sábado, 6 de julho de 2013

Ally Carter - Ladrões de Elite 1#

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Ladrões de elite
Ally Carter
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Para minha família
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Capítulo 1
Ninguém sabia ao certo quando os problemas na Escola Colgan começaram. Alguns membros da associação de ex-alunos botavam a culpa na decisão de admitir garotas no colégio. Outros mencionavam o liberalismo moderno e um declínio generalizado no respeito pelos mais velhos. Mas, independentemente da teoria, era inegável que, de uns tempos para cá, a vida na escola estava diferente.
É claro que as instalações continuavam impecáveis. E que, como sempre, 75% dos alunos do último ano já estavam a meio caminho de serem aceitos com antecedência nas melhores universidades do país. Fotos de presidentes, senadores e diretores executivos ainda cobriam os lambris de madeira do corredor que levava ao gabinete do diretor.
Nos velhos tempos, porém, ninguém desistiria de uma vaga na Colgan um dia antes do começo do ano letivo, forçando a administração a encontrar um novo aluno às pressas. Antigamente, existiria uma fila de espera quilométrica para qualquer vaga que surgisse, mas este ano, por algum motivo, apenas uma candidata se mostrou disposta a se matricular tão em cima da hora.
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Houve um tempo em que a honra significava alguma coisa na Escola Colgan, em que seu patrimônio era respeitado e o corpo docente, reverenciado — e em que o conservadíssimo Porsche Speedster ano 1958 do diretor jamais acabaria na fonte do pátio, com a água jorrando do faróis, num fim de tarde extraordinariamente quente de novembro.
E houve um tempo em que a garota responsável por isso, aquela mesma candidata que dera a sorte de conseguir uma vaga de última hora poucos meses antes, teria a decência de admitir o que fez e abandonaria a escola com o rabo entre as pernas. Mas infelizmente essa época, assim como o carro do diretor, já era.
Dois dias após o Porsche-gate — como os alunos passaram a chamar o escândalo, numa alusão ao caso Watergate -, a jovem em questão teve a petulância de ficar sentada no corredor do prédio da administração, sob o olhar em preto e branco de três senadores, dois presidentes e um juiz da Suprema Corte, de cabeça erguida, como se não tivesse feito nada de errado.
Nesse dia, mais alunos do que o normal apareceram naquele corredor só para dar um olhada e sussurrar uns para os outros:
— É ela.
— É dela que eu estava falando.
— Como será que a garota fez aquilo?
Qualquer outro aluno teria tremido nas bases por estar tão em evidência, mas, desde que Katarina Bishop colocara os pés na escola, ela havia se mostrado uma espécie de enigma. Alguns diziam que conseguira aquela vaga de última hora por ser filha de um empresário europeu podre de rico que teria feito uma generosa doação para a escola. Outros olhavam para sua postura irretocável e sua autoconfiança, repetiam seu nome de batismo fazendo a língua vibrar e supunham que ela fosse da nobreza russa — uma das remanescentes da família Romanov.
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Alguns a chamava de heroína. Outros, de esquisitona.
Cada um tinha escutado uma história diferente, mas ninguém sabia a verdade: que Kat havia mesmo morado em vários lugares da Europa na infância, mas não era herdeira de nada. Que tinha, sim, um ovo Fabergé, mas não era uma Romanov. A própria Kat poderia ter acrescentado mil boatos a todo esse disse me disse, mas ficou calada, sabendo que a verdade era a única versão em que ninguém acreditaria.
— Katarina? — chamou a secretária do diretor. — O conselho irá recebê-la agora.
Kat se levantou com tranqüilidade, mas, enquanto caminhava em direção à porta, que ficava a uns 6 metros de distância, ela conseguia ouvir seus sapatos guincharem e sentir as mãos formigarem. Com os nervos a flor da pele, ela se deu conta de que de alguma maneira, no decorrer dos últimos três meses, havia se tornado uma pessoa que usava sapatos barulhentos.
E de que, gostando ou não, eles iriam denunciar sua aproximação.
Kat estava habituada a entrar num ambiente e perceber todos os seus ângulos, mas nunca estivera num lugar como aquele na vida.
Embora o corredor lá fora fosse comprido e reto, a sala em que estava era redonda. Ela se viu cercada por madeira escura e notou lâmpadas fracas pendendo do teto baixo. Para Kat, era quase como estar numa caverna, exceto pela janela alta e estreita através da qual um raio de sol se insinuava. De repente, percebeu que estava com os braços estendidos, querendo correr as mãos pelo feixe de luz. Mas então alguém pigarreou, um lápis rolou pela superfície de uma
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mesa e os sapatos de Kat tornaram a guinchar, trazendo-a de volta à realidade.
— Pose se sentar.
A voz vinha dos fundos da sala e, a princípio, Kat não soube quem havia falado. Como a voz, os rostos diante dela lhe eram estranhos: os 12 à sua direita eram jovens — alunos iguais a ela (até onde isso era possível, tratando-se de estudantes da Colgan). Os outros 12, à sua esquerda, tinham cabelos mais ralos ou uma maquiagem um pouco mais pesada. Porém, independentemente da idade, todos os membros do Conselho de Honra da Escola Colgan ostentavam túnicas pretas idênticas e expressões impassíveis ao observarem Kat se dirigir até o centro do recinto circular.
— Sente-se, Srta. Bishop. — disse o diretor Franklin de seu lugar na primeira fila.
Ele parecia mais pálido com aquela túnica preta. Suas bochechas eram gorduchas e seus cabelos, estilosos demais. Kat sentia que ele era o tipo de homem que desejava ser tão rápido e elegante quanto seu carro. E então, apesar das circunstâncias, ela abriu um pequeno sorriso, imaginando o próprio diretor prostrado no meio do pátio, jorrando água pela boca.
Quando Kat se acomodou, o aluno do último ano sentado ao lado do diretor se levantou e anunciou:
— Tem início a sessão do Conselho de Honra da Escola Colgan. — Sua voz ecoava por toda a sala. — Todos os que desejarem falar serão ouvidos. Todos os que desejarem seguir a luz enxergarão. Todos os que desejarem buscar a justiça irão encontrar a verdade. Honrar para um... — disse o garoto, fazendo uma pausa, e, antes de Kat poder digerir o que tinha escutado, 24 vozes falaram em coro:
— Honra para todos.
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O garoto se sentou e começou a folhear as páginas de um livro velho encadernado em couro até o diretor lhe dar um empurrãozinho:
— Jason...
— Ah. Claro. — Jason ergueu o livro pesado. — O Conselho de Honra da Escola Colgan irá discutir o caso de Katarina Bishop, aluna do segundo ano do ensino médio. O comitê ouvirá depoimentos atestando que, no dia 10 de novembro, a Srta. Bishop, por livre e espontânea vontade... é... roubou uma propriedade privada.
Enquanto Jason escolhia suas palavras com cuidado, uma menina na segunda fileira abafou o riso. Ele prosseguiu:
— Ao cometer esse delito às 2 da madrugada, ela também violou o toque de recolher da escola. E destruiu, por livre e espontânea vontade, bens pertencentes à Colgan. — Jason baixou o livro e fez nova pausa (um pouco mais dramática do que necessário, pensou Kat) antes de acrescentar: — De acordo com o nosso código de honra, esses atos são passíveis de expulsão. Você entende as acusações que lhe foram imputadas?
Kat esperou um instante para se certificar de que o conselho de fato queria que ela respondesse antes de dizer:
— Não fui eu.
O diretor Franklin se inclinou para frete e disse:
— A pergunta, Srta. Bishop, é se você entendeu ou não as acusações.
— Eu entendi. — Kat sentiu seus batimentos cardíacos mudarem de ritmo. — Só não concordo com elas.
— Eu... — o diretor recomeçou a falar, mas uma mulher ao seu lado tocou-lhe o braço de leve.
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Ela sorriu para Kat enquanto dizia:
— Diretor, até onde me lembro, em casos como esse nós costumamos levar em consideração todo o histórico escolar do aluno. Não seria melhor começarmos avaliando o histórico da Srta. Bishop?
— Hum. — O diretor pareceu baixar um pouco a crista. — Tem razão, Sra. Connors, mas, uma vez que a Srta. Bishop só está conosco há poucos meses, ela não tem histórico algum para ser analisado.
— Ora, mas sem dúvida esta jovem freqüentou outras escolas antes. — afirmou a Sra. Connors, obrigando Kat a reprimir uma risada nervosa.
— É, já. — Admitiu o diretor, a contragosto. — É claro. Tentamos entrar em contato com essas escolas, mas houve um incêndio na Trinity que destruiu todo setor de matrículas da secretaria e a maioria dos registros. E o sistema do Instituto Bern sofreu uma pane terrível no verão passado, de modo que tivemos bastante dificuldade para encontrar... qualquer coisa.
O diretor olhou para Kat como se suspeitasse que as desgraças a seguiam para onde quer que ela fosse. A Sra. Connors, por outro lado, parecia impressionada.
— São duas das melhores escolas da Europa.
— Sim, senhora. Meu pai, ele... faz muitos serviços por lá.
— O que seus pais fazem mesmo?
Enquanto Kat tentava localizar a menina que havia levantado a questão na segunda fileira, começou a se perguntar por que a profissão de seus pais era tão relevante. Mas então se lembrou de que a Escola Colgan é o tipo de lugar onde quem são seus pais e o que eles fazem sempre importa.
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— Minha mãe morreu quando eu tinha 6 anos.
Algumas pessoas soltaram um suspiro ao ouvirem isso, mas o diretor Franklin foi em frente.
— E seu pai? — perguntou, recusando-se a permitir que uma mãe convenientemente falecida conquistasse simpatia para Kat. — O que ele faz?
— Ele trabalha com arte. — limitou-se a responder Kat, cautelosa. — Meu pai faz muitas coisas, mas a especialidade dele é arte.
Diante disso, o chefe do departamento de belas-artes se animou.
— Um colecionador? — perguntou o homem.
Mais uma vez, Kat teve que reprimir o riso.
— Ele lida mais com... distribuição.
— Tudo isso é muito interessante — interveio o diretor Franklin -, mas não diz respeito ao assunto em questão.
Kat poderia ter jurado que ele se conteve para não dizer “ao meu carro”.
Ninguém falou nada. O único movimento vinha da poeira dançando nos raios de sol que entravam pela janela. Por fim, o diretor Franklin se inclinou para a frente outra vez e estreitou os olhos. Quando retomou seu discurso, irritado, Kat achou que já tinha visto raios laser menos penetrantes.
— Srta. Bishop, onde estava na noite de 10 de novembro?
— No meu quarto. Estudando.
— Numa sexta à noite? Estudando?
O diretor olhou para os colegas como se fosse a mentira mais deslavada que um aluno da Colgan já tivesse ousado contar.
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— Bem, a Colgan é uma instituição muito exigente. Eu tenho que estudar.
— E não viu ninguém? — perguntou Jason.
— Não, eu...
— Ah, mas alguém a viu, não foi, Srta. Bishop? — A voz do diretor Franklin era fria e cortante. — Temos câmeras monitorando a propriedade. Não sabia? — perguntou ele com uma risadinha.
É claro que Kat sabia sobre as câmeras. Talvez soubesse mais sobre cada aspecto da segurança da escola do que o próprio diretor, mas não achava que aquele fosse o melhor momento para dizer isso. Havia testemunhas de mais. Coisas de mais em jogo. E, além disso, o diretor já estava exibindo um sorriso triunfante e baixando as luzes com um controle remoto. Kat precisou se virar na cadeira para ver um trecho da parede abaulada deslizando para o lado revelando uma televisão enorme.
— A jovem na tela se parece bastante com a senhorita, não acha?
Ao assistir ao vídeo em preto e branco de baixa resolução, ela reconheceu o pátio, é claro, mas não a pessoa que o atravessava vestindo um blusão preto com capuz.
— Essa não sou eu.
— Mas as portas do dormitório só foram abertas uma vez naquela noite, às 2h27, com este cartão de identificação.
Kat sentiu um nó no estômago quando a pior fotografia que ela havia tirado na vida surgiu na tela.
— Este cartão é seu, não é, Srta. Bishop?
— Sim, mas...
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— E isto aqui — continuou o diretor Franklin, apanhando algo debaixo de sua cadeira —foi encontrado durante uma busca em seus aposentos.
A placa de carro personalizada, COLGAN — 1, pareceu reluzir quando ele a ergueu sobre a cabeça.
Kat teve a impressão de que todo o ar havia sido sugado da sala mal iluminada à medida que uma sensação estranha a invadia. Afinal, ela sabia muito bem lidar com uma acusação, mas não com uma acusação falsa.
— Katarina? — perguntou Sra. Connors, como se estivesse implorando para Kat provar que eles estavam enganados.
— Sei que tudo isso parece um conjunto de provas contundentes — argumentou Kat, sua mente trabalhando a todo vapor. — Mas vocês não acham que existem provas de mais aqui? Será que eu usaria mesmo meu próprio cartão se fosse fazer isso?
— Então o fato de existirem provas de que você é culpada deveria provar que você não é? — perguntou a Sra. Connors, parecendo incrédula também.
— Bem — disse Kat , — eu não sou burra.
O diretor soltou uma risada.
— Ah, então está bem. Como a senhorita teria feito?
