sábado, 7 de setembro de 2013

Tão mais bonita


tão mais bonita
Cara Hoffman
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Para Noah
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Prólogo Estão procurando uma mulher de cabelo louro, castanho ou preto. Uma mulher de olhos azuis, talvez castanhos ou verdes. Ela pode ter 1,70m ou 1,75m. O cabelo também pode ser ruivo, ou de uma cor artificial, como rosa ou branco. Talvez pese entre 50 e 64 quilos e tenha uma cicatriz ou machucado no pescoço. Ela trabalharia em algum lugar despercebida. Como garçonete, secretária ou operária. Pode ser estudante. Há uma forte possibilidade de que tenha um emprego não convencional. Um trabalho temporário na agricultura, na construção civil ou no turno da noite. Ela tem força física e é articulada. Talvez fale inglês, espanhol ou francês. Pode estar em Nova York, no Illinois ou no Tennessee. No Canadá ou no México. Em lugares onde chove o dia todo ou em lugares onde a grama amarelou de tão seca. Em buracos entre a estrada e o campo, trilhas onde o leito do riacho secou. Pode estar em qualquer lugar. Ela pode estar pegando carona ou usando transporte público, pode estar andando. Pode se chamar Jamie, Catherine ou Liz. Alexandra, Annie, Maria. Qualquer nome. Talvez seja arredia. Talvez seja sensível e disposta a ajudar os outros. Está sozinha e provavelmente sem dinheiro, e talvez confie em pessoas que não conhece. As buscas aumentaram nos meses de primavera e verão, e ainda procuram por ela. Como bem sabemos, para uma mulher que se encaixe nessa descrição, é muito fácil simplesmente desaparecer.
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Claire Nós três éramos sonâmbulas. Mais tarde, quando pensava sobre o que havia acontecido, dizia a mim mesma que ela estava andando enquanto dormia. Encenava um pesadelo. Andar durante o sono é coisa da nossa família. Sonhar enquanto se anda. Sonhar enquanto se fala. Sei que isso não é uma resposta. A resposta verdadeira é simples demais. Tinha problemas de saúde? Pouco peso ao nascer? Dores de cabeça? Comportamento autodestrutivo? Mudanças súbitas de notas ou de amigos? Não. Alice era uma alma de constância extraordinária. Saudável e atlética como o pai. À vontade onde quer que estivesse. Feliz na escola e feliz com todas as coisas fora da escola. Ginástica e trapézio. E, mais tarde, natação, construção, arco e flecha, tiro esportivo. Sua dedicação era tão alegre, tão intensa. Como a sua felicidade, quando pequena, ao nadar no rio, ao construir a floresta de cartolina ou o Taj Mahal de papel. Certa vez, ela fez um móbile com centenas de origâmis de rãs, gafanhotos, bonecas e borboletas. Nunca ficava entediada. Aos 16 anos, ainda tinha os mesmos amigos que aos 4. Os professores falavam que era uma “líder”. Era uma palavra que usavam muito, e, com certeza, isso faz parte do problema. “Uma Líder.” Mas também falavam que ela era sensível com as outras crianças, sempre muito carinhosa. Não estou tentando justificar nada. Nem tentando arranjar desculpas para a minha filha. Só estou descrevendo a realidade. Antes de 14 de abril, as palavras “sou a mãe de Alice Piper” só tinham significado para mim. Agora, essas palavras são uma charada, um koan. Uma coisa que tenho de entender, embora nada vá mudar, embora a frase “nada vá mudar” fosse algo que havíamos combatido durante toda a nossa vida. Os anos em que a criamos foram marcados por resultados decrescentes das nossas expectativas decrescentes. Mas nem sempre foi assim.
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As coisas eram diferentes na cidade grande. Nós nos mudamos por causa do tio de Constant. Por causa dos sonhos de Gene sobre terra, ar e autonomia. Mas também por minha causa. Por causa do trânsito e do barulho e do cheiro de esgoto e das 70 horas por semana que eu trabalhava na Policlínica Gratuita para Pessoas sem Seguro, na Primeira Avenida. Antes da mudança para o norte do estado, Gene e eu moramos na esquina da Rua Saint Mark com a Primeira Avenida. Depois disso, num apartamento de dois quartos na esquina da Primeira com a Sétima, com Constant e Michelle Mann, que também tinham terminado a residência no hospital, como Gene e eu, planejavam trabalhar para os Médicos sem Fronteiras. Mudamos para a esquina da Primeira com a Sétima por causa do terraço, para que Gene tivesse espaço para plantar. Naquela época, todos, menos Gene, ficavam exaustos — às vezes bêbados de cair, com três horas de sono por noite, cochilando no metrô na volta para casa, vindo de Lenox Hill, ou cambaleando com olheiras, jaleco e sapato branco, chegando do Hospital Beth Israel ou da Policlínica. Todos nos sentíamos como mortos-vivos, sabíamos que estávamos em mau estado, com inveja de Gene, sobretudo depois, quando ele passou a ficar o dia inteiro em casa com o bebê. No fim das contas, mudar para Haeden era tudo o que queríamos. Quando pegamos o carro e fomos para a casa com celeiro, passando por aquela região úmida e verde, estávamos empolgados. Finalmente, teríamos um lugar só nosso. A aparente beleza e a possibilidade daquilo tudo eram espantosas, algo que havíamos tentado construir nos últimos seis anos em Nova York, sem sucesso. Até as casas pré-construídas e as casas de fazenda meio tortas, com bandeiras americanas e bandeiras pretas em prol dos prisioneiros de guerra, pareciam estranhamente majestosas com tanta terra em volta, os trailers menores junto a riachos ou lagos. Quando chegamos, eu pensava em Michelle, na época em que trabalhávamos juntas na Policlínica, dizendo que a responsabilidade de todas as pessoas inteligentes era prestar atenção ao óbvio. Como tínhamos deixado de ver a vantagem óbvia de toda essa terra? Uma casa inteira, com terreno, pelo preço de um quarto no Lower East Side. No segundo em que saímos do carro, levamos as nossas caixas para dentro e preenchi para o tio Ross o cheque do aluguel, pensei em como tudo aquilo começaria. Naquela ocasião, eu mal podia esperar que começasse.
Alice tinha 2 anos na época. Entramos, largamos as caixas e nos sentamos no chão da cozinha, nervosos e cansados da viagem, comendo alguns mirtilos
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que tínhamos comprado no caminho. Ela acabara de acordar e seu rosto estava plácido e o cabelo emaranhado, e encostou-se em mim comendo mirtilos, o corpo quente e suave do sono. Então, a noite veio dos campos e iluminou o lugar com som e estrelas. As rãs chamavam lá do rio e os grilos cantavam debaixo das janelas, na grama. Era a primeira vez que Alice ouvia o barulho dos grilos, e saímos para a varanda juntos, Gene e eu, observando-a escutar agachada, calada e alerta, o corpo inteiro absorvendo o som. Os lábios entreabertos manchados de azul e os olhos brilhando. Foi a felicidade de Alice, a sua alegria naqueles momentos, que me permitiu ficar lá mesmo anos depois, quando prestar atenção ao óbvio se tornou um horror. E, durante muito tempo, não nos arrependemos da nossa visão peculiar. Da nossa tentativa de tirar a ironia dos slogans que pautavam a nossa vida. Frases que nos inspiravam e nos deixavam sem graça ao mesmo tempo. “Exija o impossível”, “Sob os paralelepípedos, a praia”, sentimentos anarquistas que adotamos na cidade grande, primeiro como piada, depois, finalmente, para consolarmos um ao outro, para nos lembrar de que éramos diferentes do nosso bando. Aquelas palavras — com toda a construção incessante e a destruição do mundo natural, e Gene ficando obcecado com “viver a solução” e demolir o agronegócio empresarial — pareciam mais pungentes naquela época do que quando revolucionários de verdade as haviam rabiscado nas ruas de Paris, em 1968. Mesmo que não estivéssemos queimando carros nem paralisando a cidade, vivíamos no futuro estéril e violento que eles tinham imaginado, e com certeza estávamos decididos a destruir uma cultura cultivando outra. Essa sensibilidade era só mais um jeito de sonambular, de sonhar. Não seguimos o nosso plano. Embora nós quatro tivéssemos sido aprovados no processo de seleção inicial dos Médicos sem Fronteiras, só um de nós partiu em missão. Gene e eu fomos agraciados com Alice; Constant se viu atormentado pelo conceito americano de liberdade, liquidez e mobilidade. Na época, essas mudanças não pareceram essenciais; parecera, em vez disso, o melhor resultado possível, empolgante, uma libertação. E como podíamos deixar de admitir que o que procurávamos, ao entrar para os Médicos sem Fronteiras, era uma libertação? A absolvição do estilo de vida que a nossa carreira pós-residência parecia pedir. Um estilo de vida que deixava a nós quatro — e não a nossos colegas — enojados.
Aqueles primeiros anos em Haeden foram sossegados. Literalmente. Luxuosas noites de oito e dez horas de sono. Acordar com o silêncio e os
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pássaros em vez do trânsito. Nada de reuniões na clínica às seis da manhã. Cada estação com a sua beleza específica. Invernos claros e tranquilos, presos em casa pela neve e assando pão juntos, sentados em torno do fogão a lenha, cada um de nós lendo em silêncio. Verões retumbantes com o zumbido e a harmonia alternada dos insetos. O prado diante da nossa casa crescendo alto e estranho com a chuva quente. Nadar no rio e cuidar da horta. Alice sabia falar muito bem quando nos mudamos, e adorava os sons, imitava-os. Ela nunca era ela mesma; era uma rã, uma sereia, um passarinho. O outono radiante passado a assar e enlatar pimentões, com o cheiro de fumaça de lenha no ar frio. E a primavera: a estação favorita de Alice, quando tudo volta à vida e faz calor, e há restos de neve, e então usávamos shorts e grandes botas de borracha e comemorávamos os primeiros botões e flores de açafrão. O ar era exuberante e ainda frio e tinha cheiro de lama. Alice adorava correr pelo caminho de grama aparada até o rio. Naqueles primeiros verões, ela era da altura dos pés de arnica, só uma cabeça mais alta do que as plantas que flanqueavam as trilhas entre o celeiro e o bosque. Adorava escalar as raízes expostas das árvores ao longo da margem do rio repleta de seixos e recolher pedras e esqueletos secos de lagostins. Ela era destemida. Esperávamos que, dali a alguns anos, os nossos amigos viessem, construíssem, plantassem. Depois que Constant ganhasse o dinheiro que queria que Michelle terminasse a sua missão, voltaríamos àquela terra, viveríamos, beberíamos, trabalharíamos pelos ideais que sempre tivemos. Ajuda Mútua, Sem Tédio. Esperávamos que, quando Alice fosse maior, tivéssemos dinheiro suficiente para ter uma fazenda de verdade e para que eu voltasse a exercer a medicina de algum modo. Mas essas coisas nunca aconteceram, e prestar atenção aos aspectos mais sombrios do óbvio se tornou um modo ruim de viver caso quiséssemos permanecer felizes e fazer amigos. O sono finalmente venceu. Passamos os nossos dias em Haeden numa espécie de torpor sonolento — alegres quando os nossos sentidos pediam que houvesse pânico, cegos ao nosso medo mais profundo, enquanto ele, nu no mato alto, aguardava.
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Flynn Quando cheguei à floresta, ainda não tinham mexido no corpo. Mergulhei debaixo de uma barricada improvisada — um cavalete pintado de laranja — para me aproximar, e fiquei olhando a vala isolada até que uma forma se evidenciou no que antes parecia apenas uma pilha de roupas jogadas fora. Uma das mãos se revelou ligada a um braço pálido e sardento que se estendia uma torção de brim e cor-de-rosa. Depois, o emaranhado de cabelo louro, que caía em mechas sobre lábios brancos, um olho aberto e a pele como leite desnatado brilhando através da lama, refletindo o piscar azul e vermelho dos carros da polícia. Dino olhava a estrada, longe da floresta, falando no rádio, e Giles passou por mim esticando um rolo de fita amarela. O rosto dele estava vermelho. Ainda não havia mais ninguém lá. Eu corri da redação para lá quando ouvi o ocorrido na escuta do rádio. Já estava com o meu bloco na mão e só percebi que tinha andado até o outro lado da vala e me agachado junto ao corpo quando ergui os olhos e vi a floresta e a estrada de outro ângulo. Vi o que ela poderia ter visto nos últimos momentos em que ficou ali deitada, se estivesse viva. Folhas vermelhas novas e botões azuis. Capim mirrado, cascalho, gerações de folhas molhadas e enegrecidas, algo verde-claro e sem flores prestes a se desenrolar. Descansei o olhar nessas coisas um instante antes de me levantar para entender a situação. — É White? — perguntei a Dino. Vi o moletom cor-de-rosa, pernas cobertas de terra debaixo da minissaia e pés descalços compridos e largos, unhas do pé lascadas pintadas com o último fantasma esmaecido de esmalte transparente com purpurina. — É Wendy White? Soube imediatamente que ela não estivera ali desde que sumira. Com as bochechas encovadas daquele jeito, claramente havia chegado algumas horas antes de nós, no máximo. O cheiro de imundície e bolor, não de decomposição, pairava no ar. Uma onda de náusea caiu sobre mim e fez o suor escorrer pelas minhas costas e pelo pescoço. Giles se aproximou de novo, agora com luvas de borracha e uma máscara contra poeira. Não era assim que faziam em Cleveland. — Ainda não consegui falar com ele — disse Dino a Giles.
— Tente de novo. Talvez esteja na fábrica de laticínios.
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Escrevi a data e a hora na página estreita. Era 3 de abril de 2009. Andei de volta para ficar perto de Dino e não disse mais nenhuma palavra. Não tinha nada para lhe perguntar que já não conseguisse ver. Mais tarde, eu teria dificuldade em passar de carro pelo bosque Tern sem prender a respiração. Veria o marco do “bosque”, uma pequena cunha de floresta que restava menor do que meio quarteirão, e esqueceria de inspirar. Wendy White é um nome que as pessoas conhecem do mesmo jeito que conhecem o nome Haeden; ambos entraram no vocabulário nacional como catalisadores, uma peculiar iconografia trágica. Fui entrevistada algumas vezes sobre o caso White e sobre o 14 de abril. Tentei explicar o caso num contexto social mais amplo, mas, de alguma maneira, nunca consegui esclarecer as coisas. Eu falava sobre as estatísticas nacionais de estupro, de sequestro, de pobreza rural, de violência entre adolescentes, mas aí o programa ia ao ar e lá estava eu falando sobre o 14 de abril, ou pior, falando de mim mesma. A primeira e última “reconstituição televisiva” para a qual fui entrevistada foi durante os primeiros dias da busca por Alice Piper. Uma entrevista em estúdio para a qual me pediram que eu usasse lentes de contato. — Você chegou junto com a polícia? — perguntou o entrevistador, como quem afirma algo. — Sim. — Cinco meses tinham se passado desde que alguém vira Wendy White pela última vez — disse ele, enfatizando de leve a palavra “meses”. O rosto dele estava tenso, telegrafando a resposta que eu deveria dar. Uma rápida conferência pelo silêncio em meio ao qual, de repente, senti o cheiro da sua água-de-colônia. Depois, continuou: — Deve ter sido uma cena horripilante. Ele só saiu do personagem durante um instante; ergueu as sobrancelhas e assentiu imperceptivelmente com a cabeça. Tive a sensação súbita de que a pergunta seguinte poderia ser sobre a dificuldade de andar na floresta de salto alto. Se o meu namorado veio me buscar depois que vomitei ou fiz xixi nas calças. Eu sabia que eu não era uma fonte; não estava lhe contando história nenhuma... Eu fazia parte da história. — Ficou com medo? — perguntou ele, então.
Lembro-me da sensação de querer me levantar e ir embora. Lembro-me do calor da luz do estúdio e de pensar nunca mais farei isso. E da sensação vaga de paralisia que me impediu de ir embora, mas, infelizmente, não me impediu
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de revirar os olhos em sinal de irritação e fazer um gesto impaciente de “acabe logo com isso”, o que não era o tipo de divulgação de que eu precisava, considerando a minha “situação”.
Na filmagem, estou usando batom rosa-claro e gola rulê1 preta. A entrevista durou 8 minutos, mas tiveram de fazer várias tomadas, porque disseram que eu apertava os olhos. Sorria afetada. Dava de ombros. Quando assisti, mal consegui chegar à minha resposta e desliguei, com nojo do meu rosto, com vergonha de ter concordado em falar sobre aquilo mais uma vez. — Bem. — Solto o ar, balanço a cabeça de leve. — Não entendo o que quer dizer. — Então, deixe-me lhe fazer esta pergunta... — começa o entrevistador. Ele estava prestes a me perguntar o que realmente me levou ali para responder. O que fazia de mim um assunto em vez de uma colega. — Por quê? — questionaria. — Por que você escreveu o que escreveu depois que encontraram Wendy White? Quero contextualizar isso. Quem quiser ler apenas sobre o 14 de abril pode comprar uma daquelas brochuras vendidas na fila dos caixas do Wal-Mart. Mas quem quiser saber o que realmente houve precisa conhecer o lugar onde tudo aconteceu. E precisa saber por quê. Precisa saber quem era Wendy White e saber que cometi alguns erros. Não pretendia me tornar parte dessa história. Aceitei esse emprego quando tinha 24 anos. White tinha 19 anos na noite em que saiu do trabalho no Alibi e nunca mais voltou. Não estou tentando fugir à minha responsabilidade, dizer que era jovem demais para ver as coisas que vi. Só quero ter certeza de que os detalhes estão corretos.
Antes de aceitar o emprego, eu trabalhava num jornal independente de Cleveland e fazia um belo teatrinho. Morava na Rua Schiller, onde ainda havia um monte de casas geminadas e residências antigas, e onde as fábricas e empacotadoras de carne abandonadas estavam sendo convertidas em luminosos estúdios ou escritórios de pé-direito alto para as novas empresas que se mudavam para o bairro. Meu apartamento era uma funcional caixa de sapato, de tijolo aparente e janelas com vitrais e estrutura de chumbo que zumbiam quando passavam caminhões, fresco no verão e frio no inverno, com
1 Blusas com gola alta.
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uma saída de incêndio dando para latas de lixo. Havia um estranho renascimento acontecendo no bairro. Escultores, pintores, estudantes de artes plásticas e empresários alugavam espaços ao lado de antigas famílias negras, eslavas e judias — várias gerações morando nas mesmas casas enormes agora divididas em apartamentos. Avós nas varandas e garotos sujos e metidos a sabichões na calçada. Era um bairro em processo de conversão que logo se metamorfosearia num distrito comercial e turístico. Na época, eu não gostava disso, do enobrecimento urbano, mas, algumas semanas depois de me mudar para Haeden, já morria de saudades da vida do meu velho bairro, principalmente dos sons: trânsito, festas, garotos na rua. O silêncio absoluto do meu novo lar me despertava à noite. A princípio, fiquei em Haeden porque estava decidida a escrever minha abrangente reportagem. E porque queria a palavra “editora” no meu currículo. Mas não me sentia confortável lá. Haeden era o lugar mais branco em que eu já estivera. E era um tipo específico de brancura, um vazio que eu nunca vivenciara. Fora os músicos que tocavam no Rooster e no Alibi, o cara que fazia esculturas de ursos e águias em tocos de madeira e as senhoras que tricotavam mantas ou pintavam paisagens em serrotes enferrujados, não havia cenário artístico. Antes de eu aceitar o emprego, o Free Press era dirigido por um cara chamado Stephen Cooper. Ele tinha sido editor, repórter e fotógrafo do jornal durante 30 anos. Todo mundo o chamava de Scoop — “furo”. Belo apelido, embora não muito exato. Raramente o semanário de uma cidade com um só jornal tem a oportunidade de dar algum furo, mesmo que o principal concorrente costume ter as palavras “classificados” ou “anúncios grátis” no cabeçalho. Ainda assim, a profissão dele era uma das poucas importantes que restavam na cidade: chefe de polícia, secretário de obras públicas, juiz municipal, chefe voluntário dos bombeiros e Scoop. Um grupo seleto de pessoas que impediam que o lugar se tornasse apenas um ponto da Rodovia 34 que ninguém perceberia se fechasse os olhos durante 8 segundos ao passar de carro. Meu trabalho era escrever todo o conteúdo do jornal, tornando-o popular e geral a ponto de ser possível republicá-lo em mais cinco jornais locais, caso houvesse necessidade. O Free Press pertencia ao Weekly Circular. O cheque do meu pagamento vinha de Siracusa, Nova York, e não era assinado e sim carimbado com um nome que eu não conhecia. Apesar do fato de eu ter claramente substituído Scoop, ele gostava de agir como se fosse o meu chefe. Afinal de contas, fora ele que me entrevistara para o cargo.
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Scoop fedia. A cebola frita, bala de hortelã e suor. Usava suspensórios amarelos e camisa de flanela quase todo dia, como se fosse uniforme. No inverno, vestia uma camisa de manga comprida debaixo da de flanela e, no verão, simplesmente arregaçava as mangas. Era alto e muito magro e tinha uma barba grisalha e rebelde na qual as migalhas grudavam; deixava-a crescer no rosto até alcançar os olhos antes de finalmente raspá-la. Scoop aparecia na redação uma vez por semana, mais ou menos, para ver como iam as coisas. E elas iam bem, e chatas, até acontecer o caso White. Na maior parte do tempo, Scoop era um cara legal e um redator decente. Saiu de Haeden na década de 1960 para estudar jornalismo e assumiu o jornal das mãos de outro velho que estava se aposentando. Foi o máximo de tempo que Scoop ficou longe de casa. Ao voltar, mudou-se para a casa onde o avô nascera. Também era a casa em que o pai, ele e os irmãos tinham nascido. Casou-se com a moça que namorou no colégio: uma mulher redonda e inteligente que dava aulas para o ensino médio. Todo esse histórico é apenas um jeito de dizer que Scoop não era alguém de quem eu aceitaria conselhos jornalísticos.
Alguns dias depois que Wendy desapareceu, Scoop me levou para treinar tiro ao alvo, prazer local para o qual eu não tinha qualquer aptidão. Depois, me levou para tomar uma cerveja nos Veteranos de Guerra no Exterior, me deu uma lata de spray de pimenta para levar no bolso e me mandou ficar de olho no caso White. Não gostei da reunião improvisada. Tinha as minhas próprias ideias de pauta e não pensara muito em White. Supunha que ela havia fugido por estar entediada, algo que eu sentia ser capaz de fazer a qualquer instante. Eu precisava ficar me lembrando de que, na verdade, a chatice da cidade fazia parte da razão para eu estar ali. A aparente tranquilidade, o silêncio, as velhas casas familiares, os laboratórios de metanfetamina2, a pobreza e as gigantescas vastidões de nada, infestadas de milho e cobertas de bosta, vidas entrelaçadas e interligadas por puro hábito. O significado das coisas havia sido abandonado meio século antes.
Eu entendia que isso era Haeden: além do lago, do rio e dos bocadinhos de floresta, a cidade propriamente dita tinha evoluído para uma faixa de estrada que servia às vezes de rua principal da cidade. Era ladeada por uma estranha mistura de casas, velhos prédios de tijolo e, um pouco mais além, lojas de grandes redes varejistas: Home Depot, Subway, Wal-Mart. A extremidade do bosque Tern era um estacionamento, uma extensão ampla e preta de asfalto com uma grade de linhas amarelas cobrindo o que antes fora a plenitude de
2 É uma droga estimulante do sistema nervoso central, muito potente e altamente viciante.
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uma floresta. Em geral, o estacionamento ficava vazio e, nas horas em que o povo fazia compras, mal se enchia pela metade. Supostamente, Haeden era uma região rural. Achei que talvez fosse ver ovelhas e vacas perambulando pelas encostas, mas aquele campo não correspondia ao que eu havia imaginado. E esse se tornou o principal foco das minhas reportagens: a disparidade entre o nome dado às coisas e o que elas eram realmente. De um milhão de maneiras, a cidadezinha estava se fodendo exatamente como os bairros de baixa renda de Cleveland — problemas ambientais, preço dos alimentos, atendimento ruim à saúde mental, número desproporcional de veteranos de guerra, pobreza, obesidade —, mas, ao contrário de Cleveland, essas pessoas estavam isoladas, espalhadas em estradas vicinais onde o som de um tiro de espingarda ou de um trator era mais comum do que a voz de um vizinho. Logo que assumi o emprego, Scoop disse que eu precisaria sair das estradas principais para visitar algumas grandes fazendas. O que me deixou muito contente. Ele me disse que eu deveria visitar a fábrica de laticínios Haytes e me explicou o caminho. Disse que a Haytes e mais três fazendas é que constituíam a verdadeira economia local, ao contrário do que ele chamava de franquias, querendo dizer, na verdade, multinacionais. Fiquei esperando a chuva passar antes de explorar as fazendas. Parecia chover constantemente no centro do estado de Nova York, e eu ainda não me acostumara a isso. Frequentemente, o céu assumia um homogêneo tom branco-acinzentado por dias a fio. No primeiro dia ensolarado, parti pela Rodovia Municipal 227 rumo à merda nenhuma, com as janelas abertas e os Pretenders tocando no rádio. A Estrada Haytes ficava a oito quilômetros naquela direção e foi fácil de achar, já que a fábrica de laticínios podia ser vista a quilômetros de distância a partir da estrada sinuosa lá embaixo, no topo da encosta verde. Parte da estrada tinha sido levada pela chuva e se desfeito numa vala cheia de lama, pedras e capim. O ar estava úmido e exuberante. Eu me mantive no meio da estrada, onde ela cruzava o suave aclive. Quando me aproximei da fábrica de laticínios, o cascalho deu lugar a uma via asfaltada nova, preta e brilhante, larga como uma autoestrada, que levava ao complexo central, aos estábulos cinzentos e prateados, de vigas metálicas, separados por ruas e caminhos mais estreitos que constituíam a enormidade do império Haytes. Do alto do morro, dava para ver a fazenda inteira. Ocupava o que seriam quatro ou cinco quarteirões de cidade grande. Também dava para sentir o cheiro.
Três prédios de metal, como depósitos ou armazéns, do tamanho de campos de futebol, ficavam um atrás do outro, sem janelas e silenciosos. Havia
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duas imensas lagoas de estrume liquefeito, milhões de litros guardados em dois andares de tanques azul-escuros abertos que flanqueavam as instalações. Um cheiro químico pairava sobre a área circundante, mas não um odor de estrume de vaca, e sim outra coisa, algo rançoso e clorado. Era enjoativo e, mesmo lá em cima do morro, fazia os olhos arderem. Ao voltar pelo vale e passar pelos prédios, o cheiro era pior, porém, estranhamente, não havia moscas. Não ouvi qualquer inseto ou pássaro. E a terra em torno dos depósitos era toda coberta de concreto, que parecia liso e quase polido. O capim baixo, perto dos vários celeiros abertos e das modernas estruturas de concreto, era amarelo e esbranquiçado pela poeira. Parei o carro, ergui os olhos para os prédios e contemplei a imensa escala dos tanques de estrume. Scoop me dissera que aquela era a fazenda mais antiga do condado; estava ali antes mesmo que a cidade fosse construída. Pertencia aos irmãos Haytes. Percebi, ali em pé, que eu não sabia o que era uma fazenda. E, ao voltar à cidade pelas estradas de terra, notei que também não sabia o que era o campo. Quilômetros e quilômetros de lugares perdidos. Velhas casas castigadas pelo vento e pela chuva, as janelas sem persianas ou cortinas, às vezes sem vidros. Podia-se olhar diretamente dentro dessas casas, através delas. Pilhas de lixo e móveis amontoados até o teto eram visíveis no andar de cima de uma casa colonial meio bamba, a varanda da frente desmoronando, cheia de latas de tinta vazias, ferramentas enferrujadas, lonas e telas. Era como se os donos ou moradores tivessem simplesmente sumido, ou talvez tivessem morrido ali e ninguém tivesse descoberto. Mais abaixo, na estrada, havia cinco ônibus escolares desgastados pela chuva em cima de blocos, ao lado de um celeiro com o telhado afundado e cuja pintura estava branca de tão desbotada e descascada nas laterais. Em algum momento, deve ter havido um leilão de ônibus escolares, porque vi ônibus em propriedades mais próximas da cidade que pareciam convertidos em casas móveis, e o velho Ross também tinha um ônibus escolar no seu terreno. Também deve ter havido alguma liquidação de bandeiras americanas e parafernálias sobre prisioneiros de guerra.
Além dos ônibus e de alguns campos silenciosos de milho e soja, havia um terreno retangular coberto de mato e cheio de tratores, cortadores de grama e equipamento agrícola descartados, alguns antiquados; uma placa pintada à mão em madeira compensada envelhecida diante dos destroços dizia procura-se trator, vivo ou morto. A estrutura larga de um pulverizador estava emaranhada num rolo de tela de galinheiro; o pescoço quebrado e torcido de enfardadeiras de feno, debulhadoras e veículos de metal não identificáveis estavam espalhados e esquecidos — apenas exoesqueletos enferrujados dos seus antigos eus. Maquinaria quebrada até as montanhas.
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Além do cemitério de equipamentos agrícolas, havia quase um bairro de grandes trailers, todos em verde-ardósia e frio branco-acinzentado, posicionados de lado para as entradas de automóvel perto da estrada. Nos terrenos, havia parabólicas de vários tamanhos, uma quase tão grande quanto o conjunto de balanços de metal, desocupado, perto da fossa séptica. O espaço também ostentava mastros altos e brancos que exibiam a bandeira americana e a bandeira preta dos prisioneiros de guerra. Outros estavam repletos de pneus de trator pintados de branco, canteiros de flores improvisados nos quais cresciam cravos-de-defunto. Um dos trailers tinha enfeites de Natal, caídos no quintal coberto de capim. Jesus e a Rena do Nariz Vermelho, de olhos arregalados e parcialmente cobertos de lama. Meio metro de cerquinha branca, feita de plástico com textura de madeira, erguia-se do chão dos dois lados dos degraus de cimento. Uma guirlanda pendia na porta amassada de metal. Ninguém brincava nem trabalhava ali. E, fora a silhueta ocasional de uma forma humana na frente de uma televisão, não havia ninguém visível dentro dos trailers naquele dia.
Mais além, estrada abaixo, havia casas em estilo campestre com laterais com revestimento de vinil e garagem anexa. Depois, uma variedade de pequenas casas de fazenda restauradas e enormes mansões revestidas de placas de vinil, imensas janelas palladianas3 triplas e lagos recém-escavados. Mais perto da cidade, uma casa quadrada e branca em estilo neogrego estava oculta no fim de uma estradinha sinuosa, dando para um prado de chicórias e floxes. Longas entradas de automóvel acolhiam barcos cobertos de lona sobre trailers estacionados na lateral, sob estruturas sem parede para abrigar veículos. Naquele dia, voltei para o meu apartamento sabendo onde eu realmente morava e consciente de que jamais seria capaz de escrever a respeito disso para um minúsculo jornal local. Estava empolgada. Imaginei que conseguiria vender bastante bem essa reportagem sobre os Estados Unidos das cidades-fantasma. Wendy ainda não desaparecera. Piper ainda não se tornara um nome conhecido. E eu estava definitivamente assustada, como nunca me sentira na Rua Schiller. O vale abaixo da Estrada Haytes me parecia um lugar perigoso para se morar.
3São janelas meio oval. https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi-elA8GxGURhkhfE5b-hfR-3jNQ-nJ6KTzeh6U9ZwHE4qG-5iWlSTXUdfyoJraAj6CRfHdQdvu-juwVJ5yM9y32mRDud8XQt7g7aQ3x1nawguyazR733r31etL9ie0jqnjEgEWTxpikOBB/s1600/at1.png
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Gene HAEDEN, NOVA YORK, 1997. ELA usava uma meia-calça listrada, preta e branca, e um grande saco de papel, no qual abrira buracos para os braços e a cabeça, e desenhara uma árvore com caneta hidrográfica verde. Estava com os joelhos dobrados, pendurada numa barra baixa que havia sido amarrada ao teto do celeiro com metros de corda grossa. O cabelo pendia para baixo, quase varrendo o chão. O rosto estava corado com o sangue que corria para a cabeça. Sorria, e os dentinhos brancos pareciam formar uma testa franzida. Debaixo dela, havia um amontoado de palha, em torno do qual estavam vários pares de meias em que haviam sido costurados olhos de botão, fitando o espaço vasto e vazio. — Está ficando com fome? — perguntou Gene. Ele ainda estava em pé no largo quadrado da soleira da porta. — Há comida em casa quando você acabar de se pendurar. O tio Ross vem jantar com a gente. E acho que vai trazer alguém que você quer ver. — Então vamos precisar de outro trapézio — falou Alice. Ela sorriu e esticou os braços para os dois lados depois os estenderam à frente e se ergueu para segurar a barra com as mãos. — Concordo plenamente — disse Gene. — Um trapézio só não basta mesmo. Ela se alçou até se sentar e depois segurou os lados da corda para conseguir se empoleirar com o saco de papel duro e amassado. Seu cabelo era muito louro, quase branco. Seus olhos eram de um azul translúcido e glacial. Sua pele era pálida, mas suas bochechas estavam coradas de tanto ela brincar e se pendurar. A leve poeira das sardas que lhe cobriam as bochechas e o nariz estava invisível. Ela era bem forte para uma menina de 4 anos e possuía os traços aquilinos do pai. Tinha os músculos dele em miniatura, sua flexibilidade, sua expressão distante e sonhadora. Às vezes, ele se perguntava se o esqueleto dela se parecia com o dele. Observou-a se balançar. Observou-a pensar quando ergueu os olhos para as traves. Os lábios se mexeram quando ela disse algo a si mesma que ele não conseguiu ouvir.
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— Olha pernocas — disse Gene. — Sei que hoje você é uma árvore, mas, mesmo assim, vai ficar com fome. E tem gente que quer ver você. Alice lhe dirigiu um largo sorriso, porém não se mexeu. Sempre hesitava em sair do celeiro, e ele tinha de convencê-la. — Alguém especial, talvez — falou Gene. — Alguém como Theo? Gene fez que sim com a cabeça. Alice ficou em pé no trapézio e começou a mexer os joelhos para se balançar, olhando para o teto. Gene também olhou.
Andorinhas deslizavam, mergulhando em arcos dentro do celeiro. Voavam com ela. Seus ninhos esfarrapados, escuros nos cantos da viga do sótão, eram como os fardos de palha sobre os quais ela pousava quando descia do trapézio. O lugar tinha um cheiro maravilhoso. De feno e maçãs podres, graxa e o leve cheiro de bolor. Ela conseguia se balançar muito alto porque a corda era bem comprida. Fechava e abria os olhos rapidamente enquanto balançava, e ele sabia que era para conseguir um efeito estroboscópico4 com a luz do sol que entrava pelas ripas de madeira. Gene via como ela se perdia nisso, ficava tonta, brincava de ficar de cabeça para baixo com a cabeça erguida para o teto, às vezes ocupava o espaço inteiro, movendo-se em todas as direções, o raio de um círculo invisível em torno de si. — Meu Deus! — exclamou ele. — Você é uma menina corajosa. Pronta para pular? — Ele estendeu os braços, bateu uma mão na outra. Depois, contou cada impulso. — Um... Dois... Três. UPA! Alice pulou do trapézio, as pernas dobradas e juntas para pousar, os braços estendidos na direção do pai. O saco fez um barulho alto, oco e de amassado quando ele a pegou no ar, e os dois riram. A menina tinha a covinha da mãe na bochecha esquerda. Os olhos dela brilhavam, curvados em pequenos arcos, suas sobrancelhas e pestanas louras só ficavam visíveis quando estava assim, bem perto dele. O corpo da menina era forte e delicado nos braços do pai, e ele sentiu que capturara algo selvagem.
Ele lhe deu um beijo na bochecha e a pôs nos ombros, levou-a pelo comprido caminho de grama aparada até a casinha de fazenda. A picape de Ross estava estacionada na entrada e as portas estavam abertas. Conseguiam ouvir o antigo disco do MC5, o predileto de Claire, tocando na vitrola de cinco
4 Efeito que ocorre quando uma fonte de luz pulsante ilumina um objeto em movimento.
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dólares comprada num brechó — um brinquedo de criança, na verdade —, o alto-falante minúsculo vibrando e ameaçando explodir.
Ross Miller bebia numa garrafa marrom de rótulo branco, sentado à mesa com Theo, o sobrinho de 5 anos. Ross usava a roupa que Claire chamava de Uniforme do Vingador Libertário: camiseta branca lisa, jeans Wrangler5, boné dos Veteranos com um brochinho da bandeira americana espetado, de cabeça para baixo, na frente, e óculos de sol BluBlocker6, quadrados, que envolviam a lateral da cabeça. Era um homem muito magro, porém forte e de boa postura, com grandes dentes, brancos e retos. Balançava a cabeça ao falar. Olhava pelos cantos dos olhos e os estreitava. Era conhecido pelas longas e penosas pausas que fazia nas conversas, como se considerasse se valia ou não a pena continuar falando.
Ross não era parente dos Piper. Era dono da casa onde Gene, Claire e Alice moravam. Era dono do celeiro, dos campos e dos bosques que havia entre a casa dos Piper e o decrépito conjunto que ele chamava de lar — um celeiro com estrutura metálica, uma iurta7 preta e cinzenta construída com um sortimento de blocos de concreto reutilizados e dois ônibus escolares destruídos, aquele em que ele dormia, equipado com um telhado de cobre inacabado e uma chaminé para o fogão que queimava briquetes de carvão. O garoto, Theo, era louro, alto e magricela, um ano mais velho que Alice. Seus pais moravam em Haeden, mas ensinavam letras clássicas na universidade de uma cidade vizinha. Suas viagens diárias, sua carga de trabalho e a programação social costumavam fazer com que o menino passasse vários dias da semana com o tio Ross. Nos dois anos em que Gene e Claire alugaram a casa de Ross, as crianças tinham se tornado inseparável. Lá na cozinha, Theo estava totalmente absorto, brincando com dois grandes ímãs retangulares, fazendo com que um repelisse o outro em cima da mesa.
Na verdade, sob muitos aspectos, os adultos também tinham se tornado inseparável. Para Gene e Claire, mudar-se para Haeden, e não para outro lugar do norte do estado, foi simplesmente uma questão de quem conhecia quem. Nesse caso, um dos “quem” era Ross, e o outro era o melhor amigo de Gene, Constant Souriani, que apresentara os dois. Constant se tornara parente de Ross com o casamento e visitara Haeden com frequência — primeiro, quando sua tia Hediya se casara com Ross e, mais tarde, em viagens de fim de semana, depois
5 É um jeans mais estilo de cowboy. https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtzhjN_I6Glbbu_upwGTvuA0iUiTaa9jcvo9vEM9r4ImR7bNmXQjeqLbk3TcjqFSmGNJAIybDuAy07y3apIWLkY_p39ictjaKbZdwrpV03n_62sFMt4cgO3DXwZm62wWDERi14-AI_FOE/s400/Wrangler-Jeans.jpg 6 É esse aqui http://cdn.shopify.com/s/files/1/0072/7472/products/2355_medium.jpg?30 7 Casa desmontável.
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que se mudou para os Estados Unidos, a fim de frequentar a Universidade de Nova York. A casa fora um sonho para Gene e Claire, mas, apesar da amizade com Ross e do amor da filha por Theo, a realidade de morar numa cidade tão pequena era algo que estavam apenas começando a sentir. Havia pouca gente da idade deles lá. As famílias jovens estavam se tornando menos comuns do que as de meia-idade e do que os casais idosos que se agarravam aos restos de terra e às casas que lhes tinham sido legados. Pouca gente se mudava para Haeden e era óbvio que a novidade da chegada dos Piper continuaria fresca durante todo o tempo em que morassem ali. Apesar do que Constant lhes dissera sobre a vida cordial das cidades pequenas, os habitantes não se abriam facilmente a “forasteiros”. Parecia que o lugar estava fechado à ideia de um mundo maior, mais amplo. Tão resistente que as pessoas continuavam a usar palavras como “fazenda”, “floresta” e “cidade” muito depois de as palavras já não corresponderem mais à realidade da paisagem. Gene acreditava que Haeden estava sendo sonhada coletivamente pelos seus habitantes. E, de certa forma, isso era bonito. Ele e Claire queriam fazer parte desse sonho coletivo, a reinvenção mais recente do retorno a terra. E tinham toda a intenção de fazer com que desse certo.
Gene e Claire não tinham se mudado para ali às cegas; podiam ser idealistas, mas haviam estudado os dados demográficos8. A menos que um deles voltasse a exercer a medicina, a probabilidade de encontrarem emprego não era grande. Os maiores empregadores de Haeden não ficavam em Haeden. Eram eles uma grande loja de rede nacional da cidade vizinha e uma universidade, duas cidades além. Também tinham compreendido que a transformação de Haeden, de aldeia agrícola fechada em si mesma em comunidade-dormitório do setor de serviços à beira dos Apalaches, era algo que se podiam sentir, mas não discutir. Uma vergonha secreta entre amigos. Gene e Claire acreditavam que tudo isso podia ser mudado. Com a dose certa de energia. Com a atitude adequada. Certos dias, a ideia de mudança deixava Gene quase enlouquecido. O que os cercava era inebriante — tanto espaço, tantas oportunidades. Sentia que, com tempo suficiente, tudo aquilo seria deles.
8 É uma área da ciência geográfica que estuda a dinâmica populacional humana. Demo- povo; Grafia- estudo, ou seja, Demografia é o estudo do povo/ população.
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No verão de 1995, sentada no Mazda prateado estacionado diante da estranha casa de fazenda amarela e meio inclinado, com as janelas do carro abertas e lágrimas de alívio nos olhos, Claire aspirara o cheiro de mato e o aroma doce de coisas virando semente, e Gene a observara examinar as velhas janelas de tábuas do telhado, as trepadeiras crescidas demais que subiam pelas colunas brancas e pelas calhas entupidas, cheias de folhas negras apodrecidas. Não conseguia acreditar na própria sorte. Atrás, na cadeirinha de bebê, Alice dormia cercada de caixas e mochilas. Tudo o que possuíam cabia no carro de duas portas. Sentindo que Claire estava ligeiramente culpada por ter essa nova casa e deixar para trás os pacientes da clínica, Gene se inclinou e a beijou. — Seremos bem mais úteis aqui do que em todos os lugares onde já moramos — disse. — Somos os fodões do “faça você mesmo”, querida, e vamos fazer as coisas acontecerem. Ele olhava para Claire agora, sentada na bancada, descalça e com uma saia jeans longa, uma regata branca estampada com as palavras CFC 5K RUN — a corrida de 5 quilômetros da Campanha Federal Conjunta para arrecadar fundos para caridade. Claire tinha braços e pernas compridos e fortes, veias e tendões visíveis nos pés, nos antebraços e nas mãos. Ele adorava como ela movia o corpo voluptuoso, com uma inconsciente graça de moleca. A cozinha cheirava a cominho. Panelas pendiam de ganchos no teto. Uma parede de prateleiras quadradas servia de despensa e guarda-louça. Uma das cadeirinhas de madeira de Alice estava perto de um vaso que continha um jovem abacateiro, os galhos mais baixos espalhando-se pelo chão, envolvendo a cadeira. Cubos e animais de madeira ficavam sobre a terra, na base da planta, além de um caderno, lápis de cera e binóculos. Claire ergueu os olhos e sorriu para Gene e Alice, interrompendo Ross no meio de uma frase. — Ah, ótimo! — disse. — Estávamos esperando pela árvore. Venha cá, árvore. Ela pegou a menina no colo e a abraçou com força. O saco amassou e se rasgou um pouco no ombro de Alice. Claire olhou para o rosto corado da filha e a beijou. Alice estava suada, mas ainda tinha um cheiro de bebê que era de outro mundo: leite, mato, chuva na calçada, cravos. Claire pôs o nariz nos cabelos da menina e fechou os olhos.
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— Viu quem está aqui? — perguntou baixinho, no alto da cabeça de Alice. Às vezes, Ross deixava a menina nervosa. Claire sempre conseguia fazê-la relaxar, dar força a Alice, simplesmente pegando-a no colo ou dizendo uma frase tranquila com a sua voz calorosa e grave. Alice concordou com a cabeça. Pôs a testa no peito da mãe e passou as pernas em volta de sua cintura. — É Theophile! — disse Claire, sorrindo, e a covinha na sua bochecha se revelou, e depois sumiu. Os olhos de Alice brilharam, e Claire a pôs no chão. Theo, que estivera esperando, pulou da cadeira. — Ele me deu os ímãs — contou o menino, seguindo Alice até a sala. Gene pegou uma cerveja Saranac na geladeira e ficou parado por um instante, diante da esposa. — Do que está rindo? — perguntou Claire. Ele balançou a cabeça, tocou delicadamente a cintura dela para sentir a pele macia debaixo da camiseta. — Ross, quer mais uma? — perguntou. — Não, agora não. — respondeu Ross. — Eu acabei de falar com Claire sobre esses babacas dos Veteranos, que não acreditam que estamos matando os iraquianos de fome com essas sanções de merda para podermos ocupar aquela região durante o próximo milênio. Meu Deus! Por que mais acabar com a infraestrutura de um país? Eles não são idiotas. Por que outra razão de merda se faria isso? — Espere — disse Gene. — Acho que você já me falou disso. — Não. Isso foi no domingo passado, os mesmos babacas. Somos só ovelhas, cara. Ainda mais aqueles idiotas dos Veteranos. Nós é que deveríamos ter alguma ideia do que está acontecendo. — “Nós”? — perguntou Gene.
— É. Nós, porra. Você acordou hoje neste país e tomou uma xícara de café? — Ross parou um instante, estreitou os olhos e empurrou para cima os óculos escuros. — Nós moramos aqui, cara. Não estou me referindo apenas aos verdadeiros crentes. — Ele concordou consigo mesmo, e as sobrancelhas
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ficaram por um instante visíveis acima da armação grossa dos óculos. — Nós! Eu, você e todos nós que viemos para cá fazer a coisa certa! — Você nasceu aqui — argumentou Gene. — Bem, eu fiquei aqui por causa das pessoas boas, não por causa de alguns babacas que ficaram felizes de ir para o Vietnã e, depois, felizes de ver os filhos irem para o Iraque. — Além disso, na época, vocês tinham toda aquela erva boa — disse Claire, piscando para ele. — Isso é outra história — respondeu Ross, rindo. — E não pense que não tem nada a ver, porque tem, sim! Tudo está relacionado — essa é a questão. O sol começava a baixar no céu. Na vitrola, o Motor City 5 arranhava um refrãozinho empolgante, e Claire abriu um largo sorriso. — Conhece essa banda, Ross? — Não mesmo. — Ele esticou as pernas e entrelaçou os dedos em cima do boné. — Mas eles estão putos com alguma coisa. Ela riu. — Precisamos fazer algo a respeito da sua cultura musical. Esse é o disco que me ajudou a aguentar a residência médica. O zumbido baixo e ambiente de insetos chegava aos seus ouvidos entre as batidas do refrão: “Call me animal, that’s my name, call me animal, I’m not ashamed.” Gene admirou os lábios de Claire enquanto ela cantava baixinho. Ross e Claire tinham caído em silenciosos devaneios sobre os seus dias de soldados. Isso acontecia às vezes e Gene os observava, isolados, mas, de certo modo, ligados um ao outro, a salvo e distantes. E, ainda usando a bandeira, as insígnias e os uniformes de lutas que ninguém sequer sabia que tinham acontecido. Lutas que ninguém ali acreditaria que tivessem ocorrido, ou com as quais nem se importariam se acreditassem.
Gene sentou-se com a distância e a proximidade deles. Agora, bem longe do Vietnã e bem longe da pobreza e da violência indiretas que faziam de Claire o que ela era. Não exatamente subterrânea, e, talvez, nunca capaz de viver na superfície. Uma mãe sussurrando na cozinha; sua esposa, sua amiga mais antiga, folheando mentalmente um hinário tardio do Motor City 5 enquanto Ross falava da guerra. Já vira isso antes: MC5, ou Clash, ou Ramones
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costumavam afogar o ruído do silêncio na cabeça dela quando a imagem de meninas adolescentes, sentadas em salas de espera com os seus conselheiros tutelares, se tornava demais para ela. Ele se lembrava de si mesma, bêbada e dançando ao som de “Know Your Rights” no jukebox do International, na Primeira Avenida, depois do trabalho. Lembrava-se de si mesma erguendo os olhos para ele, lábios cerrados, olhos brilhantes, flexível, orgulhosa do seu trabalho. Ele nunca a havia visto chorar, até que ela engravidou de Alice. Olhou para Ross e Claire e absorveu as dores amplas e silenciosas que os dois irradiavam, o modo como conseguiam ocupar o mundo criando outro mundo, privado, em volta de si, como Alice no celeiro, com a cabeça para trás, piscando. Ele os amava, mas não sentia o que sentiam. Não era perseguido por qualquer passado ou lugar. O mistério de Gene sempre fora a sua capacidade de se esgueirar no presente e sumir.
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Alice HAEDEN, NOVA YORK, 1997 Na sala, as ruas da cidade eram as linhas em zigue-zague do velho tapete persa que a tia de Constant deixara na casa quando se separou de Ross. Havia caixas de sapato, de cereal, cubos e papel pardo espalhado pelo chão e empilhado numa precária pirâmide colada com fita crepe, na parte baixa de uma das paredes. Os carros, nas ruas dessa cidade, andavam com energia magnética. O jornal da cidade ocupava toda uma caixa de sapato. Uma placa branca de limpador de cachimbo se elevava do telhado dizendo CURTO & DOCE. Lá dentro, Peg, um pregador de roupas de madeira, estava sentada numa cadeira de casa de boneca diante de um cubo no qual um estojo aberto de sombra para os olhos se transformara num laptop. Peg era, fada e repórter e perdera o poder de voar na tarde do dia anterior, e só poderia consegui-lo de volta se escrevesse uma reportagem sobre o que acontecera na floresta. Tinha purpurina dourada colada na cabeça redonda, olhos azuis de lantejoula e usava um laço verde feito de linha de bordar. Alice fechou o estojo de sombra e fez Peg sair andando do Curto & Doce e subir no carro magnético, que Theo conduziu empurrando o outro ímã atrás, até a floresta: pinheiros de cartolina verde e laranja colados em papel pardo, no qual outros pinheiros haviam sido desenhados com lápis de cera e canetinhas hidrográficas. O carro parou à beira da floresta e Peg desceu. Ali, o bando de louva-a-deus, sapos e cobras de plástico de Theo esperava por ela. — Ela nunca teria conseguido me encontrar com eles se você não tivesse trazido os ímãs — disse Alice a Theo. Ele concordou com ela, muito sério. Mal puderam acreditar quando Peg perdeu o poder de voar. Foi por causa da poeira daquele único raio de luz bem na hora em que o sol se punha na noite de sexta-feira. Era uma poeira sinistra! Tentaram em vão lhe devolver seu poder, e, finalmente, Theo inventou o plano heroico de lhe arranjar um carro magnético. Centenas de quilômetros separavam o jornal de Peg e a floresta. E não havia transporte público, porque não tinham nenhuma caixa de biscoitos.
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Os insetos e sapos formaram um círculo em torno de Peg. O sapo maior veio pulando pelo mato baixo da floresta. Elevava-se acima dela. Mas ela não tinha medo algum. Sabia que eles a ajudariam a atravessar a floresta. O sapo fitou Peg e, enfim, num trinado grave, disse: — Temos algo para lhe mostrar.
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Flynn Quando White sumiu, no outono de 2008, houve muitas orações. Muita gente falando sobre orações, dizendo uns aos outros que estavam orando. Durante meses, publicamos um anúncio de página inteira com uma foto de Wendy, pedindo que a comunidade orasse. Eu mesma rezei por Wendy durante a cobertura de uma assembleia da cidade, e baixei a cabeça de novo por ela quando pediram que o fizéssemos, antes de um jogo de futebol do ensino médio. Era fácil se envolver na ideia de que aquilo poderia dar certo. Quando White sumiu, a estupidez se tornou uma forma de boa educação. Quem não fingisse estupidez provocaria indignação e recriminações, como se devesse ser óbvio para todos que o silêncio precisava ser instituído para que tudo aquilo simplesmente desaparecesse. A investigação do caso White foi definida pelo modo como os fatos não se desdobravam. Era uma história sobre um nome acrescentado a uma lista federal, sobre pais horrorizados e membros organizados da comunidade e a repetição da frase “estamos seguindo todas as linhas de investigação”. Quando a menina foi encontrada a menos de 1,5 quilômetros do seu apartamento, passaria a ser uma história sobre o pesar, o funeral e um tema de especulações extraoficiais, se eu não estivesse ali para contextualizar tudo. Todos costumavam dizer que fora um andarilho que a matara, alguém que estava lá de passagem. Só há duas mil pessoas dentro desta cidade, e todos estão aqui desde sempre. Logo, naturalmente, ninguém daqui fez uma coisa dessas, senão alguém assumiria a culpa. Entende? O irmão, a mãe, o pai ou o amigo de alguém. Numa cidadezinha unida como esta alguém teria sabido o que estava acontecendo. Sempre penso numa coisa quando todos começam a falar sobre a época de ouro da cidade ou a citar as frases que a administração divulgou a imprensa depois do 14 de abril. Sempre penso naquelas fotos que achei no arquivo do jornal: quatro imagens em preto e branco de uma marcha da Ku-Klux-Klan, em 1941, na praça central de Haeden, com uma adesão incrivelmente alta. Embora a marcha tivesse sido claramente grande o bastante para incluir os avós e tios-avôs da maioria dos moradores, acreditava-se, como indicavam as legendas, que os presentes eram todos gente de “uma cidade vizinha”.
Naquele dia, quando me sentei com Scoop no bar dos Veteranos, depois de não conseguir atingir nenhuma latinha de refrigerante com todos os tipos de bala do revólver que, no fundo, eu não queria usar, ele me disse que todos
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estavam me olhando e que repórteres deveriam ser discretos. Ele falava tão devagar que era quase insuportável. — Se quer fazer a cobertura desse caso, precisa se livrar desses óculos horríveis — disse ele. Tomou um gole de cerveja e parecia perdido nos seus pensamentos. — E pare de usar essas camisas de poliéster. — Ficou em silêncio de novo. E depois: — Sabe, você devia parar de usar essas camisas de poliéster e ponto. Adultos não usam esse tipo de coisa para trabalhar. — Ele também se mostrou cético quanto ao fato de que mesmo as pessoas de Cleveland se vestissem como eu. Scoop não falava apenas das minhas roupas. Naquela terra esquecida pelo tempo que era o bar dos Veteranos, não havia nada de inconveniente num homem de 60 e tantos anos fazer uma dúzia de comentários específicos sobre a aparência física de alguém. A crítica às minhas roupas era apenas o começo, e desconfiei que fosse um modo de falar do meu tamanho. Sou uma mulher pequena. Compro roupas e sapatos no departamento infantil, muitas vezes no de meninos, porque não sou muito de estampas florais e vestidos de veludo. Quando não dá certo, eu mesma faço as minhas roupas. Caibo facilmente em coisas que usei no 5º e no 6º anos, e reformo essas peças vintage. Obviamente, Scoop estava com medo de que eu parecesse uma criança. Seus outros conselhos editoriais naquela tarde incluíram: “Um pouco de maquiagem não mata, não.” “Você tem um cabelo comprido, sedoso e bonito. Talvez pudesse usar um prendedor, em vez de um lápis, para segurá-lo.” Então, finalmente, o que eu estava esperando, a grande jogada para que eu mordesse a isca e ele pudesse insinuar que a minha família tinha algum tipo de miscigenação incomum: “Cabelo preto e olhos azuis... Isso é meio raro, não é?” Esperava os comentários sobre a minha pele lisa, que deveriam vir logo a seguir, mas recebi algo ainda melhor: ele disse que eu parecia me achar o máximo. O pessoal daqui, disse, não confia em gente de cidade grande que usa óculos como os do Malcolm X e acha que é o máximo. — Você nunca conseguirá que a polícia fale com você, a menos que dê um jeito na sua aparência. — Tá, só um instantinho — respondi. — Vou tirar as migalhas da barba. Ah, sim, a minha careca está com um pouco de caspa também. Ah! Que merda! Esqueci de passar o fio dental. Você acredita? Que tal? Está melhor assim? Como estou agora?
— Só estou falando — disse ele, com um sorriso irônico. — Agora você está fazendo mais do que cobrir a venda de tortas dos Amigos da Biblioteca. Deveria se vestir à altura. — Ele me entregou uma sacola de papel pardo que
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trouxera do carro. Peguei-a e espiei lá dentro. — Veja isso aí se chama blusa — continuou ele. Olhei a etiqueta. Pelo menos ele tivera a presença de espírito de comprar tamanho PP. E disse: — Se você a usar, vai dar para suportar os óculos. Sorri. — Mas a sua pontaria já é outra história — concluiu. — Não sei como poderia dar um jeito nela. * * * Scoop estava certo sobre a polícia. Não quiseram falar sobre Wendy. E essa é mais uma razão para eu ter escrito o que escrevi quando ela foi encontrada. O capitão Dino não parecia procurar com muito afinco pelos sequestradores de Wendy. Parecia não ter muita documentação sobre o caso White. E o legista, que, descobriu-se, não tinha aparecido na cena do crime, nem precisava ter um diploma de medicina. Era eleito (juntamente com o juiz da cidade) pelo voto popular, de dois em dois anos. Dino e eu nos encontrávamos frequentemente no Rooster, naquela época. Em geral, pouco antes da happy hour. Mas ele tinha pouco a dizer. Era um cara grande e gordo, com um narigão marcado de espinhas e olhinhos verdes. Tinha um chumaço de cabelo cor de mercúrio, um bigode bem-aparado e dentadura impecavelmente limpa. Saía para correr todos os dias com mais alguns caras da delegacia. Todos acenavam para mim quando passavam pela redação do jornal e eu olhava para ver se havia alguém novo. De preferência, alguém com menos de 40 anos que não parecesse uma bicha bombada. Alguém inteligente e solteiro que achasse que podia proteger os cidadãos e gostasse de beber. Mas Haeden era pequena demais até para um romance clichê entre policial e repórter. Dino não era um homem burro e, na maior parte do tempo, eu não me incomodava de lidar com ele. Observava-o observar os outros. Conhecia o seu olhar de quem sabe das coisas. As nossas profissões não eram tão diferentes. Em muitos sentidos, ele era uma versão mais rápida e malvada de Scoop, e, a princípio, havia algo de atraente nisso.
Dino tinha muitas teorias extraoficiais para mim, mas, infelizmente, nenhuma pista do que poderia ter acontecido com Wendy. Nada. Nenhuma pista sobre algum habitante da cidade.
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Sua indiferença não me impediu de tentar obter mais informações. Eu passava a maior parte do tempo na delegacia em discussões extraoficiais e perdia tardes inteiras no registro público, sentada à comprida mesa de carvalho, examinando coisas tão tangenciais para o caso que eu me perguntava se tentava evitar o que estava bem na minha cara. Se tentava me distrair de uma paranoia crescente de que o assassino de Wendy era alguém sentado ao meu lado no bar, nas noites de quinta-feira, e que Dino não tinha a mínima intenção de indiciá-lo. Comecei a observar os outros, perguntando-me quem sabia o que e não queria contar. Observava os homens que se demoravam na Main Street diante do Alibi ou do Sal’s, ou no Rooster, com o rosto bronzeado e desgastado e a roupa coberta de tinta. Escutava enquanto falavam de oportunidades de emprego ou de festivais de música. Vários deles saíam com garotas do ensino médio ou estudantes de faculdades vizinhas. Observava outros homens em carros bacanas parando no Sal’s para comprar pizza nas noites de sexta-feira ou mergulhando no Savers Club para comprar leite, a gravata desfeita e os primeiros botões da camisa abertos. Vendedores, gerentes, professores secundários e, de vez em quando, um professor universitário. Numa região pobre como aquela, eram essas as pessoas consideradas de classe alta, bem-sucedidas, a elite cultural e intelectual. Pelo que havia observado as solteiras da cidade, em geral, eram garçonetes, babás ou apenas estudantes matando o tempo antes de se formar e arranjar um emprego de verdade. Na verdade, havia pouquíssimas mulheres em Haeden. Assim, não era raro um cara de 30 ou 40 anos sair com uma garota de 19 que ele se lembrava de ter “notado” pela primeira vez quando ela estava com 10 ou 12. Dava para ver esse tipo de coisa acontecendo com Wendy White, e, poucas noites depois que ela sumiu, pensei ser capaz de ver mudanças no rosto de algumas pessoas quando se tocava no assunto: informações transmitidas e destruídas em silêncio. Num primeiro momento, tudo parecia óbvio demais, como se eu estivesse tão fora da cultura que não pudesse confiar no meu julgamento. Mas, depois de um mês do seu desaparecimento, estava quase certa de que ela não fugira, simplesmente, e fiquei obcecada com o que poderia ter lhe acontecido. O lugar era absurdamente minúsculo, acessível, pensei. Tinha certeza de que eu mesma conseguiria encontrá-la. Certeza de que conseguiria fazer tudo sozinha.
