpirava tanta boa vontade que era impossível se irritar com ele. Era exatamente isso o que me doía: com certeza ele só sentia compaixão pela jovem que ainda tinha tanto a aprender… Decidi que o melhor era esquecer o quanto antes aquele encontro que só existira para mim e passar a tratá-lo com mais distância. — É muito atencioso de sua parte me avisar sobre a mudança das aulas. Serão também às sete da noite? — Exatamente, será a essa hora. — Parecia surpreso por minha mudança de tom. — Espero ver você lá. — Tenho de voltar ao trabalho. Hoje a cafeteria está bombando. — Claro, não queria distraí-la. Me perdoe. Voltou à mesa com os demais enquanto eu me desfazia por dentro como a espuma da cerveja. A chopeira Heineken soltava fumaça. Devido ao calor asfixiante, naquela tarde servi mais cervejas do que em todo o resto do verão. Aquele frenesi me ajudou a ignorar a mesa de Angie e seus amigos, embora não parassem de pedir canecas de meio litro. Tive a sensação de que Brian, talvez um pouco incomodado, evitava meu olhar. Ao entardecer, todas as mesas se esvaziaram, exceto a de Angie, que insistiu que me sentasse com eles por alguns minutos. — Estamos organizando um churrasco para este fim de semana. Reserve o dia, júnior! — Você já tem permissão para vir? — Chantal não parecia estar de acordo com minha inclusão no plano. — Achava que no sábado
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você limpava a cozinha ou algo assim. A não ser que queira nos servir o bufê, claro; daremos uma boa gorjeta, não é verdade, meninos? Aquelas palavras envenenadas congelaram o ar. Antes que meus olhos ficassem embaçados de lágrimas, notei que Pierre segurava a respiração. Por alguns segundos, ninguém disse nada. De repente, Angie se levantou atirando no chão sua cadeira de plástico. Plantou-se diante da belga e soltou um longo e sonoro arroto na sua cara. — Mas que porra você está fazendo?! — gritou Chantal, histérica. — Aceitando seu jogo. Você não começou uma competição para ver quem fala mais merda? Embora esteja claro que nisso ninguém pode superar você. Chantal ficou branca; Klaus e Arthur morriam de rir. Embora tenha cravado os olhos no chão, podia sentir sobre mim o olhar preocupado de Brian. Indignada, a belga pegou o namorado bruscamente pelo braço e foi embora xingando em seu idioma. Eu continuava petrificada. Quando achava que não podia me sentir mais humilhada, alguém encontrava uma forma de me afundar um pouco mais no lodo. — Laila — chamou Angie, puxando meu braço. — Nem pense em dar atenção a essa estúpida. É uma idiota, eu já disse isso para você no outro dia. A única pessoa que aguenta ela é aquele namorado cretino. Fiz o possível para forçar um sorriso, consciente de que pareceria mais uma careta. — Não se preocupe, estou bem. Vou recolher todas estas canecas e fechar o caixa. Nos vemos mais tarde no quarto. Afastei-me o mais depressa que pude e me escondi no armazém. Descontei minha raiva chutando um barril de cerveja e quase quebrei os dedos do pé. Ainda não podia me permitir chorar. Horrorizava-me a ideia de voltar ao terraço com o rosto inchado. Teria tempo de me compadecer de mim mesma quando chegasse ao meu quarto. Reunindo o pouco orgulho que me restava, saí do terraço e me protegi novamente atrás do balcão. De lá me despedi do grupo, quando resolveram ir embora. Ao voltar ao alojamento, esgotada e com os ânimos no chão, agradeci aos céus que minha companheira não estivesse. Deitei na
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cama e me desafoguei. Estava farta daquele lugar, farta daqueles cientistas pedantes e, sobretudo, farta de ser invisível aos olhos de Brian. Depois de alguns minutos, decidi que também estava farta de chorar. Prometi-me firmemente que ninguém mais me faria derramar lágrimas. Naquele momento, não sabia como seria impossível cumprir aquela promessa. Já debaixo dos lençóis, peguei o romance A última resposta, sobre os enigmas em torno da vida e das investigações de Einstein. Estava terminando um capítulo sobre uma filha secreta que Albert Einstein nunca chegou a conhecer, quando o toque do celular me indicou que havia chegado uma mensagem. Era de Alessio. [Amanhã, quinta-feira. Show de jazz. Genebra la Nuit. Te pego às 20h?] Meu coração se encheu de alegria quando li. Alguns segundos mais tarde, o mesmo som anunciou a chegada de uma segunda mensagem. [Não aceito negativas.] Apesar de coincidir com a aula de Brian para os futuros guias, era clara a resposta que devia digitar: [Irei.]
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14. SE O UNIVERSO FOSSE UM VESTIDO, QUAL VOCÊ USARIA ESTA NOITE? Alessio chegou com quinze minutos de atraso. Lamentei não ter ouvido Angie sobre a conveniência de fazer os rapazes esperarem. Desci à porta do alojamento pontualmente. Em vez de me vestir como uma princesinha, coloquei uma calça jeans e minha camiseta preferida. Só pintei um pouco os olhos. Quando chegou, eu me alegrei de não estar de saia. Alessio pilotava uma Ducati. Reconheci imediatamente o modelo, porque meu primo suspirava há um ano por essa moto e me enchia o saco todos os finais de semana com o assunto. Tinha de concordar com ele que aquela máquina era o máximo, e o suíço ficava muito sexy em cima dela. — Espero que não fique enjoada — brincou, entregando-me um capacete. — Não sofra, pilotei motos muito maiores do que esta — disse, divertindo-me. — Então suba e se segure com força, bambina. Segurei suavemente sua cintura, em vez da parte traseira da moto, que arrancou com ímpeto controlado. Quando chegamos à estrada que liga o CERN a Genebra, Alessio acelerou para me impressionar. Tive de me segurar com força e me apertar contra suas costas para evitar os golpes de ar. Pude constatar através da camisa do piloto que estava em boa forma. Tinha um belo abdômen e, embora fosse magro, suas costas eram bastante largas para que pudesse recostar nelas todo meu corpo. Gostava daquela sensação; fazia me sentir protegida. O trajeto foi mais curto do que eu tinha desejado. Atravessamos Genebra na direção do lago e estacionamos a moto a duas ruas do clube de jazz.
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— Bem-vinda ao bairro de Paquis — disse ao tirar o capacete. — Já passeou por aqui? — Infelizmente ainda não vi muita coisa de Genebra. — Este é o bairro boêmio. Além de algumas casas com jazz ao vivo, também há as prostitutas mais educadas que já se viu na vida. — Sabe disso por experiência própria? — Claro que não! Sou um cavalheiro ao estilo antigo — disse enquanto acorrentava os dois capacetes à moto. — Gosto de me apaixonar e essas coisas. Mas não tenho nada contra quem procura esse tipo de companhia. Você sabia que Feynman frequentava estabelecimentos de topless? Adorava ir a esses lugares para relaxar e tomar um 7Up. Formulou algumas de suas teorias enquanto olhava as garotas. Entramos no local do show, que era cheio de poltronas e sofás forrados de vermelho. Aquele pequeno palco sobre um estrado de madeira abrigou os melhores instrumentistas do século XX. Pedimos duas cervejas a uma jovem e estonteante garçonete, que começou a brincar com Alessio. Ele deu trela a ela durante mais tempo do que eu gostaria. Enquanto segurava a vela, brincando com a garrafa de cerveja, pensei que ao lado daquele garotão eu parecia uma criança. Uma verdadeira bambina. Não gostei daquilo. Quando acabou de flertar com a garçonete, passou o braço em meu ombro com autossuficiência e procuramos um par de cadeiras livres. Sentamos em uma mesa perto do palco, onde os músicos faziam os últimos testes de som. Uns jovens sentados exatamente atrás da gente se aproximaram para cumprimentar Alessio, que os apresentou: — Estes são Max, Annie e Jonas. Trabalham no CERN, no departamento de física teórica. São os mais loucos do clube de cientistas, por isso os entrevistei. Max deu uma cotovelada amistosa em Alessio. Todos eles estavam desalinhados como boêmios da velha escola. Calculei que teriam entre vinte e cinco e trinta anos, bem mais velhos do que os summer students que eu conhecia. Os rapazes usavam calças jeans rasgadas e botas de montanhismo. Annie, que era francesa, vestia um look neo-hippie com duas tranças que caíam em seus ombros e uma saia longa. Olhou para mim como se me conhecesse. — É possível que a tenha visto no Restaurante 1? — Sim — respondi. — Estou trabalhando lá durante todo o verão.
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— Só este verão? Que pena! Você prepara os melhores cafés do CERN, suponho que já devem ter dito isso a você. Alessio sorriu, orgulhoso. — Fui seu mestre barista. Ignorei o suíço e agradeci o comentário de Annie. Max chegou com outra rodada de cervejas para todos. Ele me disse que vigiaria Alessio. Tinha que me devolver ao CERN sã e salva. — De olho nas cervejas. Não se esqueça de que vai pilotar. Jonas tomou a palavra sem tirar da boca um cachimbo apagado que fedia. — Você sabia que 33% dos acidentes fatais são provocados por pessoas que beberam? O resto, 67%, é causado por pessoas sóbrias. Se a isso acrescentarmos que a probabilidade de sofrer um acidente aumenta com o tempo que você passa na estrada… o melhor é dirigir bêbado e o mais rápido possível. — Este é um exemplo claro de como as estatísticas podem ser mal interpretadas — acrescentou Annie, dando um cascudo em seu amigo. — Beber nem sempre dá maus resultados — continuou Max, também de brincadeira. — Vocês não sabem o que aconteceu com o grupo de Yoshihiko Takano? Ele e seus pesquisadores haviam conseguido gerar materiais supercondutores, embebendo-os em uma mistura de água e etanol. Decidiram comemorar aquele êxito com uma festa no laboratório que virou um imenso porre. Animados pela bebedeira, continuaram a experiência, acrescentando vinho tinto aos materiais supercondutores e começaram a rir. Imaginem a surpresa ao descobrir que o vinho tinto melhorou a condutividade em 23%. — Já dizia Homer Simpson — riu Max —, “o álcool é a causa e a solução de todos os problemas da vida.” Inclusive o da supercondutividade. Naquele momento, a banda de jazz começou a tocar. Era formada por um pianista veterano, um contrabaixista e uma jovem garota na bateria. À medida que o show avançava, Alessio ia ganhando milímetros para se aproximar de mim. Eu me divertia controlando seus movimentos sutis. Primeiro aproximou a cadeira com a desculpa de sussurrar alguma coisa no meu ouvido.
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— Esta canção se chama “Mad about the boy”3. A versão original, de Dinah Washington, tinha letra. Fala de uma jovenzinha que se apaixona loucamente por um rapaz que a faz perder o sono. — Ah, é? — Eu me fiz de boba, evitando sua indireta. Alessio esticou o braço e o colocou nas minhas costas, usando o encosto da minha cadeira como apoio. — A cantora negra desse tema se casou sete vezes e morreu aos trinta e nove anos de uma overdose de pílulas e álcool. Mencionei-a em uma reportagem que escrevi sobre artistas infelizes, por ocasião da morte de Amy Winehouse. Minha teoria é que estas divas tinham uma vida sentimental desastrosa porque fantasiavam muito. Talvez o amor de sua vida estivesse muito perto, mas procuravam seu príncipe encantado em outro lugar. Levantei o rosto e olhei nos olhos dele. Percebi que havia inclinado meu corpo em sua direção para poder acompanhar sua conversa. Nossos rostos quase se roçavam. Senti uma tensão ligeiramente eletrizante. Sabia que se virasse um pouco mais o rosto, nossos lábios se tocariam. No entanto, fiquei imóvel. Para esfriar o ambiente, disse a ele: — Talvez essas cantoras só quisessem explorar todas as possibilidades do amor. Como dizem os quânticos, até que não colapsemos uma possibilidade tomando uma decisão, todas coexistem ao mesmo tempo. Recordei a experiência da dupla fenda que Angie me contara na piscina na semana anterior e que tinha anotado na minha caderneta. Nesse momento, meu interlocutor esticou um pouco mais o braço e cercou minha cintura. — De maneira que… — acrescentou Alessio em um tom ardiloso — também esta noite todas as possibilidades estão abertas. Se o Universo fosse um vestido, qual você usaria esta noite? — Não sei o que você quer dizer com isso. — A verdade é que eu também não, mas poderia ser o título de alguma coisa.
3 Do inglês, Louca por esse cara. (N. da A.)
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15. COMETA ERRANTE Era uma da madrugada quando subimos na moto, em silêncio. Quando o show terminou, aqueles físicos pirados nos convenceram de que devíamos ir com eles à Bypass, uma discoteca da moda de Genebra. A noite estava sendo perfeita. A música me agradava e, graças a algumas cervejas a mais, finalmente me soltei e dancei sem parar. Tudo foi por água abaixo quando Alessio quis me beijar. De maneira instintiva, evitei rapidamente sua tentativa, o que acabou com a magia do momento. O castelo de cartas do meu jornalista veio abaixo. Até então nos sentíamos os donos da noite. Alessio era um companheiro de dança extraordinário e me conduzia habilmente pela pista. Fazia com que parecesse uma dançarina virtuosa, pois conseguia fazer meu corpo se adequar aos seus movimentos. O lógico teria sido que tivesse me deixado levar pela situação e aceitado aquele beijo. Afinal de contas, ele me agradava. E, provavelmente, aquele era o resultado de um sinal que eu dera, de modo que sua iniciativa era mais que previsível. Não se podia dizer o mesmo de minha recusa. Nem eu mesma entendia por que havia reagido com uma evasiva, fria como o gelo. Alessio era charmoso, e sua conversa me divertia. Talvez não fosse tão interessante como a de Brian, mas era agradável e fazia que me sentisse bem.
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Brian! Talvez fosse esse o problema. No momento em que Alessio tentou me beijar, visualizei com muita clareza o rosto de Brian. Naquela palestra de introdução ao CERN, ele me parecera um cara normal, mas, quando pensava nele, via nobreza em cada um de seus traços. Seus olhos eram tingidos por aquele mistério que o envolvia, como se quisesse se proteger do mundo externo. Havia chegado à conclusão de que Brian era a pessoa mais atraente, no sentido literal da palavra, que conheci em toda minha vida. Seu porte reservado despertava em mim a necessidade de atravessar suas muralhas e descobrir seus segredos. Sentia-me atraída por ele de uma maneira irresistível, como um planeta aprisionado na órbita de uma estrela gigante. Havia me apaixonado por ele. De repente, compreendi tudo. Havia me negado a beijar Alessio por uma singular “fidelidade platônica” a Brian. Nesse momento, vi tudo claramente. E a culpa era minha. Não deveria ter dado sinais a Alessio de que me sentia à vontade com ele. Com isso, só consegui que se atrevesse a cruzar a fronteira… e agora seria difícil — para não dizer impossível — devolvê-lo ao território da amizade. Em cima daquela moto em movimento, enquanto abraçava o corpo atlético de Alessio, tive de reconhecer que uma parte de mim desejava sucumbir à tentação. Mas aquele impulso não tinha nada a fazer contra a força de gravidade que me mantinha na órbita de Brian. Não havia como recuar. Sem ele, me transformaria em um cometa errante, que vai perdendo luz enquanto adentra a escuridão do cosmos. Chegamos à entrada do CERN em um instante. O suíço havia pilotado sua Ducati muito mais depressa do que na ida. Exibimos nossos passes aos guardas de segurança sem descer da moto. Segundos depois, Alessio parava diante da porta de meu alojamento. Tirei o capacete, temendo a ferida que minha recusa pudesse causar. Esperava uma reação fria de sua parte, mas ele me surpreendeu com o sorriso de sempre. — Uma noite maravilhosa. Ainda não consegui entender o vestido que você está usando esta noite, mas imagino que é isso o que a torna tão especial. Dito isso, acariciou meu queixo com os dedos. Um gesto carinhoso, mas ao mesmo tempo de confiança absoluta. De qualquer maneira, fiquei feliz de ter evitado o drama. Pelo menos não era um sujeito complicado, como eu.
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Sem saber o que dizer, limitei-me a sorrir timidamente. — Não vai me convidar para subir? Ou não aprendeu nada vendo filmes? Segundo o roteiro, agora você deve me oferecer um café em seu quarto. — Eu o divido com uma estudante. — Tinha a desculpa perfeita. — Não quero incomodá-la, já é tarde. Além disso, no quarto do alojamento não temos cozinha nem cafeteira, sinto muito. Depois daquela evasiva, pensei que aquilo não me impedira de convidar Brian na semana anterior. Alessio se apoiou na parede e me perguntou com uma indiferença dissimulada: — Como é sua companheira de quarto? — É um geniozinho. Uma das estudantes com melhor histórico acadêmico de todo o CERN. — Não continue… Com essa descrição, espero o pior. Pode passar por garota ou é um monstrinho? — Você mesmo poderá julgar o invólucro — respondi. — Está vindo ali. Angie caminhava em nossa direção. Naquela noite usava uma de suas minissaias de tirar o fôlego. Estava combinada com um suéter folgado que tinha a gola suficientemente aberta para que caísse por um de seus braços e deixasse seu ombro descoberto. Seus cabelos estavam soltos e tinha um ar descontraído. Tive curiosidade de ver como Alessio reagiria aos seus encantos. — Laila! — saudou ela, olhando diretamente Alessio nos olhos. — Não sei de onde você tirou esta peça, mas quebra todos os padrões de beleza masculina deste inferno. — Me disseram que você é um geniozinho — interveio ele —, mas me parece mais uma modelo de catálogo. Angie riu do comentário. Fantástico! Agora começariam a flertar debaixo do meu nariz, disse a mim mesma. A última coisa que queria era presenciar aquela cena. — Visto que não é necessário apresentá-los, vou embora. Amanhã tenho que estar cedo no trabalho. Esperava que diante daquela despedida tão drástica, Alessio tentaria me deter. Depois de piscar o olho para mim, despediu-se com um ridículo: — Boa noite, bambi. — Subo daqui a pouco — acrescentou Angie.
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Visto que nenhum dos dois parecia se importar que eu fosse embora, abri bruscamente a porta do alojamento e subi para o meu quarto. Estava achando incrível que aquele cara de pau tivesse tentado me beijar há menos de uma hora e agora ficasse flertando com minha companheira debaixo do meu nariz. Estava claro que, ao lado da belezura com quem dividia o quarto, eu me tornava invisível. Decepcionada, sentei-me diante da escrivaninha de Angie e liguei seu computador para ver a hora. Era uma e vinte da manhã. Coloquei o pijama, depois voltei à escrivaninha e olhei de novo o relógio: já era uma e meia. Para me entreter, abri o navegador e entrei na intranet do CERN-Market, na qual os residentes vendiam seus móveis e carros usados, pois sempre havia pesquisadores chegando e partindo. Alguns anúncios eram realmente chocantes. VENDO SOFÁ VERMELHO DA IKEA SEMINOVO JÁ DESMONTADO Advertência I: Falta um parafuso. Advertência II: Uma vez que este produto é 100% matéria, no caso de entrar em contato com a antimatéria acontecerá uma explosão catastrófica para o sofá e seu ocupante. Declinam-se responsabilidades por tal situação. Advertência III: Avisa-se ao comprador que, na realidade, este produto consta de 99,9999999999% de espaço vazio. Ri ao recordar o exemplo que Angie me dera uma semana antes: “Se o núcleo do átomo fosse uma bolinha de pingue-pongue e a colocássemos no centro de um campo de futebol, os elétrons ficariam menores do que a ponta de um alfinete e dariam voltas pelas arquibancadas. O resto está totalmente vazio, como a cabeça dos garotos.” Brian explicara aquilo de uma maneira mais doce: “Se pegássemos todos os átomos que formam a humanidade e tirássemos o espaço vazio, juntando os núcleos e os elétrons, todos caberíamos em um torrão de açúcar.” Depois de ler muitos anúncios, aquela estratégia de distração imposta parou de funcionar. Já haviam se passado quarenta e cinco minutos, e minha companheira de quarto ainda não tinha voltado. Feche o notebook, apaguei as luzes e caí na cama com uma pulga atrás da orelha.
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Não entendia por que me incomodava tanto que Alessio flertasse com Angie. Eu o rejeitara naquela mesma noite e chegara à conclusão de que sentia uma coisa muito forte por Brian. Então, por que os ciúmes me devoravam e eu cronometrava o tempo em que estavam juntos? Angie entrou justo quando estava pensando nisso, mas fingi que estava dormindo. Não tinha vontade de conversar com ela. Sem acender a luz, ela se enfiou no banheiro para tomar uma ducha. Então, o som do meu telefone me indicou que tinha chegado uma mensagem. [Angelina é uma boa física, mas você é um anjo] Suspirei ao ler aquela mensagem. Enquanto pensava se era ou não uma mera cortesia, chegou uma bobeira que me deixou de bom humor: [Boa noite, bambi, obrigado por dar um argumento aos meus sonhos]
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16. LES HORRIBLES CERNETTES Levantei da cama de um pulo. Finalmente sábado! Apesar de ter me deitado cedo para compensar a saída da noite anterior, não havia conciliado o sono até bem tarde da madrugada. Estava impaciente para ver Brian de novo. Sabia que ele também estaria no churrasco. Abri as cortinas para contemplar o céu. Se começasse a chover, algo mais que normal naquele país, o passeio seria suspenso, e minhas esperanças de vê-lo iriam por água abaixo. Felizmente, o sol brilhava. Algumas nuvens se aglomeravam no horizonte, mas o céu estava suficientemente aberto para manter o plano. Entusiasmada, pulei da cama antes de Angie e comecei a fazer cócegas para acordá-la. — Levante, dorminhoca! Está fazendo um dia belíssimo. — Posso saber que formiga te mordeu? — protestou, batendo em mim com seu travesseiro. — Na quarta-feira, tive de implorar que ignorasse as idiotices de Chantal e viesse… e agora só falta um par de pompons para você ser a cheerleader do grupo! — Mudei de opinião. O dia está perfeito para um churrasco. Depois de ter certeza de que Angie não voltaria a adormecer, fui para o chuveiro. Em seguida, vesti um biquíni, um short e uma camiseta de alça. Com um pouco de sorte, poderíamos dar um mergulho no lago. Por último, enfiei meu pijama e minha escova de dentes na mochila. O plano era desfrutar o dia ao ar livre e dormir ao relento ao lado do lago. Talvez fosse uma criancice, mas me entusiasmava a ideia de passar a noite com ele, mesmo acampada com todos os outros ao redor.