Ele estava zombando dela, provocando-a, mas Kat não pôde deixar de pensar sobre a resposta:
Tem um atalho pelos fundos do edifício Warren que é mais perto, mais escuro e sem câmeras de vigilância...
As portas não precisariam ser abertas por um cartão. Bastaria usar chiclete para tapar o sensor na saída...
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Se eu quisesse pregar uma peça desse tipo, não iria escolher logo um dia em que os funcionários da manutenção estariam acordados bem antes dos alunos...
O diretor abriu um sorriso convencido, saboreando o silêncio dela, como se fosse o homem mais inteligente do mundo.
Mas Kat já sabia que as pessoas da Colgan também erravam — como na vez que seu professor de italiano disse que o sotaque dela sempre chamaria atenção nas ruas de Roma (embora Kat já tivesse se passado por uma freira franciscana durante um serviço especialmente difícil na Cidade do Vaticano). Ela pensou também em como sua professora de história da arte havia bancado a boba ao ficar poetizando sobre ver a Mona Lisa ao vivo (quando Kat sabia que o original do Louvre tinha sido substituído por uma falsificação em 1862).
Kat tinha aprendido muitas coisas antes de se matricular naquela escola, mas sua maior certeza era a de que, num lugar como aquele, ela jamais poderia compartilhar seu conhecimento.
— Não sei como é na Trinity, no Instituto Bern nem em qualquer uma dessas escolas européias, mocinha, aqui na Colgan nós obedecemos às regras. — O punho do diretor esmurrou a mesa. — Nós respeitamos a propriedade alheia. Seguimos o código de honra desta instituição e as leis deste país.
Kat sabia muito bem o que era honra. Ela havia crescido com um sistema de regras especial. A primeira regra da família de Katarina Bishop era simples: não seja pego.
— Katarina — disse a Sra. Connors, — você tem algo a acrescentar que possa explicar isso?
Kat poderia ter dito: Essa não sou eu ou Deve haver algum engano. Se aquele fosse um golpe como outro qualquer, ela poderia ter se safado na base da mentira sem pensar duas vezes. Mas contar a verdade? Não. Nisso ela não era nada boa.
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O cartão de identificação de Kat havia sido clonado. A placa do carro fora plantada em seu quarto. Alguém tinha se vestido igual a ela e feito questão de ser filmado pelas câmeras.
Kat fora vítima de uma armação. E ela não ousou dizer o que estava pensando: os responsáveis — seja lá quem fossem - eram muito bons.
Em 20 minutos, Kat já estava de malas prontas. Ela poderia ter demorado mais, se despedindo das pessoas, mas não havia de quem se despedir. E assim, depois de três meses na Escola Colgan, Kat se perguntou se o dia em que ela foi expulsa do internato acabaria se tornando o momento de maior orgulho do longo e espetacular passado de sua família. Visualizou todos eles sentados ao redor da mesa da cozinha do tio Eddie anos depois, contando sobre a época em que a pequena Katarina roubou uma vida totalmente diferente para si mesma e depois sumiu sem deixar vestígios.
Bem, quase sem deixar vestígios, pensou Kat enquanto carregava sua bagagem pelo gramado que um dia fora perfeito. Ainda dava para ver os sulcos feitos pelos pneus que iam e vinham da fonte dilapidada no centro do pátio: um lembrete lamacento que certamente duraria até a primavera.
Kat ouviu risadas atrás dela e se virou. Um grupo de meninos do oitavo ano estava reunido ali, sussurrando, até que um deles teve peito de se separar dos demais.
— Oi... — ele começou a falar, olhando para trás na direção dos amigos, reunindo coragem. — A gente estava tentando adivinhar... é... Como você conseguiu fazer isso?
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Uma limusine cruzou os portões ornamentados e parou no acostamento. O porta-malas se abriu. Enquanto o motorista pegava sua bagagem, Kat olhou para os meninos e então de volta para a escola uma última vez.
— Essa, sim, é uma ótima pergunta. — respondeu.
O sinal tocou. Alunos atravessaram o pátio às pressas, a caminho da sala de aula. Enquanto se sentava no banco de trás da limusine, Kat se sentiu um pouco triste, ou tão triste quanto é possível se sentir ao perder algo que nunca foi seu. Ela se recostou e deu um suspiro.
— Bem, acho que é o fim.
E poderia ter sido, se outra voz não houvesse dito:
— Na verdade, é só o começo.
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Capítulo 2
Kat levou um susto. Na penumbra, não havia percebido o vulto sentado na outra ponta do banco da limusine, sorrindo para ela.
— Hale? — perguntou, como se o garoto pudesse ser um impostor. E então uma questão muito diferente lhe veio à cabeça. — Hale, o que você está fazendo aqui?
—Achei que fosse precisar de uma carona.
— A secretária do diretor pediu um carro para mim.
Ele deu de ombros com indiferença, mas achando graça da situação.
— E aqui estou eu num submarino.
Quando o veículo contornou o acesso circular da escola, Hale se virou e olhou pela janela. Kat o observou analisar a propriedade com um leve sorriso nos lábios, como se não houvesse nenhum lugar no mundo em que ele realmente precisasse estar. Kat às vezes se perguntava se esse tipo de autoconfiança era algo que apenas uma fortuna muito antiga poderia comprar. Naquele instante, se perguntou se era algo que podia ser roubado.
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Hale acenou enquanto os portões da Escola Colgan desapareciam ao longe.
— Adeus, Colgan! — Depois se virou para ela. — Olá, Kitty Kat.
— Hale, como você sabia que eu estava...
Mas nem chegou a terminar a frase. De repente, ela não estava mais no banco de trás da limusine: estava sentada numa cadeira dura, olhando para o filme em preto e branco que mostrava um vulto de blusão com capuz atravessando o pátio em disparada. Estava olhando para a imagem de seu próprio cartão de identificação ampliada numa tela de tevê. Estava observando o diretor Franklin erguer uma placa de carro amassada sobre a cabeça.
— Hale — disse Kat com um suspiro. — O carro do diretor? Fala sério. Isso não é clichê demais para você?
— O que posso fazer? Sou um cara à moda antiga. Além disso, não é à toa que é um clássico. — Ele se recostou contra a janela. — É muito bom ver você, Kat.
Kat não sabia o que dizer. Talvez “É muito bom ver você também”, “Obrigada por me fazer ser expulsa da escola”, “É possível que você tenha ficado mais gato ainda?” ou “Acho que senti sua falta”?
Em vez disso, ela se contentou com o seguinte:
— Foi meu pai quem mandou você fazer isso?
Hale soltou uma breve risada e balançou a cabeça.
— Ele não retorna minhas ligações desde que estivemos em Barcelona. — Ele chegou mais perto e sussurrou: — Acho que ainda está bravo comigo.
— Bem, então somos dois.
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— Ei! — disse Hale, irritado. — Na hora, todos concordamos que aquele macaco parecia muito bem adestrado.
Kat apenas balançou a cabeça.
— Você me fez ser expulsa, Hale.
Ele sorriu, inclinando-se devagar numa reverência.
—Disponha.
—Você destruiu o carro do diretor.
— W. W. Hale IV comprou aquele carro para o diretor Franklin. Ele se esqueceu de mencionar? Tudo bem que foi para compensar por um incêndio que W. W. Hale V supostamente causou no oitavo ano, antes de eles sugerirem que todos W. W. Hale atuais e futuros continuassem sua educação em outro lugar. Mais isso acabou dando muito certo, já que estou matriculado no Instituto Knightsbury agora.
— Nunca ouvi falar.
— Na semana passada, meu pai recebeu uma carta dizendo que eu me tornei um aluno modelo.
— Meus parabéns — cumprimentou Kat, duvidando daquilo.
— Bem, sou o único aluno. — Hale abriu um sorriso típico dele. — É claro que o lado ruim de estudar numa escola fictícia é ter um péssimo time de lacrose. Mas, enfim, se a Colgan analisar friamente, eu destruí o meu carro.
Ela observou W. W. Hale V. Ele não parecia ter só 16 anos, com seu cabelo castanho-claro desalinhado, a pele dourada e um primeiro nome que, apesar de dois anos de tentativas, Kat nunca conseguira descobrir.
— Duvido que eles pensem assim, Wesley. — chutou ela.
Hale sorriu.
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— Passou longe.
Kat já havia tentado todos os nomes que começam com “Wa”, mas Hale não tinha admitido se chamar Walter, Ward ou Washington. Negara com veemência tanto Warren quanto Waverly. Watson o levara a fazer uma péssima imitação de Sherlock Holmes durante quase toda uma viagem de trem para Edimburgo, na Escócia. E Wayne parecia tão improvável que ela nem sequer tentara.
Hale era Hale. E não saber o que significava as letras W no nome dele tinha se tornado um lembrete constante para Kat de que na vida existem coisas que podem ser dadas para você, mas jamais roubadas.
Não que isso a impedisse de tentar, é claro.
— Uma curiosidade: quanto tempo você levou para invadir a sala dos registros dos alunos? — perguntou Hale. — Uma semana? — Kat sentiu seu rosto corar. — Não encontrou nada a meu respeito, encontrou? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Kat — disse ele com um suspiro. — Que bonitinho. E que inocente também. A ingenuidade lhe cai bem.
O barulho do motor aumentou à medida que o carro serpenteava pela paisagem rural.
— Por que fez isso, Hale?
— Seu lugar não era ali.
— Por que fez isso? — repetiu ela, sua paciência se esgotando. — Não estou brincando, Hale.
— Nem eu, Kat.
— Você tem...
— Um serviço pra você — disse Hale — E só pra você— acrescentou, antes que ela pudesse reclamar.
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As colinas iam ficando mais íngremes. O vento soprava as folhas e, ao longe, o sol se refletia num lago. Mas Kat não desgrudou os olhos de Hale enquanto dizia:
— Não quero serviço nenhum.
— Esse você vai querer.
— Abandonei os negócios da família. Não ficou sabendo?
— Ah, sim. — Hale cruzou os braços e se afundou no banco da limusine. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. Kat poderia ter jurado que ele já estava quase dormindo quando perguntou: — Mas por acaso abandonou a família?
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Capítulo 3
De todas as casas da família Hale, a favorita de W. W. Hale V não era a cobertura na Park Avenue (pretensiosa demais), o flat em Hong Kong (barulhento demais) nem a mansão na ilha de Martha’s Vineyard (areia demais). O mais jovem dos Hales gostava mesmo da velha propriedade de 250 hectares na zona rural do estado de Nova York. Pelo menos aquele era o único lugar em que Kat já o escutara dizer: “Estamos em casa”.
Os dois adolescentes entraram no saguão, que tinha um pé-direito bastante alto e se estendia diante deles por pelo menos 10 metros. Hale andava na frente e passou depressa pelo Monet no corredor, como se isso pudesse impedir que ela o notasse — ou roubasse. Então, gesticulou na direção das escadas.
— Marcus vai instalar você no quarto azul. Suba, se quiser. Também podemos ficar na varanda e pedir que ele nos traga algo para comer. Está com fome? Nem perguntei. Você quer...
— Quero que me diga o que está acontecendo.
Depois de horas observando os campos da Nova Inglaterra passarem pela janela e ouvindo Hale roncar, Kat já não agüentava mais tecer planos e estratégias para retomar sua vida escolar. Sem enxergar outra saída, ela recorreu ao método que todo ladrão sabe
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ser o mais antigo e confiável de todos para se conseguir o que quer: pedir com educação.
— Por favor, Hale.
Mas ele não respondeu. Estava ocupando demais percorrendo o corredor principal, conduzindo Kat até um aposento mal iluminado que ela nunca tinha visto antes. O luar descia em cascata pelas janelas que cobriam uma das paredes. Havia estantes de livros e sofás de couro, decanters de conhaque e o cheiro estagnado de charutos velhos e de dinheiro mais velho ainda. Kat não teve a menor dúvida de que se tratava de um aposento importante. Para homens importantes. Mas, apesar disso, ela passou por Hale sem pensar duas vezes... até ver o quadro.
Aproximar-se dele era como se aproximar de uma janela para outro país, para outro século. Ela analisou as cores vibrantes e as pinceladas fortes.
— É lindo — sussurrou, observando a obra de um Velho Mestre sob o luar.
— É um Vermeer.
Kat se virou para o rapaz, que continuava parado no vão da porta.
— É roubado — afirmou ela.
Hale foi lentamente para trás dela e analisou a pintura por cima do seu ombro.
— Conheci um homem muito simpático que apostou comigo que tinha o melhor sistema de segurança de Istambul.
Kat sentia seu hálito quente na nuca.
— Ele estava enganado — concluiu ele.
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Ela ficou totalmente imóvel enquanto Hale andava até a mesa do outro lado do cômodo imenso, apanhava um telefone e falava:
— Marcus, estamos em casa. Será que você poderia trazer... Isso mesmo. Na biblioteca. — Ele tapou o fone com uma das mãos. — Você gosta de patê de presunto?
Kat o fuzilou com o olhar, mas ele apenas sorriu.
— Ela adora! — exclamou Hale.
Ele desligou e se deixou cair num dos sofás de couro como se fosse o dono do pedaço. E Kat teve que admitir que ele era.
— E então? — disse Hale com um sorriso despreocupado. —Sentiu minha falta?