Lembro-me de fragmentos dessa época. Lembro-me de ficar sentada na minha salinha, tomando café às três da manhã, assistindo às notícias da Guerra do Iraque na CNN com o som desligado, os tanques e as filmagens em plena
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linha de mira, e aquela merda sobre tortura por afogamento, caras vendados com óculos de lentes opacas e macacão laranja sentados ao sol atrás do arame farpado. A luz da TV se refletia nos cinzeiros e nas vasilhas para cereal cheias de guimbas de cigarro. E eu escutava as entrevistas que havia gravado com os pais de Wendy e com o irmão e a cunhada dela, enquanto a guerra se desenrolava numa pantomima de imagens em loop. Tentava achar algo que tivesse deixado passar, e que fizesse tudo se encaixar. Tenho certeza de que isso não me fez bem. A hora tardia e a guerra e a exaustão e o pânico contido na voz dos pais de Wendy. A troca de café por cerveja Labatts em algum momento próximo das quatro da manhã para que eu conseguisse dormir por algumas horas. Aqueles eram os pequenos detalhes que deixariam o dia seguinte na redação exaustivamente surrealista. A leitura e a releitura obsessivas de uma situação que fui incapaz de decifrar a tempo de fazer qualquer diferença. Às vezes, os meus amigos do jornal City Paper, de Cleveland, ligavam depois que voltavam do bar. Em geral, eu estava acordada e elétrica de tanto café, sentada no meio de cópias carimbadas e cheias de anotações dos registros do distrito, assistindo à televisão sem som enquanto eles me contavam merdas acontecidas no meu velho jornal ou perguntavam se eu cobrira ultimamente alguma feira de gado leiteiro. Certa noite, enquanto aguardavam o resultado das eleições, ligaram da redação e só cantaram “Come baaaaaaaackkkkk”, bêbados, durante vários minutos. “Come on baaaaaaaackkkkk, girl, come baaaaaaaackkkkk, it’s too looooooong.” Nenhum deles achou o caso White grande coisa. Nunca achariam. A situação de Wendy não era nada incomum. As pessoas somem e depois reaparecem como cadáveres. É assim que a gente pega a prática. Você vê um morto e isso lhe distingue, quer queira, quer não. Depois, como superar isso; o fato de que, às vezes, aquilo representa para você algo de positivo, profissionalmente.
O caso White não era como os outros acidentes ou exumações. Não era como ver os restos mortais de um garoto que decidiu que era um fracasso e foi se afogar. Nem um pouco a mesma coisa. É uma merda dizer isso, mas não há muito páthos9 que envolva casos assim. Pense só: o pequeno Fulaninho Filho se afoga na noite de terça-feira, depois de receber as suas notas de meio de ano na faculdade de engenharia civil. O corpo volta para Westchester e um saguão da
9 Tipo de experiência humana, ou sua representação em arte, que evoca dó, compaixão ou uma simpatia compassiva no espectador ou leitor: o páthos de "Os Retirantes" de Portinari.
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biblioteca ou uma trilha do parque recebe o nome dele, e um monte de outros garotos de sangue azul o recordam com carinho. Sinto muito. Há uma história dessas por ano, mais ou menos. O pobre Billy Fodido Jr., com as suas calças cáqui da Gap, a pressão de assistir aula o dia todo realmente foi demais para ele. Se eu fosse uma pessoa melhor, me sentiria mal por ter visto coisas assim. O corpo de Wendy não teve esse fim salutar, não foi vítima de bebedeira, nem de impulso, nem de perfeccionismo. E o corpo dela não estava tão inteiramente intacto quando Brenda Hodge o avistou a caminho do trabalho. Ela pensou ter visto alguém se arrastando para fora de uma vala perto da borda arborizada do estacionamento do Savers Club. O corpo de Wendy, no fim das contas, havia sido usado durante meses antes de ser encontrado.
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Gene HAEDEN, NOVA YORK, 1998 — UPA! Alice estendeu para longe do corpo uma das pernas esticadas, os dedos do pé em ponta, e Gene a observou, mantendo-se por perto para o caso de ela cair. Gritou de novo para que ela trocasse de posição. — Upa! Ela se curvou e pôs a mão onde antes estivera o pé. A trave de equilíbrio feita em casa ficava a menos de um metro do chão e tinha quase a altura dela. Alice levantou para trás a perna esquerda levemente curvada. — Upa! Ela se curvou e pôs a outra mão na barra. — Upa! Deu um leve impulso com os quadris para se apoiar nas mãos sobre a trave, arqueou as costas e olhou para a frente, sorrindo para Gene. O seu corpo era pequeno e forte. — Quer tentar andar sobre as mãos? — perguntou ele. — De lado? — É. De frente, se eu segurar as suas pernas. — Não, não. Não segure as minhas pernas. — Tudo bem. Então de lado, por favor. Upa! Ela levantou as mãos de leve e conseguiu se manter ereta, enquanto dava os primeiros passinhos sobre as palmas. Ele viu que ela não agarrava a trave, mas, em vez disso, sentia o modo como às mãos deviam se mover e ficar firmes; sentia que havia pontos na palma das mãos que podiam equilibrar seu corpo inteiro. Ficou mais corajosa e estendeu a mão mais para longe. Ele observou então, quando ela calculou errado aonde a mão deveria ir e perdeu o apoio, o corpo tensionado, e inspirou com força quando a cabeça dela desceu e quase bateu na barra.
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Ele a agarrou pelo tornozelo e a puxou para cima rapidamente, de cabeça para baixo, erguendo os pés da menina bem acima da sua cabeça. O rosto dela pendia no ar em frente ao dele. Seus olhos estavam arregalados e abriu a boca, surpresa. Ele viu o relevo do céu da boca de Alice e os pontos brancos de osso nos quais os molares começavam a nascer. Ela deu um risinho nervoso, e ele a beijou no nariz. — Uau, papai! Eu quase caí. — É melhor arranjarmos umas asas de borboleta para você, para que isso nunca mais aconteça — disse ele. Levou-a para cima e para baixo algumas vezes. Então, disse: — Upa! Ela se dobrou pela cintura e agarrou o pulso dele, que soltou o tornozelo da menina, deixando-a pendurada no seu braço. Ele a desceu devagar até ela ficar em pé no chão. — Quer fazer de novo? — perguntou ela. — Sim. — Ele sorriu. — Upa! Alice agarrou a trave e virou de cabeça para baixo para se pendurar pelas pernas, e depois se içou até ficar sentada. — Upa! Ela ficou em pé, as mãos esticadas para o lado. — Finja que essas são as minhas asas de borboleta — disse ela a Gene. — Quais? — ele brincou, apontando as mãozinhas dela. — As asas de borboleta? — É. — Ela agitou os dedos. — Zzzzzzzzzzzzz. — Muito bem. Agora você não vai precisar que te segurem. Não vão te segurar e você fará tudo sozinha.
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______________________________________________ PROVA P47906 16/04/09 8h45 Sarg. Anthony Giles O meu lugar favorito Alice Piper 2º ano Sra. Major 15 de setembro de 2000 O meu lugar favorito na cidade é a Rua Rabbit Run. É um nome bom. Às vezes, tem coelhos ali e eles gostam de correr. A Rua Rabbit Run desce o morro fazendo curvas e de lá a gente pode ver o rio. Quando eu ganhar a minha bicicleta nova, vou descer a Rua Rabbit Run para vir para a escola. É o meu lugar favorito na cidade inteira e gosto do jeito que ela se liga a outras ruas, como esta aqui, que têm flores e pinheiros ao lado. O meu outro lugar favorito é o celeiro atrás da minha casa, que tem passarinhos dentro dele (andorinhas). Tem um trapézio e uma corda e um jirau. Gene, o meu pai, pintou o celeiro e agora tem tulipas grandes, lá. Ali, a gente pode aprender como é o circo. A gente pode aprender a ser um mágico escapista, ou ler no jirau, ou pode comer lá se a gente não tiver vontade de entrar para jantar. Eu convidaria todo mundo para morar lá, principalmente a minha classe inteira. O rio se encontra com todos os outros rios e depois vai para o oceano. A gente poderia achar navios naufragados como o navio chamado Sea Venture que afundou nas Bermudas em 1608.
Os piratas são gente muito boa, porque deixam todo mundo ser pirata. As sereias atacavam as pessoas, na mitologia. Algumas sereias tinham 50
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metros de altura. Na vida real, eram só peixes-boi, mas não eram grandes. Os piratas precisam ficar de olho nas Selkies10, que são pessoas que viram focas. Adoro nadar com os meus pais e Theo, e o rio pode ser um lugar favorito delas também (sereias). Poderíamos conversar com elas e botar elas no circo. Mas é muito ruim manter um bicho na jaula e obrigar ele a fazer números. Eles não entendem. Os ursos e os leões não sabem o que é o circo. Por isso, não deveriam estar ali. Todo mundo acha que as sereias eram as sirenes da mitologia grega com as suas vozes lindas, mas as sirenes eram pássaros, e não peixes. A sirene de hoje não tem um som bonito. As sereias têm vozes lindas. Mas duvido que a gente fosse atacada por sereias, porque, fora os peixes-boi, elas não eram de verdade. Ninguém já viu uma sereia de verdade. Todo mundo só escuta os outros falarem delas. Então, não dá para provar que elas já aconteceram.
10 São criaturas mitológicas encontradas no folclore das Ilhas Faroé, Islândia, Irlanda e Escócia.
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Wendy HAEDEN, NOVA YORK, 2006 Todos sempre a descreviam como “loura”, “de ossos grandes”, “uma clássica moça do campo”. Lembravam-se de sua mãe com a idade dela, lembravam-se das tias. Falavam do seu sorriso. Como revelava que era uma moça bem-educada e querida. Todos notavam e mencionavam que ela mantinha uma relação tranquila com as tradições. Comentavam que gostava de cozinhar com a mãe e a avó. Wendy era alguém que atraía pais e professores, porque guardava para si os seus pensamentos. Não era tímida, mas tinha qualidades mais raras: compostura, bom senso. Sempre tentava jogar com as cartas que recebia. Não se incomodava com o orçamento apertado da família, aceitava-o como parte do que fazia deles o que eram, do que lhes dava senso de humor. Ela ajudava e se virava como podia. Gostava de cuidar do irmão. Preenchia notas fiscais e faturas para a empresa de paredes de gesso acartonado do pai. Todo mês, mais ou menos, a cunhada cortava o cabelo dela de graça, um corte reto na altura dos ombros. Se achava essa vida chata, se a magoava ou a envergonhava, ela não dizia nada à família. Comparados a muitas famílias dali, a situação deles era boa, e seria simplesmente errado falar disso. Mas, às vezes, ela parecia muito, muito cansada. Às vezes, sentia que tinha adormecido por dentro, enquanto trabalhava bem acordada. Estar ao ar livre a deixava feliz. Andava de moto neve com o pai no inverno e, no verão, nadava no lago com as garotas da equipe de natação. Era uma moça grande, em boa forma, e adorava nadar. Diziam que Wendy era legal. E prática. Elogiavam-na por não se mudar da casa dos pais antes de saber o que queria fazer. Diziam que gostava de casa. E era bem verdade. Ela amava o irmão e a cunhada e não conseguia imaginar não vê-los ou não ver as sobrinhas.
Mas havia outras razões para Wendy decidir ficar em Haeden. Como trabalhava no escritório, não era difícil ver quando entrava e quando saía dinheiro. Desde os 15 anos, era ela quem preenchia os cheques mensais para pagar o empréstimo da White Walls e os levava para o pai assinar. Preparava o jantar nas semanas antes das festas de fim de ano para que a mãe pudesse trabalhar no Wal-Mart durante a loucura do Natal. Wendy entendia o equilíbrio
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delicado do sistema e o papel da sua família nele enquanto cidadãos de Haeden. Pessoas que trabalhavam. E eram pacientes. Não aceitavam esmola, não faziam empréstimo para pagar a escola, não estouravam cartões de crédito nem atrasavam pagamentos. Não davam um passo antes de saber direitinho aonde iam e se tinham algo sólido, como a empresa do pai. Wendy reconhecia a desatenção dos amigos, como pareciam não ver a diferença entre as casas de uns e outros, como comiam uma caixa inteira de cereais na casa de um colega depois da escola, não por estarem com fome, nem parando para pensar se isso cabia no orçamento da família. E ela detestava aquilo. Detestava ser a única que enxergava. Fazia as contas em silêncio e marcava de novo o ponto mesquinho na cabeça, mas nunca em voz alta. Era graças ao pai que os White não eram pobres, e bastaria que o pai desse um escorregão na escada ou um jeito nas costas para que precisassem reconfigurar o orçamento da família inteira. Ela não queria ser dona da verdade. E não queria chamar a atenção para a situação da família. Mas era o seu último ano na escola; todos se inscreviam em faculdades. E isso mudou algumas coisas. Fez com que ela sentisse coisas. Todo dia tinha de escutar dos amigos que mal podiam esperar para se formar e sair daquele “buraco infernal”. — Mas um buraco infernal é o melhor lugar para se criar filhos — brincava ela. E os amigos riam. Todos os pais diziam ter ficado lá porque Haeden era segura e porque todo mundo se conhecia. Mas era isso que a garotada detestava no lugar. Wendy não iria à parte alguma em breve e sabia disso, mas não era um problema tão grande como as outras garotas faziam parecer. Era estúpido fazer o maior drama quando não se tinha muita opção. Ela achava engraçado que as pessoas quisessem ser de um lugar grande e perigoso. Poderia aguentar alguns anos em casa e economizar, se precisasse. Às vezes, isso a fazia se sentir mais forte e esperta do que as amigas. O pai sempre lhe dizia que isso é que formava o caráter.
— Tudo que eu quiser fazer, posso fazer aqui — dissera Wendy a Jenny Hollis, quando voltava para casa depois da natação. Sentiu-se bem ao dizer isso. Estava de saco cheiíssimo de ouvir Jenny falar sobre o campus de Geneseo, da Universidade do Estado de Nova York — como era maravilhoso, e o que comprara para o seu quarto no alojamento, e como seria “intenso” quando ela, finalmente, se tornasse uma fisioterapeuta bilíngue. Wendy também estava de saco cheio de Jenny, o cabelo ruivo-claro, o rosto pálido e redondo e o queixo
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duplo. Parecia um menino de oito anos. E falava como se estivesse sempre séria ou espantada. Como se fizesse um discurso de motivação — pior, como se fizesse um discurso de motivação e também sentisse um pouco de pena de si mesma ao mesmo tempo, mantendo o queixo erguido inclusive quando os outros a menosprezavam. Jenny lembrava a Wendy aqueles cães que vira nas aulas de adestramento, e que sempre espiavam os donos com o rabo do olho, como se quisessem fazer alguma coisa errada e só não a faziam porque estavam com enforcador. Jenny não era livre nem saía de um buraco infernal porque ia para a faculdade. Ela era mimada. Achava bonito o borrão dos seus traços como só as moças ricas podem achar. Uma blusa cara e ninguém nota que você tem um peito esquisito. Dois anos de aparelho e ninguém mais se lembra de que os seus dentes verdadeiros eram mais tortos do que os daquela gentinha dos trailers com quem você sequer falaria. Era nojento. Wendy era mais livre e mais feliz na loja do pai do que Jenny jamais seria tentando fazer os outros gostarem dela pela sua personalidade, e não pelas roupas que usava. Wendy não sentiria falta nenhuma dessa caminhada para casa. — É, mas você não gostaria de ver um pouquinho do mundo? — perguntou Jenny. Isso também incomodava Wendy; quando falavam do “mundo” como se Haeden fosse outro planeta. Wendy fitou Jenny e soube que a garota não conseguia ler a sua expressão, soube que ela não achava que Wendy estava irritada ou que tivesse ideias próprias. Dentro da cabeça, Jenny estrelava uma peça sobre Jenny. — Na verdade, Haeden faz parte do mundo, sabia? — provocou Wendy. — Hã... É mesmo? — disse Jenny. — Quer dizer, tecnicamente, né? Mas... — Não é mais grande coisa sair do seu lugar de origem — contou-lhe Wendy. — Todo mundo faz isso. O mais raro é ficar na sua cidade natal, principalmente quando é a cidade natal da família há cem anos. Jenny a olhou com pena. Wendy sabia como todo mundo, que os Hollis viviam em Haeden há cento e cinquenta anos, por causa da Rua Hollis. E eles não tinham qualquer problema em ir e vir. É claro que não. De repente, Wendy sentiu vontade de dar uma gargalhada, porque Jenny, a séria e inteligente Jenny, não percebia que aquela conversa delas era sobre dinheiro. Em momentos como esse, Wendy, gostava mais do que nunca da sua família. Mas não havia como dizer isso sem parecer careta, pobre ou insegura. Então, ao chegar em casa, já quase não conseguia suportá-los outra vez.
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Não era só Jenny, os pais ou as sobrinhas que a desgastavam. Ela começava a ser insolente com as pessoas, dentro da própria cabeça, e a responder às suas perguntas de um jeito engraçado, só para si. Sabia que sua mãe notava. Certa vez, no jantar, as sobrinhas e a cunhada, Beth Ann, estavam de visita e falavam muito alto, e a mãe a olhou com um sorriso tão engraçado que Wendy achou que ela estava lendo a sua mente. Que elas faziam as mesmas piadas silenciosas. Talvez a mãe e todas as tias sempre tivessem feito isso. Talvez só naquele momento ela começasse a alcançá-las. Às vezes, passeando no domingo com Beth Ann e as meninas, Wendy sentia vontade de jogar todas as suas coisas no rio. Todas as suas coisas — a bolsa, os livros da escola, as bijuterias estúpidas, os sapatos —, ela queria ficar ali na ponte e largar tudo, observar as coisas indo embora na corrente até que ela estivesse livre, não livre de Haeden, mas da pessoa que Haeden esperava que ela fosse e à qual ela não tivera força suficiente para resistir. * * * A situação melhorou no outono, quando todos partiram para a faculdade. A princípio, Wendy sentiu falta deles, até de Jenny, mas quase todas as amigas foram para escolas próximas, e ela podia visitá-las quando não estava trabalhando no fim de semana. Não gostou dos alojamentos, que pareciam vulgares, e os corredores eram estreitos demais. Todos os campi pareciam iguais: prédios de concreto, labirintos de estacionamentos e calçadas. Ela preferia quando as amigas voltavam para casa e ficavam com ela, iam às compras, ficavam até tarde assistindo filmes ou iam dançar em Elmville. E, então, a cidade parecia dela. Conhecia todo mundo, não só os pais das amigas e os amigos dos seus pais; conhecia todos os trabalhadores. Gostava deles. As amigas só conheciam umas às outras. Alguns rapazes da sua classe tinham arranjado emprego em Haeden ou Elmville, ou moravam em casa, ajudando os pais, enquanto resolviam o que queriam fazer. As moças, não. As moças sempre iam embora.
Vários rapazes que ficaram tinham planos de construir ali perto. Dois rapazes que frequentaram a escola com ela iam “viver fora do sistema”, numa terra que o avô de alguém deixara. Diziam que, logo, todo mundo estaria vivendo fora do sistema. Isso fazia o pai dela dar risadas toda vez que ela lhe falava sobre o assunto. Estavam erguendo uma casa feita de fardos de palha; diziam que iam construir um moinho de vento. O pai dizia que estavam dando importância demais ao jeito como as coisas eram antes de a construção ter
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ficado mais fácil. Só quem podia pagar por uma casa era gente rica, disse ele. Essa é a piada! Daqui a pouco, os ricos vão querer morar em cavernas. Já estão pagando quatro dólares por um litro de leite não pasteurizado! Alguns rapazes da turma dela foram para o Iraque ou para o Afeganistão. O pai disse que, na guerra, havia mais soldados de lugares rurais, como Haeden, do que de cidades grandes. Disse que era sempre assim para os garotos operários ou que trabalhavam na roça. E disse a ela para nunca sair com aqueles rapazes quando voltassem. Nos dias tranquilos, ela e o pai sentavam-se no escritório e conversavam, contavam histórias sobre as sobrinhas de Wendy e pensavam em como seria o futuro. Ela lia as especificações dos projetos que ele recebia e tentava imaginar como ficariam as casas em que ele trabalhava, quando ficassem prontas. Adorava ficar com o pai. Quando pequena, costumava ficar sentada na loja, comendo biscoitos de água e sal e desenhando casas. Ele a ensinou a fazer a planta do interior. Ela era muito boa em desenhar casas por dentro e por fora e em cuidar das finanças. Também fofocavam. Falavam de como as pessoas viviam, de como todos sabiam os podres dos outros e, ainda assim, se gostavam, fingindo não saber tudo sobre a vida privada de cada um, ou esquecendo-se dela, ou dando-lhes o benefício da dúvida. Os dias tranquilos eram uma faca de dois gumes. Ela temia pela empresa do pai, mas gostava de ficar perto dele. Finalmente, ele conseguiu tempo suficiente para preencher todas as faturas e ela arranjou um emprego de garçonete no Alibi da Main Street, a um quarteirão da loja de 1,99 e a meio quarteirão do Rooster, para ganhar mais dinheiro. Alugou um apartamento a alguns quilômetros da casa dos pais, na Town Line Road, perto do pequeno bosque e do Savers Club. E, nas férias, quando voltaram da faculdade, as amigas ajudaram-na a se mudar e deram uma festa de inauguração da nova casa. O lugar era lindo. O Alibi se enchia na happy hour. Quando os homens saíam do serviço na Home Depot e os operários e pintores de parede vinham jantar, sentavam-se no balcão de madeira polida, nos banquinhos vermelhos, tomando cerveja PBR e assistindo à TV, ou se amontoavam nas mesinhas. Nas quintas-feiras, um grupo de três magricelas de jeans grosseiro da Carhartt e camisa de flanela tocavam músicas antigas. Banjo, contrabaixo e violino. Cantavam “Cotton Eyed Joe” em uníssono, sentados em círculo com a cabeça erguida para o céu e os olhos estreitados. As pessoas faziam os pedidos e conversavam com ela, que conhecia quase todos pelo nome. E todos a conheciam.
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Os homens de 20 ou 30 e tantos anos conversavam com ela sobre antigos professores que tinham tido em comum, perguntavam se podiam lhe pagar uma bebida, se o irmão dela algum dia compraria aquela terra. Eram responsáveis, como o pai dela, e ainda não tinham esposa e filhos, como o irmão. Havia um ou dois deles em quem ela pensaria depois, como Dale Haytes, que se formou quando ela estava no primeiro ano. Gostaria de saber o que ele estava fazendo. Dale tinha 22 anos agora e ia bastante ao bar. Ele e o tio, que, na verdade, era só um pouco mais velho, e um monte de homens da fábrica de laticínios. Sempre levava com ele o irmão menor, o que Wendy achava fofo. Bruce era um rapaz robusto e calado que jogava futebol americano na escola secundária e tinha a pele muito clara. Às vezes, fazia Wendy se lembrar de si mesma, como se pensasse muito, mas preferisse observar em vez de falar. Dale seria o tipo de namorado que os seus pais adorariam. Tinham muito em comum, embora ele fosse mais velho e a sua família tivesse dinheiro. Ambos aproveitavam ao máximo o que havia em volta, respeitavam suas famílias. Ambos haviam sido muito dedicados aos seus times, na escola. E havia algo no jeito como todos quase conseguiam desdenhar Dale, como se o negligenciassem, como tinham negligenciado Wendy. Ela se lembrava dele na época em que estava no primeiro ano e ele jogava bola. Não se lembrava se tinha namorada. Podia entender que alguém dissesse que ele era comum. Dava para ver que havia coisas que ele pensava, mas não dizia. No horário tranquilo depois dos preparativos e antes de começar a servir, Wendy fumava cigarros mentolados com o cozinheiro e o lavador de pratos sentados na cerca da varanda dos fundos, que dava para um estreito riacho. Conversavam sobre filmes e Chad, o cozinheiro, falava de outros lugares onde trabalhara e de como eram movimentados, ou do tipo de comida que serviam. Bill, o lavador de pratos, falava em usar o spray de chantilly como lança-perfume. — Não, cara. Essa merda não faz bem e passa depressa demais — dizia Chad. — É do caralho! — comentava Bill. — Vi um bando de pássaros, azuis como aqueles da Branca de Neve, voarem bem na minha direção e passarem pela minha cabeça. Deu para sentir as asas deles, e então acabou bem naquele momento, e eu estava novo em folha. Dá para comprar na loja. — Ele cantarolou, balançando a lata de um lado para o outro. — Dá para colocar no sorvete! É muito prático!
Wendy riu. Gostava do jeito como Bill falava. De como ele não dava a mínima para o que pensavam dele. Era alguém com quem ela talvez pudesse
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sair, também. Não ligar. Dar uma cheiradinha. Pedir a ele que lhe ensinasse a andar de skate. E daí que ele tinha 30 anos? — Ai, meu Deus! — disse Wendy. — As minhas sobrinhas adoram Branca de Neve, mas não conseguem pronunciar. Só falam de Banca Tineve e Tindelela. — Ela não sabia por que aquilo a fazia rir tanto naquela hora. Talvez estivesse simplesmente feliz. — Sou Tindelela! — repetiu ao soltar a fumaça e jogar o cigarro para longe da varanda, com um peteleco. — Você é Cinderela — disse Bill, sorrindo para ela. — Sou? — perguntou ela, rindo e esticando o pé. Usava tamancos de jardinagem de plástico vermelho da Agway. Ele se inclinou para frente, envolveu a cintura dela com o braço, olhou o seu rosto bonito e, por um segundo, Wendy achou que ele ia beijá-la. Então, Chad disse: — Pedido! Correndo da cozinha para as mesas, perdendo as refeições na casa dos pais e depois andando até o seu apartamento todos os dias, Wendy começou a entrar em forma, ainda mais em forma do que quando era nadadora, mas ainda restava algum tipo de suavidade em seu corpo. Ela podia sentir. Os braços ficando mais fortes e magros de tanto levantar bandejas. Começou a ficar mais corada. A gordura da infância começou a sumir e a mostrar a linha do queixo, as maçãs do rosto, a definição das panturrilhas. Começou a se preocupar menos com o cabelo e o deixou crescer, prendendo-o com uma presilha. Sentia-se livre. Como se pudesse estar em Haeden e se livrar das pretensões bobas de ser de Haeden, os hábitos de falar sobre quem possuía qual terra, sobre onde passar as férias ou sobre de quem o seu avô se lembrava, e o discurso quase obrigatório de como se amavam as paisagens tão lindas, mesmo quando ninguém as notava nem nunca vira outra coisa para comparar. Wendy era uma flor tardia, entrando de maneira surpreendente e elegante na beleza da sua juventude. Ainda ia ao salão da cunhada, mas principalmente para fazer manicure e luzes. Usava batom rosa-escuro e um pouco de rímel. E era delicada daquele jeito, daquela maneira suave, angulosa e inteiriça, como tinha de ser. Do jeito que sempre quisera ser.
Agora que tinha essa aparência, pensou que talvez, os outros a enxergassem. Conseguissem ler melhor o seu rosto. Parassem de chamá-la de “educada” e “legal” e de perguntar “Você é uma White, não é?”, o que sempre lhe dava vontade de cair na gargalhada na cara deles. Ou “Você não é a
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garotinha de Danny White?”, o que ela achava hilariante, antes de emagrecer. As pessoas deviam sentir pena dela, mas ela nunca sentia pena de si mesma. Deviam ter sentido pena e suposto que era burra, tímida ou ingênua, ou que não poderia pensar nada de ruim sobre gente magra, rica e simpática. Não poderia ter ideias próprias sobre as coisas. Mas, agora, conseguiriam vê-la. Quanto menos maquiagem usava, mais magra ficava; todos simplesmente suporiam que estava ficando mais inteligente, também. Não pensariam que sempre fora inteligente, não perceberiam que sempre fora bonita, também. E ela precisava admitir que gostava que reparassem nela. Gostava da liberdade que isso trazia. Ser a moça bonita. A moça que os outros olhavam como se ganhassem um presente inesperado. Certo dia, depois de servir uma cerveja ao amigo do pai que era dono da loja de 1,99, na 227, ela pôs o troco sobre o balcão e ele disse: — Ora, obrigado, Miss América. Wendy lhe sorriu. Notou que ele e os amigos olhavam diretamente para ela. — Você não adora as louras? — comentou o homem sentado ao lado. Era o Doutor Green. Veterinário de animais de grande porte, que trabalhava na fábrica de laticínios. Foi falar na escola dela, certa vez. — Ah, claro! — respondeu o amigo do pai. Depois, piscou para ela e deixou um dólar e cinquenta onde antes estivera a cerveja.
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Flynn A verdade é que, depois que acharam o corpo, depois que publiquei a matéria, não queria voltar ao trabalho. Não queria ver ninguém. Não queria conhecer ninguém. Não queria sequer ir para o meu apartamento. Pensei em deixar a cidade, naquele dia. Observei homens que só sabiam preencher multas, cuidar de cruzamentos ou discutir com bêbados cuidarem da série de procedimentos íntimos envolvidos em embalar e remeter um corpo que costumava pertencer à filha de um amigo ou à babá do filho deles. Na noite em que acharam o corpo de Wendy, quis ficar sozinha. Porque um silêncio completo caíra sobre tudo. Como um rádio, tocando há tanto tempo que nem se nota quando, de repente, ele é desligado. O barulho não resolvia o problema; só se tornava mais evidente quando alguém falava. As palavras pendiam no ar. Como se todo pensamento periférico, toda observação circundante, as coisas que eu imaginava ou pensava em dizer, fossem varridos. Esse silêncio parece uma espécie de calma. Mas, na verdade, está um ponto além da raiva. Ninguém poderia fazer nada a respeito de Wendy White. Nunca mais se poderia fazer nada para ela nem por ela. E nada que pudesse ser feito a quem a colocou naquela situação mudaria isso. Todas as paixões e todos os ideais e entendimentos sobre justiça e humanidade, todas as noções e sensações e “crenças” do nosso piloto automático não passam de coisas que o cérebro nos deixa considerar para que tenhamos um ponto no qual concentrar a nossa mágoa. O silêncio nos faz saber que ele já tinha a resposta há um milhão de anos. Respostas que não consistem em palavras nem sons, mas em cheiros que a gente não percebia que reconhecia, de gestos iguais aos dos animais. Quando fui para casa depois de deixar a redação, fiquei muito tempo no banheiro, olhando para o espelho com a água correndo na pia, só para ouvir alguma coisa. Mas o silêncio logo encobriu o barulho. Meu rosto e meu cabelo escondiam meu crânio, e os meus olhos redondos e úmidos fitavam a si mesmos. No silêncio, eu era metros e metros de pele, reações autônomas, pelinhos e poros.
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Até que ponto é descartável a vida de uma mulher? Até que ponto é esperada? Até que ponto não é surpreendente? Até que ponto é normal? Quantas vezes por semana, mês, ano isso acontece? Eu queria ficar sozinha. Mas não poderia ficar sozinha pensando nessas coisas naquela noite. E, na verdade, acabei não passando a noite sozinha mesmo. Wendy White me contou uma história por meio do seu corpo, uma história que eu já sabia. Uma que, até aquele momento, eu fora incapaz de retransmitir. E escrevi tudo. Contei a Alice. Ainda não sei se me arrependo. Só sei que, quando penso nisso agora, vejo aquele momento à beira do bosque Tern como o instante em que se abriu um barril de pólvora. Para o bem ou para o mal, sei que a morte de Wendy não foi em vão.
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______________________________________________ PROVA P47907 16/04/09 8h40 Sarg. Anthony Giles Hibernação Alice Piper 5º ano Sr. Kennedy 23 de setembro de 2003 Quando se pensa em hibernação, todos imaginam ursos dentro de cavernas, de gorro na cabeça e chinelos, ou toupeiras ou texugos ou ouriços ou porcos-espinhos adormecidos e amontoados para se aquecer. Ninguém pensa em insetos, porque os insetos não vivem muito e não há muitas imagens deles dormindo nas histórias nem nos livros da escola. Este ensaio (com os gráficos anexos) dará uma explicação sobre um dos tópicos mais interessantes que já encontrei em muitos, muitos anos gostando de ciências. Tive de ir à biblioteca da Universidade de Elmville para descobrir tudo isso... MAS (tambores, por favor): Os insetos hibernam! Geralmente na forma de larvas. Os ovos de grilos e gafanhotos congelam durante o inverno antes de eclodir na primavera. As formigas hibernam. Vespas, besouros e algumas espécies de borboleta também hibernam, quando adultos (ver no gráfico A3 as informações geográficas sobre várias espécies de gafanhoto).
A hibernação dos insetos se chama diapausa. Não acontece só no inverno, mas em qualquer época em que o inseto tenha de sobreviver a “situações previsíveis e desfavoráveis, como o tempo frio, a seca e a fome” (ver o desenho 7). A diapausa é um estado de repouso parecido com o que acontece com as sementes quando estão no solo, mas não têm água. Também pode ser descrita como: “a suspensão da atividade de busca.” Depois que adormece, são
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necessários estímulos especiais para tirar o inseto do seu sono, parecido com o efeito do beijo na Rosa Vermelha (ver os gráficos A8-A12 e o desenho 8). Embora fatores ambientais provoquem e interrompam a diapausa, mudanças no ambiente e padrões climáticos imprevisíveis (aquecimento global!!!) podem ter efeito negativo sobre os insetos ao libertá-los cedo demais da hibernação. Alguns cientistas acham que isso está provocando a extinção de certos insetos. Correm risco específico de extinção as seguintes espécies de borboleta: Mourning Cloak, Comma, Question Mark e American Snout (ver o gráfico B2, cronologia 1). Abelhas e borboletas são importantes para todo o nosso ecossistema (ver o gráfico B3). Por isso, é importante que não sejam perturbadas enquanto dormem (ver o desenho 4). Portanto... shhhhhhhhhhh! ______________________________________________ Stokes, Donald. (1993) Stokes Butterfly Book: The Complete Guide to Butterfly Gardening, Identification and Behavior. C. A., Masaki, S. (1986) Seasonal Adaptations of Insects. Oxford University Press.
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Flynn Não tive dificuldade em obter informações sobre Alice Piper. Mesmo que ela fosse uma criança, uma adolescente, quando aconteceu, já tinha uma vida muito pública em Haeden. Havia escrito vários perfis dela, conheci-a cerca de um mês depois de começar no jornal, em 2003, porque ela tirou primeiro lugar no concurso de “vantagem verbal” do segundo ciclo do ensino fundamental. Depois disso, derrotou todos os outros geniozinhos do leste dos Estados Unidos. Eu a entrevistei na época e fizemos uma reportagem. Naquele tempo, era uma menina magricela de pernas compridas e cabelo ondulado, quase branco, de tão louro. Uma menina bem miúda. Com carinha de bebê. Tinha aquelas sardas minúsculas e grandes olhos azuis, translúcidos. Era realmente um doce de criança. Tinha uma mente incrivelmente astuta. Eu gostava de Alice. Sabia como era ser a menor criança da turma. E isso pode nos fazer prestar mais atenção aos detalhes. Mais tarde, naquele mesmo ano, ela ganhou um concurso de ciências do distrito, patrocinado pelo setor avícola, com um projeto de paraquedas e dispositivo de pouso para um ovo cru. Construiu o projeto usando espuma, arame e aquelas coisas plásticas que mantêm as latas juntas num pacote de cerveja. Dava para jogar o ovo no ar e, com essa coisa que ela construiu, ele pousava sem se quebrar, em nove de cada dez vezes. Muito legal uma criança conseguir fazer uma coisa dessas. Quando ela começou o ensino médio, publicávamos duas reportagens por ano sobre ela ou sobre os seus projetos. Era a primeira aluna da turma, capitã da equipe de natação, voluntária no hospital. Poucos pais pediriam mais do que isso a uma criança. Mas ela não era a típica “boa aluna”. A gente sempre a via fazendo coisas pela cidade, coisas meio esquisitas, como tentar desenhar o maior jogo de amarelinha do mundo, com giz, na Main Street. O projeto não interferiu no trânsito, mas Dino a fez parar depois de quatro ou cinco quarteirões.
Ela e os amigos também tinham um jogo que chamavam de Maior Melhor. Às vezes, Alice e aquele menino magro e alto que cheguei a pensar que era seu irmão, e outra menina chamada Megan, vinham à redação do jornal depois da escola com objetos aleatórios e me perguntavam se eu os trocaria por algo maior, ou melhor. Faziam isso pela cidade toda, esses garotos doces, entediados e nerds. Começavam com uma bola de borracha ou um clipe de papel por volta das três da tarde e acabavam com um micro-ondas usado ou
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um enfeite de jardim rachado e coberto de limo quando chegava a hora de ir para casa, e começavam tudo de novo no dia seguinte. O melhor que conseguiram foi começar com um carretel de linha e acabar com uma lavadora e secadora compacta que, embora lascada, ainda funcionava. Eu lhes ofereci cinquenta dólares, mas preferiram um saco de Hershey’s Kisses. Maior Melhor seria o tema recorrente de Alice na época em que morou em Haeden. Ela era uma empreendedora. É verdade que era eu que decidia pautar a menina, mas qualquer um faria o mesmo. Ela era incrível — e não era rica, não tinha aulas particulares nem coisas assim. Era só, sabe, ela mesma. O pai trabalhava em meio expediente no Solo e Água, e várias vezes obtive com ele mapas e informações. A mãe, às vezes, trabalhava em casa, revisando livros de medicina. Adorava escrever sobre ela, até que comecei a detestar. Ao contrário do caso White, o caso Piper gerou montanhas de informações oficiais, e nada do que a polícia me deu foi censurado. Nada. Simplesmente me entregavam coisas como se eu fosse colega deles, com nomes, endereços e números de telefone ainda visíveis. Nenhuma linha coberta por marcador preto. Umas paradas ilegais, também. Como nomes e endereços de menores. Isso não era comum, já que com Dino eu não conseguira nem o registro de ocorrências, quando cheguei à cidade. Ele disse que o jornal nunca precisara do registro de ocorrências e que não havia nada a declarar. “Acha que todos querem ler fofocas sobre brigas de vizinhos?”, perguntou. “Ou sobre o tio de alguém que apalpou fulaninho onde não devia? Ninguém quer ler esse tipo de coisa sobre os vizinhos; não é crime de verdade, só é triste. Além disso, essa merda circula antes de o jornal sair. Então, não vejo por que você precisaria do registro.” Durante a investigação do caso Piper, eu entrava na pequena delegacia e pedia para ver os documentos, e a secretária me entregava depoimentos e interrogatórios completos. Pensei que tinha me dado bem e tentei esconder isso de Dino, mas, embora ele não dissesse nada sobre suspeitos além do costumeiro “estamos seguindo todas as linhas de investigação”, me dava tudo o que eu pedia. Até o que eu não pedia. Ele achava que descobrira uma conspiração. Essa crença é a única coisa que ele e Alice Piper tinham em comum. A crença de que viam indícios de uma facção. Houve vezes em que desconfiei de que Dino achava mesmo que conseguiria ligar tudo aquilo à Al Qaeda ou à Earth First.
Ninguém sabe muito sobre os detalhes e, consequentemente, muitos detalhes foram simplesmente inventados. O acontecido se deu duas semanas
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depois que o corpo de Wendy foi encontrado, não no dia seguinte, como conta a lenda urbana comum. Não foi assim. Repórteres de toda parte baixaram na cidade. Usavam os subleads das minhas reportagens originais, montando as suas próprias nas mesas do Alibi ou do Rooster, paravam para conversar no Free Press. Para tentar obter alguma declaração minha. Eu sabia que tinha material de primeira mão que eles não tinham e uma compreensão melhor dos moradores e da polícia local, apesar dos sentimentos de Dino sobre o que eu escrevera. E sabia que queriam me foder bonito na imprensa nacional, também. Tinha de ficar a par da história. Por várias razões. O que eu vira e o que pesquisara não estavam me ajudando nesses meses anteriores ao meu 29º aniversário. Aguentara cinco anos morando em Haeden, escrevendo sobre jogos de futebol americano do ensino médio e sessões da câmara de vereadores, para usar o tempo livre recolhendo informações sobre a política ambiental do estado e do país. Para que pudesse ver como tudo aquilo funcionava, descobrir onde as coisas eram enterradas em silêncio. Não esperara ser atraída por qualquer notícia verdadeira da cidade. Passava todo o meu tempo entre relatórios criminais e fotos de arquivo. E, se passasse um dia sem escrever, começava a me sentir mal fisicamente. O Free Press tinha fotos de Alice no arquivo desde a época em que estava no sétimo ano, fotos que depois todos quiseram ter. Vendemos cópias da que vocês já viram. Foi tirada no verão que precedeu o ocorrido. Na foto, ela está sorrindo, bronzeada e sardenta, de cabelo curto, espetado e clareado pelo sol. Está com aquele ar adorável no rosto, em pé diante do borboletário que projetou para a escola primária. As borboletas eram coisa dela, e a equipe de natação patrocinou o projeto para os pequenos. Na foto, os ombros estão fortes e bem-definidos, o corpo de atleta, os olhos brilhantes, azul-gelo, uma covinha na bochecha esquerda. Olhava diretamente para a câmera. Li em algum lugar que alguém ampliou e copiou a foto, que se tornou um sucesso de vendas nas lojas de cartazes das cidades universitárias, um elemento decorativo na parede do quarto de muitas jovens.
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Claire HAEDEN, NOVA YORK, 1998 Claire observou enquanto o Lexus verde-escuro estacionava no meio-fio diante do Rooster, e Theo descia e depois pegava no carro algo que pôs no bolso. Ficou parado por um minuto e acenou quando o carro se fundiu de novo à Rodovia 34, depois seguiu para o bar. — Só o deixam aqui e vão embora assim? — perguntou Harley. — Por que nunca ficam? — Bons demais para nós — disse Ross, mas não era bem o que queria dizer. Orgulhava-se da irmã, professora universitária, e gostava de ficar com o menino. Além disso, sabia que ela não gostava da música antiquada e só ofenderia os outros se ficasse ali, erguendo os olhos para o teto. Theo cruzou o bar mal iluminado até a mesa entre divisórias, nos fundos, onde eles estavam sentados. Ao ver Ross, Claire observou-o sorrir. Usava a mesma camisa da véspera e parecia que alguém passara um pente molhado no seu cabelo. Antes que chegasse à mesa, Alice o chamou lá de onde ficava o alvo dos dardos, e ele correu para ela sem dizer nem um olá ao tio. — Ele é bom demais para nós, também — brincou Gene. — Não, ele sabe o que é prioridade — disse Harley. Olhou rapidamente o relógio e depois para o pequeno palco junto à janela da frente. Então, apoiou os cotovelos na mesa e sorriu. O cabelo grisalho e comprido tocava os ombros. E disse: — Enquanto estamos no tema dos esnobes, vocês viram que os Haytes compraram um monte de placas novas lá para aquele rancho de merda? Eu e Annie fomos lá levar uns biscoitos das escoteiras para Bev, e agora todos aqueles caminhos entre os tanques estão marcados com placas de rua... Uma delas é a Via Niklaus. — Que merda! — disse Ross.
— Não entendi — disse Claire. Reclinou-se e apoiou as costas contra o peito de Gene na mesa na qual estavam todos sentados, e ele passou os braços em torno da cintura dela. As mãos eram ásperas, as unhas sujas. Os antebraços agora estavam extremamente bronzeados, a faixa tatuada ainda mais azul e indistinta. Nunca fora tão forte em todo o tempo que estavam juntos, nem tão
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feliz. Quando ele descansou o queixo no ombro dela, ela sentiu o cheiro de sabonete Dove. — Ah, estão dando nomes de golfistas a partes da propriedade, só isso, mas me pergunto quanto custaram as placas. — Harley ergueu os olhos na hora em que Alice passou correndo, seguindo Theo na direção da porta, e a pegou pela cintura. — Ei, Alicinha, antes que você e o seu namoradinho saiam correndo... — Ele puxou do bolso um envelope retangular. — Arranjei com Annie sementes de erva-cidreira para você. — Valeu! — Ela o beijou no rosto. Abriu o envelope e espiou dentro. — Muito obrigada. — Agora, isso vai atrair o tipo certo de insetos para o seu jardim — disse ele. — Avise se quiser alguma variedade diferente, porque ela tem todas guardadas à sua espera. E não se esqueça: você tem de marcar com Annie para ela lhe ensinar a fazer armadilhas de cerveja para lesmas. Alice o abraçou pelo pescoço. — Está bem. — Harley lhe deu um tapinha nas costas. — Agora, pode ir. — Aonde vocês vão? — perguntou Gene a Alice. — Ao rio. — Prestem atenção! — disseram Ross e Claire em uníssono. — Não passem da base da ponte — completou Gene. — Isso não dá nem um metro! — queixou-se Alice. — Isso mesmo — confirmou Gene, e voltou para a conversa na mesa enquanto as crianças saíam correndo. — Aquela fábrica de laticínios causou um efeito enorme nas terras circundantes. Duvido de que alguma terra num raio de alguns quilômetros de onde estão jogando aquela merda consiga certificação orgânica.
Como sempre, isso acabava com qualquer conversa. A mesa toda aguardou que Gene explicasse alguma coisa técnica sobre o solo que os deixaria deprimidos, ou descrevesse alguma nova situação arriscada com agronegócios gigantescos como Gen-Ag-Tech e terminasse com a exigência de que todos fossem a mais assembleias da cidade. Por mais pesado que fosse o tema, Claire sabia que ele gostava de falar daquilo. Adorava a luta. Na cidade grande, depois de largar o emprego e inaugurar a estufa, participava de assembleias
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algumas vezes por semana, ou ia à Union Square com os seus colegas agricultores urbanos para fazer divulgação. Em Haeden, tudo bem ir às assembleias da cidade uma vez por mês, mas ninguém compareceria a todas, como ele queria. E pararam de lhe dizer “Vou ver se vou”, porque depois ele telefonava oferecendo carona. Aparecia com Alice, um pão de abobrinha e dois litros de sidra. Claire detestava ver isso acontecer. Sabia que todos deveriam receber mais informações numa cidadezinha daquele tamanho, mas também sabia o quanto as pessoas eram distantes umas das outras, e o tempo que passavam dirigindo ou trabalhando durante o dia. Gene não ficava cansado como os demais homens. Nunca ficara. — Você devia fazer esse discurso lá no Alibi — disse ela. — Aqui, está ensinando padres a rezar missas. — Estou tentando motivar os padres — respondeu ele. Todos riram. — É, além disso — disse Ross, meio bêbado —, não precisamos de nenhum Alibi, se me perdoam o trocadilho. Eles não dão a mínima para a fábrica de laticínios. Só tem gente rica por lá... Acham que nós somos ricos porque fomos para a faculdade. — Ele parou, meneou a cabeça na direção deles e depois percebeu que não argumentara. — Aquela Lei dos Veteranos me ajudou a ganhar uma graninha, rapaz. Nem te conto como acabou sendo útil o meu diploma em estudos americanos. — Sem dúvida — concordou Claire. — Quem sabe citar os Pentagon Papers, ganha dez dólares a mais por hora ao consertar um telhado. Eles riram e brindaram com as canecas de cerveja, mas essas coisas incomodavam realmente a Claire. O pouco dinheiro que tinham, depois de terem estudado tanto outra coisa, e a falta de treinamento e de prática nas coisas que faziam. O fato de que, se não tivessem a horta, realmente passariam necessidade. Ganhavam apenas o bastante para o aluguel e para as contas, e trinta dólares por semana para mantimentos; o fato de a horta depender do clima e da saúde deles — o que, na maioria das vezes, estava fora do seu controle — era mentalmente exaustivo. Ela ainda não entendia como alguém conseguia viver com os salários ali do norte do Estado. E, apesar de todos os clamores de pobreza no Rooster, desconfiava que a maioria das pessoas com quem conversava tinha família rica, tinha redes de segurança. Sabia que era assim no caso de Constant, embora o assunto fosse delicado.
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— Cara, você sabe que vou aparecer — disse Harley a Gene. — Mas essa merda já existe há anos, e quero dizer uns 50 anos. Os Haytes têm um monte de contatos que os ajudam o tempo todo. — Ele bebeu o que restava de cerveja na caneca. — O melhor é cada um ter a sua horta. Não comer dos fazendeiros que trabalham com eles, para não comer tanta química e tanta merda. Ele deu um tapinha no ombro de Gene e voltou ao círculo de cadeiras junto à fachada de vidro da frente do bar, lugar onde a mulher já afinava o seu contrabaixo. Annie era alta e forte. Tinha as mãos nodosas de um músico de cordas, a franja grisalha pendia sobre olhos azul-escuros e o rosto era marcado por rugas de sorriso. Piscou para Harley quando ele foi na direção dela. Claire observou-a dizer apenas com os lábios, sem emitir som, as palavras “Oi, amor”. Claire os adorava. De alguma forma, eles tinham dado um jeito de fazer as coisas darem certo para eles lá. E Harley conseguia ficar a par de toda a politicada, sem perder a fé quando a situação não era como gostariam que fosse. Ela se perguntou se ele se parecia com Gene, mais jovem. Annie e Harley lhe lembravam os amigos da cidade grande. Tinham um fatalismo parecido. Tocavam toda semana, plantavam a própria comida, reclamavam da mentalidade suburbana, tentavam fazer o que era certo, nunca alimentavam a ideia de que as pessoas comuns, as que se preocupavam com o próprio status ou a posição; não passavam de panacas. Certa vez, Annie dissera a Claire que ela e Harley tinham problemas financeiros e aliviavam a tensão dizendo: “Ah, tudo bem... se não der certo, a gente pode sempre se suicidar”. Annie riu tanto ao contar isso que teve de enxugar as lágrimas dos olhos, e Claire se espantou ao perceber como eram durões e esquisitos, e como os amava. O restante da banda acabou de beber no bar ou foi ao banheiro antes de voltar ao palco. O grupo era formado por músicos mais velhos, homens e mulheres de 50 e 60 anos que tinham se mudado para Haeden como hippies quando eram jovens. E levaram tão a sério a ideia de “voltar ao campo” que montaram uma banda na qual um dos principais instrumentos era uma tábua de lavar roupa. Faziam um belo espetáculo, exuberante e, principalmente, sustentado por alguns litros de cerveja quando o dia refrescava depois do trabalho. Eram como padrinhos de Gene e Claire, gentis e gratos porque uma família jovem e com as mesmas ideias que as deles tinha se mudado para a cidade. Claire recostou as costas no peito de Gene e escutou Harley cantar. “Shady Grove, my true love, Shady Grove, I say, Shady Grove, my true love, bound to go away.”
E, como acontecia na cidade grande, a música abafou suas preocupações — ou, pelo menos, lhes deu a trilha sonora certa. Então, era essa a sua vida, e Claire é que se sentia grata por estar lá com eles. Pensou em Alice e nas coisas
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que a filha aprenderia crescendo em Haeden. Quanto tempo e tranquilidade teria. Claire ficou contente por não a estarem criando em Manhattan. Naquele momento quente, de pilequinho, quase sonolenta, sentada sob as luzes amarelas do bar aconchegante, Claire sonhou com a vida de brincadeiras e estudos da filha no seu sitiozinho, as suas aventuras com Theo na margem do rio. E soube que esse era o mundo que permitiria a Alice ver tudo com clareza, que faria dela o tipo certo de mulher.
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Gene NOVA YORK, NOVA YORK, 1992 Gene usava bermudas pretas até o joelho cobertas de tinta e gesso e uma camiseta branca fina, as mangas do suéter de lã arregaçadas revelando o antebraço tatuado com uma faixa de código binário rodeada de insetos. Era alto, calado, musculoso, forte. O cabelo louro, quase branco, era raspado nas laterais, um rodamoinho na parte de trás da cabeça. Estava ajoelhado diante de um canteiro de terra preta de 2,5 por 3,5 metros, arrancando ervas daninhas em volta de brotinhos verde-claros, finos como linhas. Atrás dele, Constant estava em pé na entrada para o telhado, usando calças de pijama, o cabelo preto numa massa rebelde, barba de dois dias no rosto, sobrancelhas grossas, lábios carnudos. Sua pele escura era marcada por uma cicatriz no ombro esquerdo que parecia uma grande ferida branca; tinha outra, igual, no estômago, um hematoma ou uma queimadura. — Você pode, pelo menos, pensar no assunto? — perguntava Constant. — Quero que você pense no assunto. — Ora, que legal, cara, é legal saber o que se quer. — Gene tentava ignorá-lo. O que queria era alguma ajuda com os brotos ou alguma boa conversa para matar o tempo. Sabia que a notícia pegara Con e Michelle de surpresa, mas não estava pronto para uma reunião fraternal. — Fale sério nem que seja por uma merda de segundo. Você não vai poder sustentar uma criança com o seu talento para andar numa perna de pau, e a probabilidade de você arranjar outra bolsa não é lá muito realista. — Sempre se pode lavar pratos. Qualquer coisa, cara. Sou adepto do “faça você mesmo”. Prefiro fugir para trabalhar no circo a fazer a merda que você está falando. Gene pensou no sorriso de Claire, no seu rosto elegante e delicado. Os dentinhos retos e os grandes olhos cinzentos. Olhos doces e inteligentes. Pensou em como ficavam os ombros dela quando se sentava à sua frente na bicicleta, descendo depressa pelo corredor deserto e varrido pelo vento da Avenida A, no caminho de casa, vindo da clínica de atendimento gratuito, grades de metal puxadas por sobre as portas. Sabia que um bebê mudaria as coisas. Mas não tanto assim. Não como Con dizia.
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— Se aceitar o cargo, vocês terão tempo para que Claire termine o ano que vem na clínica e ajeite tudo, para que possa tirar férias antes de o bebê chegar. — Sinceramente? Não acredito que você ainda esteja falando nisso. Caralho, se eu fizer isso, Claire me larga em vez de me agradecer. Já estou ficando de saco cheio de você fazendo esse tipo de merda, então, pode me deixar de fora. Ok? Pode ser? — Gene. — Não. Não. Você quer ser um clichê ambulante? Então, vá fundo. Três anos de idealismo, juramento de Hipócrates, e depois você vai fazer estudos clínicos só porque, de repente, não gosta do seu estilo de vida? Sério mesmo? — Não é para sempre, cara. Para mim, pagar a faculdade não foi moleza. Se você tivesse de pagar a mesma porcaria de empréstimo que eu, também acharia o salário razoável por alguns anos. Era isso. Gene sentiu o coração disparar. A nuca ficou quente, as mãos começaram a suar. A palavra “moleza” sempre fazia isso com ele. Não era “moleza” institucionalizar o seu intelecto durante oito anos. — Sinto muito — disse a Con com sarcasmo, meticulosamente. — Você não começou essa conversa com a expressão “dar novos usos à toxina do botulismo”? Estou errado? Eu tive a impressão de que você estava me pedindo para trabalhar numa empresa de cosméticos para dar novos usos ao botulismo. Você veio até aqui, onde estou trabalhando para cultivar a nossa comida, e... e... disse que eu deveria aceitar um emprego trabalhando em estudos clínicos com seres humanos, para dar novos usos a uma substância letal que seria usada para fins não medicinais nas pessoas. Espere aí! Não, espere aí. E a justificativa que você deu é que vou ter um filho. — Gene sacudiu a terra das mãos bruscamente enquanto falava. — Caralho, isso faz sentido pra você? Faz? Con fez que sim. — Faz. Faz sim. Você está falido, tem um diploma de medicina que nem está usando, não vai viajar em nenhuma missão com o bebê chegando, e não tem nada demais. Essa sua decisão tem um preço.
— Um “preço”? Do tipo “todo mundo tem um preço”, Con? Que puta besteira, cara. Esse preço não representa o valor que você atribui a si mesmo. É o valor que você atribui a todos os outros envolvidos. Trezentos mil não é o que você vale. É quanto a humanidade vale para você. Para criar no mundo um
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procedimento totalmente desnecessário e talvez perigoso, você renunciaria a um monte de gente que nem conhece por trezentos mil? — Cara, me poupe dos seus discursos pomposos, tá bem? E das suas fantasias de Dr. Moreau. Pare de falar comigo como se eu fosse imbecil, tá bom? Estou tentando ajudar você e Claire. Não sei como vamos viver com um bebê neste bairro. Gene estava furioso e sabia que não era só por causa da sugestão de Con. Era porque Con se dirigia a ele com um ar superior, repetindo o que diziam os professores e colegas da faculdade. Insinuava que o seu comportamento atual na verdade representava um “problema de saúde mental”, não uma ideologia. Ele não deixaria a visão que tinham dele substituir o que sabia ser verdade. Não ia sacanear ninguém por dinheiro. Foder com ninguém. Tinha 29 anos e se formara antes de todos eles. Sabia como era fazer aquele tipo de pesquisa, e era coisa para os moralmente retardados. Não dava nem para expressar em palavras o quanto o incomodava o fato de agora Constant achar aquilo legal “só por um tempo”. Que merda era essa? Para começar, foi Con que o fez se interessar pela horta, descrevendo a lógica da coisa, dizendo-lhe que as hortaliças da mãe tinham salvado a família quando ele era pequeno, em Beirute, e havia blecautes e escassez de comida. Gene se ressentia de ser tratado como se fosse um romântico por fazer uma das coisas mais práticas e essenciais que os seres humanos fazem. Constant o fitou. — Por que diabos você foi a Harvard, cara? Por que se deu a esse trabalho? Deixe de lado a sua ideologia e faça o que é certo. Isso é burrice. Gene se virou para o outro lado, ergueu as sobrancelhas, balançou a cabeça. Limpou as mãos no casaco, encostou-se no canteiro elevado e acendeu um cigarro.
Por que fora para Harvard? Porque fora aceito. Porque a gente não sabe de nada quando é adolescente e é rotulado como “talentoso”. Nada, nem mesmo por que a gente é bom numa coisa ou se gosta de fazer as coisas em que é bom. Ser bom numa coisa não obriga a gente a fazer essa coisa. Era um erro pensar assim. E ele cometera muitos erros por lhe dizerem tantas vezes que era a pessoa certa para algum serviço especial, ou projeto, ou movimento social. Escolhera medicina porque, na época, era divertido e lhe dava o máximo de informações. Mas poderia perfeitamente ter sido engenharia, ou literatura, ou ciência política, ou o caralho a quatro. Naquele momento, tudo o que queria era ser quem era antes de ir para a faculdade. Podia ter uns vislumbres, mas nunca
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conseguira se reconectar com aquele alguém. Talvez, com o bebê, ele chegasse lá. Antes de Harvard, de Columbia e da pesquisa, Gene era um garoto inteligente e hiperativo que escutava reggae e Captain Beefheart. Aprendeu idiomas porque eram divertidos. Lia clássicos de pequenas editoras, livros históricos sobre piratas e manifestos da Internacional Situacionista. Encomendava pelo correio discos de produção independente com capas feitas com canetas hidrográficas. Não era atlético, embora sempre tivesse sido forte e flexível. Nunca praticava esportes em equipe; em vez disso, aprendera sozinho a andar na corda bamba e a andar de monociclo. E, sim, tinha de admitir que, de certo modo, a maioria dessas atividades era romântica. Mas era prática, também. Na faculdade, passou os verões num acampamento com trapézio ensinando garotos apavorados a segurar, soltar, a se pendurar pelo joelho, a cair. Voltava para casa de bicicleta depois de voar e se pendurar, escutando Joe Strummer ou Talking Heads no walkman e repassando na cabeça o trabalho do laboratório. Constant sabia disso tudo — ele havia testemunhado tudo. Parte disso, pelo menos. Aos 26 anos, Gene não se interessava mais por nada daquilo. E, aos 28, deixou de lado o breve erro cometido no mundo corporativo. Estava felicíssimo fazendo o que fazia agora, podia sentir que aquilo estava certo. As mãos na terra, em vez de lavadas e seladas em luvas. Não conseguia acreditar nem que Con tivesse ousado falar naquilo. Essas coisas que o tinham levado ali para o telhado, faminto por algo que ele mesmo plantara.
Olhou o rosto de Constant, olhou os olhos dele e observou o amigo desistir do assunto, observou-o reconhecer aquilo que ambos costumavam sentir, uma separação, uma falta de fé que em outro momento unira todos eles, o conhecimento de que era possível fazer alguns americanos viverem mais — porém tornar os americanos saudáveis, como um grupo, era risível na economia atual, com as atuais leis trabalhistas e ambientais. Tinham feito em silêncio esse pacto de não serem hipócritas, de não se ocuparem com ternos elegantes e sua formação acadêmica proibitivamente cara, rearrumando cadeiras de convés no Titanic. As entranhas lhe doíam ao pensar que Con ia assumir o emprego na indústria farmacêutica e ainda fazia parte dos Médicos pela Responsabilidade Social; que não participaria com Michelle dos Médicos Sem Fronteiras, embora pudesse facilmente fazê-lo, que ficara tão descomposto com a notícia de um bebê. Viu o desapontamento nos olhos de Con e se perguntou se o amigo simplesmente refletia a sua expressão.
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— Eu apenas não posso Connie — disse com firmeza. Con fez que sim, olhou para algum lugar além do ombro de Gene. Por fim, falou: — Pode me emprestar o casaco? Gene o tirou e ele o vestiu, abotoando-o sobre o peito nu. Deu uns passos à frente e puxou Gene para que se levantasse de onde estava sentado. Depois, o abraçou com força durante vários minutos. — Você vai ser pai, meu irmão. Gene sorriu com a ideia, relaxou e abraçou o amigo, dando-lhe tapinhas nas costas antes de largar. — Ei, tenho de comprar café e leite. Afinal, ainda não temos uma vaca. — Con riu, enfiou a mão no bolso do grande casaco e tirou as sedas de Gene e o fumo picado Drum, começando a enrolar um cigarro. — Em breve, quem sabe — disse Gene. — Isso seria do cacete! Subir até o telhado e ordenhá-la toda manhã. Riram. Con sorriu para ele, cuspiu um pedacinho solto de fumo e acendeu o cigarro. Andaram até a escada e desceram pelo prédio até a Sétima Rua. — Já lhe contei que tenho um tio que era fazendeiro? — perguntou Constant. — Aquele com a testa de metal? — É. — Con riu. — É óbvio que já lhe contei. — Você achava que os ímãs lhe fariam mal. — Ele só faz isso quando está bêbado. — Ou seja... todo dia? — É a merda do estresse pós-traumático — disse Con. — O cara esteve no Vietnã. Há coisas piores que a bebida. — Espere. Ele é libanês?
— Cacete, não. É o marido da minha tia. Ela se mudou para fazer pesquisa de pós-doutorado nos Estados Unidos. Estão lá há muito tempo. Ele
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não é meu parente de sangue, cara. Mas eu estava pensando, se você quiser podíamos ir até lá e passar uns dias com ele. — E fazer o quê? Onde eles moram? — Ah, sei lá, só ver o que é mesmo necessário para essa merda de agricultura orgânica. Agora ele tem uma horta de bom tamanho, mas antes tinha alguns hectares plantados. Mora em Haeden. É um lugarzinho minúsculo no norte do estado, tem um parque estadual ou coisa parecida por perto.