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Quando saímos do alojamento, vi duas grandes vans no estacionamento carregadas de provisões. Klaus havia alugado um deles. O segundo seria dirigido por um summer student que eu só conhecia de vista. À medida que nos aproximávamos do estacionamento, nos dividimos em dois grupos de forma natural. Minha companheira e eu nos colocamos imediatamente ao lado de Klaus e Arthur. Por sorte, Chantal se manteve afastada da gente e se sentou com Pierre no outro veículo. Imaginei que continuava sem falar com Angie depois do incidente no terraço. Enquanto esperávamos pelo resto, olhei inquieta para o alojamento de Brian. Estava atrasado e, pelo que eu sabia dele, era sempre pontual. Temia que tivesse desistido e não participasse da excursão, mas não me atrevi a perguntar nada a Angie. Chegaram mais três estudantes que foram se sentar no outro carro. Klaus resolveu que estava na hora de sair. Brian não tinha chegado. O bom humor com que me levantara evaporou de repente. Fiquei sentada em silêncio na parte traseira da van; Angie e Artur se acomodaram na frente, ao lado de Klaus. Deixei a conversa dele para lá e olhei para o céu com tristeza. — Posso saber o que está acontecendo com você, júnior? — gritou minha amiga do assento dianteiro. — Há meia hora não parava de pular e agora está parecendo um cordeiro degolado. Você ouviu o que estamos dizendo? Temos que preparar algum número para o CERN Hadronic Festival. — Desculpe, Angie, não ouvi vocês direito daqui. Tentei demonstrar interesse pela conversa. Não queria que percebessem que a ausência de Brian era o motivo da minha melancolia. — Quem sabe… — acrescentou Arthur. — Talvez fiquemos tão famosos como Les Horribles Cernettes, que entraram para a história por terem aparecido na primeira fotografia disponibilizada pela World Wide Web. — E quem são? — perguntei, fazendo um esforço para me integrar. — Um conjunto de rock que tinha a mesma sigla do nosso acelerador LHC. Foi fundado por uma secretária do CERN. Dizem que estava tão cansada de ficar esperando pelo namorado, um físico de partículas que trabalhava até altas horas da noite, que decidiu
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chamar sua atenção criando a banda. Fizeram uma apresentação magistral no Hadronic Festival cantando “Collider”4. Klaus ampliou a explicação com todo tipo de detalhes. Queria demonstrar que também era especialista naquela banda freak. — Essa canção fala das noites de solidão sofridas pela infeliz namorada do cientista, que dedicava mais tempo a procurar minúsculas partículas do que a ela. Les Horribles Cernettes foi a sensação do festival, e “Collider” virou o hino de todos os físicos do CERN. O físico Tim Berners-Lee decidiu publicar fotos das integrantes da banda no novo sistema de classificação de informações que acabara de inventar. Chamou-o de World Wide Web. Dessa maneira elas ficaram mundialmente famosas por terem protagonizado a primeira foto disponibilizada na rede. Foi o primeiro grupo musical a ter uma página na web. Até foram convidadas para se apresentar em sua cidade, Laila, na Expo’92 de Sevilha. Você não sabia? — É genial, eu já ouvi essa canção — acrescentou Angie, e começou a cantarolar. — You never spend your nights with me… You don’t go out with other girls either… You only love your collider…5 Muito bom! Embora seja de 1992, continua circulando na internet. Você precisa ouvir, júnior! Mas, pobres Cernettes… Certamente continuaram passando as noites sozinhas, com seus namorados pesquisando sem parar. Bem — disse, mudando totalmente de assunto —, temos que desviar do caminho para pegar Brian em Genebra. Já deve estar nos esperando. Ao ouvir aquilo, meu coração deu um pulo. Alguns minutos mais tarde, paramos na avenida às margens do lago Leman. Brian tinha sido pontual. Voltava a vestir seu short cáqui e uma camiseta fina. Estava muito mais charmoso que dois dias atrás… ou eu é que estava olhando para ele com outros olhos. Uma vez que os outros lugares já estavam ocupados, ele não teve outra opção a não ser sentar-se ao meu lado. Fiquei agitada ao senti-lo tão perto. Saudou-me com um sorriso enquanto os outros continuavam contando histórias da banda Les Horribles Cernettes. — Você acabou não vindo à aula da quinta-feira — disse. 4 Colisor, em referência ao acelerador de partículas. (N. da A.) 5 “Você nunca passa as noites comigo / Tampouco sai com outras garotas / Só ama seu colisor”. (N. da A.)
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Maldição, pensei, pois não sabia como evitar esse tiro. Não queria admitir que havia saído com outro garoto no dia de sua aula. Infelizmente, Angie fez o trabalho por mim. — Laila passou a tarde e a noite fazendo uma coisa muito mais divertida do que sua aula. Foi a um show de jazz com um jornalista que é o máximo. Brian me radiografou através de seus óculos imensos. Acho que eu jamais desejei com tanta intensidade que a terra me engolisse. Ele também parecia incomodado e, talvez sem se dar conta, se afastou uns centímetros de mim. — Sinto muito. — Foi a única coisa que me ocorreu dizer. — Uns amigos tinham comprado a entrada do show para mim, e não pude recusar. — Eu sei que o jazz é muito mais divertido do que os ímãs supercondutores do LHC. — Não mesmo, certamente teria aproveitado muito mais a sua aula. Senti um calor em minhas bochechas depois daquela confissão, da qual já me arrependia. Ao ver que estava ficando nervosa, Brian acrescentou, com voz tranquila: — Sempre nos restarão nossas sessões. Tenho que cumprir a promessa que lhe fiz. Chegamos ao nosso destino quinze minutos depois. O lugar do churrasco era uma esplanada na outra margem do lago com mesas e bancos. Um descuidado campo de futebol completava aquele lugar perfeito para passar os domingos. Outros grupos do CERN faziam a carne fumegar nas churrasqueiras enquanto se refrescavam com garrafinhas de cerveja. Reconheci alguns clientes de minha cafeteria, que me saudaram com simpatia. Klaus e Arthur trataram de descarregar as provisões e discutir qual era o melhor lugar para passar a noite. Naquele momento, Chantal e Pierre se juntaram a eles. Angie, por sua vez, se aproximou para cumprimentar um grupo de pós-doutorandos, que se emocionou ao ver que ela se interessava por eles. Brian se afastou discretamente do grupo, como se toda aquela alegria não lhe dissesse respeito. Certamente, eu fui a única a perceber sua atitude, pois não tirava os olhos de cima dele. Vi-o tirar, na margem do lago, seus óculos, a camiseta e as calças até ficar de roupa de banho. Fiquei surpresa ao ver que sua cintura estreita terminava em costas largas e
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fortes. Como usava sempre uma camiseta mais solta, eu não imaginava que tivesse aquele corpaço. Depois de sentir a temperatura da água com um dos pés, atirou-se de cabeça no lago. Nadava com uma velocidade espantosa, e seu estilo era comparável ao de um nadador olímpico. Não queria ficar perto de Chantal, e Angie estava borboleteando em torno de um enxame de garotos, então me dirigi discretamente à margem. Sentei-me em uma pedra enorme, justo onde Brian deixara sua roupa. Fiz um esforço para contemplar os reflexos do sol no lago, mas não conseguia parar de observá-lo. Depois de se afastar mais do que era prudente, voltou à margem, dando grandes braçadas. Vê-lo sair da água foi um grande espetáculo. Seu torso estava tão fibroso que era possível contar cada um de seus músculos abdominais. Com os cabelos molhados e sem óculos, parecia um modelo de um catálogo de roupas de banho. Sentou-se ao meu lado, respirando fundo. — Eu não sabia que você era nadador profissional. — Obrigado, Laila. — Eu adorava ouvi-lo dizer meu nome. — Mas não sou. Só me distraio um pouco na água porque me faz sentir livre. Nado desde pequeno. Creio que é a coisa que mais agradeço a meu tio: que tenha despertado em mim essa paixão. Era a primeira vez que Brian falava de si mesmo. Enquanto o fazia, ele olhava para as mãos, e eu analisava seu rosto, como se pudesse atravessar as muralhas atrás das quais se protegia. — Você viveu com ele? — perguntei. — Desde os cinco anos. Meus pais morreram em um acidente de carro, e ele teve que se responsabilizar por mim a partir de então. Fiquei sensibilizada com aquela resposta. Brian me olhou nos olhos, como se quisesse avaliar o efeito de suas palavras, e eu abaixei a cabeça com pesar. — Sinto muito. — Fique tranquila, isso aconteceu há muito tempo, embora as recordações que tenho deles continuem vivas. Eram um casal fantástico, todos diziam que haviam nascido para ficar juntos. Os dois eram professores de crianças problemáticas, em regiões de exclusão social. — E seu tio… o que fazia? Pelo jeito como você disse, parece que não se dava muito bem com ele. — Joseph era irmão de meu pai — explicou, deitando-se de boca para cima na pedra e cruzando os braços sob a cabeça. — Eram
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como a noite e o dia. Meu tio ganhou uma fortuna com seus negócios. Vivia com ele em sua casa de Boston, embora seja mais adequado chamá-la de mansão. Para ele, eu não passei de mais uma de suas muitas responsabilidades. Os únicos bons momentos que recordo são aqueles quando treinávamos juntos em sua piscina. Eu passava mais tempo com as empregadas do que com ele, mas não consegui me apegar a nenhuma, pois não duravam mais de um ano no emprego. Ficavam logo cansadas de seu humor de cão. É um sujeito carrancudo, nada o agrada. Eu o ouvia, fascinada. Deitada a seu lado, tentei imaginar na tela do céu aquela mansão de Boston. — E você… — suspirou quando virou o corpo para me olhar. — Como se sente aqui? Como se dá com seus amigos sabichões? — Ainda me sinto deslocada — reconheci, levantando-me para me apoiar sobre os cotovelos. — Não passo de uma garçonete, mas sempre estou cercada de cientistas… Não sei se você sabe o que quero dizer. — Mais do que imagina. Você é uma pessoa muito inteligente, Laila. Tenho certeza de que voltará ao CERN, e não como garçonete. Eu me sinto muitas vezes como você. Já pensei muitas vezes que, se meus pais não tivessem morrido, não estaria aqui. Acho que teria seguido os passos deles e me tornado professor. — Mas todos dizem que você é um excelente cientista. — Isso não significa nada. Acho que teria sido mais feliz ajudando adolescentes a encontrar seus caminhos. Uma vez, quando tinha quinze anos, veio falar comigo um sujeito muito mais velho do que eu. Ele me contou que, graças a meus pais, abandonara as drogas quando era adolescente e tinha até conseguido completar a universidade. Embora soubesse do acidente, veio me dizer aquilo como se seu agradecimento pudesse chegar de alguma maneira a meus pais. E, quando meu tio chegou, o expulsou de casa com péssimas maneiras. Joseph havia decidido cada detalhe de meu futuro e não queria que ninguém além dele me influenciasse. Tinha programado tudo: dos meus estudos no MIT6 até meu doutorado. — E, também, seu posto de pesquisador no CERN, suponho. — Não, vir para cá foi uma decisão minha. Na verdade, Joseph não está nada contente com isso. — Mas este lugar é uma meca para um cientista! 6 Sigla do Massachusetts Institute of Technology, famosa universidade de Boston. (N. da A.)
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— Meu tio teria preferido que continuasse no Laboratório Nacional de Los Álamos, nos Estados Unidos. Para ele, o fato de estar aqui é uma espécie de rebelião. — Uau! — brinquei um pouco. — Você parece um rebelde perigoso! Foi então que recordei meu sonho no qual Brian era um líder da resistência que lutava para manter os avanços científicos fora do alcance dos militares. Talvez meu subconsciente o tivesse entendido melhor do que pensava. — Li alguma coisa sobre o laboratório de Los Álamos… Lá foi criada a primeira bomba atômica, no projeto Manhattan. — Supus que aquele sinistro histórico e a orientação bélica do Centro tinham pesado em sua decisão de ir embora. — Mas que tipo de pesquisa você fez? Brian se levantou se repente e me estendeu a mão para que o acompanhasse. — É melhor irmos ajudar Klaus e Arthur com o almoço. Sinto um cheiro de queimado vindo dali de onde eles estão… Fiquei surpresa com aquela mudança brusca de assunto. Por alguns momentos, achei que tivesse conseguido atravessar suas defesas, mas ele voltou a levantar uma muralha impenetrável ao seu redor. Trocando os papéis das histórias, prometi a mim mesma que eu seria a primeira princesa a resgatar seu cavaleiro.
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17. O JOGO Esgotadas as brincadeiras da sobremesa, Brian e Klaus abriram um mapa da região para decidir onde passaríamos a noite ao relento. Fui até a mesa para dar uma olhada no plano. — Poderíamos ir ver a Villa Diodati — sugeri. — Fica a dois passos daqui. — Uma vila? — surpreendeu-se Angie. — O que isso tem de interessante? — Foi a mansão de verão do lorde Byron. Foi exatamente ali que Mary Shelley deu vida a sua obra-prima: Frankenstein. Brian me observava… fascinado? — Não há quem possa com a júnior — elogiou Angie. — Você é uma caixinha de surpresas! Eu havia feito um trabalho sobre Shelley nas aulas de literatura. Fascinara-me o fato de Frankenstein ter surgido de uma brincadeira entre amigos como lorde Byron, seu médico e o próprio marido de Mary, que era um poeta famoso. Depois de discutir as experiências de um cientista que afirmava, no século XVIII, ter revivido a matéria morta, Byron sugeriu que cada um escrevesse uma história de terror. Foi assim que Mary, inspirada por um sonho, escreveu seu romance mais famoso. — Acho um plano aterrorizante — disse Arthur. — Pode ser ótimo passar a noite ali. Não precisaremos da caminhonete, fica aqui ao lado. Podemos ir andando. — Se é onde nasceu a espantosa história de Frankenstein, deve ser um lugar feio — protestou Chantal. — É melhor ficarmos aqui. — Nem pensar! — exclamou Klaus. — Esse romance é considerado o primeiro texto de ficção científica. Já que estamos ao lado do lugar onde foi criado, seria imperdoável não ir até lá. Além do mais, não tem por que ser feio… Isso me lembra da pequena aldeia de
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Gruyères, a do queijo. É idílica e, no entanto, dali saiu H. R. Giger, o artista gráfico e escultor que criou o monstro de Alien e alguns cenários do filme. Abriga inclusive um museu que deixa os cabelos em pé. Me alucina que as ideias mais perversas e horríveis possam surgir em lugares paradisíacos. — Você parece pirado, Klaus — cedeu Chantal. — Tá certo, veremos mansões horríveis, mas com a condição de que fique calado. Maldição, por um momento havia achado que a belga e seu cachorrinho de madame desistiriam de nos acompanhar. De fato, a Villa Diodati não ficava muito longe. Nos instalamos em um prado próximo para passar a noite. Embora já tivesse escurecido, a silhueta quadrangular do casarão se projetava como uma sombra ameaçadora. Arthur começou a tirar as cervejas de sua geladeira portátil e colocou-as sobre uma toalha com quadrículos vermelhos com um lampião de gás no centro. Todos nos acomodamos ao redor daquela mesa improvisada no chão. — E se fizermos alguma coisa divertida? — propôs Chantal depois de um tempo. — Poderíamos brincar de verdade ou consequência… Vamos, afaste essa lanterninha, Arthur. Animados pela cerveja, nos preparamos para jogar. Éramos sete participantes: o casal belga, Klaus, o inglês, minha companheira de quarto, Brian e eu. Isso sem contar um gatinho preto que, depois de se assegurar de que éramos inofensivos, cheirava agora as bolsas de comida. — Farei a garrafa girar — explicou a belga —, quando parar, a pessoa para quem apontar deverá escolher entre verdade ou consequência. Havia visto esse jogo bobo em algum seriado de televisão juvenil, mas não imaginava que bacharéis em física o colocassem em prática. A garrafa começou a girar, e rezei para que não me apontasse. Tive sorte, pois a primeira vítima foi Arthur. — Escolha… — ordenou Angie — verdade ou consequência? — Consequência. Sua resposta me surpreendeu. Esperava que o tímido Arthur preferisse contar qualquer besteira a agir. — Muito bem — disse Chantal, que continuava fazendo o papel de mestre de cerimônias. — Agora voltarei a girar a garrafa para ver quem decidirá o que Arthur terá que fazer.
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A garrafa voltou a girar velozmente até que apontou para Angie, que determinou: — Tem que dar um beijo sensual na garota que você acha mais atraente… entre as que estão aqui, claro. Pobre Arthur, pensei, adivinhando quem seria a escolhida. O reservado inglês aproximou-se de minha companheira e beijou-a no pescoço. — Era óbvio — disse eu, rindo. — Angie é de longe a mais bonita de todo o CERN. Assustado por minha risada, o gatinho que havia se sentado aos meus pés foi se acomodar ao lado de Brian. — Não acho tão óbvio… — grunhiu Chantal. Aquela pedante me deixava alucinada. Como podia ser inteligente para a matemática e tão estúpida para a convivência no dia a dia? Klaus distribuiu outra rodada de cerveja. Parecia desfrutar aquela besteira de jogo e queria animar o ambiente. Uma vez que Chantal continuava fazendo bico, foi a própria Angie quem voltou a girar a garrafa. Enquanto decidia a próxima vítima, pensei que teria sido ótimo se tivesse cabido a Brian aquela consequência. Assim teria ficado sabendo se sentia alguma coisa por mim, ou se eu era para ele apenas a júnior a quem devia instruir. Como se o jogo tivesse lido meu pensamento, a garrafa parou diante de Brian. — Verdade. Segurei a respiração. A garrafa voltou a girar para escolher o autor da pergunta comprometedora: Chantal. — Você acredita no amor verdadeiro? E, o mais importante, você já o experimentou? Responda. Klaus suspirou, entediado. Aquele jogo era para derrubar barreiras e comprometer as pessoas. Mas a mim interessava muitíssimo o que Brian responderia. — É claro que acredito no amor verdadeiro, vivi isso quando tinha doze anos — ignorou os risinhos de Arthur e Klaus. — Estava brincando de esconde-esconde com outras crianças no povoado em que meus avós moravam. Eu me enfiei em um beco escuro e tropecei em Mery, uma menina de que sempre gostei, mas nunca tinha me atrevido a me declarar. Ela me ordenou que ficasse em silêncio, levando o dedo indicador aos lábios, e me pegou pela mão antes de começar a correr para que não nos flagrassem. Lembro como se fosse
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ontem o calor de sua pele, como sua mão me segurava com força. Pensei que um mundo onde se podia sentir aquilo tinha de ser, obrigatoriamente, belo. Klaus disse alguma coisa estúpida a Arthur, que riu baixinho. Aquela revelação congelou meu sangue. O que teria acontecido com aquela garota? Talvez fosse sua namorada e não me dissera nada. Tampouco perguntei se havia alguém esperando por ele em algum lugar. Angie se encarregou de verbalizar a dúvida que torturava minha mente. — E o que aconteceu com a princesa? — Naquele mesmo ano, ela teve um tumor cerebral — respondeu Brian, com tristeza. — Não chegou com vida ao verão seguinte. Por alguns segundos ficamos todos mudos. Se antes meu sangue havia congelado, agora sentia que se cristalizava em minhas veias. Por fim, entendia por que aquele jovem, que agora acariciava o gatinho preto, era tão reservado. Chantal foi a única que conseguiu superar rapidamente aquele jato de água fria e, por isso, voltou a girar a garrafa. Desta vez a escolhida foi Angie, que não hesitou em optar por consequência. Pierre foi o encarregado de decidir seu teste: — Você beijará os lábios da pessoa que a garrafa escolher, mesmo que seja uma garota. Klaus esfregou as mãos, encantado com o rumo que o jogo estava tomando, e deu uma cotovelada em Arthur. Então a garrafa voltou a girar até parar diante de Brian. Segurei a respiração. Não podia ser! Angie não faria aquilo, pensei para me acalmar. Ela sabia o que eu sentia por ele. Embora não tivéssemos falado do assunto nos últimos dias, sabia do nosso encontro de uma semana atrás. No entanto, animada pela bebida, Angie se levantou com atitude de femme fatale e se aproximou de Brian como um predador prestes a pular sobre sua presa. — Muito melhor assim — disse ela, tirando os óculos dele. Em seguida, beijou os lábios dele e se entreteve mais do que teria sido necessário. Brian, embora não tenha dado pano para manga, tampouco se afastou. Morri. Percebi que minha alma desabava. O véu que me cegara havia caído, revelando o óbvio. Tinha me negado a acreditar naquilo
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na noite em que Brian e Angie ficaram discutindo física no quarto, mas agora constatava que foram feitos um para o outro. Ao meu lado, Arthur ficou tão perplexo quanto eu. Não tive dúvidas de que aquilo também doeu para ele. Para lutar contra a dor que me paralisava, rodei a garrafa com raiva. Queria quebrar o quanto antes a situação insuportável que se formara. Desta vez fui a escolhida. — Consequência — disse, sem vacilar, antes que alguém perguntasse. Klaus foi o encarregado de decidir meu teste. Eu continuava olhando fixamente para a garrafa, não queria ver nem Brian nem Angie. Dei um bom gole de cerveja, tentando fingir que não havia acontecido nada. — Vamos dar um pouco mais de diversão à noite — riu Klaus, tirando um dado do bolso. — Você terá de tirar o número de peças que o dado determinar e terá de ficar sem elas até o fim do jogo. Depois jogou o dado, que marcou cinco. Um cinco! Não estava usando peças de roupa suficientes para me sair bem daquela situação. — Aí estão duas — disse, atirando os chinelos no meio da toalha ao redor da qual estávamos sentados. Depois de ficar em pé, tirei a camiseta de alças e as bermudas, sob os olhares atentos dos rapazes, até ficar de biquíni. Com aquelas peças chegava apenas a um total de quatro. Para cumprir as regras, não tinha outra opção do que tirar a parte de cima. Hesitei por uns instantes. — Fique tranquila, júnior — zombou Chantal. — Já que aqui a única bela é Angie, ninguém vai se entusiasmar ao ver você de topless. Suas palavras me enfureceram, mas ao mesmo tempo me encorajaram. Estava prestes a tirar a parte de cima quando Brian me deteve. — Pense que os brincos também são considerados parte do vestuário, Laila. Olhei-o diretamente nos olhos, não voltara a colocar os óculos. Na penumbra, seu olhar de preocupação dissipou imediatamente minha irritação, ao mesmo tempo que aumentava minha confusão. — Você é um verdadeiro gentleman — elogiou Angie. — Podendo despir uma bela garota do sul, salva-a com um minúsculo brinco.