Um bom ladrão é sempre um grande mentiroso. Faz parte do repertório de habilidades, das ferramentas de trabalho, do ofício em si. E, naquele momento, Kat achou que provavelmente tinha sido bom abandonar o ramo, pois, quando disse “não”, o sorriso de Hale só fez aumentar.
— É muito bom mesmo ver você, Kat.
— É melhor se lembrar de quem eu sou antes de tentar me passar a perna.
— Não — disse Hale, balançando a cabeça. — É melhor você se lembrar de quem é. Está querendo voltar para Colgan, é isso? Depois de eu salvar você daquele lugar?
— Não era tão ruim. Eu poderia ter me adaptado.
Hale soltou uma gargalhada.
— Acredite: você nunca se adaptaria àquela escola.
— Eu poderia ter sido feliz na Colgan.
— Eles expulsaram você, Kat.
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— Por que você armou para cima de mim!
Hale deu de ombros e depois alongou os braços nas costas do sofá.
— Tirei você daquele lugar porque tenho uma mensagem.
—- Sua família não é dona de uma empresa de telefonia celular?
— Só de umazinha. Mas a mensagem é do tipo que deve ser dado pessoalmente.
— Achei que meu pai não estivesse falando com... — Ela deixou a frase incompleta.
Hale balançou a cabeça. E, de repente, Kat entendeu tudo um pouco melhor. Ela se sentou no sofá de frente para ele e perguntou:
— Então, como está o tio Eddie?
— Está bem — respondeu Hale. — Mandou um abraço para você. Ele acha que a Colgan vai roubar sua alma.
Ela começou a reclamar, mas Hale a deteve.
— Só que essa não é a mensagem.
— Hale — suspirou Kat, começando a se cansar daquilo.
— Kat — imitou ele. — Você quer ouvir a mensagem do tio Eddie ou não?
— Quero.
— É o seguinte: ele precisa devolver a mercadoria para os donos.
— O quê? — Kat estava certa de que não tinha ouvido direito. —O tio Eddie precisa devolver o quê?
— Não. Essa é a mensagem. Abre aspas: “Ele precisa devolver a mercadoria para os donos.”
Kat balançou a cabeça.
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— Não entendi.
— Houve um serviço, Kat. Uma semana atrás. Na Itália.
— Não fiquei sabendo de serviço nenhum — informou Kat antes de recordar que estivera afastada do mundo, do burburinho, da vida.
Ela sabia de cor o cardápio do refeitório da escola para cada dia daquele mês, mas de resto...
— Uma coleção particular — prosseguiu Hale. — Pinturas de grande qualidade. Excelente nível de segurança. Alto risco. Somente duas, talvez três equipes no mundo poderiam ter conseguido e...
— Meu pai está no topo da lista?
Hale balançou a cabeça.
— Não tem lista nenhuma. Só tem...
— Meu pai. — Kat ficou ali sentada por um instante, pensando, então deu um suspiro. — E daí? — perguntou. De repente, tudo aquilo lhe pareceu ridículo. — O que tem de mais? É isso que ele faz da vida, Hale. É o que todos nós fazemos. Por que dessa vez seria diferente?
Ela se levantou e começou a andar em direção à porta, mas num piscar de olhos Hale estava de pé, com a mão em volta do seu punho.
— É diferente porque é diferente, Kat. O cara, o dono, é um bandido.
— Sou filha de Bobby Bishop, Hale. Conheço um monte de bandidos.
Ela tentou se desvencilhar, mas Hale estava apertando seu peito contra o dela. Kat sentia o calor das mãos dele em sua pele. Havia um novo tipo de urgência em sua voz quando ele sussurrou:
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— Preste atenção, Kat. Ele não como seu pai ou o tio Eddie. — Hale respirou fundo. — Nem como eu. O nome desse cara é Arturo Taccone e ele é um tipo totalmente diferente de bandido.
Desde que Kat conhecera Hale, dois anos atrás, ela vira várias expressões diferentes em seu rosto: diversão, curiosidade, tédio. Mas nunca o tinha visto assustado antes e isso lhe deu arrepios.
— Ele quer os quadros de volta. — A voz de Hale já estava mais suave. A rispidez havia desaparecido para ser substituída por outra coisa. — Se ele não os receber em duas semanas, então...
Hale obviamente evitara dizer quais seriam as consequências e era melhor assim. Kat não queria ouvir.
Enquanto caía de volta no sofá, Kat tentou se lembrar, sem sucesso, da última vez que ficara sem palavras. Mas também não conseguia se lembrar de ter sido alguma vez condenada por um crime que não cometeu; expulsa de um internato em que levara três meses para entrar sorrateiramente; e depois, para todos os efeitos, raptada por um sujeito que podia comprar um Monet e ainda assim não conseguia resistir à tentação de roubar um Vermeer. Ficar sem palavras parecia normal diante das circunstâncias.
— Meu pai costumava tomar mais cuidado — comentou ela baixinho.
— Seu pai costumava ter você ao lado dele.
Kat comeu um sanduíche com patê. Bebeu um pouco de limonada também. Tinha a vaga impressão de que Hale a observava, mas isso era apenas porque ele era Hale e porque a parte
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de Kat que a tornava uma garota não a deixaria se esquecer de que ele estava ali.
Uma hora depois, Marcus estava conduzindo Kat pela imponente escadaria enquanto ela o encarava, tentando adivinhar se o homem grisalho estava mais perto dos 50 ou dos 80 anos. Também o escutava com atenção, tentando determinar se seu sotaque era mais escocês ou galês. Mas, acima de tudo, se perguntava por que Marcus era o único criado que ela já havia visto orbitando o Planeta Hale.
— Tomei a liberdade de coloca-la no quarto da Sra. Hale, senhorita.
Marcus abriu uma porta dupla larga e Kat começou a protestar — afinal de contas, a mansão tinha 14 quartos. Mas então o criado acendeu as luzes e Kat inalou o ar estagnado de um quarto limpo, porém negligenciado. Havia nele uma cama king size, uma espreguiçadeira e pelo menos 20 travesseiros com fronhas de seda, em diversos tons de azul. Era lindo e triste ao mesmo tempo, pensou Kat. Aquele lugar precisava sentir as batidas de um coração.
— Se a senhorita precisar de alguma coisa — falou Marcus, parado no vão da porta, — estou no ramal 7 do telefone da casa.
— Não — murmurou Kat. — Ou melhor, sim. Quer dizer... não preciso de nada. Obrigada.
— Muito bem, senhorita — disse ele, fazendo menção de fechar as portas.
— Marcus — chamou Kat, detendo-o. — Os pais de Hale, digo, o Sr. e a Sra. Hale, voltam quando? — perguntou ela, tentando imaginar o que era mais triste: não ter pais vivos ou ter pais que simplesmente viviam vagando pelo mundo.
— A dona da casa não precisará deste quarto, senhorita.
— Você vai me chamar de Kat algum dia, Marcus?
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— Por enquanto não, senhorita — disse ele, repetindo baixinho: - Por enquanto não.
O criado fechou a porta e Kat ficou escutando seus passos percorrem o corredor comprido. Ela se deitou na cama vazia da mãe de Hale, a colcha fria contra sua pele. Sentia-se muito sozinha naquele quarto imenso, pensando sobre seu pai e sobre o tio Eddie, sobre Porsche Speedsters e sobre Monet.
Horas se passaram. Seus pensamentos se misturaram até ficarem parecidos com uma pintura impressionista e Kat se deu conta de que estava perto demais para ver qualquer coisa com clareza. Ela pensou sobre crimes, como já havia pensado tantas vezes em seus 15 anos de vida — desde o dia em que seu pai prometera lhe comprar um sorvete se ela gritasse sem parar até um dos guardas na entrada da Torre de Londres abandonar seu posto para ver o que estava acontecendo.
Ela ouviu as palavras de Hale: Ele costumava ter você ao lado dele.
Kat saltou da cama e vasculhou a bagagem até encontrar seu passaporte. Ela o abriu e viu o nome Melanie O’Hara ao lado de uma fotografia sua com uma peruca ruiva. Enfiou a mão de volta na mala e abriu outro documento: Erica Sampson, uma loira. Mais três investidas resultaram em mais três lembranças, ate Kat encontrar... a si mesma.
Ela escondeu aquelas outras garotas de vista. Por enquanto. Então apanhou o telefone e discou um número.
— Marcus?
— Sim, senhorita — respondeu ele, parecendo alerta demais para as quatro da manhã.
— Vou ter que ir embora.
— Naturalmente, senhorita. Se olhar ao lado do telefone, verá que já tomei a liberdade de...
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Então Kat viu do que ele estava falando: um envelope. Uma passagem de avião. Oito da manhã, primeira classe para Paris.
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Capítulo 4
Kat já gostara muito de Paris. Ela se lembrava de estar na cidade com seus pais — comendo croissants, visitando uma pirâmide e carregando seis balões vermelhos. Somente anos depois se deu conta de que aquela não tinha sido uma divertida viagem em família — na época, eles estavam planejando roubar o Louvre. Ainda assim, as lembranças trouxeram um sorriso aos seus lábios enquanto ela comprava um folhado na cafeteria favorita de seu pai e saía para a rua, enfrentando o vento gelado. Kat tremeu um pouco e desejou ter levado um casaco mais quente. Do outro lado da praça movimentada, viu a loja em que sua mãe lhe comprara um par de sapatos de couro vermelho, como presente de Natal. E desejou várias outras coisas.
— Sei que o tio Eddie falou que ele está em Paris, mas talvez eu leve um ou dois dias para encontra-lo — dissera ela a Marcus quando ele a deixou no aeroporto.
— Naturalmente, senhorita — respondera o criado, dando a entender que na verdade duvidava disso.
De certa forma ele tinha razão, como sempre.
O nome e o endereço de Bobby Bishop podiam mudar constantemente, mas Kat conhecia o pai e isso, no final das contas, foi o suficiente para rastreá-lo.
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Ele estava a meio quarteirão de distância quando Kat o viu. Seu cabelo preto começava a ficar grisalho, mas ainda era volumoso e um pouco cacheado. Andava a passos largos, com a gola do casaco preto de caxemira virada para cima a fim de se proteger do vento, enquanto seguia — nem muito devagar nem muito depressa — em meio à multidão.
Kat voltou às pressas para dentro da cafeteria, comprou um café e levou o copo fumegante para a rua, esperando topar com ele e observá-lo parar, surpreso, assim que a visse. Mas quando ela saiu e procurou seu rosto e aquele jeito de andar conhecido na multidão, não o encontrou mais. Será que ele já havia passado? Por um instante, Kat ficou aflita, achando que não tornaria a encontrá-lo. Ou pior, que só o encontraria tarde demais.
Ela começou a andar na mesma direção que ele vinha tomando antes e estava prestes a chamar seu nome quando, por instinto, parou e se virou para trás. Ali, no centro da praça, Kat o viu parado junto a um grupo numeroso de turistas, ouvindo as explicações de um guia à beira da fonte.
Seu pai não pareceu notar quando ela acenou em meio à confusão de turistas e pombos. Não houve nenhum abraço nem saudações quando ela chegou ao seu lado.
— Espero que isso seja para mim — disse seu pai, sem desgrudar os olhos do homem que falava com o grupo num russo acelerado.
Kat não sabia se devia ficar irritada ou impressionada com seu tom casual, que sugeria que aquele era um encontro marcado e que ele a estivera esperando o tempo todo.
Ela lhe entregou o café e observou o pai colocar as mãos frias em volta do copo quente.
— Cadê suas luvas? — perguntou ela.
Ele sorriu e bebericou o café.
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— No meu dia de folga? Nem pensar.
Ladrões não devem querer muita coisa da vida, o que é irônico, porém verdadeiro. Nunca more num lugar que não possa abandonar sem problemas. Nunca tenha nada que não possa deixar para trás. Essas eram as leias da vida de Kat, do mundo de Kat. Enquanto observava o pai beber seu café e lançar-lhe sorrisos furtivos por sobre o copo, Kat percebeu que, a rigor, nenhum ladrão deveria amar algo como ela o amava.
— Oi, papai.
Perto dali, os sinos de uma igreja começaram a repicar. Pombos se dispersaram. Então seu pai a olhou esguelha e disse:
— Sei que a Escola Colgan é boa, querida, mas Paris me parece longe demais para ser o destino de uma excursão.
— É, eu sei, mas estamos em recesso de outono. — Kat não sabia por que mentir para o pai era bem mais fácil do que contar a verdade para o diretor da escola. — Queria ver o que você estava fazendo.
Outro gole de café. Outro sorriso. Mas dessa vez ele não a olhou nos olhos.
— Você queria conferir se os boatos são verdadeiros — afirmou ele e Kat sentiu seu rosto em chamas sob o vento gelado. — Quem lhe contou? O tio Eddie? Hale? — ele balançou a cabeça e falou entre os dentes: — Eu vou matar aquele moleque.
— Não foi culpa dele.
— Do mesmo jeito que não foi culpa dele em Barcelona?
— Bem, é... — Kat se pegou repetindo as palavras de Hale: — Na hora, todos concordamos que aquele macaco parecia muito bem adestrado.
Seu pai riu com desdém.
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— Pai...