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______________________________________________ PROVA P47908 20/05/09 15h30 Sarg. Anthony Giles 20 de dezembro de 1996 Caro Gene, Sem termos precisado nos mudar, agora moramos num bairro muito bom. A má notícia é que não há mais “nós”. Micky arranjou um novo emprego, dessa vez em Zelingei. Sou o último de nós aqui. Sei como cheguei aqui e agora sei que não consigo fazer isso por muito mais tempo. Tenho de falar com alguém que passou por isso e vá entender o que significam todos essas merdas de detalhes, e como são uma merda do caralho. Eu me sinto como se tivesse sido envenenado ou sofrido uma lavagem cerebral e não entendo por que não consigo sentir o que faço. Foi uma decisão ruim — não só moralmente — em todos os aspectos. Quer dizer, em termos intelectuais, sei que o que estou fazendo é tecnicamente insano e errado. Mas não consigo sentir. Há alguma estranha força psicológica que parece me manter aqui na Pharmethik. Só mais um mês ou só mais um ano, digo a mim mesmo, e depois posso pegar todo esse dinheiro e ir embora. Ou racionalizo assim: eu não poderia ter pagado a hipoteca do meu pai nem ajudado você e Claire com a compra da terra se não estivesse fazendo isso. Você tinha razão. Isso é doentio. Preciso fazer outra coisa. Já perdi o que quer que eu seria, ao gastar aqui uma parte intelectualmente ativa da minha vida. E não consigo me lembrar mais de como era pensar e sentir com clareza, com clareza de verdade sobre as ramificações mais amplas do meu papel nisso tudo — disso não posso lhe dar detalhes. Todo esse mês fiquei mesmo zangado com você por não ter brigado ainda mais comigo por causa deste trabalho — por não ter me dito por que você saiu tão depressa e nunca mais voltou. Ora, não dizemos muita coisa aos outros neste tipo de trabalho, não é? Só dizemos um monte de bobagens.
Ultimamente, tenho pensado que poderia dedurar coisas, mas percebo — e isso também é escrotamente doentio — que não dá para ganhar dinheiro suficiente dedurando, e não gosto da personalidade de quem faz isso. Não que goste da personalidade dos meus colegas; é só que eles aceitaram algumas
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realidades nojentas e não baseiam as suas decisões na estética, nem na ideologia, nem mesmo em emoções além das deles próprios. Têm um foco que está acima da lei e uma atitude estranhamente parecida com a de muitos de nós (principalmente de Michelle). Como nós, essas pessoas fazem o que querem. Sabem que o sistema é fodido e usam isso em benefício próprio. Se você me visse, não acreditaria em como anda minha aparência e no modo como eu falo. Pensaria que saí de Vampiros de almas. Sei que você diria que tenho OPÇÕES até mesmo no que estou fazendo, mas, francamente, o que estou fazendo é tão ridiculamente amoral que escolher qualquer uma dessas opçõezinhas de estilo de vida, dentro desta vida, parece hipocrisia e pagamento de dízimo. Há anos não uso jaleco, não vejo um par de luvas. A falta de propósito da minha própria roupa me ofende. O meu trabalho tem muito mais a ver com falação do que com qualquer outra coisa. As minhas mãos são inúteis e não precisam ser lavadas. A maior parte do que faço é rever e refinar o que os outros fazem, desenvolvendo mensagens simples de trinta segundos. Fico na frente de uma sala cheia de gente e mostro um PowerPoint que já mostrei trezentas vezes como se estivesse vendo aquilo, prazerosamente, pela primeira vez. Tenho cinco diagramas que dão conta do recado, seja qual for o tema. Fluxogramas com setas chamadas “chevrons” podem ser usados para descrever qualquer processo. Passo o dia inteiro manipulando gente para fazer algo que acho errado. Convenço essa gente de que é lucrativo fazer algo errado. E estou cheio do jeito como todo mundo fala. Executivos de baixo nível usam imagens como “Estou tentando guiar esse processo”, ou fazem referência a arrebanhar gatos, contornar carroças, conversas “em off” ou pôr ideias no “estacionamento” para serem abordadas depois. Ou talvez garantir que todo mundo está na mesma “caixa de areia” ou, ao contrário, “fica cada um na sua raia” (dá para acreditar? E muito mais). As palavras da moda são outra história. “Alavancar” é um verbo universalmente aceito nos negócios. Só é usado incorretamente: “Vamos alavancar essa capacidade em outra área funcional.” Essas são as pequenas coisas que estão me deixando maluco. É raríssimo eu ficar de papo furado sobre a minha vida ou os meus sentimentos. As pessoas notam quando você está inventando. Não discuto política, a menos que consiga avaliar a ideologia da pessoa com 99% de certeza. Já cometi erros e eles me saíram muito caros.
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Posso dizer a você que a situação está muito pior do que as notícias e reportagens investigativas da imprensa alternativa (que, francamente, é um lixo como fonte, e você devia assinar o Wall Street Journal). Não falo só de questões éticas sobre testes e preços, nem de empurrar medicamentos psiquiátricos para populações inteiras, nem dos efeitos colaterais suicidas dos produtos nos quais estou estrategicamente envolvido e pelos quais sou moralmente culpado. Na verdade, só vou saber lhe dizer sobre o que estou falando quando conseguir dar o fora daqui. A diferença, Gene, entre agora e antigamente é que, naquela época, eu achava que conseguiria fazer algo acontecer. Que conseguiria fazer esse trabalho por pouco tempo para, depois, fazer outras coisas mais importantes. E achava que poderíamos mudar as coisas, ou, pelo menos, escapar — construir algo entre os escombros. (Sob os paralelepípedos, a praia!) Agora sei que não posso fazer nada acontecer. E não ligo se tudo desmoronar amanhã. Que desmorone, sinceramente. Vou visitar vocês em breve e tentarei ficar o máximo possível, o que talvez sejam poucos dias. Se tiver alguma ideia do que eu possa fazer no lugar disso aqui, me conte, por favor. Estou falando sério, cara, preciso de sugestões. E não me diga que eu só preciso “cair fora” e ir morar com você, o que seria completamente disparatado (embora, ultimamente, eu pense nisso pelo menos duas vezes por dia). Quero dizer ideias de verdade. Você sabe do que estou falando. Vamos nos ver em breve. Diga “oi” a Alto e Claire e à terrível três e meio — não dá para acreditar que ela está começando a ler. Amo você, amo você. Constant.
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Gene HAEDEN, NOVA YORK, DEZEMBRO DE 1996 — Por que papai está chorando? Claire! Por que papai está chorando? — Venha cá, meu docinho. Papai recebeu uma carta triste de Connie. — Mas Connie está triste? Claire afastou da cabeça de Alice o cabelo louro-branco embaraçado e a menina se jogou no macio sofá com estampa indiana para encostar-se nela. — Um pouquinho — respondeu Claire. — Mas vai melhorar. — Ela estendeu o braço comprido para Gene. Ele sacudiu a cabeça e foi se sentar com elas, com lágrimas no rosto. Deixou a cabeça cair para trás e olhou o teto. — Devíamos mesmo estar morando em comunidade — disse. — Caralho, você está certa. Está certa, está certa. Meu Deus, Claire. Devíamos estar todos juntos. Isso foi loucura. Loucura e estupidez. Eles deviam estar morando aqui com a gente. Eu devia ter me esforçado mais para convencê-lo a desistir. Deveria ter lhe dito tudo sobre essa merda. Claire apenas segurou sua mão. Alice passou por cima da mãe para se sentar no colo do pai e limpou as lágrimas do seu rosto com as mãozinhas. Ele a abraçou. Ela era tão miúda. Três anos e meio, pernas compridas e bochechas redondas. Tão clara que, às vezes, a pele do rosto parecia translúcida. Ela o fitou intensamente. Os olhos azul-claros estavam brilhantes, as pupilas redondas e levemente dilatadas. A testa estava franzida e ela parecia preocupada, mas outra coisa nela estudava toda a situação, e ele conseguia ver: a preocupação e o pensamento dela, a intensidade de tentar entender tudo. O pequeno tamanho dela deixava isso engraçado e, ao mesmo tempo, estranhamente forte. Ela tentava entender, enfrentar aquilo para ajudá-los. — Espere — disse Alice, muito séria. — Onde fica comunidade? Gene e Claire se entreolharam e riram. Gene ainda chorava um pouco.
— É quando as pessoas moram juntas e se ajudam sua monstrinha perguntadeira — respondeu Claire, sorrindo para ela.
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— Temos de ajudar Connie porque ele está triste? — perguntou Alice, parecendo aliviada por poderem fazer alguma coisa. — Isso, é claro que ajudamos Connie e todo mundo que estiver se sentindo mal. Ficamos juntos. Todo mundo fica junto — explicou Claire. — É corajoso ajudar, e a gente se sente muito bem. Alice estava ficando irrequieta. Levantou-se nos joelhos de Gene e ele lhe segurou as mãos. — Papai está se sentindo mal, por isso tenho de subir nele. — Ela pôs um dos pés no peito do pai e se inclinou para trás, escalando-o enquanto ele segurava as suas mãos. Estava séria e concentrada na tarefa, observando o rosto de Gene em busca de sinais de que, assim, ele se sentia melhor. Ele balançou a cabeça com descrença. Então, ele e Claire começaram a gargalhar. Alice pôs o outro pé no peito do pai e começou a subir, para ficar de pé nos seus ombros. — Você vai subir até o alto de Gene enquanto ele fica rindo e chorando? — perguntou Claire. Gene achou que, talvez, ela tivesse sugerido sem querer que Alice escalasse ao dizer “corajoso” e “se sente bem”. A menina adorava escalar, e sempre diziam que ela era “corajosa” ou “destemida”, ou diziam “muito bem” quando ela escalava. — Gene gosta de escalar — explicou Alice, dando de ombros. Pôs os pés nos ombros dele, as pernas magras dos dois lados da cabeça. Ele segurou as mãos da menina e depois as soltou. Dava para sentir que ela estava muito bem equilibrada, os arcos dos pezinhos curvados e fortes, os calcanhares descansando logo acima das omoplatas. E era bom — como uma massagem. O peso dela era perfeito. Claire o olhava e, embora ela risse de Alice, Gene viu que a mulher estava chateada com Con. Desapontada. Irritada. — Ele está perturbado — comentou ela, baixinho. — É coisa dele. Você não conseguiria mudar isso.
Ela fitou profundamente os olhos dele, daquele jeito que ela fazia, oferecendo companhia, e que era melhor do que um beijo, e puxou os joelhos até o peito. Não era mais a garota magrela que conhecera no East Village; agora estava mais redonda, uma mulher de seios grandes e traços mais suaves, alguém que amamentara um bebê e curtira a alegria de cuidar dele. Mas o rosto e os olhos ainda exprimiam um conhecimento que a fazia se destacar. Gene sabia que ela não sentia pena de Con. A carta claramente a desagradara. Podia ver que ela sopesava a vida de Constant contra a dela, lá na clínica. Jornadas de
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quatorze horas, salas de espera lotadas, cortes de recursos, problemas com os funcionários porque gente como Con considerava o serviço chato ou cansativo demais, não se dispunha a lidar com as características que acompanhavam a pobreza, a doença, a violência. Gene sabia que, no que dizia respeito a Claire, daria no mesmo se Con tivesse lhes mandado uma carta dizendo que estava triste por só ter uma Mercedes. — Francamente, ele só se enrolou. Está enrolado — disse Gene, com Alice ainda em pé sobre ele.
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Claire EAST VILLAGE, 1992 Michelle acenou para Claire e Gene da vitrine da frente do Downtown Beirut, enquanto Gene punha a tranca na bicicleta. Ela sorriu e entrou, e Gene foi atrás com a bolsa de lona. — São os reprodutores! — disse Michelle, enquanto eles abriam caminho para entrar. — Desculpe, desculpe, desculpe. — disse Claire. — Espero que não tenham ficado esperando. — Michelle trazia uma sacola de brechó, do abrigo da igreja de São Marcos. Usava botas pretas de bico fino até o joelho e acabara de descolorir o cabelo no mesmo tom de Gene e cortá-lo num chanel assimétrico. Usava uma camiseta preta com os Ramones sorrindo sobre o peito. Con se inclinou para fora de um amontoado de três pessoas para entregar um drinque a Michelle. — Detesto que vocês sempre queiram vir aqui — falou, antes de mergulhar de volta no bar. — Detesto a merda do nome deste lugar. Quer dizer, Jesus. Alguém pusera Iggy Pop no jukebox. Claire observou Con sincronizar com os lábios as palavras “I am the passenger. I ride and I ride”, enquanto esperava a próxima bebida. Ainda usava a camisa social de algodão azul oxford, mas deixara a gravata e o paletó em algum lugar. Finalmente, ele veio se juntar a eles e beijou o rosto de Claire, passando uma cerveja para Gene. Claire sabia que a “surpresa” deixara ele e Micky abalados. Estavam mais do que nervosos com a ideia do parto em casa e em conflito com o fato de morar com um bebê. Mas, quando Gene e Claire se mudassem, ainda seria uma pechincha para Con e Michelle morar lá, ainda ficariam onde queriam estar — longe dos colegas panacas do Upper East Side. Ainda assim, brincavam que nem o crack os expulsara do bairro, mas o “milagre da vida humana” talvez conseguisse. — Tomem essas agora — disse Gene, — e depois compramos umas garrafas de cerveja para levar para o ABC No Rio. Con balançou a cabeça em concordância e falou para Claire:
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— Bela roupa, doutora. — Obrigada, querido — disse ela, e riu. — Você também está muito elegante. — Claire se sentia extasiada desde o terceiro mês de gravidez. Todo mundo lhe parecia mais bonito, adorava mais do que nunca andar de bicicleta e se via cantando alto sem perceber, como na fila do caixa do supermercado. Virou-se para Michelle, abriu a sacola e puxou um vestido vermelho e preto, segurando-o contra o corpo para mostrar à bainha diagonal que lhe cruzava as pernas. — Duas pratas! — exclamou. — Legal — respondeu Michelle, mas os seus olhos não sorriam. — Como foi o trabalho? — perguntou Claire. Michelle bocejou e balançou a cabeça devagar, cobrindo a boca. — Citomegalovírus — disse ela, fitando a multidão com olhos vazios. Pôs o braço na cintura de Claire e descansou a cabeça no ombro da amiga. — Sarcoma de Kaposi. — É ruim mesmo — assentiu Con. — Eu acho que, pelo menos, 75% do meu dia costumava girar em torno de infecções oportunistas. Não sinto falta disso. As últimas palavras de Con deixaram Gene visivelmente tenso. — Estou muito triste por causa do homem que atendi hoje — disse Michelle. — Estava com a irmã. Vinte e sete anos. Está ficando cego, CD4 abaixo de 140, o namorado morreu no inverno passado. Deveria estar aqui bebendo conosco. A irmã fica com ele o dia todo, lendo historinhas infantis em voz alta. — Ela engoliu depressa o resto de cerveja, o braço ainda na cintura de Claire. Claire via que Michelle estava para lá de chateada, frustrada, exausta. Vira isso no rosto de Con nos meses que precederam seu pedido de demissão do hospital Beth Israel. Parecia que, também para Michelle, tudo desmoronara, menos os fatos imediatos. Nenhuma tradição ou protocolo, nenhum sexo, nenhuma opressão ou classe, nenhuma posição sexual, nenhuma hierarquia para guiar o desejo. Nenhuma aquiescência. Nenhuma vontade de poder. Nada, só a noção crua de possibilidade e a sensação de solidariedade do animal que cuida de outro animal. Sua psique se oferecera. É assim que quem cura deve ser, pensou ela, orgulhosa dos amigos. Michelle ia partir para fazer o que era certo. E tinha certeza de que Con voltaria a ter juízo.
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— Estão servidos? — perguntou Gene. Puxou da bolsa de lona duas cenouras finas e nodosas. Constant e Michelle fizeram que não. — Comemos em casa, depois Claire teve de parar no Katz’s, e então fez a gente parar de novo para comprar salada de algas. — Meu Deus, garota — disse Michelle —, está querendo vomitar? Claire sorriu. Claire não vomitava. Nem chorava. E os seus hábitos alimentares não tinham nada a ver com gravidez. Ela vivia com fome. Con pousou o copo vazio no bar e saíram para a noite quente rumo ao ABC No Rio para ver os Motivators tocarem. O lugar ficava numa parte de Rivington aonde normalmente não iam, mas foram porque os amigos de Gene da horta comunitária estariam lá e porque ele estava apaixonado pela ideia de um centro comunitário do tipo “faça você mesmo”. O ABC No Rio provava a sua opinião sobre algo. Provava que, mesmo quando os artistas iam embora e chegavam os drogados e malucos, as pessoas normais ainda se reuniam e faziam alguma coisa. A teoria fazia sentido enquanto andavam, mas desmoronou assim que chegaram, e ficou óbvio para quem olhasse que, ali, eles eram as únicas “pessoas normais” do bairro. A banda de abertura começou sem introdução, levando a multidão que estava mais próxima do palco a começar a pular, chocando-se, se esmagando uns contra os outros. Garotos sem camisa e garotos super vestidos de couro, uma linda variedade de cabelos oxigenados e cabeças raspadas, madeixas arrepiadas, tingidas, soltas, alfinetes de segurança e pele perfurada, pulsos e pescoços e cinturas cravejados, camisas rasgadas enfeitadas com mísseis e nuvens em forma de cogumelo e suásticas e bandeiras americanas todas cortadas por um X vermelho. Ou riscadas com um A dentro de um círculo. Corpos, belos naquela confusa exposição, dançavam e caíam juntos, gritavam ao mesmo tempo, lutavam e se derrubavam depois se ajudavam a levantar, se davam as mãos e gritavam e pulavam como um único animal. A multidão e a banda estavam apaixonados. Bombados, extasiados, cantando juntos algo ininteligível em meio ao ruído industrial. Claire sorriu ao ver aquilo. Havia coerção e havia brincadeira e não era uma linha tênue que os dividia. Ela sabia por que estavam ali. Havia uma força no lugar e na música que corriam o risco de perder, que perdiam a cada segundo. A alegria no fundo da anarquia. A sensação de que nascemos para vencer. Ela olhou os amigos cansados, depois chegou mais perto de Gene para lhe dizer que o amava. Perto o suficiente para sentir o suave cheiro de terra e suor da pele dele.
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Não mais capaz de surfar na multidão nem de mergulhar no palco, ela ficou assistindo com alegria, feliz por essas tradições ainda existirem. Correndo rumo aos 30, grávida, sóbria, “profissional”, em pé num porão pré-guerra estripado no Lower East Side, sonhando parcialmente com campos e florestas.
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Gene HAEDEN, NOVA YORK, 1997 DEPOIS DO CAMINHO ladeado de lanternas e iluminado por abóboras de rosto sorridente, pés de milho secos farfalhavam suavemente no campo. Claire pendurara fantasmas de lençol branco nos galhos baixos das árvores perto da casa, e Alice corria de um lado para o outro no quintal, esperando Theo, as bordas do vestido de gaze branca flutuando atrás dela. Claire, vestida de fada com asas feitas de crinolina, calças cobertas de margaridas desbotadas e um chapéu azul pontudo com uma reprodução do Grito de Edvard Munch pintada na frente, estava lá dentro torrando sementes de abóbora e fazendo um cozido de legumes. Gene disse ao entrar: — Preciso que me ajude com isso, Fada. E entregou a Claire uma grande cabeça de abóbora com um buraco embaixo e sentou-se diante dela na mesa. Ela ficou um instante entre as pernas dele e o beijou. — Você se superou. Pôs um pano de prato sobre a cabeça dele e depois enfiou nela a abóbora até fazê-la descansar sobre os ombros de Gene. O rosto tinha nariz e olhos triangulares e uma grande boca sorridente; uma haste comprida e retorcida brotava no alto. — Perfeita. — Ela girou um pouco a abóbora nos ombros dele. — Consegue enxergar? Ele fez que sim e Claire beijou a testa da abóbora. Ele esfregou as mãos nas calças de margarida dela, tocando-a por algum tempo, até que notaram Theo a fitá-los pela porta de tela, o cabelo emaranhado, o rosto pintado de verde, círculos em amarelo vivo contornando os olhos. Espantaram-se e depois riram da expressão do menino. — Os seus pais estão aí? — perguntou Gene.
— Eles me deixaram aqui — disse Theo e virou a cabeça de lado, prestes a dizer outra coisa, mas então avistou Alice, pulou do degrau e correu até o caminho que ela assombrava. Ouviram-na dar um gritinho quando o viu.
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— Dá para imaginar alguém simplesmente largando um menino de seis anos na cidade? — perguntou Gene a Claire, a voz ecoando dentro da abóbora. — Dá — respondeu ela. — Mas não do jeito que você está falando. — Só vou levar os dois até a cidade por meia hora — disse Gene. — Eles estarão sem apetite para o jantar quando voltarmos. — Tudo bem. Talvez comam tantos doces que até lá fiquem com fome de comida de verdade. No quintal, Gene observou Theo e Alice. Estavam de mãos dadas, inclinados para trás, girando o mais depressa que podiam; periodicamente, largavam as mãos e caíam, rindo e gritando no chão. Aí, levantavam-se de novo e cambaleavam como bêbados. Alice tropeçou no lençol e caiu, e Theo ficou em cima dela enquanto a menina lutava para se levantar. * * * As ruas da cidade estavam cheias de crianças atrás de travessuras ou gostosuras. Gene ficou na beira da calçada enquanto o fantasma e a rã corriam de porta em porta. Davam gritinhos e falavam bobagens, palavras e frases meio articuladas, meio murmuradas. Corriam para alcançar grupos de monstros mais velhos que atacavam em bandos com fronhas cheias de doces. Jason e Freddy Krueger, motoristas da Nascar levando o capacete no braço, Ariel e Branca de Neve, um mendigo, uma bruxa, Batman, G.I. Joe e Cruela Cruel. Um garoto mais alto ia junto com uma máscara de Bill Clinton e cinco pequenos caubóis de Dallas ao lado. Na esquina, um gato preto, a morte e uma bailarina espiavam dentro dos seus baldes de plástico alaranjado, e dois dados vestindo meias pretas iguais acenaram para eles ao passar. Pouco antes de chegarem à Town Line Road, Alice e Theo se calaram espantados com a névoa que cercava uma casa iluminada com lâmpadas verdes. Era a última casa da aldeia e gritos aterrorizantes vinham de algum lugar lá dentro. No jardim da frente, pernas com meias listradas que terminavam em sapatos pretos e pontudos saíam do chão, ao lado da metade de uma vassoura, como se uma bruxa tivesse caído ali. Um grande esqueleto de plástico que brilhava no escuro estava escarrapachado numa cadeira na varanda. E um enorme fantasma de nylon, iluminado por dentro e inflado por algum tipo de ventilador que soprava de leve, erguia-se no gramado da frente.
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— É mal-assombrada! — berrou Alice, e correu num pequeno círculo em volta de Theo, que agarrou a borda da sua aura protoplásmica e só a soltou quando ela se enrolou nele. É assombrada pelos fantasmas das crianças operárias da Indonésia, pensou Gene. — Venha com a gente! — gritou Alice. — Venha com a gente até a varanda, pai, é mal-assombrada. Theo ainda segurava parte da fantasia dela ao caminharem nervosos até a varanda, na frente de Gene. Tocaram a campainha e encolheram os ombros, aguardando que alguém atendesse. Quando a porta se abriu, não disseram “gostosuras ou travessuras”. Nem se mexeram. Gene os observou erguendo a cabeça ao mesmo tempo para olhar o Frankenstein. Frankenstein olhou para Gene e piscou. A maquiagem era fantástica. As cicatrizes pareciam de verdade e o topo achatado da cabeça fazia com que ela parecesse quadrada, com parafusos saindo do pescoço. Além disso, o camarada era enorme. Gene achou que devia ser Danny White, o dono da White Walls Drywall. Eles levaram um minuto para ver a princesa, uma menina que parecia ter uns 9 anos, em pé ao lado do monstro, com um prato cheio de bolinhos recheados. Sorria para Alice e Theo e tentava não rir. — Mãe! — gritou a princesa para dentro de casa. — Venha cá! Você tem que ver isso! Uma mulher baixa e redonda, de cabelo louro, fino e liso e braços sardentos, veio pelo canto da casa e olhou pela porta de vidro. Deu um sorriso largo. — Ora, o que temos aqui? — perguntou. Theo e Alice ainda estavam paralisados. A mãe de Wendy ergueu os olhos para Gene. — Que gracinha. Quantos anos? — Cinco e seis — disse Gene. — Meu Deus! — disse a princesa. — É uma abóbora de verdade na sua cabeça? Papai, olhe! Frankenstein sorriu.
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— Ora, ora, quem diria, Wen: alguém está tentando superar a minha fantasia este ano! — Arrá! Não é um monstro de verdade! — falou Alice. Theo largou a fantasia de fantasma da amiga e estendeu a sacola. Os White riram e Gene sorriu dentro da sua cabeça de abóbora. Pensou: “Que família encantadora, que boa gente, de pé, juntos sob a luz da varanda!” — Não é muito comum ver um fantasma passeando com uma rã — comentou a mãe de Wendy. — Na verdade — argumentou Alice —, não deve ser tão raro assim. No Hades, tem rios! E, se tem rios, provavelmente tem rãs, então quando a gente é fantasma, provavelmente tem rãs que podem ser amigas da gente. Com certeza, tem rãs lá em baixo. — Croac — disse Theo, e estendeu a sacola de novo. Os White se entreolharam e riram ainda mais. — Você está bem ocupado hoje, não é? — perguntou Danny White a Gene. Wendy saiu na varanda e abraçou Alice. — Você é tão lindinha! — disse. — Mãe, ela é tão lindinha! Alice ergueu os olhos para a grande princesa e sorriu sem ser vista, debaixo da roupa de fantasma. — Podem ter princesas no além, junto com a gente! — disse, ansiosa para incluir Wendy na brincadeira. — A gente sabe que tem. A gente até já viu!
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Flynn NO PRIMEIRO ANO em que morei em Haeden, passei muitas noites jantando no Alibi, escutando os outros falarem, e muitas noites em casa, no computador, pesquisando problemas ambientais rurais. As minhas intenções ao me mudar para Haeden não foram racionais. Elas, certamente, não eram ideais para a minha vida pessoal. Saí de um lugar onde era feliz; tinha amigos, namorados, colegas e fontes, tinha histórias interrompidas, todos conheciam a minha assinatura e sabiam o que eu gostava de beber. Em Haeden, as coisas eram diferentes. Havia poucos amigos para se ter. As cerca de oito pessoas das quais poderia ter me aproximado eram bem mais velhas e tinham filhos ou outras preocupações. Muitas eram do tipo que abandona a família rica ou a boa escola, convencidos por uma ideia de pioneirismo reforçada pela extrema falta de dificuldades nos anos da sua formação. Gostava de conversar sobre política com eles no Rooster e achava que eram gente decente. Os Piper pertenciam a esse grupo, e o pai de Alice, que tinha um emprego em meio expediente na Solo e Água, e se considerava parte de um tipo de história no estilo Davi e Golias e que envolvia fazendas industriais, me dava muita informação sobre a terra propriamente dita. Eram gente esperta e inteligente, bons cozinheiros e cultos, mas havia algo meio deslocado neles; talvez tivessem vivenciado muitas leituras de Peter Pan na hora de dormir; tinham o olhar sério de quem acredita que Sininho pode voltar dos mortos se todos batermos palmas. Procuravam um lugar para amar e acreditavam que podia ser algum lugar que ainda não existia. Algum lugar que criariam, que se materializaria debaixo dos seus pés, fosse qual fosse a real paisagem da região, paisagem esta que incluía outras duas mil pessoas cuja renda média era de menos de 14 mil dólares por ano.
Haeden também não era lugar para se encontrar um companheiro. Nem temporário. Fui abordada por diversos homens — construtores, um bombeiro e técnico em aquecimento, um estudante de farmácia que fazia estágio na farmacêutica Kinny, um professor universitário de 60 anos, um dos tios magros e vesgos de Dale Haytes, o vendedor da Sysco que toda semana passava no bar em sua rota pela região, um professor de ensino médio neurótico, dois veteranos do Vietnã, um veterano da primeira Guerra do Golfo, vários alunos que terminavam o ensino médio e um acupunturista11 que morava em Elmville. Todos, com exceção dos alunos de ensino médio, iam trabalhar e depois
11 Acupunturista é o profissional que pratica a acupuntura, medicina alternativa chinesa, é feita com agulhas.
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voltavam para casa, e todos procuravam alguém com quem dividir aquilo. Três viagens a Cleveland deram conta da única coisa para a qual poderiam ser úteis. E longas conversas telefônicas deram conta das coisas que eles não podiam oferecer. Vivi tão bem quanto pude aqueles primeiros anos e, muitas vezes, senti que era uma repórter engessada, uma correspondente de algum lugar fantasma pós-moderno, que nem sequer era uma cidade. Nunca pensei que algum lugar do estado de Nova York, principalmente no nordeste, pudesse se parecer com o campo de Amargo pesadelo. E, de certa maneira, isso tornava aquilo tudo mais exótico, mais surreal. Disse várias vezes que saí de Cleveland para trabalhar numa grande matéria investigativa. Que saí porque a próxima onda importante de reportagens ambientais seria, como contei aos meus amigos do City Paper, rural, sobre comida e água. E, em muitos sentidos, isso era verdade — próximo da história toda. Se não tivesse havido uma grande mudança da legislação ambiental e se eu nunca tivesse ouvido falar de Seneca Falls, em Nova York, talvez tivesse ficado em Cleveland. Seneca Falls foi o local dos discursos de Elizabeth Cady Stanton, o lugar onde começou o movimento pelo voto feminino no século XIX. Também era o lar do maior depósito de lixo do estado — uma cúpula cercada, grande como uma montanha de esqui, na qual retroescavadeiras manobravam toneladas de lixo entre os tubos que se enfiavam na pilha imensa para retirar o gás. A minha reportagem abrangente seria sobre o fato de que todo o lixo e os detritos inadequados para as cidades grandes iam parar em áreas rurais, enterrados ou empilhados em extensões de campo não cultivável. Lugares onde a lavagem cerebral havia sido tamanha que só um punhado de moradores se ofendia com essa merda, e os demais a ignoravam. Sabia que nada assim podia acontecer sem que alguém ficasse doente e sem que outro alguém se beneficiasse. Se seguisse o dinheiro, eu descobriria. Mas, de algum modo, no meu zelo esperançoso de descobrir a história desse depósito de lixo, me perdi. Saí voluntariamente de um lugar que amava porque me tornara egomaníaca. Acreditava, sinceramente, que reportagens de jornal poderiam mudar o jeito como o mundo funcionava. E isso significava que eu conseguiria mudar o jeito como o mundo funcionava. E essa não é uma ideia muito saudável para um ser humano.
O ponto culminante do meu narcisismo aconteceu quando ganhei o prêmio George Polk de reportagem investigativa local, alguns meses antes de deixar Cleveland. Foi um dia de orgulho para mim e para os meus editores, um
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reconhecimento que parecia me confirmar, de forma independente, que valia a pena eu me matar de trabalhar do jeito que vinha fazendo. Que o meu faro para notícias era bom. O prêmio foi por uma série de reportagens num bairro que perdera dúzias de vítimas por câncer, esclerose múltipla e doenças respiratórias. Eram o legado da indústria química e siderúrgica. Depois que as usinas e as fábricas fecharam, Cleveland perdeu uma fatia enorme da classe média, mas ainda tínhamos todas as doenças das coisas que estavam enterradas, queimadas, jogadas no Condado de Cuyahoga ou lavadas para dentro da terra. Isso pode não lhe parecer importante, mas o velho ditado de que “sangue é notícia” é mais pertinente para esse tipo de reportagem do que para assassinatos locais. Deixa bairros inteiros — às vezes, algumas gerações daquele bairro — fodidos, de luto. As divisões racistas não são problema só para os imóveis. Em Cleveland, Buffalo, Pittsburgh, Detroit, Chicago, a divisão entre o preço dos imóveis de um bairro e outro marca a mortalidade. Compre ou alugue uma casa além deste ponto, desta rua, à sombra deste prédio e veja se o seu bebê fica com leucemia, veja se o seu marido consegue manter as bolas. O Polk servia para revelar bons textos e dar mais divulgação a reportagens importantes. E dava certo. Ajudou a conseguir a classificação do bairro para o Superfundo e a fazer uma limpeza no lugar. O que o Polk não revelava tão facilmente era o caráter do vencedor. No meu caso: obsessiva, viciada em todas as reportagens que me passavam, incapaz de cortar detalhes nem centímetros de coluna, incapaz de voltar para casa no fim do dia. Incapaz de falar sobre qualquer coisa que não fosse o meu barato. Em Cleveland, nunca saía da redação; simplesmente a levava para a cama comigo. Dormia com outros repórteres ou com pessoas parecidas com repórteres (advogados, policiais), porque adorávamos conversar sobre as mesmas coisas e éramos inteligentes do mesmo jeito, tínhamos o mesmo senso de humor, mas também porque não notavam como ocupariam pouco espaço na minha psique. E porque eram ocupados demais para me sobrecarregar com a sua atenção. Ficávamos sozinhos juntos, olhando as mesmas coisas. E era uma vida muito cheia. Era como eu imaginara quando criança, e me apaixonara pelos jornais e pelos grandes jornalistas americanos H. L. Mencken e I. F. Stone. E, embora eu fosse adulta e cercada por uma cultura na qual jornais e revistas desapareciam todos os dias, senti que o meu futuro como jornalista investigativa no estilo da década de 1940 estava garantido. Só precisava dos elásticos para segurar as mangas da camisa e de um problema com bebida. Os problemas ambientais do Rust Belt eram graves, mas estavam se reduzindo, sendo “terceirizados”; os problemas rurais dos Estados Unidos começavam a crescer como uma bola de neve. E eu queria estar lá.
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Quando surgiu o emprego em Haeden, perto dos Apalaches e a menos de um dia de viagem da cidade de Nova York, fiquei empolgada. Tinha certeza de que encontraria um monte de gente boa e simples que só precisava de alguém que juntasse os fatos para dizer não a serem enterrados no lixo. Não sabia, até ter estado lá por seis meses, que também estavam se enterrando em merda, bebendo-a e comendo-a. E que a única investigação sobre os efeitos do laticínio industrial sobre a saúde estava sendo realizada por Scoop, que tinha um método misterioso de verificação dos fatos chamado “ele me deu a sua palavra”. Depois de explicar, ele me fitava com ar indignado. — Em lugares como este, a palavra de um homem ainda tem valor — dizia. Os meus métodos de reportagem eram diferentes; ninguém descobre nada por “acreditar”. Cavar é o método principal. Comecei imediatamente a preencher requisições com base na lei de Liberdade de Imprensa, entrevistando químicos e geógrafos de toxicologia do estado inteiro. Reuni arquivos, fotografias, pesquisas, redigi propostas de venda de artigos para todas as grandes publicações do país e esperei. Escrevi poucas matérias para o Free Press. Cobri algumas assembleias da cidade sobre o cheiro e o descarte de lixo e o que poderia acontecer com a água potável. Às vezes, alguém falava sobre o tratamento dado aos animais, mas, na maioria dos casos, o povo aceitava os Haytes e falava de como ajudavam a comunidade. Por algum tempo, pareceu que Gene Piper poderia se tornar uma força estimulante entre os moradores, a voz da razão e da saúde para todos, porém a sua condição de forasteiro, o seu jeito impaciente e articulado nas assembleias afundaram toda influência real que pudesse ter antes mesmo de começar. As reportagens não provocaram o tipo de reação que vi em Cleveland. Assim, poupei a maior parte da minha pesquisa para outras publicações. E, como se sabe, essa reportagem abrangente nunca viu a luz do dia.
Para o Free Press, escrevia sobre as realizações de Alice Piper, as assembleias da cidade, as reuniões da diretoria da escola e de grupos femininos locais, festivais da panqueca, eleições locais, viagens ao México promovidas pela igreja e exposições de aquarela no único salão da biblioteca no centro da cidade. Às vezes, sentia que, em lugarejos como Haeden, o fato de alguém lhe dar a sua palavra era algo de realmente significativo. E senti mesmo que ali havia gente boa e simples à espera de que alguém juntasse os fatos para que fizessem o que era certo, mas talvez estivessem cansados demais para ir adiante. E que os construtores que me convidaram para sair e que rejeitei, e as senhoras da minha idade que empurravam carrinhos de bebê ou conversavam
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entre si no Savers Club eram legais, faziam algo que eu realmente não era capaz de seguir, que era apenas viver e não cavar, não realizar, mas viver. Essa é uma mágoa que não gosto de admitir. Que houve vezes em que quis algo que elas possuíam. E fui pega de surpresa pelo choque de descobrir que se sentir em paz no lar, na sua comunidade é uma necessidade para as pessoas comuns. Fiquei perplexa, totalmente perplexa, com o preço das suas vidas tranquilas, do seu contentamento.
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Gravação: Dino, Alex, 16/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Alex Dino. 16 de abril de 2009. Como eu estava dizendo, se alguém sabia que aquilo ia acontecer, era Theo Bailey. Entrevistamos aquele espertinho filho da mãe e quase me descontrolei. Pais ocupados demais com a universidade deixando aquele maluco do Ross Miller praticamente criar o garoto. Bosta! Quase me descontrolei. Isso não aconteceu sem planejamento. Ela é uma planejadora. E é estudiosa e tem liderança. Essa merda não é como violência no local de trabalho; costuma envolver mais de uma pessoa. E eu te juro essa outra pessoa foi Theo. Isso é tudo em off, hein? O que eu disse e o que vou dizer. E nem pense em fazer merda nenhuma com isso. Você não está em condições. A gente ainda não sabe o que está procurando. Em geral, quando a gente vê coisas assim, o número de causas é limitado. Temos uns vinte ou trinta exemplos recentes envolvendo garotos ou grupos de garotos, mas isso é diferente. Não sabemos muita coisa. Sabemos que ela não usava drogas, nem mesmo medicamentos com receita; não tinha diagnóstico de depressão nem nada, nenhuma concussão recente nem coisa parecida. Não tinha computador em casa, não tinha celular, e, é claro, que isso já é bastante estranho, mas... Assim, nenhuma informação eletrônica nem correspondência nem sites que ela visitasse nem blog. Nem Facebook. Se houve mais do que uma carta indo e vindo entre ela e aquele merdinha estúpido, ainda não descobrimos. Mas tenho certeza de que essas cartas existem.
Existe essa ideia de que esses garotos são crianças agredidas, que têm más relações sociais e coisa assim, mas quer saber? Na verdade, nada liga esses garotos entre si. Alguns têm bom relacionamento social, boas notas, a família tem dinheiro. São brancos. Alguns são agredidos, ou as pessoas implicam com eles, ou vivem situações domésticas complicadas. Em geral, essas coisas não acontecem na cidade grande. Acontecem em áreas rurais ou suburbanas, na sua maioria, e é por isso que não entendo por que não conseguimos recursos para resolver o problema. Costumávamos ter um agente de recursos escolares que a
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polícia estadual deixava aqui, mas cortaram a verba. Deus, a gente não arranja verba para merda nenhuma! É como se a gente nem existisse. Para falar a verdade, não sei de onde vem metade das ideias sobre crimes de adolescentes, e faço isso há trinta anos. Coisas bobas de pequenos furtos, brigas e bebedeira, a gente vê entre adolescentes menos favorecidos. Mas o crime real... Drogas pesadas, tráfico de drogas, furtos reais, isso não vem do lado errado dos trilhos. Que surpresa, hein? Pois é como essa informação que acabaram de nos passar. Recebemos, na semana passada, umas estatísticas sobre prisão que dizem que os garotos brancos têm sete vezes mais probabilidade de usar cocaína do que os negros, e a gente pensa, “Ah, é porque os negros usam crack, não é?” Errado. Os nossos garotos têm probabilidade oito vezes maior de usar crack. Os nossos garotos de 12 a 17 anos vendem mais drogas. Então, sabe um monte de gente por aqui acha que crime e droga é coisa de negro, mas não, senhora. Depois, vêm os crimes violentos. Os garotos brancos têm o dobro de probabilidade de ter uma arma, se comparados aos negros. É por isso que precisamos de mais verbas. É por isso que precisamos de alguém lá dentro, em vez de entregar todo o dinheiro para as escolas negras e as escolas dos bairros pobres da cidade grande para que os filhos da puta dos negros, com o perdão da má palavra, joguem tudo fora. É, é isso aí, eles só jogam fora. Acha que aquelas escolas de negros não recebem grana? Recebem mais do que nós para a educação especial e para o cacete daqueles programas culturais de merda. Só jogam dinheiro nessas escolas e elas nem precisam. E é claro que não recebemos nada em troca, daquela gente, entende o que quero dizer? Escute só... Estamos vendo uma coisa aqui que é mais parecida com a de Timothy McVeigh, do atentado em Oklahoma. Acho mesmo que essa situação se parece com terrorismo. Diga aí se não é terrorismo. É exatamente como o presidente Bush falou: foi como um ataque ao nosso estilo de vida. Precisamos mesmo descobrir se há alguma, qualquer base ideológica nessas coisas, talvez haja em todas elas, e estou lhe dizendo, no caso Piper, é claro que havia. Começamos procurando motivos, talvez ela estivesse envolvida com algum daqueles garotos, ficou com dor de cotovelo. Bom, simplesmente não é isso. Isso eu posso lhe dizer. Podemos estar descobrindo alguma coisa muitíssimo mais profunda.
As coisas em que aqueles pais acreditam são absurdas. Não é só coisa de hippies, essas figuras que já controlam metade da cidade, mas os Piper, não sei como chamar esse pessoal. Eram como um culto. Aqueles três. Algum tipo de culto da mente. Eles e os amigos deles. Ambientalistas. Posso lhe mostrar
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documentos que tiramos daquela casa e você não vai acreditar. Aqueles pais sorridentes e aquela menininha bonita com todos aqueles prêmios, eles se associavam a pessoas e acreditavam em coisas de arrepiar o cabelo. A gente acha que os ambientalistas são inofensivos, mas não são. Não seriam seguidos pelo FBI se fossem inofensivos. Sabemos o que liam naquela casa. Temos caixas cheias daquela merda. Sabemos de onde vieram, o que andaram fazendo. Mas não sabemos o que ela pensava. Temos uma carta de amor e documentos da escola. Nenhum diário, nenhum filme doméstico, nenhuma declaração. Nada. Ela é como um maldito fantasma. Vamos ter de retraçar tudo de trás para frente pelos pais. E eu sei que o babaca daquele garoto Bailey com o seu paletozinho azul sabe exatamente o que aconteceu.
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Claire HAEDEN, NOVA YORK, 2000 O CORPO DE Bombeiros Voluntários de Haeden era um imenso celeiro de metal na Rodovia 34. Abrigava um carro de bombeiros; um salão de azulejos cinzentos para bailes, treinamento de primeiros socorros e palestras; e uma sala de estar de lambri, com carpete marrom baixo, um sofá modular e uma mesinha de centro. O CBV era um ponto de encontros legal, mobiliado e mantido por doações e recursos do condado. Os bombeiros não moravam lá, mas jogavam pôquer algumas vezes por mês com alguns técnicos em emergência médica, e, na geladeira, havia cilindros de emergência de cerveja Pabst Blue Ribbon. Também faziam churrasco de frango no estacionamento e festivais da panqueca no Dia das Mães, no Dia dos Pais e na Páscoa. O CBV confirmava uma certa opinião de Gene. Era um exemplo vivo de ajuda mútua e solidariedade. Bem ali, no meio do nada. Ele convenceu Connie a fazer uma doação de dois mil dólares ao lugar no ano passado apenas por falar sobre o local. Gene adorava o corpo de bombeiros de um jeito que Claire achava meigo e um pouco bobo. — Não estou disposta a fingir que sou um dos rapazes num lugar desses — disse ela. Gene sorriu. — É claro que está querida. Ela deu de ombros. — Você sabe que está procurando uma agulha no palheiro ao tentar transformar um galpão abandonado de metal corrugado numa espécie de comunidade de socorristas sem consciência.
Mas o corpo de bombeiros era bem legal — tinha de admitir. Era o único lugar da cidade que parecia levemente familiar. Levara Alice lá para fazer o treinamento de primeiros socorros com um camarada chamado Tom Cutting, que seria facilmente confundido com um anarquista se não amasse tanto aquela farda ridícula. Cutting lhe lembrava Con quando jovem, e ela achava que,
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talvez, fosse uma boa isca para fazer com que Micky se mudasse de volta para os Estados Unidos e fosse para a terra que agora todos possuíam juntos. — Vocês são uns chatos! — dissera Claire pelo telefone, outro dia. — Aqui é tão bonito, garota. E você! Você só fica viajando e sabe que o seu lugar é aqui, e que está vago! — Connie e eu estamos planejando arrasar o campo para construir uma metrópole — respondeu Michelle. — É por isso que estamos demorando tanto, é muito planejamento... Além disso, se não se lembra, Con e eu não moramos juntos faz uns sete anos. — É verdade. Ótima hora para vocês dois virem visitar. Podem ver a sua afilhada. — Como está indo a casa e tudo? Você está bem aí? — Na verdade, não saio muito — respondeu Claire. — Passo bastante tempo com Ross. Logo faremos a horta, o que é sempre muito divertido. Este ano vamos plantar soja. Mas, de modo geral, estamos meio falidos. Duvido de que eu fosse sair muito, mesmo que não estivéssemos. Em termos sociais, nada mudou. Eu não sei mesmo como descrever o povo daqui. — Caipiras? — sugeriu Michelle. — Ah, Micky!
— Agressivamente heteronormativos12? Como é que você falava daquelas garotas do norte do estado, lá na clínica? Claire riu. — Ai, céus! Não, é mais esquisito do que isso. Como... aquela merda que você falou sobre prestar atenção ao óbvio. — Foi George Orwell que disse isso. — Tá, tudo bem. O óbvio é só o que temos aqui. Tente falar sobre outra coisa, e... Não sei. Tanto faz. Gene está bem contente fazendo coisas em casa, na maior parte do tempo. — Que surpresa! — disse Michelle.
— É difícil. É difícil ir à escola de Alice. Sabe, é uma escolinha do interior, e ela está feliz lá. Tem um bom grupo de amigos.
12 Pessoas que apresentam diferentes normas.
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— Então, por que é difícil? — Ah, não é nada. Não é nada mesmo. São as mães, acho. Mas as crianças são umas gracinhas; então, elas não podem ser tão ruins assim. A maioria dos nossos amigos aqui tem a idade de Ross, não tem filhos na escola. Nós os vemos, assim, no máximo uma vez por semana. — Claire conseguia escutar os estalidos da ligação ruim entre elas e apertou o telefone com mais força contra a orelha. — Sabe, é assim: outro dia, uma mulher queria falar comigo sobre levar as crianças no carro, sabe, o tipo de carro que tinha, alguma coisa sobre fazer compras em alguma loja no shopping. Assim, por vinte minutos inteiros. Quase meia hora dizendo uma coisa, depois outra coisa. Não é que seja horrível por si só, é que não há nada mais. Podemos ter cinco ou seis conversas dessas, uma atrás da outra. Todo dia. Não há nenhum transporte público. Não dá para pegar o trem para outro lugar, nem pedir comida tailandesa, nem ver alguém com uma aparência um pouco diferente. Alguém aparece e só descreve as coisas ao seu redor da maneira mais leve possível, afirma vários fatos observáveis. Falta todo o contexto social. Detesto dizer isso, porque é culpa minha não manter a mente mais ativa por minha conta, mas faz muito tempo que não dou uma gargalhada, sabe, que não me sinto rir muito mesmo. Enquanto falava, Claire sentiu que ia começar a chorar. Estava com vergonha de ter se queixado daquilo, da saudade da comida e do metrô, principalmente a Micky, com o trabalho que ela fazia, e quando finalmente disse “Não é nada”, a voz estava áspera. Naquele momento, Claire desejou que Michelle e Con estivessem ali ou que ela estivesse em Nova York ou na África. Em qualquer outro lugar. Sentia os olhos daquela mulher sobre ela e o jeito passivo, aprisionado, esnobe com que ela falara sobre coisas rotineiras. Uma lista de posses. Naquele momento, Claire duvidou de que tocar o MC5 ainda fosse adiantar. Era só mais uma coisa que a tornava diferente. Pelo menos hoje, era um dos dias mais empolgantes de Haeden: o Dia das Mães. Ela brincou que era uma espécie de versão do desfile de Halloween do West Village na cidadezinha. Gene, Tom Cutting e vários outros homens estavam de avental florido. Era para ser engraçado e muitos moradores comentavam, enquanto olhavam os homens virar panquecas e fritar bacon. Alguns agiam como drag queens, o que era mesmo engraçado, mas não pelas razões que eles achavam que era.
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Claire gostava de Cutting. Tinha 30 anos e ainda dirigia ambulâncias, coisa que começara a fazer no ensino médio. Ainda ajudava os outros todo dia e não revisava livros didáticos, como ela. E isso se via. Cutting tinha um olhar desvairado e um enorme sorriso com falhas nos dentes, e não parecia avaliar a política de cada morador na fila das panquecas. Também não imitava a “feminilidade” por estar de avental. Algo nele fazia-o parecer totalmente envolvido e totalmente distante, tudo ao mesmo tempo; ele era um verdadeiro estudioso das pessoas, o que seria irritante se não fosse tão claramente dedicado ao seu serviço. A outra coisa que Claire admirava em Cutting é que ele era feliz onde estava, muito embora tivesse sido transferido para lá; o único funcionário pago ligado ao CBV de Haeden. Conversava com todo mundo. Quando não sabia o nome de alguém, perguntava. Perguntava sobre os avós, os cães, os tios. Quando chegou a vez de Alice na fila, ele lhe perguntou como fazer um coração voltar a bater. — Preciso saber, preciso saber! — disse ele, virando uma panqueca no prato da menina. — Depressa! — A ressuscitação cardiopulmonar não faz o coração voltar a bater! — respondeu ela o mais depressa que pôde. — O-objetivo-dela-é levar-o-sangue-oxigenado-para-o-cérebro-e-os-órgãos-vitais, até-que-se-possa-usar-um-desfibrilador-automático-externo-ou-o-socorro-médico-especializado-assuma-o-tratamento-da-vítima. — Ela tomou fôlego. — Ainda assim... depois que começa a RCP, a gente tem de continuar sem parar até que o cenário se torne perigoso ou chegue um socorrista treinado ou aconteça um milagre e o coração, que, tecnicamente, não poderia voltar a bater, volte a bater! — Al é a minha melhor aluna — comentou ele com a próxima pessoa da fila. — Quando fizer 10 anos, vou deixar que dê aula no meu lugar. — É mesmo? — gritou Alice de volta para ele. — De jeito nenhum! — Ele sorriu. — Você é só uma criança! Ninguém lhe explicou isso? * * *
Alice e Claire se sentaram à longa mesa de reunião desmontável coberta de frágeis toalhas de mesa de plástico xadrez vermelho e branco. Dali a um
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minuto, Gene foi se sentar com elas. O ar estava abafado e sujo, e o barulho de garfos e facas e várias conversas diferentes ecoavam no salão. A televisão estava ligada num dos cantos, transmitindo a CNN na sala — as vozes conhecidas dos locutores e jingles de anúncios se fundiam com as conversas separadas, como uma música que todos conheciam. Todos, menos Alice. Os Piper não tinham televisão e ela ficou fascinada. Fitando a tela, a boca semiaberta. Gene balançou a mão na frente do rosto dela. Estalou os dedos perto da orelha e não houve reação. — Melhor que um fuminho — disse baixinho. Claire e Gene examinaram juntos a sala: desconhecidos familiares e alguns rostos acompanhados de nomes. Era uma população muito loura e roliça que exibia boa variedade de bonés de beisebol, botas de trabalho, estampados florais e moletons. Um homem alto de cabelo cor de areia e vestindo camisa polo, mocassins e jeans caminhou até a mesa deles e deu um tapinha nas costas de Gene. — Então, é isso que o nosso cientista faz no dia de folga, hein? Gene ergueu os olhos e sorriu, ofereceu a mão ao homem, que lhe deu um aperto firme. — Essa deve ser a patroa! Claire olhou para Gene e quase riu. Sorriu para o homem. — Esta é Claire — apresentou Gene. — Oooora, prazer em conhecê-la, Claire! Sou Bob Dyer. O Gene aqui está nos ajudando, tirando umas amostras de solo lá na nossa propriedade. — Ele piscou para Gene. — Já deu um bom trato nos primeiros 20 hectares. Claire fez que sim para o homem, de maneira encorajadora. — Essa é a sua linda garotinha? — perguntou ele. — Essa é Alice — disse Claire. Alice ainda fitava a televisão, comendo, distraída, a panqueca.
— Bom... — Dyer agarrou de novo a mão de Gene e lhe deu um tapinha nas costas. — Melhor voltar para as minhas garotinhas; não quero arranjar encrenca agora. Deixar DeeDee com ciúmes no Dia das Mães. — Ele piscou para
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Gene e, de algum modo, entortou a boca para o lado do rosto em um sorriso irônico. Apontou o dedo para ele antes de ir embora. — Uau — comentou Claire. — Meu Deus! Gene ergueu as sobrancelhas e fez que sim. — É mesmo fascinante, quando a gente pensa. Lembre-me de lhe falar depois sobre esse comportamento apontador dos machos. Aqui, todos fazem isso. Tenho uma teoria. — Relacionada a pênis minúsculos? Ele riu. — O termo — disse ele, num tom sarcástico e sussurrado — é micropênis e, neste caso, é, provavelmente, o resultado de toxinas ambientais. A terra do Sr. Dyer faz fronteira com a fábrica de laticínios. Claire riu. Amava o marido. Alice fitava um anúncio do Meu Querido Pônei. — Eu adoro o Meu Querido Pônei e o novo Pônei Algodão-doce Fofinho! — gritava uma menininha extasiada para outra menininha. — Vou levar o Algodão-doce recém-nascido para visitar a Princesa Cristal na sua Carruagem da Corte! — respondeu a outra menina. A boca de Alice se escancarou. Depois, ela disse as palavras “Algodão-doce” em voz alta. * * * Mais tarde, no carro, Claire comentou: — Tudo bem, você tinha razão sobre o aspecto Reino Selvagem da coisa toda. Gene riu. — Mas o que você achou do CBV? — Legal. Eles trabalharam bastante — falou Claire. — Aquilo não tinha gosto de panqueca de verdade — comentou Alice.
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— O comparecimento foi incrível, querido — disse Claire. — Onde estava Ross? — Era um tipo diferente de panqueca. Feito com mistura pronta — explicou Gene a Alice, e depois: — Por que Ross estaria na festa do Dia das Mães? Ele está por aí atirando. Claire deu de ombros. — Quero ir por aí atirando — disse Alice. — Peça a Ross. Tenho certeza de que ele lhe ensina a acertar os alvos — respondeu Gene, e Claire estreitou os olhos para ele e sacudiu a cabeça com descrença.
— Vou fazer um centauro de papel machê13 — anunciou Alice, felizmente passando para a ideia seguinte. — Preciso arranjar aquele brinquedo de cachorro que parece um casco para fazer o casco. De que é feito? — De cascos de verdade — disse Claire. — É mesmo? — Ela ficou em silêncio, pensando naquilo por um instante. Depois, disse, ansiosa: — Tenho de ver como está o meu sapo. — Estamos quase em casa. — Ei, espere. Podemos parar e comprar cascos? — Não sei onde você os viu, querida — disse Claire. — Na Agway. Estão num pote plástico de doce na fila do caixa, e dois custam 1,35 dólar. Theo tem um G.I. Joe e o cortamos no meio para a parte de cima do centauro. — O que vai fazer com as pernas do G.I. Joe? — perguntou Gene. — É G.I porque é gastrointestinal? — perguntou Alice. — Gastrointestinal Joe? — Não — respondeu o pai, olhando para Claire e tentando não rir. “Government-issue.” Emitido pelo governo. — Que nem dinheiro?
13Palavra originada do francês papier mâché, que significa papel picado, amassado e esmagado, é uma massa feita com papel picado embebido na água, coado e depois misturado com cola e gesso. Com esta massa é possível moldar objetos em diferentes formatos, utilitários ou decorativos.
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— Emitir também significa despachar, remeter — explicou Claire. — Ah, sei. Bom, vou usar as pernas. Vou fazer uma boneca com corpo de sapo e perna de gente. — Como vai fazer a parte do sapo? — Uma bolsinha de moedas de couro verde e uma luva! Aquelas panquecas tinham gosto de papel machê. Já provei aquele troço e tinha o mesmo gosto, juro. Alice parou de falar e ficaram algum tempo em silêncio, cruzando Elmville para ir ao Agway. Claire ficou contente com o silêncio, raro naqueles dias. Alice tinha muita coisa que queria fazer e falar; parecia ter deixado para trás o mundo particular e contemplativo dos seus tempos de bebê, a seriedade de observar e avaliar. Agora, tudo tinha de ser discutido e explicado. Claire se contentava em andar de carro com o marido e a filha, juntos nos seus pensamentos separados, mas o silêncio teve vida curta, porque Alice começou a cantar músicas de Woody Guthrie. Deitada no banco de trás, ela cantava. “Let’s go riding in the car, car.” Depois, cantou de novo em outro tom. “I’m gonna send you home again, I’m gonna send you home again, bum bum bum, rolling hooooooommmmmeeee! Take you riding in the car.” Quando acabou de cantar, perguntou: — Ei! Dá mesmo para fiar palha até virar linha de costura? — Duvido. Não deve ser fácil — disse Gene. — Dá para fazer um monociclo com uma bicicleta? — Dá — respondeu ele. — Isso, dá para fazer bem.
— Você faz bem — disse Claire baixinho para Gene. Ele tocou a mão dela na alavanca de marcha e ela deu uma olhada e o viu fitando a sua coxa enquanto ela pisava na embreagem. Conseguia sentir o cheiro do cabelo dele, um bafejo de óleo de melaleuca14. Claire sabia que Gene ia querer tirar um cochilo quando chegassem em casa, fazer amor e dormir enquanto Alice brincava lá fora, no celeiro, construindo centauros e rãs e cuidando de sapos. Faria primeiro a massa do pão diário e a deixaria crescer enquanto se deitavam. E ela sentiria o peso e o calor dele, a bochecha no seu ombro, os braços e pernas entrelaçados até no sono. E, quando acordasse, cheiraria a pele dele, e então ver
14 É uma arvore, e o óleo é muito eficaz como agente antibacteriano e antifúngico e como estimulador das defesas do organismo.
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o seu rosto seria uma dádiva. Era por causa de Gene que Claire sabia que conseguia querer a vida que tinham. Conseguia ter fé de que tudo daria certo.
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Alice e Theo HAEDEN, NOVA YORK, 2001 AS PERNAS DE Alice eram compridas e tinham quase a mesma espessura do tornozelo à coxa. A menina as olhou e pensou no funcionamento do andar, a touca de natação na cabeça, mastigando um pedaço enorme de chiclete, a caminho do encontro com Theo depois da escola na ponte da Rabbit Run Road. Era início de junho. Dali a três semanas, ela se veria livre do terceiro ano. No dia seguinte, Constant viria jantar e ficaria algum tempo, como fazia todo verão desde que ela se lembrava. Constant é tio de Alice e primo de Theo, mas, de certa maneira, nenhum deles é parente em termos genéticos. Constant é sobrinho da ex-mulher de Ross. E Ross é irmão adotivo da mãe de Theo. E Constant é meio que irmão de Gene. Desse modo, é como se ela e Theo fossem primos. Eles se parecem, ainda por cima. Podem fingir que são primos. — Relações de sangue são relações fracas — lembrava-se de ouvir a mãe dizer. As relações por afinidades são as que realmente importam. Às vezes, somos parentes de pessoas com quem temos boas relações por conta das afinidades, às vezes, não. Ter parentesco de sangue não é a mesma coisa que ser uma família. Alice pensava sobre isso enquanto andava até a ponte. A genética só fazia diferença porque, quando a gente faz sexo com parentes, produz bebês com o corpo ou o cérebro defeituoso; fazer sexo com parentes é o que os reis e rainhas e os ricos faziam, e essa é uma das razões para muitos governantes serem malucos. Gene e Claire lhe contaram tudo sobre o DNA e que todos os seres humanos são feitos das mesmas coisas, e os animais também são feitos quase da mesma coisa. Então, a coisa mais maluca do mundo é achar que a gente pode dizer aos outros o que fazer — ou pensar que algumas pessoas merecem tratamento melhor ou mais coisas do que as outras — porque todos os seres humanos têm as mesmas necessidades biológicas e merecem as mesmas coisas essenciais. Os reis e rainhas e os ricos tentam fazer com que os que têm menos lhes deem coisas. Também acham que podem dizer aos outros o que fazer e como agir, o que prova que são malucos, talvez até por cruzamento entre parentes ou coisa parecida.
Ela e Theo não são parentes. Mas, às vezes, diziam um ao outro o que fazer. E ela sabia que isso não era bom. Às vezes, queria tanto lhe dizer o que
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fazer que ficava com vontade de gritar. Certo dia, ela perguntou sobre isso a Gene, que rachava lenha, e ele disse: — Vá em frente, diga a ele o que fazer. Ele vai fazer ou não. Ele é que decide. Depois, não há mais nada que possa acontecer. O que você quer que ele faça, afinal? Ela jogara a cabeça para trás e suspirara com irritação. — Pegar o segundo trapézio na segunda balançada! E NÃO na terceira! Na terceira, leva tudo para a contagem ERRADA quando a gente está brincando de Pedro e o Lobo! — Ela gritou porque, obviamente, era tão fácil pegar no segundo balanço que ainda estava danada porque ele não fazia assim. Gene levantou as sobrancelhas para ela e riu. — É — dissera. — Seria uma contagem diferente se vocês estivessem brincando de circo com aquele CD e você quisesse que o balanço para cima ficasse no tempo forte. — Ele pousou o machado, lhe entregou um pouco de lenha e acendeu o cigarro. — O que será que soa bem com o terceiro balanço? — Parecia perguntar a si mesmo, embora tivesse dito em voz alta para que Alice escutasse. — Prokofiev, não, com certeza. Esse já é seu. Então, ele cantarolou. Pegou a sua pilha de lenha enquanto ela andava ao lado dele na direção da casa levando a parte que lhe cabia. Ele deu de ombros. — Theo poderia treinar, e acertar ou não. Ou vocês poderiam achar outra coisa que tenha o ritmo certo; só há um milhão de músicas de circo no mundo, docinho. Tudo pode ser música de circo. Não é um problema tão grande assim. Quando ele disse isso, ela se espantou por não ter pensado sozinha em outra música. Era como se tivesse esquecido completamente de que existiam outras músicas. Podia dizer a Theo o que fazer, mas aí ela só estaria certa sobre aquele único truque e aquela única música. E parecia que isso não valia a sensação ruim de querer dizer a alguém o que fazer. Era como a mira da arma do tio Ross. Tapava o mundo inteiro e punha uma cruz em cima da coisa que você queria ver com mais clareza. A coisa que você queria ver de perto. Era o contrário do velho microscópio de Gene.