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— Você é um desmancha-prazeres, isso sim — interrompeu Klaus, servindo outra rodada de cerveja. Atirei um dos meus brincos em cima da minha camiseta e me sentei em silêncio, certa de que estava vermelha como um tomate. Dirigi um sorriso forçado a Brian, como se estivesse agradecendo. Então virei meu olhar para o chão enquanto acariciava o gatinho preto, que brincava de novo no meio das minhas pernas, como se tivesse sentido que eu precisava de carinho. Queria que aquele jogo estúpido acabasse de uma vez. Mas Chantal se ocupou em continuá-lo. Brian foi de novo a vítima e, como antes, escolheu a verdade. Ele mesmo impulsionou a garrafa para que fosse escolhida a pessoa que devia interrogá-lo. Coube a mim. Tive que espremer meu cérebro para pensar em uma boa pergunta. Como não consegui nada criativo, soltei aquela frase clássica: — Qual das pessoas que estão aqui você levaria para uma ilha deserta? Klaus voltou a respirar fundo. Outra oportunidade perdida para seu gosto, embora a resposta fosse ser decisiva para mim. Olhei-o fixamente, e ele ficou paralisado por alguns segundos, com seus olhos perdidos nos meus. Depois, abaixou o olhar e, apontando para o felino, que cochilava entre minhas pernas, respondeu: — Levaria esse gato.
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18. MALDITO AMOR VERDADEIRO Algumas gotas de chuva começaram a cair sobre a gente, acabando com a porcaria daquele jogo. Tivemos de levantar correndo para recolher as mochilas e os sacos. Eu peguei minhas roupas e me vesti com pressa. O plano de dormir ao relento, ao lado daquela mansão fantasmagórica, havia ido por água abaixo. Em poucos minutos, já chovia torrencialmente. Chegamos à van ensopados. Subi às pressas para me proteger. Brian sentou ao meu lado. A mesma situação que à primeira hora da manhã me emocionara agora me incomodava. Claro que naquela hora Brian ainda não havia reconhecido que preferiria levar um gato a uma ilha deserta do que a mim. Estava furiosa. Não com ele, mas comigo mesma, por ter sido tão estúpida ao achar que poderia atravessar suas muralhas defensivas. E mais ainda por acreditar que, atrás delas, existia a possibilidade de que sentisse alguma coisa por mim. Fiquei olhando pela janela para evitar qualquer tipo de conversa, embora estivesse tão escuro que não se via nada. — Vocês estragaram a noite com tanta besteira — protestou Klaus ao volante. — Foram suas perguntas bobas que provocaram esta tempestade. Maldito amor verdadeiro! — Você parece um cientista de araque — brincou Chantal. — Deveria rever a terceira lei de Newton, a da ação e reação. — Menos científicas são vocês — defendeu-se —, com tantas perguntinhas açucaradas. Ou não sabem que a paixão não passa de uma injeção de substâncias bioquímicas?
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— E que causam dependência — acrescentou Arthur. — É sério, li a respeito em um artigo sobre neurologia. Quando você se apaixona, em seu cérebro é ativada uma área chamada de tegmental ventral, encarregada de segregar a famosa dopamina. É, também, o neurotransmissor responsável pelos vícios. — Por sorte — acrescentou Klaus. —, como dizia Ortega y Gasset: “Esse estado de imbecilidade transitória não pode se manter bioquimicamente por muito tempo.” — Ah, como são românticos! — ironizou Angie. — E nosso doutor… o que acha? — Essa espécie de amor não é a mais saudável — afirmou Brian. — Existem outros tipos, por exemplo, o amor à ciência, muito mais estável e menos perigoso. A matemática não engana. — Mas os matemáticos e físicos, sim — interveio Angie. — E se equivocam, como o restante dos seres humanos. Lorde Kelvin, presidente da Royal Society, afirmava que as máquinas voadoras mais pesadas do que o ar eram impossíveis. Graham Bell também sofreu: quando apresentou o primeiro telefone, a Câmara dos Comuns desprezou sua invenção, dizendo: “Os norte-americanos precisam deste invento, mas nós não. Temos muitos mensageiros.” — Essa é boa — disse Brian —, mas insisto: é muito mais simples compreender a ciência do que o amor romântico. — Por quê? — devolveu Angie. — O método de tentativa e erro é infalível. Quando você pega a mão ou beija alguém, sabe imediatamente se é ou não a pessoa adequada. Aquela conversa estava me deixando nervosa. A que se referia Angie? Àquela menina morta ou a ela mesma quando o havia beijado? — Exatamente esse é um dos problemas — acrescentou Brian, com tristeza. — Uma vez que conhece a pessoa adequada, o restante das possibilidades desaparece. Eu não estava conseguindo aguentar mais. Havia surgido um nó espantoso em minha garganta. Eu estava totalmente fora daquela discussão e tinha consciência de que também estava longe da mente de Brian. Senti uma lágrima escorrer pela minha face, mas tinha certeza de que a escuridão me protegia. — Então você confia mais nos protocolos científicos do que no que possa expressar uma pessoa apaixonada. Sentada ao lado do motorista, Angie havia se virado para cuspir aquelas palavras em Brian justo no momento em que as luzes de um carro que vinha na direção contrária iluminaram meu rosto. Tive certeza de que havia me visto soluçar fugazmente.
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— Creio que sim. — Então — continuou ela, em um tom que destilava veneno — posso supor que você se sente mais confortável fabricando armas de destruição massiva, não é verdade? Não entendi por que aquilo, mas Brian ficou completamente mudo diante do último ataque de minha amiga. Como se tivesse sido nocauteado, não voltou a abrir a boca durante o restante da viagem. Logo depois, Arthur e Pierre monopolizaram a conversa até que chegamos ao CERN. Klaus sugeriu que continuássemos a festa em seu quarto, mas eu corri e me refugiei no meu. Depois de atirar a roupa no chão, me joguei na cama, desejando esquecer o quanto antes aquela noite azeda. Fiquei pensando até chegar ao desespero, não conseguia pegar no sono. Em minha mente, se projetava sem parar a imagem de Angie e Brian se beijando, enquanto o gato preto observava a cena. Finalmente, me levantei suada e me sentei diante do computador da minha companheira. Precisava me distrair com qualquer coisa. No computador vi a página da web que Angie havia deixado aberta antes de sair para a excursão. Contava uma piada sobre Landau, o famoso físico soviético. Tratava-se de uma discussão que tivera com Trofim Denisovich Lysenko, um biólogo que defendia o chamado darwinismo criativo. Depois de ouvir os argumentos de Lysenko, que afirmava que os traços adquiridos são hereditários, Landau perguntou: “Então o senhor afirma que, se cortarmos a orelha de uma vaca e fizermos o mesmo com sua cria e com as demais gerações, chegará o momento no qual começarão a nascer vacas sem orelhas, não é verdade?” “Sim, é isso mesmo.” “Então, como é que continuam nascendo mulheres virgens?”, perguntou Landau. Ri muito ao ler aquela anedota e agradeci de coração que aquele cientista debochado tivesse me distraído de minhas neuras por alguns instantes. Nesse mesmo momento, Angie chegou e se sentou aos pés da minha cama. — Como você está, júnior? — Já tive momentos melhores.
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Fazendo um esforço para sorrir, pensei que ela não tinha culpa de que Brian não sentisse nada por mim. Nem podia culpá-la por ser tão bonita e inteligente. Suspirei antes de dizer: — Você, que é uma física teórica tão brilhante, tem a fórmula do “desapaixonamento”? Angie arregalou os olhos, como se não pudesse acreditar no que estava ouvindo. — Por acaso não bastou o que viu hoje? Olhe que eu avisei… Não vá se apaixonar por um cientista. — Ia se despindo para deitar enquanto me dava a lição de moral. — Você não conhece a primeira lei da termodinâmica? Nada se perde, tudo se transforma. Ou seja, um prego substitui outro prego. O que deve fazer é se envolver de uma vez com o suíço e usar todos os meios para que Brian fique sabendo… Boa noite, júnior. Depois daquele conselho, apagou a luz. Abatida, concluí que ela tinha toda a razão do mundo. Dispensei Alessio por amor a Brian, mas estava claro que não era correspondida. O melhor que podia fazer era investir minha energia em alguma coisa melhor: parar de sonhar com príncipes encantados e dar valor ao que tinha diante do meu nariz. Do contrário, só perderia a virgindade se, contradizendo Landau, já tivesse nascido sem ela.
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19. A PARTÍCULA MALDITA PARA: MAMI ASSUNTO: CRÔNICAS DO CERN III Querida mami, Bem-vinda ao mundo virtual! Estou muito feliz de ser a destinatária do primeiro e-mail de sua vida ;- b Hoje choveu o dia inteiro. Genebra tem esse inconveniente. É bonita, tudo está verde, mas é preciso pagar um preço. Por exemplo: a chuva de ontem acabou com nossa ideia de acampar. O trabalho no restaurante vai bem. Já tenho tudo sob controle. Se não conseguir estudar, poderei ganhar a vida como garçonete (é brincadeira, fique tranquila, a universidade continua em meus planos ;-)) Quer saber de uma coisa? Na terça-feira passada, descobri que no auditório do CERN há um piano de cauda. O chefe me fez trabalhar no catering de um congresso, e aproveitei para entrar quando já não havia ninguém. Tinha ficado curiosa para ver como era aquela sala que concentrava tantos geniozinhos… e lá estava eu! Em um lado do palco, coberto com uma lona. Depois de ter certeza de que todos já haviam ido embora, fechei a porta e toquei a única canção que sei de cabeça. Você me ouviu tocá-la mil vezes em casa. “No Holly for Miss Quinn”, da Enya. Soou muito bem naquele Petrof centenário. É uma pena que eu tenha parado de estudar música. Talvez retome o piano quando voltar para casa, então… vá afinando-o! Lembra que compus algumas canções? Tenho outra anedota para você contar ao papai, é daquelas que ele gosta. Você sabe que um dos objetivos de nosso acelerador de partículas, o LHC, é encontrar uma partícula minúscula chamada de
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bóson de Higgs. Ficou muito famosa graças a seu apelido popular: “A partícula de Deus.” Apesar de ser muito pequenino, esse bóson tira do sério todos os cientistas, pois só conseguirão entender a verdadeira natureza da matéria quando o encontrarem. É a partícula encarregada de dar massa às coisas. Vem a ser uma espécie de distribuidor de quilos. Mas não conte isso assim a papai ou ficará louco, pois está cansado de fazer dieta ;-) Bem, vamos ao ponto: hoje li uma entrevista de Peter Higgs, o sujeito que descobriu há meio século a existência desta partícula. Parece que ele não acha muito legal terem dado seu sobrenome a ela. Prefere chamá-la de “o bóson que usa meu nome”. Quem deu esse sobrenome divino foi o prêmio Nobel Leon Lederman em seu livro A partícula de Deus: se o Universo é a resposta, qual é a pergunta? . A verdade é que Lederman queria chamá-la de “a partícula maldita”, mas seu editor não gostou e resolveu mudar o nome por vontade própria. Provavelmente acertou, pois esse apelido tem causado furor nos meios de comunicação. Bem… Mudando de assunto, meu amigo suíço (é só um amigo…), do cantão de Ticino, me convidou para jantar na próxima quarta-feira em um velho observatório de Genebra. Eu sei que é um lugar estranho para jantar, mas ele me disse que poderemos usar os velhos telescópios que ainda estão lá. Eu não sei muito de astronomia, por isso fiquei curiosa. Na quarta-feira se lembrem de mim e dirijam seus olhares ao céu por volta das dez. Pensem que estaremos vendo as mesmas estrelas, será uma maneira de estarmos juntos a distância. Eu a amo muito, mamãe, e sinto muito, mas muito, a sua falta, mais do que vocês podem imaginar. Dê um beijo na vovó. Laila
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20. NINGUÉM DISSE QUE ERA SIMPLES Só faltavam quarenta minutos para meu turno acabar quando o gerente me chamou. — Laila, a tarde está tranquila. Venha aqui por um momento, quero falar com você. A princípio seu tom de voz me preocupou, mas depois lembrei que na última vez fizera a mesma cara séria antes de me parabenizar. — Você já sabe o que vai fazer quando as aulas começarem? — perguntou em um tom paternal. — Se acabar resolvendo não ir para a universidade, seu trabalho aqui está garantido. Estive pensando, e poderíamos assinar um contrato com ótimas condições, logicamente muito melhores do que as de agora. — Muito obrigada, monsieur. Me sinto lisonjeada, mas continuo com a intenção de ir para a universidade. No entanto, sua proposta é muito gentil… Eu poderia vir no próximo verão, se o lugar continuar vago. O gerente colocou, como estava habituado a fazer, um dos panos de cozinha no ombro. — Não acredito que tenha essa sorte. Você é uma garota muito inteligente, e tenho certeza de que, na próxima vez que vier ao CERN, verei você sentada ao lado dos outros cientistas. Mas, aconteça o que acontecer, seu lugar sempre estará aqui. Queria que soubesse disso. Nunca vi um garçom com sua capacidade de adaptação. E pensar que quando chegou não sabia nem distinguir uma cerveja de uma água com gás! Fiquei com vontade de dar um beijo sonoro na bochecha daquele carrancudo, mas é claro que não me atrevi a fazê-lo. — Muito obrigada — disse, colocando sua mão enrugada entre as minhas. — Apesar de todos o considerarem um grosso, o senhor é, no fundo, um sol.
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Pela primeira vez o vi rir. Aquela demonstração de afeto inesperada foi um bálsamo para minha tristeza. Desde a decepção que tivera no churrasco, meu estado de espírito não conseguia levantar voo. Certamente, o convite de Alessio me alegrara, mas em meu interior tinha consciência de que o estava usando para afastar Brian de meus pensamentos. Resolvi ouvir minha companheira de quarto: um prego substitui outro prego. Mas me sentia culpada. Ah! Continuava confusa. Precisava que Angie me injetasse um pouco de confiança antes de sair naquela noite. Estava apoiada no balcão, no mundo da lua, quando Brian chegou. Era a última pessoa que eu queria ver naquele momento. Isso quem dizia era meu cérebro, porque meu coração disparou e, por alguns instantes, senti que o ar não chegava direito aos meus pulmões. Quase tremendo, dei-lhe as costas e me concentrei em polir a máquina de café. Era uma atitude grosseira, mas esperava que ele entendesse que eu não estava com humor para conversar. Brian podia ser um cientista extraordinário, mas não esperava uma atitude tão clara. Aproximou-se de mim e me chamou com sua voz suave e profunda. Enquanto eu me virava, mais travada do que o monstro de Frankenstein, ele disse como se não tivesse acontecido nada quatro dias atrás: — Como você está concentrada! Aquilo me tirou ainda mais do sério. Tive de me esforçar para me controlar. Minha resposta não poderia ter sido mais seca: — Tenho um salário a ganhar. Era muito difícil esconder meus sentimentos quando estava diante dele. Vi que analisava minha reação. Eu odiava aquilo. Era incapaz de atravessar as barreiras de Brian, de saber o que pensava e o que sentia e, no entanto, tinha a sensação de que eu era um livro aberto para ele. Teria lido como eu estava apaixonada por ele? Era compaixão por mim o que seus olhos refletiam? Sentia pena por não poder corresponder à inocente júnior? Tentei parecer bem-resolvida e usei um tom estudadamente frio e neutro. — O que quer que lhe sirva? — Meu reino por um desses cafés que você prepara tão bem.
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Dito isso, sorriu e foi até uma mesa da cafeteria. Lá, pegou seus papéis cheios de garranchos incompreensíveis. Dediquei-me conscientemente a fazer um delicioso cappuccino e o levei à mesa com a rigidez de um mordomo inglês. A xícara fumegante aterrissou na mesa dele sem emitir um único ruído. Estava voltando ao meu lugar, com a mesma discrição, quando Brian me deteve. — Queria propor uma coisa. Receberemos daqui a dez dias a visita de um grupo de espanhóis, e estive pensando que você poderia guiá-los. — Mas… ora, não consegui ir a nenhuma das aulas! — disse, intimidada com aquela proposta. — Não saberia o que dizer. Brian me olhou fixamente, com aqueles olhos que me desmontavam. — Isso não é problema. Se quiser, nos encontramos e, em dois dias, eu lhe conto todas as anedotas que fazem sucesso com os visitantes. Quanto ao resto, você sabe muito mais do que imagina, acredite em mim. Quando terminou de dizer aquelas palavras, sua expressão foi rapidamente da tranquilidade ao desconforto. Um segundo depois compreendi a razão. Alessio havia entrado na cafeteria e me capturou com o braço como se fosse um polvo, desafiando Brian com o olhar. — De acordo com meus cálculos, devem faltar dez minutos para que a liberem, bambi. Antes que eu pudesse responder, Brian já tinha se levantado da mesa e, depois de recolher suas coisas, abandonou o restaurante. — Você, por acaso, não sabe que é falta de educação interromper uma conversa dessa maneira? — censurei-o, incomodada. Apesar de tudo, uma parte de mim se alegrava pelo fato de Brian ter me visto com meu lindo amigo suíço. Angie também acertara nesse ponto: segundo ela, se me envolvesse com Alessio, devia fazer Brian ficar sabendo. Era cruel, eu sabia, mas esse plano amenizou meu sentimento de inferioridade diante daquele cientista inalcançável. — É a segunda vez que a salvo das garras desse nerd. — Muito obrigada, cavalheiro-salvador-de-princesas-em-apuros, mas me espere lá fora se não quiser que eu leve outra bronca do gerente. — Seus desejos são ordens, princesinha.
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Em seguida, cumprimentou um grupo de estudantes que estava bebendo cerveja no terraço e se acomodou em uma mesa vazia para brincar com seu iPad. Em uma mesa mais distante, estava Klaus com dois summer students. Aproveitei meus últimos minutos de trabalho para perguntar se queriam mais alguma coisa. Meu amigo alemão usava uma camiseta engraçada, com a frase “Ninguém disse que seria fácil”, assinada por Dido, o cara do refrigerante Seven Up. — Estou farto de transformações matemáticas — gritou Klaus, fazendo um gesto para que me sentasse. — Tome uma cerveja conosco e obrigue estes dois a mudarem de assunto. Se voltar a ouvir a palavra hamiltoniano, vou dar um tiro na minha cabeça. Meu turno estava quase no fim e, assim, me dei o luxo de me sentar com eles. — Bem, espero que seu namorado não se importe… — acrescentou Klaus, com malícia, inclinando a cabeça em direção ao suíço. — Meu namorado? Alessio não é meu namorado, é apenas um amigo. — Sim, claro, mas ninguém tira dele essa cara de “não-se-aproxime-da-minha-namorada”. — Não diga besteiras, Klaus. — Só estou avisando. Age como um ciumento macho italiano. Deixe as coisas claras ou verá as consequências. Ignorando Klaus e seus amigos hamiltonianos, acabei de fechar o caixa antes de limpar as últimas mesas. Ao passar pela que Brian havia ocupado, eu me dei conta de que, na pressa, ele tinha esquecido uma pasta com seus papéis. Peguei-a para entregar a ele na próxima vez que aparecesse por ali. Fui logo mudar de roupa no armazém, embaixo de uma lâmpada. Guardei a pasta de Brian na minha mochila e tirei a roupa para trocá-la. Angie tinha me submetido, pela segunda vez, a uma sessão intensiva de estilo. Abotoei o fino vestido de algodão que havia me emprestado. Era simples, mas muito bonito, de um vermelho intenso que realçava minha pele morena. Ao me olhar no espelho que usávamos para mudar de roupa, dei uma volta completa. Não estava nada mal. Tinha que dar razão a Angie, que insistiu: “Por acaso, você não percebe o efeito que causa nos garotos?”
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Sem dúvida, ela queria me animar. Eu tinha noção era do grande efeito que ela causava em todos. Suspirei, resignada. Maquiei um pouco os olhos e dei uma olhada em minhas pernas. Angie estava contente por eu tê-la deixado me depilar totalmente. Segundo ela, significava uma boa predisposição de minha parte, apesar de eu ter recusado seu conjunto de renda preta, o que não indicava um final inesquecível. Olhei o decote para ver, pela última vez, meu sutiã branco. Não era tão sexy como o que Angie queria que eu usasse, mas também não tinha a intenção de exibi-lo a ninguém que não fosse a minha amiga pirada. Por último, tirei da mochila uns sapatos de salto médio. Eram muito bonitos e também serviam para caminhar: dava para andar com eles sem se desequilibrar. “Se usar sandálias rasteiras, vai pensar que não quer nada com ele”, dissera Angie, “e esta noite é definitiva: se não ficar com Alessio, não deixarei você entrar em nosso quarto.” Aquele ultimato me impeliu a sair da despensa para cumprir meu compromisso. Antes, enfiei meu uniforme de trabalho na mochila e voltei a ver os papéis de Brian, que tinha guardado um pouco antes. — Até mesmo hoje à noite vocês querem estar presentes, não é mesmo? — disse aos papéis. — Pois não vou lhes dar a menor bola! Coloquei a mochila nas costas, enquanto me preocupava que aquela coisa de conversar com objetos inanimados se transformasse em um hábito. A loucura dos cientistas estaria me contagiando? Quando saí do restaurante, Alessio já me esperava, apoiado em sua moto. Não disfarçou sua alegria ao me ver tão arrumada, ao contrário do que fizera Brian em nosso primeiro encontro… se é que aquilo poderia ser chamado de encontro. — Você vai estragar a noite, bambi. O plano era ver as estrelas, mas você vai eclipsar todas.