— Meu amor, você acreditaria em mim se eu dissesse que não fiz serviço nenhum na Itália semana passada?
Os sinos pararam de tocar e o guia voltou a falar para o grupo. O pai de Kat correu os olhos pela praça e baixou a voz.
— E se eu dissesse que tenho um álibi perfeito?
— Você tem um álibi? — perguntou Kat. — Jura?
Os olhos de seu pai brilharam.
— Sobre uma Bíblia de Gutenberg.
— Pode provar?
— Bem — hesitou ele. — É um pouco mais complicado do que... — seu pai deixou a frase pela metade enquanto a multidão se abria por um instante, revelando uma banca de jornal. As manchetes alardeavam: "Novas pistas sobre roubo na galeria. Polícia afirma que haverá prisões em breve."
— Pai — falou Kat devagar —, você por acaso sabe alguma coisa sobre essa galeria que foi roubada na semana passada?
O sorriso dele era em parte orgulhoso e em parte travesso, mas nem assim ele a encarou. Não disse uma só palavra.
— Então você não fez um serviço grande na Itália na semana passada porque na noite em questão estava fazendo outro pequeno em Paris?
Ele soprou o café fumegante e então sussurrou:
— Eu disse que meu álibi era bom. — Ele tomou mais um gole. — É claro que o serviço estava um pouco abaixo dos meus padrões habituais... Sabia que minha melhor assistente me abandonou faz pouco tempo? — Ele balançou a cabeça e deu um suspiro exagerado. —É tão difícil encontrar um bom ajudante...
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Uma das senhoras russas chiou, pedindo silêncio, e Kat começou a se sentir agoniada no meio de tanta gente. Queria estar em um lugar mais discreto. Um lugar onde pudesse gritar. Mas, de repente, se viu alimentando uma dúvida...
— Pai, se o serviço foi na semana passada, o que você ainda está fazendo em Paris?
Quando ele se deteve no meio de um gole, Kat não pôde deixar de pensar que o ladrão tinha sido pego, encurralado. O pai, por outro lado, parecia simplesmente orgulhoso da filha.
— Digamos apenas que, se não tenho nada comigo, no momento não sou tão culpado quanto gostaria de ser.
— Pai... — Ela ergueu os olhos para ele, sem saber ao certo se queria ouvir a resposta para sua próxima pergunta: — Onde eles estão escondidos?
— Ele — corrigiu o pai — está num lugar seguro.
— Um lugar isolado?
— Não — disse ele com uma risadinha. — Infelizmente, no momento ele está cercado de um monte de amigos.
Ele continuou a sorrir, mas a maneira como seus olhos não paravam de correr pela praça estava deixando Kat nervosa.
— Então talvez você devesse larga-lo onde está — disse ela.
Ele girou o corpo, mas não a olhou nos olhos.
— E que graça teria?
Seu sorriso se alargou e Kat poderia jurar ter visto uma das mulheres russas se derreter um pouco diante dessa visão. Duas adolescentes olhavam na direção dele, dando risadinhas, mas, pelo que Kat notou, apenas uma das mulheres na praça ousava encará-lo diretamente. Talvez, de tão bonita e segura de si que era, pouco se
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importasse que a vissem olhando. Ainda assim, Kat estranhou o olhar fixo daquela morena estonteante.
— Ver mulheres paquerando meu pai é muito esquisito, sabia?
— Minha querida — a voz de seu pai estava firme, - às vezes é inevitável.
Ele está me provocando, pensou Kat. Quando eles começaram a seguir o grupo de turistas até a escadaria de uma igreja próxima, Kat continuou sentindo aquele olhar, como se alguém estivesse observando cada movimento seu.
Kat tirou um máquina fotográfica minúscula da bolsa e vasculhou as pessoas em volta. Um homem estava sentado debaixo de um guarda-sol na calçada de uma cafeteria, sem comer nada. Ela deu zoom em dois homens que estavam à toa num banco no canto da praça e reconheceu as roupas sem graça, os sapatos de má qualidade e a aparência cansada de uma equipe que devia estar trabalhando há cinco dias sem descanso. E, por fim, analisou a mulher parada à beira da praça, encarando o pai, que mal havia fitado Kat nos olhos desde que ela o encontrara.
— Quem são seus amigos? — perguntou ela, virando-se com um suspiro. — Polícia local?
— Interpol, na verdade.
— Maravilha — disse Kat, esticando a palavra.
— Achei mesmo que você fosse ficar impressionada.
— É o sonho de toda garota — brincou ela. — Espiões da Interpol e cachorrinhos.
Os sinos da igreja começaram a repicar novamente. Um ônibus parou na frente deles, bloqueando a visão da praça, protegendo-os dos olhares curiosos. Nessa fração de segundo, o pai de Kat estendeu os braços na direção dela, agarrando-a pelos ombros.
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— Kat, não quero que você se preocupe com esse negócio da Itália. Ninguém vai me ferir. Esse cara não está interessado em mim. Ele está interessado nos quadros e eles não estão comigo, então...
Ele deu de ombros.
— Ele acha que estão.
— Mas não estão — declarou ele naquele tom pragmático que parece ser inato a todos os bons pais e os grandes ladrões. — Estou sendo seguido 24 horas por dia e tenho um álibi consistente. Confie em mim, Kat. Taccone não virá atrás de mim.
Kat quase acreditou nele. Mas achava que nem ele acreditava em si mesmo. Ela havia aprendido desde muito nova que são as aparências que regem a vida e a morte dos ladrões — sua vida inteira tinha sido um grande truque de ilusionismo. Se alguém achava que seu pai estava com os quadros, então a verdade não conseguiria salvá-lo.
— Você precisa falar com ele — implorou Kat. — Ou se esconder, fugir...
— Vamos esperar até o fim da semana, Kat. Ele vai revirar algumas pedras e vai sair o suficiente de debaixo delas para que encontre a verdade.
— Pai...
Ela começou a falar, mas era tarde demais. O ônibus estava indo embora e seu pai já se afastava, os lábios quase imóveis quando ele disse:
— Onde sua escola acha que você está agora? Quer que eu escreva um bilhete?
— Já escreveu — mentiu Kat. — Ele foi enviado diretamente ao diretor Frankllin do seu escritório em Londres ontem pela manhã.
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— Essa é minha garota — sussurrou ele e a conversa desagradável de antes parecia ter ocorrido um milhão de anos atrás. — Agora vá andando. Volte para a escola.
Kat ficou paralisada, sem saber se devia admitir ao pai que fora expulsa ou se devia continuar mentindo.
— A Escola Colgan dá férias de inverno? — Seu olhar se fixou no guia em frente ao grupo. — Estava pensando em passarmos o Natal em Cannes.
— Natal em Cannes — repetiu Kat baixinho.
— Ou talvez Madri.
Kat conteve um sorriso e sussurrou:
— Por que não me surpreende?
— Kat. — Sua voz a fez parar no ato. Arriscou olhar para ele, enquadrado pela igreja antiga e pela praça de paralelepípedos. — Será que podia dar uma mãozinha ao sei pai?
Kat sorriu e começou a atravessar a multidão com sua câmera nas mãos, uma turista como outra qualquer. Quando viu uma dupla de policiais parisienses e gritou "Com licença!" em inglês, parecia uma garota comum prestes a entrar em pânico. Ela agarrou sua bolsa com toda a força e correu desesperada na direção dos dois.
— Com licença, policial!
— Yes? — falou um deles, com sotaque carregado. — Algum problema?
— Aqueles homens! — gritou Kat, apontando para os dois agentes da Interpol à paisana que haviam saído da cafeteria e agora conversavam com o colega no banco da praça. — Eles tentaram me obrigar a...
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Kat não concluiu a frase. Os policiais pareciam impacientes, porém intrigados.
— Yes?
— Eles...
Kat sinalizou para um dos policiais chegar mais perto, então sussurrou no seu ouvido. Num piscar de olhos, os dois homens estavam abrindo caminho pela multidão.
— Vous là! — gritou o policial para a equipe de espionagem num francês rápido. — Arrêtez-vous! — Vocês! Parem!
Os agentes da Interpol estavam quase na altura da fonte quando os policiais tornaram a gritar:
— Arrêtez-vous! — Parem!
Os homens tentaram fugir, mas era tarde demais. As pessoas já estavam olhando e os policiais avançavam. Palavrões em francês encheram o ar. Bolsos foram revistados e identidades analisadas e, em meio a tudo isso, os pombos continuaram catando comida e os sinos continuaram repicando.
Kat sabia que seu pai já estava longe dali.
Ela deu as costas para o caos, pronta para pegar um táxi e fazer uma longa e tranquila viagem de avião de uma extremidade a outra do Atlântico. Mas, de repente, alguém agarrou seus braços. Kat ouviu uma porta de carro se abrir às suas costas e, pela segunda vez em dois dias, se viu no banco de trás de uma limusine, sendo cumprimentada por outra voz surpreendente.
— Olá, Katarina.
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Capítulo 5
A única pessoa que sempre chamava Kat pelo nome completo era o rio Eddie, porém, o homem no banco de trás do carro não poderia ser mais diferente de seu tio-avô. Ela o analisou — o casacão de caxemira e o terno do mesmo tom, a gravata de seda e o cabelo engomado para trás — e se lembrou do alerta de Hale: ele é um tipo diferente de bandido. A primeira coisa que lhe ocorreu foi lutar, mas, ao ver que havia dois homens se acomodando um de cada lado dela, Kat percebeu que essa hipótese estava fora de cogitação. Então, em vez disso, perguntou:
— Se eu pedir com educação vocês vão me deixar ir embora?
Um sorriso se desenhou nos lábios finos do homem.
— Já tinha ouvido falar que você tem o senso de humor do seu pai. — Seus olhos escuros continuavam frios enquanto ele a encarava. — E os olhos da mãe.
Apesar das circunstâncias, foi a última parte que pegou Kat desprevenida.
— Você conheceu a minha mãe?
— Conheci a reputação dela — corrigiu ele. — Ela era uma mulher muito talentosa. Ouvi dizer que era como uma gata. É assim que você prefere ser chamada, não é, Katarina? De Kat?
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O inglês do homem tinha um leve sotaque que não era totalmente italiano, mas cuja origem Kat não conseguia determinar, como se ele fosse um cidadão do mundo.
— Você tem bons informantes — falou ela.
— Tenho o melhor de tudo. — O homem sorriu. — Meu nome é Artuno Taccone.
— O que você quer?
— Achei que poderia lhe dar uma carona até o aeroporto.
Ele indicou com um gesto o interior do belo carro antigo, mas Kat simplesmente deu de ombros.
— Eu ia pegar um táxi.
Ele riu.
— Mas não há a menor necessidade. Além do mais, desse jeito nós podemos conversar. E no caminho, quem sabe, parar e pegar meus quadros, se você preferir.
— Eles não estão comigo — disse ela antes de perceber como aquelas palavras poderiam soar. — Meu pai também não está com eles. — Kat se inclinou na direção dele, na esperança de que a proximidade gerasse credibilidade. — Olhe, não foi ele. Você está perseguindo o cara errado. Ele fez um serviço numa galeria de Paris na mesma noite. Compre um jornal. Está na primeira...
— Katarina — interrompeu Taccone, seu sussurro mais aterrorizante do que qualquer grito. — Esses quadros são muito importantes para mim. Eu vim até Paris para explicar isso ao seu pai, mas no momento ele está um pouco popular demais para o meu gosto.
Kat pensou nos agentes da Interpol que vigiavam cada movimento do pai.
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— Foi muita sorte ter encontrado você. Quero meus quadros de volta, Katarina. Estou disposto a enfrentar qualquer problema, qualquer incômodo, se você preferir, para recuperá-los. Diria isso ao seu pai para mim?
Sentada de frente para Artuno Taccone, espremida entre dois brutamontes que nunca saíam de perto de seu chefe, Kat ainda não sabia das histórias envolvendo aquele homem. Não fazia idéia de seus negócios no Oriente Médio. Não tinha ouvido falar das explosões em seu depósito perto de Berlim ou do misterioso desaparecimento de um gerente de banco em Zurique. Seu conhecimento se resumia ao que via: um homem bem vestido, que usava uma bengala à moda antiga com um cabo de metal entalhado, dois guarda-costas e nenhuma saída.
— Ele não tem como devolver o que não roubou — afirmou Kat em tom de súplica, mas o homem elegante se limitou a dar uma gargalhada arrastada e fria e a falar com o motorista.
— Duas semanas é tempo suficiente, você não acha? É claro que não deve demorar tanto, mas, por respeito à sua mãe e à família dela, serei generoso.
A limusine desacelerou até parar. Os capangas abriram as portas e, enquanto saía para uma rua parisiense ensolarada, Arturo Taccone disse:
— Foi um prazer conhecê-la, Katarina — Ele depositou um cartão de visitas no banco ao seu lado. — Até a próxima.
Só depois que a porta se fechou e o carro tornou a pegar as ruas movimentadas em direção ao aeroporto Kat percebeu que respirava de maneira irregular. Ela baixou os olhos para o cartão branco que trazia o nome de Arturo Taccone impresso em letras pretas simples. E as seguintes palavras manuscritas: Duas semanas.
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— Não foi ele.