Ela estalou o chiclete, ainda pensando nisso enquanto andava na direção da margem do rio, e viu Theo esperando na ponte sob o sol da tarde. Ele tinha um jeito de ter todas as coisas certas. Ímãs, fósforos, bolinhas de gude, borrachas em forma de bicho, uma gaita de boca, cera de abelha, rolos de espoletas. Alice torcia para que tivesse trazido uma jarra, porque isso ela não
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tinha. Tinham planejado entrar no rio e pegar lagostins, mas sempre se esqueciam de trazer uma jarra. Ele acenou para ela e subiu na mureta de proteção da ponte. — Connie chega amanhã à noite! — gritou ela. Ele fez que sim. — Por que está com a touca de natação? — Posso dormir na sua casa? — perguntou ela. — Pode. — Na iurta? — Não. Ross disse que largou o emprego. Vai passar um tempo dormindo na iurta. — Sério? Por que ele tem de ficar na iurta por ter largado o emprego? Theo deu de ombros. O cabelo estava sempre emaranhado e espetado na nuca, e era um pouco comprido demais na frente. Ele o afastou dos olhos. — Queria fazer móbiles para Con — disse ela. — Podemos fazer móbiles de lagostim. Tem mais chiclete? Móbiles de lagostim é uma ideia genial, pensou ela. Melhor ainda se houvesse um jeito de manter os lagostins vivos. Ela enfiou a mão no bolso da bermuda e lhe entregou o pacote todo de chiclete enquanto seguiam a trilha que levava até debaixo da ponte e continuava pela margem de seixos enlameados do rio. Agacharam-se, olhando a água rasa à procura dos minúsculos corpos de lagosta manchados de cinza e verde, camuflados como pedra. Entraram na água até que ela atingisse a altura dos tornozelos e ficaram olhando diretamente para baixo. Ver os corpos com armaduras, parecidos com insetos, dardejar em fuga fazia o coração bater com força. Estavam caçando, pegando os lagostins depressa, logo atrás das garras da frente para não serem beliscados. Theo não trouxera a jarra. Por isso, tiraram as camisas e usaram-nas para fazer bolsas e guardar os lagostins, e, enquanto nadavam, deixaram as camisas na margem a se agitar e rastejar lentamente em várias direções.
Era ali que os pais os levavam quando pequenos, e eles costumavam fingir que eram bichos, e sentiam aquilo então, outra vez — o desejo de se transformar em bichos. Evitaram se olhar por algum tempo. Mas foi demais
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para Alice. Ela olhou diretamente para Theo e ergueu as sobrancelhas, curvou os ombros. Depois, esperou. Deu para ver quando ele virou Toupeira. Não foi preciso que ele lhe dissesse. Logo que Theo fez aquilo, ela se sentiu meio enjoada, tão envergonhada de ainda agirem assim — brincar de Circo e de Vento no Salgueiro e ir ao seu lugar especial enquanto o restante da classe trocava figurinhas de Pokémon e ia ao treino da Liga de Dentes de Leite ou assistia à TV. Havia algo de errado no que faziam. Ninguém brincava daquele jeito, só bebês. Haviam deixado isso bem claro a eles quando foram ouvidos no trepa-trepa na hora do recreio. Ela se sentiu constrangida porque, na verdade, para Theo, era perigoso brincar daquele jeito. Eles tiravam os tênis dele e os jogavam na sua cara, jogavam-no no chão do corredor quando voltavam do recreio, batiam-lhe nas costas com os ombros. O garoto cujo cabelo era cortado com tesouras para cachorro, que usava um moletom de Buffalo Bill, cujas bochechas eram rosadas como nos desenhos da Branca de Neve, tinha a idade de Theo mas era grande. Os olhos muito separados eram molhados demais. Tinha os lábios grandes e rachados e dentes bem retos. Fora ele que derrubara Theo por dizer “Isso, isso, Ratinho”. O garoto esbarrara em Theo e o chamara de menininha e bicha e lhe dissera que tinha uma namorada. E que o pai dele era bicha. Chamou Alice de piranha e disse que os pais dela viviam de seguro-desemprego. Ela não sabia o que era seguro-desemprego, mas parecia uma coisa muito ruim. Disse também que ela usava calças esquisitas do Kmart. Claire fizera as calças e Alice não sabia se eram esquisitas. Quando perguntou se eram ou não estranhas, a mãe riu. Mas não riu do que o garoto disse. Ela abriu os braços para que Alice fosse se deitar no sofá e ler com ela. Não era só o garoto de dentes retos. Alice não queria pensar no número de meninos que tinham entendido tudo o que o garoto dissera. E não entender o que ele dissera era a pior parte daquilo tudo. Claire explicou: — Quem faz esse tipo de coisa, meu docinho, está sofrendo muito e quer que alguém lhe faça companhia, então tenta causar sofrimento nos outros também. Tenta provocar neles o sentimento ruim que tem. Você precisa ignorar o que dizem. Era óbvio que Claire não sabia quanta companhia o garoto tinha, porque Alice não lhe contou a história toda. Precisava haver outra razão. O garoto de lábios rachados queria que parassem de brincar do jeito que sempre haviam brincado, e até que parassem de usar as roupas que usavam. De alguma forma, Alice passou a odiar suas calças, o que não fazia qualquer sentido, porque foram as suas calças favoritas. Cor de laranja vivo com bolsos na lateral.
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Ela pensou um pouco. As pessoas feriam as outras quando sofriam ou quando eram malucas; quem sofre muito ou por muito tempo fica maluco por reflexo, como o cachorro que morde quem pisa no seu rabo. As pessoas que dizem aos outros o que fazer são malucas. Do mesmo jeito que ter filhos com parentes deixa as pessoas malucas ou retardadas, reis e rainhas e esse tipo de coisa. Claire tinha misturado tudo. Ela achava que o garoto sofria, mas ele era da realeza. Ele não sofria. Dava para ver que não era infeliz. Ele era feliz. Ficou tão feliz quando derrubou Theo no chão que dava para ver no jeito como respirava. — Nunca vou fazer companhia a ele — disse Alice, espantada e confusa por Claire ter chegado a sugerir aquilo. Ninguém devia estimular a mandonice nem as ideias malucas dos ricos. Nem ignorar as coisas ruins que fazem. Ninguém devia ter medo deles. * * * Em pé no rio, com aquela sensação de constrangimento, ela deu uma olhada para ver se Theo mudara. Observou as pálpebras dele caírem e depois os olhos se estreitarem. E, de algum jeito, ele conseguira realmente deixar o nariz pontudo e pôr o queixo para trás. Estava nervoso, mas digno. — É sempre muito bom quando você vem aqui, Toupeirinha — comentou Alice, puxando da touca de natação uma mecha do cabelo comprido para fazer um rabo fino e louro que pendia pelas costas. Era por isso que estava de touca, mas não quisera dizê-lo em voz alta. — O prazer é todo meu, Ratinho — respondeu ele. — Mas temo que hoje tenhamos de agir depressa. Precisamos fazer alguma coisa pelo Sr. Sapo. — O sotaque britânico de Theo era perfeito, e ele se orgulhava disso. Era o melhor ator do mundo inteiro. Ela não se sentia mais enjoada nem preocupada. — Finja que temos de tirá-lo da cadeia — sussurrou Alice. — Precisamos pegar o trem para Elmville — disse Toupeira, como se não tivesse sequer ouvido Alice; mas ouvira. — Tive uma ideia. Uma ideia arriscada.
— Certamente — disse Rato, pondo as mãos no fundo pedregoso e enlameado e deixando as pernas flutuarem na corrente suave. Soprou uma bolha cor-de-rosa. — Certamente, velho amigo — continuou Rato. — Devemos falar com Texugo agora mesmo e levar-lhe esses adoráveis lagostins, e talvez ele
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possa nos ajudar. Ouvi dizer que prenderam Sapo na masmorra. — Ela fez um gesto na direção do único prédio grande visível da margem do rio: a arquitetura branca e plana do Centro Médico de Haeden. Toupeira estava em pé no rio, mergulhado até a cintura, segurando um graveto dentro d’água e observando a corrente ondular em volta dele. — Texugo saberá o que fazer depois que o libertarmos — disse ele. — Ele tem túneis que vão a Elmville e até mais longe. Mas precisamos de um plano. — Sim, certamente. Um plano — concordou Rato. — Sapo não pode sair sem disfarce, não é? Creio que podemos tirá-lo de lá, disfarçá-lo de velha lavadeira. Contanto que fique em silêncio, ninguém saberá. Depois, é descer à margem do rio e atravessar a floresta selvagem até ficarmos a salvo. Eles se entreolharam, em pé, sem camisa, na água cinza-esverdeada. Ela sabia que a seriedade e o perigo do que estavam prestes a fazer eram imensos. Escandalosos! Mas não sabia o que era nem quando o fariam e, de repente, começou a sentir que tudo aquilo já tinha acontecido e que estava apenas se lembrando, sentiu um arrepio percorrer toda a sua pele. Estava cheia de espanto com a bravura dos dois. Não havia ninguém no mundo em quem pudessem confiar mais do que um no outro na missão de salvar Sapo. Toupeira a olhou e estreitou os olhos. — Vamos agora. Temos muito trabalho a fazer. Na margem, pegaram as camisas cheias de lagostins e começaram a andar na água rasa, seguindo o rio na direção da casa de Alice. Connie pode ser o Sr. Sapo, pensou Alice. Pode se esconder no celeiro. Temos mesmo de lhe mostrar o novo trapézio. Debaixo da ponte, ela e Theo começaram a uivar, e a cobertura côncava de metal puxou a sua voz para o céu e para fora da cidade, ecoando, os últimos tons fantasmagóricos ainda ressoando quando deixaram para trás a margem do rio.
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Wendy HAEDEN, NOVA YORK, 2008 A PRINCÍPIO, ERA difícil dizer por que Dale Haytes tinha boa aparência. Era alto e robusto e as bochechas costumavam estar vermelhas. Usava roupas caras. Seus dentes eram perfeitos. Tinha a cabeça chata, o pescoço barbeado e, às vezes, com espinhas. Estava sempre a caminho do golfe ou voltando do golfe e andava numa reluzente picape azul-escuro com cabine dupla. Gostava de jogar cartas e era amigo de todo tipo de homem. Homens que trabalhavam em empresas, homens que viajavam e homens que passavam seu tempo no Alibi. Gente com quem você não acharia necessariamente que ele conversaria tipos realmente diferentes. Como Wendy, ele observara os amigos partirem para estudar e irem para a faculdade. Como Wendy, trabalhava na empresa do pai e se orgulhava de ficar no escritório. Os membros da família raramente faziam o serviço da fazenda, porque a fazenda tinha virado uma grande corporação. Ela os ouvira conversar sobre isso no bar, como ninguém conseguia entender aquilo. Era um negócio. Tinham mais de oito mil cabeças, agora que trabalhavam como subsidiária dos Empreendimentos Leiteiros Groot. A Groot tinha escritórios na Holanda e na Argentina. Dale havia lhe contado que ia à Europa duas vezes por ano. Ela gostara do jeito como ele explicara. Como se fosse simples, só mais um lugar. Dale era um garoto de cidade pequena ligado à riqueza do restante do mundo. Mas ele não era falso, como os garotos da faculdade que viajavam. Dizia o que sentia, fosse o que fosse. E não parecia se preocupar muito com isso. Não parecia se preocupar muito com nada. Embora, às vezes, Wendy achasse que ele fingia se preocupar para que os outros se sentissem melhor, e isso a fazia gostar dele — o jeito como mudava a sua atitude confiante para ajudar um pobre coitado. “Jogar-lhe umas migalhas”, como ela o ouvira dizer.
Com 22 anos, Dale tinha um comportamento que Wendy achava adequado para um homem mais velho. Agia como se fosse muito mais velho do que os caras com quem ela trabalhava, embora fosse dez anos mais novo. Provavelmente, era porque gostava de falar sobre tradições e dizia coisas como “Diversão primeiro, trabalho depois”, “Bobeou, dançou” e o seu favorito, “Atitude é tudo”. Às vezes, abreviava para “Atitude!” ou dizia “A atitude é mais importante do que os fatos”. Wendy o ouvira explicar essa última expressão a alguns trabalhadores da sala de ordenha, que vieram uma noite e ficaram por ali, de papo furado com ele. Fazia parte de um longo texto
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inspirador que a mãe mandara emoldurar e pendurara na cozinha, onde a maioria pendura um “Abençoai este lar”. Disse a eles que o texto explicava que a atitude podia deixar qualquer situação “triste e pesarosa ou alegre e ditosa”. E que trabalhar no escritório e conversar com vendedores melhorara a sua atitude e o seu vocabulário. Wendy não sabia como se sentia a respeito disso. Tivera de conversar com atacadistas e cobradores pelo telefone e achava que eram apenas pessoas que falavam como se jogassem num time, embora, na verdade, estivessem sentadas em cubículos e falassem ao telefone. Ainda assim, não era segredo que a atitude, a capacidade de comunicação e o espírito de equipe eram as coisas que tinham tornado tão bem-sucedida a família de Dale. Não a formação universitária. E isso Wendy entendia. E gostava da voz dele. Dale tinha o sotaque monótono do norte do estado e um jeito conciso e truncado de falar que era agradável para os mais velhos e engraçado para os amigos. Os pais e professores o adoravam. E ele tinha um tipo de qualidade perdida: charme. Wendy sabia que Dale lia as pessoas e depois ajustava sua linguagem a elas. As expressões que escolhia pareciam ao mesmo tempo irônicas e cheias de autoridade e respeito, um jeito habilidoso de falar que era difícil de captar — que ele podia tornar sério ou engraçado, dependendo da reação que obtivesse. Às vezes, bastava uma piscadela. “Todo homem tem de trabalhar”, dizia sobre si mesmo, ou “não se deve mexer com quem está comendo”. Podia acreditar naquilo ou podia ser sarcasmo, ou, ao contrário, podia estar zombando de alguém. E era genial quando as coisas que dizia alcançavam os três efeitos. Dale era um brincalhão. Isso era um tanto do que o tornava atraente para Wendy. Ele chegava a dizer em voz alta coisas que ela pensava. Era um brincalhão, mas também tinha consciência de que era um homem, ligado à família e à propriedade; seus apetites, ligados ao seu corpo. Talvez parte de ser homem fosse ser brincalhão. Definitivamente, não parecia um menino — nem mesmo um amigo do irmão dela, que trabalhasse no comércio. Ele fazia parte da história da cidade, um nome que podia ser encontrado no mapa, um marco. Seu maxilar quadrado e o discreto queixo duplo podiam ser encontrados há gerações nas fotos da família e nas lembranças dos mais velhos.
Dale morava num apartamento na casa dos pais, uma grande construção colonial no cruzamento da Rua Haytes com a Town Line Road. Seu irmão Bruce e os pais moravam na parte principal, e os tios, na casa ao lado, que já tinha sido residência de empregados da fazenda. Nenhum deles abandonara alguma vez aquela terra.
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As coisas que tornavam Dale atraente para Wendy eram profundas, e ela sabia disso pelo jeito como se sentia quando ele estava por perto, o jeito como tentava não olhar quando ele chegava e se sentava no bar. Sabia que a maioria das moças não o via dessa maneira. Embora fosse um Haytes e tivesse jogado futebol americano na escola, as amigas dela e as outras mulheres do bar agiam como se fossem boas demais para ele. Talvez fosse o cheiro da fazenda. Wendy achava muito superficial que os outros o julgassem por causa de um subproduto do negócio da família. Imaginava que o pobre coitado tinha de lidar com isso o tempo todo. Ela o ouvira dizer que as garotas da sua classe eram arrogantes. Que iam para a faculdade fingindo adorar a vida na cidade grande ou os caras meio veados ou alguma merda de que nunca tinham ouvido falar até que fossem quase adultas. Que se mudavam para perseguir algum sonho louco de carreira. Algumas indo de faculdade em faculdade, vivendo como se fossem pobres. Foi uma das únicas vezes que ela achou que ele parecia zangado — mas talvez tivesse sido, em parte, por empatia com os caras com quem estava. Nenhum deles tinha namorada, embora alguns tivessem esposas. Certa noite, quando ela lhe serviu uma bebida, Dale segurou seu pulso com gentileza e a olhou por um longo instante. Foi um gesto teatral e ela se perguntou se ele o faria se estivesse sozinho, como se só agisse assim para brincar com os caras que o acompanhavam. Sorriu para ele e sentiu o rosto corar. Então, ainda olhando-a nos olhos, Dale disse: — Você ficou mesmo bonita, Wendy. Sempre que vai para o outro lado do balcão e me deixa aqui sozinho, você quase me corta o coração. Ele olhara para a mão dela, como se só então percebesse que a segurava, depois lhe dirigiu um olhar tímido e a soltou. Wendy olhou para a cozinha, puxou as comandas do bolso do avental e, nervosa, colocou-as em cima do balcão, para não parecer que estava apenas flertando com um rapaz pelo qual o chefe já sabia que ela tinha uma quedinha. — Um homem não aguenta tanta beleza andando de lá para cá na frente dele. — Ele dissera beleza como se quisesse dizer outra coisa. — Bem, sinto muito, Dale. É o meu trabalho. Quer dizer, andar até a cozinha. Não quis dizer ser... Quer dizer, isso é... Você está brincando comigo?
Observou a máscara de confiança dele vacilar um segundo, como se ainda não tivesse se decidido, ainda não soubesse se a usava como brincadeira para os rapazes ou se mostrava que tinha um lado sério e romântico, ou talvez,
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naquela hora, ela esperasse, bem naquele instante, que ele tivesse se apaixonado por ela. Então, Dale disse: — Você simplesmente desabrochou feito uma rosa bem diante de todos nós. Ela sentiu o canto da boca se contorcer. Pegou de novo as comandas e as folheou por um minuto. — Seria uma honra levá-la ao cinema um dia desses, quando você não estiver trabalhando. — Ele baixou a cabeça e deu uma olhada, erguendo as sobrancelhas. Era o tipo de olhar que os pais dão quando a gente se mete em encrenca. Wendy sentiu um nó no estômago. Conseguia sentir o cheiro da loção pós-barba dele; baixou os olhos para o punho liso e limpo da camisa dele. Era como se ele fosse um tipo de nobre de Haeden convidando-a para sair, em vez de todos os caras sentados ali de bota e camisa de flanela, caras aos quais ela diria não. — É, tá. Legal — disse ela, e concordou com a cabeça, tentando soar como alguém que só o via como amigo. — Seria divertido. Eu adoraria. É. Seria divertido.
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Gravação: Osterhaus, Megan, 18/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Meu nome é Megan Osterhaus. Hoje são 18 de abril de 2009. Na verdade, quer saber? Não vou falar sobre nada disso. Tudo bem? Acho que até mesmo pensar nesse tipo de coisa não pode fazer bem ao mundo. Agora a minha preocupação é garantir que eu não atraia para a minha vida esse tipo de energia ou de medo. E ter a certeza de que eu consigo assumir as coisas no momento. E continuar respirando. Então vou conversar com você por uns dez minutos. Tá? Depois tenho mesmo de ir embora. E isso é em off, como você disse. Tá certo? Tudo isso é em off. Eu me formei entre Alice e Wendy e não fazia parte mesmo da vida social cotidiana delas. Conhecia as duas, é claro, por causa da equipe de natação e sei, sim, que há um monte de fotos minhas junto de Alice por causa da natação. Só posso dizer que eu nunca viveria do jeito que elas viviam nem faria as coisas que faziam e que, no fim das contas, cabe ao universo determinar o jeito como essas coisas acabam. É o carma. É o carma, e, em muitos sentidos, é o que as pessoas acabam aceitando. Porque não há dúvida de que a gente recebe o que aceita e, por mais duro que isso soe, há quem aceite coisas que acabam em morte. Quer dizer, no caso de Alice, é meio difícil ver as coisas desse modo, porque passei muito tempo com ela antes de sair da escola e parecia que ela havia construído muitas coisas boas no mundo. Mas com as outras pessoas. Não, senhor. Sem chance. Tinha um monte de... um monte de, acho... energia negativa sendo atraída. Entende? E acho que é preciso ver isso como um tipo de inundação, tornado ou algo assim. Só vai aumentando e aumentando e é inevitável. É o único ponto de vista que posso lhe dar. As coisas que falamos e pensamos têm um impacto maior do que a gente pensa no universo. Na época, eu não podia fazer nada e agora é óbvio que não posso. Ninguém pode fazer nada, só viver a nossa vida aqui e agora. No presente.
Quanto a Haeden e todo esse troço sobre economia, cultura ou sei lá o quê, acho que o lugar não é diferente dos outros. Só é menor.
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Não que eu fosse voltar lá ou pensar naquilo, porque simplesmente isso não faz bem a ninguém. E estou consultando um especialista em energia para me ajudar a ver com mais clareza, porque tive uma espécie de proximidade com o evento. Física, não, mas alguma outra. Enfim. Em vários sentidos, tive uma verdadeira proximidade emocional com Alice, e algumas escolhas dela pertenciam a um caminho espiritual que eu realmente não quero cruzar. Quanto a Wendy, quero muito mesmo que ela tenha mais sorte e muita felicidade, agora que não está mais no plano material. De modo geral, ela foi bem feliz no mundo material, por isso dá para ver que essa próxima fase da sua existência, ou não existência, será boa. Não vou dizer nada sobre a maneira como ela morreu. Porque não quero ligá-la nem mais um segundo àquele tipo de dor, nem nos meus pensamentos e, com certeza, não na minha fala, nada que possa ser levado no meu corpo ou na minha cabeça e sair da minha boca. E se há uma coisa que eu diria como declaração geral que possa ser citada, é que ninguém deveria trazer esse tipo de... exatamente... esse tipo de pensamento insalubre para a sua vida. Eu fiquei triste, sim. Chorei quando a encontraram. Mandei flores para a sua mãe e o seu pai, mas não voltei para o funeral. Senti que não havia nada que eu pudesse fazer. Construí para ela uma luminária muito bonita de latão, cobre e vidro, que pendurei na entrada do meu apartamento. E acendi incenso e toquei Gwen Stefani e... Me desculpe, um minutinho só. Eu... Eu acho que é muito melhor do que o que aconteceu em Haeden. E se não vou falar de Wendy, é claro que não vou falar disso. Não vou falar de Alice. Ela não conhecia Wendy direito, entende? Era mais nova do que a gente. Mas ficou mexida. Conversei rapidamente com ela, e conversei com algumas outras garotas da equipe que tinham ido estudar fora também. Todas ficamos contentes por não estar lá. Acho que o que aconteceu assustou muitas garotas que estavam morando lá. O que é ruim, porque não há nada que se possa fazer com medo. Absolutamente nada. Há estudos sobre o jeito como o medo e o pensamento negativo afetam o cérebro. E sobre como estamos todos realmente ligados numa espécie de micro nível, que o nosso pensamento na verdade cria o mundo. Então, mais uma vez, não vou falar disso. Nada disso.
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E, no que diz respeito à Haeden e à escola de Haeden, para ser franca, mal me lembro da época em que morei lá, a não ser da natação, de assistir à TV e de brincar de Maior Melhor. Acho que em todo aquele período de crescimento eu só tive de ficar de cabeça baixa e seguir em frente. Só continuar nadando e simplesmente ficar na sala de artes o máximo de tempo possível. Por outro lado. Simplesmente. Esqueça. Eu nunca me ligaria aos fatos de lá ou às coisas que as pessoas faziam ou diziam. Nunca. Não me serviria de nada e eu não queria levar nem um tiquinho daquilo comigo para a faculdade ou deixar que aquilo aparecesse nas minhas obras. A gente, simplesmente, sabia que Haeden era um lugar que deixava de existir assim que se saía de lá. Mal existia quando a gente estava lá.
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Constant HAEDEN, NOVA YORK, OUTUBRO DE 2002 CON SENTOU-SE JUNTO de Gene, Claire e Michelle, observando as crianças se aproximarem, sem saber ainda que eram notadas. Sorriu quando os dois, perdidos na conversa, se espantaram ao ver os adultos que os vigiavam deitados na grama perto do celeiro, bebendo em grandes garrafas verdes. O ar estava fresco e os bordos brilhavam, em amarelo vivo, contra o céu. Con usava uma camiseta de cor forte, jeans e sapatos sociais porque se atrasara para pegar o trem até o aeroporto e os calçara de novo depois de despir o terno, em vez de procurar as botas. O cabelo estava bem curto e ele tinha consciência do luxo de não ter se barbeado naquele dia. Contentíssimo de tomar cerveja ali fora, no gramado. Uma brisa leve soprava, movendo as cabeças castanhas das flores silvestres e os arbustos que soltavam sementes. De dentro da casa, o som do MC5 tocando “Kick Out the Jams” vinha até eles, uma batida abafada tocando de maneira rápida e regular, como os grilos que pulavam na grama. Aquilo, pensou Constant, era uma reunião de família. Algo raríssimo. Alice e Theo, tão altos e felizes em vê-los. Isso o fortalecia, a ideia de que alguém ficava tão genuinamente feliz por ele estar lá. Levantou-se quando se aproximaram, ficou de cócoras e bateu palmas na frente dos joelhos, e os dois correram para ele. Pegou os dois no colo e os abraçou com força. Começavam a ficar desengonçados, 9 e 10 anos e só pernas. Tinham um cheiro bom de folhas e lama. — Aqui! — disse. — Que bom que vocês chegaram! Estávamos esperando o circo! — Beijou Alice na cabeça e depois colocou-a no chão, mas encaixou Theo no quadril para carregá-lo um pouco. Olhou o rosto do menino. O cabelo embaraçado tinha fiapos grudados e parecia não ser escovado há várias semanas. Con deixou que a pena e o desapontamento com os pais do menino, e consigo mesmo por não ser uma presença mais constante, passassem e então dirigiu a Theo um grande sorriso, para que ele se sentisse forte e especial. — Está tudo bem? Os dois fizeram que sim.
— É? Ah, então ótimo!
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Ao pousar Theo no gramado, observou e sorriu quando os garotos perceberam o espetáculo que era Michelle, a bela Michelle, que até aquela tarde nem mesmo ele via há, pelo menos, um ano. Micky, que cheirava a suor, rosas e madressilva. Que perdera 5 quilos, que estava tão bronzeada que chegava quase a um tom marrom-alaranjado. E as tatuagens nos antebraços e bíceps — insetos, números e um A maiúsculo dentro de um círculo —, como as de Gene, tinham desbotado. Os símbolos em que tinham baseado a vida em azul esmaecido. Os olhos de Michelle eram grandes e plácidos, o cabelo, comprido e indisciplinado, e ela usava meias de lã grossa por debaixo das sandálias. Ele sabia que ela devia ter uma aparência selvagem para Alice e Theo, que não se lembravam dela. As crianças a fitavam e Con admirava o jeito calmo de Michelle, o respeito que sentia pelos meninos. — Meu Deus! — exclamou ela, estendendo a mão para Alice. — Pode vir até aqui? — Alice foi se sentar no colo dela. — Você me parece alguém muito especial. — Ela abraçou Alice e descansou o queixo na cabeça da menina. — Você sabe que Micky é a médica que fez o seu parto, não sabe? — perguntou Claire. Alice fez que sim, parecendo estar sem graça. — Foi um esforço conjunto — disse Michelle. — Havia dois médicos muito bons e uma defensora da saúde da mulher com diploma de médico por lá. — É, mas ela só ficou dizendo palavrões o tempo todo — comentou Constant. Claire riu e fechou os olhos, recostando-se em Gene. O rosto deles brilhou com a mesma luz da memória. Michelle deu um beijo na cabeça de Alice. — Fora todos os palavrões, não era um ambiente que se pudesse chamar de rudimentar. — Está fazendo partos agora? — perguntou Gene.
— Não, não, não — respondeu ela. — Estávamos num posto de saúde bem em Seleia, onde tratamos muitos traumas e ferimentos, mas fomos evacuados. Agora estou de volta a Zelingei e o que mais vemos é desnutrição e alguns problemas de saúde mental devido ao deslocamento. E à guerra.
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Alice e Theo escutavam com atenção. — Havia leões lá? — perguntou Alice. — Na verdade, não. — Ah! — comentou Theo. — Então não era tão perigoso assim. Ele ergueu os olhos para Con e fez que sim com a cabeça, como se aquilo fosse fazê-lo se sentir melhor. — Não, nesse sentido, não — respondeu Michelle. — Não dá para imaginar — disse Gene. — Não dá mesmo. Ainda não vi nem li nada aqui que pudesse dar uma ideia da magnitude da coisa. — Há uma equipe psiquiátrica lá? — perguntou Con. — Sim — respondeu ela. — É claro. O lugar é uma bagunça por toda parte. Mas não vamos falar disso agora. — Ela começara a trançar o cabelo de Alice. — Lembra-se daquele “psiquiatra de rua” quando a gente morava na Saint Mark? — perguntou Gene. — Meu Deus! — gritou Michelle de repente, assustando Alice. — E o acumulador de orgônio! — Jesus — disse Claire. — Aquela coisa era feita de aglomerado. Con começou a sorrir. — O quê? — gritaram Alice e Theo em uníssono. — O que isso fazia? Claire cuspiu a bebida no gramado de tanto rir, e então Gene a enrolou num cobertor. — Eu devia ter posto você na caixa de orgônio! — disse ele, pondo o rosto perto do dela. Michelle os observou e sorriu, mas, quando Con tentou encará-la, ela desviou o olhar.
— Pelo menos, aquela parte do nosso plano de longo prazo está indo muitíssimo bem — constatou Con, indicando com a cabeça Theo e Alice, que tinham perdido o interesse pelos adultos e saído correndo para o celeiro.
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Michelle fitou os sapatos dele, os sapatos de 300 dólares, e depois seu rosto, de maneira significativa. Gene cutucou-a para que parasse. Então, com um guincho, a porta do celeiro se abriu e Theo estava diante deles, de short e sem camisa, com uma máscara de cachorro feita de cartolina, fita crepe e botões pretos redondos. Os primeiros compassos de “Pedro e o Lobo”, de Prokofiev, soaram alto demais, e depois o volume foi rapidamente baixado por uma certa mão invisível. A voz do cachorro era abafada, mas ele disse dramaticamente: — Hoje, vamos apresentar O cão na manjedoura. Con riu e Michelle sorriu sinceramente para ele, mirou calorosa os olhos dele, talvez pela primeira vez desde que tinham chegado, e isso fez com que ele sentisse como o seu mundo ficara pequeno. — O que nos pagarão para entrar no nosso teatro do trapézio russo antigravitacional? — Que tal se não pagarmos nada? — perguntou Gene. O cachorro deu de ombros. — Tudo bem — disse. Então olhou por sobre o ombro e fez um sinal com a cabeça, antes de fazer gestos expansivos na direção deles. — Entrem. Entrem. Entrem, por favor. Os adultos entraram no celeiro e se sentaram juntos num fardo de feno. O espaço era fresco e cheirava a mofo, maçãs e óleo de motor. No começo da semana, Gene erguera o trapézio bem acima do chão do celeiro, para que Alice pudesse aprender a se balançar até o jirau e treinar truques pendurada. Naquele momento, ela estava em pé nele, equilibrada na barra, segurando com força e confiança as cordas ao lado. Usava uma touca branca de natação e um vestidinho curto que fizera com um lençol. Michelle e Con trocaram olhares incrédulos. Ela parecia muitos metros acima do chão para que pudessem se concentrar na peça. Theo olhou Alice e, quando o solo de clarineta começou, subiu no jirau. — Muito bem! — anunciou ele de novo, dramaticamente. — Isso se chama “O cão na manjedoura”!
Con sorriu. Conhecia essa expressão de Ross; era uma das suas favoritas para descrever empresários e políticos. Era óbvio quanto tempo esses garotos
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passavam com ele e Con ficou contente por estarem ali para ouvir as histórias do velho, e que Theo tivesse Ross para cuidar dele. — Pensei que fosse “Pedro e o Lobo” — disse Micky. — Vocês não precisam de uma rede?
— Não! — gritou Theo. — Isso é O cão... na... MANJEDOURA15! Alice deu impulso com os joelhos e balançou no trapézio, inclinando-se para trás enquanto Theo se sentava pesadamente num fardo de feno. Gene começou a rir em silêncio outra vez e os seus olhos se encheram de lágrimas. Con já vira isso. Certa vez, quando acompanhara Gene e Claire a uma peça na escola de Alice, Gene teve de sair duas vezes, porque não conseguia deixar de rir sempre que ela falava, as lágrimas escorrendo pelo rosto. “Sinto muito, sinto muito, sinto muito”, dissera ele depois, ainda rindo, enquanto esperavam Alice no estacionamento, e depois soltando um suspiro trêmulo para tentar interromper o absurdo daquilo. “Céus! Eu a amo tanto.” Theo estava deitado, irrequieto, na palha, fingido ser um cão sonhando. Coçou a orelha, fingiu que corria no sono e depois gemeu e uivou, mordeu o ombro. A orquestra inteira tocava enquanto Alice balançava-se para a frente e para trás, quase tocando o teto. Michelle se encolhia toda vez que se inclinava acima deles, mas Claire e Gene continuavam olhando, alegremente permissivos. Devem ver essas coisas todo dia, pensou Con. A peça estava ficando monótona e Con achou que Alice tentava decidir a hora de pular para o jirau quando ela saltou como um pássaro e depois deslizou para baixo, ainda segurando as cordas, até bater com o queixo, com estrondo, na barra do trapézio, na qual então se segurou com uma das mãos. Gene e Claire se assustaram e se levantaram involuntariamente e Con foi para o meio do celeiro, pronto para segurá-la. O trapézio balançava sobre o jirau e voltava, com ela firmemente pendurada, o rosto sem expressão, concentrado. Sem emitir qualquer palavra ou o menor som de medo, ela se ergueu. Mas, em vez de dobrar a cintura sobre a barra para recuperar o equilíbrio e se levantar, ela simplesmente puxou a barra contra o pescoço e descansou nela o queixo, continuando a balançar o corpo para que o trapézio fosse até o jirau e ela pudesse se soltar. Como se tudo isso já tivesse acontecido, Theo continuava com o sono fingido.
15 A manjedoura, por ter servido de berço ao Menino Jesus, tornou-se um símbolo cristão. manjedoura, portanto, é o lugar (douro) onde os animais comem (manjar).
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— Alice! — falou Gene com firmeza quando viram a mão direita dela se soltar. — Não! — Merda! — sussurrou Claire. — Alice! — gritou Gene de novo, quando ela tirou a mão e esticou o braço direito ao lado do corpo. — Que diabos você pensa que está fazendo? — Ele respirou fundo. — Quando estiver se balançando, não! — gritou ele, mas ela ignorava todo mundo, concentrada no número. Empurrou o queixo para frente e, depois, tirou a outra mão da barra, estendendo-a, os braços abertos como asas. Estavam todos boquiabertos. Ela espichou os dedos dos pés e Con conseguiu ver os músculos dos braços, pernas e costas da menina. Era espantoso. Ela se parecia muito com Gene, era uma versão compacta e mais delicada da composição dele, mas tinha, claramente, a mesma força e postura. E a mesma noção idiota de que não podia se machucar. Quando o trapézio balançou longe o suficiente por sobre o jirau, ela ergueu a cabeça, abrindo mais os braços e arqueando as costas enquanto deslizava delicadamente da barra, pousando quase em cima de Theo, abaixando-se para não ser atingida pela volta do trapézio, que passou raspando pela cabeça dos dois. Assim que os pés dela se plantaram a salvo no jirau, Con relaxou e voltou a sentar-se, mas Gene continuou de pé no centro do celeiro. Theo começou a latir. — Pelo amor de Deus! — gritou Alice, agarrando a máscara de cachorro e virando-a para o alto da cabeça do menino. — Acorde! Acorde! Você estava sonhando! Essas foram as únicas palavras da peça. Depois, os dois ficaram em pé no jirau, de mãos dadas, e fizeram a reverência. Ninguém bateu palmas. Só Michelle. E houve um silêncio desagradável no qual Alice cruzou os braços e deu de ombros para os pais. — O que significa “cão na manjedoura”? — perguntou Michelle, com animação. — Façanha que desafia a morte? Alice sorriu.
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— Não. É quando alguém tira a comida de alguém que precisa dela. Como o cachorro que se mete na gamela dos outros animais. — Que significativo! — disse Michelle, levantando uma sobrancelha. — Mas nesse caso o cachorro é o personagem principal, os animais sumiram e o cachorro está tendo um pesadelo. — E foi mesmo um pesadelo para todo mundo, no que me diz respeito — disse Gene, olhando a filha com muita firmeza. — O cachorro comeu a comida de todo mundo e dormiu na manjedoura — disse Alice, exasperada —, mas quando a mosca voa pelo teto e abole a gravidade e o acorda, aí ele nunca mais vai entrar ali e comer toda a comida de novo! Ela precisa salvá-lo do que ele faz para salvar os outros, porque ele vive roubando as coisas. Ela o acorda e o faz flutuar no ar. Não deu para entender isso? Meu Deus! — Hum — disse Michelle. — Não sei como não entendi. — Bom, a flutuação não ficou muito boa — explicou Theo. — Recomendo fortemente que você nunca mais faça esse número — disse Claire, fazendo apenas um sinal de cabeça para Alice. — O queixo está doendo? — Está — respondeu a menina, olhando para eles de cima, rindo um pouco. Con se espantou com o jeito com que lidavam com a filha. Ainda sentia a adrenalina no corpo e um buraco no estômago por tê-la visto escorregar da barra. — Não repita isso de jeito nenhum. Só depois de treinar mais — pediu Gene —, porque você poderia morrer. — Como posso treinar mais se você recomendou que eu não fizesse de novo?
— Treine comigo — respondeu ele. — E baixaremos o trapézio. Você não vai querer cair de pescoço e arrebentar a traqueia. Claire fez um pedido muito sensato. — Então ele bateu palmas e disse “Upa”, e ela pulou do jirau para os seus braços com a mesma alegria descuidada de quem pula numa piscina. Con ficou impressionado e horrorizado. Era obviamente muito mais leve e mais coordenada do que outras crianças da sua idade, mas a sua falta de medo era inquietante.
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— Bom — disse Michelle. — Acho que o espetáculo acabou. Muito obrigada, trapezistas. — Teremos outro amanhã — comunicou Alice. — Todo dia, às quatro ou às sete. Con começava a sentir que toda aquela tarde era surreal. Essa coisa da autossuficiência rural de Gene, Claire tão calada, o choque de ver Michelle. Todo esse fingimento de todos, os riscos que corriam. E se espantou com as crianças por terem inventado essa história, sentiu-se estranhamente enjoado e exposto por ela, como se visse uma interpretação genuína da sua vida por meio de animais imaginários. Um presépio vivo do seu sono perturbado. Gene baixou o trapézio até pouco mais de um metro do chão e, naquele instante, as crianças estavam penduradas pelo joelho, lado a lado. — É melhor vocês armarem a barraca, se quiserem dormir do lado de fora — disse-lhes Claire. Os adultos os deixaram pendurados e saíram andando na direção da casa. Assim que saiu da vista do celeiro, Gene parou de andar, Claire o abraçou e ele baixou a cabeça para tocar a dela. Constant observou-a beijar o lado do rosto do marido e pôr os braços em torno dele, sussurrar-lhe algo no ouvido. Constant e Michelle andaram à frente, rumo à casa. — Acho que aquela peça foi um sinal de que você deveria largar o emprego — disse Michelle. — Acho que é um sinal de que precisam de uma rede no celeiro. E foi claramente um sinal de que preciso exercer mais influência sobre Alice. A menina tem um conceito de risco meio duvidoso. — Você quer dizer Gene Júnior — corrigiu Michelle. — É. Bom, os dois garotos, na verdade. — Ele abraçou a cintura dela e eles andaram no mesmo passo pelo caminho aparado. — Venha para Zelingei comigo — disse ela, baixinho. Ele fez que não. — Já não cansou de Manhattan depois do ano passado? — perguntou ela.
— Não. Agora, amo aquela cidade mais do que nunca. Agora, não é hora de ir embora.
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E não era só por si que ficava, era por todos eles. Não sabia que uma das razões para ele manter aquela merda de emprego era ela? Que era porque todos tinham tão pouca consciência do pouco que tinham? Na verdade, a pobreza e a postura grandiosa deles se baseavam em privilégios. Ele literalmente detestava seu emprego. E se surgisse a oportunidade de causar verdadeiro impacto sobre alguma coisa, provavelmente ele a aproveitaria, mas simplesmente não se faz isso sem ter tudo bem pensado. Como podiam não saber que, no decorrer da história, a diferença entre cruzar a fronteira na hora certa e levar um tiro se resumia a dinheiro ou a uma decisão que, sem grana, ninguém poderia influenciar? Às vezes ele se espantava com a ignorância deles. Não era o CEO da merda da Pharmethik. Ele não era Eichmann. Nem um cão na manjedoura. O fato de não entenderem o valor da análise de risco-benefício era uma das razões para viverem combatendo os mesmos monstros sempre do mesmo jeito. Para Gene acreditar que podia “viver a alternativa” para converter os outros à agricultura orgânica. Mas aquela alternativa vivida era subsidiada pelo salário que vinha de uma empresa farmacêutica na qual Gene não se dispunha a trabalhar. Como isso poderia ser sustentado? — Gostaria de morar com você de novo — disse ele a Michelle. — Mas os problemas que você está tentando resolver não vão sumir se eu, pessoalmente, parar de trabalhar. Ainda não sei como sair dessa, querida. Não disse o restante, que era que tudo era tão avassaladoramente ruim, tão redefinido no mundo, e ele estava tão entranhado no que fazia, que não conseguia imaginar um momento político de definição que pudesse causar impacto suficiente para fazê-lo sair. Se o outono anterior não conseguira, o que conseguiria? Sempre há o dia seguinte. Documentos destruídos sobre estudos clínicos, a falta de gelo nos polos, a falta de algum manifesto comunitário coerente nas conversas incessantes que todos tinham sobre a televisão, que soavam como as conversas que todos tinham na televisão. Ele não sabia como chegar ao âmago daquilo para consertar as coisas. E, apesar de todos estarem no caminho certo, e pressionando a ferida, sabia que eles também não tinham ideia de como fazê-lo. — É moralmente errado — disse ela. — O seu trabalho é moralmente errado. Ele concordou de novo.
— Disso eu sei. Posso fazer algo que seja errado para conseguir algo bom, uma coisa de maior magnitude mais adiante. Não tenho medo de fazer
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algo ruim numa circunstância isolada se isso gerar um resultado melhor. Sei quem sou, Michelle. Posso fazer essa coisa única e depois passar para outra. — Quando? Tinham chegado à varanda e estavam sentados, olhando o campo. Dentro da casa, a agulha chegara ao fim do disco e produzia um chiado de estática que estalava sem parar. Ele olhou os pés de ambos. As meias dela tinham folhas secas grudadas. Sabia que ela detestava os seus sapatos, sabia a questão que ela tentava defender ao fitá-los. Já a ouvira falar sobre uniformes — uniformes e linguagem —, ouvira-a descrever o mundo como Orwell. E não discordava dela. Ela ficava enojada com a violência inerente ao uniforme do homem de negócios e com o poder que transmitia. Ele podia tirar os sapatos e jogá-los na floresta pelo que isso significava para ela. Mas sabia que, se assim fizesse, compraria um novo par na segunda-feira. Esse era o tipo de desperdício que nascia de acreditar em gestos simbólicos e atos individuais malconcebidos. — Quando fizer sentido — respondeu ele. Ela pegou a mão dele e a beijou. — Então vou rezar por você. — É mesmo? — perguntou Con, sorrindo. — A quem?
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Ross HAEDEN, NOVA YORK, 2003 OS COELHOS NÃO são algo que se espere ver, como veados ou patos, tipos de criaturas inconscientes, que passam andando ou voando quando a gente se esconde. Não grandes coisas visíveis que a gente persegue. É preciso mais paciência. Com coelhos, a gente tem de pegar no meio do mato. Moitas espessas e impenetráveis e árvores caídas e espinheiros. É algo adequado para uma pessoa pequena. Uma pessoa pequena pode levar o bicho para casa e se sentir realizada, e foi por isso que a iniciei na coisa. A gente não espera pelos coelhos, a gente vai atrás deles. Há quem goste de ir atrás deles com cães, o que só atrapalha. Detesto beagles. Detesto para caralho. Fazem o coelho correr em círculos e depois começam a latir, bagunçando a floresta com todo aquele barulho. Além disso, não quero que ninguém saiba o que estou fazendo. Saiba quando estou caçando ou onde estou. Tenho a minha própria vida e já bastou o tanto de gente se metendo nela quando voltei da guerra e deixei o cabelo crescer. E depois, ao me casar com Hediyah e de novo, mais tarde, quando ela foi embora. Enfrento qualquer um nos Veteranos que quiser falar dessa guerra agora. Mas não quero que se metam na minha vida, seja na floresta, seja em qualquer lugar. Além disso, o problema com os cachorros é que é fácil pôr um daqueles chips de rádio neles e rastrear para onde vão. E rastrear o dono também. Não, obrigado. Essas coisas agora têm aparelhos de gravação. Se eu quisesse ser vigiado, compraria um celular. Tentei explicar isso a Hediyah, quando ela recebeu as plaquinhas de identificação do centro médico lá de Elmville. Ela sabia que tinham um chip, mas achava que não tinha importância. Além disso, aquela mulher era dedicada. Sempre punha os pacientes em primeiro lugar. Mesmo que zombassem do nome dela ou lhe perguntassem o tempo todo se estava contente de aprender as últimas novidades ali nos Estados Unidos, de estar num lugar onde não precisava usar um lenço sobre o rosto. Ou se era muçulmana e se os árabes tinham televisão. Deus do céu. Aquilo era foda de tão vergonhoso, mas ela nem ligava. Estava aqui para praticar medicina rural, trabalhar com os pobres e terminar sua pesquisa sobre obesidade. Se quisesse aprender as “últimas novidades” ou mesmo ter uma conversa inteligente, voltaria ao Líbano. Onde está agora. Então, taí. Mas o melhor resultado de tudo aquilo foram os Piper. E devo dizer que eles me lembram um pouco Hediyah. Principalmente Claire, embora ela seja uma mulher mais tipo família.
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Fiquei contentíssimo de sair daquela casa e alugá-la para eles. Sinceramente, acho que não a alugaria para mais ninguém. Mas estou contente de estarem ali e contente de vender a terra a Constant. E, de certo modo, isso significa que aquela terra ainda está na família de Hediyah, que têm um lugar ali, coisa que eles deviam mesmo ter. Merda de preconceito e estupidez. Meu Deus do céu, é foda como o povo é ignorante. O jeito como trataram a minha mulher, caralho, que só veio aqui para ajudar as carcaças gordas deles. Bom, seja como for, a questão é que a pequena Piper agora já tem idade para caçar comigo e gosto da companhia dela. Principalmente caçar coelhos, que é o que acho que comecei falando. Aquela menina aprende depressa, e é uma vergonha a família dela não dar mais valor ao dom que ela tem, porque acredito que, fora do Exército, nunca vi ninguém ter tanto prazer em atingir o alvo nem passar tanto tempo pensando em como fazê-lo. A menina é ótima atiradora e silenciosa como poucos. Acredito que, até o fim do ano, vai usar a espingarda para caçar coelhos. Ela ficou muito boa bem depressa. Acho que é um elogio aos pais, já que a maioria espera até ser “permitido pela lei” que o filho aprenda a atirar. E esse é um erro enorme. Todo mundo sabe que um garoto de 10 anos aprende mais depressa do que um de 14. E é claro que é por isso que põem todos eles na escola, para assegurar que não fiquem por aí pensando sobre tudo o que veem, entendendo coisas que não deveriam entender. Coisa que fariam se não fossem obrigados pela federação a receber uma dose de lavagem cerebral todo santo dia. É preciso garantir que fiquem cheios de merda como o maldito golfo de Tonquim. E aquela merda de Pearl Harbor e Cristóvão Colombo e o nosso grande herói, Henry Ford, o nazista. Não digam a eles que Johnny Appleseed era um bêbado pervertido que se vestia de aniagem. É tudo um grande encobrimento da verdade. Eles que fiquem longe de gente de verdade com lembranças de verdade, porque, diabos, ninguém quer que conheçam alguém como eu, que pode contar a eles o que realmente fiz usando uma farda. Meu Deus. Mas tudo bem. Quem começa a atirar com 10 anos tem uma chance. Quanto mais treino, melhor. E quando crescer, aquela menina será capaz de alimentar toda a família. Se comerem carne. Esse é o maior erro que os pais cometeram, se quer saber. Que tipo de criança sai para caçar e não come carne? Eu vou buscá-la e digo: “Venha, Al, é temporada de coelhos”, e ela fica feliz para cacete. Agora ela não gosta de comê-los, mas gosta de vesti-los e faz coisas com as peles. Me fez um par de protetores de orelha.
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Nas primeiras vezes só fomos à floresta Tern, que não é mais uma floresta, comparada com a época em que eu era menino, mas ainda é bonita, o que restou dela, e fácil para uma criança aprender a se orientar por lá. Depois, fomos a uma mata velha perto do rio. E aquela era maravilhosa e montanhosa e escura no meio do dia. A “floresta selvagem”, como ela disse. E ela era leve e silenciosa andando no leito de pinheiros com uma arma quase da altura dela. Senti orgulho dela. Orgulho por ela me chamar de tio.
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Claire POLICLÍNICA GRATUITA PARA PESSOAS SEM SEGURO, 1994 O FILHO DE Sherri passou mal na escola, deixando a equipe desfalcada naquela quarta-feira, filas até a porta, espaço só para ficar em pé. Claire ficou contente por ter um marido que ficava em casa. Ligou para avisar que chegaria tarde. Alice estava tirando um cochilo. Ele disse que tinham ficado na estufa do telhado a manhã toda; ela ficara brincando com minhocas e uma colher. — Ah! — exclamou ele. — E Micky descobriu onde os Médicos sem Fronteiras vão alocá-la. — Onde? — Digamos que é pouco provável que ela veja menos HIV. Vamos fazer um jantar especial. Depois do telefonema, Claire foi até a frente pegar a papelada dos pacientes de Sherri. — Obrigada — disse a recepcionista baixinho, a mão sobre o bocal do telefone. Entregou a Claire três pranchetas. — Primeiro, o cinco, ela está lá sentada há vinte minutos. Você vai precisar de um kit. Claire correu para buscar o kit no caminho do consultório. Não queria que a mulher aguardasse mais. Rearrumou as pranchetas meio sem jeito enquanto batia à porta, conseguindo pôr a ficha da paciente por cima, bem na hora em que uma voz de mulher anunciou: — Pode entrar. Claire abriu a porta e ergueu os olhos da ficha, ajustando rapidamente o olhar para combinar com a altura da paciente sentada na mesa de exames.
Parecia ter uns 5 anos. Era pálida e tinha cabelo escuro e liso, olhos escuros. Os ombros eram estreitos e os braços, finos. Claire podia ver, de onde estava, que os lóbulos da orelha da menina estavam vermelho-escuros e incrustados de sangue seco. O vestido era grande para ela, que usava meias brancas imundas até o tornozelo, com desenhos da princesa Jasmine. Ao lado da menina, sentada num banquinho, estava Amadi, do departamento de estupros. Atrás do biombo, Claire avistou a barra dos jeans da menina
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arrumada em cima de uma folha branca e larga de papel esterilizado, para ela pegar depois e selar dentro do kit. Camisa, calças de moletom e roupa de baixo limpas estavam dobradas, esperando sobre a mesa. O consultório tinha um forte cheiro de urina. — Lauren... — disse Amadi. — Essa é a minha amiga Claire. Ela vai fazer um exame rápido em você. Claire pousou a papelada e o kit ao lado das roupas limpas. — Oi, Lauren — saudou Claire, sorrindo com gentileza. Lauren ergueu a mão, sem acenar realmente. Claire se perguntou onde estaria a mãe da menina. Sabia que as lesões não deviam ser extensas, senão a teriam levado para o pronto-socorro, mas ficou preocupada ao ver a caixa de absorventes higiênicos na cadeira ao lado de Amadi. Conversaram sobre o filme do Aladim enquanto Claire posicionava a lâmpada. Só quando começou a raspar suavemente a parte de baixo das unhas de Lauren é que percebeu que faria o mesmo exame, recolheria as mesmas informações, estivesse a menina viva ou não. Sentiu o calor da mãozinha de Lauren através do plástico fino da luva e percebeu um jorro de adrenalina e alívio, quase de gratidão, por poder tocá-la. Voltou para casa com os fones de ouvido ligados e o volume mais alto que aguentava. A voz de Joe Strummer na cabeça ocultava o tráfego e as sirenes, transformava as ruas num balé de fatos e movimentos aleatórios. Mas o dia na clínica ainda estava lá, não iria a lugar algum. Claire estava nele permanentemente. E, por causa disso, a família dela, a filha também estavam. E não havia como ir embora. Se Claire abandonasse a cidade e os seus pacientes, estaria errada. Estaria moralmente errada. Passaria a se detestar. Mas ela se detestava do mesmo jeito. Detestava a si mesma, detestava a sua ambivalência com relação ao emprego, detestava alguém. Alguma pessoa invisível, um homem invisível; o mesmo homem invisível descrito de novo e de novo, cometendo o mesmo ato da mesma maneira. Uma guerrilha contra a população civil. Quanto mais histórias escutava de pacientes — histórias que se espelhavam nos mínimos detalhes táticos —, mais era impossível pensar naquilo de outro jeito. Difícil imaginar que não houvesse uma estrutura organizacional naquilo. Sem dúvida, havia uma ideologia por trás — uma ideologia invisível escondendo-se bem à vista. Na linguagem, nas piadas, na televisão, na lateral dos ônibus, nas roupas e nos gestos e nas carteiras e nos corpos e nos rostos e nas mentes.
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Quem era ela para, simplesmente, ir para casa depois desse dia? Lauren não era a única criança que examinara; era apenas a mais nova até então. Claire se perguntou para onde a menina iria à noite, quem cuidaria dela. Se os exames laboratoriais voltariam bons. Em que tipo de mulher ela se transformaria. Ela aumentou o volume do walkman até haver apenas ruído dentro da cabeça e ficou parada na calçada da Sétima Rua. Não bastava. O que fazia não bastava. O jeito como era feito nunca bastaria. Claire não disse nada sobre o trabalho quando chegou em casa às oito. Alice ainda estava acordada e ela a amamentou e lhe deu um banho enquanto Gene e Micky preparavam o jantar. Lavou o cabelo branco de tão louro, o corpo forte, pálido e tenro, a pele absurdamente macia. Claire a vestiu com um pijama verde de pezinhos. Depois, sentou-se na lateral da banheira enquanto o vapor subia e se dissipava no banheiro, segurando-a no colo durante bastante tempo.
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Haeden, Nova York NOVA YORK, 2008 — ELA ESTÁ acordada? — Que merda, cara, parece que está? Eu conseguiria fazer isso se ela estivesse acordada? — Cara, para com essa merda. Espere o meu irmão chegar aqui. — Talvez ela esteja fingindo. — Shh... Shh... Caralho, pare de rir. — Merda. E se ela estiver morta? — O legista chega aqui num minuto. Ele pode checar o pulso dela. — Olhe a cara dela. Ah, merda. Não acredito que ela não sente essa merda. — Espere. Dá para esperar o meu irmão chegar? — Tudo bem, tudo bem. Parei. Meu Deus. Lembra quando ela era uma puta duma vaca? — Claro, cara, se isso tivesse acontecido seis meses atrás, como é que você ia colocá-la aí embaixo? — Em pedaços.
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Theo HAEDEN, NOVA YORK, 2006 A IDEIA DE o dia seguinte chegar era impossível para Theo, um dia em que Alice não estaria lá. Esse dia não podia existir. Ele queria ir embora da cidade, queria ir para uma boa escola, mas não sem ela. Saber que isso aconteceria arruinara o seu décimo quarto aniversário. Ele, então, perguntara a Claire se mandariam Alice também para Simon’s Rock. Não, não mandariam, disse ela. Theo tinha sorte, porque seria muito interessante. Receberia uma educação melhor, ficaria perto da cidade grande e de Constant, e se divertiria. Mas Theo não achava que ia se divertir sem Alice. Ele mal começara a ficar mais alto do que ela, e então, quando faziam o número no trapézio, tinham de esperar mais do que antes, porque o peso dele mudara tudo. Ela já estava chorando, mesmo que ele só fosse embora depois do jantar. Ela chorava no celeiro, de cabeça para baixo no trapézio inferior, as lágrimas rolando pela testa até o chão. Havia um cheiro de outono no ar. As coisas que tinham pintado nas paredes desde que eram pequenos os cercavam. Mapas de países inventados, personagens extras do circo, animais de duas cabeças, um cara com cabeça de bode, de terno e pasta. Uma escotilha falsa com vista para peixes, sereias e Poseidon. Theo segurou as mãos dela e recuou, puxando-a com ele até que ela ficasse esticada, quase paralela ao chão, e depois soltou. Ela balançou para trás e, depois, para frente, de volta até ele. As lágrimas corriam para fora do seu rosto. O cabelo pendia, quase tocando o chão. Ela se ergueu e ficou em pé na barra. Deu impulso com os joelhos para ir mais e mais alto. Ele a observava de baixo. Ela soltou as cordas e ficou equilibrada no ar, inclinou-se à frente e pulou para pousar num monte de palha ao lado dele. — Vou ficar sempre muito triste de deixar você, velha amiga — disse ele. — Com certeza... Entrou na palha com ela e deitou a cabeça sobre o seu peito, e ela o abraçou enquanto ele chorava. A pele dela era quente. Ele sentia como se o seu coração estivesse sendo espremido. Ela enxugou o nariz.
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— Isso é uma merda — disse ele com o rosto voltado para a blusa dela. — Eu vou te mandar coisas — prometeu Alice. — Podemos testar os nossos poderes psíquicos. Podemos escrever cartas de todos os personagens. Vai ser legal porque virão mesmo pelo correio. Podemos tornar o código ainda mais difícil de descobrir. — Ela falava depressa, inventando coisas para consolá-lo. — Podemos parar de usar os de números e fazer os que têm nomes de escritores e personagens, deixá-los específicos. Sabe, quanto mais chata parecer a carta, mais empolgante será a carta real. — Ele conseguia imaginar perfeitamente. Fez ele parar de chorar. — Podemos fazer o mapa de um rio subterrâneo para que se encontre em segredo. Você desenha? — perguntou ela. — Provavelmente, já tenho um desenhado em algum lugar — respondeu ele. — Vou deixar os meus mapas e toda aquela merda com as suas coisas quando eu for embora. Aí você pode usar. — Certo. — Alice o beijou no rosto e disse “Te amo”, e isso a fez chorar de novo. Eles nunca diziam isso, mesmo quando pensavam. Dizer aquilo provava que conseguiam ler a mente um do outro. — Vou sentir muita, muita, muita saudade sua — disse ela, encostando a bochecha junto da dele. Ele sabia que sim. E sabia que ela escreveria. Mas também sabia que ela daria um jeito de substituí-lo por projetos, pesquisas ou um novo jogo. Ele a conhecia. Ela não conseguia evitar. Sabia que não deviam ficar separados. Tinha medo de quem ela se tornaria sem ele.
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_____________________________________________ PROVA P47909 17/04/09 13h Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0002 Bailey, Theophile Não estou sorrindo. Sei que o senhor acha que sou a chave disso tudo, e está errado. Fiz o primário com eles. Pratiquei esportes com eles. Coisa assim. Francamente, o senhor também não me parece muito perturbado. Acho que eu não deveria estar falando com o senhor sem um advogado. Ela nunca foi violenta, não, de jeito nenhum mesmo. Isso nem faz sentido. Ela nunca se zangava com ninguém. Simplesmente, não dava muita importância. Quer dizer, ela observava... Ela prestava atenção nos outros. Toda criança faz isso. Quando éramos pequenos, brincávamos de espião e observávamos os outros. É claro que eu diria que ela era a minha melhor amiga. Acho que isso é bem óbvio. Nunca houve uma vez em que não brincássemos juntos. Mas ela nunca me disse nada sobre esse assunto. E teria dito. Teria dito mesmo. É. Ela era muito inteligente. No ensino fundamental, ela era meio boba. Depois, recebeu um fluxo de genialidade quando menstruou. É sério. Tinha uma TPM que fazia ela construir coisas e falar mais depressa e ter sonhos esquisitos. Na verdade, era bem legal. Por que eu não saberia quando ela menstruou? Bastante, acho. Todo verão, quando eu voltava para casa. Por quê? Acha que foi por causa de sexo que ela fez aquilo?
Não fez nada! Eu estava brincando. Tanto faz. O senhor nem falaria de sexo se fosse um homem que tivesse feito aquilo.