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21. A ORIGEM DO UNIVERSO Quando chegamos ao lugar que havia sido um observatório de astronomia, um homem baixinho nos esperava na porta. Devia ter por volta de trinta anos. Alessio o abraçou, e falaram em italiano entre eles. Entendi que meu acompanhante lhe agradecia por ter dado as chaves daquele edifício abandonado. O homenzinho piscou um olho para ele antes de se afastar rua abaixo. Me senti um pouco incomodada. Quem Alessio teria dito que eu era? O sorriso ardiloso com que havia se despedido me fez ficar desconfiada. Minhas reticências se dissiparam assim que entramos no observatório. Era repleto de relíquias científicas. O andar térreo abrigava uma espécie de museu de história da astronomia. Pude reconhecer um astrolábio e uma esfera armilar. Identifiquei-a porque havia sido inventada por Eratóstenes, um cientista sobre o qual havia feito um trabalho de pesquisa na escola. Aquele artefato formado por anéis móveis era usado para mostrar o movimento das estrelas ao redor da Terra. Na Idade Média, era um símbolo do conhecimento e da sabedoria. Por isso é muito comum encontrá-lo nos retratos das pessoas ricas da época. — Sabia que ficaria encantada — disse Alessio, satisfeito com o efeito que aquele pequeno museu produzira em mim. A sala redonda estava levemente iluminada, mas a figura esbelta de meu acompanhante se assemelhava à de um herói de Jules Verne prestes a realizar uma proeza. De fato, depois da noite no clube de jazz, era algo assim o que pretendia desta noite. Por alguns momentos, me perdi em seus olhos castanhos. Uma atração puramente física me arrastava irremediavelmente para ele.
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“Seria tão fácil beijá-lo agora mesmo…”, pensei. Por fim, mordi o lábio e me contive. Para evitar fazer uma besteira, desviei meus olhos dos dele e continuei inspecionando as peças daquele museu solitário. — Você escolheu um lugar ideal para esta noite — elogiei. — Jamais me prepararam uma coisa como essa. Em cima de um pilar no centro da sala havia um sistema solar em miniatura. Eu tinha lido que aquela representação não estava, nem de longe, feita em escala. Peguei-o pelo braço para aproximá-lo daquela maquete de nosso pedacinho de galáxia. Ele pressionou suavemente minha mão, enquanto eu dizia: — Você sabia que os mapas do nosso sistema solar são um equívoco? Situam os planetas e as luas a uma distância muito curta para que as ilustrações caibam nas folhas dos nossos livros. — Não tinha a menor ideia. Eu havia aprendido aquilo em um livro de divulgação científica muito divertido: Uma breve história de quase tudo. As comparações usadas pelo autor haviam chamado tanto minha atenção que as recordava de memória. — Imagine que a Terra tivesse o tamanho de uma ervilha — provoquei, entusiasmada. — Júpiter estaria a trezentos metros, o equivalente a três campos de futebol! E deveríamos situar Plutão a dois quilômetros e meio de distância no mapa. Além disso, se nos detivéssemos ao tamanho proporcional dos planetas, Plutão seria como uma bactéria: invisível no mapa. O sistema solar é realmente enorme! Eu me sinto tão pequena quando penso nisso… — Está vendo? Por isso a chamo de bambina, minha menina. — Então me indicou a porta de um velho elevador. — Já podemos subir. Do segundo piso, uma escada em caracol dava acesso à cúpula. Quando chegamos lá em cima, fiquei hipnotizada e abri a boca como uma boba. A abóbada do telescópio estava iluminada por um círculo de pequenas velas que davam um toque mágico àquele cenário. Sob uma faixa aberta à noite estrelada, havia uma mesa com toalha e duas cadeiras. O amigo de Alessio se encarregara de preparar tudo com grande carinho. Fiquei paralisada no último degrau da escada em caracol. — Gostou? — perguntou o suíço, puxando suavemente minha mão. — É incrível! É maravilhoso, Alessio, nunca fui convidada para um jantar tão especial… Ou deveria dizer espacial?
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Nos aproximamos do grande telescópio, passando longe da mesa na qual nos esperavam duas garrafas de vinho Chianti. Alessio me ofereceu o visor para que observasse o espetáculo que pairava sobre nossas cabeças. — Está voltado para o único planeta casado. Adivinhe qual é… Fui olhar pelo telescópio já sabendo o planeta que encontraria. — Casado? Você diz isso pelo anel… É Saturno! — É assim que eu gosto, bambi, que você seja a mais esperta da classe. Dito isto, passou o braço pela minha cintura e me levou suavemente até a mesa, onde tremeluzia a chama de uma vela. Dei uma olhada de admiração nos pratos: havia um carpaccio com rúcula e pesto de entrada. Alessio abriu o vinho e serviu duas taças de fino cristal. Levantou uma delas para brindar. — Por uma noite perfeita. Brindei com ele e bebi um pouco de vinho, sem quebrar o contato visual. — Quer saber de uma coisa? — confessou. — Fico feliz em fazer o estágio aqui, em vez de ficar correndo pelos campos italianos de futebol. — Eu achava que você odiava este lugar e todos cientistas daqui — provoquei. — Tenho de reconhecer que no começo não gostava de nada, mas a cada dia me sinto mais atraído pela ciência e suas histórias. Levantou novamente a taça para fazer outro brinde em silêncio. Entendi que sua estratégia era que eu bebesse além da conta. Aceitei a brincadeira, embora tivesse começado a comer para evitar que o vinho subisse muito à cabeça. Alessio continuou com seu discurso: — De fato, quando você estava olhando por esse telescópio, me dei conta de uma coisa muito importante. — Ficou por alguns segundos em silêncio para dar mais ênfase a suas palavras. — A ciência é sexy! Não pude evitar ficar vermelha. Bebi mais um pouco de Chianti para diluir aquela timidez que me invadira. — Não passo de uma garçonete, está lembrado? Alessio voltou a encher nossas taças. Seus movimentos eram firmes e controlados. Não parecia que o vinho o afetasse. — Isso não é verdade. Vi o Moleskine onde você não para de anotar tudo o que vê no CERN. Aposto que, nessas três semanas que
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está aqui, aprendeu muito mais do que eu, que tenho me dedicado a entrevistar cientistas loucos. Dirigi, instintivamente, o olhar à mochila onde repousava minha caderneta e voltei a me lembrar da pasta de Brian. “Merda”, pensei, “agora não, não quero pensar nele, não quero estragar a noite.” Sacudi a cabeça, como se, com esse gesto, pudesse afastar a imagem de Brian da minha memória. — Está com frio? — perguntou. — Não se preocupe, foi só um calafrio momentâneo — menti. Tentei concentrar toda minha atenção em seu rosto, coisa que não era muito difícil. Diabos, ele era mesmo charmoso! — De certo modo a invejo — continuou. — Pelo menos você levará para casa a coisa mais bonita que o ser humano pode ter: o conhecimento do Universo. Eu tenho medo de ir embora daqui com as mãos vazias. — Mas… o que está dizendo? Você está entrevistando cientistas importantes, que lhe explicam as teorias deles. Eu trocaria de trabalho com você com todo o prazer… — Na realidade, nós, os jornalistas, perguntamos muito, mas não nos aprofundamos em nada. É muito comum o repórter ficar pensando na morte da bezerra enquanto o entrevistado diz de tudo um pouco. Você sabe por que Einstein ficou muito famoso em 1919? Neguei com a cabeça, levando o vinho aos lábios. Alessio conseguira o que queria. Eu já estava bêbada. — Quando a Primeira Guerra Mundial terminou, o New York Times ouviu falar da relatividade e resolveu mandar um jornalista entrevistar Einstein. Por mais insólito que pareça, mandaram o repórter de golfe de sua equipe, um tal de Crouch, que não sabia nada daquele assunto e entendeu tudo ao contrário. Entre as barbaridades que escreveu em sua reportagem, afirmou que Einstein tinha encontrado um editor para publicar um livro que só doze pessoas conseguiriam entender. A imaginação popular estreitou ainda mais esse seleto círculo, e correu o boato de que, de fato, só três homens no mundo haviam entendido a relatividade. Quando perguntaram a Eddington, um astrônomo inglês, se ele era um dos eleitos, ele meditou por alguns instantes e depois respondeu: “Espere, estou pensando em quem poderia ser a terceira pessoa.” Rimos muito daquela anedota regada pelo poderoso vinho tinto. A primeira garrafa já tinha sido derrubada. — Como o tonto do golfe — disse ele —, quando terminar o estágio, aterrissarei em um jornal esportivo e esquecerei tudo isso. No
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entanto, você pelo menos terá escolhido aqui uma carreira para o futuro. Quem me dera poder levar alguma coisa valiosa dessa estadia… — O que mais você quer? Estamos em um velho laboratório para um jantar romântico. Esta recordação não é suficiente? — Para ser sincero — aproximou-se perigosamente por cima da mesa —, a mim os planetas casados, os raios cósmicos e as anãs brancas não importam nem um pouco. Trocaria todo o Universo por um beijo seu. Tive de conter um ataque de riso ao ouvir aquela cafonice. Para evitá-lo, representei o papel de menina educada na defensiva. — Um beijo, mas… e depois o quê? — Um autor clássico afirmou que “com o beijo começa isso”. Uma história de amor é como um Big Bang, deve ter um início. Depois será preciso ver qual é o universo que essas duas pessoas serão capazes de criar. Alessio aproximou sua cadeira da minha. Eu sabia o que viria depois. No entanto, alguma coisa o impediu de se grudar em mim. Minha mochila estava entre nós dois. Olhei para ela com rancor e dei um chute para tirá-la do meio. Queria afastar Brian da minha cena romântica. Afastá-lo de uma vez da minha vida. Não permitiria que continuasse se colocando em meu caminho. Alessio interpretou aquele movimento brusco como um convite selvagem, pois me abraçou com força e me beijou. Desta vez não resisti. Minha cabeça girava. Tinha bebido demais. Deixei me levar completamente pela paixão do momento. Suas mãos imensas envolveram meus cabelos. Segurava minha cabeça com energia, enquanto seus lábios percorriam até o último milímetro do meu rosto e depois desciam pelo pescoço. Deslizei minhas mãos por seu torso. Pude sentir o corpo musculoso pelo tecido da camiseta polo. Depois o abracei enquanto lembrava o dia em que havia subido pela primeira vez em sua moto. Em seus braços, eu me sentia protegida. O tempo transcorreu muito lentamente, enquanto ele acariciava minhas coxas e sussurrava em meu ouvido galanteios em italiano que era melhor não entender. Em um momento de exaltação, Alessio arrancou a camiseta deixando descoberto seu peito viril. Distraída pela velocidade dos acontecimentos, acariciei, insegura, seu peito, que parecia palpitar ao contato de meus dedos.
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Alessio suspirou, excitado; uma de suas mãos deslizava pelo meu pescoço, embaixo do meu vestido. Começou a desabotoar os botões um a um. Quando meu sutiã branco começou a aparecer, o detive. — Não vá tão depressa. — Beijei-o para suavizar a situação. — Isso não é o acelerador do CERN. Alessio ficou perplexo por alguns instantes, seus olhos subiam lentamente do decote ao meu rosto. Suspirou, resignado. — E enquanto se expande… o que faremos? — Eu tenho tudo muito claro — respondi, abotoando o vestido. — Vamos dormir. O vinho me subiu à cabeça e amanhã trabalho no primeiro turno. Depois de apagar todas aquelas velas, coloquei de novo a mochila nas costas e saímos do observatório. Durante o tempo em que nos dirigíamos ao estacionamento, Alessio se virava a cada dois passos para me beijar, como se aquela fosse a última noite na Terra. Uma vez em cima da moto, não esperei que acelerasse para abraçá-lo com força. Chegamos ao CERN depressa. Muito depressa. Parou sua Ducati na porta do meu alojamento. Depois de descer, lhe dei o meu capacete, e ele tirou o seu. Por um momento, tive a impressão de que tentaria subir ao meu quarto, mas meu rosto descomposto pelo vinho o fez mudar de ideia. Adotando um tom muito educado, despediu-se com um último beijo e disse: — Obrigado pelas estrelas. Subi correndo as escadas até meu quarto. Entristeceu-me, embora apenas levemente, que Angie não estivesse ali para que eu contasse, em detalhes, como havia sido aquela noite. Ao me despir, percebi que cambaleava. Precisei fazer duas tentativas para pendurar o vestido de Angie em seu armário. Depois, quis tirar o uniforme da minha mochila para que não estivesse amarrotado de manhã. Quando o puxei, uma coisa caiu no chão. A pasta de Brian se abrira e todos seus papéis se espalharam pelo quarto. Mais irritada com ele que com suas anotações, comecei a catar tudo, quando meus olhos perceberam uma coisa que não eram equações matemáticas. Uma das folhas tinha o rosto de uma garota desenhado a lápis com todos os detalhes.
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Não havia a menor sombra de dúvida. A menina do retrato era eu.
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22. OS VISITANTES O barulho da xícara se espatifando no chão me deu outro susto mortal — três peças de louça já tinham sido quebradas em duas horas —, mas serviu para me tirar da melancolia em que me encontrava. Passara a manhã inteira absorta em alguns pensamentos que não me davam trégua. Aquele desenho se projetava sem parar na minha memória. Não podia acreditar no que meus olhos tinham visto… Brian se dedicara a me desenhar? A mim! Se aquilo tinha algum sentido, me escapava completamente. Olhei o retrato repetidamente, como se fosse a peça que faltava para completar, de uma vez por todas, o confuso quebra-cabeças de emoções que tinha vivido nas últimas semanas. Um fogo diferente se acendeu em mim. Podia sentir como ia ganhando terreno e enchia meu corpo de calor. Era a chama da esperança. Queria pensar que ele se importava comigo, não era apenas a júnior que precisava ser ajudada para que não se sentisse triste e só. Carregava a esperança de que estivesse atraído por mim, mesmo que fosse apenas a décima parte do que eu sentia por ele. Meu lado racional pedia prudência aos gritos. Tentava me proteger de outra cruel decepção. “Talvez simplesmente goste de desenhar e tinha ficado rascunhando enquanto tomava seu café”, advertia-me. No entanto, não havia outros retratos naquela pasta… ou havia? Apesar de a cafeteria estar muito cheia naquela manhã, fui até o armazém para examinar o restante dos papéis.
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Aquele retrato se transformara em meu buraco negro particular. O desenho me atraía irremediavelmente a uma dimensão desconhecida da qual não conseguia escapar. Nervosa, abri a pasta e comecei a folhear os papéis. Constatei, aliviada, que não havia mais ninguém no meio daquele amontoado de fórmulas e símbolos estranhos. Em seguida, fiquei por um bom tempo hipnotizada enquanto esquadrinhava cada uma das linhas do meu retrato. Estava tão fascinada com a visão que Brian havia retratado de mim que demorei alguns minutos para me dar conta de que o resto das folhas tinha algo em comum… Todas elas tinham o selo da CIA. A princípio, achei aquilo estranho, mas depois me lembrei de que Brian havia trabalhado no Laboratório Nacional de Los Álamos. Era um centro de pesquisa com alguns projetos de investigação militar. Mas, conhecendo Brian, estava convencida de que ele jamais trabalharia para tais fins. Certamente reciclou aqueles papéis, que agora estava usando para trabalhar em seus estudos científicos e também para desenhar. Para me desenhar! Outro pensamento atravessou minha mente e atingiu a felicidade que transbordava: o que faria agora com Alessio? Sentia-me culpada. Na noite anterior me envolvi com ele, como um curativo para sarar meu amor não correspondido por Brian. Como frear aquela relação? Não devia ter começado nada com ele. Foi um erro de minha parte. Agora Alessio iria sofrer as consequências de eu ter me deixado levar. — Posso saber o que está fazendo aí escondida? — gritou Angie da porta do armazém. — Fiquei com medo de que um próton gigante tivesse caído na sua cabeça e a desintegrado. Você não viu? A cafeteria está lotada, e tem uma fila de viciados em cafeína clamando por seus cappuccinos. — Já vou — respondi, apressando-me a guardar os papéis na pasta. — Só vim para dar uma notícia espetacular antes de entrar na aula. Temos uma parte de plano para amanhã: vai ter uma festa em Saint Genis, em uma casa alugada por uns pós-doutorandos. Será atômica! As festas que acontecem ali são famosas por seu descontrole. Estarão lá os melhores do CERN, e nós não vamos faltar, não é mesmo, júnior? Por uns momentos estive tentada a sair dessa. A última coisa que me apetecia era uma festa, mas logo pensei que, se todo mundo ia, talvez Brian também estivesse presente.
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— Claro que iremos! — disse, animada. — Não podemos perdê-la. — Estou voltando para a aula. Depois a gente se fala! Além do mais, a partir de agora você estará em boa companhia… — Alessio entrava no restaurante. — Quero que você me conte tudo o que aconteceu ontem à noite. Não ache que vai escapar! Forcei um sorriso enquanto ela saía em disparada para a aula. Alessio fez uma tentativa de beijar meus lábios. Afastei-me a tempo de aquele beijo aterrissar na minha bochecha e não na minha boca. Sabia que o movimento fora brusco, mas não queria prolongar aquilo além do necessário. Apesar de minha fria recepção, Alessio não parecia estar com o orgulho ferido, pois me acariciou a mão enquanto perguntava: — Como passou a manhã, bambina? — Um pouco atordoada… devido ao sono, claro. Sentia-me incapaz de olhá-lo nos olhos. Suas carícias faziam com que eu me sentisse tremendamente incomodada e culpada. Nesse mesmo instante, vi Brian entrar na cafeteria. Maldição! Tinha certeza de que vira o gesto de Alessio. Em vez de se aproximar do balcão, foi diretamente à última das mesas, como se não quisesse ser visto. — Esta manhã o restaurante está lotado. Quer que eu prepare alguma coisa e a leve à mesa? — ofereci a Alessio. Por sorte, aquela desculpa era mais do que certa e, assim, ele se afastou e se deteve a brincar com seu iPad. Aproveitei que estava distraído com aqueles estúpidos Angry Birds para me aproximar de Brian, que me saudou com tristeza. — Bom dia, Laila. Ao olhar em seus olhos, enrubesci. Queria perguntar o porquê daquele desenho, que não combinava com suas constantes evasivas quando me aproximava dele. Queria dizer que desejava transpor suas muralhas geladas e conhecer seus sentimentos. Saber o que pensava. Dizer: O que você quer de mim, Brian? Desejava confessar que jamais me sentira tão atraída por alguém. É claro que não me atrevi a dizer nada disso. — Pensei melhor na história das visitas guiadas — comecei, de repente. — Aceito sua proposta. Quero que me ensine o que preciso saber para me transformar em guia e acompanhar os visitantes que você comentou dois dias atrás. — Claro — respondeu, perplexo diante do meu súbito entusiasmo. — Minha oferta continua de pé. Eu a ajudarei no que for
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necessário. Embora acredite que você já sabe o básico para se defender sozinha. Tenho certeza de que anotou em sua caderneta mais anedotas do que eu mesmo conheço. — Isso é impossível… Suas palestras são apaixonantes! Ficamos em silêncio. Por alguns instantes, perdi a noção do tempo. Sentia-me reconfortada ao seu lado. — Bem… — Mudei de assunto. — Ontem você esqueceu uma pasta aqui. Encontrei quando estava limpando as mesas. Está guardada no armazém. — Você abriu? — empalideceu. Estava visivelmente nervoso. Tinha tanto medo assim de que eu descobrisse aquele desenho? Sem dúvida havia me visto com Alessio. Qualquer um pensaria, como Klaus me fizera notar no dia anterior, que éramos mais do que amigos. Talvez ficasse envergonhado por eu ter descoberto seus sentimentos em relação a mim, quando, a seu entender, eu não poderia correspondê-lo. Senti o impulso de me sentar a seu lado, colocar seu rosto em minhas mãos e confessar que estava completa e irremediavelmente apaixonada por ele. E lhe diria que não tinha que se envergonhar de nada. Tampouco o fiz. Exatamente nesse momento fomos interrompidos por um pesquisador afro-americano. — Brian, lá fora estão uns caras com pinta de Rambo perguntando por você. São ianques. Apareceram na sua sala e os acompanhei até aqui. Estão dizendo que querem falar com você, mas não me disseram quem são. Olhei para a porta. Havia dois homens corpulentos vestidos com terno escuro, gravata e pasta executiva. Contrastavam com a informalidade própria dos cientistas do CERN. Percebi um indício de terror nos olhos de Brian, embora tenha durado apenas alguns segundos. Depois reassumiu aquele olhar frio e indiferente que eu conhecia tão bem. Sem se despedir de mim, saiu bruscamente da cafeteria em direção àqueles dois armários. Fiquei pasma no meio do restaurante. Alessio se encarregou de me fazer voltar à realidade. — O que está acontecendo, Laila? Parece que viu um fantasma. — Esqueci de entregar a pasta do Brian — disse a primeira coisa que me ocorreu, para dissimular meu estado de choque. — E não posso deixar o restaurante agora… Não sei como vou devolvê-la.
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— Não tem problema, bambi. Deixe que eu entrego. Estou sem fazer nada. Voei até o armazém, tirei a pasta da minha mochila e entreguei-a a Alessio. — Vai rápido, talvez precise dela para seu trabalho. — Seus desejos são ordens, princesa. Eu me arrependi imediatamente de ter feito aquilo. Como Brian se sentiria quando Alessio lhe entregasse a pasta? Além disso, me doía na alma renunciar àquele retrato.