Kat falava do vão da porta de um quarto escuro, dirigindo-se ao vulto na cama imensa. Ela o viu se erguer de um salto e de repente as luzes se acendem, causando um incômodo em seus olhos. Mas estava cansada demais para se proteger do brilho forte.
— Kat — gemeu Hale, voltando a se deitar sobre os travesseiros. — Engraçado, não ouvi a campainha.
— Entrei direto. Espero que não se incomode.
Hale sorriu.
— Nem o alarme.
Ela entrou no quarto, jogando uma minibolsa de ferramentas em cima da cama.
— Está na hora de você atualizar seu sistema de segurança.
Hale se recostou contra a cabeceira antiga e estreitou os olhos para encará-la.
— Ela está de volta. — Ele cruzou os braços sobre o peito nu. — Sabia que eu poderia estar pelado?
Mas Kat não se permitiu pensar no que Hale estava ou não vestindo debaixo daqueles lençóis de algodão egípcios.
— Não foi ele, Hale. — Ela se deixou cair numa poltrona diante da lareira. — Meu pai tem um álibi.
— Você acredita nele?
— Normalmente eu não acreditaria. — admitiu ela, olhando para as próprias mãos. — Mas tenho certeza de que ele não poderia estar
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fazendo um serviço grande na Itália na mesma noite em que estava fazendo outro, pequeno, em Paris.
Hale soltou um assobio de admiração e Kat se lembrou de que, apesar de todos os recursos e do talento, a coisa mais perigosa a respeito de W. W. Hale V era o fato de que queria ser como o pai dela.
— Ele ainda está em Paris? — Perguntou Hale.
Kat assentiu. Ele colocou os pés descalços no chão e olhou para ela.
— Então, qual é a situação? Ele escondeu a mercadoria em algum lugar e não consegue recuperá-la e sair da cidade porque esta sendo vigiado 24 horas por dia?
— Algo assim — respondeu ela.
— O que ele vai fazer?
— Nada.
Hale balançou a cabeça.
— Que família. Um se recusa a ir embora e a outra — acrescentou ele, lançando—me um olhar — não para de fugir.
Sem se dar conta do que estava fazendo, Kat sacou um cartão do bolso e correu um dedo pela superfície do papel,
— O que é isso? — perguntou Hale.
Kat olhou em direção ao fogo mortiço e um tremor percorreu-lhe o corpo.
— O cartão de visitas de Artuno Taccone.
Num piscar de olhos, Hale jogou as cobertas de lado e foi para perto dela. Parte de Kat não pode deixar de perceber que, não, ele não estava pelado, mas outras partes — a parte ladra, a parte filha e
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a parte que havia visto a escuridão nos olhos de Taccone — mal notaram a calca de pijamas do Super-Homem.
— Por favor, me diga que você encontrou isso largado numa calçada qualquer — disse Hale.
— Ele devia estar seguindo meu pai, mas então me viu e... me deu uma carona até o aeroporto.
— Artuno Taccone lhe deu uma carona até o aeroporto?
— Gostei da sua calça — disse ela, fugindo do assunto.
— Kat, me diga que não ficou sozinha com Artuno Taccone.
— Estou bem.
— Ah, está? — explodiu Hale. — Eu já lhe falei, Kat. O tio Eddie me disse que esse cara não é flor que se cheire e o tio Eddie...
— Sabe o que diz. Eu sei.
— Isso não é brincadeira, Kat.
— E pareço estar brincando, Hale?
Hale chutou as cobertas caídas no chão e, para Kat, ele pareceu ao mesmo tempo um homem assustado e um menino birrento que não conseguiu o que queria. Após um longo silêncio, disse:
— Pelo menos você falou que ele estava atrás do cara errado?
— Claro que sim, mas ele não estava muito disposto a acreditar na minha palavra.
— Kat, você precisa...
— Preciso o quê? — interrompeu ela. — Hale, o que posso fazer? Meu pai não está com os quadros, mas esse tal de Taccone nunca vai acreditar nisso. E aí? Eu falo para o meu pai se esconder logo para ganhar uma boa vantagem quando os maiores capangas que o dinheiro pode comprar começarem a persegui-lo daqui a duas
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semanas? Não sei o que você acha, mas o fato de um grupo de agentes da Interpol estar vigiando meu pai 24 horas por dia, sete dias por semana, me parece uma ótima noticia agora!
— Esse cara quer mesmo os quadros dele de volta.
— Então nos vamos entregá-los a ele.
— Belo plano. Só que não estamos com os quadros.
— Mas resolveremos isso. — falou Kat, levantando-se e caminhando em direção a porta. — Assim que os roubamos.
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13 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
NOVA YORK,
ESTADOS UNIDOS
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Capítulo 6
Uma coisa estranha costuma acontecer às vésperas do inverno. Pergunte a qualquer ladrão acima da média e ele lhe dirá que a melhor época para se aplicar um golpe é quando o clima já deveria ter mudado, mas ainda não mudou. As pessoas se sentem com sorte. Os alvos ficam descuidados. Os ladrões olham para o céu e sabem que a neve está lá em cima em algum lugar, então pensam em como já enganaram a Mãe Natureza. E acham que talvez consigam se dar melhor ainda.
Se Kat tivesse qualquer dúvida a respeito dessa teoria, tudo o que precisaria fazer seria correr os olhos pelo Madison Square Park enquanto ela e Hale caminhavam na Quinta Avenida. O sol estava quente, mas o vento era frio e crianças brincavam sem seus gorros e cachecóis. Babás conversavam ao lado de carrinhos de bebê caros, enquanto executivos voltavam para casa a pé. E foi aí que ela o viu.
Kat não o descreveria como um homem bonito. Afinal de contas, havia sido criada por Bobby Bishop e passado mais tempo do que devia com Hale. Bonito não é sinônimo de atraente e, embora o homem que atravessava a praça não pertencesse à primeira categoria, certamente pertencia à segunda.
Seu cabelo, por exemplo, era penteado para trás com gel. O terno que usava era caro, do tipo que logo estaria fora de moda, e o
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relógio era a única coisa nele tão brilhante quanto seus dentes. Mas, ainda assim, para todos os propósitos do mundo de Kat, ele era perfeito.
— Ai, ai — murmurou Kat quando o homem, que seguia em frente sem desgrudar os olhos do seu celular, trombou com um velho resmungão que vestia uma capa de chuva comprida e méis diferentes uma da outra.
— Ai, ai — repetiu Hale.
— O senhor está bem? — Kat ouviu o homem de cabelo engomado perguntar.
O velho assentiu, mas agarrou as lapelas do terno caro do outro para se ajeitar.
Quando os dois homem se separaram, um deles parou logo depois do primeiro passo. Mas o homem perfeito — o alvo perfeito — continuou andando. Ele já estava longe demais para ouvir quandoKat acenou para o “mendigo” desgrenhado e disse:
— Oi, tio Eddie.
Se Kat tivesse ficado tempo suficiente na Escola Colgan, algum professor acabaria lhe dizendo o que sua família repetia há gerações: você pode quebrar as regras, mas só de vez em quando, e apenas quando as conhece muito bem. Então talvez isso explicasse por que, dentre todos os grandes ladrões do mundo, somente o tio Eddie, e mais ninguém, pudesse se dar ao luxo de ter um endereço fixo.
Ao entrar no prédio velho de arenito no Brooklyn, Kat sentiu o sol desaparecer por trás de uma porta de madeira pesada, que isolava o edifício de um bairro que havia passado os últimos 60 anos
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alternando sucessivamente o rotulo de badalado com o de perigoso. Mas lá dentro nada mudava. O corredor estava sempre sombrio. O ar tinha o cheiro do Velho Mundo ou das coisas a que diziam que o Velho Mundo cheirava: repolho, cenouras e coisas fervendo durante horas e horas em fogo baixo, dentro das panelas de ferro fundido que viveriam mais do que todas as pessoas que se serviam delas.
Era, em suma, seu lar, mas Kat não ousava dizer isso.
Tio Eddie pegou o corredor estreito, arrastando os pés e parando apenas para tirar do bolso a carteira do homem de cabelo com gel e atirá-la numa pilha de artigos roubados quase idênticos que permaneciam ali, intocados. Esquecidos.
— O senhor tem andado ocupado. — Kat escolheu um das carteiras e folheou o conteúdo dela: um documento de identidade, quatro cartões de crédito e 900 dólares em dinheiro. — Tio Eddie, tem um monte de dinheiro aqui...
— Tirem os sapatos antes de entrar. — falou seu tio-avô com rispidez enquanto continuava a percorrer o corredor estreito.
Hale tirou seus mocassins italianos, mas Kat já estava correndo atrás do tio, seguindo-o pelo interior da casa.
— Anda batendo carteiras? — perguntou Kat assim que eles chegaram à cozinha.
Seu tio ficou calado diante do fogão antiquíssimo que dominava a parede oposta.
— Espero que esteja tomando cuidado — prosseguiu Kat. — As coisas não são mais como antigamente, tio Eddie. Hoje tem um caixa eletrônico em cada esquina, cada um com uma câmera e...
Era como se ela estivesse falando para as paredes. Tio Eddie retirou duas tigelas de porcelana da prateleira acima do fogão e começou a servir sopa com uma concha. Entregou uma tigela para Hale, outra para Kat e indicou-lhes a mesa de madeira comprida
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cercada de cadeiras de vários formatos diferentes. Hale se sentou e comeu como se não fizesse uma refeição decente há dias, mas Kat continuou de pé.
— O mundo de hoje é diferente, tio Eddie. Não quero que o senhor arranje problemas, só isso.
Nesse exato momento, a colher de Hale raspou o fundo da sua tigela. Ele não disfarçou a consternação na voz quando perguntou:
— Tio Eddie, por que sua louça tem o selo da Família Real Britânica?
A resposta do tio de Kat veio numa voz brusca, impaciente.
— Porque era com eles que eu estava quando a roubei.
Quando Kat segurou a tigela em suas mãos, percebeu que ela não só estava quente — ela era quente. E de repente viu o tio Eddie como Hale o via: não como uma velho, mas como o velho.
— Nós praticamos uma arte muito antiga, Katarina. — seu tio se deteve por tempo suficiente para jogar a carteira de Hale na direção dele. — Ela não se mantém viva pelo sangue. — Mais uma pausa enquanto tio Eddie largava o passaporte de Kat sobre o balcão, ao lado de uma baguete dormida. — É pela prática.
O velho deu as costas para sua sobrinha, que ficou sem palavras, e para o garoto que estava com ela.
— Imagino que você tenha faltado no dia que ensinaram isso na Colgan.
O casado de Kat lhe pareceu pesado demais enquanto ela ficava parada ali, lembrando-se de que não conseguia aguentar aquele calor, aquela pressão, e de que tinha sido por isso que ela havia deixado aquela cozinha. Ela se sentou à mesa, sabendo que agora estava de volta.
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Muitas coisas poderiam ter acontecido em seguida. Tio Eddie poderia ter comentado que o rapaz que a acompanhava se vestia muito melhor do que o pé-rapado que a mãe dela tinha escolhido. Hale poderia ter reunido coragem para finalmente perguntar ao tio Eddie qual era a história por trás do Rembrandt falso pendurado sobre a lareira. Kat poderia ter admitido que a comida da Colgan não chegava aos pés da que seu tio preparava. Porém, quando a porta dos fundos dói escancarada, a atenção de todos se voltou para os dois meninos que entraram correndo, lutando para conter o maior e mais peludo cão que Kat havia visto na vida.
— Voltamos, tio Eddie! — o menino menos segurou com mais forca a coleira do cão. — Eles não tinham dálmatas, mas nós conseguimos um... — Ele ergueu os olhos. — Ei, Kat está aqui! E Hale também!
Hamish Bagshaw era um pouco mais atarracado do que o irmão mais velho, mas, fora isso, aqueles dois rapazes ingleses corados poderiam se passar por gêmeos. O cão avançou para o lado, mas Hamish mal deu atenção.
— Ei, Kat, achei que você estivesse na...
Enquanto ele deixava a frase ela metade, Kat tentava se convencer de que era o calor do forno que estava fazendo seu rosto corar. Ela se concentrou em respirar o ar puro que vinha da porta aberta e jurou para si mesma que não se importava com o que os outros pudessem pesar. Ainda assim, ficou aliviada quando ouviu a pergunta de Hale:
— E aí, Angus? Como está a sua bunda?
Seu alivio desapareceu rapidamente quando Angus começou a desabotoar a calça.
— Nova em folha. Os médicos alemães me concertaram direitinho. Quer ver a cicatriz?
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— Não! — exclamou Kat, mas o que ela pensou foi: eles estiveram na Alemanha?
Eles fizeram um serviço na Alemanha.
Fizeram um serviço sem mim.
Ela olhou para Hale, observou a maneira como ele lambia a colher e se servia de uma segunda tigela de sopa, sentindo-se à vontade na cozinha do tio. Fitou o velho, que nem sequer havia sorrido para ela. E, quando se voltou para os irmãos Bagshaw, não conseguiu encará-los. Em vez disso, se concentrou no vira-lata sarnento entre os dois e murmurou:
— O velho golpe do cachorro no bar...
— Ei, vocês querem entrar na jogada? — perguntou Angus, radiante.
— Meninos — alertou o tio Eddie, como se quisesse livrar Kat do vexame de admitir que até mesmo os golpes clássicos já não eram mais da sua alçada.