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Quer dizer, feito o que o senhor acha que ela fez, que ninguém mais acha que ela fez. E eu sei que ela não fez. Mas, se fosse um cara, o senhor nunca ia procurar alguma moça com quem ele transou para lhe perguntar isso. Por que quer falar de nós termos feito sexo ou não? Não é o que todo mundo faz? As pessoas fazem sexo, não é? O senhor não faz sexo? Eu faço. Tanto faz. O senhor não precisa ficar tão irritado. Não sou nenhum policial de merda. Não sei por que vocês gostam de falar de sexo com todo mundo quando há um assassinato. Não. Por que eu me incomodaria se Alice transasse com outras pessoas? Duvido muito que ela transasse com um monte de jogadores de futebol. Não estou dizendo que eu era o único namorado dela, não. Quer dizer, eu não diria nem que ela era meu namorado. O quê? Quer dizer, que eu era namorado dela. O senhor está me confundindo. Fui embora daqui antes do ensino médio. Já contei como a gente era íntimo. O que sei é que deveria haver um advogado aqui para o senhor ficar me perguntando esse tipo de coisa. Eu me dispus a conversar sobre isso, mas agora sei que está errado. Sei que o que o senhor está fazendo está errado. O senhor está tentando me deixar nervoso. Está me confundindo. Acho que não devo mais conversar com o senhor. Não, eu não estava tentando fazer graça. Sei que não tem graça nenhuma! Ai, meu Deus! Cristo, por favor! Não vou olhar essas fotos. Não vou. Não vou olhar foto nenhuma. Deveria ser ilegal o senhor me obrigar a olhar. Por favor. Preciso de um advogado aqui. Porque sim! O senhor disse que ia me perguntar uma coisa e agora quer me mostrar essas fotos nojentas. Pode chamar isso do que quiser. Não vou abrir os olhos e não vou dizer mais nada e quero um advogado aqui. Não sou chave de coisa nenhuma. Ai, meu Deus, que merda! Por que está perguntando para mim? O senhor sabe o que aconteceu. Eu estava em Annandale quanto essa merda aconteceu e o senhor não tem direito nenhum de me prender aqui e me agredir... Por favor, guarde isso. Só vou abrir os olhos quando o senhor tirar essas fotos daqui. Obrigado. Agora, posso ir embora? O quê? Não, é claro que não. Eu tenho cara de quem sabe caçar?
Imagino que os meus pais estejam no campus agora, e suponho que o senhor já sabe disso. Posso ir embora? Na verdade, sei que posso ir. Na verdade, sei que o senhor não pode fazer isso sem um advogado aqui. Por favor, me deixe ir embora.
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Não sei nada sobre Wendy White. E a última vez que vi aqueles caras foi no fim do ensino fundamental. Wendy era mais velha do que nós. Não me lembro mesmo dela. Alice nunca falou dela. Era garçonete ou coisa parecida. Vocês é que sabem. Eu não sei de nada. Alice não me contou nada.
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Beverly Haytes HAEDEN, NOVA YORK, NOVEMBRO DE 2008 BEVERLY HAYTES TINHA olhos afastados e cor de champanhe e um rosto sardento e achatado. O cabelo grisalho era curto e as costas, invejavelmente retas. Jogava golfe toda terça-feira com um grupo de senhoras que se intitulavam as Garotas de Haeden, e havia crescido com todas elas, a não ser com Ruth Tyson, que viera da Flórida com o marido, o qual trabalhava nas minas de sal. Tinha raízes naquela cidade. Caramba, as suas raízes eram aquela cidade. Crescera numa casa que ficava na esquina de onde morava agora, e as duas eram tão parecidas que podiam ter o mesmo DNA arquitetônico. Casas construídas pelos mesmos operários. Ela e o marido Jim estavam juntos desde o ensino médio, e já naquela época viviam um sonho, como Jim gostava de dizer; ela, chefe de torcida, ele, jogador de futebol americano. Na época, ela era Beverly Tamarack, da Rua Tamarack. Ela achava Jim um tipão, um garoto valente, fiel ao espírito da escola e com uma mentalidade em relação à vida que o tornava muito encantador. Ficaram noivos antes de se formarem; ela teve de dizer sim naquela noite, enquanto ainda estavam de coroa e pulseira de flores. Casaram-se antes dos 20 anos. E não havia qualquer dúvida de que eles se encaixavam. Simplesmente não havia mais ninguém. Naquele tempo, todos se casavam mais novos. Ela não sabia direito por que isso mudara; parecia que antigamente não se cometiam tantos erros. Ninguém ficava confuso. Todos confiavam mais, ou sabiam em quem não confiar. Ou simplesmente não esperavam que uma pessoa apenas oferecesse o mundo inteiro; logo, não precisava haver decepções, divórcios, gente mandando os filhos daqui para lá, de um lar desfeito a outro. Não como a família dela.
Era como ela estava dizendo às Garotas: Jim não era perfeito. Era mal-humorado. Às vezes ficava meio ranzinza. Mas fazia o que tinha de ser feito e dizia o que pensava, e ela se orgulhava do que tinham feito juntos durante todos aqueles anos. E, sejamos francos, ninguém pode ter uma família forte sem aqueles valores do tipo “recomponha-se e aja”. Todos sabiam que os Haytes sempre haviam vivido desse jeito, e por isso ela não suportava os boatos que ouvia sobre os seus meninos.
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E as Garotas também não. — O que não entendo é por que todos se voltam contra os seus em momentos assim — comentou Charlene Puitt naquela tarde no campo de golfe. — A minha mãe costumava dizer que os recém-chegados não trazem nada, a não ser tudo o que a gente não quer, quando se mudam para cá. E, se quer saber, é essa gente de fora que está causando todo o problema. Veja só essa repórter que não para de fazer perguntas. — Ah, ela! — disse Beverly. — Ela apareceu para conhecer a fábrica de laticínios. Nunca vi ninguém como ela. Uma espécie de blusa brilhante com cavalos por toda parte, como se fosse um pijama, e aqueles óculos, e aquele cabelo que não vê escova há sei lá quanto tempo. Acho que vi uns dois sorrisos durante todo o tempo em que ela ficou lá. — Provavelmente queria que Dale estivesse correndo atrás dela — falou Ruth, fungando. — Ah, eu não ia dizer isso! — retrucou Beverly, embora fosse exatamente o que tivesse pensado. — O que estou dizendo — explicou Charlene — é que gente como ela não para quieta. Vêm procurar encrenca aqui porque não são estabelecidos. Querem agitar tudo. E é a eles que todo mundo dá ouvidos. — As pessoas são estúpidas — disse Ruth, sem lembrar às amigas que já fora uma recém-chegada. — Não estamos falando de pessoas como você — comentou Beverly, fazendo-lhe um gesto com a cabeça. Sabia que Ruth era sensível a esse respeito. Era como Jim dizia, e Beverly tinha de concordar, que, quando o Departamento de Serviço Social cede trailers na Rodovia 34 para quem entra e sai como se isso aqui fosse uma porta giratória, está querendo arrumar problema. Não estava dizendo que todas aquelas pessoas não prestavam, e Deus sabia que ninguém entendia melhor do que ela como era difícil ter pouco dinheiro. Mas havia quem, simplesmente, não quisesse trabalhar, e por essas pessoas ela não tinha simpatia nenhuma. Nenhuma. E se havia algo que os seus meninos sabiam fazer, era trabalhar. Talvez não gostassem o tempo todo de fazê-lo, mas trabalhavam. E como podiam ter dúvidas de quem andava por aí fazendo coisas horríveis quando se comparavam meninos como os dela com aquelas crianças que nem tinham um verdadeiro lar nem pais e mães bem ali para ajudá-los?
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É verdade que, às vezes, nascia gente ruim em boas famílias. Como aquele garoto de Dryden que tirou aquelas duas meninas da casa delas. Aquela era uma família de pessoas de bem. Mas o menino andara tomando esteroides e a mãe dele deveria ter dado fim naquilo. Beverly teria dado. Os seus meninos foram criados numa fábrica de laticínios. Não usavam drogas. Onde as arranjariam? Era como ela estava dizendo às Garotas: “Não sei o que pode ser mais saudável do que um copo de leite.” Todos sabiam que ela e Jim tinham dado tudo aos rapazes. Quando não tinham nada, ela lhes dera tempo e bons valores. Quando aumentaram o rebanho pela segunda vez e receberam todo aquele dinheiro da Groot, o armário de brinquedos ficou lotado até o teto. E foi um prazer fazer aquilo por eles, lhes dar uma recompensa por serem bons meninos e ver a alegria naqueles rostinhos. Ver a elegância deles na escola. Ninguém acha que gente da roça pode ser elegante. Usavam Adidas, Levi’s, tudo o que estava na moda, mas de bom gosto, nada extravagante. Beverly também lhes deu tradições. Todo dia Quatro de Julho, a família ia jogar golfe junta. Tiravam as bandeirolas do campo e as substituíam por pequenas réplicas da bandeira americana. Ela ainda conseguia vê-los todos ali, de bochechas rosadas ao sol, competindo, com seus shorts listrados e iguais e os sapatos brancos. Bruce muito pequeno, mas querendo ser igual ao irmão mais velho. Fora uma vida confortável, boa nutrição, força para competir e uma família unida. Ela se lembrava de ficar sentada na arquibancada, bebendo sidra quente e torcendo enquanto os garotos jogavam futebol americano, primeiro Dale, depois Brucie, e de preparar o jantar dos meninos quando chegavam em casa. Dale já era uma gracinha na época, e depois ficou muito bonito. Se tinha algum problema com as garotas, era por excesso de opções, e nunca gostara de escolher. Ela pensava que aquela garçonete era o que mais se parecia com uma menina de fazenda, para Dale. Supunha que ele achava que essa Wendy era a moça certa para ele, como ela fora para Jim. Supunha que ele a amava, como vinha dizendo já há quase seis meses.
Obviamente, tudo era mentira e fofoca, o que todos andavam dizendo. Então por que ainda se incomodava? Ora, porque a gente se incomoda quando dizem essas coisas, por mais que tente não dar ouvidos. Se havia uma coisa que era preciso aprender numa cidade pequena era a não ligar para o que os outros pensam. Mas faziam perguntas a Dale sobre Wendy White. Quando a vira pela última vez? Há quanto tempo a conhecia? Insinuavam que ele, que poderia ter a garota que quisesse e que viajava meio mundo por causa da fábrica, teria feito algo de ruim a uma garota daquela cidade. Uma garota com quem queria se casar. Era ridículo. E se foi alguém desta cidade que pegou a garota, sem
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dúvida, Dale não sabia quem tinha sido, porque simplesmente não se dava com esse tipo de gente. Ela encontrara Wendy White uma ou duas vezes — o pai dela tinha, parece, uma empresa de faz-tudo —, mas não podia dizer que a conhecia. Dale tinha apartamento próprio, anexo à casa, com entrada privativa. Mas, para dizer a verdade, a garota não causara boa impressão a Beverly. Parecia sem graça. Não burra, mas também não muito motivada. Parecia um pouco mimada, como se viesse de uma daquelas famílias moles, sem muita expectativa, que tentavam compensar com abraços o que não podiam dar aos filhos. Já vira isso antes. Péssimo para a criança. Isso Beverly não podia respeitar. Amava os filhos e eles sabiam disso. Mas sempre lhes dissera para serem alguém. Ter atitude. Atitude é muito mais importante do que os fatos. Também notara que a garota não tinha problema nenhum em deixar o carro do pai estacionado, a noite toda, junto do apartamento. Como todo mundo, não gostou quando a garota desapareceu, simplesmente foi embora e não avisou Dale, sequer pediu a alguém que cobrisse o seu turno no trabalho. Dá uma sensação ruim quando uma coisa assim acontece. Mas Beverly já ouvira falar desse tipo de coisa. Há muito tempo, o seu tio-avô quis se casar com uma moça de Elmville, e ela fugiu e nunca mais foi vista. Ele ficou com tanta dor de cotovelo que não admira que tenha passado a beber de vez em quando. Naquela época, as pessoas gostavam de fofocar, e ainda gostam. É claro que Beverly sentia muito pela família da moça. O que eles estavam vivendo era terrível. Impensável. E se pudesse ajudá-los, ajudaria. Mas não fazia ideia de onde estava a filha deles. Não era policial. Ouvira Jim dizer a Dave Fawcett: “Entre a podridão que mora nos trailers e os abraçadores de árvores que andam comprando alguns hectares aqui e ali, é claro que há vagabundos. Pegam alguém que não esteja enraizado na comunidade, tão certo como dois e dois são quatro, e somem com ela.” Ora, ela não sabia se aquela garota era enraizada ou não. A família morava lá há muito tempo, é óbvio, mas ela sabia que os problemas deles tinham começado muito antes. A mãe teve de arranjar emprego no Wal-Mart e o irmão da moça engravidou uma pobre coitada, depois do ensino médio, e agora essa garota era cabeleireira no Cut Above.
— Quero que você deixe isso para lá e não quero ouvir mais nenhuma palavra — disse Jim. — Ouço falarem dessa moça pela cidade toda e ela não é
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nenhuma santa. Estava de olho em mais rapazes além de Dale. E não era tão boba quanto fingia ser. Isso tudo vai ser esquecido; então não adianta enlouquecer. — Só não gosto que falem dos nossos meninos — explicou ela. — Beverly! — retrucou o marido. — Já lhe disse para calar a boca. Que importa se um bando de imbecis faz fofoca? Dale não tem nada a ver com o fato de a filha de White Wall ir para Nova York para virar prostituta. O jeito como ele falou a espantou e dissipou sua preocupação, quase a fez rir. Sabia que ele não estava falando sério quando disse que a menina tinha virado puta; mas falava sério quando disse que Beverly estava sendo ridícula. Cuidar da fazenda era um trabalho duro e perigoso e, com o tempo, fizera com que não se importassem muito com as ideias dos outros. Ela o contrariava ao se preocupar tanto. Ambos sabiam o que pensavam das Polianas que queriam tomar o seu leitinho, mas se zangavam com o modo pelo qual ele chegava à mesa. Gente que achava fazendas uma gracinha, mas não queriam sentir cheiro de bosta nem pensar que os animais eram tão maltratados quanto a maioria das pessoas. Sabiam o que pensavam dos esnobes que achavam que roceiros eram burros. Quem crescia no campo, como Jim e os filhos, sabia muito mais sobre vida e morte do que os outros. Era a natureza da coisa. Ela precisava se lembrar de quem ela era. — Agora, Beverly — disse Jim, — você vai dormir sozinha nesta cama se eu for acordado às três da manhã outra vez porque você não para de se virar para lá e para cá. Então, encoste essa sua cabeça grisalha no peito do seu velho e pare de pensar demais. Colocou os braços em volta da mulher e ela se aninhou contra ele. Embora estivessem mais velhos e robustos, encaixavam-se um no outro como peças de um quebra-cabeça. Ela fechou os olhos e só pensou no tanto que se orgulhava de Dale. Dale, quando tinha 3 anos, 4 anos, 5 anos, ajudando-a na fazenda e cuidando do irmão. O corpinho atarracado. Contando piadas a ela, desde pequenino. Dale tímido no primeiro dia da escola, como ficara bonito, como os tios dela. Dale crescido, andando com os tacos pelo campo de golfe, os ombros largos e fortes na camisa que ela lhe dera de aniversário. Atitude pensou. Atitude é mais importante do que os fatos. Como se lesse os seus pensamentos, sentindo-a lutar de novo contra aquela dúvida, Jim disse:
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— Dale não fez nada diferente dos outros garotos criados no campo, e várias coisas ele fez muitíssimo melhor.
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Flynn DE ACORDO COM a minha pesquisa, a fazenda dos Haytes deixou de ser o que tradicionalmente se chama de fábrica de laticínios em algum momento da década de 1960. Os Haytes foram os primeiros fazendeiros da região a se transformarem em fazenda industrial. Mais tarde, na década de 1990, assinaram um contrato com a Groot, uma empresa da Holanda, e aumentaram o tamanho do rebanho para outra ordem de grandeza. A maioria das pessoas que contratam é de fora — outras empresas que plantam milho e espalham esterco. Há um punhado de gente que cuida das vacas na sala de ordenha. Mas ainda se tem a impressão de que são o maior empregador da cidade. Não são. Essa honra pertence à loja Home Depot. A coisa que a fazenda dos Haytes mais produz é bosta quimicamente tratada, bosta farmaceuticamente contaminada, que é espalhada pelos campos de todo o condado, vazando para o lençol freático, provocando dores de cabeça terríveis, náusea e urticária nos que moram perto de onde eles “adubam”, além de ser suspeita de contaminar com nitrato a água potável local e provocar mortandade de peixes. Durante várias semanas do verão, o campo e parte da aldeia cheiram a metano e amônia — não o cheiro orgânico de feno, bosta de vaca e silagem, é mais como cheiro de esgoto concentrado. Consegui entrar “oficialmente” na propriedade para uma reportagem que fiz sobre empregadores locais em 2005; fui guiada numa visita por Jim Haytes e Bruce, o filhinho robusto dele. Foi o único jeito que arranjei de entrar lá. Fingi que era uma série que iríamos publicar em conjunto com a Câmara de Comércio. E foi o que escrevi no jornal, mas não era o que estava procurando. Nessa época, já apresentara solicitações de Liberdade de Informações ao Departamento de Controle Ambiental e à Agência de Proteção do Meio Ambiente e tinha estudos de impacto ambiental de todas as fazendas industriais do estado de Nova York. Também descobrira que a Groot tinha contratos com grandes empresas do sul do estado que lidavam com lixo municipal e com a compra de um novo “agente de calagem”, que era um subproduto não regulamentado de excremento humano. Em outras palavras, haviam achado um jeito de transformar o campo em local de descarte de lixo tóxico. Eu tinha acabado de começar a pesquisar sobre aquilo, mas até aquele dia não tinha visto onde os figurões enterravam as coisas. Não tinha visto de perto como a coisa funcionava.
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Apesar do cheiro que pairava no lugar, o interior dos prédios parecia uma sala de cirurgia. Tudo de aço inoxidável — grandes janelas altas de acrílico — com um observatório dando para a sala de ordenha. As vacas ficavam num tipo de estacionamento. Eram mantidas de pé em parte no chão de cimento, com as patas traseiras sobre uma grade de metal, pela qual a bosta caía diretamente num poço de drenagem que ficava logo abaixo. Fiquei sentada no observatório da sala de ordenha com Jim Haytes e falei sobre Haeden, a fazenda e Bruce, que jogava futebol infantil, enquanto observávamos as vacas. O lugar tinha ar-condicionado e era silencioso, e o concreto era pintado de amarelo-claro, cor de creme. Todo o processo de ordenha parecia saído de um filme de ficção científica. As vacas andavam em linha reta e eram presas ao aparelho de sucção com os vários pinos de uma máquina de ordenha industrial. Os trabalhadores passavam desinfetante nas tetas e depois as prendiam aos pinos ocos. As vacas só ficavam ali paradas e, quando a sucção era desligada, avançavam, seguindo a vaca da frente. Não precisavam ser empurradas, surradas nem conduzidas. Só ficavam andando em fila, parando e voltando aos cubículos de cimento. O processo todo era hipnótico. Faziam isso quase o dia todo. Era quase impossível diferenciar as vacas e, de onde eu estava, mesmo com o ponto de vista privilegiado graças à altura, não conseguia ver o fim da fila. Depois de uma hora, mais ou menos, a gente deixava de achar que aquelas vacas estavam vivas da mesma maneira que os outros animais. Sim, porque não estavam. São criadas por inseminação artificial com o propósito de fornecer leite. E elas mesmas são inseminadas constantemente para continuar em lactação. Haytes disse que os bezerros são levados por outra empresa, que tem contratos com vários ramos que negociam alimentos e roupas. É difícil olhar algo que foi criado especificamente para ser um produto comercial e pensar naquilo como sendo um ser vivo.
Jim Haytes disse que a última vez que as vacas foram ordenhadas à mão deve ter sido há mais de trinta anos. Mas todo mundo ainda gostava do logotipo do homem de chapéu de palha sentado num banquinho de três pés junto de uma vaca. Ele tinha muito a dizer sobre o que a fábrica fizera pela cidade. Que patrocinaram a festa do leite, que compraram uniformes para o time de futebol da escola de ensino médio, que, antigamente, quando o pai fez a primeira expansão do rebanho, deram dinheiro para a construção da piscina. Na época, não havia equipes de esporte femininas e ele brincou que Papai queria dar aos rapazes algo para olharem. Mas, falando sério, não são muitas as cidades rurais que têm piscina. Disse que esse era mais um modo de perceber que Haeden era um pouco diferente: a cidade tinha muitas fortunas antigas, o
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tipo de história que a gente talvez não descobrisse só de olhar. A gente não descobriria a nobreza nem a inteligência do campo — que coisa! Quem viesse de fora talvez nem soubesse como avistá-las. Haytes era como um bloco de madeira que sabia falar. Tinha um modo alto e entrecortado de articular as palavras e um jeito monótono e quase zombeteiro de discutir a cidade. Era quase impossível saber se estava sendo sarcástico. Era um daqueles homens com os quais eu me havia familiarizado, com o tempo, em Haeden; homens que sugavam a atenção para si enquanto fingiam ser “estoicos”. Homens que alternavam um personagem loquaz com outro mal-humorado. Havia neles algo de histérico ou de mártir. Ignorantes demais para ler a cultura de onde vinham ou as empresas que os possuíam, apresentavam-se, sem noção de ironia, como heróis da tradição que haviam sido espertos o suficiente para se modernizar, investir, vender ou, simplesmente, fingir que não viam, no momento certo. Enquanto estive lá, ele se gabou para mim do pequeno Bruce e, depois, olhou para cima com desdém, enquanto o garoto observava, como se, na verdade, todas as boas coisas que dizia do filho fossem brincadeira. Acho que eu e o garoto nos sentíamos igualmente confusos na hora de reagir aos comentários de Haytes. Nenhum de nós falou muito naquele dia. Aparentemente, Bruce era bom nos esportes — mas dizer “Ótimo, bom trabalho” ao garoto provocou um dos suspiros e comentários exasperados de Jim Haytes: — É. E seria ainda melhor se perdesse um pouco da pancinha gorda. Claro, é fácil arranjar tempo para jogar bola quando não se cumprem todas as tarefas, não é mesmo, Alce? O garoto parecia não escutar nada. Observei seu rosto redondo e corado até ele erguer os olhos e dar um sorriso afetado. Era simplesmente calado demais. Era difícil dizer o que se passava pela cabeça de Bruce Haytes e até se ele tinha alguma coisa na cabeça. Lembro-me de achar que o garoto tinha vergonha de ser meio burrinho ou que, dali a 20 anos, descobriríamos que era um assassino em série. Seu pai havia, basicamente, envenenado a cidade onde a própria família morava há mais de um século em troca de um Range Rover e férias jogando golfe. A propriedade deles, de acordo com os mapas do Departamento de Controle Ambiental, era o epicentro da contaminação. Nada que viesse daquela família me surpreenderia.
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Megan Osterhaus HAEDEN, NOVA YORK, 2007 NEVOU NO INÍCIO de outubro, uma camada fina que cobriu as folhas caídas. Alice e Megan se balançavam no trapézio no celeiro frio enquanto Theo vasculhava as caixas no jirau. Estavam entediados. Matavam o tempo. Megan morava mais adiante na estrada e, quando pequenas, as meninas haviam dividido uma fortaleza nos arbustos de lilás que separavam as duas propriedades, mas Megan tinha regras estritas, embora fosse mais velha e nem sempre a deixassem sair. Isso era irritante, já que não havia outros vizinhos a uma distância que pudesse ser percorrida a pé ou de bicicleta, e as meninas tinham se reaproximado por causa da equipe de natação. Megan era uma menina de aparência muito doce e sabia disso. Também tinha um vocabulário sujo. Tentava não falar muito palavrão, mas gostava de fazer isso, e na metade do tempo os dizia sem querer mesmo. Além disso, todo mundo acha que quem fala palavrão é independente. Não sabem que é o tipo de pessoa que tem de voltar cedo ou que tem um milhão de tarefas a cumprir. Ela podia dizer todos os palavrões que quisesse na casa de Alice, mas por alguma razão nunca dizia tantos. As coisas eram confusas na casa dos Piper. Todos pareciam colegas de quarto ou coisa parecida, amigos que moravam juntos. — Achei! — gritou Theo. Alice pulou do trapézio e ficou com as mãos na cintura, erguendo os olhos para ele. Depois, levantou as mãos. — Não vou jogar para você, idiota; é o conjunto todo. — Mas por que vamos brincar no frio e no escuro? — perguntou Megan. Ela sempre ficava com medo de se meter em encrenca por brincar com eles. Ali, nunca sabia quais eram as regras. Nem se havia regras.
Os pais de Theo e de Alice deixavam que um dormisse na casa do outro e, certo dia, no verão passado, quando fazia muito calor, Megan foi à casa de Alice e não havia ninguém em casa, só ela e Theo, sentados nus na banheira, lendo revistas em quadrinhos. Tinham jogado um saco de gelo na banheira. Era como se não se importassem. Como se o fato de estarem nus ou qualquer outra coisa não importasse. Não era sexy nem nada. Era, digamos, chato. Estavam mesmo entediados, e fazia calor demais. Ela pôs os pés dentro da banheira e
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ficou sentada na borda, conversando com eles. Liam as revistinhas em voz alta, fazendo vozes engraçadas, mas o tempo todo Megan ficou com medo de que os pais de alguém voltassem para casa. Por algum motivo, ficou ainda mais inquieta quando descobriu que os pais deles não se importavam. Além disso, desde que fora para a escola, Theo fumava cigarros na frente de todo mundo e ninguém dizia nada. E ela achava meio vulgar o jeito como ainda brincavam de circo, e, certa vez, ouviu os dois conversando numa língua inventada. Havia algo de sujo naquilo tudo. Como se Alice e Theo fossem irmãos mas também estivessem apaixonados e não soubessem nem ligassem que outras pessoas achassem aquilo esquisito. Theo desceu os degraus com uma grande mala quadrada de metal, deitou-a no chão e a abriu. Lá dentro havia um antigo conjunto de croquet feito de madeira. — Temos fluido de isqueiro? — perguntou Alice. Megan os observava do trapézio. Theo sorriu. — E como temos. — Temos meião de futebol? — perguntou ela. — Ora, claro que temos. — Ele pegou o saco de papel a seus pés e o segurou teatralmente com o braço estendido. Megan escorregou por trás da barra e ficou pendurada pelos joelhos, desceu para o chão, pousando nas mãos, e dobrou o corpo para ficar em pé. — Tenho de ir para casa — disse. — É foda, mas tenho... — Tudo bem — respondeu Theo, depressa. Megan queria que lhe pedissem para ficar e se sentiu um pouco magoada. Alice e Theo já escolhiam os tacos e tiravam os arcos do saco de lona. Saíram do celeiro; o jardim brilhava ao luar e os quadrados de luz das janelas da casa dos Piper se estampavam pelo chão, fazendo a neve brilhar. Alice enfiou as pontas dos arcos numas meias velhas e, depois, enrolou as meias apertadas em torno do metal, entregando cada um deles a Theo, que correu até vários pontos do terreiro, enfiando-os no chão e despejando neles fluido de isqueiro.
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— Acho que posso ficar mais um pouco — disse Megan. — Ótimo! — comentou Alice, sorrindo empolgada para ela. — Isso aqui vai ser divertido. Theo voltou até onde estavam as meninas, pegou o seu taco e uma bola, que também borrifou com fluido de isqueiro. — Prontas? — Vai! — berrou Alice, — Não, espere! — Ela verificou como Theo segurava o taco. Depois, disse: — Pronto, agora. Theo acendeu um fósforo e o deixou cair na bola, que lançou labaredas mais altas do que eles esperavam. Rapidamente, bateu nela com o taco, fazendo-a passar pelo primeiro arco, que pegou fogo. Na escuridão, ele brilhou, amarelo e azul. Alice correu e pôs fogo nos outros arcos, a nuvem cinzenta e pálida da sua respiração visível, iluminada pela luz amarela do fogo. Depois, percorreu a quadra, desrespeitando as regras, e acabou pondo fogo no taco, equilibrando o cabo na palma da mão, enquanto andava pelo jardim. Megan observava em silêncio. Nunca tinham ouvido falar de incêndios em celeiros? Não se davam conta de que moravam muito perto da floresta? Ela tentou ver o que eles viam. O fogo era bonito contra a escuridão e a neve. Tão brilhante e misterioso e azul no meio. Mas ela não se sentia bem. Era como se Alice e Theo entendessem algo sobre o que faziam que nem estava lá. Algo que Megan não sabia. E eles sabiam que ela não sabia. Também era assim que a faziam se sentir na escola. Burra. Nunca diziam nada malvado. Sempre a convidavam para brincar, mas era assim que ela se sentia. Lenta. Ela olhou a casa e viu Gene e Claire a observá-los da janela, com canecas na mão. Observando. Apenas observando as fogueirinhas crescerem no seu próprio jardim.
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Wendy NOVEMBRO DE 2008 ELA NÃO ESTAVA na picape de Dale ou no seu quarto quando acordou. Achou que talvez tivessem sofrido um acidente. O corpo doía, os braços, as pernas, as costas doíam, e a boca estava seca. Estava escuro demais para enxergar e ela estava de cara para baixo no cimento frio, sem pedras nem grama, e que cheirava a mofo. Sua cabeça latejava. Ela tocou o corpo. Não estava usando as suas roupas. Vestia alguma coisa. Uma camisa. Parecia a camisa de Dale; tinha uma gola e alguns botões em cima. Vestia uma camisa e a calcinha. Calcinha molhada. Fizera xixi nas calças. O que havia acontecido com eles? Ai, meu Deus. Onde estava Dale? Alguma coisa aconteceu com Dale! Ela rastejou para a frente e bateu com o rosto em alguma coisa; pôs a mão em algo frio e escorregadio. O que era aquilo? Óleo, sabão? Tinha cheiro de mofo, como água sanitária. Talvez estivesse sonhando. Ficou de joelhos e tentou se levantar, mas a meio caminho algo lhe bateu na cabeça e ela caiu para a frente. O estômago se contraiu e ela sentiu que ia vomitar. Ficou parada um instante, com o coração disparado. “Olá?”, berrou, e a garganta estava doída e áspera. Parecia que tinha engolido algo duro, e que ainda estava lá. Sangue, talvez? Tinha um gosto de metal na boca. “Olá? Preciso de ajuda. Preciso de ajuda, preciso de ajuda”, sussurrou para si mesma. Tinham sofrido um acidente de carro. Era a única explicação. Seu corpo todo doía. Ela fechou os olhos e ficou parada até o estômago se acalmar. Depois tentou tatear à frente. Pôs a mão em algo mole e áspero, nauseante. Isolamento térmico. Sabia por causa do trabalho do pai. Tocar aquilo fez o seu coração disparar. O que está acontecendo? O que houve? Houve um acidente, e ela estava em um lugar seguro. Estava no galpão de ferramentas de alguém — tinham-na levado para lá, mas não sabiam que estava consciente. Dale estava bem, senão não lhe teria dado a camisa. Era isso. Tinha de ser isso.
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Alice HAEDEN, NOVA YORK, 2006 AO SOM DO apito, ela estava fora do bloco e acima da água. Era menor do que as outras meninas e mais magra, mas sabia que tinha mais fôlego, respirava melhor, cortava a água mais depressa. Era menor porque havia nadadoras que já estavam no time do colégio e ela ainda estava no fim do ensino fundamental. As outras meninas tinham ombros mais largos. Mais peso. Seios. Eram como criaturas marinhas. Focas e peixes-boi e mulheres-foca e sereias. Ela voou no mergulho e ascendeu no nado borboleta, como se para ela a água tivesse um peso diferente do que tinha para as outras. O treinador, Sr. Dunn, era um homenzarrão gordo que nunca tinham visto entrar na água. Só podiam supor, já que ele sabia o que lhes dizer, que em alguma época ele devia ter sabido nadar. — O treinador é uma bolha gorda de merda — comentou Megan baixinho a Alice, no ônibus rumo à competição em Elmville. — O treinador é um exemplo incrível de flutuabilidade a que todas devemos aspirar — disse Alice, erguendo as sobrancelhas algumas vezes. — Deviam chamar aquela coisa que você ganhou de desvantagem verbal — resmungou Megan. — Porque ninguém entende merda nenhuma do que você diz. — Ela sorriu para que Alice soubesse que não estava querendo ser maldosa. Megan adorava falar merda. As garotas no ônibus começaram a cantar aquela música “Hollaback Girl”, de Gwen Stefani, e a bater palmas. Estavam se preparando para massacrar as garotas de Elmville. No fim das contas, apenas gritavam a música a plenos pulmões e pulavam nos bancos do ônibus. Caso se empolgassem demais, Dunn as mandaria calar a boca, mas elas também sabiam que ele gostava quando ficavam cheias de gás para vencer. Repetiram o refrão várias vezes, quase em transe: “A few times I’ve been around that track, so it’s not just gonna happen like that, ’cause I aint no hollaback GIRL. I ain’t a hollaback GIRL.” Alice nunca vira o clipe dessa música, mas já a ouvira no rádio do vestiário e a adorava, sem nem saber o que significava. Era a música que as fazia vencer. E elas sempre venciam.
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* * * No treino, ela nadava feito peixe, feliz na piscina azul, cercada pelo silêncio, pelo correr do sangue nas veias e pela sensação do coração nos pulsos, na água fria. Na vigésima volta, uma cãibra começou na barriga e uma fraqueza, quase uma coceira ou vibração, num dos joelhos. Merda! Ainda precisava dar quatro voltas antes de sair da água e não tinha trazido absorventes internos para o treino. Apressou-se, mas se sentiu um pouco enjoada. Cruzou os dedos e decidiu não sangrar até terminar as próximas quatro voltas. E sabe-se lá como, conseguiu. Içou-se depressa da água, junto aos blocos de partida. Uma das alunas do último ano — uma moça robusta de olhos azuis, com costas e ombros fortes — também chegara aos blocos e ergueu os olhos para ela, leu a ansiedade no seu rosto. Içou-se, saiu da água e depois acenou e gritou para Dunn: — Tenho de ir ao banheiro. Volto já. Bateu com o braço no ombro de Alice. — Quer ir também? Elas não se secaram e foram direto para o vestiário. Foi passar pela porta e Alice sentiu a liberação quente do sangue contra a pele fria, sujando o gancho do maiô. — Ah, merda. — Estava com vergonha por não ter absorventes internos, e o outro maiô no armário era diferente daquele. Não era de corrida. — Tudo bem — disse Wendy, sorrindo. — Tenho alguns no meu armário. Não é nada de mais. E ninguém vai dizer nada se você sair com outro maiô. Se estiver preocupada com isso, é só dizer que esse causava muita resistência. Alice ficou preocupada com aquilo. Pegou o outro maiô e um saco plástico para pôr o negócio ensanguentado e entrou num dos cubículos. Wendy voltou do armário e lhe deu um absorvente interno por cima da porta cinzenta de metal. — Dunn tem mais no escritório dele, também — disse Wendy. — Mas não sei para que, ainda mais ele “estando” no nono mês de gestação e tal.
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Alice desejou que Wendy não fosse do último ano e que frequentassem a mesma escola. Alguma coisa em Wendy lembrava-lhe Gene. O jeito de não falar muito e de ser objetiva e engraçada. Que pena que ela se formaria antes mesmo que Alice chegasse ao ensino médio. Ela temia não ter amigos depois que Theo fosse embora. — Prefiro vir para o treino quando menstruo do que ficar sentada na aula — disse Wendy, e a voz baixa ecoou nas paredes de azulejo ao redor. — A gente se sente energizada e não cheia de cansaço e cólicas. Alice saiu do cubículo com o maiô novo. Wendy ergueu as sobrancelhas e ficou com cara de quem faz força para não rir. — Uau! — falou. — Que gracinha! Parece uma rã! — É que esse é o meu maiô velho — explicou Alice. — Tenho ele desde o quinto ano. — Ela achou que fosse chorar, em pé, com o maiô verde-vivo de criança, junto dessa moça mais velha que estava sendo tão gentil. Gemeu. Wendy a olhou nos olhos e sorriu, e Alice conseguiu ver que ela também já se sentira envergonhada antes, mas isso havia lhe dado força, isso a tornara gentil — um pouco diferente de gentil. Wendy podia rir do maiô e rir do jeito como coisas assim faziam a gente se sentir, mas não ria de Alice. Talvez risse de todo mundo que se preocupava com coisas embaraçosas. — Ah, Jesus, nem se preocupe com isso — consolou Wendy. — Tudo bem. Se alguém disser alguma coisa, basta explicar que é o seu maiô da sorte. Então Alice sorriu e o riso de Wendy White ecoou pelos ladrilhos, vazou e flutuou sobre a piscina azul e o corpo das colegas que cortavam a água.
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Alice HAEDEN, NOVA YORK, MAIO DE 2008 NO NONO ANO, Alice já cortara o sapo do seu maiô de menina e o costurara na lateral da roupa preta de competição de nado da marca TYR. As meninas com quem nadara quando ele ainda cabia tinham ido para a faculdade, com exceção de Megan, que agora estava no último ano. O Sr. Dunn perdera trinta quilos. As garotas ainda o chamavam de gordo, mas a maioria não sabia como ele era antes, ou seja, obscenamente gordo. Alice era alta para a sua idade e tinha músculos bem-definidos nas costas e nos ombros. Pernas e braços compridos. Um jeito leve e gracioso de se mover. E cortara o cabelo curtíssimo. O rosto ficara mais delicado, clássico, mas as maçãs altas e os traços romanos, retos e fortes, ainda eram salpicados de sardas. Ela nunca fora muito consciente da sua aparência, mas usou rímel preto nos cílios louros no dia em que foi se encontrar com Stacy Flynn no campo junto à escola primária, onde ficava a estufa — local em que as borboletas se preparavam para sair dos casulos. O céu estava sem nuvens e, quando ela se aproximou da escola, sentiu o cheiro das flores que a equipe plantara para fazer o jardim: lavanda, erva-de-coelho, armeria, consólida, áster, aquilégia e erva-cidreira. Alice olhara dentro da estufa. Estava exuberante, quente, perfumada, cheia de uma luz verde e difusa. Um mundo à parte, separado do concreto que se esparramava pela escola e pelo estacionamento, e da lama e do capim esfolado dos campos. Wendy White, que participara da equipe e nunca fora para a faculdade, estava sentada lá dentro, sonolenta, a pele molhada pela umidade. Várias borboletas esvoaçavam por sobre as plantas que a cercavam, pousando de leve sobre elas, fechando as asas e seguindo em frente. Alice não sabia se Wendy viera para a estreia ou se decidira passar a folga do trabalho no Alibi entre as flores. Parecia estar adormecendo, e Alice não a incomodou. Sabia o que era sentar-se para pensar, e dali a pouco os alunos do jardim de infância se lançariam no jardim, correndo sobre os caminhos de pedra entre as flores, espantando-a e enxotando as borboletas para todos os lados até que o som dos seus corpos batendo no arco de plástico verde esticado da estufa batucasse feito chuva.
Saiu, aguardando ansiosa a chegada de Flynn. Queria que ela escrevesse sobre as flores e as borboletas, não sobre a equipe de natação nem os alunos do jardim de infância. Alguns carros pararam no estacionamento e ela viu pais e
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criancinhas saírem de dentro deles. Começaram a correr para o borboletário, a fim de encontrá-la e sair no jornal. Alice deu uma estrela enquanto os esperava, depois plantou bananeira e começou a andar na direção deles. Três menininhas correram até ela, de jeans e chinelo e, quando se aproximaram, ela deu um salto mortal e ficou de pé. — Tem mais algumas chocando? — perguntou uma das meninas. — Elas não chocam — respondeu Alice, secamente. — Vocês, entomologistas, terão de pesquisar um pouco mais. As duas outras meninas davam estrelas na grama, exibindo-se. Ela sorriu e ergueu os olhos para ver o grupo de nadadoras que se aproximava bem na hora em que Wendy saiu de baixo do toldo de plástico verde, tirando da testa o cabelo suado e sorrindo, abrindo caminho entre os pequenos corpos que avançavam correndo para ver a nova casa das borboletas. — Não acredito! — gritou Megan, ao vê-la. — Achei que você fosse trabalhar até as sete. — E vou. Só fiz uma pequena pausa porque achei que Kenzie e Beth Ann estariam aqui. — Ah, até parece! Você veio porque a equipe está aqui! E quer que o seu rostinho bonito saia no jornal! Wendy riu. Só algumas garotas a conheciam da natação. A maioria a conhecia como garçonete. Alice se aproximou e bateu o seu punho no de Wendy. E esta disse: — Olá, Capitã. Borboletas fantásticas. Antes que Alice lhe dissesse alguma coisa, Megan perguntou: — Aliás, como vai o seu caubói, Wen? Caralho, ninguém mais vê você! Você está sempre jogando golfe ou coisa assim. Wendy riu e abraçou Megan. — Crystal e Kenzie vão começar a nadar? — perguntou Megan. — Ora, é claro. Como se você precisasse perguntar...
O carro de Flynn apareceu na vaga junto à escola primária e as garotas a viram apagar a guimba do cigarro com a bota de cano curto coberta de lama, e depois pegar a câmera e o bloco de anotações no banco da frente. Alice conhecia
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Flynn das outras reportagens que fizera e achava que a mulher era mesmo engraçada. Parecia sempre cansada e antipática, até que começasse a entrevistar. Alice gostava de Flynn. Antes de se conhecerem, ela imaginara Peg, a repórter do Curto & Doce, agindo daquela maneira. Na verdade, Alice e os pais até chamavam o Free Press de Haeden de Curto & Doce. E, por um minuto, quando a viu andando na direção deles, Alice sentiu saudades de Theo. — Al — disse Flynn —, desculpe o atraso. — Sem problemas — respondeu Alice. — Esse é um bom dia para tirar fotos das borboletas. Um menino de tamancos verdes de jardinagem saiu correndo da estufa, rindo, e o amigo foi atrás dele pelo campo até atingirem um grupo de árvores. Com rapidez e sem expressão, Flynn tirou fotos deles enquanto passavam e olhou de volta para Alice. — Essa coisa é demais. Por que decidiu construí-la? — Você precisa ver por dentro — disse Alice, ansiosa para chegar à história real. — Fizemos porque a nossa equipe e a escola primária têm de vender todos esses bolos o tempo todo para arranjar dinheiro para fazer coisas e eu detesto cozinhar e vender. Aí, pensei: por que não fazer uma maratona de natação e depois dar metade do dinheiro para projetos científicos do jardim de infância? Eles nunca têm dinheiro para nada divertido. E acabamos fazendo uma maratona de nado borboleta para construir um borboletário. Um pouco do dinheiro desse projeto foi para os alunos do quinto ano, e assim o nosso dinheiro serve para sustentar a equipe para que possamos continuar vencendo. — As nadadoras riram e bateram palmas. — Não é? — lhes perguntou Alice. — Não é? Eles vão ter de nos mandar de avião para muito longe para achar alguém que possa nos vencer. — É isso aí, caralho! — disse Megan. Todas as meninas riram, e Flynn ergueu as sobrancelhas e concordou com um grande sorriso. — Bela linguagem para o jornal — comentou. — E quantos quilômetros vocês nadaram, afinal? — No total, 160 quilômetros — respondeu Megan. Dava para ouvir conversas e guinchos vindo de dentro da estufa. — Tudo nado borboleta? Quanto vocês arrecadaram?
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— Três mil duzentos e oitenta e sete dólares — respondeu Alice, com certa impaciência. — E, isso mesmo, tudo borboleta. — Era o evento de Alice, mas também como poderiam construir um projeto científico com nado livre? — Vocês podiam ter ido de porta em porta e pedido duas pratas a todo mundo da cidade — argumentou Flynn. — Nem todo mundo tem duas pratas — retrucou Alice. Flynn sorriu e escreveu alguma coisa no bloco. — Boa resposta. — E o treinamento traz resultados. Olhe só para Wendy. — Alice pôs a mão no ombro de Wendy. — Borboleta era a especialidade dela quando estava na equipe. Wendy olhou sem graça para a repórter e sorriu, dando de ombros. Alice notou que todas as garotas eram maiores do que Flynn. Fortes e largas. — Por que você não nada mais? — perguntou Flynn a Wendy. — Estou trabalhando. — Entendi — disse Alice a Flynn. — Agora você tem de entrar e ver essas coisas, porque são espantosas. E essa é a verdadeira reportagem. — Espere, espere, espere. — Flynn pôs a caneta atrás da orelha. — Preciso de uma foto da equipe. As nadadoras ficaram na frente da estufa, fazendo caretas para a câmera, mostrando os músculos. Wendy se afastou delas, foi mais longe e ficou observando. — Parem com isso! — pediu Flynn. — Vocês precisam se juntar mais. E você. — Ela apontou para Wendy. — Se encaixe aí. Quero todo mundo na foto. Megan espremeu Wendy ao seu lado e gritou: — Dez a zero! — Zero: como em “zero de vitórias” — disse Wendy, baixinho. — Vamos, vamos, vamos — disse Flynn. — Não se esqueça de dizer que somos dez a zero — pediu Megan.
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— Pode deixar. — Flynn tirou algumas fotos das meninas rindo, depois outras de Alice sozinha, o sorriso brilhante e os olhos faiscando. Alice adorava o borboletário. O cheiro, mas, principalmente, o modo como as borboletas se moviam. Observou Flynn entrar no jardim e o seu sorriso cresceu. Alice viu que o lugar a deixava feliz. Adorava o modo como todos pareciam empolgados ao ver o jardim pela primeira vez. Todo mundo achava as borboletas bonitas, mas na verdade elas eram estranhas, muito estranhas e quase feias, descansando e trabalhando, esvoaçando disfarçadas de uma coisa... para que um dia pudessem ser outra.
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Wendy MAS POR QUE isolamento? Não. Pense. Pense. Pense. Ela conhecia casas. Conseguia tatear o caminho. Se pelo menos houvesse luz, ela conseguiria imaginar onde estava pelo espaçamento das vigas. Era um espaço pequeno. Assim que houvesse alguma luz, estaria bem. Sabia como as casas eram construídas. Ah, meu Deus. Por favor, faça com que eu não esteja atrás de uma parede. Deus. Que loucura. Isso é loucura. É impossível, o que isso significaria... atrás de uma parede? Não é possível. Num porão. É isso. Um porão ou depósito de ferramentas. Meu Deus, fodeu, fodeu. — Olá? Olá? Depois, passos e sussurros. Ah, graças a Deus. Ela deve ter adormecido. Estava dormindo. Era um sonho. Estava mesmo gritando por socorro? Ela gritou de novo, depois houve risos. Certo. Havia risos, logo ninguém a escutava. Ou então não estava gritando de verdade. Talvez estivesse dormindo. Talvez estivesse morta. Achou que podia estar morta, entre dois mundos. As costas, os braços e as pernas doíam. As mãos doíam. As mãos doem depois da morte? Não. Não pode ser. Não conseguia olhar para elas, estava escuro demais. Isso ainda pode ser um sonho, pensou, porque não conseguia enxergar. Ou podia estar cega. Ah, Cristo, por favor, Deus, não. Não deixe que seja cegueira. — Por favor — berrou —, alguém, por favor me ajude. Não sei onde estou. Passos avançando, soando mais altos. Alguém está vindo, graças a Deus.
— Por favor! — ela gritou, berrou, torceu para estar gritando, torceu para não estar morta. A garganta ardia. Os sons ficavam mais altos, os sons estavam bem no seu ouvido, bem acima dela, e isso não podia estar certo, agora ela estava tonta. Bem acima da cabeça. Estaria acordando só naquele momento? Acordando depois de um acidente, talvez estivesse em coma desde o acidente, quando isso aconteceu? Bem acima da cabeça dela, passos, e então eles, eles... alguém... um pé bateu como se alguém esperasse alguma coisa. Bem acima dela. Dava para sentir. O ranger do assoalho, o ranger de um teto acima dela. Das tábuas do outro lado de onde ela estava. Escutou risos. Quatro, cinco vozes. Talvez todas a mesma voz. Vozes do Alibi! Ela se machucou e alguém deve tê-la levado para se restabelecer no Alibi. Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus, era isso. Ah, por favor, é isso. E não estava cega e eles não sabiam que ela
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estava acordada e não era tão ruim assim senão não estariam falando ou talvez ela estivesse bêbada, mas não se lembrava de ter bebido. O pé batendo estava bem ali, na altura da sua cabeça. Então, mais vozes. Doc Green? Alguém devia saber que ela estava machucada e não encontrou um médico de verdade na mesma hora. Devia ter sido perto da fábrica de laticínios e Doc Green já estava lá. Era isso! Não. Deus! Era Doc Green? Ela estava morta? Tentou se levantar outra vez, bateu com força em alguma coisa e caiu para a frente. Houve risos. Riram quando ela caiu, como se alguém tivesse escutado, mas não deviam saber o que era. Onde ela estava. O que acontecera. Não sabiam que ela estava ali.
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______________________________________________ PROVA P47910 16/04/09 21h02 Sarg. Anthony Giles Temas Épicos em Les Guérillères (As guerreiras) de Monique Wittig Alice Piper Inglês para alunos do primeiro ano Sra. Lourde 7º tempo 06/04/2008 Les Guérillères, de Monique Wittig, é um poema épico e uma homenagem aos mortos. A página da direita, ao final de cada cena, é simplesmente uma lista de nomes, em maiúsculas e negrito, que o leitor logo reconhece como de soldados mortos. Les Guérillères encarna a trama épica tradicional de “dominar o monstro”. As coisas mágicas e práticas que a sociedade e os seus heróis fizeram para “matar o monstro e voltar à harmonia” são reveladas no decorrer do texto. Les Guérillères é um épico de violência, batalha e conquista, e o livro inteiro clama pela guerra — até a guerra à língua do inimigo. “A língua que falas é formada de palavras que te matam. A língua que falas é formada de signos que designam corretamente as coisas de que os homens se apropriaram.” (4) Depois, ela afirma que o principal erro que as pessoas cometem é a aceitação ou a felicidade em ser dominado ou dominar. Ela refuta essa falsa escolha:
“Melhor ver tuas tripas ao sol e soltar um gorgolejo de morte do que levar uma vida da qual qualquer um pode se apropriar. O que te pertence neste
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mundo? Só a morte. Isso, nenhum poder do mundo pode tirar de ti. E — considera, explica, diga a ti mesmo — se a felicidade consiste na posse de algo, então agarra-te a essa felicidade soberana: morrer.” (47) (o itálico é dela!) Como verdadeiros heróis épicos, os personagens de Wittig só se satisfazem com a liberdade e a luta pela causa. Isso também vira de ponta-cabeça o entendimento “essencialista” (ou que as pessoas chamam de natural) das mulheres como doadoras de vida, símbolos da vida e da função materna. Em Les Guérillères, elas se tornam as portadoras da morte, celebrantes da vida e da morte, e indivíduos ativos, violentos, malévolos ou protetores, ou atenciosos ou engraçados, todo tipo de coisa. (O que faz mais sentido, porque realmente, quando a gente pensa sobre isso, ninguém pode ser símbolo de uma coisa, nem uma metáfora. Infelizmente, Wittig transforma as pessoas em símbolos de outra coisa. O que prova que o negócio todo é falso. Não entendo nem como isso funciona, dado o fato de que pessoas são entidades biológicas. Quando li sobre o épico e a ideia de uma pessoa ser um símbolo, quase liguei para a senhora porque parece ser um enorme erro de lógica. E realmente tira o prazer de ler sobre os personagens e o que querem fazer ou quem são.) (Sei que a senhora detesta os meus parênteses, mas esse tem relação direta com Les Guérillères.) A própria forma da narrativa é um símbolo: um círculo que começa e termina com uma sociedade pós-apocalíptica em que os sexos estão divididos e uma guerra já foi travada. Assim, homens e mulheres se separam, se juntam e se separam de novo. Como se fossem uma criatura só, que fica se destruindo. O livro poderia terminar e começar de novo perpetuamente devido a essa forma. Les Guérillères também é um épico, pois pode ser dividido em partes e cada parte pode ser autônoma. A descrição do monstro é a minha parte predileta: “Ele vos escravizou por meio de trapaças, vós que sois grandes fortes valentes. Ele vos roubou a sabedoria, fechou vossa memória para o que éreis, fez de vós aquilo que não é, que não fala, que não possui, que não escreve. Fez de vós uma criatura vil e decaída. Ele vos amordaçou, agrediu e traiu por meio de estratagemas, embruteceu vosso entendimento, teceu em torno de vós uma lista comprida de imperfeições que declarou essenciais ao vosso bem-estar, à vossa natureza.” (130) Esse é um monstro muito melhor do que Ciclope, Minotauro ou Golem.
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O livro de Wittig também é sobre a ira. Por exemplo: os homens são esfolados, torturados, picados em pedaços e sepultados em covas coletivas. Alguns se uniram às mulheres na batalha, têm de ser reeducados e depois são heróis. O fim da violência é declarado e o “Paraíso”, diz Wittig, “existe à sombra da espada”. Esse tipo de ideia só pode ser levado a sério num épico. (Esfolar homens ou matar pretendentes o dia inteiro, como Ulisses, ou lutar durante anos porque alguém é lindo, ou os deuses quererem que haja batalhas, ou mesmo existirem “monstros” etc... isso é absurdo.) O épico deixa de lado as causas da guerra (ouro, terras), mas quer ser uma história sobre as causas e os resultados da guerra. Substitui as razões reais por simbólicas e insere personagens humanos como símbolos, também. O que, como disse antes, acho totalmente ilógico. A obra de Wittig é um exemplo clássico de poema épico (atende a TODOS os critérios discutidos em aula). A verdadeira questão é: qual o valor do épico, mesmo que a gente mude o autor da matança? Pode ser a pior forma de literatura. (Sra. Lourde, posso dar uma chegadinha na hora do almoço, na quinta-feira, para desenvolver melhor isso? Quero que fique direito. Alice.)
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Beth Ann HAEDEN, NOVA YORK, AGOSTO DE 2008 DEPOIS DA CHUVA, Beth Ann e Wendy puseram as meninas no carrinho de bebê duplo e andaram pela cidade para ver até onde o rio subira e para jogar gravetos na água lamacenta. O ar cheirava a terra molhada e havia uma leve névoa subindo das calçadas. Aquela temporada de chuvas no fim do verão, com o tempo já ficando mais quente, deixava Beth Ann sonolenta, com vontade de passar o dia inteiro com as meninas, dormir tarde e jantar na varanda e olhar as estrelas. O verão a fazia amar as coisas simples e nesses dias queria que Wendy ficasse mais por perto para fazer tudo junto com elas, como antes. Crystal e Kenzie agitavam os pés enquanto avançavam no carrinho. Usavam sapatinhos parecidos de plástico transparente com figuras da Ariel e Bela Adormecida, o cabelo em rabos de cavalo no alto da cabeça. Wendy falava sobre Dale desde que saíram de casa e Beth Ann estava começando a se cansar um pouco daquilo. — É como se fosse toda uma outra vida — dizia Wendy. — Acho que podemos fazer tudo juntos. E sinto que posso aprender coisas em que nunca pensei, como jogar golfe, virar doses de bebida e até desenhar melhor. Sabia que desenho mesmo bem? Não sei por que nunca fiz aulas de arte. Não me lembro nem de entrar na sala de artes da escola, a não ser quando era bem pequena. Como Kenzie. — Que tem Kenjie? — gritou Kenzie. — Eu tamém, né? — perguntou Crystal. — Como vocês duas, meninas — explicou Beth Ann, objetivamente. Depois, disse: — É, Wen... O amor faz a gente se sentir segura de si, mas quer saber? Ficar mais velha também faz. — Meu xapato de pástico é igal o da Quistal! — gritou Kenzie. Beth Ann falou para Wendy, sem emitir som, as palavras “Ah, meu Deus!” e as duas riram. Algumas frases saíam todas ciciosas e era difícil não rir das filhas, por mais que tentasse segurar.
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— Isso mesmo — disse Beth Ann. — Agora, vocês duas conversem uma com a outra enquanto mamãe e a tia Wen conversam. Agora, é hora das meninas grandes conversarem. Wendy apaixonada era algo que a família gostava de ver, e não se incomodavam se era Dale ou outro qualquer. Ela estava feliz, ria mais do que de costume e parecia confiante de um jeito que não fora na escola. Na escola, Beth Ann achava que Wendy parecia meio desgastada. Agora estava tão bonita, toda bronzeada de tanto jogar golfe e nadar. Estava crescendo, pensou Beth Ann. Não seria mais tão filhinha de papai. Um pouco mais autossuficiente. Wendy sempre tivera tão mais do que Beth Ann — não conhecia trabalho duro nem preocupações. Tivera o privilégio de trabalhar em escritório. De passar o fim de semana inteiro viajando com a equipe de natação. Às vezes, isso deixava Beth Ann com raiva, e ela detestaria ver Wendy se transformar numa daquelas pessoas que saíam o tempo todo para socializar, sem tempo para a família. Para a família dela, pelo menos, não só a de Dale. — É bom ter um primeiro amor — disse Beth Ann finalmente. — Mas não se entregue fácil. Você é muito bonita, Wen, e talvez vá querer sair com outros rapazes. — Você não gosta de Dale. — Gosto, querida, só não gosto tanto assim de golfe. E aquele cheiro de bosta que vem lá da fazenda deles incomoda muita gente. Wendy pareceu ofendida por um rápido instante; depois lhe tocou o braço e ambas riram. Beth Ann também achava Dale arrogante, achava que Wendy era inteligente demais para ele e às vezes não suportava o jeito como o rapaz falava. Mas não disse isso. Além do mais, sabia que não faria diferença se dissesse. Wendy o amava, e Beth Ann imaginou que um rapaz grande como Dale devia ser divertido na cama, e isso importava. Ela queria que Wendy fosse feliz e se divertisse. As meninas cantavam uma música da creche, parando para dizer “Não, não, não, assim” uma para a outra; depois riam e recomeçavam com palavras inventadas. De repente, Beth Ann se lembrou que queria contar a Wendy uma história que lera na revista House Beautiful, no salão de beleza. Era sobre uma arquiteta.
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— Ah, você sabe o que os arquitetos fazem, não sabe? — perguntou Beth Ann. — O quê? — Eles desenham casas no papel — explicou ela. — Como você e DW faziam quando crianças. Já pensou em fazer isso? Você observava um monte de plantas-baixas. Naquele instante, Beth Ann achou que podia ver todo o futuro de Wendy. Ver as meninas irem passar o verão com a tia Wen numa linda casa enquanto ela e Davy se divertiam juntos. Achou que Wendy podia ser uma daquelas mulheres que, além de sair de Haeden, conquistavam tudo. Wendy podia ser uma daquelas pessoas sobre quem a gente lê, que começavam a fazer contas e a desenhar casas com 5 anos mas só descobriam o que isso significava quando a cunhada, um dia, lhes perguntasse, num passeio, se sabiam o que faziam os arquitetos. Então iria para a faculdade. Beth Ann poderia fazer decoração de interiores e aí as duas poderiam ter um negócio próprio. Talvez comprar o antigo templo maçônico, pôr uma placa dizendo WHITE E WHITE ARQUITETURA E DESIGN e chamar de estúdio, como na revista. — Não — disse Wendy. — Nunca pensei nisso. — Beth Ann conseguia ver que ela ainda estava distraída, pensando em Dale. — Pois talvez seja bom você pensar — retrucou Beth Ann. Ficaram no meio da ponte, olhando o rio lá embaixo, enquanto as meninas cantavam e balançavam os pés no carrinho. — Há muitas coisas que você deveria pensar em fazer, Wen — disse Beth Ann. — Você tem o mundo inteiro à sua espera.
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Claire HAEDEN, NOVA YORK, DEZEMBRO DE 2008 A FILA DE voluntários para a busca se estendia até a metade do campo, junto ao cruzamento da Rua Himrod com a Rodovia Municipal 33. Gene, Claire e Alice caminhavam de mãos dadas por sobre as hastes duras e quebradas do milho colhido que se erguiam do solo congelado. Alice pedira para ir com eles, Claire não parava de dizer a si mesma. Pedira e eles concordaram, mas, naquele momento, achava que fora um erro terrível levá-la. Não importava que fosse quase adulta, que vários garotos da escola dela também tivessem querido ir. Que fosse o certo a fazer pela comunidade ou que Alice tivesse a mesma compleição de Gene. Essas coisas não importavam. Não era assim que uma garota de 15 anos deveria passar o dia: procurando o corpo de outra moça. Era o que estavam fazendo, e a essa altura não havia como fingir que procuravam outra coisa. Era uma exibição de solidariedade comunitária unirem-se para fazer aquilo pelos White. Aquilo combinava mais com eles do que se unir a um grupo de orações, mas, no fundo da sua mente, Claire sabia que isso teria mais ou menos o mesmo impacto sobre a situação que a reza. Apesar de toda a preocupação de Claire, Alice parecia ótima. Conversava com eles sobre levantar recursos para a equipe e sobre a escola. Finalmente, passou a falar sobre a razão de estarem ali. — Este é um exemplo de obrigação ética, não é? — perguntou-lhes enquanto caminhavam. — O que estamos fazendo agora. — Como assim? — quis saber Claire. — Temos a obrigação ética de cuidar de um morador da cidade; faz parte do bem maior. — Isso sempre é verdade — disse Gene. — Pois é, mas acho que não estamos cuidando de um morador — continuou Alice. — Porque não sabemos onde ela está. Em termos técnicos, estamos mostrando essa atenção simbolicamente, não é? É como se cuidássemos da família dela.
— Não sei se isso pertence à categoria de que você está falando — respondeu Claire.