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23. NINGUÉM CONHECE NINGUÉM Angie entrou no quarto e bateu a porta. — Você já ficou sabendo da grande notícia, júnior? — Está falando da festa desta noite? Mas… você já me deu a notícia ontem! — Não! Estou me referindo aos neutrinos. É alucinante, incrível, atômico! — Acho a festa mais interessante do que esses neutrinos. Não combinava com ela dar mais importância ao mundo subatômico do que à festança daquela noite. A única coisa que eu sabia dos neutrinos era que eram partículas muito pequenas, capazes de atravessar tudo, o que os torna muito difíceis de detectar. — Estou vindo da sala solene do CERN. Acabaram de apresentar os resultados. Se estes caras não se equivocaram… vai ser a maior confusão! Mas em que mundo você vive? — perguntou, chocada. — Todos estão falando disso hoje, inclusive na cafeteria. É a notícia do século! E os boatos costumam viajar mais depressa do que a luz… Angie tinha razão. Ultimamente vivia em um mundo onde só existíamos Brian, eu e o desenho que ele havia feito de mim em segredo. — Angelina, faça o favor de se acalmar e comece pelo princípio. Não sei do que você está falando! Inspirou profundamente e se sentou na cama com as pernas cruzadas em postura de lótus. Eu fiz a mesma coisa. — Os cientistas do projeto OPERA7 chegaram ao feito de suas vidas. Para estudar os neutrinos, enviam-nos em linha reta através da terra do CERN ao Gran Sasso, na Itália. Ali se chocam com um 7 Sigla para Oscillation Project with Emulsion-tRacking Apparatus. (N. da A.)
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detector gigante. Algumas medições revelaram que esses neutrinos ganharam a corrida contra a luz. — O que isso quer dizer? Sabia que absolutamente nada podia viajar mais rápido do que a luz no vácuo: a cerca de trezentos mil quilômetros por segundo. Segundo Einstein, nada pode superar esse limite de velocidade cósmica. Sem exceção. — Se os resultados estão corretos, os neutrinos percorreram os 730 quilômetros do trajeto em sessenta nanossegundos8 menos que a luz no vácuo. A partir de agora teremos que reconsiderar o significado da palavra “impossível”. O que acontecerá com a teoria da relatividade? Irão por água abaixo cem anos de ciência? Apaixonante! — Bem, os filósofos dizem que toda verdade é provisória. Talvez tenha chegado o momento de dar um passo à frente! — Sim, mas… para onde? — Angie mudou de assunto drasticamente. — Agora vamos nos concentrar no segundo grande assunto de hoje. Você já escolheu seu vestido para esta noite? Eu ainda não me decidi. Então arrancou os jeans e experimentou um vestidinho mínimo, de um tecido leve. A notícia dos neutrinos já entrara para a história. — Bem… — recordou de repente —, seu príncipe encantado virá pegar você de moto para ir à festa, né? Terei de ir sozinha, que droga! Ponho este vestido ou o conjunto com saia? — Alessio não é meu príncipe encantado — protestei. — E quase preferiria que fôssemos os três juntos a essa festa. Não gosto de que ele se comporte como se fosse meu namorado. Quanto ao modelito… tudo lhe cai muito bem, Angie, e você sabe. Minha companheira de quarto já trocara de roupa. Fez uma volta simpática para me mostrar o conjunto de saia bem justinha e camiseta apertada com um decote vertiginoso. Deslumbrante. Então vi meu rosto esquálido no espelho. Apesar da insistência de minha amiga para que vestisse alguma coisa sexy, eu escolhi uns jeans simples e uma camiseta de alça. Não queria nem podia competir com ela. Além do mais, não estava com humor para modelitos. — Não entendo você. — Angie me escaneou com seus olhos azuis. — Seu amigo suíço é muito gostoso. Pode me contar de uma vez o que a impede de se atirar em seus braços? 8 1 nanossegundo = 0,000000001 segundo, ou seja: um segundo dividido em um bilhão de partes. (N. da A.)
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Sentei-me na cama. Respirei fundo antes de confessar o que me torturava havia dois dias. — É por causa do Brian. — Jura? — respondeu, atônita. Podia sentir minhas bochechas ardendo. Não sabia como colocar em palavras o quanto o achava maravilhoso. Tentei explicar: — Há alguma coisa especial nele, oculta e vulnerável. É como se guardasse um mistério que o tortura e não permitisse que ninguém se aproxime. No entanto, às vezes se abre timidamente para mim. Como as crianças pequenas quando brincam de esconde-esconde, sinto como se no fundo queira que o descubra. Angie acompanhou minhas palavras com uma expressão severa. — Você está preparada para ter uma grande desilusão? Brian deve ser como todos. Por fora, é uma bela caixa de presente. Quando abri-la, encontrará outra igual, mas menor, e, assim, uma depois da outra, sucessivamente, até descobrir que não há nada lá dentro. Nada além da fantasia que criou ao seu redor. — Foi aumentando seu tom de voz. — Então compreenderá que é como o resto dos cientistas. Só se interessa por suas pesquisas. Não fará você feliz, Laila, e eu não quero que sofra. Percebi que a ira tomava conta do meu corpo. Ela não tinha a menor ideia, não compreendia o que havia no âmago de Brian. As palavras brotaram de mim sem que tivesse parado para pensar no que estava dizendo: — Pelo amor de Deus, Angie, você sempre insiste em culpar seu pai pela infelicidade de sua mãe. Custa tanto aceitar que foi ela quem abandonou vocês? Por alguns instantes, ao vê-la petrificada diante de mim, achei que ela ia quebrar minha cara. Não o fez, mas ver seu rosto se descompor devido à dor que minhas palavras haviam causado, me feriu muito mais do que qualquer soco. Arrependi-me logo de ter dito aquilo. Tentei ajeitar as coisas, mas não tive oportunidade. Angie saiu do quarto, fechando a porta com uma suavidade que se traduziu em uma forte culpa em meu coração. Desabei na cama, abatida, incapaz de ver outra coisa que não fosse uma fenda no teto. Representava cruelmente o abismo que acabara de se abrir entre Angie e eu. Tudo por minha maldita culpa.
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Não sei por quanto tempo permaneci deitada, mas quando me dei conta só faltavam quinze minutos para que Alessio me pegasse. Teria de esconder de qualquer maneira meus olhos chorosos. Exatamente quando estava terminando minha luta com a maquiagem, meu acompanhante me ligou para dizer que estava esperando na porta do alojamento. Desci as escadas sem presa, pensando no que poderia fazer para que minha relação com Alessio voltasse ao seu estado normal. Desejei ter uma borracha emocional para apagar qualquer sentimento que tivesse por mim. Sobretudo depois daquele maravilhoso jantar no observatório, quando correspondi a seus beijos apaixonados com o cruel propósito de esquecer Brian. Tive de recordar a lei do carma, segundo a qual os atos, bons ou ruins, têm consequências do mesmo teor em nossas vidas. Provavelmente, meu castigo cármico por ter usado Alessio daquela maneira era ter de lidar com ele esta noite e deixar claro que não queria nada além da sua amizade. E ali estava. Na porta do alojamento, encostado, indolente, em sua Ducati. Evitei habilmente sua tentativa de beijar meus lábios, colocando minha bochecha diante dos seus. — Mau dia no restaurante? — perguntou com seu meio sorriso. — Uma briga com minha companheira de quarto. — Quer que dê um sumiço nela? — brincou ele. — Faremos com que achem que foi um acidente. — Foi culpa minha — confessei, triste. — Abri a boca mais do que o necessário e a ofendi. — Ninguém consegue ficar chateado com você por muito tempo, bambi. Tenho certeza de que vai passar. Suas palavras não me convenceram. Angie era tão inteligente como emocionalmente impulsiva. Não sabia o quanto minhas palavras a haviam ferido, mas sua saída silenciosa me dava a entender que não passaria tão depressa. Depois de cruzar a fronteira com a França, Alessio continuou dirigindo imprudentemente, e chegamos aos arredores de Saint Genis em menos de dez minutos. Alessio corria quase tanto quanto as partículas que naquele momento estavam sendo aceleradas a cerca de cem metros embaixo da terra. Paramos em um parque a algumas ruas da casa. — Estacionei aqui para a gente ir caminhando até a festa. Quero falar com você.
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Por alguns instantes, temi que tivesse chegado a hora de ter uma conversa difícil com ele, de dizer que não queria que nossa relação seguisse o rumo da noite que tínhamos passado no observatório. Andamos em silêncio por alguns metros. Eu procurava as palavras certas para não feri-lo, mas, aparentemente, seu discurso interno estava muito distante do meu. — Tenho que pedir desculpas — disse, finalmente, quebrando o gelo. Aquela desculpa me pegou desprevenida. Talvez fosse mais fácil do que pensava “cortar” aquela relação. — Pelo que aconteceu no observatório? Não tem nada não. Eu também beijei você, a culpa é dos dois. — Pedir desculpas por beijá-la? — disse, espantado. — Non capisco… Minhas desculpas são por meu instinto jornalístico, que foi mais forte do que eu. Traí sua confiança. — Posso saber de que diabos está falando? Agora sou eu que non capisco. — Quando você me entregou ontem a pasta de Brian, não a devolvi imediatamente. Abri e li os papéis antes de levar ao escritório. Percebi o calor tingir meu rosto, parte por vergonha e parte por estar cheia de ira. Sem dúvida, tinha visto meu retrato. Parei de andar e olhei para a cara dele, enquanto minha irritação ia aumentando. Longe de estar constrangido por aquela intromissão, Alessio tinha o semblante sério. Muito sério. — Pois não parece que lamente tanto ter fuçado os papéis dos outros — recriminei. — Na realidade, não. Não lamento nem um pouco. Embora creia que o que encontrei neles lhe diga respeito. Suas palavras me irritaram ainda mais. Sem dúvida tinha visto meu retrato. — O fato de Brian me desenhar não é da sua conta. Além disso, eu e você não somos namorados nem nada do tipo. Aquele beijo do outro dia não significa que agora você possa se intrometer na minha vida dessa maneira. Minha intenção de deixar nossa situação clara com o maior tato possível tinha ido para o espaço em menos de cinco segundos. Estava claro que aquele não era o dia mais diplomático de minha vida. — O que me preocupa não é esse desenho — replicou ele, imune ao sermão. — O retrato é bonito porque a modelo também é.
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Não tem nenhum mérito especial. O que me congelou o sangue foi o que havia no restante dos papéis. Sua resposta me deixou confusa e permitiu que a curiosidade vencesse a irritação. — O que havia nos papéis? — Pelo que pude investigar, são estudos científicos sobre uma arma de destruição massiva. Então me lembrei de ter visto o selo da CIA naquelas folhas. — Uma arma de destruição massiva? Do que você está falando, Alessio? — Ao que parece, seu amigo Brian trabalhou no Laboratório Nacional de Los Álamos desenvolvendo uma nova tecnologia que, nas mãos dos militares, será devastadora. — Você não sabe o que está dizendo. Não conhece Brian! É a pessoa mais consciente e responsável que conheço. Sempre fala sobre o bem que a ciência pode fazer à humanidade. Não combina nem um pouco com o que você está me dizendo agora. — Tem certeza de que o conhece tanto assim? Suas palavras me fizeram desconfiar de tudo e de todos. Brian e seu caráter tão reservado, como se sentisse o perigo nas proximidades… Seria devido àquele segredo que guardava com tanto esmero? Tratava-se de um cientista tão irresponsável quanto hipócrita? Como se atrevera a me dar lições de ética e ciência, se ele mesmo oferecia seu cérebro a objetivos tão horríveis? Alessio deve ter lido a confusão em meu rosto, pois me desferiu outro golpe. — Ontem, na cafeteria, as duas pessoas que vieram procurá-lo eram militares americanos. Suponho que queriam se reunir com ele para saber como estava avançando em suas pesquisas. Lembrei como Brian ficara violento quando eu disse que a pasta com seus papéis estava comigo. “Você a abriu?”, perguntara-me. Sua expressão não era de vergonha pelo fato de que eu tivesse visto meu retrato; na verdade, temia que tivesse descoberto o sinistro tema de suas investigações. O desenho não significava tanto para ele. Talvez não significasse absolutamente nada. Quem era Brian? E se Angie tivesse razão, e ele não fosse nada além de uma caixa de presente vazia? Ela tentou me avisar e eu, como resposta, feri-a profunda e cruelmente com minhas palavras corrosivas. Alessio estava parado na minha frente, observando meu rosto em uma tentativa de ler meus pensamentos. “Não puna o mensageiro”, tive de recordar.
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— Ninguém conhece ninguém, não é mesmo? — Olhei-o nos olhos, desafiando-o. — Nem sequer conheço você. — Eu sou um livro aberto, Laila. Não escondo papéis confidenciais, não trabalhei em Los Álamos para os militares, nem desenvolvi pesquisas que comprometem a paz mundial. — Com isso que me disse, acabou de roubar minha paz. Percebi que estava ficando sem forças. Eu me sentia tão confusa! A ideia que tinha de Brian, inclusive meus sentimentos em relação a ele, desmoronavam como um castelo de cartas. Por quem havia me apaixonado? Estava claro que não pela pessoa que era na realidade, mas, como Angie me avisara, pelo que havia projetado nele. Nesse momento, Alessio me abraçou. Não resisti, pois me apertou justo quando minhas pernas ficaram sem forças para me sustentar. — Se me preocupo com você, é porque a amo — sussurrou ao meu ouvido.
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24. VOCÊ NÃO ENTENDE NADA A casa era enorme. Cada um dos três andares tinha o dobro do tamanho do apartamento de Sevilha onde eu vivia com meus pais. Servia como alojamento a nove funcionários do CERN, dois summer students, cinco estudantes técnicos e dois doutorandos. Quando chegamos à festa, eu ainda estava abalada pela notícia bombástica que Alessio me lançara minutos antes. Tive de me esforçar para esboçar um sorriso. Simplesmente assentia com a cabeça quando as pessoas se aproximavam para nos saudar. A cozinha estava cheia de jovens que pegavam bebidas em uma enorme geladeira metalizada. A sala de jantar, muito ampla, estava abarrotada de gente. Conhecia muitos, se não todos, da cafeteria do CERN. Embora não estivesse com vontade de conversar com ninguém, me incomodava ainda mais a ideia de continuar conversando com Alessio. Precisei me empenhar muito para começar a conversar com um sujeito que era assíduo no restaurante, um grande viciado em cafeína. Depois sugeri a Alessio que fôssemos procurar alguma coisa para comer. No centro do salão havia uma longa mesa cheia de pratos frios: salada de massa, queijos, patês, batatas chips e sanduíches variados. Por sorte, consegui reconhecer Arthur apoiado na mesa. Fiz um sinal a Alessio para que fôssemos cumprimentá-lo. — Olá, meninos — Saudou-nos em inglês. — Já contaram pra vocês a piada ruim do dia? — Vá em frente — animei-o. Era disso que estava precisando, de alguma bobagem para que as ideias que se atropelavam em minha mente descansassem.
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— Se vai fazer outra piada de mau gosto com os neutrinos — respondeu meu acompanhante —, é melhor se poupar. Acho que já ouvi todas. Surpreendeu-me que Alessio tivesse sido tão antipático. Ele nunca deixava de aparentar que tinha tudo sob controle. Depois de lhe dirigir um olhar fulminante, pedi ao tímido Arthur que nos contasse sua piada. Ele contou, embora visivelmente incomodado ao perceber nosso péssimo ânimo. — Quem é? Um neutrino. Toc, toc! Ao ver que não ríamos, disse: — Pegaram? Recua no tempo… É por toda a confusão que está acontecendo por causa dessas partículas… Vocês sabem, há quem ache que, ao ultrapassar a velocidade da luz, se viaja ao passado. Bem, dá no mesmo… É muito ruim! Nesse momento, chegaram Chantal e Pierre. Acho que pela primeira vez Arthur ficou feliz de verdade ao vê-los, pois pelo menos quebraram o clima desconfortável que havia se criado. Os três físicos começaram a comentar a notícia. Alessio e eu escapulimos. Ele porque não tinha nenhum interesse nas últimas descobertas do CERN, e eu porque não era capaz de suportar Chantal nem mais um segundo. Subimos ao primeiro andar, onde havia um grande quarto transformado em uma pequena sala de dança. Um sujeito de cabelos afro manipulava uma mesa de som ao mesmo tempo que controlava um projetor de luz. No centro daquela pista improvisada, encontrei Angie. Estava completamente bêbada e dançava como se estive possuída. Sem dúvida me viu, mas resolveu me ignorar. Continuava aborrecida comigo. Depois de ter conhecido o segredo de Brian, a verdade era que eu tampouco me sentia com forças para me reconciliar com ela. Alessio atravessou a sala para pegar duas cervejas. No meio do caminho, foi interrompido por Angie, que começou a dançar com ele. Mais que dançar, aquilo era se esfregar. O jornalista se afastou dela mais bruscamente do que o necessário, mas ela não pareceu se ofender. Para excitar três garotos que estavam cercando ela e ofereceram outra cuba libre, Angie tirou sua camiseta de alça e exibiu o sutiã de renda preta. Por uns instantes senti que precisava pegá-la pelo braço e levá-la para casa, mas meu acompanhante me ofereceu uma segunda cerveja e me disse:
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— Fico feliz que você não tenha adotado os hábitos de sua companheira de quarto. É patético ver uma garota bonita bêbada desse jeito e fazendo um papel ridículo. Continuemos o tour pela casa — acrescentou, puxando-me para me tirar da discoteca improvisada. — A música está muito alta. No segundo andar ficavam os dormitórios. Vimos um casal se beijar fogosamente a caminho de um dos quartos. Por alguns instantes, me senti muito irritada. Avistei um brilho febril nos olhos de Alessio e, por isso, propus: — É melhor descer. Pelo menos lá há algo para comer. Quando estávamos descendo a escada, reconheci uma voz. Estava conversando com um grupo de estudantes. Percebi notáveis diferenças nele. Usava uma camisa elegante e jeans novos. Provavelmente também havia passado pelo cabeleireiro, pois estava com os cabelos bem-arrumados e havia tirado aqueles óculos horríveis. Além sua mudança de look, ainda se via um esplêndido sorriso, pois estava fazendo uma coisa que adorava: explicando aos seus ouvintes os princípios da relatividade que seriam colocados em xeque, se os resultados da insólita velocidade dos neutrinos fossem corretos. Por alguns instantes, fiquei sem respiração. Jamais o havia visto tão charmoso. Pude sentir, mais uma vez, a misteriosa atração que Brian exercia em mim, uma força muito mais intensa do que a gravidade que me prendia à Terra. Até pensei que meu corpo reagiria aproximando-me irremediavelmente dele, como se não tivesse outra opção. “Não deixe que a domine”, ordenei para mim mesma, enquanto recuperava o fôlego. Para me proteger, me apeguei ao que estava mais perto: a mão de Alessio. Tinha consciência de que aquele gesto teria dois efeitos. Em primeiro lugar, estava enviando uma mensagem incorreta a Alessio. Por outro lado, Brian acharia que a minha relação com o jornalista era séria. Incentivado pelo meu repentino gesto, Alessio me puxou para que nos uníssemos ao grupo ao qual Brian estava dando sua aula magna. Deixara de considerá-lo um rival. — Só foram sessenta nanossegundos a mais — interveio uma moça que babava diante de Brian. — É preciso tão pouco tempo para derrubar uma teoria tão firme? — Vamos olhar por uma outra perspectiva — respondeu ele. — Se essa corrida tivesse sido disputada pela luz e um neutrino, o
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segundo teria vencido por uns dezoito metros. E isso não é tão pouca coisa, não é verdade? Além disso, a teoria da relatividade proíbe ir mais rápido que a velocidade da luz no vazio. É como um limite cósmico que ninguém conseguiria superar, talvez até hoje… — Devemos ser prudentes com estas medições — acrescentou um estudante de aspecto ressabiado. — A comunidade científica deve reproduzir a experiência para ver se chega aos mesmos resultados… Se isso acontecer, teremos de espremer os neurônios tentando encontrar uma explicação razoável para este fenômeno. — E essa história de viajar no tempo? — perguntou de novo a moça que babava, por quem eu comecei a sentir antipatia — Dizem que os neutrinos, ao superar os limites, estariam viajando para trás… ao passado! — A teoria da relatividade — esclareceu Brian, que não tinha consciência do efeito que criava no público feminino — nos diz que, à medida que andamos mais depressa, o tempo se estica e o espaço se encolhe. Quando você se aproxima da velocidade da luz, os relógios andam cada vez mais devagar. Até mesmo as batidas de seu coração se desacelerariam se viajasse em uma nave interestelar, de maneira que envelheceria mais lentamente do que aqueles que ficassem em terra. — Se estas viagens pudessem ser feitas, as empresas de botox faliriam — disse, rindo estupidamente uma lourinha que não parava de paquerá-lo. — Quanto mais nos aproximamos da velocidade da luz, mais lentamente o tempo passa — recapitulou Brian com um sorriso. — Até que atinjamos trezentos mil quilômetros por segundo, que é mais ou menos a velocidade da luz. Então o tempo se deteria… e, se fosse dado um passo mais além, teoricamente o tempo passaria a andar para trás… No entanto, ninguém pode dizer com exatidão o que aconteceu. Talvez os neutrinos tenham pegado um atalho para outra dimensão… quem sabe? Devemos continuar investigando. A ciência continuará nos dando respostas, às vezes surpreendentes, sobre o fantástico Universo onde vivemos. Ao ouvir aquele discurso, senti que a ira tomava conta de mim. Como podia exaltar as virtudes da ciência? Estava defendendo suas pesquisas como se seu objetivo pessoal fosse levar o ser humano às estrelas, em vez de à autodestruição. Brian notou nossa presença neste exato momento. Percebi que seu olhar se dirigia a minha mão, que Alessio estava segurando. Depois me olhou nos olhos.