— Desculpe, tio Eddie — murmuraram os irmãos em uníssono.
Em seguida, saíram discretamente da cozinha, levanto o cachorro de volta para a noite. Tio Eddie assumiu seu lugar na cabeceira da mesa.
— Você precisa fazer a pergunta, Katarina, para que este velho aqui possa responder.
Kat estivera ali pela última vez em agosto. O ar na rua naquela época estava como o de dentro da cozinha agora — abafado, sufocante. Ela se lembrava de ter achado, na ocasião, que jamais se
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sentiria tão desconfortável à mesa do tio novamente. Fora ali que seu pai havia planejado o roubo do diamante De Beers quando Kat tinha 3 anos. Naquela mesma cozinha, seu tio orquestrara a interceptação de 80% do caviar do mundo quando Kat tinha 7. Mas nada tinha parecido tão criminoso quanto se sentar ali e anunciar para o tio Eddie que seu maior golpe tinha dado certo e que ela estava abandonando a cozinha da família para se apoderar da educação que uma das melhores escolas do mundo oferecia.
No entanto, no final das contas, isso não foi nada em comparação a voltar e dizer:
— Tio Eddie, precisamos da sua ajuda. — ela baixou os olhos, analisando um século de talhos e marcas na madeira debaixo de suas mãos. — Eu preciso de sua ajuda.
Tio Eddie andou até o forno e tirou lá de dentro um tabuleiro de pai recém-assado. Kat fechou os olhos e pensou em croissants quentinhos e em ruas de paralelepípedos.
— Não foi ele, tio Eddie. Fui até Paris e conversei com meu pai. Ele tem um álibi, mas...
— Artuno Taccone fez uma visita a Kat — concluiu Hale no seu lugar.
Kat poderia contar nos dedos de uma das mãos o numero de vezes que virá seu tio ficar verdadeiramente surpreso — e essa não foi uma delas. Ela soube disso no instante em que ele se virou do forno e encarou Hale com um olhar sagaz.
— Sua função era dar um recado.
— Sim, senhor — disse Hale. — Foi o que fiz.
— É, 1958 foi um bom ano para automóveis, rapazinho.
— Sim, senhor.
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— Artuno Taccone não é o tipo de homem que eu quero visitando minha sobrinha-neta.
— Sua sobrinha-neta foi embora no meio da noite. Ela tem esse hábito.
Naquele momento, Kat teve a impressão de que sua ida para a escola era a desculpa de que todos precisavam para começarem a tratá-la como criança.
— Ela está sentada bem aqui!
Kat só percebeu que estava gritando quando seu tio a encarou como um homem que não ouvia alguém gritar com ele há muito tempo.
— Eu estou aqui — disse Kat, baixando o tom.
Ela não disse: Estou ouvindo vocês.
Não anunciou: Voltei para casa.
Nem prometeu: Não vou a lugar algum.
Havia pelo menos uma dezena de coisas que poderia ter dito para recuperar seu lugar naquela mesa, mas apenas uma realmente importava.
— Taccone quer os quadros dele de volta.
Tio Eddie a analisou.
— É claro que ele quer.
— Mas eles não estão com meu pai.
— Seu pai não é do tipo que pede ajuda, Katarina, especialmente a minha.
— Tio Eddie, eu preciso de sua ajuda.
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Ela observou o tio retirar uma faca serrilhada comprida de um cepo de madeira ao lado do fogão e cortar três fatias de pão quente.
— O que posso fazer? — indagou tio Eddie em seu tom de “Sou apenas um velho”.
— Preciso saber quem fez esse serviço. — disse Kat.
Ele retornou à mesa, dando-lhe um pedaço de pão e um pratinho com manteiga.
— E por que você precisa saber disso? — perguntou ele.
Mas não era uma pergunta: era um teste. De conhecimento. De lealdade. De até onde Kat estava disposta a se rebaixar para reconquistar o lugar que era seu até o verão passado.
— Porque o autor do roubo está com os quadros de Taccone.
— E...
Kat e Hale trocaram olhares.
— E nós vamos roubá-los.
Kat sentiu uma onda de energia ao ouvir as próprias palavras. Elas faziam tão bem à alma quanto uma confissão.
— Coma seu pão, Katarina. — mandou tio Eddie e Kat não obedeceu.
Era sua primeira refeição desde a passagem por Paris.
— O que você está tentando fazer é uma coisa séria — prosseguiu ele. — Posso saber o que significa esse “nós” de que você está falando?
Hale a encarou. Ele abriu a boca para responder, mas Kat o cortou.
— Hale e eu podemos fazer isso.
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— Então a coisa é muito séria. Infelizmente, me parece um pouco difícil para alguém que está na Escola Colgan...
Rezava a lenda que certa vez o tio Eddie ganhara 1 milhão de dólares num fim de semana jogando cartas em Monte Carlo. Sem trapacear. Pela primeira vez na vida, Kat acreditou no poder de expressão impassível do tio à mesa de jogo.
Ela baixou o olhar e contou ao tio o que ele já sabia.
— Acontece que a Colgan e eu tomamos caminhos diferentes.
— Entendo.
Seu tio assentiu com a cabeça, mas não fez pouco caso dela. Não havia necessidade.
— Precisamos de um nome, tio Eddie. — disse Hale.
— As pessoas gostam muito do seu pai, Katarina — comentou tio Eddie, murmurando em seguida: — Embora eu não consiga entender o por quê. Mas ele tem amigos. — Em seguida, pousou a mão áspera sobre a dela. — Vou fazer algumas ligações. Devo precisar de um ou dois dias...
— Nós não temos um ou dois dias. — Kat sentiu que estava ficando com raiva. — Sabemos que pode descobrir quem roubou os quadros de Taccone, tio Eddie. — Ela se levantou, erguendo-se acima do tio pela primeira vez (e talvez a ultima) vez na vida. — Se o senhor não pode ou não quer nos dizer, vamos encontrar outra pessoa que nos diga. Mas temos que fazer isso. — Ela respirou fundo. — Eu tenho que fazer isso.
— Termine a sua sopa, Katarina — ordenou o tio.
Mas Kat não se sentou nem tomou a sopa. Em vez disso, ficou observando o velho se levantar e ir até a despensa. Só que, no lugar de alguma sobremesa deliciosa, ele tirou de lá de dentro um rolo grosso de papel.
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Hale lançou um olhar para ela, arregalando os olhos enquanto seu tio afastava a comida e colocava o rolo de papel na mesa.
— Quanto ao homem que fez esse serviço... — tio Eddie começou a falar, lentamente. Talvez por conta do cansaço ou do hábito, seu sotaque parecia mais carregado do que o normal enquanto ele estendia o rolo. — Não sabemos quem ele é. Não sabemos onde ele está.
O coração de Kat batia mais rápido à medida que seu animo diminuía. Então, com um movimento rápido, tio Eddie abriu o rolo sobre a mesa longa e Kat se deparou com as plantas mais elaboradas que já tinha visto.
Seu tio sorriu.
— Mas sabemos onde ele esteve.
A rua estava escura quando eles deixaram o prédio de arenito. Talvez Kat houvesse ficado muito tempo na cozinha quente, mas, sem o sol, o ar parecia mesmo de inverno, como se eles tivessem se demorado tanto lá dentro que a estação finalmente houvesse mudado.
Hale caminhava ao lado dela, abotoando o casaco quente de lã. Kat sentiu um calafrio e, quando ele passou um braço ao seu redor, ela não o afastou. Eles se misturaram ao cenário: dois jovens dando um passeio até a biblioteca. Talvez indo ao cinema ou a uma pizzaria. Um casal como outro qualquer.
Respingos pesados de chuva caíram sobre o casaco escuro de Hale e brilharam como contas de prata.
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— Você já tinha visto tantos dispositivos de segurança num conjunto de plantas antes? — perguntou ele.
Kat balançou a cabeça.
— Não.
— Então, quem quer que tenha feito esse serviço é muito esperto — disse Hale.
Kat pensou sobre a indiferença com a qual Artuno Taccone havia ameaçado a vida de seu pai e acrescentou:
— E muito burro também.
A luz amarela de um poste distorcia o rosto de Hale, mas era impossível não ver o brilho em seus olhos.
— Isso não faz você se lembrar de alguém que a gente conhece?
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12 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
LAS VEGAS,
ESTADOS UNIDOS
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Capítulo 7
As pessoas vão a Las Vegas por vários motivos. Algumas, por que querem ficar ricas. Outras, por que querem se casar. Existem aquelas que desejam se perder e também as que desejam ser encontradas. Algumas estão correndo atrás de algo. Outras, fugindo. Kat sempre teve a impressão de que Vegas era um lugar em que quase todo mundo busca conseguir alguma coisa a troco de nada — uma cidade inteira de ladrões.
No entanto, enquanto Kat e Hale deixavam o andar do cassino e subiam para as salas de conferências pela escada rolante, ela percebeu que esses rótulos não se aplicavam à Associação Internacional de Matemática Avançada.
— Não sabia que havia tantos caras estudando matemática no mundo — disse Hale quando eles chegaram ao saguão lotado.
Kat pigarreou.
— E mulheres — acrescentou ele.
Para onde quer que Kat olhasse, via homens usando ternos cafonas e crachás, se enturmando e rindo, ignorando os caça-níqueis e as garçonetes no andar logo abaixo. Kat imaginava que o palestrante principal tinha mesmo que ser tão genial e fascinante
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quanto diziam. Isso se você se interessasse por derivadas, teoremas e polinômios. Kat e Hale seguiram o grupo até o salão. Conseguiram lugares na última fileira.
— Então quer dizer que as pessoas mais inteligentes do mundo estão aqui? — sussurrou Hale.
Kat vasculhou a plateia.
— Pelo menos uma delas.
O olhar de Hale estava fixo na programação da conferência que carregava.
— Onde está ele?
— Perto do projetor. Quinta fileira. Corredor central.
Na frente do salão, o professor seguia falando numa língua que apenas algumas pessoas no mundo compreendiam de verdade.
— Sabe — Kat sentia o hálito quente de Hale em sua orelha no salão gelado —, não sei se nós dois precisávamos mesmo estar aqui...
O slide mudou. Enquanto centenas de matemáticos esperavam, ansiosos, o rapaz ao lado de Kat sussurrou:
— Eu poderia dar uns telefonemas... conferir algumas coisas...
— Jogar uma partida de vinte e um?
— Bem, quando em Roma, faça como os romanos.
— Roma é só amanhã, queridinho — lembrou Kat.
Ele assentiu.
— Está certo.
— Shhh...
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— Você entende alguma coisa disso? — perguntou ele, apontando para as linhas e os símbolos que cobriam as enormes telas.
— Algumas pessoas compreendem o valor da educação.
Hale esticou e cruzou as pernas, então colocou o braço em volta dos ombros de Kat.
— Que bonito isso, Kat. Talvez mais tarde eu compre uma universidade para você. E um sorvete.
— Combinado.
Eles permaneceram naquele salão com ar-condicionado frio demais durante a primeira palestra inteira e parte da segunda. Quando ela finalmente viu um membro da equipe de sistemas audiovisuais do hotel escapulir pelas portas dos fundos, as mãos de Kat já estavam congeladas e sua barriga roncava. Nesse momento, ela não pensou duas vezes antes de puxar Hale e sair de fininho pela porta.
Enquanto o gênio da matemática continuava sua lenga-lenga no Salão B, três adolescente se reuniam secretamente num corredor vazio do cassino.
Ninguém mais escutou Hale quando ele disse:
— Olá, Simon.
— E então, o que você achou da palestra, Simon? — Hale se deteve e leu o crachá do rapaz à sua frente. — Ou devo dizer Henry?
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Mas o outro apenas sorriu como se tivesse sido pego por duas das poucas pessoas no mundo cujas opiniões importavam para ele. O que era verdade.
— Como me encontrou? — indagou Simon.
Hale se limitou a erguer as sobrancelhas, ao que o outro murmurou:
— Deixa pra lá.
Logo a escada rolante os levava para longe dos estudiosos e dos salões acarpetados. O silêncio deu lugar ao tilintar das máquinas e ao falatório dos turistas. Kat teve praticamente que gritar para ser ouvida:
— E o seu pai?
— Se aposentou — respondeu Simon. — De novo. Dessa ver na Flórida, eu acho.
— Sério? — Hale não tentou esconder o espanto. — Ele tem 43 anos.
— As pessoas fazem loucuras quando tiram a sorte grande. — explicou Simon, dando de ombros. Ele se inclinou para mais perto dos dois. — Na verdade, ele tem dado consultoria para a Seabold Security.
— Traíra — provocou Hale.
Kat, no entanto, mal escutou. Estava ocupada demais examinando o cassino. Turistas de pochete sentavam-se, enfileirados, diante de caça-níqueis. Garçonetes deslizavam pela multidão. Era fácil se sentir sozinho ali, perdido no caos.
Ela deu um tapinha no estojo cilíndrico que levava nas mãos e olhou para os dois garotos ao seu lado.
— Vamos encontrar um ponto cego.
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Enquanto eles atravessavam o cassino, Kat notou que Simon estava um pouco saltitante ao falar sobre a palestra e os avanços tecnológicos. E sobre os gênios e as lendas vivas que haviam se apresentado durante o café da manhã.