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— Connie disse que coisas assim são boas para uma análise de custo-benefício. As palavras dela os paralisaram um instante. Claire podia sentir a tensão de Gene enquanto andavam um de cada lado de Alice. — Não é bem assim — rebateu Claire. — Achar Wendy beneficia mais a família e a cidade do que a dificuldade, o medo ou qualquer coisa que se tire da cidade? Não é a mesma coisa que falar do bem maior, de qualquer jeito? Con diz que o que é prático quase sempre é ético. — Não exatamente — retrucou Gene. — Por que não? Se acharmos pistas que impeçam outra pessoa de sumir ou que levem a pegar o culpado, ou se a encontrarmos viva! Podemos encontrá-la viva. Isso não está mesmo fora de questão. Não sabemos. Claire pôs o braço na cintura de Alice e andou no mesmo passo que ela sobre a terra dura e acidentada. Conseguia sentir a tristeza do marido encontrar a dela quando Alice disse aquilo. Andaram um pouco em silêncio. — Assim, a relação entre risco e benefício é a coisa certa para sustentar tudo isso — comentou Alice, quase para si mesma. Por um momento, Claire não falou. Estava genuinamente surpresa de Alice ter adotado o tipo de papo de empresário que Con usava. — Às vezes, temos a obrigação ética de fazer coisas difíceis ou nada práticas para nós enquanto indivíduos, ou difíceis de serem entendidas dentro do contexto social onde estamos — explicou ela, parando para fitar o azul frio dos olhos da filha. — Por exemplo, nenhuma das coisas que as pessoas fizeram durante a luta pelos direitos civis era prática para elas nem para a família delas, não é? A relação individual entre risco e benefício para quem se senta no balcão de uma lanchonete sabendo que vai apanhar dos racistas ou da polícia não dá certo, não é? Ou os Panteras se armarem quando é óbvio que a polícia e o exército podem acabar com eles rapidinho. — Em curto prazo, esse tipo de coisa não funciona — respondeu Alice. — Mas, em longo prazo, todo mundo sabe que fez sentido. — Isso! — disseram os pais, em uníssono.
— Exatamente — prosseguiu Gene. — E é por isso que a ideia de Con nem sempre é um bom modelo de raciocínio. Esse é o modelo que leva empresas como a Gen-Ag-Tech a fazer o que fazem.
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— Ai... Meu... DEUS! — gemeu Alice. — Como é que até essa conversa chegou tão depressa à Gen-Ag-Tech? — Os três riram, e Claire sentiu parte da tensão sair dos seus ombros. — Você sabe que o papai não gosta de passar muitas horas por dia sem dizer Gen-Ag-Tech — explicou. — É como um menino de 10 anos falando de Darth Vader. Claire riu mais alto. — Estávamos no Rooster com Ross, papai, Annie e Harley — contou Alice a Claire. — Eu e Megan estávamos ouvindo a conversa deles sobre um tipo de direito autoral de música porque aqueles músicos da velha guarda estavam preocupados com isso, e aí ele disse: “Isso é exatamente como o que aconteceu na Índia com a Gen-Ag-Tech.” — E é — disse Gene, dando de ombros. — Tudo bem — comentou Claire. — Quer saber? Essas coisas são importantes, mas não como a questão de que estávamos falando agora, sobre Wendy. E provavelmente deveríamos pensar um pouco na razão de estarmos aqui agora, em vez de tentar transformar isso em enigma. Acho que é o que o papai quer dizer, que não se pode usar só a análise de custo e benefício. É preciso levar em consideração um monte de outras coisas. Realmente observar e estudar a questão com a qual se está preocupado. Claire olhou lá embaixo a fila de gente andando em grupos, de casaco e camisa de flanela. Era quase todo mundo que conheciam. Quatro fregueses do Rooster andavam numa configuração frouxa junto aos garotos Haytes e um grupo de amigos. Era majoritariamente uma fila de homens. Muitos só usavam bonés e moletons de beisebol, apesar do vento frio e do céu encoberto. Claire percebeu que tinham um mesmo andar arrogante, só deles, enquanto caminhavam pelo nada, rumo a nada, como cães levados pelo instinto a perambular ou a resgatar o que, em outras circunstâncias, estariam caçando. Quando ela, Gene e Alice pararam de conversar, o silêncio foi completo, só botas pisando e corpos se movendo sob o céu cinza-claro. Não havia casas visíveis a distância, apenas mais campos, e, em algum lugar — a quantos quilômetros dali, não sabia —, uma encosta baixa.
Por um instante, Claire se sentiu avassaladoramente tonta, como se não houvesse nada para orientar os três no espaço, como se estivesse caindo. O estômago se virou e ela achou ter percebido uma leve arritmia no coração.
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Talvez estivesse desidratada. É fácil se esquecer de beber água o bastante no inverno. Segurou com mais força o corpo forte e mais alto da filha. Ficou grata por poder se segurar nela. Essas semanas desde que Wendy White tinha sumido haviam sido perturbadoras para ela e Gene. Era um esforço não substituir mentalmente o rosto de Wendy pelo de Alice nos cartazes. Ela pensava muito nos White — não conseguia imaginar os pais tendo de ir trabalhar todos os dias, tendo de se preocupar em pagar as contas, com a filha sumida, tendo de acordar pela manhã sabendo que ela ainda estava desaparecida. Ela e Gene tinham mudado com o desaparecimento da moça, mas isso não parecia ter causado impacto tão profundo em Alice nem nas amigas dela. Claire já sentira isso às vezes, quando trabalhava na clínica — pensava “e se...” —, mas a diferença era que aquelas moças e mulheres que atendia estavam bem ali, estavam vivas. Sabia que a probabilidade de Wendy White estar viva era muito pequena. E sentia de novo o que sempre sentira na clínica quando via pacientes com lesões causadas por agressões sexuais. Era o que se fazia para evitar essas coisas que realmente importava. Não a coleta de provas e o processo de acusação. Não o tipo de coisa que faziam naquele momento. * * * Em casa, Gene pôs no forno o pão que ficara o dia todo descansando, e os três se sentaram à mesa, tomando chá de menta. Logo, Theo ligaria e Alice ficaria no telefone o resto da noite. Fazendo borboletas de origâmi, costurando ou jogando dardos contra o alvo amarelo e preto enquanto falava. A caminhada desanimara Claire até a alma. Estava sentada, com os pés no colo de Gene, e ele os massageava, as mãos ainda quentes de segurar a caneca. Foi então que ela começou a chorar. Tentou parar porque sabia que aquilo os perturbaria, mas não conseguiu. Não estava apenas triste. Estava exausta. Exausta de tentar administrar o sítio, de ficar isolada, de não ter com quem conversar a não ser a família ou Micky em caras ligações interurbanas. De não ter aonde ir, de não escutar nada de novo durante seis meses a fio — nem mesmo uma piada ou uma figura de linguagem —, de explicar o tempo todo o que dizia ou queria dizer, ou de pôr no contexto os lugares sobre os quais falava. Cansada de ser pobre já fazia quase vinte anos.
E sabia que estava exausta desde muito antes de todas as coisas que tinham acontecido em Haeden. Estava cheia da clínica gratuita e de pensar o
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tempo todo em como fazer o que era certo. De fazer o que era certo e acabar no mesmo mundo fodido. Um milhão de decibéis de Iggy Pop não ajudariam mais, mesmo com a graça e a compaixão pela fúria na voz dele. Estava velha demais para mergulhar na voz zangada de um homem para escapar. Gene continuou a massagear os seus pés enquanto ela chorava. Olhando para o rosto dela. E então ela soube, ao olhá-lo de volta, que ele entendia que ela estava cansada desde muito antes. Desde o nascimento, talvez, cansada de todas as coisas que a levaram a se tornar médica, de todas as coisas que aconteceram aos amigos e do que eles viam e ouviam e todo dia fingiam não ver nem ouvir. Cansada disso. — Não importa — disse ela, finalmente, com uma fúria informe crescendo. — Não importa o que fazem agora. Essa mulher já se foi. É o próximo rapto assassinato ou estupro. É impedir antes que aconteça. Se eu pudesse, mataria a porra de todos esses caipiras desconfiados e sexistas da cidade inteira. Ao ouvir isso, Gene estremeceu e balançou a cabeça. — Essa fala é de Ross. — Não — retrucou ela amargamente, as lágrimas correndo pelo rosto. — Sou eu dizendo o que eu sempre soube ser a merda do verdadeiro custo-benefício! O verdadeiro bem maior. Nenhuma clínica feminina, nenhuma busca, oração, nem aula de defesa pessoal vão impedir essas coisas. Quando o tipo de homem que faz algo assim for completamente eliminado ou viver temendo por sua vida — não só pelo seu tempo ou ganha-pão — se agirem, quando isso acontecer, teremos progresso. Antes disso, não. Antes, não. De que outra forma podemos impedir isso? Como? Claire inspirou e tentou relaxar, mas não adiantou. Cobriu o rosto com as mãos e chorou intensamente, o corpo encolhido, derrotado. Alice estava sentada, em estado de choque. — Mãe... — Inclinou o corpo e pegou a mão de Claire. Claire não disse nada durante vários minutos. E depois: — Desculpa querida, desculpa mesmo. Estou me sentindo sozinha, só isso. — E enxugou o rosto.
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— Talvez esteja viva — comentou Alice. — Ou talvez tenha fugido. Tenho certeza de que ela está bem, mãe. E se não estiver, vão levá-la para algum lugar, como a clínica gratuita, onde cuidarão bem dela. Claire assentiu e encarou a filha; viu a força e a sinceridade com que a menina tentava consolá-la. — Talvez sim, meu anjo. Desculpe. Sinto ter dito isso. Tomara que ela esteja bem. Alice olhou para além dela, para a outra sala, o olhar desfocado, pensando. Claire apertou sua mão e Alice voltou a olhá-la, e ela se sentiu péssima com o que viu no rosto da filha: pena, choque e algo que parecia quase vergonha. — Se as coisas estão tão ruins assim — disse Alice, baixinho —, por que você não me conta?
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Haeden, Nova York MARÇO DE 2009 ELE PUXOU O isolamento de trás da porta e se agachou diante de onde ela estava deitada no velho colchão de berço que fora guardado ali. Entregou-lhe um Gatorade. — Você perdeu mesmo o bronzeado, querida. Os braços dela agora estavam magros. Círculos azuis do tamanho de polegares brilhavam nítidos na pele pálida em torno dos ombros e dos pulsos. Ele desceu até a parte onde o teto era mais baixo e sentou-se ao lado dela, segurando a garrafa plástica para que ela bebesse. — Você precisa desses eletrólitos; eles fazem bem depois do exercício. Ela estava com uma erupção no rosto, talvez por causa do isolamento de fibra de vidro. Mas estava mesmo feio. O bafo dela estava terrível. Havia uma merda branca cobrindo as gengivas. Em algum momento, eles provavelmente precisariam escovar os dentes dela. Os dias de beleza de Wendy tiveram mesmo vida curta. Ele a observou engolir; a garganta magra coberta de pontinhos vermelhos em relevo, como o rosto. — Cara, não vou montar essa coisa de novo até você lhe dar um banho. — Então volte para a escola. Sobrará mais para todo mundo. — Não. Eu espero, se você puder me dar uma carona. Ele concordou. — Claro, cara, sem problema. — Ela num tenta nem falar mais, né mermo? — Ele passou o polegar pelos lábios rachados. — Ela num quer nem contar pra gente como foi o dia dela. Ele riu entredentes, concordando, e inclinou a garrafa para que ela tomasse o Gatorade até o fim. Procurou alguma coisa naquilo que ainda pudesse excitá-lo. Começava a desejar que ela não estivesse mais ali embaixo.
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— Está com fome, meu bem? Um homem precisa cuidar dessas coisas. É. Porque temos visitas esperando. — Ele puxou um saco de papel pardo que continha os restos do seu almoço e tirou um guardanapo branco, que enfiou na frente do sutiã dela. — É, só mais algumas visitinhas. — Ela começou a chorar. Quando acabassem, ele lhe devolveria seu suéter de moletom. — O que foi, amor? O que é que há? — Ele pegou uma embalagem de isopor branco e um garfo de plástico. Dentro, havia uma batata assada fria e um pouco de salada. Segurou para ela uma garfada de batata. — Se comer tudinho, tenho uma surpresa para você. — Ele a olhou de cima, apontou o queixo para baixo com um leve movimento de cabeça, agitou os cílios um instante para criar o efeito cômico. Merda. Ela estava tão fodida. Era ridículo. — Vamos. Assim é melhor. Essa é a garota que eu conheço. A garota que conheço adora comer. Não é? Ela mastigou e não limpou as lágrimas que escorriam pelo rosto. Ele notou que um dos olhos dela estava mais inchado do que o outro. — Você vai ficar muito contente quando vir o que mais temos aqui. — Ele tirou outra embalagem de isopor. — Brownies com manteiga de amendoim. Sei que você adora. Vamos, meu bem, alegre-se.
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Flynn EU SABIA QUE ela estava na cidade. Eu sabia que ela estava na cidade. Ela estava na cidade. Ela não tinha sumido. Categoricamente, disse isso bem na cara dele. Bem na cara de Dino. — Vocês revistaram a propriedade dos Haytes? Algum de vocês revistou a propriedade dos Haytes? — Meu Deus, Flynn. Dá pra relaxar? Parece que você está tendo dificuldade com esse caso. Quem você acha que vem pagando todos os anúncios “Orem por Wendy”? — Eu sei quem. O jornal é meu. Mando-lhes a conta todo mês. Já há cinco meses. Revistaram a propriedade dos Haytes? A resposta é não, não é? É não. É não, não é? Fala logo que não. Em voz alta. Diz em voz alta. — Não revistei, não, Stacy, nem vou fazer isso, a menos que tenhamos provas concretas. Já importunei demais aquela boa gente. — É? É? E como seria isso? O que seriam provas concretas? Ela não voltou do trabalho; ela estava passando todo o tempo livre com o namorado Dale Haytes, e depois ela não voltou do trabalho. Não apareceu para trabalhar. Tudo na vida dela é exatamente igual desde que tinha 5 anos, caralho, só que ela tem um novo relacionamento sério com alguém mais velho e fora da sua esfera socioeconômica. Ele é a única variável. Dino ergueu as sobrancelhas e suspirou numa demonstração exagerada de paciência. — Stacy — disse ele, com uma voz tão relaxada que me fez cerrar o punho dentro do bolso do moletom —, conversamos com Dale. Foi ele que prestou queixa. Foi ele que ligou para os pais dela. Foi ele que cuidou de tudo. Não vou orientar essa investigação por boatos. Eu o vi; nunca vi ninguém tão transtornado, quase tanto quanto os pais dela. Disse que ela devia ter ficado com medo de se casar com ele. Ele estava em pânico naquela noite. Ele acha que alguma coisa horrível aconteceu com ela porque provavelmente ela quis se afastar para arejar um pouco a cabeça, e ele acha que a culpa é toda dele. Vem aqui e fica se culpando quase todo dia.
— Quando? A caminho de casa, depois das partidas de golfe? Por que ela ficaria com medo de casar? Porque só tem 20 anos? Duvido muito. A mulher do
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irmão dela tinha 18 quando tiveram o primeiro filho. Para onde ela iria se estivesse com medo? Para casa. A menina morava sozinha havia menos de seis meses, e na mesma rua que o pai e a mãe. Ele balançou a cabeça e me lançou um olhar claramente cheio de pena. — Dale vai jogar golfe para tentar manter a cabeça no lugar. O camarada está se sentindo muito mal. Pare com isso. Ele joga golfe para se ocupar porque a coisa toda mexe demais com ele. Ele é um belo de um gordinho, que também mora com os pais, Stacy. Não é um cara que anda por aí fazendo maldades com a moça por quem está apaixonado. Conheço aquela família desde que eu era criança. Estou lhe dizendo: você precisa se afastar um pouco do caso. Mas para mim não havia afastamento possível. — Você está entediada — foi o que Brian, do City Paper, me falou naquela noite, ao telefone. — Sobre o que mais você escreve? Achei que você tinha ido para aí escrever sobre laboratórios de metanfetamina ou alguma merda ambiental. Um caso perdido e uma paranoia sobre caipiras que se olham enviesado foi tudo o que você conseguiu. — Não é um caso perdido; é um caso obstruído. — Conheço esse tom de voz — disse ele. — Já tem mapas na parede do apartamento? — Vá se foder, Walsh. — Já começou a escrever reportagens que não serão publicadas? Quantas já tem? Tem um metro e meio de matéria extra espalhado aqui e ali? — Vou usar em algum momento. — Estou falando sério, pense bem na última vez em que trepou. Talvez você se sinta menos obcecada e com a cabeça mais limpa se der uma trepadinha. Quando foi, Stace? — Não sei. Você deve lembrar, não é? — Ai, meu Deus! Sério? — Não preciso relaxar. A última coisa de que preciso é relaxar. — Ora, vamos, Flynn Gostosinha.
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Fiquei na porta da sala e tomei uma terceira garrafa em goles compridos enquanto escutava Brian e pensava na bunda dele naqueles jeans rasgados no piquenique da redação do jornal. Pensava em como ele tirara a camisa. Havia mapas do município inteiro presos na parede. Pilhas de entrevistas transcritas, riscadas numa confusão de marca-texto amarelo, espalhadas pelo chão. O lugar estava uma bagunça. — Tenho medo que ela esteja viva — disse a ele, e soube que nunca teria dito isso se não tivesse bebido. — Toda noite, fico com medo de que ela seja morta porque não foi encontrada. E não sei onde ela está cara. Mas ela está nesta cidade. Eu sei disso. Ele ignorou o que eu disse. — Preste atenção. Esse lugar é uma merda do caralho. E tenho certeza de que agora você já convenceu todo mundo de que é uma frígida do cacete que nunca chorou na vida, nunca nem sorriu para um bebê. Mas você é um animal. Um animal, tá bom? — Ele deu um risinho entredentes. — E não faz bem aos animais ficarem presos, sozinhos e bêbados, e comerem porcaria e escutarem gravações de entrevistas de jecas inarticulados e chorosos. Está me entendendo? Você vai precisar de um tempo para relaxar, essa moça estando viva ou morta. E você sabe disso. Saca o que estou falando? Está me entendendo, Flynn? — Não. — Ora, você precisa sentir alguém. Precisa de peso contra o seu corpo, e oito horas de viagem é tempo demais para mim; então sugiro que você dê um jeito nisso. — Vou pensar no assunto. — Ótimo. Você sabe que a gente está com saudades de você, cara. Vai dar tudo certo. A situação vai melhorar. Não se envolva nessa merda; escreva a sua grande reportagem e, porra, volte para casa, para Cleveland. — E se essa for a grande reportagem? — Não é — disse ele. — Te ligo mais tarde.
Desliguei o telefone e abri a geladeira, mas não encontrei mais nenhuma cerveja. Sabia que Brian tinha razão. Escrevera sete reportagens sobre esse caso e sobre outros parecidos que jamais publicaria, além da minha cota de textos fofinhos e da cobertura de eventos comunitários. Estava com a casa cheia de reportagens sobre mulheres sequestradas. E fazia semanas que não ouvia nada
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além das fitas de entrevistas. Passei-as para o meu iPod. Fazia cinco meses que só ouvia aquilo no meu carro. Estava vivendo dentro do caso e tinha de sair de lá, pelo menos por algum tempo. Prendi o cabelo com um nó, peguei o moletom e andei dois quarteirões pelo nada que levava à cidade, passei pela redação e entrei no Rooster. Era mais tarde do que eu pensava; estava quase na hora de fechar. O bar se encontrava praticamente vazio, só restava a banda de bluegrass que tinha tocado, alguns fregueses regulares e o cara de olhar maluco com uniforme de motorista de ambulância; então me sentei ao lado dele. Já o vira imobilizar uma perna quebrada num jogo de futebol da escola secundária e tirar um bêbado de um amontoado de metal esmagado que antes havia sido um carro. Mas nunca conversara com ele realmente. Pedi uma dose dupla de uísque Jameson e depois perguntei ao Sr. Uniforme se ele sempre bebia em serviço. — Já terminei o serviço. Só não troquei de roupa. Ainda. — O turno acabou agora? — Não. Acabou à tarde, mas dormi logo depois e não troquei de roupa. — Na verdade, você só gosta muito do seu uniforme, não é? Ele ergueu os olhos para mim e sorriu, e foi espantoso. Consegui sentir um mundo inteiro de dor, exaustão e orgulho recuar e então descansar pesado sobre mim. Não estava preparada para aquele olhar. Não vira esse tipo de expressão num ser humano desde que me mudara para essa cidade perdida no meio do nada. — Gosto mesmo. — Ele concordou com a cabeça. — É. Você gosta do seu trabalho? Então vi o que havia nos olhos dele. Pareciam embaçados. Revestidos de algo fino e brilhante. Algo que fazia doer ao se olhar através daqueles olhos. Estava bêbado e enlouquecendo, como eu, e tudo aquilo estava sendo derramado. Tive de me convencer a não imprimir significado demais no seu olhar. Eram apenas olhos. Embaçados, cansados, bonitos. — Gosto, sim, do meu trabalho — respondi. — Adoro o meu trabalho. Não poderia fazer outra coisa.
— Nem eu, cara. — Ele sorriu. — Se você usasse uniforme, provavelmente o usaria o dia inteiro também. Espere. Não usa? Acho que já vi você com essa roupa antes.
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Ele estava me fazendo rir, talvez de verdade ou por causa do uísque, e não importava a razão, porque eu conseguia sentir algo além de um nó no estômago. Então, ele falou: — Li aquela coisa que você escreveu. — Ah, é? — Riu de novo. — Meio difícil ler o jornal de outra forma. Sou só eu. — É isso aí, cara. Eu entendo essa merda. Sou eu sozinho também no CBV. Troco de turno com os caras de Elmville. Fora isso, sou eu, eu e eu. Durmo com o receptor de rádio da polícia ligado. — Meu Deus. Eu também durmo com o receptor de rádio da polícia — disse a ele. — Na verdade, é meio reconfortante. Ele fez que sim, como se fosse evidente. Então fechou os olhos um minuto, e nesse instante percebi que ele estava mesmo bastante bêbado. — O problema de ser o único no serviço — disse, finalmente — é que fico com medo de alguém atropelar um garoto no meio do nada... e que não haja celular, ou então que haja um celular e eu esteja em algum lugar longe demais, cuidando de uma unha encravada, ou de chegar lá, mas não rápido o bastante. Chego lá e é tarde demais. Sabe como é? — Ele me encarou e seus olhos estavam úmidos. — É — completou. — Você sabe. Claro que sabia. E não queria falar disso. — Mas foda-se! — Ele sorriu de novo o seu grande sorriso pateta. — A gente se acostuma. Mas realmente não é bom para o sono, entende? Seria bom ter alguma ajuda, mas, que merda, acho que a gente simplesmente faz tudo assim, né? Entende? A gente é feito assim. — Vamos sair daqui — disse eu.
Ele se levantou, pegou a curta jaqueta azul na cadeira, passou um braço pelas minhas costas e saímos do bar, sem dizer nada durante dois quarteirões, e não dissemos nada quando seguimos uma trilhazinha até a beira do rio debaixo da ponte da Rua Rabbit Run. E eu não disse nada quando desabotoei as suas calças e abri o zíper e ele já estava duro, me apertando contra a lateral da ponte. Eu o segurava com força contra mim, segurava a sua bunda, sentia os músculos e tendões, os músculos da coxa me apertando contra a parede e o estômago quente apertando os meus seios. Ele cheirava a sabonete antibacteriano, a
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álcool, amaciante e suor. Sua boca estava sobre a minha e as minhas mãos no seu cabelo, no pescoço, no peito, dentro da camisa para sentir o seu corpo magro e forte. Escorreguei pela parede e nos sentamos nas pedras frias, as costas dele contra a ponte, nos beijando, e ele dava uns gemidos baixinhos. Isso me fez ficar em pé e tirar as calças, e então o empurrei levemente para trás, contra as pedras, a lama e o mato e montei nele com uma das mãos empurrando o arco de concreto. Ele pegou a minha cabeça e o meu pescoço na palma larga e então nos movemos devagar, desconfortáveis, os meus joelhos contra as pedras, até que ele se sentou e se inclinou contra a ponte, me segurou no colo, beijou o meu pescoço. Respirando firme, numa exalação alegre e incrédula. Beijei a boca dele, enquanto ele segurava os meus quadris e me puxava sobre ele; então eu o senti de uma vez na base da espinha. E eu me contraía e o fodia mais depressa, mais depressa, até que ele segurou o meu quadril com mais força e me empurrou para cima e para fora dele, ofegante, e gozou na lama, nas minhas coxas. Depois ficou rindo, respirando, bufando. Estreitei os olhos sob o luar para procurar minhas calças, desvirei-as do avesso e as vesti. Até eu conseguir me ajeitar, ele estava em pé, o zíper fechado, o cabelo despenteado, sorrindo, encostado no arco de concreto. — Venha cá — disse, preguiçosamente, e me estendeu os braços. Fui até ele, pus o rosto no seu peito, balançando a cabeça, rindo, mas realmente espantada. Todo o meu corpo tinha uma sensação boa, as minhas costas, tudo. Os ombros. As coxas. As tripas. O maxilar. Ele me segurou junto ao peito, inclinado ali, beijou o alto da minha cabeça. Cheirou o meu cabelo. — Eu me chamo Tom Cutting — disse, baixinho. — E nesse exato momento tenho quase certeza de que vim a este planeta para trepar com você. Agradecida, me encostei nele e senti o calor da sua pele. — É melhor eu voltar para casa — respondi. — Ah, é? — perguntou ele. — Não quer deixar o rádio esperando, preocupado? Subimos a margem juntos e ficamos um minuto na ponte, olhando o rio. Disse o nome dele entredentes, enquanto ia para casa. Em parte, para me lembrar. Em parte, para ouvir como soava
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______________________________________________ PROVA P47911 16/04/09 9h28 Sarg. Anthony Giles 12 de dezembro de 2008 Querido Theo, Você estava certo sobre aquele livro de Carolyn Merchant. Principalmente a coisa dela dizer que a natureza existe em três estados: liberdade, erro ou servidão. Como vai o futebol? A natação está fodérrima e estamos mais rápidas do que nunca. Essa temporada vai ser nossa! (Espero.) Vai ter competição na primeira parte das suas férias e talvez você veja o que quero dizer com rápidas. Temos músicas muito maneiras para treinar também. Os Yeah Yeah Yeahs para o aquecimento e para enlouquecer os peixinhos de Elmville. E os Distillers (escolha minha, com a sua ajuda). Outras notícias... Pensando muito sobre aquela última noite na barraca? Eu, sim. Gostaria de arranjar um namorado de verdade aqui; mas o estado natural dos caras de Haeden parece ser “errado”. Quando eu e você adormecemos juntos, sempre vem aquele momento em que acordo e nem sinto você me abraçando nem eu abraçando você. É esquisito. É como se eu estivesse sozinha. Deve haver alguma razão nas nossas respectivas morfologias que causa isso. A natureza é cheia desses números complementares. E os nossos se encaixam. Ou, como Claire diria: talvez você esteja apaixonada por ele. RÁ! Também não consigo parar de pensar na conversa que tivemos sobre corrigir erros. (Foi por isso que você quis que eu lesse Death of Nature?) Também penso seriamente na ideia de que “o mundo não tem nada a aprender com o mal” e tudo aquilo que você leu na Bíblia Gnóstica naquela noite na barraca — ou aquilo foi só para me fazer entrar no seu saco de dormir? E você tem razão. É difícil acreditar que toleramos as coisas que toleramos. Como se ser uma boa pessoa fosse fazer tudo isso sumir. A barraca está desarmada e debaixo da cama e não há qualquer gnóstico na cidade.
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Ainda não acharam aquela moça. Eu não devia chamá-la de aquela moça, porque era nadadora e eu a conhecia, mas “por alguma razão” eu tenho chamado ela assim. Na semana passada, Gene, Claire, Ross e eu percorremos a pé mais de 10 hectares de campo com um monte de gente, procurando por ela. Estava muito frio. E fiquei contente que não a tenhamos encontrado, porque acho que isso significa que ainda há a possibilidade de ela ter fugido. Claire ficou muito nervosa com aquilo. Gosto de pensar que ela deve ter ido para algum lugar mais interessante. Mas no jornal os pais dela disseram que ela nunca quis sair de Haeden. (Sei, é bizarro.) Ela trabalhava no Alibi. Não sei como essa gente não sabe onde ela está. Ninguém mais sumiu da cidade. Acho que ela podia ter uma vida secreta ou pode ter ido embora de carona. Megan a conhece bastante bem e é amiga dos amigos dela. E também alguns alunos do último ano que fazem parte da equipe de natação. E se lembra da prima dela, Donna White, do ensino fundamental? Ela era muito legal. Essa merda é uma coisa bem esquisita, cara. Só me lembro de Wendy em poucas ocasiões, coisas da natação e quando Ross nos levou ao Alibi (noite de bluegrass). Queria taaaaaaaaanto que você estivesse aqui. Estou aprendendo a andar de monociclo. Gene o fez com a ergométrica velha. Vou lhe mostrar quando você vier. Bem fácil, embora eu ainda tenha de pedalar depressa. Talvez as suas pernas sejam compridas demais. Megan não consegue. Fica apavorada quando começa a se mover e tira o pé do pedal. O que anda acontecendo com a fulaninha? Como sua consultora sentimental, aconselho você a parar imediatamente de ficar futricando e simplesmente chamá-la para sair!!!!! T, você sabe que ela vai dizer sim. Você é tão lindo. Ano passado talvez não... Mas depois do verão? Vamos lá. E você é engraçado! Por falar nisso, acabei o seu chapéu de pelo de coelho com orelhas de cachorro. Elas se dobram — mas só nas pontas. Uma técnica extraordinária, nunca tricotei nada tão grosso. É à prova de balas. O ponto parece aquele que usamos para fazer a caverna de dinossauro debaixo do sofá. Queria ficar com ele. Mas combina melhor com o seu nariz. Sinto muitas saudades suas, Tea-ho. Mal posso esperar pelas férias. A escola está muito chata e tenho umas ideias boas para o Circo, mas preciso de você aqui porque você é alto e elas me envolvem em pé em cima de você. E, não, para responder à sua pergunta, meus pais não vão me dar um computador — mas tudo bem.
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Além disso! Estou praticando tiro ao alvo com Ross (a pequena Glock). Tãããããããão melhor agora que nem é mais engraçado, embora eu não saiba como enfiar isso no meu Plano de Vida Abrangente (o PVA fica cada vez mais enrolado) e Gene detesta toda essa coisa de armas. Então isso causa horas de debate sobre a natureza do poder. C-H-A-T-O. Eles ainda ficam de blá-blá-blá sobre Hannah Arendt. G&C dizem que eu devia arranjar uma câmera para “disparar” e me concentrar em “me tornar a mídia” (fico tão sem graça de dizerem “tornar-se a mídia”, que nem queria lhe escrever essa parte). Uau, que máximo! Virarem “novos” fazendeiros funcionou mesmo com eles, e, realmente, mudou o mundo também!!! ARGH!!! Tanto faz. Sei que você os adora. Mas eles não são seus pais. Onde estão os seus pais, aliás? (Eu sei, não tem graça.) A outra parte do PVA é fazer trabalho voluntário no Centro Médico de Haeden. ISSO é realmente divertido. Você deveria experimentar neste verão, quando estiver aqui. Podemos chegar lá de bicicleta em, digamos, dez minutos — você pode até pegar a trilha da nossa casa direto até a 24 e pronto, chega lá. No geral, é um trabalho de bosta — mas a gente usa jaleco e assiste ao que todo mundo faz. Claire não para de me perguntar se estou angustiada com a história de Wendy e se é por isso que ando atirando e pensando em estudar medicina. E depois disseram que acham que estou zangada com alguma coisa. Claire provavelmente tem um pouco de razão, de certo modo. Mas, meu Deus, e se algum dia eu tiver de caçar para comer? O que ela e Gene fariam se precisassem? Perguntariam ao bicho se podem matá-lo? Além do mais, foram eles que me deram os livros de Ward Churchill e Derrick Jensen! Mas agora Gene diz que Pacifismo como patologia “tem falhas”. (Você já leu Endgame, de Jensen? É o que tem mais falhas, na minha opinião. Ele acha mesmo que os hackers vão salvar o mundo e que todo mundo vai explodir represas em prol dos salmões. Sério? Sério mesmo? Em prol dos salmões e não em prol da humanidade?) E tudo aquilo de Simone de Beauvoir e Monique Wittig e Naomi Wolf que me deram, tipo, durante a porra do ensino médio? Tá, tudo bem — provavelmente ninguém deveria passar pela puberdade sem isso, mas, sério, tente aplicar esses modelos conceituais numa aula de história ou de educação para a saúde do sexto ano. Estou de saco cheio disso. Estou de saco cheio de ler sobre coisas. Agora só quero nadar e brincar de mágica e atirar. Você é a única pessoa com quem quero conversar sobre livros. Vou dizer. Estou sozinha. Totalmente sozinha.
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Então é isso que está me acontecendo, Toupeirinha. Desculpe reclamar assim. Mal posso esperar para ver você. Boa sorte com a sua Keira Knightly. Ela vai se apaixonar por você se você lhe contar aquelas piadas de fio dental. Espero que goste das fotos de beijo. Escreva logo. Chapéu-de-cachorro-a-caminho. Amor. Amor. Amor. Amor. Alice.
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Haeden, Nova York 3 DE ABRIL DE 2009 ELE NÃO SABIA de onde tirara a ideia, mas era como se sempre tivesse estado lá. Não como se tivesse surgido, mas como se tivesse simplesmente sido descoberta. Como se estivesse quieta, lá no canto, com um lençol jogado em cima. Ele riu, então, dessa ideia. “Parece muito com alguém que conhecemos, não é?”, disse em voz alta, esperando que a luz mudasse. Também não sabia se havia planejado, mas, quando começou, tudo pareceu conhecido, como se pudesse adivinhar o que aconteceria e o que fazer depois. Dava uma sensação de prazer maior do que qualquer outra coisa já lhe dera. Se tivesse planejado, teria tido que pôr as coisas em ordem — mas as coisas já estavam lá. Tinha espaço, privacidade, o barulho da fazenda, tranquilizantes para animais, alguns amigos e parentes interessados na mesma coisa. Isso não é um plano, é um convite. Estava realizando um sonho. Era como fazer uma viagem a Cancún ou às Ilhas Virgens. Deu uma risadinha. O sol começava a nascer. Se tinha planejado, tinha planejado do mesmo jeito que se planeja uma viagem. A gente fala sobre isso com os amigos. Conta piadas. Diz que queria ter essa sorte. Toma cuidado para não contar a quem vai ficar com inveja ou ser grosseiro. Talvez leve alguns amigos junto com você. Rapazes que a gente adora porque adoram as mesmas coisas. Uma paradisíaca viagem de golfe ou de caça, pensou. A gente olha folhetos exóticos. Então, quando toma coragem suficiente, a gente vai. “A. Gente. Vai”, cantou para si e para Wendy. Estava se cansando de dirigir. Se não fosse pelo respeito à família dele e dela, a jogaria nua num dos poços de esterco ou em algum lugar fora da cidade. Não queria que o pai dela pensasse que ainda estava viva em algum lugar ou que tinha simplesmente fugido. Queria que desse para reconhecê-la. Que soubessem que ela não o havia largado. Ela lhe fora levada. Fora tirada deles. Estava morta. Olhou por sobre o ombro para o lençol no piso do pequeno banco traseiro da picape e pensou, distraído, que estava contente de ter uma cabine dupla.
Planejara, mas não inventara. A ideia daquilo estava lá o tempo todo, assim como o conhecimento de que nunca seria pego: assistira a filmes e lera notícias sobre isso a vida toda. Não era nenhum tarado, pedófilo ou negro para que a polícia saísse procurando, nem um maluco que perseguia prostitutas, nem um velho secretamente pervertido. E não era nenhum ricaço em quem
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todo mundo prestava atenção. Ele era apenas um cara que levantara o lençol para ver o que havia embaixo. Mais corajoso que a maioria, como a mãe sempre dizia. Finalmente, decidiu-se pela vala perto do bosque Tern porque estava ficando cansado e queria parar no Savers Club para tomar um café antes de começar o dia. Sentiu-se meio triste de abandoná-la, enquanto ia embora. Triste por ela, num segundo velocíssimo que viajou pelos seus intestinos e depois o deixou meio excitado. Lembrou-se do efeito que os olhos dela tinham sobre ele, punham algo nele. Desejou sentir de novo aquela exata sensação que os olhos dela causavam, só de se lembrar, mas não conseguiu, e isso era triste. Naquele momento, sabia com certeza que tudo se amorteceria. Nada jamais seria tão sensual, engraçado e assustador quanto os olhos dela, quanto os olhos dela se estreitando no sótão com a boca sangrando, dizendo por favor. “Por favor”. Ele diria a si mesmo com a voz dela. “Por favor”, ele sussurraria pelo resto da tarde.
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Gravação em áudio: Registro de Emergências — Condado de Haeden 8h38 02/04/09 — Nove-um-um, posso ajudar? — Pode. Oi. Acho que é uma situação de emergência. Estou agora na Rodovia 34, perto do Savers Club, em Haeden. — Onde é o acidente? É um acidente de trânsito, madame? — Não, não. Acho que vi uma pessoa ferida junto do estacionamento. Parecia, não tenho certeza. Queria ligar só para prevenir porque não podia parar, estou atrasada para uma reunião, mas parecia que havia alguém caído junto ao estacionamento perto daquele bosque. Não sei. Pode ser algum lixo que alguém jogou. — A senhora diz que é uma pessoa? — Acho que é. Parece uma velha, talvez alguém estivesse andando e tenha caído. Talvez alguém que saiu para caminhar de manhã cedo. Ah. Talvez tenha sido atropelada! Geralmente não saio de carro tão cedo. Acho que ela pode ter caído. Não deu para conferir. Acho que alguém devia conferir. Tenho quase certeza de ter visto a mão de uma pessoa estendida na beira do estacionamento. Acho que alguém, talvez uma senhora, se machucou. Eu devia ter parado, mas estou bem atrasada. Alguém devia dar uma olhada lá. Na verdade, tenho certeza de que alguém devia ir lá conferir. Tenho certeza mesmo de que vi um braço. Parece que alguém caiu no acostamento. — Vamos mandar alguém até lá. — Ah, ótimo. Ótimo. Agora que estou pensando melhor, tenho certeza de que era um braço. Precisam dos meus dados? Precisam do meu telefone? — Já temos, madame. Mandaremos alguém até lá.
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Flynn HAVIA VIOLETAS À beira do bosque, eu me lembro. Violetas e lírios-do-bosque vermelhos. Dava para ver a ambulância aproximando-se a distância, voando para o local só com as luzes acesas, sem sirene. Fiquei ao lado do corpo dela, observando. Havia muitas coisas que dava para dizer imediatamente que estavam erradas. Não havia legista, por exemplo. E Giles tirava fotos com uma camerazinha digital quadrada. Aquela que eu vira ele usar no jogo de bola dos filhos. A ambulância chegou ao nosso lado, com o motor barulhento sugando o silêncio. Tom e um rapaz que parecia ter uns 20 anos desceram e foram até a traseira para tirar e montar a maca. O rapaz estava visivelmente cheio de medo e adrenalina, mal se continha na própria pele. Tudo o mais, dali para a frente, foi só espera e formalidades. Uma série de ações que precisavam ser realizadas. Tom me olhou, eu lhe acenei com a cabeça e continuei observando, sabia, sem saber nada, que estávamos ambos desligados, em outro lugar. Ele esticou o saco preto no chão ao lado do que não podia mesmo ser descrito como um túmulo.
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Alice 5 de abril de 2009 Theo, Eis a notícia colada abaixo. Também lhe mando o jornal inteiro. Queime isso quando terminar e me ligue. Um corpo encontrado ontem de manhã numa vala de drenagem na extremidade leste do bosque Tern, no povoado de Haeden, foi identificado como pertencendo à moradora Wendy White, de 20 anos, desaparecida desde novembro de 2008. A polícia e os socorristas encontraram os restos mortais depois de atender ao chamado de uma motorista na Rodovia 34 que disse acreditar ter visto alguém ferido à beira da estrada entre o bosque e o estacionamento do Savers Club. Wendy White desapareceu no outono passado depois de trabalhar até tarde num bar do povoado. Alex Dino, chefe de polícia de Haeden, disse que uma investigação completa está em andamento. Por enquanto, a polícia afirma não ter pistas que indiquem a identidade do assassino. — Estamos seguindo todas as linhas de investigação — afirmou Dino. — Estamos trabalhando com a polícia estadual e com investigadores de Elmville, e examinaremos as amostras de DNA. Neste momento, essa é toda a informação que temos. Provavelmente vou te ligar antes de você receber isso. Preciso falar com você. É sobre isso que estivemos conversando. Hoje, quando fizeram um “minuto de silêncio” por ela na escola, entendi o que realmente estava acontecendo. Precisamos de mais um minuto de silêncio? Ai, caralho, meu DEUS! Sabe o que está acontecendo? Sei que sabe. Tem de saber.
Acho que caí pelo buraco de toda a lógica do mundo inteiro e agora consigo ver que nada se sustenta e sinto que vou continuar caindo. Era com isso
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que Claire estava tão nervosa. Com o que todos veem e do que depois se escondem, só baixam a cabeça. Leia o jornal. Leia todo. Stacy falou sobre o assunto em todas as matérias, em cada uma delas. Todas as garotas da escola estão apavoradas e confusas, porque o bosque fica muito perto da escola. Como se a merda do bosque tivesse feito isso. Quero mandar que calem a boca. CALEM A BOCA. E não fiquem com medo. O medo faz a gente andar em círculos. Preciso ligar para você. Precisamos dar um jeito de entender isso. E depois Ross me diz que é por causa dessa coisa toda que é bom eu ser tão boa de mira no caso de alguém querer foder comigo. Cuméquié? Como se eu saísse por aí armada. Foi a primeira vez que realmente o vi. Sei que você o ama e eu também, mas isso me deixou muito brava. Parecia um veterano de guerra velho e estúpido que fez coisas feias e agora estava “me protegendo” ao me ensinar a atirar porque acha que posso redimi-lo pelo que fez. Foi como se eu conseguisse ver TODAS as diferenças que nunca soube que existiam. Mas sou uma imbecil de merda por não ter olhado com atenção suficiente. Por não ter entendido tudo com os livros que Claire me deu. Então veio essa foto da vala no jornal, com as fitas da polícia em volta. O fato de porem esse lugar, esse túmulo, no jornal, onde não havia nenhum jeito de ela dizer “Não, por favor, não tirem a minha foto”, me deixou furiosa. Isso me lembrou aquela vez, que já contei a você — aquele panaca do Jim tirou fotos da Trina com o celular quando ela estava dormindo, depois de transarem, e mandou para todo mundo. Dava para imaginar Trina naquele túmulo no bosque. Então o diretor chega e diz toda aquela merda devota do caralho, que ia haver um minuto de silêncio. Sério? Mais silêncio? E todos esses meninos que agora querem nos levar para casa. Como se fosse para a gente achar que eles não estão a fim de trepar nem quisessem a chance de brigar entre si e não usassem a gente como desculpa. Ou para provar que não são ruins. Ser príncipes ou heróis. Você ia vomitar se visse. É tudo o que você sempre detestou. Isso me deixa supertriste por você, ver essas coisas. Amo tanto você e fico tão triste de você ser um garoto, e que por causa do seu corpo você pode ser confundido com uma coisa que é só (T)erro(r). É uma camuflagem injusta que eles usam, Toupeirinha. Não é justo com nenhum de nós dois. Não quero ter nada a ver com isso.
Durante aquele minuto de silêncio, tive vontade de berrar a plenos pulmões. Queria derrubar a merda da minha carteira e quebrar todas as janelas daquela sala de aula. Mas é claro que fiquei ali sentada e não disse nada.
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Não consigo mais escrever. Vou para o celeiro fazer tração na barra. P.S. O Príncipe do Laticínio talvez tenha mais uma oportunidade de se revelar como ser humano real, alguém que acho bom estar de brincadeira. P.P.S. Queime isso.
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Flynn — QUE MANHÃ horrível, hein? Ergui os olhos e Cutting estava lá, segurando umas flores azul-claras. E disse: — Estavam crescendo no campo em frente ao CBV. Mas achei que ficariam melhores cercadas de computadores e pilhas de papel. — Ele pousou o vasinho na minha escrivaninha e eu imaginei o bosque. Não era a pessoa que eu queria ver naquela tarde, visto que os nossos dois últimos encontros haviam envolvido corpos parcialmente vestidos em estados violentamente contrastantes. Abri a gaveta de baixo da escrivaninha e tirei uma garrafa de uísque Old Thompson e dois copinhos; ele sorriu e comentou: — Achei que isso era um estereótipo. — Está de sacanagem? É uma das noções mais exatas do público sobre o funcionamento dos jornais. Servi-lhe uma dose, tomei a minha e então fiquei contente de ele estar lá para que eu pudesse terminar a reportagem. — Era Wendy — disse eu. Ele concordou com a cabeça. — Os pais dela identificaram o corpo. — É oficial agora? — É. Desde que falássemos do funcionamento concreto do nosso serviço, eu me sentia ótima, não sentia nada. Achei que talvez eu me sentisse bem, ponto. Que só queria que tudo se resolvesse e não me importava como se resolvesse. Desde que todos os detalhes saíssem, fossem publicados. Ótimo. Não achei Wendy e Wendy está morta. É outro caso que pode ser arquivado. É outro corpo que Tom Cutting embrulhou. Foda-se. Servi outra dose para nós dois. — O que mais você fez hoje? — perguntei a Cutting.
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— Foi um dia bem cheio, na verdade. Um fazendeiro teve um infarto logo depois do almoço. — Sobreviveu? — Vai ficar bem. Um dos caras que trabalham para ele telefonou enquanto estava acontecendo. Cheguei a tempo, mas por pouco. Ele precisa perder uns 20 quilos. Vão dizer a ele que largue o bacon. O que você fez? — perguntou. Não respondi porque era óbvio, porra. — Você teve de escrever só sobre esse assunto? — perguntou ele. Alguma coisa na aparência dele me incomodou, como se estivesse sem graça, envergonhado. Pelo menos, tirara o uniforme. — Onde estava o legista, ou sei lá como dizem por aqui? — Estava trabalhando fora da cidade. — Trabalhando? — Sabe, neste condado, legista é emprego de meio expediente. — Eles sabem a causa da morte? — Não sei o que a autópsia vai descobrir. — Ele desviou o olhar de mim e apertou com os dedos a ponte do nariz, entre os olhos. — O que lhe pareceu? — perguntei. — Não olhei direito depois de desembrulhar o corpo. Com certeza, houve trauma. Mas a causa da morte, não sei. Pode ter sido overdose. — Overdose. — É. — Não combina com o histórico dela. — Não, não mesmo. Não combina — concordou Cutting. — Havia hematomas, mas não posso dizer o que isso significa.
— Por que não pode dizer o que significa? — Eu estava ficando cansada das respostas curtas. Por que estava sendo cauteloso? Parei de pensar na pergunta e olhei para ele por um minuto, procurei a razão de estar sendo contido comigo. Algo no meu corpo me deu uma razão que não consegui pescar
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direito. Senti um segundo de vertigem, um nó na boca do estômago e dei outro golinho rápido na minha bebida. — Não posso dizer com certeza. Não sei se os hematomas contribuíram para a morte dela. Não vi nenhum trauma significativo na cabeça nem no tronco. — Acha que ela foi assassinada? — Acho. É claro que acho. Ou posta numa situação em que a morte era um resultado provável. — Então por que não pode dizer o que isso significa? — Porque você me perguntou a causa da morte. Assassinato não é uma causa de morte. Concordei. — Estou pedindo para você fazer uma suposição. Ele estendeu a mão, tocou as pétalas de uma das flores que trouxe e percebi que tentava não pensar naquilo de jeito nenhum. — Não sei o que vão encontrar — disse. Tentei, mas não há nenhum jeito de perguntar “Acha que ela foi morta aqui na cidade?” de um modo mais suave. Então, simplesmente perguntei. — Provavelmente. Acho que morreu quase uma hora antes de chegarmos lá. Havia muita lividez. Escutei e digitei enquanto ele falava e depois servi outra dose. O troço era horrível, mas não importava. — É comum o legista não aparecer? — Por aqui? É, sim — disse Cutting. — Ele tem outro emprego. — É, você falou. Onde? — Ele é veterinário de animais de grande porte em Elmville. — Posso ver as suas anotações?
— Estão no hospital. Não tenho cópia, senão lhe dava — respondeu ele. E achei que soava bastante sincero, mas talvez eu estivesse bêbada. Concordei de novo. Precisava de um copo d’água e terminar as matérias. Toda a pesquisa,
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todo o trabalho, encerrados numa bosta de um único dia inútil. E se eu não tivesse saído para trepar com o Sr. Uniforme na noite anterior, teria tido mais doze horas para encontrá-la, e se a tivesse encontrado, ela estaria viva. Estava morta há uma hora quando chegaram, só uma hora. E agora só restava uma coisa a escrever. — Que horas você sai do trabalho? — perguntou Cutting. — Gostaria de fazer um jantar para você. — Está com apetite? — Ajuda ter alguém para quem cozinhar. — O queixo dele se inclinou enquanto me olhava sem graça por entre os cílios. — Sabe, é bom comer quando a gente vai beber ou trabalhar. — Já ouvi isso em algum lugar. Tenho de encerrar o jornal. Mas acho que consigo fazer isso nas próximas duas horas. A maior parte das matérias dessa semana já está escrita há meses, mesmo. — Não tem problema. Pode vir quando terminar. Eu só... Não tem problema se não quiser. Estou me sentindo meio esquisito... Sei como são dias assim. Olhei para ele e li sua expressão, a esquisitice daquilo tudo. Mas não sentia o mesmo que ele. Eu era uma observadora. Estava bem, contanto que observasse e escrevesse. E não trocaria isso por “sentir” com ele naquele dia. Pensar que os “sentimentos” dele a respeito disso poderiam ter qualquer coisa a ver com os meus. Então, antes que eu o subestimasse, ele falou: — Para mim, Stacy. Eu sei como dias assim são para mim. Não para você.
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______________________________________________ PROVA P47912 16/04/09 9h40 Sarg. Anthony Giles Movimentos políticos da Europa no século XX O tédio é contrarrevolucionário. O que provocou a Revolta de Paris em 1968? História Geral — 2º ano Alice Piper 2º tempo 17/10/08 As revoltas de estudantes e trabalhadores no fim da década de 1960 em Paris foram significativamente diferentes do movimento estudantil americano da mesma época, porque a sua base filosófica começou na arte, não na política. O grupo à frente desse movimento se chamava Internacional Situacionista (IS), fundado pelo artista e revolucionário Guy Debord. A IS combinava a teoria marxista (que criticava o capitalismo) com a arte surrealista para “construir situações” que mudariam o modo de pensar e o sistema opressor. (Em outras palavras, eles acreditavam na liberdade pessoal e na autonomia em vez de culturas construídas. E no direito das pessoas de destruírem não só os sistemas como também a estética cotidiana e tediosa que as oprimia.) Por causa disso, o seu ataque não se voltou contra uma entidade política específica, mas contra a “vida cotidiana” das décadas de 1950 e 1960. Propuseram uma “frente radical” que criaria uma união de ludismo, liberdade e pensamento crítico para combater as forças autoritárias que controlavam o povo com o tédio e a opressão.
Em 1967, Debord publicou A sociedade do espetáculo, no qual argumentava que a vida capitalista avançada reduzia a vida a um “acúmulo imenso de espetáculos”.
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“Tudo o que antigamente era vivido diretamente”, afirma ele, “se tornou mera aparência”. Debord argumentava que a sociedade se tornara um “complexo de publicidade, meios de comunicação e marketing de massa”, um gigante superficial que privava de significado a vida cotidiana de todos. (16) Na “sociedade do espetáculo”, dizia Debord, o conhecimento não é usado para questionar nem para analisar, é usado como máscara. Embora possa parecer uma filosofia puramente política, Debord acreditava que a IS precisava terminar o serviço começado pelos movimentos artísticos dadaísta e surrealista, levando, enfim, a ação aos movimentos artísticos baseados nos sonhos e desejos de todos. Embora a IS tenha se tornado popular pelas brincadeiras e travessuras (como se fantasiar de monge no domingo de Páscoa e declarar a morte de Deus na catedral de Notre-Dame), sua influência real foi vista durante as revoltas de estudantes e trabalhadores em maio de 1968, a maior greve geral da história do mundo. Mais de 11 milhões de trabalhadores e estudantes paralisaram a cidade de Paris e levaram pessoas comuns às ruas para combater o governo durante duas semanas inteiras. (53) Com essa greve, povos do mundo todo começaram a considerar moralmente errado o domínio tecnológico e autoritário (não só por explorar os indivíduos, mas por ir contra os seus desejos mais pessoais — causava tédio e era feio) e os movimentos antiautoritários ganharam força e apoio popular. Os integrantes da Internacional Situacionista picharam as ruas e prédios com frases que se tornaram lemas característicos e gritos de guerra dos manifestantes, como: “Tomo meus desejos por realidade, pois acredito na realidade de meus desejos”; “Seja realista: exija o impossível”; “Viver sem tempos mortos”; “O tédio é contrarrevolucionário”; “Sob os paralelepípedos, a praia”. E o meu favorito: “Corra, camarada, o velho mundo está atrás de você.”
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Constant 10 DE ABRIL DE 2009 — ALÔ? — Oi! — AltoeClaire! — Não, é Alice — disse ela. Constant ficou chocado. No decorrer de um mês, a voz dela mudara. — Kropotkin? Ai. Meu. Deus. A sua voz está igualzinha à de Claire. — Já sei... Todo mundo diz isso. — Como vai tudo? — Bem. — O seu pai está aí? — Está com Claire, colhendo vagens de soja para o jantar. — Ela parecia irritada e entediada, outra mudança inesperada. — Legal. Adoraria jantar aí hoje. Vocês têm soja suficiente para todos? — Mais do que suficiente. São uma delícia total, mas estou começando a enjoar. Constant riu. — E a escola? — Detesto o segundo ano. A minha existência entre parênteses já era. — Professora de inglês enchendo o saco?
— Detesto essa aula. É a minha pior matéria. Gostaria que houvesse um jeito de escrever tudo como uma equação. Ela diz que o meu estilo nos ensaios é conversador demais. E chega de parênteses porque parecem imaturos. Por que acham que o negócio tem de funcionar em sentido único, se só eu que lhes apresento coisas? Por que não posso dizer exatamente o que quero aprender e depois eles me ensinam? Não sei bulhufas de literatura e preciso fazer
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perguntas pelo caminho, senão é perda de tempo. Tudo o que eu adorava ler foi arruinado. Além disso, para metade das perguntas que faço, eles dizem que não é assunto para a aula de inglês, que aquilo não é aula de filosofia ou alguma outra desculpa. Nem tento mais escrever bons trabalhos, porque levo A em tudo o que entrego. Tudo é separadinho. Quanto tempo alguém leva para descobrir que todas as histórias são iguais porque há algo de errado nos deveres? Por que alguém ia querer procurar o “tema universal” em tudo? É como resolver um milhão de problemas diferentes que acabam todos com uma mesma resposta. — É estranho você não gostar dessa aula. Você sempre gostou de ler. — É, mas não gosto mais. Matemática e química fazem sentido, certo? Porque os símbolos são símbolos de verdade, representam coisas reais, não são personagens inventados que deveriam representar ideias ou uma moral ou uma merda dessas. Con riu. — Ah, meu Deus! Você fala exatamente como a sua mãe, não é só a voz. Isso é esquisito mesmo. É você, Claire? Alice suspirou e depois riu. Ele ficou contente de fazê-la rir, contente de fazê-la se sentir melhor. Fora uma semana difícil por lá e queria dar a ela algo especial. — O que quer ganhar de aniversário? — Um robô para ir à escola no meu lugar. — Acho que não vou encontrar. O que você quer de verdade? — Cento e oitenta dólares. Ele riu de novo. — É mesmo? — É mesmo. — Uau, Kropotkin! Os tempos mudaram! Você deve estar crescendo. Acho que você nunca me pediu dinheiro. — Nunca mesmo. — O que vai comprar?
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— Carne — respondeu ela, e os dois riram. Flynn HAEDEN, NOVA YORK, 3 DE ABRIL DE 2009 O APARTAMENTO DE Tom Cutting não tinha mapas presos na parede nem garrafas de cerveja empilhadas na pia. Era limpo. Cheirava bem. A vista dava para o corpo de bombeiros do outro lado da rua. Ninguém morava em cima e o vizinho mais próximo era um parque de trailers a mais de um quilômetro de distância, rua abaixo. Ele parecia sociável demais para morar em lugar tão remoto. — Aluguel gratuito — disse, sorrindo, como se lesse a minha expressão. — Fiz macarrão. Você vai gostar: tem tomate, azeitona, azeite, alho e outras coisas. Aposto que não comeu nada hoje. Essas paradas mediterrâneas fazem bem. É o que como quando... Bem, não importa, é o que eu como quase sempre. Ele abriu a geladeira, tirou duas cervejas Labatt e me deu uma. — Sobre ontem à noite, Stacy. Geralmente não faço esse tipo de coisa, e hoje de manhã fiquei mesmo querendo nunca mais fazer esse tipo de coisa. Eu só sou... Hã... Merda! Não sei! Aquilo foi só... — Tudo bem. — Eu estava exausta, tensa e um pouco bêbada. Depois de classificar os arquivos, ir para casa e olhar a água correndo na pia durante meia hora, peguei o carro e fui para a casa de Cutting, na esperança de que estivesse barulhenta ou houvesse música tocando ou que ele estivesse bêbado e a gente simplesmente trepasse de novo. Para apagar aquilo de alguma forma. Senão, eu sabia que falaria a respeito, que começaria a revisar o caso. — Gosto mesmo de você — declarou ele. Eu já terminara a cerveja e pusera a garrafa na pia. — Ah, dá aqui... Pode deixar — disse. — Os recicláveis ficam no armário. Ele guardou a garrafa e então experimentou o macarrão, escorreu, pôs numa grande travessa e misturou com os tomates. Pousou a travessa na mesa e pegou dois garfos. Buscou outra cerveja para mim. — Como ficou o jornal? — Bom... — respondi. — Você vai recebê-lo amanhã.
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— Não vamos falar sobre isso enquanto comemos, pode ser? É meio estúpido fazer isso. Sinto muito ter tocado no assunto, está bem? Esqueça o trabalho. Fiz que sim e ergui a garrafa na direção dele. — Boa! Em Cleveland, durante o jantar, a gente sempre conversava sobre o que estava escrevendo. Era chato. — Reportagens como essa? Dei de ombros. — Às vezes. Eu tinha um amigo cujo assunto predileto na happy hour eram cenas de crime e a Bolsa de Jornalismo Hearst que conseguiu. Ri, mas Cutting não, e comecei a comer. O macarrão estava uma delícia e percebi que era a primeira vez em quatro anos que alguém preparava uma refeição para mim. Isso fez com que me sentisse solitária e grata. Feliz de tê-lo conhecido. — Então, quando teremos o relatório da autópsia? — perguntei. Ele pousou o garfo e ergueu a sobrancelha, enfaticamente. — Ah, é verdade. — Ri, limpando a boca. — Desculpe. Podemos parar de comer e falar sobre o assunto, se quiser, e mais tarde eu esquento novamente. Mas não consigo fazer os dois ao mesmo tempo. O que ele disse me incomodou. Sentia que as coisas estavam inacabadas, que ainda não tinha informações suficientes, e não ia me entregar à sensação de que aquele jantar marcava o fim de algo ou que era uma ocasião de nos lamentarmos juntos. Ele era a coisa mais próxima que eu tinha de um colega, e eu estava precisando de um naquele momento. Precisava de alguém com quem pensar. — Sabe, passei boa parte do dia ao telefone com o Escritório de Estatística Criminal — disse a ele. — Procurei o nome de todas as mulheres assassinadas este ano e a subcategoria de todas as mulheres assassinadas pelos namorados, maridos ou pelos caras com quem saíam.
— Está vendo, é disso que estou falando. Isso não é bom. — Ele se levantou, pegou a travessa e a colocou na bancada da pia. — Não vamos comer enquanto falamos sobre isso.
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O meu garfo ainda estava no ar. — Então — continuei —, se alguém quisesse fazer um memorial a essas mulheres que morreram por causa desse tipo de violência no decorrer da história, coisa que ninguém faz, é claro, mas, se fizessem, teriam de gravar os nomes mais ou menos no mesmo ritmo em que os crimes são cometidos. Quem construísse um monumento histórico, sabe, do tipo que mostrasse as baixas, as surras, os estupros, as desfigurações, precisaria de algo parecido com a Grande Muralha da China. Ele cobriu o macarrão com plástico filme e guardou na geladeira, que estava impecável. — Houve gente que não consegui salvar — disse ele, simplesmente. E senti no peito a mesma coisa quando o conheci e falamos sobre os nossos trabalhos. — Vamos sentar na varanda até ficarmos com fome de novo — propôs ele. — Estou com fome agora — retruquei, mas não estava. Estava bêbada, exausta e combatia uma sensação de que até Tom, o homem que me relaxara com tanta habilidade na noite anterior e me levara flores e me alimentara, poderia ter matado Wendy, poderia estar pensando em me machucar. Por um instante, vi-o simplesmente pelo seu tamanho, peso e velocidade. O tipo de avaliação quase consciente que surge, que passa a existir em certas horas da noite e em determinados lugares, de maneira autônoma. Então o segui até a varanda e me sentei ao lado dele num velho sofá coberto com uma manta de lã, diante de uma mesinha de centro surrada pelas intempéries. — Esse é um dia ruim para um encontro, Tom Cutting — disse eu. — É, eu sei. Mas é um bom dia para eu ficar com alguém como você e para você ficar com alguém como eu. — Ele me olhou nos olhos com firmeza e pensei que manter o contato visual fazia parte do trabalho dele; era treinado para isso. Pensei quantos olhos já devia ter fitado com seus próprios olhos castanhos. Quantas expressões de dor ou medo absorvera, trabalhara para aliviar. Essa mesma sensação também lhe irradiava do corpo, um tipo de coordenação constante e calma, uma prontidão. Fora isso que ele trouxera para mim na margem do rio, na véspera. Então quis muitíssimo que os meus sentimentos a respeito dele fossem reais. Quis tê-lo como amigo. Quis que ficasse tão zangado quanto eu, e quis não me sentir sozinha.