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Por mais cruel que fosse, fiquei feliz com a surpresa que vi em seus olhos. Mas aquela dor só podia ser fingimento. Eu tinha deixado de acreditar em suas palavras e em seu jeito vulnerável. Quando se aproximou, eu não quis soltar a mão de Alessio. Teria tempo de esclarecer nossa situação mais tarde. — Posso falar um minuto com você? — perguntou Brian para mim, antes de se dirigir a meu companheiro. — Você se importa? Serão apenas alguns segundos. — Laila tem liberdade para conversar com quem quiser. Atravessada pelo olhar furioso de Alessio, acompanhei Brian ao jardim da casa. Haviam se formado pequenos grupos em volta da piscina. Animados pelo álcool, alguns tinham desafiado o frio da noite e se atirado nus na água. Brian foi direto ao ponto: — Ontem achei estranho seu amigo ter vindo me entregar a pasta que esqueci na cafeteria. Pensava que só você tinha visto. — Pensei que aqueles papéis eram importantes, por isso fiz que chegassem a você o mais rápido que pude. Dirigi o olhar à piscina, onde os farristas nadavam e gritavam, animados. Uma mistura de vergonha e raiva me impedia de olhá-lo nos olhos. Ele voltou ao assunto, muito sério. — O que você viu na pasta? — Deixe que eu faça uma pergunta. — Passei à ofensiva. — Quem eram aqueles caras que estavam procurando por você na cafeteria? — Quem? — disse, desconcertado. — Você sabe muito bem de quem estou falando. — Ah, claro… — titubeou. — Eram apenas dois sujeitos que conheci quando trabalhava em Los Álamos. Estavam visitando o CERN e quiseram passar para me cumprimentar. Diante de tantas mentiras, explodi: — Além de hipócrita, você é um mentiroso. Está há semanas me dando lições de moral sobre as virtudes da ciência e de como é importante para a evolução da humanidade, quando a usa para desenvolver armas de destruição em massa. Ou por acaso os caras de ontem não eram militares? Os papéis da sua pasta tratavam disso, não? É o único motivo que o leva a se preocupar com a possibilidade de que tenhamos visto suas anotações.
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Brian ficou mudo. Nem sequer tentou se defender de meu ataque. — Estou vendo que você já fez seu julgamento a respeito de tudo. — Limitou-se a dizer antes de voltar para a casa, deixando-me plantada no jardim. — Mas não entendeu nada.
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25. UMA EM CADA OITO Petrificada no jardim, contemplei, condoída, Brian desaparecer no interior da mansão. Com minha acusação, eu o afastara definitivamente de mim. Consegui até mesmo visualizar suas muralhas defensivas se levantarem, altas e inexpugnáveis, deixando-me para sempre no outro lado. Havia ficado sem estrela e, portanto, desprovida da órbita que dava sentido aos meus movimentos. Eu agora era um planeta errante condenado a vagar pelo vazio cósmico, um cometa à deriva no Universo. Teve de ser Alessio a pessoa a me tirar do meu estupor. Ofereceu-me um gim-tônica com meio sorriso encantador. — Não gosto de trazer más notícias — desculpou-se enquanto me fazia entrar de novo na casa. — Mas era melhor que vocês esclarecessem tudo o quanto antes. Lamento que isto tenha lhe custado um amigo. Simplesmente assenti com a cabeça e o segui, como o pedaço de rocha perdida em que havia me transformado. Não me passou despercebido que Alessio se esforçasse em catalogar Brian de simples “amigo”. Sem dúvida, ele havia percebido que aquele cientista me atraía. Para meu próprio bem, precisava escapar de seu campo gravitacional. Maldita gravidade. Uma parte de mim ainda queria se reconciliar com Brian. Ter paciência até que resolvesse me contar detalhadamente os motivos que o levaram a trabalhar naquele projeto abominável. Por outro lado, seu silêncio fora revelador. “Quem cala consente”, pensei.
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Um estrondo repentino me arrancou das minhas reflexões. Angie acabara de rolar pelas escadas, bêbada como um gambá. Levara um tombo monumental. Corri para levantá-la com a ajuda de Pierre e pedia que ela mexesse os braços e as pernas para me assegurar de que não quebrara nada. Ela me atendeu com muito custo. — Alessio, preciso levá-la para o nosso quarto — exigi. — Se continuar assim, vai acabar entrando em coma alcoólico. — Eu estou de carro — ofereceu Pierre. — Mas antes tenho que avisar Chantal que estamos saindo. Não sei onde se meteu! Então a voz de Brian reapareceu às minhas costas, deixando todos os meus músculos tensos. — Deixe que eu levo. Faz muito tempo que a festa acabou para mim. Sua voz me atravessou com tanta força que pude sentir como cada uma de suas palavras abria uma ferida dentro de mim. Sem saber como reagir, permiti que tirasse Angie de meus braços e a levasse embora da casa. Em sua tentativa de voltar à normalidade, Alessio me levou, escada acima, para dançar na discoteca improvisada. Apesar de todos os meus esforços, somados a um segundo gim-tônica, não conseguia me esquecer de Brian. Em minha mente se repetia aquela conversa que tanto o havia ferido, enquanto seu belo desenho se projetava sem parar em minha cabeça. Finalmente, me rendi à evidência. — Quero ir para casa — disse a Alessio. — Estou preocupada com Angie. Talvez precise de alguns cuidados extras esta noite. Além disso, não estou me sentindo nem um pouco à vontade nesta festa. — Você tem certeza de que é por causa de sua companheira de quarto? — perguntou-me Alessio, visivelmente incomodado. — Por que não admite de uma vez que esse cara a seduziu? — Posso saber por que está se lembrando de Brian agora? — explodi, raivosa. — Simplesmente quero ir para casa. Você vem ou fica? Alessio recuperou seu semblante absolutamente calmo e, com uma frieza cortante, respondeu. — Vá você, eu fico. Definitivamente, acabara de matar o mensageiro. Mas, nesse momento, tanto fazia, nada mais me importava. Talvez devesse aceitar que feria todos os que me cercavam. Era melhor que afastasse Alessio do meu lado antes de deixá-lo completamente amargurado.
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“Esse é meu destino”, refleti, “ficar sozinha.” Voltei à sala de jantar à procura de Arthur. Estava convencida de que ele se prestaria a me levar de volta ao CERN. Mas, apesar de ter rastreado toda a sala e o jardim, não consegui encontrá-lo. Quando avistei Pierre, que estava procurando Chantal em todos os lugares, perguntei a ele pelo inglês, mas disse que não o via há um bom tempo. — E Klaus? — perguntei, ao me lembrar de meu amigo alemão. — Ainda não chegou — respondeu Pierre, rindo. — Sempre chega tarde nas festas. Diz que assim as garotas disponíveis já estarão bêbadas e será muito mais fácil pegá-las. Depois de me despedir do belga, plantei-me diante da porta do jardim e esperei. Abordei o primeiro grupo que saía e pedi que me levassem aos arredores do CERN. Tive sorte. Eram residentes e tinham um espaço livre no carro, assim não demorei a voltar, com tristeza, ao alojamento. Entrei com cuidado para não acordar Angie, mas minha delicadeza foi em vão. O quarto estava vazio. Achando estranho, voltei ao corredor, onde encontrei o casal belga, que também abandonara a festa. Muito preocupada, contei a eles que minha companheira não estava no quarto. — E isso a surpreende? — disse Chantal com sua voz de serpente venenosa. — Voltou com o belo Brian e, como você diz, ninguém pode resistir aos encantos de Angie. Com certeza estão fodendo no apartamento dele. Fiquei congelada no corredor, e os dois se enfiaram no quarto de Pierre. Por mais que odiasse aquela víbora, devia reconhecer que tinha razão. Tentei, em vão, encontrar mil situações possíveis que justificassem o fato de Angie não estar no quarto. No entanto, a suposição de Chantal estava de acordo com o princípio da navalha de Ockham: a teoria mais simples tem mais probabilidades de ser a correta. Precisei me apoiar na parede, incapaz de me manter em pé. Senti que me quebrava por dentro. Havia perdido Brian e Angie, os dois na mesma noite, e deixara Alessio, a única pessoa que se preocupava comigo, plantado na festa.
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Estive prestes a me deixar cair, ali mesmo no corredor, e me afogar no desespero que me inundava. Só queria chorar até ficar inconsciente e não sentir mais nada. Alguns passos me salvaram momentaneamente do abismo. Klaus apareceu no corredor vestindo uma impecável roupa esportiva. — Você está indo ou voltando? — perguntou. Entendi que era minha última oportunidade de voltar à festa. Voltaria para buscar Alessio. Fiz um esforço para reprimir a voz da minha consciência, que me culpava por usá-lo com o único objetivo de superar a dor que me consumia por dentro. Sabia que estava sendo egoísta, mas também tinha consciência de que, naquele momento, ele era meu salva-vidas. Em troca de seu consolo, daria aquilo que ele tanto desejava. Além do mais, me justifiquei, Alessio era forte e eu não o magoaria. Quem sabe, se me esforçasse, poderia ser até feliz a seu lado. Com o tempo, talvez chegasse a sentir alguma coisa parecida com felicidade. Seríamos, então, dois cometas perdidos que sulcam, quase paralelos, o espaço. Fiz das tripas coração, me levantei e disse a Klaus: — Vou com você. Enquanto nos dirigíamos ao carro, a única coisa que pedi ao céu foi que Alessio não tivesse se envolvido com outra. Concentrei minha mente em um único objetivo: encontrá-lo tal como o havia deixado. Com a ansiedade que esse pensamento me provocava, pedi a Klaus que dirigisse o mais rápido que pudesse até a mansão de Saint Genis. — E as garotas da festa? — perguntou o motorista. — Bom nível? — A festa está o máximo, Klaus, você vai ter uma porção de geniozinhos de minissaia a sua disposição para escolher — respondi com simpatia. — Além disso, há muita bebida e estão todas bem tontinhas. — Essa é uma ótima notícia, júnior — riu. — Sobretudo para você e para mim, que estamos na seca. Mas quer saber de uma coisa? Tenho tudo calculado: se você perguntar no susto a uma garota se ela quer ficar com você, uma em cada oito diz sim. Depois de me contar aquela teoria, olhou-me com um sorriso ardiloso e me ofereceu: — Vamos fazer um trato: se os sete primeiros nos disserem não, nos procuramos para sermos os oitavos.
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26. SEXO, DÚVIDAS & PORRE Quando chegamos à mansão de Saint Genis, a festa já havia passado de seu ponto máximo. Havia mais comida no chão do que em cima das mesas. “Minha mãe teria tido um ataque se visse tanta porcaria espalhada por todos os cantos”, pensei. Em seguida, concentrei-me em meu objetivo: encontrar Alessio antes que fosse tarde demais. Não estava no térreo, então fui ao jardim para descartar a possibilidade de ser um dos poucos atrevidos que ainda faziam algazarra na piscina. Tampouco estava ali. Tomada pelo pânico, temi que ele também tivesse abandonado a festa de braço dado com outra garota. E seria muito compreensível. O mais normal seria que tivesse se cansado de minhas constantes mudanças de humor e aceitado outras carícias. Aquela noite podia acabar sendo devastadora para mim. Vi Klaus atacar três garotas em um sofá do térreo. O ruivo não perdia tempo. Dirigi-lhe um sorriso de incentivo, ao mesmo tempo que bebia um shot de vodca. “Tomara que tenha sorte com uma das três”, pensei, “Não quero ser sua última opção.” Sentindo que o álcool começava a fazer efeito, subi para a discoteca onde havia deixado Alessio plantado meia hora antes. E ali estava ele. Em pé ao lado do DJ, fazia o papel de discotecário com headphones nos ouvidos. Suspirei, aliviada. Não havia caído nos braços de nenhuma outra, mas na pista de dança detectei um grupo de quatro garotas que lançavam olhares na direção dele e riam entre elas.
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Pude perceber a expressão de tédio delas quando fui ao encontro de Alessio, que sorriu abertamente ao me ver. — Que raios você está fazendo, brincando de discotecário a essa hora? — perguntei, fazendo, charme. — Estranho você não sair com nenhum desses geniozinhos sexy. — Por que acha que estou com os headphones? — disse, enquanto cercava minha cintura com seu braço esquerdo. — Sem você para me proteger, já tive a minha disposição sete garotas. Sorri ao recordar a teoria de Klaus. “Eu vou ser a oitava”, e o beijei de repente. Desta vez a iniciativa havia sido minha. Alessio se livrou dos headphones e me acolheu com paixão em seus braços. Caímos no único sofá livre da sala. Abraçada a ele, senti que voltavam a se grudar os pedaços que haviam se partido dentro de mim ao descobrir que Angie havia ido com Brian. Sabia que jamais superaria aquilo, como quando você quebra uma jarra de porcelana: por mais que se esforce em grudar os pedaços com cola transparente as fissuras sempre serão percebidas. Porém, pelo menos aquela dor que não me deixava respirar tinha sido suavizada. — O que você está bebendo? — perguntou Alessio. — Vodca. Assentiu com a cabeça antes de se levantar em um pulo para capturar meia garrafa de Absolut abandonada perto do equipamento de som. Com a vodca em uma mão, usou a outra para me puxar e me tirar da discoteca que tinha ficado deserta. Entre beijos e carícias, levou-me ao segundo andar. Eu sabia muito bem o que me esperava ali, mas agora estava disposta a ir até o fim. Eu lhe devia isso por toda a paciência que tivera comigo. Só ele cuidou de mim desde o princípio, sempre esteve ao meu lado sem mentir nem me trair. Alessio ouviu atentamente atrás da primeira porta, onde parecia ter um casal sussurrando. Depois se aproximou do segundo quarto. Depois de confirmar que estava vazio, me fez um sinal com a cabeça para que entrássemos. Antes de segui-lo, dei um gole diretamente da garrafa para me desinibir. Estava nervosa diante da primeira vez, e o volume proeminente sob as calças do suíço revelava que estava com tudo. A coisa estava séria e temia decepcioná-lo por culpa da minha falta de experiência. Depois de fechar a porta do quarto, onde uma lamparina iluminava uma cama de solteiro, Alessio se entreteve durante um
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tempo enfiando os dedos em meus cabelos curtos enquanto beijava cada milímetro do meu rosto. Em pé ao lado da cama, seus olhos castanhos se banharam nos meus, e suas mãos levantavam com cuidado minha camiseta de alça. Levantei os braços para ajudar a tirá-la pela cabeça. Fiquei tranquila ao constatar que ele estava mais nervoso do que eu ao desabotoar a camisa e deixá-la cair no chão. Tinha consciência de que havíamos dado um passo que não admitia nenhum tipo de recuo. Alessio acariciou minhas costas lentamente enquanto beijava meu pescoço com fruição. Suspirei. Uma onda de calor desceu da minha cabeça aos pés. Seus dedos se detiveram no fecho do sutiã. Com a habilidade de quem tinha despido dezenas de garotas, bastaram dois rápidos movimentos para deixar meus seios livres. Embora por pouco tempo, pois suas mãos se apressaram a cobri-los com uma ansiosa e envolvente massagem. Agora era ele quem suspirava. Enquanto isso, meu olhar viajou curioso por seu peito até as calças, que pareciam prestes a explodir. Fechei os olhos e um filme inesperado se projetou em minha mente. Brian saindo do lago no dia da excursão, com seu tórax desnudo e forte. Em seguida, vi Angie completamente nua, avançando sobre ele para incitá-lo a fazer amor. Furiosa com aquela intromissão, afastei por um momento Alessio para desabotoar o jeans. Sentei-me na cama e levantei as pernas para que ele o puxasse. Surpreso diante da facilidade como tudo estava acontecendo, desceu sua calça pregueada, sentou-se ao meu lado e passou a mão em meu ombro. Sussurrou-me alguma coisa em italiano. Talvez não fosse tão experiente como eu achava, pensei ao ouvir as batidas rápidas de seu coração. Eu havia deixado de arder de paixão por culpa de um enjoo, graças ao meu último gole de vodca. Tive que me esticar na cama, o que foi interpretado por Alessio como um sinal de que havia chegado a hora da verdade. Conservando, cada um, nossa última peça de roupa, ele se deitou em cima de mim, apoiando-se nos cotovelos para não me esmagar. Pude perceber a tensão que atormentava sua cabeça. — Laila — suspirou —, você é tão especial…
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Começava a me sentir realmente mal, e por isso não respondi, enquanto ele mudava de posição. Deitou-se de boca para cima e girou meu corpo até cobrir o seu. Aquele giro de 180 graus acabou de me descompor e senti que o quarto dava voltas vertiginosamente. Não fui capaz de detê-las. Minha cabeça estava prestes a explodir e meu estômago revirava. Só tive tempo de afastar Alessio e começar a vomitar ao lado da cama.
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27. REVELAÇÕES Não recordava ter me sentido tão mal desde minha internação no hospital, aos doze anos, por culpa de uma saladinha estragada. Ao abrir os olhos, a luz que entrava pela janela me causou mais dor do que podia suportar. Voltei a fechá-los, cobrindo minha cabeça com os lençóis, enquanto fazia uma revisão mental da noite. Uma coisa estava bem clara: na noite anterior havia bebido muito. Em um repentino flashback, vi uma sucessão de imagens do que acontecera na festa e antes dela. O desenho. Alessio me revelando o conteúdo das folhas que estavam junto ao meu retrato. Minha discussão com Brian. Angie saindo da mansão para acabar se envolvendo com ele. Para fechar o círculo, Alessio e eu de novo. A última coisa de que me lembrava com nitidez era que havíamos subido ao quarto. Abri os olhos fazendo esforço e tirei a cabeça do meio dos lençóis para inspecionar a lateral da cama. Tinha vomitado mais de uma vez, isso eu sabia, e temia dar de cara com as desagradáveis consequências de meus excessos. Mas não foi assim. Alguém limpou tudo. “Alessio ganhou um pedacinho de céu”, pensei. Ao pensar no suíço, todos os meus alarmes dispararam: até onde teríamos chegado? A última coisa que lembrava era que tinha adormecido depois de vomitar. Constatei, com certo alívio, que continuava de calcinha. Tudo parecia estar em ordem, afora meu estômago, que se queixava das chibatadas às quais eu o submetera. Levantei-me lentamente para não despertar as náuseas de novo. Não me sentia com forças para limpar o chão se voltasse a vomitar.
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Um cheiro de bacon e ovos fritos chegou até mim. Vozes alegres que vinham do primeiro andar revelaram que alguém estava preparando o café da manhã. Enfiei os jeans e vesti o sutiã e a camiseta, que Alessio deixara à vista na cadeira. Depois de passar pelo banheiro do quarto para lavar o rosto e escovar os dentes, fiz um rabo de cavalo na intenção de aparentar estar mais disposta do que estava. Então, desci. Ao chegar à cozinha, Alessio me recebeu com um beijo. — Como vai a ressaca, bambi? — Estou péssima. Juro que nunca mais vou beber uma única gota de álcool. Na cozinha estavam um jovem cabeludo e duas garotas de expressão alegre. Eu dei bom-dia, um pouco envergonhada, não apenas por minha evidente ressaca, mas por ter ocupado um quarto que não era meu para dormir com um cara. No entanto, os inquilinos da casa se comportavam com toda naturalidade, como se ter hóspedes desconhecidos para o café da manhã fosse a coisa mais normal por ali. Esforcei-me para comer o mais rápido possível antes de desaparecer. Depois de agradecer timidamente aos anfitriões, pedi a Alessio que me levasse de volta ao CERN. — Hoje à tarde vou pegar o ônibus para Lugano — anunciou, antes de subirmos em sua moto. — Ficarei lá até quarta-feira, embora precisamente agora não tenha vontade de ir. Você quer passar o dia comigo em Genebra até a hora de eu ir? O dia está maravilhoso. — Sinto muito, Alessio. Mas não estou me sentido nada bem. Acho, inclusive, que estou meio doente. Preciso dormir um dia inteiro. Daremos um passeio quando você voltar. Meu aspecto deplorável deve ter me ajudado, pois não insistiu. Fiquei feliz de que não o fizesse. Embora me tratasse como se já fosse sua namorada, eu ainda não sabia como me comportar com ele. Sobretudo depois do que acontecera na noite anterior. Suspirei ao lembrar da minha conclusão de que Alessio era a pessoa certa. De fato, estivera prestes a perder a virgindade com ele. Abracei-o com força no banco da moto, como se assim pudesse me agarrar a minha nova situação. Não demoramos a chegar ao alojamento. — Tem certeza de que não quer que suba com você? — perguntou ao me deixar na porta.