— Você sabe que é mais inteligente do que todos eles, não sabe? — disse Hale sem afetação. — Na verdade, se quisesse provar... — sugeriu ele, olhando para as mesas de vinte e um.
Simon balançou a cabeça.
— Eu não conto cartas, Hale.
— Não? — perguntou Hale com um sorriso. — Não mesmo? Tecnicamente não é ilegal, você sabe disso.
— Mas não é bem-visto.
Gotas de suor brotaram na testa de Simon. Era como se alguém tivesse acabado de sugerir que ele nadasse depois de comer ou corresse com uma tesoura na mão.
Eles encontraram uma mesa do lado de fora, perto da piscina lotada, longe das câmeras e dos guardas.
Simon arrastou sua cadeira para debaixo de um guarda-sol.
— Estou ansioso — confessou enquanto Kat se sentava na cadeira à sua frente. Ele repirou fundo, como se reunisse coragem para perguntar: — É um serviço?
Hale se esticou numa espreguiçadeira, os olhos escondidos por trás de óculos escuros.
— Está mais para um favor.
Simon pareceu frustrado, estão Kat acrescentou:
— Por enquanto.
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O ar do deserto era seco, mas não havia como deixar de notar o cheiro de cloro e de dinheiro à medida que Kat desenrolava as plantas sobre o tampo de vidro da mesa.
Simon se debruçou sobre os papéis. Ele assobiou do mesmo jeito que Hale assobiava às vezes, embora o jovem gênio parecesse mais um pássaro ferido.
— A segurança é forte. Banco? — tentou adivinhar.
Kat balançou a cabeça.
— Governo? — arriscou Simon outra vez.
— Arte. — disse Kat.
— Uma coleção particular. — acrescentou Hale.
Simon ergueu os olhos da mesa.
— É sua?
— Quem me dera — respondeu Hale com uma risada.
— Quer que seja? — indagou Simon, com os olhos arregalados.
Hale e Kat trocaram olhares. O sorriso de Hale parecia entregar que a ideia já tinha lhe passado pela cabeça. Ele chegou mais perto e disse:
— Essa não é exatamente uma operação comum.
Simon não se intimidou. Sua mente estava cheia demais de teorias, algoritmos e funções exponenciais para a palavra comum ainda significar alguma coisa. Ele passou 10 minutos analisando as plantas em silêncio antes de finalmente olhar para Kat.
— Em minha opinião profissional, eu diria que é melhor desistir. A não ser que este lugar seja o Fort Knox. Espere um instante. — Os olhos dele brilharam. — É o Fort Knox?
— Não. — responderam Hale e Kat em uníssono.
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— Então eu não roubaria — declarou ele, afastando as plantas.
— Já foi roubado — confessou Kat.
— Pelo seu pai?
— Por que todo mundo pergunta isso? — resmungou Kat.
Hale tirou os óculos escuros para fitar Simon nos olhos. Mal dava para ouvir sua voz em meio às risadas e aos barulhos vindos da piscina.
— Gostaríamos muito de saber quem foi.
Simon bateu com o dedo no meio das plantas.
— A lista não é muito grande, isso eu garanto.
— Quanto menor, melhor, meu caro. — disse Hale, dando um tapinha nas costas de Simon.
— Posso ficar com isso? — perguntou Simon.
— Claro — disse Kat. — Temos outra cópia. E, Simon... obrigada.
Ela já estava de pé e começava a se afastar quando Simon perguntou:
— Foi por isso que você voltou, não foi?
Kat estreitou os olhos por causa do sol forte. Ela se sentia a um milhão de quilômetros da Escola Colgan, com seu céu cinzento.
— Foi. — ela olhou para Hale. — É meio...
Simon dispensou a explicação com um gesto.
— Não preciso saber. Estava só tentando adivinhar se tem algo a ver com aqueles dois caras que estão nos seguindo desde que saímos da palestra.
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Se kat tivesse uma lista de pessoas que esperava encontrar em Las Vegas, os capangas de Arturo Taccone não estariam nela. Eles nem haviam tentado se misturar aos turistas e grandes apostadores — não se sentaram às mesas de apostas nem se posicionaram em meio aos caça-níqueis — e isso, mais do que tudo, a deixou furiosa. Juntos, o Capanga 1 e o Capanga 2 deviam ter uns 230 quilos de músculos europeus.
Só que, ainda assim, Kat não os percebera.
Ela ficou preocupada com o que mais poderia estar deixando passar enquanto apressava Hale e Simon a saírem de perto da piscina.
Quando Kat olhou para trás, viu o Capanga 2 erguer o braço esquerdo e apontar para o relógio.
— Kat? — perguntou Simon.
— Continue andando.
— Que horas são? — perguntou Kat em voz alta enquanto ela e Hale atravessavam a pista de decolagem em direção ao jatinho particular da família de Hale. — Vamos ver... doze horas de voo... isso significa que chegaremos...
— Ao meio-dia — respondeu Hale. — Mais ou menos.
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— Certo. Amanha bem cedo poderemos fazer perguntas pelas ruas mais próximas da casa de Taccone. Alguém deve ter visto alguma coisa.
— Já cuidei disso.
— Os DiMarco devem estar na cidade.
— Na verdade, eles estão presos.
— Todos os sete?
Hale deu de ombros.
— Outubro foi um mês interessante.
Kat balançou a cabeça e tentou se convencer de que nem tudo havia mudado.
— Está bem, então deveríamos ligar...
— Eu disse que já cuidei disso — disse Hale, dessa vez com uma voz mais firme.
Kat parou de andar e o encarou.
— O que quer dizer com “já cuidei disso”?
— Ei, eu sou mais do que um companheiro de viagem encantador, sabia? — brincou ele, sorrindo. — Tenho meus amigos.
— Ah, é? — perguntou Kat.
Hale, no entanto, seguiu andando.
— Uma pessoa amiga.
Kat o deteve, agarrando-o pelo braço.
— Amiga sua? Minha? Ou nossa?
Ele se desvencilhou, afastando-se dela com as mãos nos bolsos e um sorriso misterioso nos lábios.
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— Quer transformar isso num problema, Katarina? — indagou ele, soando como tio Eddie.
— Como assim? — perguntou ela, fingindo-se de inocente. — Estou só querendo saber quem é essa pessoa. Alguém que você e os irmãos Bagshaw usaram na Alemanha?
— Luxemburgo. — Hale fez uma pausa e deu meia-volta. — Tecnicamente, os irmãos Bagshaw e eu fizemos um serviço em Luxemburgo.
Kat começou a dizer algo, quis dizer algo, mas as palavras não saíram.
— Você tinha isso embora, Kat.
Hale já não estava mais de provocação.
— Eu sei.
— Estava na Colgan.
— Só fiquei lá três meses.
— Isso é muito tempo, Kat. No nosso mundo, é um tempão. — Ele respirou fundo. — Além do mais, seu coração tinha ido embora muito antes.
— Bem, agora estou de volta. — Ela se encaminhou para o avião. — A lista de pessoas capazes de fazer esse serviço é muito pequena. E a lista daquelas em quem você pode confiar é menos ainda, então...
— Seu pai e o tio Eddie não foram os únicos que você deixou para trás quando foi embora.
Kat ouviu as palavras voarem na direção dela pela pista de asfalto. Ela se virou, lembrando-se do ar estagnado do quarto da mãe de Hale, e soube que estava olhando para a única pessoa que
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conhecia que estava mais acostumada a ser deixada para trás do que a partir.
Ela desviou o olhar, depois tornou a encará-la.
— Não somos uma equipe? Ou você confia em mim ou não confia. — Hale deu um passo na direção dela. — Como vai ser, Kat?
Um dos riscos ocupacionais de passar a vida inteira aprendendo a mentir é acabar se tornando péssimo em dizer a verdade. Naquele instante, Kat não fazia a menor ideia do que dizer.”Não vou conseguir fazer isso sem você” parecia batido demais. O que eles estavam planejando era muito grande para um simples “por favor”.
— Hale, eu...
— Quer saber? Esqueça. Seja como foi, estou dentro, Kat. — Ele parecia totalmente decidido ao colocar seus óculos escuros. — Para o que der e vier.
Enquanto o observava subir as escadas até o avião, ela o ouviu falar por sobre o ombro:
— Além do mais, pega muito bem para você ter alguém como eu ao seu lado.
Kat teve vontade de concordar. Ela tentou agradecer. Mas só o que conseguiu foi se preocupar com quem — ou o que — poderia estar esperando por eles assim que aterrissassem na Itália.
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11 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
VALE SABINA,
ITÁLIA
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Capítulo 8
Não acredito. Kat ouviu as palavras em sua cabeça antes de pensar em dizê-las em voz alta. Não, Hale. Não. Simplesmente... não. Ela balançou a cabeça para afastar o sono e tentou pensar com clareza sobre a situação. Afinal, estava na Itália. Com um rapaz inteligente e bonito. Num jatinho particular. Com o mundo literalmente aos seus pés. E, ainda assim, Katarina Bishop apenas observou a porta se abrir, revelando uma pista de TU! pouso particular, um dos vales mais bonitos do planeta e uma jovem com cabelos longos e esvoaçantes e o quadril jogado para um lado.
E tudo o que conseguiu dizer foi:
— Não acredito.
Ninguém duvida que, com o tempo, os ladrões profissionais (ou qualquer pessoa que tenha passado boa parte da vida nas sombras) acabem adquirindo um sexto sentido que lhes permite escutar melhor e processar informações com mais rapidez. Apesar disso, Kat se perguntava por que a visão daquela moça em especial eriçava os pelos de sua nuca.
— Olá , Kitty Kat.
Ah, sim. Era por isso.
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— Posso conversar com você? — perguntou Kat, tentando agarrar Hale.
Embora ela tivesse se movido com a leveza de uma gata, os passos dele foram bem mais firmes. Hale passou por Kat e desceu as escadas enquanto a outra lançava um olhar em sua direção e dizia:
— Olá, bonitão.
Quando Hale abraçou a garota, fez as pernas compridas dela saírem do chão e Kat teve vontade de comentar que estava frio demais para uma saia tão curta. Estava louca para dizer que salto alto era uma péssima ideia numa cidade cheia de paralelepípedos. Mas Kat apenas ficou congelada no topo da escada, sem mover um só músculo até a outra falar:
— Puxa vida, Kat, não vai dar um abraço na sua prima?
Em mais de um aspecto, famílias são coisas estranhas, dotadas de vida própria. E os negócios familiares... Bem, no caso deles, a estranheza não conhece limites.
Enquanto caminhava pelas ruas estreitas da cidadezinha que Arturo Taccone chamava de lar, Kat não pôde deixar de pensar, pela milionésima vez, que talvez fosse assim em todos os negócios de família. Será que havia alguma sapataria em Seattle que tivesse sido passada de geração em geração até cair nas mãos de duas adolescentes que não conseguiam dividir o mesmo espaço? Será que existia algum restaurante no Rio em que duas primas estivessem batendo o pé e se recusando a trabalhar no mesmo turno?
Vai ver que esses sentimentos eram exclusividade de negócios familiares em que as pessoas às vezes eram baleadas. Ou acabavam
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na cadeia. Mas Kat jamais saberia. Afinal, ela só tinha uma família e absolutamente nada com que pudesse compará-la.
— Hale — choramingou Gabrielle enquanto enlaçava o braço dele com o seu. — Kat não está sendo muito legal comigo.
— Kat — disse Hale, como se estivesse gostando de bancar o adulto —, abrace sua prima.
Kat, no entanto, jamais forçava demonstrações de afeto. E, ao contrário de Gabrielle, recusava-se terminantemente a choramingar. Talvez tivesse perdido essas habilidades após a morte de sua mãe. Ou talvez, como reflexos lentos e qualquer relacionamento saudável com a verdade, essas características estivessem sendo eliminadas aos poucos de sua família. De qualquer jeito, ela conseguiu dizer:
— É um prazer rever você, Gabrielle. Achei que estivesse em Monte Carlo, de bobeira.
— E eu achei que você estivesse fazendo o dever de casa. Parece que nós duas nos enganamos.
Kat analisou sua prima. Como era possível Gabrielle ser só um ano mais velha? Na verdade, eram apenas nove meses, mas pareciam nove anos. A garota era mais alta, mais curvilínea, mais tudo. Ela segurava com força o braço de Hale, fazendo com que Kat andasse ao lado deles como um terceiro carro numa rua em que mal cabiam dois.
— E como está Alfred? — perguntou Gabrielle.
— Você quer dizer Marcus? — corrigiu Hale.
— Dá na mesma — disse a garota, desprezando seu erro com um gesto da mão.
Kat achava uma pena que a cabeça dela não tivesse tanto recheio quanto seu sutiã. Mas então sua prima disse “Feliz aniversário” e,
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de repente, um maço de fotos sumiu da mão dela para surgir no bolso da jaqueta de Hale.
Foi um gesto sutil. Natural. O movimento habilidoso de uma profissional experiente, de um membro da família.
— E sua mãe? — perguntou-lhe Kat.
— Está noiva. — Gabrielle deu um suspiro exagerado. — De novo.
— Meus parabéns — disse Hale.