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Nós nos espreguiçamos, colocamos os pés para cima e olhamos o estacionamento e os campos a distância, além do corpo de bombeiros. — Mas o que fazer, então? — perguntei. — É um lugar tão pequeno, e a gente sabe que Wendy provavelmente foi morta por alguém que simplesmente andava por aí, ia ao bar, ficava na lavanderia. Alguém que talvez conheçamos, com quem talvez cruzemos todos os dias. Sabia que Dino nem revistou a propriedade Haytes? — Não sabia disso, não. — É. Toda essa merda foi uma mentirada do princípio ao fim. Sabia que, nos Estados Unidos, 1.300 mulheres são mortas por ano por pessoas de seu círculo íntimo? Namorados ou maridos. Que isso é, digamos, três, talvez mais de três mulheres por dia? Só esse fato deveria fazer aquele filho da puta do Dino revistar aquela pilha de bosta lá. Ele concordou com a cabeça. Continuei. — A estatística é foda, cara. É assombroso o número de mulheres assassinadas ou desaparecidas por ano. E estupradas, meu Deus, sabe qual é a estatística? Quer que eu fale sobre estupro? — Não! — Ele balançou a cabeça e cobriu os olhos com a mão, inclinando a cabeça para trás. — Não mesmo. Sei que o número é alto. Claro que tem gente ferida e morta, e é avassalador. Sei disso, sei. Costumava ficar obcecado com as vítimas do trânsito. Trinta e oito mil pessoas morrem por ano em acidentes de carro. Quatrocentas e cinquenta mil morrem de infarto. Setenta por cento das vítimas de assassinato são homens mortos por outros homens. As pessoas morrem, Stacy. O dia inteiro, todos os dias, por várias razões. — Você sabe que não é a mesma coisa. Você sabe que não é. O que acha que a autópsia vai mostrar? — Você me perguntou isso hoje à tarde. Não sei. Desnutrição, drogas; mostrará trauma. Abuso sexual, tenho certeza, com base no padrão dos hematomas. Tomara que consigamos provas de DNA. Isso ajudaria. — Ele me olhou. — Foi uma péssima ideia jantarmos juntos hoje à noite. Estudei o rosto dele por algum tempo.
— Sinceramente — disse ele —, não queria ficar sozinho. Nunca tinha visto nada parecido na vida. Você, talvez, mas eu, não. E não queria que fosse a única coisa que conseguisse ver a noite toda. Também não queria a sua imagem
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naquele cenário colada na minha cabeça. Sabe, principalmente. Sabe... Sinto muito. Estendi a mão e peguei a dele. Estava cansada, bêbada e com vontade de chorar, mas não chorei. O silêncio ainda estava lá. Não conseguiria mandá-lo embora com lágrimas, brigas, nem citando estatísticas. Afundamos um pouco no sofá e me encostei nele. Ele me envolveu com o braço, segurou a minha mão, curvou-se e beijou o alto da minha cabeça. Então me lembrei dele falando daquela hora crítica, depois de um acidente, e do medo que tinha de crianças serem atropeladas. E me senti uma idiota por falar em estatísticas. Não a encontrei. E ele não a salvou. Porque essas coisas a gente não faz sozinho. * * * Estava escuro quando olhei para ele outra vez, e a varanda estava ligeiramente iluminada pelas luzes da cozinha. A cabeça dele descansava no braço do sofá, os lábios separados, e ele respirava profundamente, as pestanas pretas e compridas pousadas nas bochechas. Puxei a manta para nos cobrir e fechei os olhos.
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Scoop 4 DE ABRIL DE 2009 SCOOP JÁ ESTAVA lá quando Flynn chegou ao jornal, e tentava se conter. Ela estava um caco, as roupas amassadas e o cabelo emaranhado na nuca. — O que é isso? — berrou Scoop antes que ela acabasse de abrir a porta. Tentara soar mais contido, mas descobriu que estava enraivecido demais. O sino amarrado à maçaneta fez barulho quando ela fechou a porta e andou até a mesa. Ele sacudiu o jornal para ela outra vez. — Que diabos é isso aqui? Ela pareceu um pouco mais alerta, mas não alarmada, só desiludida. Devia estar esperando por isso. — Isso se chama edição especial. Você deve se lembrar do tempo da faculdade de jornalismo — respondeu ela, enquanto atravessava a sala e punha um filtro na cafeteira elétrica. — Isso se chama aterrorizar a cidade! Aquilo causou o efeito que ele queria. Ela ficou espantada, totalmente chocada. — Isso se chama aterrorizar a cidade? Isso? Fitou-o com um ar tão absolutamente maldoso que ele esqueceu o que planejara dizer. O telefone começou a tocar. — Viu? — disse ele. — Você vai ver. Ligaram para mim a noite toda. Flynn o fitou com mais intensidade e atendeu ao telefone. — Haeden Free Press — cantou automaticamente ao telefone. — Isso. Ela se calou, e ele observou o rosto cansado e vazio dela a escutar. — Isso. Ela parou de novo, tirou a caneta do cabelo e escreveu alguma coisa nas costas da mão.
— Escritório Nacional de Estatísticas Criminais. E Divisão Estadual de Direito Penal de Nova York.
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Ela franziu a testa. Que bom, pensou Scoop, alguém está fazendo com que ela entenda. — Isso. Flynn desligou o telefone e Scoop disse: — Eu a demitiria agora mesmo se tivesse outra pessoa para fazer o trabalho no seu lugar. Ela continuava a fitá-lo. Ele estava tão zangado com a falta de respeito dela que sentiu que começava a tremer. Depois, ela lhe deu um sorriso rápido e meio maluco, algo horrível, realmente assustador. — Você não é mais nem o redator nem o editor deste jornal — disse Flynn. — Eu respondo ao Weekly Circular e não vão me demitir nem por um caralho! Vão me dar uma merda de um aumento pelo serviço que fiz nesta bosta de cidadezinha perdida de brancos de merda! Ganhei o prêmio de jornalismo George Polk com 23 anos. Por acaso sabe o que é isso? Ou só leu no meu currículo e achou que inventei? O jornal em que eu trabalhava contratava escritores de verdade, porra. E o que eu escrevi ontem foi uma história real, cacete. Uma história que vou continuar investigando; então acho bom você mudar essa merda desse seu tom. Imediatamente. Scoop sentiu o rosto corar. Ergueu o jornal de novo e o amassou na mão. — Tem alguma ideia do que isso fez com esta comunidade? Com as famílias da comunidade? Com a carreira profissional dos moradores? — Que comunidade? Existe uma comunidade aqui? Você não entende merda nenhuma? Veio lá de Marte, caralho? Aqui a renda média é de 14.000 dólares e o nível de instrução médio é o 11º ano e a chamada fábrica de laticínios é uma merda de uma indústria fabril que não dá emprego a quase ninguém da cidade, e o Home Depot é a porra do lugar onde todos vocês trabalham — se é que trabalham. Isso não é uma comunidade, e não vira comunidade só porque todos atiram em pombos de barro ou chamam carinhosamente as mulheres de “patroas” ou fazem uma bosta de desfile para coroar a rainha do leite! Isso é para atores de alguma via crucis anacrônica sobre uma cidade que nunca existiu, numa merda de país que nunca, nunca existiu.
Scoop ficou estupefato com a velocidade com que ela falava e a rapidez com que se enfurecera. Fora até lá para repreendê-la e ela não estava nem um pouquinho preocupada. Parecia outra pessoa. Os olhos eram fendas e dava
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para ver como sua mandíbula estava travada; a pele do pescoço e do peito estava corada e manchada, mas o rosto ficara branco. Ela não ia parar tão cedo. — Comunidade? Carreira profissional? Está falando do seu legista e veterinário de animais de grande porte que não apareceu porque estava se divertindo lá na fábrica dos Haytes? Ou do seu colega que fodeu toda a investigação, achando que o assassino era algum andarilho? Já ouviu a palavra “andarilho” fora dos filmes da década de 1950? Vocês não têm nenhuma comunidade e não têm nenhum profissional. Vocês sabem onde estão? Sabem? O telefone tocou de novo e Flynn atendeu. — Haeden Free Press. — Em seguida, irritada: — Aqui quem fala é Stacy Flynn. Em que posso ajudar? — Ah... Hum-hum... Hã... Claro. Isso. Terei muito prazer em conversar com vocês. Ela bateu o telefone. — Aí! Aí! Está vendo? O canal Sete! Scoop não fazia ideia do que devia ver nem dizer. Estava enfurecido, mas tinha medo de que Flynn fizesse alguma loucura. Achava que nunca tinha visto uma mulher com aparência tão horrível. Era óbvio que ela não estava feliz com a descoberta do corpo e devia estar em choque. Gostaria de tê-la abordado de outra maneira, ou, pelo menos, de ter ido com ela ao local do crime no dia anterior. Soubera por Dino que fora muito perturbador. Mas o que ela dizia era bobagem. O legista não apareceu e o corpo foi levado pelos paramédicos. Grande coisa. Ele estivera só esperando ela dizer algo sobre isso. Dino contara que ela o perseguira o dia todo, na véspera. Alguma coisa sobre a fábrica dos Haytes outra vez — ela simplesmente não desistia, achava que tudo era de propósito, até pequenos erros. Só porque alguém conhecia alguém ou trabalhava para alguém... Para ela, isso significava que estavam ligados. Achava que o condado podia pagar um legista em tempo integral? Meu Deus! É claro que a fábrica contrata veterinários de animais de grande porte. Jura? Ela achava que todo mundo se fingia de desentendido ou encobria as coisas, quando, na verdade, era só o jeito como as coisas funcionavam por ali. Em toda parte, pelo que ele sabia. Estava com raiva também, ora bolas, e não podia simplesmente dar um ataque histriônico como uma repórter mulher.
Na verdade, quer saber? Ele estava furioso. Acabara de tomar o café da manhã com Dino e Jim Haytes. Jim dissera que o filho estava tão arrasado com o assassinato que passara a noite chorando, e depois com o que lera no jornal.
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Tão nervoso que ia para a Argentina trabalhar na empresa que controlava a fábrica. Na Groot. Lembranças demais em Haeden; mesmo que superasse Wendy, ele disse que nunca mais conseguiria andar na rua com todo mundo olhando para ele. Agora, aquela fazenda teria de ficar nas mãos de Bruce e todo mundo sabia que Bruce não tinha a responsabilidade nem o talento social de Dale. A vida da família inteira manchada pela vergonha dos boatos. Mesmo que ela não tivesse dito nada específico, por que publicar o nome de todas aquelas mulheres? Páginas e páginas de nomes. Ou por que fazer aquelas perguntas? Como se tivesse algo a ver com Haeden. Ele gostaria que ela tivesse feito algo realmente difamatório para que pudesse obrigar o Circular a demiti-la, mas ela tinha razão: ele não trabalhava mais para eles e, na verdade, nunca tinham dado mesmo muita importância a quem editava o jornal. Jim fora consultar o advogado da família para ver se poderia abrir um processo. Queria mandá-la para a cadeia pelo que escrevera, mas Dino disse que duvidava de que isso acontecesse. Ah, se ela soubesse o quanto Scoop já fizera por ela naquela manhã, jamais teria explodido com ele daquele jeito. Ele se lembrou de quando ligara para as pessoas de Cleveland que a haviam recomendado e de como um dos editores a descrevera como um “pit bull”. Scoop gargalhara disso depois de conhecê-la; achou que aquilo provava que o pessoal da cidade grande era meio esquisito. Mas, naquele instante, conseguiu entender. Ela não desistia nunca. O rosto de Flynn não estava mais pálido; ficara totalmente vermelho. Uma veia se destacava na têmpora. Ninguém jamais o vira daquela maneira. — Você sabe onde mora? — gritou ela, de novo. — São os Apalaches, seu filho da puta! Você está na merda dos Apalaches! Mesmo que seja um dos manda-chuvinhas dos Apalaches e jogue golfe e ande de motoneve! Você está aqui porque se sente à vontade perto de gente estúpida. Sabe que é fácil explorá-los. E o custo de vida é baixo. Deve haver uns cem de vocês capazes de formar pensamentos abstratos! E até esses são quase ininteligíveis. Quá. Quá. Quá. Pois bem, quer saber? Não preciso aprender essa sua linguagem de merda, porque essa sua linguagem está sendo erradicada, graças a Deus, caralho! Conhece essa palavra? “Erradicado”? A sua vida, o seu jeito, a sua linguagem. E por uma puta de uma boa razão. É tudo uma merda! Vocês venderam toda a sua preciosa terra, que era uma terra roubada, para começo de conversa! Traíram a porra dos seus vizinhos. E você! Você, pessoalmente, ficou sentado à toa, enquanto uma garota desta cidade estava em algum lugar nesta cidade, morrendo! E ela morreu ontem. Morreu ontem de manhã, cacete!
Flynn tremia de raiva.
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— Me demitir? Me demitir o caralho! Você não pode! NÃO PODE! E nunca mais me ameace por fazer o meu trabalho. Wendy White está morta porque não consegui fazer a porra do meu trabalho! Scoop se sentara para receber o último ataque de Flynn. Nunca vira ninguém se comportar assim na vida. E soube, então, que estavam certos sobre ela ser de alguma etnia diferente. Sentou-se porque teve vontade de bater nela ou de segurá-la, e sentiu que, se continuasse em pé, acabaria fazendo isso, e então seria acusado de agressão corporal. Devia ter ligado para Dino enquanto ela ainda delirava. Na verdade, ele só queria lhe dizer que Wendy White estava morta porque alguém a matara, e isso não tinha nada a ver com nenhum deles nem com a cidade. E que ela não devia ter publicado todas aquelas reportagens sobre mulheres mortas, nem aquelas páginas que só continham nomes, porque lembrar daquilo não era bom para ninguém. Ficou lá sentado sem dizer nada até não estar mais zangado com ela. Ela o ignorou, ligou o computador e fez um bule de café. De repente, ele percebeu dolorosamente que ela media um metro e meio e não podia pesar mais do que a neta dele. Pediu a Deus que ela começasse a chorar e que aquilo fosse um tipo de crise feminina, para que ele pudesse consolá-la, mas ela continuou a ignorá-lo. Sabia que ela iria embora da cidade e ele não teria mais de brigar com ela. Ela estava só blefando com isso de continuar a investigação. Ele deveria ter ido com ela ao lugar do crime. Deveria tê-la convidado mais vezes para a casa dele. O telefone tocou. Ela o tirou do gancho e desligou logo em seguida. Depois, tirou o fio da tomada, pegou um gravador de dentro da gaveta, o colocou diante de Scoop e apertou “play”. Era a voz da mãe de Wendy White. — Sou Lori White, moro em Haeden, no estado de Nova York. Hoje é dia 4 de janeiro de 2009. Tá, tudo bem. Vou tentar encarar isso por você. Não sei se consigo. A voz era baixa e suave e, quando se interrompeu, ele percebeu que aquilo era o som de alguém chorando baixinho enquanto falava.
— Bom, acho que Beth Ann foi a primeira a perceber que havia algo errado, porque Wendy costuma chegar cedo para ficar com as meninas para que elas possam fofocar um pouco. E ela esperou e esperou, e telefonou para o apartamento de Wendy. Depois, ligou para mim para ver se eu podia ficar com as meninas porque Wendy não havia aparecido, e ficamos meio chateadas, sabe.
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Achando que por causa daquele namorado ela esqueceu. Então, fui ficar com as meninas enquanto Beth Ann ia à aula de cerâmica na ACM de Elmville. “Mais ou menos, hã, talvez meia hora ou 45 minutos depois, Dale foi até a casa de Beth Ann e estava muito sério. Não do jeito dele, sabe como ele é, sempre brincalhão, pois bem, seu rosto estava branco e parecia que tinha chorado, estava todo suado, com cara de doente. E disse que não estava conseguindo encontrar Wendy. Bom... Ela havia estado no trabalho antes, então só fazia umas duas horas. “Sabe, agora acho muito estranho que ele estivesse tão nervoso já naquela hora. Sabe, agora acho. Disse isso a Alex Dino. “Ele havia telefonado para as amigas dela, conversado com o pessoal no trabalho. Sabe, ela não tinha carro, então provavelmente não tinha ido para Elmville. E eu disse a ele que tenho certeza de que está tudo bem. Talvez alguma das amigas tenha vindo à cidade e elas estivessem no shopping. Bom, pensamos em todos os lugares onde ela pudesse estar. E comecei a me sentir muito inquieta, porque a Wendy era supercaseira antes de começar a namorar o Dale, e eu sempre achava que, quando não estava em casa, estaria com ele. E isso logo me assustou, como eu disse. Liguei para o Danny e ele saiu de picape para procurá-la. Dale ficou comigo lá, e brincamos com as meninas e esperamos, para o caso de ela aparecer. Ele estava preocupado demais para sair. “Então, finalmente, ele simplesmente vem e me diz que tinha pedido a mão de Wendy em casamento... O que para mim foi um choque, sinceramente. Um choque ela não ter vindo me contar. E ele estava muito preocupado porque achava que ela havia fugido. Ela aceitou, é claro, mas ele achava que ela tinha parado para pensar e ficou apavorada. “Então aquilo fez com que eu me sentisse melhor, porque achei que ela queria contar a novidade às amigas e provavelmente tinham ido até Geneseo, onde algumas delas estudavam. Provavelmente queria contar a elas antes de nós. E consegui fazer Dale se sentir um pouco melhor, explicando isso a ele. Preparei um chocolate quente para ele e, depois que as meninas foram dormir, assistimos a um pouco de televisão e comemos pipoca e conversamos sobre Wendy enquanto esperávamos notícias dela. Esperávamos notícias de Danny. Dale voltou para casa antes de Beth Ann voltar. Combinamos de ligar um para o outro se ela aparecesse. “Acontece que Wen não saiu com as amigas. Ligamos para todo mundo no dia seguinte. No fim daquela semana, eu só...”
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Aí, a voz foi interrompida e ela soluçou. — Isso foi há dois meses. Não sei o que aconteceu naquela noite. O capitão Dino nos diz que estão investigando, mas... o que estão investigando? Não havia qualquer pista no apartamento dela. Quer dizer, ela simplesmente sumiu e ninguém com quem conversamos sabia de nada. Ela nunca abandonaria o trabalho e a família, nunca fez nada parecido na vida; a gente simplesmente não é assim. E durante semanas senti que ela estava por aí, como se estivesse bem aqui na cidade e eu só não conseguisse encontrá-la. Sinto isso agora, sei que ela está aqui. Sei que tem de estar. Sei que alguém aqui deve saber o que está acontecendo. “Por favor, diga a todo mundo que, se alguma coisa lhes parecer estranha, por favor, nos diga. Conte diretamente a nós, porque não damos a mínima para o que tenha acontecido de errado. Nada disso. Só queremos o nosso bebê de volta, são e salvo. Qualquer coisa. Qualquer coisa que pareça fora do normal, não importa se parecer banal, mesmo se você só ache que a viu, ou ache que a viu num carro, ou se viu um carro estranho ou um estranho na cidade, ou mesmo que não seja um estranho. Por favor. Por favor. Faremos qualquer coisa e daremos tudo o que pudermos, mas não conseguimos fazer isso sozinhos. E se ela estiver aqui, queremos que saiba o quanto a amamos.” A voz de Lori White ficou mais aguda mas, de certo modo, mais suave, quase um sussurro. — Simplesmente a amamos. O pai dela e as sobrinhas dela e o irmão dela e Beth Ann. E eu. Houve uma longa pausa na fita e Flynn olhou para o teto, tentando impedir que as lágrimas escorressem dos olhos enquanto a voz da mãe de Wendy sussurrava a palavra “eu”, mais uma vez.
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Alice HAEDEN, NOVA YORK, 11 DE ABRIL DE 2009 NAQUELA PRIMAVERA, PASSEI a maior parte do tempo com Ross. Megan estava na Escola de Design de Rhode Island, esforçando-se para perder o seu senso de humor. Passei a maior parte do tempo nadando, caçando, trabalhando como voluntária no centro médico e esperando que Theo voltasse da escola para Haeden. Gene e Claire queriam conversar comigo sobre faculdades porque faculdades e professores queriam conversar sobre mim. Sempre que tocavam no assunto, eu dizia que planejava morar num trailer com Theo. Eu, Theo e um monte de livros. Eu me sentia sozinha. Construía muitas coisas e ia caçar com Ross. Mas os outros fazem a gente se sentir sozinha quando pensamos de uma certa maneira. A gente acaba cedendo ao que eles dizem que é real. Ao que insistem que é normal. E é claro que é fácil se sobressair nas coisas normais — receber elogios por coisas normais — nas notas, no esporte, em contar piadas, em não ser má. As coisas comuns de que a gente gosta de verdade: aula de primeiros socorros e panqueca no café da manhã e descer de trenó o morro Tamarack, treinar no trapézio, ir ao baile da escola. Ler em casa. Às vezes, entendia por que Gene e Claire viviam do jeito que viviam. Dava para ver por que isso se tornara importante para eles. Eu os respeitava, e à vida que levavam. Eu os amava. Mas não ia virar médica nem artista de circo ou agricultora orgânica. E não importava o que pensassem, eles não haviam me criado para isso. Essas foram as coisas que fizeram, não o que acreditavam ser realmente importante. Agora, quando me lembro, acho que demorei a entender. Antes que Wendy White fosse encontrada e o jornal saísse, demorei muito para juntar as peças e ver o jeito como as coisas funcionam. Mas, depois que a encontraram, tudo mudou. Se alguém ainda duvidava do que estava acontecendo, é porque há algo de errado com essa pessoa. Naquela semana, quando o jornal saiu, tive de repensar a minha responsabilidade enquanto moradora daquela cidade. E do mundo. Fiquei tão mergulhada na raiva que perdi o peso. Caindo, subindo ou nadando no fundo da água, prendendo a respiração, flutuando.
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Eu teria de pensar nas piadas que escutei e no que queriam dizer, e em qual era a minha responsabilidade. Ou havia sido. De que responsabilidades eu já me esquivara. Teria de pensar sobre o que era ou não engraçado. O que era real. Bruce Haytes, cujo irmão saía com Wendy White, contava várias piadas. E, por alguma razão, eu não prestava muita atenção. Porque as piadas sobre Wendy eram comuns. Porque o sumiço de Wendy era fonte de medo e fofocas e, estranhamente, era algo engraçado. Mas por que ele faria piadas? Teria de repensar as coisas que Kyle, Bruce, Rick, Taylor e mais alguns amigos deles disseram. Teria de repensar os seus maneirismos e o jeito como me olhavam, e a outras pessoas, na época em que todos éramos pequenos. Pensar nas coisas que diziam em aula e faziam fora dela, coisas que berravam nas suas picapes. O que faziam depois do treino quando todo mundo ia a pé para casa. O jeito como andavam. O jeito como os corpos se mexiam e o som da voz deles, o cheiro deles. As roupas que usavam, como mudavam de comportamento perto de certas pessoas. Mudavam as expressões que usavam, mudavam alguma coisa por dentro. Teria de pensar muito sobre tudo isso. Porque havia detalhes que deixei passar ou com os quais nunca me incomodei, e tinham de ser classificados. Senão, se misturariam, seriam um jeito, um estilo, em vez de um conjunto de provas. Teria de pensar em todos os detalhes e indícios. Depois que acharam Wendy, eu os estudei durante mais uma semana. Para ver se algo mudava. Para ver como mudava. Para pensar no nível de ansiedade que cada um deles transmitia, no jeito como falavam nos meses entre novembro e abril. Como alguns pareciam mais relaxados e mais confiantes. Como havia dias em que eu os olhava e sabia exatamente o que estava acontecendo, mas havia algo entre mim e aquele pensamento, aquela compreensão. Eu via, sentia e sabia, mas alguma coisa animal, horrível, impedia que essa informação chegasse ao meu corpo, à minha voz. Vi, mas fiquei paralisada, como um bicho. Vi do jeito que vejo quando sei as respostas, quando sei o que dirão só de olhar para elas, quando consigo me lembrar de quase tudo o que já ouvi ou li para fazer provas. E, porque fui lenta dessa vez, teria de repassar tudo para verificar. Teria de ouvir Bruce repetir, na minha cabeça, o que disse em voz alta em fevereiro, que Wendy não estava morta. Porque trepara com ela na noite anterior. — Provavelmente já está morta agora...
— ... ainda não. Trepei com ela ontem à noite mesmo.
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— Que merda, cara. Que frieza do cacete! — Pena que você estava no fim da fila. — O seu pai estava no fim da fila. — Milagres do Viagra. Teria de ver todos os detalhes na minha cabeça. A imagem deles me olhando e o leve curvar espantado dos ombros antes que Bruce jogasse a cabeça para trás e risse. Porque era engraçado eu estar lá, ou engraçado ele se espantar, ou engraçado o fato de ele dizer algo tão perverso. Teria de repensar aquele momento para ver se eu percebera um tiquinho de medo ou de remorso no jeito dele — se ele transmitira alguma necessidade de ajuda. Porque seria um tipo diferente de informação. Mudaria a análise de custo e benefício. Fiquei mal quando acharam Wendy. Sabia que não me sentiria mais a mesma na escola, com os amigos ou com relação ao lugar onde morava. Com relação ao mundo inteiro. E fiquei triste por causa do corpo dela. Que era como o meu. Ser capaz de me dedicar ao estudo de Bruce e dos amigos fez com que eu me sentisse melhor, porque estava fazendo alguma coisa. Porque era algo racional a fazer, ponderar sobre a minha obrigação ética. Não seria muito racional aceitar que moro dentro de uma coisa feita de carne que alguém captura, esconde e depois entra na fila para estuprar.
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Gene HAEDEN, NOVA YORK, 20 DE ABRIL DE 2009 GUARDEI OS DENTES de leite dela numa caixa na minha cômoda. No dia anterior, estava me vestindo para trabalhar e vi a caixinha de madeira, e tive de pegá-la e apertá-la com toda a força. Só apertar. Com cuidado para não sacudir e não ouvi-los chocalhar. Comecei a pensar de novo naqueles pais. Que provavelmente têm dentes de leite guardados em algum lugar. Ou cabelo preso numa escova. Roupas no chão. Marcas de botas enlameadas dentro de casa. Imagino as casas, cada objeto pessoal, cada espaço de suas vidas cheio de dor. Não só as fotos dos filhos, que, de certa forma, devem ser um consolo, mas coisas. Coisas que ressoam com o fantasma do toque de um bebê ou de uma criança. A bicicleta na garagem, a cesta de basquete, roupas na secadora. Um prato na pia. Esse dia congelado para sempre. O caminho desgastado debaixo do balanço, ou pior: o balanço pedido e nunca construído. A árvore nua sem ele. O cheiro de comida. O som de uma porta que se fecha ou de pés na escada. Todas essas coisas que devem trazer tanta dor. Neste momento, sinto saudades delas. Saudades de Alice. Nunca rezei na vida, nem imaginava que sabia o que é rezar. Mas, quando recebi a notícia e pensei Meu Deus! A minha menina está nessa escola, rezava pela sua inteligência e pela sua rapidez. O que ela certamente usou para fazer o que fez. A inteligência e a rapidez. Foi por essas coisas que rezei. E não consigo suportar essa ideia.
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Alice HAEDEN, NOVA YORK, 13 DE ABRIL DE 2009 NÃO É MUITA gente que conhece a história de Andrew Golden e Mitchell Johnson, que tinham 11 e 13 anos quando vestiram roupa camuflada como a dos soldados e atiraram em 15 meninas da escola em março de 1998. Cinco delas morreram. Algumas eram bem pequenas. Essas coisas eu não sabia. A minha mãe e o meu pai nunca me contavam isso. Eles me davam livros para ler. Teoria e filosofia. Ideias sobre por que a cultura é como é. Mas não falávamos especificamente de quem fazia essas coisas. Não falávamos sobre esse tipo de fatos atuais. Então, há alguns anos, meninas foram molestadas e mortas na escola por homens que vieram de fora. Primeiro no Colorado, na Escola Secundária Platte Canyon, na qual um homem fez seis meninas reféns numa sala de aula, molestou todas e matou uma de 16 anos. Entrou na escola portando uma lista com o nome das meninas. Tinha procurado no anuário escolar. Na mesma semana, um leiteiro de 32 anos prendeu dez meninas amish como reféns na escola de uma sala só, molestou-as e matou cinco. Disse aos meninos que saíssem da sala, e eles saíram. Disse que fazia aquilo como “ato de punição” por algo que acontecera anos antes. O que deve ter acontecido? Será que fora molestado por meninas amish? Talvez. Ele morou a vida toda na terra dos amish. Será que fora ferido por uma professora? Não, aquilo que aconteceu anos antes foi que ele molestara algumas menininhas. Humm... É difícil entender o que ele queria dizer com “punição”. Punir essas meninas pelo crime que ele cometera contra aquelas meninas. Porque, é claro, elas provocaram as ações dele pelo simples fato de existirem. A lista de meninas é longa e não se limita a um só país. Mas não são apenas estudantes indefesas. Jamie Leigh Jones. Esse é um nome do qual você não vai se lembrar. Trabalhava no Iraque quando foi drogada por um bombeiro chamado Charles Boaretz e estuprada por Boaretz e um número não revelado de colegas de trabalho num lugar chamado Campo Esperança. O corpo dela precisou de extensa cirurgia reconstrutora. Inclusive a reinserção dos músculos peitorais.
A reportagem de Stacy não detalhava muito essas mortes. Mas ela fez um bom trabalho ao falar de outros estupros e homicídios no estado de Nova York, cuja ocorrência eu ignorava, muito embora duzentos deles tivessem
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acontecido a menos de 50 quilômetros dali. Era uma grande lacuna na minha formação. O jornal me levou a fazer um pouco mais de pesquisa. A pesquisa é essencial para tomar decisões racionais. Wendy White foi estuprada, morta e jogada fora. Homens a violentaram, homens a mataram, homens a jogaram fora, homens a acharam, homens examinam os seus restos mortais, homens procuram os homens que cometeram os crimes. Então, os homens que cometeram os crimes serão representados por homens no tribunal e um homem tomará a decisão com base em leis que os homens criaram durante a história jurídica deste país. Podem haver algumas mulheres envolvidas aqui e ali no decorrer do processo. Testemunhas, talvez, familiares, advogadas. Mas isso aqui é Haeden, portanto, fora Stacy, a quem estamos enganando? Não há ninguém ali. E isso é um pouco difícil de aceitar. É um pouco difícil de aceitar hoje em dia.
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Gravação de áudio: Lourde, Cheryl, 18/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Sou Cheryl Lourde. Moro em Haeden, estado de Nova York. Hoje é dia 18 de abril de 2009. Eu era professora de Alice. Ela era uma menina linda. Tinha olhos azul-claros, muito claros. E tinha um olhar de quem está imaginando algo engraçado a maior parte do tempo. Era um prazer observá-la pensar. Ela nunca, jamais, fazia anotações. Tinha uma memória incrível. Escrevia trabalhos e fazia provas, mas, fora isso, ficava sentada e escutava. Não sei se tinha memória fotográfica, mas, sem dúvida, conseguia se lembrar de tudo o que escutava ou lia, e ela prestava atenção. Tinha uma concentração muito intensa. Fazia muitas perguntas e tinha um intelecto agilíssimo; costumava estabelecer relações entre coisas diferentes de um jeito que nem eu teria pensado, mesmo hoje, depois de 25 anos ensinando. Ela dava vida a temas que eu já recitava de cor àquela altura, sem nem pensar. Dizia que inglês era a sua pior matéria. Acho que era uma matéria que ela tinha dificuldade de entender, mas não tinha problemas com os deveres, ao menos que eu pudesse perceber. Ela já havia lido muita coisa e era uma leitora muito crítica. Apesar disso tudo, Alice era despretensiosa, pode-se dizer até desligada. Muitos adolescentes como ela cultivam as suas diferenças e se unem, mas ela não era assim. Tinha uma doçura e uma abertura que vemos normalmente em crianças muito mais novas. Passava a sensação de ser incrivelmente amada e bem-cuidada. Aberta ao mundo. E sei que era filha única. Gostava de discutir e explicar coisas durante as aulas e tinha um riso alto, peculiar e musical que era um prazer ouvir. Na sala de aula, dava para escutar lá de fora da janela ou vindo pelo corredor, e fazia a gente feliz.
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Gravação de áudio: Bailey, Theophile, 21/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden O meu nome é Theo Bailey. Moro em Annandale-on-Hudson. Hoje é dia 21 de abril. Mais uma vez, não acho que eu tenho qualquer informação útil, a menos que você esteja procurando provas de que ela era minha amiga. A minha memória praticamente começa com Alice. Costumávamos adormecer no sofá. Os pais dela tinham aquele sofá comprido com estampado indiano e a gente costumava dormir lá quando tinha uns 6 anos. Quando Claire, Gene e Ross davam uma festa. Quando jogavam Scrabble ou Parole. Quando Connie estava na cidade, ficavam conversando até tarde, e às vezes ficávamos escutando, mas na maioria dos casos a gente brincava. Às vezes, a gente se deitava no sofá e trançava os cabelos uns dos outros, de lado, e fingia trocar de cérebro. Sempre acabávamos dormindo ali. Não sei como acabamos juntos, mais tarde. Foi como se a gente já estivesse apaixonado e que fosse algo que a gente precisasse praticar para sermos adultos. Tivemos sorte de podermos conversar sobre a sensação que tínhamos ou como ia funcionar. Não me lembro de uma época em que não a amasse. Prefiro que você não escreva nada disso. Mas acho que é importante entender, considerando tudo. Ela era uma pessoa incrivelmente feliz e gentil. Nada parecia se importar com quem éramos naquela época e quem somos hoje. Sempre conversávamos sobre quem saía com quem. Tínhamos paixões por outras pessoas, saíamos com os amigos um do outro, e depois acabávamos juntos. Sempre. Eu achava que me casaria com alguém assim. Achava que me casaria com a minha melhor amiga. Mas nunca achei que queria me casar com Alice. Na minha escola, a maioria dos que a conheceram achava que ela era minha irmã. Como se tivéssemos ficado marcados um no outro antes mesmo de saber falar direito ou entender as coisas, e, depois de algum tempo, não houvesse dúvidas sobre como as coisas iam acontecer. Éramos livres para amar qualquer outra pessoa, mas acho que ninguém mais queria ficar conosco. O outro estava sempre tão presente... E, para nós, outras pessoas pareciam estrangeiras. A voz, o corpo, o jeito de falar.
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Quero que você saiba essas coisas porque acho que fica bem óbvio que éramos felizes juntos e que ela não tinha conflitos com nenhum cara. Para Alice, o mundo era um lugar secundário. Um lugar que já era falso só porque existia. Do jeito que os objetos são as imitações e o original são as ideias. O nosso mundo era o mundo real. Todo o restante era a décima geração de cópias produzidas em massa. Ela nunca se poria no centro daquele mundo falso. Era esperta demais para isso.
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Alice DIA DO ESPÍRITO ESCOLAR HAEDEN, NOVA YORK, 14 DE ABRIL DE 2009 OS MEUS PAIS costumavam dizer “Sob os paralelepípedos, a praia” e costumavam dizer “Exija o impossível”, coisas que me contaram que os situacionistas e os surrealistas e os “primitivos modernos” falavam. Cresci com essas expressões. Axiomas de um desejo subterrâneo e não realizado. Hoje é o dia em que paro de desejar. Depois que acharam Wendy White, fiquei com aquela frase na cabeça: “Sob os paralelepípedos. Sob os paralelepípedos.” Isso me deixou nervosa e só soube por que quando tive esse sonho. Corpos e mais corpos. Você erguia a calçada da Main Street e havia corpos alinhados, apertados, nus. Corpos de mulher. A pele era azul, branca e suja. O cabelo arrumado para cima, como grama crescendo pelas rachaduras, mas era como se estivesse preso entre as pedras. Seus dedos estavam quebrados de tentar empurrar o cimento. Algumas tinham começado a cavar para baixo em vez de para cima. Não era só um túmulo ou uma vala comum: era a calçada da cidade inteira. No sonho, eu sabia que era isso o que estava debaixo da calçada que levava para fora da cidade e também debaixo das ruas. Debaixo, só havia aquela pele azul e branca e esqueletos e cabelo. E sabia que os meus pais, que tanto amo, estavam totalmente errado. Sob os paralelepípedos, os campos, os estacionamentos, os bosques jazem outra coisa. E todos os meninos que ignorei ou que me causaram pena, ou que desculpei em todo o tempo de escola também eram outra coisa. Era algo totalmente diferente. A vida dos meus pais, a horta no telhado, a nossa “fazendinha”, eram apenas outro jeito de ignorar o fato de que não há praia lá embaixo e nunca houve. Não é o que encontramos quando começamos a cavar. Há corpos e ossos. Corpos de mulheres, que primeiro se tornavam os seus caixões na puberdade, um caixão de pele. Um lugar do qual você nunca será ouvida, exceto talvez por quem está enterrado ali perto ou por aqueles que colam o ouvido ao chão.
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Depois que acharam o corpo de Wendy White, vi o mundo tal como ele era pela primeira vez. Quando acharam o seu corpo, eu também fui achada. Acordei no túmulo dela e olhei para as minhas pernas, absorvi o poder dos meus pulmões, dos meus bíceps, das minhas mãos e soube para que serviam.
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______________________________________________ PROVA P47914 15/04/09 8h Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0003 McClean, Gavin O meu nome é Gavin McClean. Estou no último ano da Escola Secundária de Haeden. Estava lá ontem. Quatorze de abril. Ela estava no meio do quadrado onde começam as escadas... Ela estava... Não sei quem era. Acho que não sei se era uma garota, mas sei que era nadadora vestida como nadadora, porque estava com a roupa que usavam no Dia do Espírito Escolar, com uma peruca verde de sereia e a camiseta dos Titãs e maquiagem com purpurina. Lembro de que todas usavam purpurina no rosto. Ela estava no meio do quadrado quando a vi tirar a arma da mochila. Não. Não vi. Na verdade, não vi uma arma. Ela estava com uma bolsinha ou bicho de pelúcia ou coisa assim, não sei o que era. Sei que vi uma nadadora. Havia algumas nadadoras por lá. E todo mundo estava voltando do almoço; o sinal tinha acabado de tocar.
Acho que só sei que uma nadadora puxou uma bolsinha de dentro da bolsa. Ela colocou a mochila no chão, como se fosse procurar alguma coisa lá dentro. E, quando se levantou, segurava outra bolsa. Uma bolsa de maquiagem, talvez. Não sei, acho que não era a mochila de Alice. Porque a dela tem uma rã. E essa era... Não me lembro direito. Estava lotado por causa do almoço e todo mundo estava saindo. Paul, Bruce, Chris e Kyle estavam vindo do refeitório pelo corredor. Ouvi um estouro, como se fosse mesmo um tiro, e muito alto. Então Paul caiu, depois os outros três, mas caíram como se fosse fingimento. Parecia fingimento. Só rostos chocados, ou sem qualquer expressão, e caíram. Então, vi sangue e primeiro pensei: Isso não é de verdade. Estão tentando fazer alguma encenação sobre violência na escola. Foi o que pensei. Pensei: é teatro. Então, vi rios de sangue. Não sei mesmo de onde vieram os tiros, mas acho que deve ter sido ela. Todo mundo começou a gritar e a correr. Todo mundo estava gritando e correndo, e corri de volta pelo corredor, saí para a rua e continuei correndo. Moro a dois quarteirões da escola. Não sabia mesmo o que tinha
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acontecido. Quando cheguei em casa, tranquei as portas. Liguei para 911, mas eles já sabiam. Liguei para o trabalho da minha mãe e disse a ela que estava bem e ela perguntou sobre o que eu estava falando. Quando contei ela começou a chorar. Ela falou: “Fique bem aí. Fique bem onde está. Não vá a lugar nenhum, não saia de casa.” Depois, não conseguia acreditar no que tinha visto, porque não fazia sentido nenhum, e eu tinha certeza de que era um grande trote. Parecia mesmo fingimento. Deviam estar encenando aquela coisa toda. Mas aí eu soube que não estavam. Sabia que Paul, Bruce, Chris e Kyle provavelmente estavam mortos. E estavam. Morreram bem ali, no corredor. Ela os matou bem ali, enquanto eles andavam.
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______________________________________________ PROVA P47914 17/04/09 8h Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0004 Rumsey, Leslie Eu me chamo Leslie Rumsey. Tenho 15 anos. Estava na aula de estudos globais na hora. Ouvimos tiros e a professora fechou e trancou a porta e disse a todo mundo para se esconder debaixo da carteira. Ligou para a secretaria pelo celular. Os alto-falantes diziam que todo mundo devia ficar dentro de sala e trancar a porta. Alguns de nós nos enfiamos no armário porque tivemos medo de ficar debaixo da carteira. E todo mundo estava com o celular na mão e mandava torpedo para os pais ou para os amigos, mandando-os sair de lá. E alguém disse “não fiquem debaixo da carteira, hoje em dia todo mundo sabe que ficamos debaixo da carteira, e é só atirar na fechadura e depois atirar na gente debaixo da carteira”. Aqueles garotos de Columbine estavam escondidos debaixo das mesas da biblioteca e isso não ajudou. Estávamos todos fantasiados para o Dia do Espírito Escolar, e era fácil distinguir todo mundo. O pessoal estava com purpurina no cabelo e o time de futebol americano usava uns chifres falsos, e as líderes de torcida vestiam uniforme, mas todo mundo estava com as mesmas perucas louras e maquiagem e batom com purpurina. A equipe de atletismo vestia camiseta preta com um tridente desenhado. Estávamos todos fantasiados e apavorados. Aí, escutamos um monte de gente berrando no corredor. Não houve mais tiros; então a gente não sabia por que estavam gritando. Alguém disse: “E se for o cara que matou Wendy?” O meu coração disparou, porque na hora achei mesmo que poderia ser ele. E se o cara que matara Wendy White tivesse entrado na escola?
Ficamos lá assim por uma hora, escutando e morrendo de medo. Escutamos quatro ou cinco tiros e, alguns minutos depois, outros, não sei
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quantos, e sirenes. A parte apavorante foi que, depois que ouvimos gritos, gente correndo e portas batendo, uma atrás da outra — assim, bum, bum, bum —, então, ficou tudo em silêncio. Ficamos com medo de que houvesse bombas na escola, porque sempre dizem que vão explodir a escola. Todo mundo diz coisas assim, eu nem saberia dizer quem. Mas ficamos apavorados. Eu sentia o meu coração batendo depressa. Os garotos de Columbine puseram bombas na escola, mas elas não explodiram. Vi esse vídeo na internet. Deixaram uma sacola de explosivos no refeitório, mas ela não explodiu, e tentaram dar um tiro para que explodisse. “Se houver uma bomba na escola, é melhor a gente sair”, disse eu, “a gente devia sair. Sair”. Mas a professora falou: “Todo mundo precisa respirar fundo e tentar ficar quieto. A escola fica perto da delegacia e vai dar tudo certo.”
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______________________________________________ PROVA P47915 17/04/09 8h50 Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0005 Salinski, Crystal O meu nome é Crissy Salinski. Estou no primeiro ano da escola de Haeden. Almocei e ia levar as minhas coisas para a sala de música. Saíamos do refeitório, logo atrás de Paul e de outros garotos; então veio aquele estalo forte e Paul caiu de joelhos e depois de lado. Olhei o corredor e não vi nada. Fiquei tão espantada que nem olhei de novo, saí correndo. Houve mais tiros, mas continuei correndo e não vi nada. Todo mundo estava fantasiado para o Dia do Espírito Escolar e as pessoas gritavam. Todo mundo gritava e corria. Nunca ouvi um barulho tão alto como a gente berrando daquele jeito. Era como na fazenda do meu tio, quando os porcos se assustavam e sabiam que alguma coisa ruim ia acontecer e todos começavam a guinchar. Mas não havia ninguém armado, que eu me lembre. E pensei: talvez ele tenha se matado e todos entramos em pânico. Alguns de nós correram e se trancaram na sala de artes. Alice veio pelo corredor, correndo dos tiros, e socou a porta da sala — não estava gritando nem nada, só parecia apavorada, e a deixamos entrar. Ela usava a roupa da equipe de natação para o Dia do Espírito Escolar. Tinha pintado as unhas com esmalte de purpurina azul e estava com a peruca verde de sereia que todas as nadadoras estavam usando e a camiseta que dizia titãs nadam. É, tenho certeza de que era ela. Ela olhou todo mundo em volta. Perguntou: “Todo mundo bem?” E saiu correndo de novo.
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______________________________________________ PROVA P47917 17/04/09 10h30 Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0006 Wilson, Bill Bill Wilson, 17 de abril de 2009. Ela bateu à porta da sala de musculação e todo mundo estava saindo correndo da escola ou correndo para se esconder em alguma sala. As pessoas berravam. Ela bateu na porta bem baixinho e vi ela olhar para os dois lados, como se temesse que o atirador a visse. Fiquei com medo de levantar e a deixar entrar, mas não podia deixá-la ali fora; então fiz isso bem depressa. Ela parecia aterrorizada. Entrou. Olhou em volta. Éramos três ali, ela trancou a porta e tirou a mochila. Lembro de que era novinha em folha. Ela se virou para abri-la — achei que estava procurando o celular. Eu disse “Graças a Deus”. Nenhum de nós ali estava com o celular, porque estávamos treinando e eles ficaram no armário. Então ela se virou bem depressa e deu um tiro em Tony e outro em Rick. Um, depois o outro. Mas não me lembro de ter visto uma arma. Por um minuto, quase achei que os tiros tinham vindo do outro lado da porta. Então, ela abriu a porta e saiu correndo. Fui até Tony e ele ainda estava vivo, porque ela o acertou no pescoço, não na cabeça, como no caso de Rick. Pus o meu suéter no pescoço dele e em segundos ele ficou encharcado. Foram segundos. Ele sangrou até morrer. Não sei por que ela não atirou em mim. Disseram que ninguém mais a viu fazer nada. Mas era ela. Disso tenho certeza. Era uma nadadora. Acho que era ela. Quando me lembro, não sei, porque só consigo me lembrar de Tony. Tento me lembrar do rosto dela. Não. Sei que era ela. Tinha aqueles olhos azuis. Não houve tiros pela porta; então só pode ter sido ela. Depois disseram que todos os que levaram tiros morreram. Ninguém ficou ferido. Acho que Tony ficou ferido, mas só por um minuto, mais ou menos. Fiquei naquela sala com os corpos deles durante quase toda a manhã.
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______________________________________________ PROVA P47919 18/04/09 12h Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0007 Murphy, Liam Hã, o meu nome é Liam Murphy. Estava do lado de fora na hora em que a polícia, a ambulância e todo mundo chegou. Corri para fora porque tinha gente correndo, depois dos tiros. Havia vários carros na frente da escola. E ninguém sabia quem era o atirador. De repente, vi um garoto sair correndo pela porta do ginásio, e aí veio um estouro e ele caiu para a frente. Ele simplesmente correu para fora e levou um tiro enquanto todo mundo estava olhando, enquanto a polícia e a imprensa estavam lá. Ele achou que tinha escapado. O peito dele bateu na calçada e os pés quicaram atrás e caíram no chão outra vez. Era de manhã e a luz estava alaranjada e forte em volta da escola, e eu me lembro da sombra dele no chão enquanto corria. Ele morreu com todo mundo olhando, ao vivo. Fiquei com vontade de chorar. E me perguntei por que não vomitei. A minha mãe não estava lá, mas a mãe de alguém veio e me abraçou e pôs a mão sobre os meus olhos, me virou de costas para a escola e foi comigo até os ônibus que estavam levando todo mundo embora. Então, enquanto nos levavam para os ônibus, notei que havia policiais por toda parte, uma fileira deles entre nós e a escola. Eu só percebi que estava chorando quando a mulher me abraçou. Eu não era muito próximo de nenhuma das vítimas. Sou do segundo ano e sei que um dos garotos também era, mas não éramos da mesma sala.
Quando entrei no ônibus, fiquei bem confuso durante um instante. Eu não tinha celular e outras pessoas me ofereceram emprestado, mas o meu pai trabalha na rua, não tem celular e eu não conseguia me lembrar do telefone do restaurante em que a minha mãe trabalha agora, porque é novo. Uma professora disse: “Ligue para os seus avós. Todos precisam saber que você está bem.” Mas o meu avô também trabalha na rua, e nunca nem usou celular, e a minha avó morreu no ano passado.
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Fiquei sentado no ônibus esperando para ir não sei aonde, onde quer que os pais fossem nos buscar, e estava chorando. Olhando pela janela. Não olhei os outros garotos no ônibus. Estava pensando em como não queria ter visto aquele garoto cair. Como conseguia relembrar, bem do jeito que tinha acontecido, e eu não queria ter visto aquilo. Um professor se sentou ao meu lado. Seu rosto estava cinzento, da cor errada. Pensei: tenho dever de casa de algumas matérias. Não me lembrava onde estava a minha mochila... Podia ter deixado no estacionamento ou na sala de aula. Quando chegamos à delegacia de polícia estadual e todos os pais estavam esperando, pareceu que tudo tinha acontecido dias antes, embora tivesse se passado mais ou menos uma hora. Desci do ônibus e a minha mãe estava lá, porque anunciaram no noticiário o lugar para onde estávamos sendo levados. Eu pude vê-la da janela. A minha mãe se levantou e eu a observei pôr as mãos nos dois lados do rosto, e ela as tirava do rosto e sacudia, muito depressa e rígida, depois segurava o rosto de novo, apertava a mão com força na boca. Deu para ver ela tentando espiar pelas janelas. Quando saí do ônibus, ela deixou as mãos caírem e seus ombros baixaram. Ela respirou e começou a correr na minha direção. Deu para ver os lábios dela se mexerem, dizendo “Graças a Deus”, e ela só estendeu os braços. E corri na sua direção para abraçá-la porque ela estava muito assustada. Fiquei com pena pelo medo que ela sentia. E chamei-a de mamãe, o que eu não fazia havia uns dez ou doze anos. Disse: “Tudo bem, mamãe.” Mas ela dizia “shhhh” no meu ouvido. Sou bem maior do que ela e estava curvado para abraçá-la. E me lembro de que ela não estava chorando.
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______________________________________________ PROVA P479110 18/04/09 14h15 Cap. Alex Dino Gravação em vídeo 0008 Thompson, Karl Eu me chamo Karl Thompson. Frequento a Escola Secundária de Haeden. Lembro de que não foram nem dez tiros. E aí tudo ficou em silêncio, não houve mais tiros nem nada, e todo mundo cochichava entre si. A gente estava na biblioteca e Alice entrou. Ela perguntou se todo mundo estava bem. Sussurrava, mas disse que a polícia estava lá e todo mundo ficaria bem. Era exatamente o que se esperaria daquela garota. Foi muito reconfortante vê-la. Eu me lembro de pensar que não podia acreditar em como ela conseguia ser perfeita até numa situação dessas. Naquele momento, estava quase apaixonado por ela. Como se ela fosse um anjo vindo até nós, e, se não fosse por ela, estaríamos muito mais apavorados. Ela ainda vestia a camisa dos titãs nadam, mas tirou a peruca e ficou lá, em pé, conversando conosco, um monte de gente com purpurina e roupas idiotas enquanto alguém tentava nos matar; ela parecia realmente preocupada, mas, tipo, preocupada conosco. Disse que as pessoas podem mesmo ficar malucas com o choque, e caso estivéssemos apavorados devíamos colocar os pés para o alto e nos juntar para criar calor. Ela devia saber essas coisas porque trabalhava no hospital. Os pais dela também eram médicos, acho. Só que não em Haeden. Então, ela baixou a mochila e remexeu lá dentro, tirou umas latinhas de suco de grapefruit e nos entregou. Dava quase a impressão de que ela conseguiria pegar o atirador sozinha. Como se não tivesse medo de absolutamente nada. Como se as balas pudessem passar por ela. Então, ela disse: “Preciso conferir se todo mundo está bem de verdade.” E saiu de volta para o corredor.
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Gravação em áudio: Dino, Alex, Cap. Departamento de Polícia de Haeden 23/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Alex Dino. Merda, Stacy, você sabe quem eu sou. Olhe, já conversei com Albany e com o governo federal sobre isso. E quero que você saiba que eu não falaria com você de jeito nenhum se não fosse o fato de Elmville e Chemung não terem mais repórteres próprios. O que me faz lembrar, antes que eu me esqueça, de que há algum figurão com mocassim enfeitado procurando por você no Alibi. Três deles usaram os laptops por lá. Acho que é o tipo de lugar onde vocês todos se sentem à vontade. Eu disse a ele que estou bem surpreso por você ainda estar aqui. Sem ofensa. Nem me pergunte de novo sobre o DNA, eu lhe disse o que aconteceu e você tem cópias dos relatórios. Nesse momento eu tenho muitas outras coisas com que me preocupar. Você quer uma segunda opinião, convença aquela pobre gente a desenterrar a filha. Tudo bem, calma. Vou chegar lá. Tudo mudou depois de 20 de abril de 1999. E tudo vai ter de mudar de novo. Por que essas coisas sempre acontecem em abril, ninguém sabe. Antes do que aconteceu lá, os órgãos da lei se concentravam em conter essas situações — garantir que o problema ficasse dentro do prédio. A razão de haver tantos danos colaterais em Columbine foi que a polícia só entrou na escola meia hora depois de os tiros começarem. Não conseguiram nem passar pela porta externa que dava diretamente na biblioteca. É mais fácil entender por que ninguém pegou aquele japa no Virginia Tech. Para começar, ele matou uma garota no quarto dela, no alojamento — e isso foi visto como violência doméstica, razão pela qual nunca se fecharia uma escola. Nos doze atentados, mais ou menos, que aconteceram desde Columbine, a polícia entrou no prédio na mesma hora. Mas isso não nos ajudou aqui. Entramos no prédio e não conseguimos descobrir o que tinha acontecido.
Tudo estava em silêncio. Os alunos estavam aterrorizados, trancados nas salas de aula. Quer dizer, a gente não tinha a mínima ideia. Achamos que podia haver alguém escondido lá dentro quando entramos. A suposição natural era que o atirador tinha atingido seus alvos e já havia se matado. Mas, olhando os garotos mortos, o jeito como estavam caídos, não. E não havia arma por ali. Não havia nenhuma arma. A única coisa que sabemos é onde a arma não está.
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Foi como se os tiros tivessem sido disparados por um fantasma. O silêncio era bem grande. Andamos por todo o prédio, a equipe da SWAT, a polícia do Estado, e não havia nenhum atirador. Não havia ninguém que conseguisse sequer descrever o atirador. Finalmente, algumas pessoas disseram que era um nadador ou nadadora — alguém vestido como uma nadadora. Mas era Dia do Espírito Escolar, e todo mundo, até mesmo os professores, estava fantasiado. Foi horrível. Aqueles rapazes caídos no corredor e depois os outros na sala de musculação. Tivemos de reter quase todo mundo lá. Já estava no fim da tarde quando tiramos as amostras de pólvora da mão dela e a levamos para a cadeia do condado. E, naquele momento, ela sorriu. Nunca vou me esquecer disso. Ela me olhou bem nos olhos e sorriu. Como se eu tivesse feito exatamente o que ela queria. Quer dizer, foi o que aconteceu naquele dia — você estava lá, você sabe do que estou falando. E eu estava certo em dizer que eles eram ligados a terroristas, como lhe contei. A Environmental Liberation Front, por exemplo, a tal frente de libertação ambiental. Usam a sigla ELF, que soa bem inocente, mas na verdade é um dos piores grupos do país. Acontece que os pais dela nunca se casaram. Piper nem é o sobrenome deles. Inventaram quando estavam morando em Nova York. Achei que era piada quando o agente federal me disse que esses grupos se dizem anticivilização. Como se houvesse alguém na Terra tão estúpido a ponto de acreditar que vai conseguir viver sendo contra a civilização. Só querem caos e assassinatos, e foi o que trouxeram para esta cidade. Estão por aí, destruindo tudo. Médicos que se corromperam, como aquele tal Kaczynski, um cientista que se corrompeu. Eles vêm para cá se infiltrar numa bela cidadezinha... Acham que, como ninguém sabe quem são, podem se dar bem. Pois agora há mais governo e civilização do que nunca imaginaram — isso eu posso garantir. Veremos todos eles na cadeia. Veremos a garota e os pais e o resto daqueles malucos, como a família Manson, na cadeia. O pai e aquele cara alto e moreno que visita Ross Miller, que enlouqueceu há trinta anos, veremos eles todos na cadeia. Alguém ensinou aquela garota a atirar, alguém lhe mostrou quais eram os alvos. Alguém lhe arranjou uma arma.
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Gravação em áudio: Weiss, Judith, 03/05/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Judith Weiss, 3 de maio de 2009. Posso lhe dar informações sobre o caso para que você possa ter uma ideia de histórico e nada mais. Assim, espero que nada disso seja publicado, a menos que eu lhe diga “Isso você pode citar” ou “Isso é informação oficial”, e lhe garanto que não direi. Está claro? E também estou gravando esta conversa. Conheci Gene e Claire através de Constant Souriani, a quem conhecia por meio de clientes em comum em Manhattan. Raramente aceito esses casos, porque Alice Piper não é uma empresa. E ficou ainda mais esquisito porque, atualmente, não há réu, por assim dizer. Caso a situação mude, no futuro, suponho que ainda estarei representando os Piper e talvez Constant, e quem sabe você queira me procurar de novo. Podem haver processos pessoais das famílias dos falecidos contra os Piper, e nesse caso representarei Gene e Claire, que não fizeram absolutamente nada de errado. Acredito que as provas mostrarão que o histórico de tendências políticas não teve qualquer influência sobre as ações de Alice. E que, na juventude, não foram diferentes de outros adolescentes que gostavam de música alta, andar de bicicleta e viajar. Quer dizer, por favor... Essa bobajada sobre anticivilização. No que diz respeito às ações exatas de Alice naquele dia, preciso enfatizar que não sabemos de nada. Só temos o teste de parafina — a prova das queimaduras de pólvora —, mas também sabemos que de manhã cedo Alice costumava praticar tiro ao alvo com o tio Ross. Por causa dos esportes e dos eventos preparatórios, havia pelo menos quinze garotas na escola com a mesma descrição de Alice naquele dia. A única testemunha ocular admite que estava tão apavorada que pode ter se enganado, que os acontecimentos não fazem sentido nem para ele. Que não consegue ter certeza. Talvez ele melhore com orientação psicológica. Quem sabe? O que sabemos sobre Alice Piper? Tecnicamente, ela é um gênio. O QI é de 158. Obteve 2.300 pontos no Exame de Aptidão Escolar. É atleta. Agora, pense no que isso significa. Pense no que isso significa para uma garota em Haeden. Não quero que saia nada sobre a inteligência dela vindo deste escritório. Mas, para os seus próprios fins, pense bem no histórico intelectual dela e no tratamento que está recebendo desta cidade.
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Uma moça de uma família como a de Alice, morando em Haeden... A inteligência dela será um problema enorme. Não importa que seja a garota mais doce do mundo e que todos a amem. Não importa que seja uma criança conscienciosa. A inteligência dela já é semicriminosa. Essa inteligência já a condenou. Tenho certeza de que você entende os fenômenos culturais de que estou falando. A conclusão é a seguinte: não há absolutamente qualquer prova concreta de que Alice Piper seja o atirador da Escola Secundária de Haeden, nenhuma arma, nenhum material escrito e, o principal, nenhuma motivação.
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PROVA P479112 17/04/09 14h15 Sarg. Anthony Giles Vida e Obra de Philippe-Ignace Semmelweis (anotações para o primeiro esboço) História Avançada 4º tempo Biografia e descoberta Alice Piper 10º ano 12/03/09 A morte misteriosa de um amigo foi o catalisador de uma descoberta científica que revolucionou o tratamento médico em meados do século XIX e pressagiou a obra de Joseph Lister e Louis Pasteur. Em 1847, Jakob Kolletschka, amigo do obstetra Dr. Philippe Ignace Semmelweis, cortou o dedo enquanto dissecava um cadáver. Morreu pouco depois, de febre puerperal, doença também chamada de mal do parto, muito comum no “hospital dos pobres” em que trabalhavam. Antes desse acidente, acreditava-se que a febre puerperal era provocada por “ar viciado, atmosfera desfavorável, influências cósmicas ou terrestres e psicologia inferior”. (324) Matava 20% das mulheres que davam à luz em hospitais-escola. *Preciso arranjar mais estatísticas sobre a população em geral. Semmelweis sugeriu que a causa real fosse a transmissão da doença, dos cadáveres para os pacientes, por médicos que não lavavam as mãos depois de manusear os mortos. A doença era passada para as mulheres de que cuidavam. Ao fazer os médicos desinfetarem as mãos com hipoclorito e limpar os lençóis, em apenas poucos meses ele reduziu em 90% a taxa de mortalidade. Quando mais médicos começaram a usar esses métodos, houve uma campanha pública para desacreditar a lavagem das mãos e a desinfecção dos instrumentos. (Utilizando exemplos, como slogans sobre não lavar.)
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Em 1861, Semmelweis sofreu um colapso nervoso devido à frustração de não ver os seus métodos aplicados de maneira mais ampla. Em julho de 1865, foi internado num manicômio. A seguinte frase lhe é atribuída: “Ao olhar o passado, só consigo dissipar a tristeza que cai sobre mim quando fito o futuro feliz em que a infecção será banida... A convicção de que, mais cedo ou mais tarde, essa época inevitavelmente chegará, alegrando a hora da minha morte.” (544) Semmelweis morreu em Wein Dobling devido aos ferimentos por espancamentos pelos funcionários do manicômio. A sua vida e a sua luta são socialmente instrutivas para quem um dia gostaria de ser médico, pois ele fez uma descoberta simples que permitiu a outros médicos e cientistas entender melhor a natureza das doenças bacteriológicas. A Universidade de Medicina de Budapeste tem o seu nome, assim como o “reflexo Semmelweis”, problema no qual a descoberta de um fato científico importante é punida em vez de recompensada. Semmelweis ficou famoso muito depois da sua morte como o “salvador das mães”.