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— Tenho uma companheira de quarto, lembra? E deve estar sofrendo uma ressaca pior do que a minha. Senti uma pontada de dor ao lembrar de Angie. — Me ligue se estiver se sentido mal, bambina — disse, antes de se despedir com um beijo. Subi a escada me arrastando com as poucas forças que me restavam. Além disso, estava muito confusa. Um tornado de emoções provocava uma mistura explosiva dentro de mim. Eu gostava de Alessio e era óbvio que era mais do que correspondida. Por outro lado, tinha certeza de que jamais voltaria a sentir por outro o amor que Brian havia despertado em mim. Devia guardar aquele sentimento tão dolorido em uma caixa bem fechada no fundo da minha alma. Tentei me convencer de que merecia ser feliz com alguém que aceitasse meu amor. Quando cheguei ao terceiro andar, fiquei surpresa ao encontrar Angie diante da porta do quarto. Meu cérebro demorou a processar o que estava vendo. Angie e Arthur se beijavam diante de nossa porta. “Mas… o que, afinal, está acontecendo com esta vampira?”, perguntei-me, “Será que não teve o suficiente com Brian?” Então ouvi claramente Angie agradecer ao inglês por ter cuidado dela durante toda a noite. Fiquei petrificada diante deles. — Você está bem, júnior? — perguntou Arthur ao me ver. — Está com um aspecto horrível. Acho que você também bebeu demais ontem à noite. Será melhor que as duas caiam na cama. Dito isso, despediu-se beijando carinhosamente Angie, que abriu a porta do quarto para que entrássemos. Sem conseguir articular nenhuma palavra, me deixei cair na cama. — Laila, o que está acontecendo com você? — perguntou, sentando-se ao meu lado. — Você está muito pálida. Quer que chame um médico? — Você passou a noite com Arthur? — perguntei com um fio de voz. — É claro. Com quem você acha que estava? Senti o mundo desabar sob meus pés. — Eu… Vi você sair da festa com ele… E depois não estava mais aqui. — Você está achando que peguei Brian? — riu Angie, juntando os fios. — Que ideia mais estranha! Quando ele me trouxe para o alojamento, chamou Arthur para que cuidasse de mim. Pelo amor de
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Deus, Laila! Por que raios eu iria me envolver com Brian? Sei como você se importa com ele… Além disso, nem mesmo teria alguma possibilidade. Lutei para manter os olhos abertos enquanto tentava entender o que queria me dizer. — Você está cega a ponto de não perceber o efeito que exerce ao seu redor? — Perceber… — repeti, confusa — o quê? — Você tem um magnetismo especial, Laila. Consegue fazer com que todo mundo a adore. Ou acha que os outros garçons recebem tantas gorjetas como você? Por isso Chantal a odeia. Ninguém gosta dela, e ela sabe disso. Tem inveja porque todo mundo gosta de você; ciúmes elevados à máxima potência. No meio daqueles elogios, atirei-me em seus braços. — Ah, Angie, me perdoe. Lamento muitíssimo as palavras terríveis que gritei para você ontem à tarde. Na realidade, sou um monstro. Sei que a magoei muito. — Não se preocupe, júnior. — Acalmou-me, acariciando meus cabelos. — O que você disse talvez não esteja tão distante da verdade. Hoje de manhã contei nossa discussão a Arthur, e ele me levou a refletir muito sobre este assunto. — Então, Brian e você… — Ele está caído por você, tontinha. Como não soube interpretar seus sinais? É tão inteligente para entender as emoções dos outros, mas quando se trata de você… — Não sei o que pensar, Angie. Agora que conheço o segredo dele, já não tenho certeza de que seja o Brian que eu imaginava. Você tinha razão quando me preveniu sobre ele. Eu o tinha idealizado e, no final, acabou sendo uma bela caixa vazia, como você disse. Relatei em poucas palavras o que Alessio me contara sobre as investigações de Brian com o objetivo de desenvolver uma arma de destruição massiva. Angie me ouvia, muito séria. Não me interrompeu até que concluí minha explicação. — Temo que seu amigo suíço tenha feito um drama. É verdade que Brian trabalhou no Laboratório Nacional de Los Álamos, mas você deve saber que nem todos os projetos desenvolvidos ali têm fins militares. A pesquisa de Brian era voltada para a compreensão do cérebro humano. Sua teoria afirma que as informações transmitidas por nossos neurônios funcionam de acordo com as leis da física quântica. Seu sonho era decifrar estes processos neuronais e chegar, assim, às ferramentas necessárias para desenvolver todo o potencial
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do ser humano. Eu acompanhei a publicação de seus artigos de perto. São brilhantes! Angie se levantou e começou a andar pelo quarto enquanto eu ouvia, perplexa, suas explicações. — Estava estudando este assunto havia quase dois anos quando sua pesquisa passou a ser considerada confidencial. O Exército dos Estados Unidos colocou os olhos nos resultados que estava obtendo. Viram naquilo a chave para manipular a mente da população. Por isso lhe ofereceram uma bolsa excelente. Acredite em mim, Laila, que só alguém com princípios tão firmes como Brian recusaria o que estavam oferecendo. E ele soube dizer não. Exilou-se dos Estados Unidos e veio para cá, para o CERN, com o objetivo de trabalhar em projetos que não oferecessem perigo a ninguém. — Mas temo que tenha continuado trabalhando naquilo, talvez em segredo… — acrescentei, emocionada. — Eu também acredito que continue pesquisando nessa direção, mas, acredite, se o faz, está guardando as informações para si mesmo. — Tem certeza? Outro dia uns militares vieram falar com ele. E se ainda estiver trabalhando para eles? Continuam existindo peças que não se encaixam… Por que não me contou tudo isto quando o ataquei ontem à noite? Angie deu de ombros antes de me responder: — Não tenho a menor ideia, você sabe que é um cara mais do que reservado. Levantei-me em um pulo, decidida a encontrar Brian. Precisava esclarecer as coisas de uma vez por todas. Angie não me deteve quando me viu sair. Nem sequer me perguntou aonde me dirigia. O quarto de Brian ficava em um alojamento com aposentos maiores do que o nosso. Na verdade, eram quase apartamentos com uma pequena cozinha funcional suficiente para preparar um jantar simples. Tive de bater várias vezes em sua porta. Finalmente, foi aberta por um Brian sonolento, que vestia calças de pijama quadriculadas e estava com os cabelos bagunçados. Estava mais lindo do que nunca. — Entre, não fique aí. — Apesar do que eu fizera, seu tom de voz era doce comigo. — Está acontecendo alguma coisa, Laila? Ouvi-lo pronunciar meu nome me fez desabar. Estava sem os óculos e seu rosto refletia uma tensão que me era familiar, como se carregasse a responsabilidade do mundo inteiro em seus ombros.
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— Sinto muito, Brian… — Fique tranquila, eu deveria ter acordado uma hora atrás. Ofereceu-me uma cadeira e se sentou à beirada da cama. Fiquei em pé, submersa em seus olhos verdes. — Não estou pedindo desculpas por ter tirado você da cama, mas por tê-lo julgado tão mal ontem à noite. Nem sequer dei tempo para você se explicar. Ao ver que eu não me sentava, ele levantou-se e colocou água em uma chaleira elétrica. — O ser humano tende a julgar mais além do que conhece. Você não é a única que tem esse problema. — Para mim tanto faz o que faça nossa espécie. Só queria dizer que não passo de uma garçonete estúpida que, com muito custo, compreende o que acontece ao seu redor. — Laila, você é tudo, menos estúpida. Não quero ouvi-la dizendo isso. — Devo ser, pois há uma coisa que continuo sem entender. Ofereceu-me uma xícara de chá para que despertasse. Seu olhar estava triste quando me disse: — Se puder ajudá-la… Tentarei resolver suas dúvidas. Entendi que aquela era a minha chance. — Preciso saber por que você me desenhou. Pude sentir a eletricidade que começara a circular entre nós dois. Não sabia direito se nos unia ou nos separava. Sua resposta levaria uma das duas possibilidades ao colapso. — Agora tanto faz. Estou partindo para o Japão. Aquilo era a última coisa que esperava ouvir. — Como…? — Me ofereceram uma bolsa para trabalhar com fusão nuclear. É um projeto excelente e pode significar um grande passo para resolver, de forma limpa e segura, as necessidades energéticas do planeta. Estão há tempos me oferecendo esse convite e, finalmente, resolvi aceitá-lo. — Quando parte? Queria avaliar o tempo que nos restava. Eu ainda passaria três semanas inteiras no CERN. Sua resposta congelou meu sangue. — Vou embora semana que vem, portanto isso é uma espécie de despedida.
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28. 2 + 1 = 3 PARA: ANTONIO PAPÁ; MAMI ASSUNTO: CRÔNICAS DO CERN IV Queridos papis, Faz uns dois dias que não estou me sentindo muito bem. Nada grave, não se preocupem. Estou só um pouco gripada. Passei metade do sábado na cama e, hoje, o dia inteiro, de maneira que amanhã já estarei recuperada e conseguirei ir ao trabalho. Esta semana aconteceram muitas coisas por aqui. Suponho que já souberam da grande notícia dos neutrinos; aqui todos estão loucos com eles. Na noite da sexta-feira, fui a uma festa, e esse era o principal assunto das conversas. Aparentemente, temos mais relações com eles do que imaginamos… Olhem agora mesmo para suas mãos, mais especificamente para o polegar. Pois bem. Sabiam que a cada segundo atravessam a unha bilhões de neutrinos que provêm do Sol? E nós nem ficamos sabendo. Percebem? Também fiquei sabendo que, como nosso corpo tem cerca de vinte miligramas de potássio-40, a cada dia geramos por volta de 340 milhões de neutrinos. Estas partículas pequenininhas saem do nosso corpo e se perdem nas imensidões do cosmos, levando um sinal da nossa existência aos confins do Universo. Não é lindo? Como estou dodói, desta vez não vou escrever uma das minhas longuíssimas mensagens. No entanto, tenho a anedota apropriada para hoje… Certamente, depois de lê-la, não acharão meu e-mail tão breve. Contam que o matemático P. G. Lejeune-Dirichlet não gostava nem um pouco de escrever cartas. Uma das poucas vezes em que
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decidiu enviar uma foi para anunciar a seu sogro o nascimento de seu primeiro filho. A mensagem foi a seguinte: 2 + 1 = 3. Como estão vendo, eu não fui tão sintética como ele. ;-) Um beijo imenso. Amo muito vocês!
Laila
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29. GARAGE BAND Depois de clicar em ENVIAR, de me arrependi eu ter sido tão sucinta. Sabia que meus pais gostavam de receber notícias minhas, mas não me sentia com ânimo para contar mais nada. Além de suportar uma ressaca campeã, tinha alguns décimos de febre, que eu atribuía a algum vírus emocional. Por outro lado, não podia compartilhar com eles o que me torturava há mais de vinte e quatro horas: meu último encontro com Brian. Logo depois de ter me dado a fatídica notícia de sua mudança para o Japão, meu telefone vibrara no bolso da calça. Não foi necessário olhar quem havia me mandado a mensagem. Sabia que era Alessio. Foi o primeiro dos mais de dez torpedos que me escreveria naquele final de semana. Ao ver que eu havia ficado petrificada, Brian me entregou um envelope. — É o convite para minha festa de despedida — disse ele. — Espero que possa vir. Naturalmente, o convite vale também para o seu par. Meu par. Outra punhalada. Não sei por que havia me desagradado tanto ouvi-lo definir assim minha relação com o suíço. Não era essa a imagem que passávamos? Era o que todos, inclusive Alessio, achavam. De fato, eu mesmo admitira isso na noite anterior, quando achei que Brian tinha ido para a cama com Angie… Só o porre de vodca evitara que eu e Alessio acabássemos fazendo amor. Com todas essas contradições me torturando diante de Brian, fiquei a ponto de explodir. Queria suplicar que não partisse. Atirar-me
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em seus braços e dizer que Alessio jamais ocuparia seu lugar em meu coração. Mas a chegada de um novo torpedo voltou a me frear. Era outro aviso cruel de que não era livre para agir como bem quisesse. A decisão que tomei na noite anterior havia mudado por completo a situação. Eu escolhera Alessio e agora devia aceitar as consequências. Não podia ser egoísta e pensar só em mim. Sabia que se ficasse ali, no quarto de Brian, o furacão de emoções que sentia por ele acabaria se manifestando. Em vez de fazer o que meu coração e meu corpo me pediam aos gritos, obedeci a meu cérebro. Desolada, estiquei o braço para pegar o envelope, saí de seu quarto sem dizer nada. E desapareci. Uma vez em meu quarto, ao ver que estava sozinha, desabei. Tinha desperdiçado a última oportunidade de esclarecer as coisas com Brian. Ele abrira a porta para que atravessasse suas defesas. Para isso, só tinha de confessar o que sentia por ele. Mas, em vez de fazê-lo, fugi como uma covarde. Ele agora partiria para o outro lado do mundo, e a porta seria selada para sempre. A culpa foi minha. Na noite anterior recorrera a Alessio procurando um curativo emocional. Um terrível erro de cálculo. Não podia mais recuar. Era muito tarde. Vieram a minha mente palavras que certa vez li em um manual de budismo que meus pais tinham na estante: “Se, por minhas limitações ou por minha situação pessoal agora não sou capaz de fazer os demais felizes, que pelo menos meus atos não impeçam sua felicidade.” Resignada, concluí que a primeira coisa que devia fazer era esclarecer minha relação com Alessio. Embora não pudesse deter Brian, era absurdo prolongar uma relação com uma pessoa que não amava de verdade. Não seria justo com ele nem comigo. Um trinado do meu celular indicou a entrada de mais uma mensagem. Era ele de novo. [Como está sua gripe? É uma pena que não esteja no CERN, tenho um remédio infalível para a febre…] Estava decidida a esclarecer as coisas com ele, mas não podia fazê-lo por telefone.
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[Almoçamos na quarta-feira no Restaurante 1?] No fundo, sabíamos que não éramos feitos um para o outro, refleti. Estava convencida de que Alessio perceberia isso por si mesmo. Quando descobrisse que eu não era a garota com a qual havia sonhado, seria muito mais fácil levar nossa relação para o terreno da amizade. Outra mensagem: [Tenho muitas coisa a lhe contar. Agora descanse, bambi.] Tentei descansar. Fiz força para dormir, mas não consegui. Parei de lutar contra a insônia e me sentei diante da escrivaninha. Ali estava a carta que Brian me dera antes que eu fosse embora sem dizer nada. Abri-a com delicadeza. Era a única coisa que poderia guardar dele. Além do convite para seu piquenique de despedida, na terça-feira seguinte, Brian havia posto outro papel dentro do envelope. Ao desdobrá-lo, descobri que era o mesmo que me roubava o sono — e o fôlego — há cinco dias: meu retrato. Cheia de tristeza, liguei o computador de Angie. Abri o Garage Band, o programa para compor música. Diante do teclado, para destapar a panela de pressão das minhas emoções, rabisquei em uma folha de papel o começo de uma canção. Derramei nela toda a minha ansiedade, o que havia sentido desde a minha chegada ao CERN. Passei as horas seguintes procurando uma melodia apropriada para aquela letra, à qual fui agregando instrumentos virtuais como acompanhamento. Tive a sensação de que a canção crescia sozinha. Não sei quanto tempo fiquei retocando os acordes até concluir a música. Quando terminei, já era de madrugada. Depois de gravar minha voz sobre os arranjos, desabei na cama para ouvir como ficou. Não me desagradava. Apaguei a luz e me entreguei, finalmente, ao sono, pensando na ironia da situação. Brian me desenhara e eu, em troca, compus uma canção para ele. Parecíamos duas crianças, dois colegiais. Duas crianças perdidamente apaixonadas, mas condenadas a não se encontrar jamais.
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30. A HORA DA VERDADE E A DOR — Ei, aqui, Terra chamando júnior… — Angie estava recostada no balcão da cafeteria e tentava chamar minha atenção. — Sério, Laila, você está bem? — Perfeitamente, já saio para anotar os pedidos. Eu a vira chegar com seu namorado inglês. Haviam sentado com Klaus e Pierre no terraço do restaurante. Desde que Arthur a resgatara daquele porre antológico, passavam os dias e as noites juntos. Mal aparecia em nosso quarto. A solidão não me incomodava. Meu estado de espírito era cinzento e não queria transferir minha infelicidade a Angie. No fundo, eu me alegrava por eles, formavam um bom casal. Uma combinação estranha, sem dúvida, mas, por algum motivo, combinavam. — Você não me engana, Laila — disse Angie em voz baixa. — Ouvi você chorando ontem à noite, acabou com nossas reservas de lenços de papel. Você deixou tudo claro com Brian? O simples fato de ouvir seu nome fazia minhas pernas tremerem. Apoiei-me no balcão, prestes a desfalecer. Angie pressionou carinhosamente minha mão. — Não voltei a vê-lo desde a manhã do sábado — respondi. — Me dei por vencida quando soube que ia para o outro lado do mundo. Não consegui segurá-lo. — Pelo amor de Deus, Laila. Brian está louco por você! Diga de uma vez que está apaixonada, e ele renunciará a essa porcaria de bolsa no Japão. Fim da história. Onde está a tragédia? Inspirei profundamente e exalei um longo suspiro. Quem dera fosse tão simples como ela acreditava. Angie continuou insistindo:
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— Essa tarde iremos à despedida que haverá lá no lago. Aproveite então para lhe dizer o que sente ou se arrependerá pelo resto do verão. — Você se esquece de que há outra ficha em jogo. Alessio e eu estamos juntos, ou alguma coisa do tipo. Nem eu mesma sei! Primeiro preciso esclarecer minha relação com ele, e não estará aqui até amanhã. Temo que seja muito tarde para recuperar Brian. — Júnior, ambos estão louquinhos por você. Só precisa escolher quem mais lhe agrada. Muitas gostariam de estar no seu lugar. Um suspiro foi minha resposta. — Certamente Pierre preferiria estar na sua pele — acrescentou, apontando a mesa onde tinham se sentado. — Chantal ficou com outro na festa da sexta-feira. É tão estúpida que todo mundo viu tudo. Quando fiquei sabendo, dei meus parabéns ao nosso amigo belga. Disse a ele que não dê nem um passo para trás, nem para tomar impulso! Sorri ao imaginar a conversa entre Angie e o pobre namorado enganado. — Não se alegra? Pierre é um ótimo sujeito. Seria um desperdício se ficasse com aquela amargurada insuportável. — Na realidade, invejo sua simplicidade na hora de resolver os problemas, Angie. Gostaria de ser como você. — Pense o que quiser, mas agora tente imaginar o resto do verão sem o suíço, e depois faça o mesmo exercício com Brian. Uma das duas situações lhe doerá o suficiente para acabar com suas dúvidas. E falando no diabo… Para minha surpresa, naquele momento Alessio entrou no restaurante. Angie o saudou com um gesto rápido e foi consolar Pierre no terraço. Quando me viu atrás do balcão, o rosto de Alessio se iluminou. Era obrigada a reconhecer: em comparação com Brian, ao seu lado as coisas eram muito mais simples. — Não ia chegar amanhã? — Depois de três dias sem ver você, já não aguentava mais. Adiantei minha volta. Falta muito para acabar seu turno? — Me dê cinco minutos. Pegou seu iPad para retomar a batalha com os Angry Birds enquanto eu me trocava na despensa. Não me agradava nem um pouco dar um fora em Alessio, mas ao adiantar sua volta me oferecia uma oportunidade de esclarecer
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nossa situação. Assim poderia conversar livremente com Brian naquela mesma tarde. Talvez Angie tivesse razão e, por mais doloroso que fosse, existisse uma esperança. Improvisei um lanche com uns sanduíches e uns refrescos e saí ao encontro de Alessio. — O que você acha de irmos comer naquela pequena esplanada que fica na frente do CERN? — propus. — Ali poderemos conversar com calma. Ele achou minha ideia maravilhosa. Enquanto caminhávamos em direção a nossa sala de jantar campestre, me disse, muito sério: — Decidi fazer um estágio para trabalhar na página da internet de La Gazzetta dello Sport. Gostaria de viver em Sevilha e, assim, estarei a seu lado quando começar a estudar na universidade em setembro. O que você acha? O espanto que aquelas palavras me provocaram deve ter paralisado meus pés, pois tropecei na beira da calçada. Se Alessio não tivesse me segurado no ar, teria quebrado a cabeça. Aproveitou o movimento para cercar minha cintura com um braço. Senti um incômodo, mas não me atrevi a me afastar. — Você é encantadoramente estabanada. Não quero que pense que estou indo rápido demais. É que eu acho que, quando uma pessoa encontra, finalmente, a outra metade de sua laranja, tem que ir com tudo. — Alessio, era exatamente sobre isso que eu queria conversar com você — disse, gaguejando. — Eu disse a meus pais que a levarei a Lugano no Natal — continuou, completamente alheio a meu estado de espírito. Aquilo era demais para mim. — Pare, Alessio… Ele me ouviu e parou literalmente diante da estrada que liga o CERN a Genebra. Finalmente se dava conta de que alguma coisa não ia bem. — O que está acontecendo com você, bambina? — Acho que nossa história não vai dar certo. Cometi um erro na sexta-feira passada ao procurá-lo de novo na festa. — Não cometeu nenhum erro, Laila. Veio porque queria estar comigo ou por acaso vai negar que queria? — Sim, eu sei. — Aquilo estava sendo muito difícil. — Claro que sinto uma atração muito forte por você, mas não posso me enganar. Sei que não estou apaixonada, e não seria justo se não lhe dissesse.
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— Estamos muito bem juntos. É possível que não esteja apaixonada agora, isso são grandes palavras, mas com o tempo… — Não, Alessio — interrompi —, o que sinto por você nunca poderá ser tão grande. — Tão grande… como o quê? Seu tom de voz era uma mistura de suspeita e fúria. Teria entendido o que eu queria dizer de verdade…? Que o nosso amor jamais poderia ser tão imenso como o que sentia por Brian? Não fui capaz de olhá-lo nos olhos. Ele levantou suavemente meu queixo com a mão e declarou: — Não vou desistir de você, Laila. Continuarei lutando até o fim. Suas palavras me feriram profundamente. Podia perceber como o magoava, e a culpa me corroía. Em um ato irrefletido, levantei minha mão e acariciei seu rosto. Só queria aliviar sua dor, mas meu gesto abriu a porta para outro tipo de interpretação. Pegou minha mão e, com o braço que estava livre, cercou minha cintura para se aproximar de mim. Sabia que o correto seria me afastar, mas não suportava a ideia de voltar a magoá-lo. Deixei-o à vontade. Afinal, aquele era um beijo de despedida. Quando me afastei dele, um nó na garganta quase me impediu de dizer: — Vou para meu quarto. Combinei com Angie de ir a uma despedida. — Ofereci-lhe a bolsa com o lanche que havia preparado. — Fique com os sanduíches, perdi a fome. Depois corri até o alojamento. Só queria desaparecer, que a terra me tragasse. Havia me transformado em um monstro egoísta que só conseguia magoar aqueles que se comportavam bem comigo. Quando cheguei ao meu quarto, a primeira coisa que fiz foi pegar o desenho de Brian. Com o retrato na mão, comecei a chorar, deitada na cama. Três coisas eram muito claras. Primeira: aquele desenho era uma prova de que existia uma possibilidade de que Brian me amasse. Certamente não com a mesma intensidade que eu, mas eu me agarrava a essa ilusão. Segunda: àquela altura, Alessio me odiava, mas pelo menos havia esclarecido minha situação com ele. Não podia mais magoá-lo. Terceira: Brian estava prestes a partir para o outro lado do globo e temia não ter coragem suficiente para revelar meus
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sentimentos. O que mais me aterrorizava era que, até mesmo quando dissesse que o amava, ele resolvesse ir embora de qualquer maneira.