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Gravação em áudio: Reynolds, Karen, 04/05/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Vejamos aqui, hoje é dia 4 de maio de 2009. E sou a policial Karen Reynolds. Bom, é, como eu disse, ela não parecia uma garota que tivesse cometido um crime. Parecia uma criança só esperando que os pais fossem buscá-la. Tinha o mesmo olhar entediado, distraído, ansioso, desse jeito. Parecia cansada. Como o meu filho depois do treino de atletismo. Os meus filhos frequentam a escola de Elmville, graças a Deus. Conheço adolescentes. Tenho quatro em casa, e se eu não soubesse o que ela fez, não conseguiria distingui-la de nenhum deles. Estava toda corada e suada, mas não parecia uma assassina. Para lhe dizer a verdade, e isso é totalmente em off, estou falando sério, de verdade. Esta fita também é prova de que eu disse isso. Então, você não pode publicar. O fato é que às vezes ainda não acredito que foi ela. Tinha toda a pólvora nas mãos e no rosto quando fizemos o teste de parafina. Mas ela costumava treinar tiro ao alvo pela manhã com o tio. Recebemos essa resposta de todos os professores, droga, de metade da escola. Ela também não era o único aluno com pólvora residual, mas os outros eram rapazes, e eram caçadores, tudo parecia diferente, e não estavam nem perto da cena do crime. Há muita gente que nunca acreditou que fosse ela. Na época, não havia câmeras na escola. Foi o dia mais maluco possível, com a reunião de preparação para os jogos e o Dia do Espírito Escolar, e podiam tocar música nos alto-falantes entre as aulas. Seria a última vez que aquilo acontecia.
Quando a fichamos, ela foi educada, estava confiante — como se um erro tivesse sido cometido e ela soubesse que precisava passar por esse processo e logo os pais iriam buscá-la. Perguntou quando os pais chegariam. Perguntou se alguém tinha morrido, ou quantas pessoas, se sabíamos quem. E pareceu nervosa quando dissemos que não podíamos lhe contar. Disse que estava preocupada com os amigos. Mas estava calma, aliviada. Uma garota como ela poderia mesmo reagir daquela maneira. Ela não era, de jeito nenhum, o tipo de pessoa que é mandada para unidades correcionais, isso eu posso lhe garantir. Ela era totalmente diferente disso. Aquela era uma garota de muitas surpresas.
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Mas as presidiárias acreditaram. Ela ficou aqui durante algumas semanas. Tinha uma advogada fodona que se assegurou de que ela ficasse aqui mesmo. E passou por maus bocados porque era uma celebridade. Devia ter ficado em isolamento o tempo todo, mas nossas instalações são limitadas. Há oito mulheres aqui dentro, e às vezes ela ficava com elas na carceragem geral, e não foi fácil para ela, tenho certeza. Ouvi garotas falando sobre ela no telefone com as mães e os namorados, ou conversando com o delegado, ou nas aulas para tirar o certificado do ensino médio. Elas a chamavam de Bombalice. Elas a respeitavam e a detestavam, e acho que é porque a maioria das garotas são daqui mesmo e em algum momento frequentaram a Escola Secundária de Haeden ou de Elmville. Ela ficou bem próxima de uma garota chamada Lorelei Ramos, o que foi uma jogada inteligente, porque se alguém fosse começar algum tipo de agressão física, seria Ramos. Ela havia violado a condicional, não podia sair de Kings County, foi presa aqui por excesso de velocidade e posse de entorpecentes, e agora chama isso aqui de lar. Enfim... Ficaram realmente próximas, por alguma razão. Não há no mundo duas pessoas tão diferentes na aparência e no jeito de falar que se davam bem. Ramos ainda está aqui, e, como você sabe Piper não. Talvez não tivesse conseguido se Ramos não estivesse fazendo tanta algazarra. E, vou lhe dizer, não gostei de ser a primeira a ver o que ela fez. Afinal de contas, ela é uma criança. Não me importo de você falar com Lorelei, se ela concordar. Ela terá de ligar a cobrar e é ela quem decide se quer contar ao advogado, além de ter uma audiência marcada, então, sabe... Eles têm vinte, trinta clientes, talvez nem deem a mínima, pelo que sei. Ela é a sua melhor chance de descobrir alguma coisa, se Piper contou a alguém o que planejava. Ou então, procure uma garota que goste de se gabar. E não é Ramos. Há muitas garotas que gostam de dizer que são da pesada e tal, mas inventam coisas também — então, veja bem em quem vai acreditar. Acabei de passar por um treinamento lá em Elmira sobre essas coisas, como se comunicar e escutar melhor essas garotas e não deixar que nos manipulem — porque é isso o que elas querem, e sabe, só queremos que elas cumpram a pena e possam voltar bem para o lado de fora. Queremos mesmo ajudá-las há usar esse tempo para fazer algumas mudanças reais.
Agora o foco está todo na reinserção social. Como fazê-las voltar para o mundo. Vou lhe dizer que gosto muito dessas garotas e sei que fazem amizade aqui e são tratadas corretamente por nós. Muitas delas sofrem de estresse como os veteranos — e não por estarem aqui. Quer dizer, elas têm na vida delas
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aquele troço pós-traumático. O curso que fiz diz que 85% das mulheres encarceradas sofreram algum tipo de agressão, sabe, física, abuso sexual ou estupro, algumas várias vezes até, antes de serem presas. Então é aí que a coisa pega — a gente as ajuda a perceber que não importa o que fizeram com elas. Elas precisam escolher direito agora para ficarem bem. Cabe a elas. Elas não têm dinheiro, se acham um lixo, querem arranjar metanfetamina, querem fumar crack para se sentir melhor — mas vão se sentir pior quando acabarem na cadeia e não puderem ver a família ou, pior ainda, os próprios filhos. É tudo um caos, um grande caos, sabe. Alice Piper se era culpada, fez uma coisa com que muitas delas sonhavam, tenho certeza. Droga, acho que há garotas que nem estão na cadeia e que já se sentiram assim. Há muitas garotas furiosas aqui. É assim que é. Basta somar dois mais dois. Dá para ver pela cara delas. Nenhuma delas derramou lágrimas pelo que aconteceu na Escola Secundária de Haeden.
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Flynn VOCÊ SABE O resto. Ou tanto quanto todo mundo. Uma pistola Glock 37, registrada em nome de Ross Miller, desapareceu. Um cheque de aniversário de 180 dólares de Constant Souriani foi descontado. Então aconteceu algo que poderiam ter chamado de um tiroteio na escola. Poderiam ter chamado de tiroteio na escola e estavam chamando de conspiração. E se era conspiração, eu estava envolvida. Tom Cutting e eu continuamos a prestar atenção ao que estava à nossa frente. Eu tinha acesso a informações e não pretendia ver isso tudo se transformar num tipo de bagunça obstruída, como no caso White. Era a minha reportagem — e com toda a certeza, era uma reportagem abrangente. Queria manter a cabeça erguida e a concentração. Algumas das coisas que estavam diante de mim eram fotografias da polícia tiradas no corredor, na frente do refeitório, na sala de musculação, no laboratório de ciências e no estacionamento da escola. Ambientes conhecidos e temas ruins. A ironia horrível da decoração da escola pendurada no fundo dessas fotografias. A incongruência de carteiras e cartazes, quadros-negros, murais e armários ao lado de imagens de combate. As fotos da cena do crime, as chamadas fotografias criminais, não ajudavam a entender o que tinha acontecido. Embora eu me debruçasse sobre elas, achando que ali haveria algum detalhe que revelasse tudo. Revelasse que aquilo começou como uma rivalidade entre grupos ou que foi obra do clássico aluno instável. Tom soube na mesma hora que não era o caso. O seu melhor aluno de primeiros socorros tinha ido às aulas naquele dia, preparado para tratar trauma e choque. E Tom sabia, melhor do que ninguém, como era a cena do crime. Dormimos na minha casa depois do que aconteceu e, no restante do tempo, ficamos na cidade, porque ele disse que nunca mais queria ver o CBV pela janela. Para nós, esse período foi todo aversão. Todo não dito.
Uma vez, vi a mãe de Kyle Potter na mercearia depois de ter passado o dia examinando fotografias do corpo do seu filho. Alguns closes da cabeça e do tronco, ou do que restou. Em outras fotos, o corpo dele estava junto de outros dois. Os ombros se tocando, os braços esticados sobre o peito, a mão na coxa, parte da cabeça descansando no logotipo da escola no blusão de moletom encharcado de sangue. Em algumas fotos menos explícitas, a roupa de atletismo, a intimidade, a postura lânguida quase lembrava garotos brincando.
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A não ser pelo sangue. Fiquei me perguntando se esses rapazes derramaram uma quantidade exagerada de sangue por serem tão saudáveis, tão fortes fisicamente. Havia sangue cobrindo os azulejos embaixo deles: pontos de sangue se espalhavam pela parede à direita. A princípio, fiquei surpresa com a quantidade de sangue, mas olhei as fotos tempo suficiente para ver outras coisas — a cor de um olho, a pele lisa, nervos branco-rosados. Pareciam bezerrinhos. O peso e os músculos do corpo evidenciados mesmo na morte. Vi a mãe de Kyle Potter na fila e não falei com ela. Não que alguém fosse falar comigo. Naqueles dias logo depois do tiroteio, fiquei grata por ver o mundo como uma série de fatos concretos, um atrás do outro. Funciona assim: há uma grande quantidade de sangue nessa fotografia. Preciso de cigarro. Vou comprar. O adesivo na minha janela diz que vou ter que fazer a vistoria em breve. Lá está a mãe de Kyle comprando pudim Swiss Miss. Agora o cigarro custa 7,75 dólares. Preciso ligar o limpador de para-brisa porque está chovendo. Esqueci de comprar papel higiênico. Puseram uma nova placa no Rooster. Será que Tom está de plantão? Esse novo sentimento também era útil para trocar pneus cortados, limpar cacos de vidro debaixo da janela da sala e registrar queixas de assédio moral que eram ignoradas por Dino. Mais ou menos nessa época falei a um repórter de rádio sobre a liberação de provas jurídicas com um tom de voz que achei simpático e profissional. Porém, quando ouvi a minha voz no dia seguinte, percebi que descrevera as imagens e dera informações como se lesse uma lista entediante. Ouvia a minha voz enquanto bebia café. Ainda não tinha feito nenhuma refeição completa depois de examinar as fotografias da Escola Secundária de Haeden. Mesmo quando Tom preparou um jantar para mim foi quase impossível. Achava que nunca mais conseguiria comer carne. As fotos não ajudaram em nada e, em última análise, as “provas” de Dino deram muito mais informações sobre ele e Haeden do que sobre o Dia do Espírito Escolar da primavera.
Certo dia, ele me ligou na redação para me dar uma cópia de uma carta tirada da casa dos Piper, novamente sem nenhuma censura. Li, mas não entendi. Poderia ter sido escrita por qualquer um dos meus amigos que decidiram estudar administração. Vi o nome do autor: Constant Souriani, empresário cuja tia trabalhara na clínica de família de Haeden na década de 1990. Uma entidade já conhecida: amigo da família, nada de novo. Parecia um texto melancólico. Os problemas de se trabalhar para “o cara” e tudo mais. No entanto, Dino insistiu que a carta era fundamental para se entender o caso. Que
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Souriani era um árabe. Me mostrou uma caixa de livros, um cheque sustado da conta de Souriani para Alice Piper e um artigo que ela escreveu para a aula de inglês — quase tão bom quanto tudo o que escrevi na faculdade de jornalismo. Ele achava que Alice era uma nova raça de homem-bomba, pior do que um homem-bomba, porque naquele momento ainda havia muitas dúvidas sobre o que aconteceu naquele dia. Dino andou lendo o site da Segurança Interna sobre terroristas que atacam as nossas escolas, como fizeram na Rússia. O fato de haver agentes do FBI na cidade não ajudava. Nem Dino, pela primeira vez na vida, estar trabalhando com eles. Aceitei a sua prova. E fiquei por perto. Em parte porque trabalhar tanto na reportagem impedia que eu a sentisse. Que eu sentisse o que Alice sentiu. O que Wendy sentiu. O que as mães e pais daqueles garotos sentiam. Sabia que não havia nada a ganhar com a pesquisa de Dino. A pessoa que podia explicar tudo aguardava na cadeia e estava contentíssima de falar comigo. Ela não mudou. Os olhos, o rosto, o sorriso. Era ela mesma. À minha espera na sala de visitas, usando o macacão laranja berrante com bolsos laterais. Poderia estar me contando o último projeto para a feira de ciências ou sobre a arrecadação de recursos para caridade. Pensei no jardim das borboletas e em como, em um mês, tudo ali estaria florido outra vez. Eu seria a única pessoa a entrevistar Alice Piper. A registrar a voz dela para o futuro. Tinha uma reportagem que ninguém mais teria, a coisa de que Dino precisava para encerrar o caso, e de que eu precisava para promover a minha carreira, como sempre planejei, com uma super-reportagem sobre um lugarzinho perdido no meio do nada.
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Gravação em áudio: Piper, Alice, 29/04/09 Stacy Flynn, Free Press, Haeden Alice Piper, 29 de abril de 2009. Matei Bruce Haytes, Kyle Potter, Chris Ward, Paul Rees, Rick Tompkins, Tony Belardini e Taylor Williams, que até conseguiu sair da escola. Acho que provavelmente ainda há três ou quatro pessoas na cidade, adultos, que precisam ser eliminadas. Mas, além do irmão de Bruce, de quem estou bastante certa, não sei quem são, e parece que não serei capaz de sabê-lo. Como vai você? Stacy? Havia algo errado com eles. Sabiam onde Wendy White estava e não havia como provar. Ainda não há, não é? Gente que faria uma coisa dessas sem dúvida faria outras coisas eticamente erradas e dispendiosas para a comunidade como um todo: há a obrigação moral, mas também há o aspecto lógico. Não acho que haja qualquer outra opção. Seria melhor para todos, inclusive para as pessoas de quem eles eram próximos, que estivessem mortos. Sabiam onde ela estava. Falavam sobre isso e, na época, não fiz a coisa certa. Achei que estavam brincando. Não, eu não chamaria de ato de vingança. Chamaria de ato de extrema racionalidade. Trata-se, claramente, de eliminar um problema. Quer dizer, eu me sinto muito bem. Eu me sinto muito, muito bem com o que fiz. Provavelmente melhor, mais aliviada do que nunca. Não gosto da cadeia, sinto falta de sair e nadar, e gostaria de ver como está o borboletário. Mas, em última análise, não é tão ruim assim, considerando que consegui obter esse resultado positivo: eliminar seis pessoas sem responsabilidade moral e que provavelmente fariam mais coisas violentas. É preciso começar por algum lugar. Se um garoto machuca a gente ou algum amigo de propósito, machucará outras pessoas; se a gente tem as informações mais íntimas e exatas de que precisaria para agir, a gente não deve esperar um governo que ainda debate os direitos humanos básicos das mulheres em outros países, ou que nunca aprovou uma Emenda dos Direitos Iguais para cuidar dessas coisas. Isso não é lógico. Mas você já deve saber disso. Você deve ter feito várias pesquisas para a edição do jornal que saiu quando acharam o corpo de Wendy. Você está bem?
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A ação que escolhi deu o melhor resultado. Escola é para aprender, corrigir e evitar erros. Se eu fosse ser pega, era melhor que fosse por eliminar vários problemas da maneira mais instrutiva. Todos tendem a pensar que garotas não fazem e não farão coisas assim; mas não há nada que nos detenha, a tecnologia permite que a gente aborde esses problemas imediatamente em vez de passar por um sistema que não funciona muito bem. Não é? Deveria haver um jeito mais racional de pensar nisso, como: em geral, os homens são pessoas legais que vivem no mundo, e é possível eliminar os que causam mal, ou causarão no futuro, para ter uma sociedade melhor em que estuprar e matar mulheres não seja divertido nem provoque discursos políticos. Isso não é bom para ninguém. Entende o que quero dizer? É ótimo você ter publicado o que escreveu. Mas, quando se está escrevendo, é porque já é tarde demais. Além disso, estavam todos no mesmo lugar, desprevenidos e desarmados. Nada jamais me fez sentir tão responsável. Tudo bem se eu nunca sair daqui. Mas você provavelmente deveria sair. Você provavelmente deveria sair de Haeden.
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Flynn DEPOIS DE ME despedir dela, andei de carro pelo campo com as janelas abertas. Era um dia quente, botões de flores douradas coroavam os ramos superiores dos bordos que ladeavam as pistas estreitas e sinuosas, e o frio da terra recentemente congelada entrou no carro, vindo das valas e canais que flanqueavam a estrada sem acostamento. Ela me agradeceu. Agora, eu tinha tudo de que precisava. E não tinha nada. Não sabia se ela contaria a Dino essa história, se esperaria até a próxima audiência no tribunal para dar a mesma explicação prosaica. É claro que ela me fez essa confissão. Eu tinha um longo histórico de publicar reportagens sobre as suas conquistas. De sorrir com as suas invenções. E obviamente era assim que ela via aquilo. Como sabia exatamente quem capturou, estuprou ou matou Wendy White? O fato era que não sabia. Não podia saber. E, por causa dos erros no manejo das provas de DNA, quem poderia ter feito alguma diferença também não sabia. Entrei na cidade e estacionei o carro na Main Street, perto da redação, mas não desci. Fiquei sentada observando a luz começar a se inclinar sobre os prédios. Eram quase cinco e meia e dava para ver gente saindo das picapes para entrar no Rooster e no Alibi, músicos levando estojos de violino, homens de calças jeans manchadas de tinta seguindo para a happy hour, um grupo de garotas com uniforme de atletismo entrando no Sal’s para comer pizza, uma garçonete sentada num banco e fumando na frente da lavanderia. * * * Foi para lá querendo salvar Haeden e não foi capaz de salvar nem uma mulher. Não até aquele dia.
Naquela noite, fui para casa e telefonei para a minha editora no City Paper, e ela achou que eu estava brincando quando pedi para voltar à redação.
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Liguei para Brian e disse a ele que estava voltando para casa com meu namorado. Disse que eu não me importava que a Rua Schiller estivesse meio abandonada, perguntei se ele poderia nos ajudar a achar um lugar. Então, apaguei a entrevista. Foi assim que partimos de Haeden: Tom e eu, com uma picape cheia de fotografias, transcrições e depoimentos. Não pararia de escrever sobre isso. Não me afastaria tanto novamente da fonte da maldade, catalisadora de todas as compulsões criminosas que eu decidi revelar desde a faculdade. O grande “quem se beneficia” no fim de cada reportagem que, de certa forma, sempre deixamos de lado ao acumular detalhes. Não se tratava mais de vender uma matéria. Nem de ganhar Polks ou Pulitzers. Tratava-se, e ainda se trata, de liberdade. A dela, a sua, a minha. Como a arma que ela usou e as vidas que tirou, a confissão de Alice Piper já não existe.
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Beverly Haytes 22 DE ABRIL DE 2009 SOUBE POR ALGUÉM que Bruce se jogou na frente de Kyle, e por isso ele foi o único a levar três tiros, tanto no peito quanto na cabeça. Tentava proteger o amigo e companheiro de equipe. Era mais corajoso do que a maioria das pessoas. Foi sempre assim com os meus dois filhos. Não consigo falar sobre Brucie. Acho que não seria certo. Essa é a última foto que tiraram de todos eles. Olhe só. Os rapagões. Todos cortaram o cabelo assim, do mesmo jeito, para a festa dos ex-alunos na escola. Jim conversou com Alex Dino. Ele disse que iam cuidar para que houvesse uma investigação completa. Simplesmente não sabemos por que ou como uma coisa dessas pôde acontecer. Alex disse a Jim que tem a ver com a família daquela garota, que participava de um culto terrorista. Estão se escondendo aqui em Haeden; quem sabe no que se meteram lá em Nova York. Bom, você viu como a mãe sempre usava preto ou aquelas roupas esquisitas feitas em casa. Não consigo mesmo dizer nada sobre Brucie. Não serei capaz. Posso dizer que viverei minha vida como Brucie viveu a dele, principalmente como a vivia no time de futebol, que era a coisa mais importante para ele. Jim leu isso no funeral dele, e essa é a filosofia da nossa família e a única coisa que sabemos, do fundo do coração, e que os nossos meninos e toda a nossa família trouxe ao mundo: Quanto mais vivo, mais percebo o impacto da atitude na vida. Para mim, atitude é mais importante do que fatos. É mais importante do que o passado, do que a educação, do que o dinheiro, do que as circunstâncias, do que os fracassos, do que os sucessos, do que o que os outros pensam, dizem ou fazem. É mais importante do que aparência, talento ou habilidade. Pode construir ou destruir uma empresa... uma igreja... um lar. Não podemos mudar nosso passado. Não podemos mudar o fato de que os outros agirão de certa maneira. Não podemos mudar o inevitável. A única coisa que podemos fazer é pegar a única corda que temos, e esta é nossa atitude... Estou convicto de que a vida é 10% o que acontece comigo e 90% como reajo a isso. E é o mesmo com você... Somos responsáveis pelas nossas atitudes.
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A citação é de Charles Swindoll, que escreveu Santidade da vida. É uma citação muito adequada num momento de tanto sofrimento. Mandamos imprimi-la em mil cartões de oração. Mandei um a Dale, lá onde ele está, na matriz da empresa. Pobre Dale, com o coração partido outra vez. Era demais para ele voltar para casa e sofrer mais. Pelo menos é um pequeno consolo saber que, em seus últimos instantes, Brucie estava no controle da sua atitude, e tenho certeza de que não precisou pensar duas vezes na hora de tentar proteger Kyle. Era assim que ele era. Ele fazia parte do time. E era o meu bebê. Eu me orgulho de tê-lo criado e me orgulho da oportunidade que tive de conhecê-lo. E Jim também se sente assim. Não quero vê-lo desonrado pela minha auto piedade. Sabe a vida dele, no fim das contas, foi um pouco como a de Jesus. Foi o que o nosso pastor disse. Permitimos que o pecado daquela família terrível fosse gestado nesta comunidade, e Brucie pagou por isso. Brucie, meu filho, meu bebê, pagou por aqueles pecados.
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Alice PENITENCIÁRIA DO CONDADO DE ELMVILLE, 30 DE ABRIL DE 2009 ELA RASGAVA AS páginas de todos os livros que a mãe trazia depois de lê-las. Rasgava as páginas e as dobrava em quadrados perfeitos. Depois, dobrava os quadrados em forma de rãs, borboletas e garças, jogando todos no chão ao lado da cama. Era assim que esclarecia seus pensamentos, sentada, dobrando quadrados e triângulos aos montes. Ela os jogava pelas grades da cela para Lorelei Ramos, que os desdobrava e lia. — Que merda é essa? — perguntava Ramos. — É uma rã. — Não, estúpida. De que livro é? — Acho que era Modos de ver, de John Berger. — Quantos você dobrou? Não fique só jogando eles por aí, você devia arrumar em fila ou coisa assim, bem bonitinho e ajeitadinho. É como eles fazem. Não arbitraram fiança para ela, então ela não podia ir para casa. Na opinião de Ramos, não havia como sair, mas se ela conseguisse, a hora seria agora, porque não fizera a segunda avaliação psiquiátrica, estava só ali sentada enquanto a pessoa que os pais tinham contratado fazia o que tinha de fazer para libertá-la. Havia sempre a chance de fugir durante o transporte; Lorelei já ouvira dizer que esse tipo de merda acontecia. Essas penitenciárias de cidade pequena estavam sempre lotadas, então elas acabariam sendo transferidas, talvez para o condado de Chemung. Fora isso, essa seria a melhor oportunidade. Lorelei, como Alice, era uma estrategista. Mas, como explicara a Alice, até os estrategistas podiam cometer erros burros para cacete quando não sabiam o que antecipar. E talvez Alice fosse a pessoa inteligente mais estúpida que Lorelei já conhecera. — Só não acho que haja alguma prova de que eu tenho uma doença mental — dissera Alice. — Não? — comentou Lorelei, passando a língua nos dentes. — Acha mesmo que não?
Alice fez que não. Mas não havia ninguém para vê-la fazer isso.
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Logo seria 1º de maio. Ela gostaria que houvesse uma mesa na cela com uma garrafa que dissesse BEBA-ME, como em Alice no País das Maravilhas, e aí ela poderia beber e encolher como um telescópio e sair andando por entre as grades, miúda como um camundongo. Não falava com Theo havia uma semana e as cartas que trocassem seriam lidas. Havia coisas que ela precisava que ele lhe trouxesse. Ela plantou bananeira e andou em círculo pela cela. Então, encostou-se na parede, ainda de cabeça para baixo, com os calcanhares contra o cimento frio. Tinha de fazer alguma coisa logo, com as mãos. Queria costurar. Fez algumas flexões e depois se encolheu lentamente até enrolar o corpo e ficou deitada no chão. Então, fez o que Lorelei disse e começou a arrumar os animais de origâmi em volta das grades, como se fossem uma plateia. — Você chama eles? — Chamo — disse Ramos. — Chamo logo; só tome cuidado para não cometer nenhum erro. Há uma câmera, de qualquer jeito, mas nenhuma garantia de que estejam olhando. Você precisa mesmo falar bobagens. Não do jeito que já fala. Quer dizer, uma puta maluquice. Palavras que não façam sentido nenhum. Mas eles têm de saber que está falando sério, têm de pensar que você vai mesmo fazer. — Certo — disse Alice. — Obrigada. — Não faça merda — advertiu Lorelei. — Se você foder tudo, não vai ter outra chance com esse tipo de parada. Alice se segurou nas grades da cela e fez quinze trações. Faria isso e depois Lorelei chamaria os guardas. E depois disso, tudo o que Theo descobrisse seriam informações públicas e, esperava ela, exatas. Ele só teria de conhecê-la. Saber o que tinha em mente. Não havia mesmo outra opção. Ele teria de recordar e repassar tudo para descobrir o subtexto, imaginar como, onde e do que ela precisaria. Teria de se lembrar do rio subterrâneo. Teria de recordar a floresta selvagem, da maneira como ela agora se lembrava. Recordar como sempre lhe levava coisas, ímãs e cera de abelha e soldadinhos do exército. Estavam ambas em silêncio, esperando. Então Lorelei sussurrou: — Piper... — O quê?
— Queria lhe dizer antes de você ir... que a minha mãe... — Ela hesitou. — A minha mãe... — Ela recomeçou, mas não terminou a frase, e Alice conseguiu escutar na voz dela que aconteceu algo que lhe tirou o fôlego. Não
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disse nada e escutou Lorelei limpar a garganta algumas vezes. Finalmente, a mulher falou, em voz baixa e com clareza: — Você agiu certo. Houve um zumbido alto e ressoante, as luzes se apagaram e elas ficaram sentadas em silêncio nas celas separadas. Alice esperou que os olhos se ajustassem. O corredor diante das celas era mal iluminado por uma única lâmpada fluorescente. Alice tirou o lençol da cama e rasgou a borda, arrancando uma tira comprida do lado. — O que está fazendo? — perguntou Ramos da sua cela. — Nada. Alice rasgou mais duas tiras e começou a trançá-las. Ergueu-se de novo contra as grades, o mais alto que conseguiu, e amarrou o tecido com força. — Bombalice, que merda você está fazendo? Alice fez um laço e um nó corrediço com o restante do pano. Enfiou a cabeça pelo nó, nas pontinhas dos pés. — Alice — sussurrou Lorelei. — Siga a merda do plano. — Não — disse ela. — Vou fazer algo melhor. Permanente. — E pulou com leveza, os braços ao lado do corpo, depois balançou de um lado para o outro contra as grades, e tudo ficou branco.
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Alice CENTRO MÉDICO DO CONDADO DE HAEDEN 30 DE ABRIL DE 2009 O CENTRO MÉDICO do Condado de Haeden dava para o rio, mas o quarto onde ela estava, não. Nos primeiros minutos, antes que passasse para o novo leito, ela olhou pelas persianas e só viu escuridão e as luzes do estacionamento lá embaixo. O hospital ficava a quase 50 quilômetros da penitenciária e, quando a ambulância a levou para lá, Gene e Claire já estavam esperando por ela. Pareciam exaustos e tristes, porém aliviados com a oportunidade de poder tocá-la e beijá-la. Isso foi antes que ela começasse a apagar outra vez. Alice sentiu neles o cheiro de casa, de terra, de pão assando e do café, e o cheiro deles mesmos, algo no rosto de Claire, como mel ou maçãs. Outro homem no quarto mandou que fossem embora, e ela abriu os olhos para ver quem era. Uma farda azul e um rosto desconhecido. Não estava amarrada, não que pudesse perceber. Nada de algemas de plástico, nada em volta dos tornozelos que ela pudesse sentir, de qualquer forma, ela não parecia conseguir sentir nada. Tudo estava lento. Qualquer movimento demandava tempo ou pensamento demais, ou algo que nunca pareceu exigir antes. Sentia-se como se observasse tudo numa tela. Olhava o guarda, e ele também pareceu cansado. Claire estava em pé ao lado de Alice, segurando sua mão. Ela examinou o soro, depois baixou os olhos e sorriu para Alice, arrumando o seu cabelo para trás. — Por favor — disse Gene ao guarda —, eu e a minha mulher somos médicos, se pudéssemos ter apenas um instante para ver se ela está bem. Alice observou o guarda olhá-los e erguer as sobrancelhas; deu um curto suspiro de desdém. De pé, com as suas roupas gastas, no meio da noite, com a filha criminosa, o rosto amassado pelos lençóis amarrotados, usando botas enlameadas. — Não, olha, estou falando sério — disse Gene. — Sou médico e gostaria de ficar aqui até que ela seja atendida, amanhã.
— Entendo, senhor — respondeu o guarda. — Mas isso não é uma visita a pacientes, ela ainda é uma pessoa encarcerada sob custódia. Há uma equipe médica aqui cuidando dela, e eu mesmo ou outro policial ficaremos do lado de
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fora desta porta até ela ir para a unidade correcional ou ser levada de volta para a penitenciária do condado, ok? Claire tocou a lateral do pescoço de Alice. Alice se perguntou se a mãe saberia dizer o quanto estava ferida. Ela olhou o rosto de Claire e pediu a Deus que ela e Gene fossem embora. — Sinto muito, mãe — disse, ou achou ter dito, e começou a tossir de novo. — Tudo bem, querida — respondeu Claire, mas Alice conseguia ver o desapontamento nos olhos da mãe. Claire tinha medo dela e medo do que ela fizera consigo, do que poderia fazer. Era o contrário do que ela queria. — Você está com um belo hematoma aqui. Podia ter quebrado o pescoço. Então ouviu o pai dizer: — Gostaria de falar com o médico que está de plantão. — Senhor, fique à vontade para fazer isso; mas não posso permitir que o senhor fique aqui, certo? — A minha filha está visivelmente ferida e psicologicamente abalada. Não vejo razão para não passarmos a noite com ela. Alice viu o guarda lançar um olhar de tamanho desprezo a Gene que sentiu o ar do quarto se alterar. Como se o ódio pudesse mudar o próprio espaço onde estavam, rearrumar as moléculas. O rosto dele era carnudo e pálido, os lábios finos estavam erguidos dos lados. Alice observava. As pessoas eram sempre assim, mostravam tudo o que se passava dentro delas? O guarda balançou a cabeça lentamente, estreitando os olhos para a audácia de Gene. — Não vou discutir com o senhor, certo? Estou aqui para proteger a sua filha e para impedir que ela vá para algum lugar. É o meu trabalho, certo? Agora vocês têm um minuto para se despedir. Então ele afastou os olhos deles e ligou a televisão, passando os canais com impaciência enquanto esperava para escoltá-los até o lado de fora.
Quando Alice tirou os olhos do guarda, percebeu que Gene estava em pé ao lado do leito. Ele se inclinou e a beijou na bochecha. Os olhos dele eram muito azuis e o cabelo despenteado — ela não se lembrava de já tê-lo visto assim. As rugas da testa eram fundas; o cabelo, que sempre foi da mesma cor que o dela, tinha agora mechas brancas e prateadas se destacando no meio do louro. Tocou as laterais do pescoço dela, beijou-a de novo na testa. Ela percebeu
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que ele começava a chorar e estendeu a mão para tocar o seu rosto, e ele pegou a mão e a segurou. Sua mãe e seu pai eram lindos, pensou, enquanto eles ficavam parados ao seu lado. Sentia pena deles, amava-os tanto. E queria que fossem embora logo, antes que não conseguisse mais manter os olhos abertos. Precisava ficar acordada, mas mesmo enquanto pensava nisso sentiu-se lenta e pesada na cama quente com lençóis brancos. — Ela tirou uma radiografia — ouviu Claire dizer. — A essa altura já saberíamos se fosse haver edema pulmonar. A situação não parece tão ruim. E esse soro sem dúvida vai mantê-la presa aqui. Gene olhou o saco plástico que pendia acima da cabeça de Alice. Os olhos dela seguiram os dele e ela o viu piscar, depois ele estendeu a mão depressa, quase involuntariamente, e torceu alguma coisa no alto da sonda transparente que terminava no antebraço dela. Ele desligou, pensou Alice. Ele a olhou de volta e a encarou, assentindo, como se para confirmar que ela não imaginara aquilo. Ela voltou a fechar os olhos. — Escute querida — disse Gene, dando-lhe dois tapinhas na bochecha e aproximando seu rosto do dela. — Escute, escute. Al? Mamãe e eu visitaremos você amanhã o mais cedo possível. Se a tosse piorar ou se você se sentir confusa ou se não conseguir se lembrar de nada, ou sentir tonteira ou tremores, chame a enfermeira, certo? — Ele lhe fez um sinal com a cabeça e apertou-lhe a mão. — Há uma enfermeira? — Sim, querida — disse Claire. — Enfermeiras ou auxiliares virão. Aperte o botão que lhe mostraram. Mas vai dar tudo certo e você precisa dormir. — Tá bem. O guarda levou os pais para fora e pôs o controle remoto da televisão ao lado dela sem dizer uma palavra. Uma luz azul difusa entrava no quarto. O teto parecia muito longe e ela sentiu que o olhava de cima.
O guarda tomou algo num copo de isopor, deu uma espiada no relógio. Não a olhou nenhuma vez, e ela se sentiu como se fosse um pacote no quarto, à espera de que alguém fosse buscá-la. Ela era algo dentro do seu corpo, e o seu corpo estava preso ali, mas também prendia a coisa que ela era. Fosse o que fosse. Ela observou o guarda começar a cochilar. Ele era o mesmo que ela, uma coisa dentro de si mesmo.
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Quando a porta se fechou, ela ouviu um clique, e depois o som de algo — uma cadeira, talvez — raspando o chão do lado de fora. No dia seguinte seria 1º de maio. Ela tentou ler O vento nos salgueiros na cabeça, recordar as frases. Testou para ver se a sua memória estava intacta. Algum tempo depois que Gene e Claire foram embora, não sabia quanto tempo, minutos ou horas, começou a sentir uma dor incrível no pescoço, no ombro e na nuca. Um músculo distendido, um hematoma. Sentiu a lesão, mas também se sentiu acordada. Inteira outra vez, não uma coisa dentro de uma coisa. Os seus pensamentos voltaram-se para o que fazer consigo mesma. Claramente não precisava tanto assim do que havia no soro, aquilo só tornava impossível pensar ou se mover. Devagar, descolou a fita transparente que mantinha o soro no braço, depois tirou a agulha, soltou da sonda a ponta dura de plástico azul e a enfiou no colchão. Minutos se passaram, talvez uma hora, e ela conseguia sentir mais intensamente a distensão do pescoço. Começou a verificar mentalmente os sintomas, a mexer mãos e pés. Inclinou a cabeça e sentiu uma dor aguda se mover, de alguma forma, do ombro até as cavidades nasais. Talvez fosse isso que Gene chamou de tremores. Seria muito fácil alguém na posição dela ter cometido um erro ou ter calculado mal, feito as coisas de modo irracional. Então ela repassou tudo na cabeça. Não queria ver seres humanos morrerem. Não queria ir embora de casa e nunca mais voltar. Quis fazer o que eticamente era obrigada a fazer naquelas circunstâncias. Logo, tinha de completar essa obrigação. Como ela e Lorelei haviam conversado.
Ela se sentou, balançou os pés para fora da cama. O banheiro ficava a poucos metros. Andou até lá devagar e não sentiu tontura. Depois de fazer xixi, olhou-se no espelho para avaliar os danos. O pescoço, o queixo e uma das faces estavam levemente machucados. Nada bom. Fora isso, ela parecia bem. Usava um avental azul e branco do hospital e roupa de baixo, mas não havia sapatos à vista e ela não se lembrava de ter se vestido ou se despido. O banheiro não oferecia nada. Sabão líquido, toalhas de papel, um cesto de lixo. Havia um teto rebaixado e luz fluorescente. Moveu-se devagar de volta à luz fraca do seu quarto, olhando todos os objetos inúteis. O soro pendia de um suporte de metal comprido e com rodinhas. Havia uma caixa de luvas de borracha, várias gavetas trancadas. Lençóis e travesseiros, persianas, janelas com uma pequena manivela no canto que ela supôs que só abriam uma fenda. Olhou para fora e soube de que lado do prédio estava, depois de todos aqueles dias trabalhando lá e seguindo as enfermeiras, pensando em como eram os pais quando
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trabalhavam como médicos, quando salvavam vidas em vez de plantar safras. Ela quis salvar vidas. Mas nem sempre isso acontecia num hospital. Alice sabia que estava no quarto andar. Não foi levada para a unidade correcional e não era o CTI, pelo jeito do quarto, a menos que fosse um quarto que nunca tivesse visto — reservado para pessoas que precisavam de supervisão, longe das outras pessoas —, e achou que isso era possível. Examinou. Um azulejo solto no chão, sondas, a agulha que tirou do braço, lâmpadas acessíveis, algo no soro que amenizava a dor e dava sono. Deitou-se de novo na cama. Sabia onde ficavam as entradas de serviço e as mapeou na cabeça, fechou os olhos e imaginou uma caminhada pelo hospital a partir de cada entrada, depois uma caminhada de cada piso até cada armário de material de limpeza e até a saída de serviço que dava para o rio. Imaginou isso várias vezes, pegando um elevador e uma escada diferentes a cada vez, até imaginar todas elas, cada armário, cada saída, em várias combinações. Quem estava lá fora com o guarda? Se não tivesse mais ninguém, então um travesseiro e uma agulha seriam tudo de que precisaria. Um travesseiro, uma agulha, conhecimento de anatomia, o poder da invisibilidade. O mesmo serviria para chamar uma enfermeira. E com isso conseguiria roupas para vestir. Imaginou o teto rebaixado do banheiro: alto o suficiente para não ser atingido com facilidade por alguém em pé no vaso sanitário. O suporte do soro poderia levantar um dos quadrados do revestimento e empurrá-lo para o lado. Depois era só pular, pendurar, puxar, e uma pessoa poderia entrar no teto. Um lugar extremamente limitante, porque só conseguiria imaginar o mapa de onde estavam as coisas, não recriá-lo de memória. Mas, ainda assim, um lugar. Seu pescoço e ombro doíam, e ela se concentrou no teto e respirou devagar. Esse tipo de pensamento a acalmava mais do que tudo. Ela fazia isso antes de cada encontro, antes de cada número no trapézio, projeto, prova ou relatório, desde que conseguia se lembrar. Deitava-se na cama e imaginava vários futuros possíveis, do começo ao fim, antes de escolher um para arriscar.
Sempre havia como voltar atrás. Não havia arma do crime. Em poucos dias, estaria de volta ao tribunal e tudo andaria devagar. Havia balas, mas não arma. Sem arma e sem motivo seria difícil ter uma causa. Havia um cheque cancelado e o sumiço de uma arma, mas essas coisas não provavam nada. Ela contou a Stacy Flynn quando lhe agradeceu. Mas fez o que Lorelei disse, foi ainda além, e agora poderia ser considerada insana e indigna de confiança. A dor da cadeia era o tédio, o confinamento, a ameaça de violência, mas aquilo não era dor real, era algo parecido com a vida rural em outra ordem de
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magnitude. Algo por que pessoas passavam, gente pobre, criminosos de verdade e presos políticos. Os fortes e os fracos, espertos ou lentos, davam um jeito de passar por aquilo, mas ela achava que não conseguiria. Escutou a cadeira arranhar o chão e um som baixo de algo rolando do lado de fora da porta. Ouviu uma voz de mulher, palavras indistintas, sem sotaque, mas com As monótonos e a elevação de uma pergunta. — Não, não, não — disse o guarda. — Não precisa se preocupar com isso. Novamente a voz da mulher, e, então, pôde ouvir o que ela sussurrava, com medo. — Ela está lá quieta há três horas — informou o guarda. — Só vai acordar quando quisermos que acorde. Fique à vontade. Alice fechou os olhos e respirou devagar quando ouviu o barulho da maçaneta. Não escutou a porta se fechar. O som oco de algo rolando passou por ela e ouviu a porta do banheiro se abrir e bater no batente de borracha, que reverberou. Abriu os olhos e viu um carrinho cinzento e quadrado a poucos metros de distância. A porta do quarto não foi fechada e ela podia ver parte do corredor pela abertura e também pela fenda estreita das dobradiças. Viu as pernas do guarda e parte das costas do homem. A água corria no banheiro, e ela se levantou depressa e olhou dentro do carrinho, enfiou as mãos e achou lençóis, aventais molengas do hospital, os atilhos emaranhados e presos. Não importava quem saísse do banheiro ou se o guarda se virasse, não importava mais que alguém a visse, o que poderiam lhe fazer agora? Ela viu as pernas dele se mexerem. Ele descruzou os tornozelos, trouxe-os para trás e se levantou. Não importava. Ele poderia entrar e não importaria; não tinha tempo para voltar à cama. Não escolheu uma das suas estratégias; aproveitou qualquer pequena oportunidade e, então, pagaria por isso. Ficou totalmente imóvel, espiando pela fenda na qual a porta se prendia à parede e viu o guarda se afastar da cadeira, se afastar do quarto. Direto pelo corredor. Ela se arrepiou, sentiu os pelos do corpo ficando de pé.
Cavou rapidamente a pilha de roupa e avistou finalmente um blusão de enfermeira sujo, com decote em V. Arrancou o avental e o vestiu. E calças, dois números acima do seu, pelo menos, e cobertas com algo alaranjado, tinta ou comida. Dentro do banheiro, a água ainda corria. Ela não fazia ideia de como era a pessoa lá dentro nem o que vestia, mas isso também não importava.
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Vestiu as calças e as amarrou, enrolando-a na cintura algumas vezes, mas não o bastante para expor os pés descalços. Depois, jogou as roupas e lençóis de volta no carrinho, tirou um par de luvas de borracha da caixa junto à cama, pegou o travesseiro e a agulha do colchão e empurrou o carrinho para fora do quarto. Enfiou a agulha no alto das calças. Já não importava. Porta afora, no corredor vazio e iluminado. As enfermeiras no posto de enfermagem não ergueram os olhos quando ela passou. Segurava o travesseiro à frente e meio de lado, para cobrir o pescoço e o maxilar arroxeados. Empurrou o carrinho para longe da área dos banheiros e das máquinas de refrigerante, fez a curva até o elevador mais próximo das escadas de emergência e apertou o botão várias vezes. Quando ele chegou, escutou uma mulher gritar, chamando as enfermeiras desesperadamente, berrando pelo guarda, e então Alice empurrou o carrinho e o travesseiro para dentro do elevador e correu para a pesada porta cinzenta que dava para a escada de emergência, sabendo que alguém teria ouvido a porta se fechar e a campainha do elevador e que então era uma questão de minutos. Subiu pelo corrimão de metal pintado, ergueu as mãos acima da cabeça e pulou bem no centro estreito da escadaria. Na queda veloz, agarrou o corrimão dois andares abaixo. Virou-se para que os pés ficassem em cima do corrimão, depois se soltou de novo. Caiu outro lance, segurando-se no corrimão oposto, e depois outro, até que ouviu uma porta se abrir acima dela, e vozes, e se esgueirou pelas barras de volta aos degraus de concreto, para não ser vista. As vozes ecoavam acima dela e ela correu depressa e em silêncio com os pés descalços pelo último lance de escadas que acabava no porão. Abriu a porta e andou devagar rumo ao relógio de ponto, à esquerda da saída de serviço que dava diretamente para o lado de fora e ficava mais perto do rio. Na sala de descanso envidraçada, havia auxiliares e o pessoal da limpeza e ela passou por eles porque não havia outro jeito, tentando parecer exausta e contente de voltar para casa no fim da noite. Sentia o corpo doer e imaginou que isso não atrapalharia a personificação de faxineira, e provavelmente nem tinham ideia de que ela estava lá nem de quem era, e se tivessem, não importava mais. A análise de custo e benefício tinha de ser reconfigurada a cada passo que dava, aproximando-se da porta. Se alguém tentasse detê-la agora, usaria a agulha para ganhar tempo. Não achava que o hospital emitiria um alerta geral. Isso aterrorizaria os pacientes. Assim, com calma, naturalmente, puxou um cartão de ponto qualquer e o enfiou no relógio para manter as aparências, abriu a porta e foi atingida por uma onda do ar frio noturno. Fechou a pesada porta de metal e correu pela calçada e pela margem até uma vala prendendo a respiração. Não havia estrelas. Mas o céu estava mais claro do que esperava, e ela achou que devia ser quase 4 horas da manhã.
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Só sentia um pouco de dor. E a onda de adrenalina limpou sua cabeça do medicamento. Estava extasiada e aterrorizada de estar na rua. Não conseguia ver a estrada nem o estacionamento de onde estava, mas escutava a sirene da polícia. Ela se agachou e procurou o espaço preto e vazio que o rio abria na paisagem e, ao encontrá-lo, correu depressa, disparou, estava voando, como num sonho, e então não havia mais dor, somente o choque ocasional de uma pedra debaixo dos pés. E correu para o rio. A água estava gelada, mal conseguia sentir as pedras lisas e o fundo limoso nos pés dormentes. Andou até estar com água pela cintura, depois baixou a cabeça e nadou.
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Alice e Theo 1º DE MAIO DE 2009 NO DIA 1º de maio, debaixo da ponte da Rua Rabbit Run, Theo estava em pé à margem do rio, abaixo do carro, com uma mochila. Tinha tudo. Tintura de cabelo, snorkel, roupa de mergulho com isolamento térmico para nadar, corda, faca, carteira de motorista falsa com a foto dela, o cabelo pintado de preto no Photoshop. Trouxe uma blusa meio conservadora, um suéter, uma saia. E um moletom preto com capuz e calças pretas de lycra. Tirou mil e quinhentos dólares da sua conta da faculdade, raspou a cabeça e usava lentes de contato que deixavam seus olhos castanhos. Veio dirigindo a noite toda desde o vale do Hudson e tiraria as lentes e faria o caminho de volta dali a uma hora, quer a visse, quer não. Era esse o plano, se leu direito as cartas dela, se entendeu O vento nos salgueiros, se ela não tinha simplesmente enlouquecido. Era esse o plano, e o papel dele era pequeno. Pequeno o suficiente para que ele pudesse sair limpo. Se a visse ou não, sabia que ela havia fugido. Antes de deixar o campus, leu na internet que ela foi levada para o hospital na véspera, e ouviu a notícia cinco vezes no rádio do carro enquanto ia até lá. As pálpebras pesavam, ele estreitou os olhos e, de repente, viu um olho a espiá-lo entre os juncos. Azul-claro. Ela estava deitada na água e o corpo e o rosto dela estavam cobertos de lama e gravetos; ele percebeu que o que parecia fazer parte de um galho era a curva do seu bíceps. Ela piscou várias vezes quando soube que ele a viu — olhou para a direita para lhe mostrar onde deixar a sacola. Mas ele não foi embora. Pegou umas pedras e jogou-as no rio. E assoviou alguns compassos da canção “Let’s go riding in the car”, de Woody Guthrie. “Let’s go riding in the car, car. I’ll take you riding in the car.” Ele olhou para baixo. Ela balançou a cabeça quase imperceptivelmente. Ele a olhou com mais atenção. Havia algo errado, não era só exaustão e frio. Sentiu um aperto no peito, como se fosse explodir. Ela estava esperando ele ir embora. Ele jogou mais algumas pedras, lançando-as com força na água verde-escura.
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Ela o fitava. O olho azul tão claro, exposto. Agora que ele se acostumara com o lugar onde ela estava, ficou com medo que fosse facilmente avistada. Ela assoviou os seis primeiros compassos de “Pedro e o lobo”, bem baixinho. Era hora de ele agir. Largar o trapézio. Soltar a bolsa. Ir embora. O coração dela pulava de terror a cada segundo que ele permanecia lá, mas continuava a fitá-lo. Procurando o ponto do olho dele por onde poderia entrar para lhe dizer que o amava. Ela recebeu o medo dele, entendeu o modo como se movia. Então, ela simplesmente o olhou com prazer, considerou sua beleza. Os ombros largos, os braços e pernas fortes e compridos, o jeito como o jeans se ajustava nele. O peito, a curva da mandíbula, os lábios. Isso a relaxou. Estavam assustados, mas conseguindo fazer aquilo. Não estavam assustados demais para viver, nem para conviver com o que aconteceu. Mas estavam assustados. Ela assoviou de novo, sabendo que agora era perigoso. Ele olhou os dois lados da margem do rio — ninguém por ali, por vários quilômetros. Mas ele também não a viu, a princípio. Podia haver alguém a espiá-lo, a espiá-los. Sentiu um momento de total deslocamento do corpo, como se não estivesse ali. Depois, olhou-a de novo, coberta de lama, gravetos e folhas, e soube que ela devia estar ali há horas. Ficou contente que não fizesse tanto frio quanto na semana anterior. Pôs a sacola na sebe baixa de madressilva. Ela piscou várias vezes em reconhecimento. O formato do olho se arqueou num sorriso. Então ele sorriu. Ficou parado por um momento enquanto os primeiros raios de sol começavam a brilhar por sobre o rio e a se mover, vermelhos como sangue, refletidos na superfície. Então, ele subiu a margem e voltou ao carro para esperar.
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Constant HAEDEN, NOVA YORK, 5 DE MAIO DE 2009 NÃO HAVIA CONSOLO na familiaridade da casa, nem no verde do jardim, nem no silêncio do celeiro. O lugar ressoava com a presença de Alice e com a má vontade coletiva da cidade. Dias antes, helicópteros da imprensa tinham sobrevoado a propriedade, acima da casa de Gene e Claire e depois de Ross. E, na semana passada, enquanto ainda estava na cidade, Con viu no Times uma fotografia do interior do celeiro — o trapézio e as pinturas —, o que significava que alguém esteve lá sem Gene e Claire saberem e Deus sabe o que a pessoa encontrou ou levou. Desde que Con e Michelle chegaram, dois dias antes, Claire não saiu do quarto. Não falou com eles, e isso era irritante. Ele estava grato por poder fazer algo para ajudá-los, porque isso ajudava a combater o seu próprio choque. E, embora estivesse cheio de pena, também tinha de lutar contra os sentimentos mais vis de raiva direcionados a Gene. Con sabia que não era racional odiar o melhor amigo, destruído como estava, mas o odiou naquele momento. Odiou-o pela vida que deu a Alice, criá-la para viver como uma colona, os novos cegos rurais. Pensando que o trabalho a fazer é alimentar a família e uma dúzia de conhecidos com comida caseira. Comer tomates que eram relíquias no inferno, como uma espécie de zumbi que subsiste perto do rio Lete. O grande sonho de Gene de mudar o que as pessoas plantavam já se realizara em Nova York — o imenso Whole Foods da Rua Houston, com o quadro-negro onde se lia ESTÁ COM FOME?, dando para um parque cheio de moradores de rua. Médicos, advogados, gente descolada e fracassados com hortas no telhado, e o mercado municipal da Union Square vendendo costeletas de porcos de raças raras, duas por trinta dólares. E à frente desse movimento estavam os que tinham partido para colonizar os campos baratos do interior. Gene, Claire e ele — ele comprou a propriedade, apresentou-os a Ross. O que esperavam que fosse acontecer? Que a cidade toda mudaria? A cidade toda mudou, agora. Ele tentava não se zangar, mas era demais. E podia acabar sendo vítima de um desses escândalos que a gente lê por aí. Ele com a sua pele escura, ele com o dinheiro do aniversário, o tio que a idolatrava, as visitas no verão.
Con arranjou tudo para todos eles com uma advogada. Deixou Nova York, largou o trabalho, entrou em contato com amigos em Montreal, examinou a possibilidade de todos eles trabalharem com os Médicos sem Fronteiras. Era
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como se todo o trabalho que fez ao longo da vida servisse agora para financiar uma saída fácil, ou julgamentos prolongados e processos civis. Suas próprias ideologias contraditórias tinham chegado à conclusão natural. Alice estava livre em algum lugar, disso ele tinha certeza, e não deixaria que fossem presos. Se havia algo que ele podia fazer depois de tudo que ela fez era garantir que não fossem acusados de nada. Não fossem acusados de conspiração. Michelle empacotava as coisas de Alice, tudo o que não fora selado em sacos plásticos e retirado da casa pela polícia. Mas, sobretudo, Michelle estava ali para ficar ao lado de Claire. Con percorreu a casa e o celeiro, recolhendo livros para levar até o lixão do condado: A arte de viver para as novas gerações, Endgame, Correndo no vazio, Contra a civilização: um leitor, Zona autônoma temporária, A traição do eu, Futuro primitivo, Logo tudo isso será uma ruína pitoresca. Catou as Memórias de um anarquista aprisionado, de Berkman, e as jogou na caixa cheia de títulos do mesmo estilo, todos compondo um horrível tratado. Con planejou jogar os livros fora ou queimá-los, mas não importava mais. Sentia um buraco no estômago e sabia que estava em choque, numa espécie de pânico controlado. De certa forma, aquilo não era tão diferente de ficar na sala de reuniões da Pharmethik. Fúria. Pânico. Uma bola de neve que vai crescendo. Con pegou a caixa de livros e a pôs na mesa da cozinha. — O que está fazendo, Connie? — perguntou Gene baixinho. — Empacotando tudo direitinho para a polícia? — Meu irmão — disse Con, com a voz baixa e firme, olhando o rosto do amigo. Gene estava pálido, os olhos inchados e vermelhos. — Sei que estamos mais perturbados do que parece agora, mas não podemos ser estúpidos nas próximas semanas... continuar sendo estúpidos. Acho que as nossas opções são limitadíssimas neste momento. Paguei a fiança de Ross, que está totalmente fodido, e agora fomos entrevistados pela polícia local de modo suficiente para termos motivos reais de preocupação. Posso lhe garantir isso ainda não acabou. Encontrarão coisas, por mais circunstanciais e acadêmicas que nos pareçam, e acharão razões para prender todos nós, e muito, muito em breve.
— Sinceramente — disse Gene —, as razões não são circunstanciais. Sabemos quem somos neste lugar. — Constant lutou para concordar com a cabeça e ficar calado, depois Gene puxou da caixa uma brochura gasta, abriu-a ao acaso e por um instante leu silenciosamente, antes de ler em voz alta. — “Atrás de nós, muito além dos muros da arena, as notas vagas da banda começam de novo e flutuam como bandeiras contra o céu. Carne. Sangue.
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Memória. Guerra. Erguemo-nos para saudar o Estado, para enfrentar o Estado. Aproveite o momento enquanto pode.” Con não tinha nada a dizer. Só o pesar do amigo o impediu de tomar o livro de suas mãos e o rasgar em pedacinhos. Comer aquelas páginas de merda. Nada dessa merda importava mais nem um pouco! Carne. Sangue. Memória. Guerra. Sério. Que tipo de imbecil era Gene Piper? Era simplesmente uma descrição das suas vidas. A de Con, sobretudo. Ao desviar o olhar, ou talvez ao olhar diretamente para todos eles e para tudo, cada pequeno detalhe por muito, muito tempo, até que toda a dor que entendeu que nunca revelou, sobre a qual nunca agiu, criou o que parecia ser um momento inevitável. Um momento que agora não poderia ser evitado de jeito nenhum — um momento que ele criou com a merda de um presente de aniversário. Aquilo poderia simplesmente ter acontecido mais depressa se ele tivesse morado lá desde o começo. Ou talvez nunca tivesse acontecido. Enquanto ficava ali olhando para Gene, sua raiva diminuiu e ele achou que fosse chorar, mas não sabia se seria de alívio. Não importava mais se entendia alguma coisa ou não. Estava se movendo de novo de um modo que exigia pensamento e ação precisos. Sabia o que ela fizera e sabia que fora corajosa para cacete, e que aquilo o libertara e também podia mandá-lo para a cadeia. Quem, além de Con e Alice, esteve perto o bastante do estado para passar, para ser considerado um líder, considerado um deles? Ela podia ser idêntica a Gene, mas, nesse sentido, era filha de Con e de mais ninguém. E ele não ia deixá-la na mão, deixar que seus pais fossem para a cadeia. Chega de bobagem. Poderiam refletir sobre isso quando chegassem a Montreal. Gene jogou o livro de volta na caixa, ergueu os olhos para Con e, quando viu os olhos do amigo, tão parecidos com os de Alice, os seus pensamentos pararam de correr. Uma cambalhota dentro do estômago, uma falta de ar. Veio como uma onda. Achou que sentia raiva, mas na verdade era o último surto de negação antes da desolação, e vinha, depressa, para cair sobre todos eles. O bebê que ele e Michelle haviam colocado no mundo, a sua menininha, sua amiga, com a sua voz, seu riso e as perguntas sempre novas, os desenhos e ideias, a sua doçura, a sua incrível doçura se foram, e o sonho e a casa e a vida que tinham amado também se foram. Michelle saiu do quarto. O rosto estava abatido e inchado de chorar. — Ela está falando — disse. — Escrevi uma receita de Xanax. Vou até Elmville buscar.
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— Tente voltar logo — pediu Con. — Gostaria de tirar todos nós daqui antes das três. Ela o beijou quando tirou as chaves da bolsa e ele sentiu o calor do rosto dela e o gosto de sal. — Não, não — disse Gene. — É foda! Se tivessem deixado a gente ficar com ela no hospital a noite inteira, ela ainda estaria aqui e saberíamos se estava bem. Nunca conseguiremos ir para lugar nenhum agora! Vão pensar que estamos indo encontrá-la. — Sua voz falhou, e Con avançou para pôr as mãos nos ombros dele. — Não quero ir para lugar nenhum. E se ela voltar para casa? Ai meu Deus, ai meu Deus — sussurrou. — Meu Deus. — Chorava. — Faça com que ela esteja bem, que ela esteja bem. Não importa o que ela fez.
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Flynn CLEVELAND, OHIO, 25 DE OUTUBRO DE 2009 DE ONDE ESTAVA sentada, eu conseguia ver a luz alaranjada brilhando nas janelas e iluminando os tijolos do prédio do outro lado da rua. Havia gente entrando e saindo da galeria de arte ao lado, que antes era um velho matadouro. Vestidos com estranheza formal, em frente à galeria, fumando. Deve ter tido outro vernissage. Observei uma mulher atravessar a rua usando botas altas e um poncho feito inteiramente de pequenas lâmpadas brancas com formato de chamas. O meu apartamento fica a dois quarteirões do antigo, e tem o dobro do tamanho, com uma vista melhor da rua. Dava para ouvir o barulho do rádio da polícia vindo do outro quarto, um conjunto de tons, e depois policiais de um lado para o outro falando em números e nomes de rua. Fechei o laptop e fiquei observando os pombos, observando a luz evanescente ficar rosada e clara ao cair pelos prédios, cortando sombras nítidas e escuras no tijolo. Ouvia as pessoas da galeria falando e trazendo coisas para a área de carga e descarga. Alguém cantou o primeiro verso de uma música antiga do Velvet Underground, e depois crianças passaram de bicicleta gritando. — Ei! Ei! O que é isso? — É arte. Querem visitar a exposição? Na verdade, esperem. Podem nos fazer um favor? Eu lhes dou cinco pratas se passarem por aí distribuindo esses cartões. — Cinco pratas? Qual é neguinho? — Você foi criado por uma drag queen? Porque ninguém diz “Qual é, neguinho?”. — Talvez um chinês magrelo não diga. — Para a sua informação, eu sou coreano. Vocês aceitam ou não? Cinco pratas e podem vir comer no vernissage também. — Ora, senhor “para sua informação”, vocês vão ter aqueles mini cachorros-quentes que nem da outra vez? Porque aquela parada era gostosa.
— Vamos.
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Observei os garotos subirem na plataforma de carga e descarga. Houve um clique e a estática do rádio parou, e senti uma garrafa gelada contra o pescoço, ergui os olhos para vê-lo sorrindo para mim, Cutting, de camiseta e com as calças azuis da farda. Peguei a cerveja da mão dele e encostei a cabeça na sua barriga por um instante, e ele pôs a palma da mão contra a minha orelha. — Obrigada, querido — disse eu. — O jantar está pronto. Levantei, prendi os dedos no passador de cinto das calças dele, tocamos as bocas das garrafas, depois derramamos uma gota no chão, em homenagem aos mortos.
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Epílogo Alice SALTON SEA, CALIFÓRNIA, 4 DE ABRIL DE 2015 EU NÃO TINHA o equilíbrio que pensava ter antes de nos mudarmos para cá. Eu era forte e o meu timing era bom. Mas não tinha o que Theo me dá. O mistério de Theo é como ele se faz tão presente. Um contrapeso. Ele não foi feito para largar tudo ou ir embora. É lento demais para fazer o que fiz enraizado demais para ir embora. Não poderíamos ser felizes agora se ele tivesse me deixado na lama para nadar em alguma ilusão de rios interligados, tentando me esgueirar até aqui sozinha e sem ser vista. Sob esta praia e sob este sal, há uma cidade, os restos de concreto, uma calçada. Erguendo-se da areia, estendendo-se a distância, há postes telefônicos com fios parcialmente esticados, ladeando ruas que não existem. Isso aqui é a rede fantasma. É toda a energia que resta para iluminar o nosso trailer e o nosso caminho até a água. Quando tivermos uma filha, vamos lhe contar sobre o concreto embaixo da areia. Que sob a praia, há paralelepípedos. Vamos lhe mostrar que isso é real. Que faz parte de um mundo que não podia durar. Um mundo que finalmente saiu do lado avesso. Andaremos perto da água e leremos juntas à noite. Plantaremos uma nova horta. E quando a noite cair sobre nós e sobre tudo à nossa volta, estaremos lá. Bem acordados para recebê-la.
Fim!
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