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31. A CONFISSÃO — Júnior, posso saber o que está acontecendo com você agora? — perguntou Angie ao me ver deitada naquele estado lamentável. — Sou um monstro e decidi que, no que resta do verão, só sairei do quarto para trabalhar no Restaurante 1. Voltarei para cá ao fim de cada turno e, assim, não magoarei mais ninguém. Minha amiga conteve um risinho antes de sentar ao meu lado, na cama. Ofereceu-me um pacote de lenços de papel, que estava na escrivaninha. — Não seja melodramática, Laila. Foi isso que Alessio disse, que você é um monstro? — Claro que não… Mas foi tão difícil! Embora não esteja apaixonada, gosto dele, à minha maneira. Pelo menos o suficiente para que me doa ver como fica mal por minha culpa. Estou me sentindo péssima, Angie. Eu o usei e agora tenho de arcar com as consequências. — Bem, pode compartilhar a culpa comigo, se quiser. Fui eu quem deu o brilhante conselho de que se envolvesse com ele. Mas você é muito exigente com você mesma, júnior. Dói a todos ser deixado e também ter que deixar, mas também não é fim do mundo. Alessio é bonito e simpático, e tem a dose ideal de superficialidade para encontrar outra garota e se apaixonar. Acredite em mim. Ele vai superar isso. — Tomara que seja logo, Angie. Minha companheira de quarto pulou da cama e, com uma expressão decidida, ordenou: — Agora pare de se sentir culpada, júnior. Assoe o nariz e lave o rosto. Vamos à porra da festa de despedida, e você conversará com Brian.
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Depois, sem esperar minha resposta, ligou para Arthur do seu celular. — Não passe para me buscar. Vou diretamente com Laila ao lago. Nos encontramos ali, cara… Eu também. Tive a sensação de que aquela nova fase na relação de Angie lhe dava estabilidade emocional. Parecia muito mais tranquila e responsável do que quando havíamos nos conhecido. — Não tenho certeza de que seja uma boa ideia ir a essa despedida — disse. — Brian já tomou sua decisão. Parte dentro de três dias! Agora é tarde. O simples fato de me ouvir dizer aquilo me quebrou por dentro. — Pare de me aborrecer, júnior. Não vai se acovardar agora! Virá comigo nem que eu seja obrigada a arrastá-la. Sabia que discutir com Angie era perda de tempo. Era tão teimosa que sempre fazia o que queria. Além disso, uma parte de mim precisava vê-lo de novo antes que partisse, embora tivesse certeza de que não teria coragem para conversar com ele e muito menos para dizer o que sentia. Angie tentou me arrumar um pouco, mas não adiantou muito. Sua maquiagem não conseguia esconder os inchaços de meus olhos. Eu também não tinha ânimo para trocar a calça jeans, minha camiseta de alça e os tênis, a calça por isso saí feito um pequeno desastre, mas não me importava. Antes de sair do quarto, dobrei o desenho e guardei-o no bolso traseiro das minhas calças. Precisava que me acompanhasse. Chegamos ao lago com quase uma hora de atraso. Até Klaus, que sempre aparecia por último, estava lá. Haviam improvisado um piquenique com cadeiras dobráveis e toalhas na praia artificial em frente ao Jet d’Eau. As pessoas contribuíram com salada de massa e todo tipo de snacks frios. Angie e eu não levamos nada, nem ao menos algumas cervejas. Surpreendeu-me reconhecer Alessio em um grupo de pós-doutorandos bastante afastado. Naquele momento, bebia uma cerveja com toda a tranquilidade. Por sorte, estava de costas e não me viu. Por sua vez, Brian estava cercado por um grupo de estudantes de verão. Entendi que lhes explicava o projeto em que trabalharia dali por diante. Angie puxou meu braço, e nos aproximamos deles. — A bolsa é para um projeto que procura desenvolver fontes de energia diferentes das atuais, que sejam limpas e possam abastecer toda a humanidade. Calcula-se que, em 2050, a população mundial chegará a nove bilhões de pessoas. Teremos um grave problema de
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escassez energética. Para superar o desafio, temos a alternativa da fusão nuclear. Ao contrário do que é feito nas centrais de hoje, a fissão nuclear, em que os átomos e as partículas se separam violentamente para que se obtenha energia, com a fusão nuclear conseguiremos exatamente o oposto. De fato, tentaremos reproduzir o que acontece, de forma natural, no centro das estrelas. O objetivo é criar pequenos sóis na Terra. Brian estava tão absorto em suas explicações que demorou a perceber que eu e Angie estávamos ali. Percebi que sua voz mudou de tom quando me viu. Seu entusiasmo se tingiu de uma leve tristeza. Eu era a única que havia se dado conta disso? Para evitar seu olhar, peguei meu Moleskine e anotei, como tinha feito outras vezes, o que estava dizendo. Brian continuou: — No centro do Sol, a fusão dos núcleos de hidrogênio se produz a quinze milhões de graus. A essas temperaturas, a matéria só pode existir em forma de plasma. Se conseguirmos reproduzir este processo nas centrais elétricas de fusão, geraremos quantidades de energia quase ilimitadas. Além disso, evitaremos os perigosos resíduos radioativos da fissão. A fusão une o melhor da energia solar, em termos de ecologia, ao melhor da nuclear quanto a sua eficiência. Imaginem que um quilo de fusão produzirá a mesma energia de dez milhões de quilos de combustível fóssil. Vou dar um exemplo: a quantidade de lítio na bateria de um celular, combinada com meia banheira cheia de água, aportaria energia suficiente para as necessidades de um cidadão europeu durante trinta anos. Klaus se aproximou de Brian pelas costas, ofereceu uma cerveja e sussurrou alguma coisa engraçada em seu ouvido, levando-o a interromper seu discurso. Nesse momento, Alessio me viu do outro lado da pequena praia e me saudou. Devolvi o gesto, mas quis evitar que viesse e, por isso, me apressei a ir ao encontro de Arthur e Pierre. O almoço de despedida de Brian foi comemorado ao redor de uma toalha cercada de summer students. Estava há meia hora tentando desviar meu olhar de Brian, que ia e vinha trazendo cervejas de uma geladeira portátil. Procurava a oportunidade de conversar com ele a sós, mas sempre havia alguém que o interceptava para se despedir e desejar boa sorte. Finalmente, aproveitando que havia me afastado do piquenique, se aproximou de mim. Pude sentir meu estômago se contrair de emoção.
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— Podemos conversar por alguns minutos, Laila? Minhas pernas fraquejaram, e tive de me sentar na grama. Brian se deu conta e me ofereceu sua ajuda. Uma vez em pé diante dele, segurou minha mão por mais tempo do que seria normal. Seu calor reconfortou por uns instantes meu coração, que começou a bater com força. Vi que observava fixamente nossas mãos entrelaçadas. Fiquei vermelha e, para meu desgosto, me largou de repente. Nós nos afastamos do grupo caminhando em silêncio. Dentro de mim se agitava um coquetel de emoções tão fortes que achei que ia desmaiar. Então nos resguardamos atrás de umas árvores que faziam o papel de barreira entre nós dois e o mundo. Ele foi o encarregado de quebrar o incômodo silêncio: — No sábado passado você saiu precipitadamente do meu quarto. Não tive tempo de responder sua pergunta. — Há muitas coisas que você não me respondeu. — Tentei disfarçar o tremor de minha voz. — Ainda não compreendo por que não me contou o que havia feito em Los Álamos. Permitiu que o atacasse sem se defender e enfiei os pés pelas mãos… Acusei-o de coisas horríveis que não havia feito. Por que não me disse a verdade? Brian me olhou fixamente nos olhos antes de me dar as costas. — Não tenho nada a justificar, Laila. Eu não sou diferente dos cientistas que trabalharam no projeto Manhattan para desenvolver essa monstruosa bomba atômica. Na verdade, sou ainda pior do que eles. Eu deveria ter aprendido com a História. Já tinha sido avisado de que as investigações científicas podem ser usadas para objetivos terríveis, e não soube perceber. Você não entende? Se meu trabalho tivesse avançado o suficiente, teria fornecido uma arma temível aos governos para nos controlar. Meus pais dedicaram toda sua vida a ensinar os outros a preparar suas mentes para que fossem livres. Com minha pesquisa, estive prestes a conseguir exatamente o contrário. Não tenho nenhum direito de me justificar. Nem mereço sua compaixão. Brian se torturava inutilmente. Por acaso não havia se dado conta de que o que havia ganhado não era apenas compaixão, mas meu mais profundo amor? Coloquei minha mão em seu ombro para reconfortá-lo. — É por isso que está indo embora para o Japão? — perguntei, esperançosa. — Você não pode fugir assim, Brian. Não pode se culpar
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eternamente por uma pesquisa que abandonou exatamente por questões éticas. — Não estou indo embora por isso, Laila — disse, enquanto pegava minha mão com suavidade. — Vou porque preciso me curar. — Se curar de quê? — perguntei, com lágrimas nos olhos. — Me curar de você. Fiquei atônita, tentando assimilar aquelas palavras. Uma luz cálida se acendera dentro de mim, embora tivesse medo de que fosse uma falsa esperança e acabasse ainda mais destroçada do que estava. — Não me interprete mal — acrescentou. — Sinto-me feliz por você ter vindo ao CERN, pois tive a oportunidade de conhecê-la. Embora não tenha acontecido nada entre a gente, nunca senti por ninguém o que sinto por você. Ao mesmo tempo, tenho consciência de que é impossível. Eu havia ficado sem fôlego. Quis gritar para me explicar. Não ia permitir que partisse para o outro lado do mundo por supor que pertencia a Alessio. Mas Brian foi mais rápido do que eu. Selou meus lábios com um dedo e acrescentou: — Por favor, me deixe terminar. Preciso falar. Você me perguntou por que a havia desenhado… Foi quando voltei ao meu apartamento, na noite em que fomos a Genebra ver o documentário. Não conseguia dormir, era incapaz de apagar seu rosto da minha mente… e não tive outro remédio a não ser gravá-lo no papel. Naquele momento, achei que o desenho que guardava no bolso da calça pesava um milhão de quilos. Minha cabeça dava voltas. Fiz um esforço para me concentrar e consegui olhar Brian nos olhos no exato momento em que me confessava: — Desenhei porque estou completamente apaixonado por você, Laila.
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32. AS PORTAS DE SHAMBHALA II Antes que pudesse dizer “eu também”, uma sombra furiosa se interpôs entre nós dois. Alessio chegou justo a tempo — nos vira desaparecer atrás das árvores — de ouvir a declaração de Brian. Vi, paralisada, o punho do suíço atingir o nariz do físico sem nenhuma palavra. Um instante depois, Brian jazia no chão com o rosto coberto de sangue. Nem sequer tentara se defender, e eu suspeitava que, embora pudesse fazê-lo, não revidaria o golpe. Limitou-se a me dirigir um olhar de desculpa, como se lhe importassem mais os problemas que me causara com sua ferida. Afastei Alessio com um empurrão para evitar que batesse em Brian de novo. Neste exato momento, Arthur e Angie chegaram correndo. Eles viram de longe o nocaute. — O que aconteceu aqui? — perguntou o inglês, enquanto me ajudava a colocar Brian em pé. — Nada — mentiu ele. — Estávamos jogando rúgbi sem bola, e caí de cara em cima de Alessio. Sou um desastre. Não se assustem, meninos, meu nariz só está sangrando um pouco. — Sim… sei. — Angie cruzou os braços diante daquela desculpa ridícula. — E eu nasci ontem. A situação era insustentável. Olhei para Alessio com os olhos banhados de lágrimas. Sua expressão furiosa e os lábios apertados revelavam que havia entendido tudo. No entanto, depois do que acabara de fazer, já não me importava. — Vou para a água — disse ele, de repente. — Preciso dar um mergulho.
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— Boa ideia — acrescentou Angie com dureza. — Vamos ver se a água refresca sua cabeça, rapaz. Alessio entrou perigosamente no lago, e Arthur ajudou Brian a deter a hemorragia. Levantou sua cabeça e tampou seu nariz com um lenço, que imediatamente se tingiu de sangue. Enxuguei as lágrimas. Não me importava que os outros pensassem que era uma covarde, mas me doía na alma o que acabara de acontecer. Teria preferido mil vezes que aquele punho raivoso tivesse atingido meu nariz e não o de Brian. Estava tão perturbada que demorei alguns segundos a voltar a olhar para o lago. Quando olhei, perdi o fôlego. A distância, pude ver como os braços de Alessio faziam uns movimentos estranhos, como se lutassem contra um monstro invisível. Em seguida, sua cabeça afundou na água e voltou a aparecer com dificuldade segundos depois. Então me dei conta de que alguma coisa não estava correndo bem. O suíço estava em dificuldade, talvez por uma indigestão. — Alessio está se afogando! — gritei, tomada pelo pânico. Brian se levantou imediatamente. Alguns segundos depois, já havia tirado a roupa e mergulhado com vigor. Espantou-me que conseguisse nadar tão bem, apesar do sangue que havia perdido com o soco. Arthur me segurou quando ia pular na água. — Deixe que ele vá — disse, muito sério. — Sabe o que faz. Da margem, vimos, angustiados, Alessio lutar com todas suas forças para se manter à tona. Era óbvio que não iria aguentar por muito mais tempo. Brian nadava em sua direção com uma velocidade espantosa. Alcançou-o no exato momento em que desaparecia debaixo da água de novo. Em seguida, o físico também submergiu nas profundezas do lago. Os dois haviam desaparecido da superfície. Achei que ia ficar louca enquanto esperava, angustiada. Um instante depois, suas cabeças voltaram à tona. Alessio continuava se movimentando freneticamente e se agarrava com força a Brian. Testemunhei, aterrorizada, afundarem de novo na água. O pânico me paralisou por alguns instantes. Enquanto temia o pior, Angie se atirou vestida na água e começou a nadar freneticamente até o ponto onde segundos antes os dois haviam desaparecido. Agora só se viam águas agitadas.
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— Vá chamar uma ambulância — ordenei a Arthur antes de mergulhar atrás de minha amiga. O inglês me obedeceu, amaldiçoando-se por nunca ter aprendido a nadar. Enquanto bracejava nas águas geladas, gemi ao pensar que as portas de Shambhala estavam prestes a se fechar para sempre. Se acontecesse algo terrível, eu nunca mais conseguiria ser feliz. Além de fingir meus sentimentos para Alessio, fora incapaz de confessar a Brian o quanto o amava. Perdi minha oportunidade… Antes que pudesse dizer “para sempre”, vi que Brian e Alessio voltavam à superfície. Minha boca ficou cheia de água quando gritei de alegria. Muito mais rápida do que eu, Angie alcançou-os com algumas braçadas. Depois de se juntar a Brian, ajudou-o a arrastar, lentamente, um inconsciente Alessio até a margem. Da minha posição dentro da água gelada, a única coisa que pude fazer foi observá-los. A sirene de uma ambulância começou a ressoar ao longe. Ao sair do lago, rezei para que não fosse muito tarde. Alessio foi colocado na margem. Um homem forte que disse ser enfermeiro chegou para lhe dar os primeiros socorros. Depois de uma operação boca a boca, combinada com uma forte massagem pulmonar, o afogado começou a tossir e a vomitar água. A reanimação foi comemorada com expressões de alívio. Enquanto Alessio recuperava a consciência, senti que eu ia perdê-la devido à tensão vivida. Temendo que desmaiasse ali mesmo, Brian me segurou pela cintura. Respirava, esgotado, mas feliz por ter salvado o suíço. Olhei-o por uns instantes antes de abraçá-lo com tanta paixão que quase caímos no chão. Estava decidida que ninguém o tiraria do meu lado. Ele segurou minha cabeça e colocou as duas mãos em minhas faces para me afastar dele. Depois, sorriu tranquilo. — Te amo — sussurrei. — Não pode ir para o Japão agora… Você é meu amor quântico! Antes que conseguisse rir daquela ideia, trouxe-o para mim e o beijei traiçoeiramente. Quando seus lábios responderam aos meus, senti que o Universo ao nosso redor desaparecia. Enquanto seus longos dedos se enredavam em meus cabelos, senti sua respiração em minha orelha ao me confessar:
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— Hoje estive prestes a morrer afogado duas vezes — brincou. — Mas acredite em mim quando digo que morreria com prazer em seus braços. Vou renunciar a essa bolsa.
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EPÍLOGO: A VELOCIDADE DO AMOR Quando, no começo do século XIX, surgiu a locomotiva a vapor, muitos desconfiaram daquele novo meio de transporte. Alguns médicos da época alertaram que o ser humano não estava preparado para viajar à vertiginosa velocidade de… trinta e dois quilômetros por hora! “As pessoas morrerão asfixiadas e sofrerão traumas em decorrência da aceleração e desaceleração”, advertiam em seus artigos. Com o rosto grudado na janelinha do avião, que já sobrevoava o aeroporto de Sevilha, pensei, achando graça, em como se espantariam esses médicos se soubessem que estava voltando para casa a mais de oitocentos quilômetros por hora. No entanto, para mim, até mesmo a velocidade da luz, um limite que Einstein afirmara que não poderia ser superado — com permissão dos famosos neutrinos —, era muito lenta. Nos dois meses e meio que eu havia passado no CERN, descobri que só existe uma coisa que supera esse limite: a velocidade do amor. No entanto, quando expliquei minha teoria, Brian me corrigiu: segundo ele, o amor não viaja pelo espaço, mas entrelaça tudo o que existe no Universo. Eu me sentia entrelaçada a Brian e sabia que nossos corações batiam em uníssono. Por isso, me entristecia voltar para casa sem ele. Só ficaríamos distantes duas semanas: o tempo que faltava para que começasse meus estudos de física na Universidade de Genebra. Milagrosamente, e também graças ao apoio de Brian, não só haviam me aceitado para iniciar ali o curso, mas também conseguira uma bolsa que livraria meus pais de qualquer despesa. Abri meu Moleskine para rever os documentos que teria de preencher antes de entrar na faculdade. De repente, uma pequena chave metálica deslizou da caderneta e caiu em meu colo. Era o presente de despedida de Angie.
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Depois de aceitar um posto no departamento de física teórica para começar seu doutorado, saíra do CERN uma semana antes de mim. Conseguiu localizar sua mãe na Índia e resolvera conhecê-la, consciente de que o mais provável era que se desmontasse o mito que criara ao seu redor. Antes de deixar nosso quarto, me propôs compartilhar com ela um apartamento maravilhoso perto da universidade. Aquela chave — Angie tinha uma igual — era a prova do nosso acordo. Guardei-a com carinho no bolsinho da caderneta que meu pai me dera de presente e que havia envelhecido rapidamente. Além de reunir o que eu aprendi durante minhas semanas no CERN, conheceu a Laila que subira em um avião em Sevilha… e agora acompanhava uma nova Laila que voltava para casa. Aquela caderneta de capa preta foi testemunha da transformação que o amor, a força mais poderosa do Universo, exerce em todos os elementos do cosmos, incluindo os seres humanos. Alessio também encontrou uma fonte alternativa de energia interna. Conhecera uma bela repórter, com a qual percorria agora os desertos australianos para filmar os walka-bouts, um rito aborígene de iniciação. Encontrar o amor é também uma questão de tentativa e erro. Enquanto pensava em tudo isso, as rodas do avião tocaram a pista. Quando começou a frear, ignorei as normas e liguei meu celular com uma única intenção. Ainda não tinha mostrado a Brian minha canção, aquela que compus para ele nadando em um mar de tristeza e esperança. Embora fizesse um papel ridículo, sabia que aquela música de três minutos faria com que me sentisse perto dele. Procurei o arquivo mp3 do iTunes e escolhi a opção COMPARTILHAR POR E-MAIL para enviar a canção a algum distante satélite que, atravessando enxames de neutrinos e raios cósmicos, por sua vez, entregaria a ele meu amor quântico.
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QUANTIC LOVE You are my quantic love In a world made for us We’re two possibilities That collapsed in one A new sun was born for us both Schrödinger had a cat Who was dead and alive I die for you sweetheart You’re my quantic love In the cosmic void mmm… Love is not exact science The speed of light is too slow for me I’m in a hurry, baby Physics are to blame for what I feel God damned gravity Magic is the science of loving In the so-called reality There’s no place for you and me Dreaming takes me out of my limits My bed is a drifting raft Where’s the harbour of your arms?
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Love is no exact science The speed of light is too slow for me I try to solve the equation of my heart In my Moleskine God damned gravity Whem you turn off the lights Will you love me tonight? My eyes shine full of stars I’m not down here alone entangled with your heart.
AMOR QUÂNTICO Você é meu amor quântico Em um mundo feito para nós Somos duas possibilidades Que colapsaram em uma Um novo sol nasceu Para nós dois Schrödinger tinha um gato Que estava vivo e morto ao mesmo tempo E eu morro por você, querido Você é meu amor quântico No vazio do cosmos mmm… O amor não é uma ciência exata A velocidade da luz É muito lenta para mim Tenho pressa, baby É da física a culpa
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De tudo o que sinto Maldita gravidade A magia é a ciência do amor Na realidade Não há lugar para você ou para mim Sonhar me afasta Dos meus limites Minha cama é uma balsa à deriva Onde está o porto de seus braços? O amor não é uma ciência exata A velocidade da luz É muito lenta para mim Tento resolver a equação De meu coração em meu Moleskine É da física a culpa De tudo o que sinto Maldita gravidade Quando apagar as luzes Você me amará hoje à noite? Meus olhos estão cheios de estrelas Não estou sozinha aqui embaixo Entrelaçada a seu coração.

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