— É para dar os parabéns mesmo. Ele é um conde. Eu acho. Ou talvez um duque. — Ela se virou para Hale. — Qual dos dois é melhor?
Antes que ele pudesse responder, os três chegaram a um muro baixo de pedra. Adiante, vinhedos se estendiam ao longo do vale Sabina. Um rio cortava a terra fértil e ovelhas pastavam numa colina distante. A Itália era um dos lugares mais bonitos da Terra e mesmo assim Kat não conseguia desgrudar os olhos das fotos nas mãos de Hale. As imagens eram de um complexo gigantesco perto de um lago bonito. Hale se recostou no muro, passando as fotos que retratavam o complexo cada vez mais de perto. Logo, Kat estaria olhando para paredes e ângulos que, até então, só havia visto representados em plantas.
— Foi o mais perto que conseguiu chegar da casa? — perguntou Hale para Gabrielle.
Ela mascou seu chiclete.
— Você quer dizer da fortaleza? Escolheram bem, hein?
— Não foi uma questão de escolha — lembrou Kat.
— Tanto faz. O lugar tem um muro de quatro metros e meio.
— Já sabemos — disse Kat.
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— Quatro torres de vigilância. Com guardas.
— Já sabemos — repetiu Kat, revirando os olhos.
— E um fosso. Sabia disso, espertinha? Sabia que eles têm um fosso de verdade? Tipo, com coisas debaixo d’água?
Gabrielle fez seu corpo inteiro tremer (e algumas partes dele tremeram mais do que as outras), embora já tivesse sido bem clara.
Hale guardou as fotografias de volta no bolso e se virou de costas, pousando os cotovelos em cima do muro e se apoiando nele.
— E quanto aos registros da polícia? — perguntou Kat, mas Gabrielle apenas riu. — Você não conversou com a polícia? Não perguntou nada a eles? — insistiu ela por sobre as risadas que ecoavam nas pedras.
Até Hale estava rindo. Mas Kat só ficou parada, admirada de que alguém com o mesmo sangue que o tio Eddie pudesse não saber que pouquíssimos serviços na história haviam escapado completamente do radar da policia.
Afinal de contas, as pessoas costumam perceber se, às 20h02, todos os alarmes de carro da cidade disparam por 20 minutos. Ou se 15 semáforos se apagam entre as 21 e as 22 horas. Ou se uma patrulha encontra uma van sem placa abandonada à beira da estrada, cheia de fita adesiva.
São esses os rastros deixados pelas pessoas que tomam muito cuidado. Mas ainda assim são rastros.
— Homens como Arturo Taccone não chamam a polícia, Kat. — Gabrielle falou bem devagar, como se Kat tivesse ficado incrivelmente burra no tempo que esteve fora. — Os que não abandonam a família aprendem esse tipo de coisa.
— Caramba, eu passei só...
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— Você foi embora. — A voz de Gabrielle era mais fria do que o vento. — E ainda estaria atrás daqueles muros cobertos de trepadeiras se nós não... Você ainda estaria lá.
A autenticidade é uma coisa estranha e Kat sabia disso. Alguém entalha uma imagem numa pedra. Uma máquina imprime o rosto de um presidente morto numa cédula. Um artista passa tinta numa tela. Será que importa mesmo quem é o pintor? Um Picasso falsificado é menos bonito do que um autêntico? Kat achava que não. Mesmo assim, ao olhar para sua prima e para Hale, teve a impressão de sentir cheiro de fraude.
— Gabrielle — disse Kat, devagar —, como você sabia que a Colgan tem trepadeiras?
Kat ouviu sua prima zombar dela e dar a desculpa de que tinha sido um chute. Porém, uma imagem já estava lampejando em sua mente: um vídeo com baixa resolução feito por uma câmera de segurança. Alguém de moletom com capuz atravessando um pátio correndo. Ela se voltou para Hale e percebeu que ele era alto demais, troncudo demais. A pessoa na tela tinha uma altura próxima o bastante da de Kat para enganar o Conselho de Honra da Escola Colgan, mas o que mais a incomodava era o fato de que ela também havia sido enganada.
— Gabrielle? Hale? — Kat estapeou o ombro dele. — Como se não bastasse me fazer ser expulsa da escola, tinha que escolher logo ela para ajudar?
— Eu estou ouvindo — cantarolou sua prima.
Hale olhou para Gabrielle e gesticulou na direção de Kat.
— Ela fica uma graça quando está com ciúme.
Kat lhe deu um chute na canela.
— Ai! A gente precisava tirar você de lá, lembra? E, ao contrário do que as pessoas dizem, eu não conheço tantas garotas assim.
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As duas olharam para ele.
— Quer dizer, não conheço tantas garotas com os talentos de vocês.
Gabrielle pestanejou.
— Puxa, você sabe mesmo fazer uma mulher se sentir especial.
Mas Kat... Kat se sentiu uma idiota. Ela olhou para Hale.
— Vejo você no hotel. — E, voltando-se para sua prima, completou: — E você eu vejo no Natal ou em algum dos casamentos da sua mãe. Obrigada por vir, Gabrielle, mas estou certa de que tem uma praia em algum lugar desejando sua presença, então vou deixá-la voltar a cuidar da sua vida enquanto volto a cuidar da minha.
Ela já havia quase dobrado a esquina quando sua prima disse:
— Você acha que é a única pessoa no mundo que ama seu pai?
Kat se deteve e analisou Gabrielle. Pela primeira vez na vida, poderia ter jurado que sua prima estava falando sério. Aos 7 anos, Gabrielle já havia sido orientada a chamar de papai vários homens diferentes: um magnata do petróleo texano, um bilionário brasileiro, um homem com um caso muito grave de mordida cruzada que havia feito algo para o governo do Paraguai, que por sua vez fizera vistas grossas à importação/exportação de um ou dois Monets falsos bastante superfaturados — mas nenhum tinha sido um pai para ela.
— Você precisa de mim — afirmou Gabrielle. Não havia o menor vestígio de dúvida em sua voz. Nenhum sarcasmo. Nenhuma leviandade. Ela era, em todos os aspectos, sobrinha-neta do tio Eddie. Uma profissional. Uma trapaceira. Uma ladra. — Gostando ou não, Kitty Kat, nossa reunião começa agora mesmo.
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Kat ficou sentada em silêncio enquanto Gabrielle estacionava um carro europeu minúsculo no acostamento de uma estrada rural sinuosa. Os faróis estavam apagados e não se ouvia barulho algum. Quando Kat abriu a porta e saiu do veículo, sentiu uma brisa fria e úmida e ergueu os olhos para um céu escuro e sem estrelas. Era tudo o que um ladrão poderia querer.
— Por que foi mesmo que eu tive que vir no banco de trás? — perguntou Hale, alongando-se e olhando para ela.
— Os bilionários sempre andam no banco de trás, garotão.
Kat estendeu o braço para lhe dar um tapinha no peito, mas, antes que ela pudesse puxar a mão enluvada de volta, ele a agarrou, segurando-a sobre seu coração acelerado.
— Tem certeza de que essa é uma boa ideia? — indagou ele.
Kat poderia ter contado um milhão de mentiras diferentes, mas nenhuma seria tão poderosa quanto a verdade.
— Foi a única que tivemos.
Enquanto Gabrielle abria o capô e inutilizava o motor para o caso de algum guarda ou bisbilhoteiro que estivesse passando por ali parar e fazer perguntas, Kat não desgrudou seu olhar do de Hale. Naquele instante, ele se parecia bastante com o garoto que usava pijamas do Super-Homem. Assustado porém decidido e talvez até um pouquinho heroico.
— Kat, eu...
— Vamos?
O sussurro de Gabrielle varou a noite, interrompendo o que quer que Hale estivesse prestes a dizer. Kat não teve escolha a não ser dar meia-volta e começar a subir o acostamento íngreme, envolta numa escuridão profunda, pisando em gravetos que soavam como fogos de artificio quando se partiam sob seus pés.
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— Opa — disse Kat 10 minutos depois, tropeçando pelo que lhe parecia ser a milionésima vez.
Ela não sabia o que era pior: o fato de Hale ter que ampará-la ou de Gabrielle estar vendo como ela era desajeitada.
Estava esperando sua prima falar: “Kat perdeu a prática.” Tinha certeza de que a qualquer momento Hale iria fazer alguma piada sobre como o currículo de educação física da Colgan estava precisando de um sério reforço. Mas ninguém disse nada enquanto eles subiam até o topo de uma colina alta, seguindo em ritmo constante até Gabrielle parar de repente. Kat quase trombou com a prima quando esta apontou e disse:
— Chegamos.
Mesmo à noite e mesmo àquela distância qualquer um conseguiria ver que a casa de Arturo Taccone era na verdade um palácio de pedra e madeira, cercado por vinhedos e oliveiras. Um paraíso de cartão-postal. Mas o que Kat notou foram os guardas e as torres, os muros e os portões. Não era um paraíso, e sim uma prisão.
Os três sentiam a grama úmida na barriga enquanto observavam, deitados no topo da colina, a vila abaixo. Kat detestava admitir, mas Gabrielle tinha toda a razão: era preciso ver para crer. No dia anterior, quando eles tinham desenrolado as plantas diante de Simon para que ele pudesse analisá-las, Kat pensara que a propriedade de Arturo Taccone era um dos alvos mais difíceis que ela tinha visto na vida. Quando as nuvens negras se abriram por um instante e o luar brilhou como um holofote sobre o fosso, Kat se deu conta de que somente um idiota chegaria perto daqueles muros.
— Operação Marmota? — perguntou Hale.
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— Não temos tempo — respondeu Kat. — Levaríamos dias só para cavar o túnel e Taccone não ficaria tanto tempo assim sem patrulhar esse matagal.
— Anjo Caído?
— Talvez — respondeu Kat, olhando para o céu. — Mas mesmo numa noite sem luar, o pátio interno é pequeno demais para você correr o risco de ser visto descendo de paraquedas. E ninguém ergue torres de vigilância se não for para colocar seguranças dentro delas.
— Seguranças armados — acrescentou Gabrielle.
Kat observou sua prima virar de barriga para cima, descansar a cabeça sobre os braços e olhar para as nuvens negras que cobriam o céu. Parecia tão à vontade que poderia muito bem estar deitada numa praia ou em sua própria cama. Mas os pés de Kat estavam doloridos de tanto andar pelo mato. Seu gorro de esquiadora era apertado demais e lhe dava coceira. Ela se perguntava que cheiro era aquele que Hale emanava e se gostava dele ou não.
Kat não sabia como roubar Arturo Taccone.
Portanto, não sabia como alguém poderia ter roubado Arturo Taccone.
E era isso o que mais a aborrecia.
— Então a pessoa usou a tática do Cavalo de Troia ou se fingiu de revendedora Avon ou...
Hale continuou a falar, listando as possibilidades, mas Kat estava cansada de especulações. Não ousava tentar adivinhar. Em vez disso, lembrou-se das palavras que Hale dissera para Simon: Essa não é uma operação comum. Kat estava percebendo que, por isso mesmo, talvez não pudesse ser realizada por um ladrão comum.
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Foi então que, como se a mão invisível de alguém tivesse agarrado Kat e a puxado pelas costas de seu casaco preto, ela se levantou.
— Abaixe-se! — alertou Gabrielle, estendendo o braço para pegar a prima, mas Kat já estava se encaminhando para a beira da colina.
— Aonde você vai? — perguntou Hale enquanto ela andava decidida na direção da ponte levadiça, tentando bloquear a parte de sua mente que ficava perguntando: ponte levadiça?
— Kat! — sibilou Gabrielle. — Eles vão pegar você.
O sorriso que Kat lançou por sobre o ombro foi quase malicioso.
— Eu sei.
Os portões se assomavam diante de Kat à medida que ela se aproximava. Luzes iluminavam estrategicamente partes da propriedade, destacando os pingos de chuva que começavam a cortar o céu negro. Ainda assim, Kat seguia andando devagar, com determinação, atravessando os campos em direção aos muros da vila. Ela sentiu o olhar das câmeras de vigilância. Percebeu a movimentação dos guardas. Para manter a cabeça ocupada, tentou adivinhar a idade da vila, os nomes dos proprietários originais, a história do lago. Procurou se concentrar na chuva que caía, nos seus cabelos que se eriçavam.
Mas, acima de tudo, ela tentava parecer calma ao caminhar em direção à caixinha de metal no acostamento. Rezou para que sua voz não a entregasse enquanto ela olhava para a pequena câmera e anunciava no alto-falante:
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— Meu nome é Katarina Bishop.
Um relâmpago caiu atrás dela.
— Eu gostaria de falar com Arturo Taccone.
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Capítulo 9
Se a vila Taccone fosse um lugar que raramente recebia convidados, não era essa a impressão que passava.
O homem que abriu a porta fez Kat se lembrar de Marcus, graças à maneira como ele apanhou seu casaco molhado sem dizer nada e lhe pediu com delicadeza que o seguisse. Lá dentro, havia pisos de mármore e candelabros, flores frescas e lareiras acesas em dois dos quatro cômodos pelos quais ela passou. Porém, não havia pilhas de correspondência sobre as mesas nem casacos ou cachecóis pendurados de qualquer jeito nas cadeiras. Kat teve certeza de que aquele era um lugar que valorizava a beleza e a ordem na mesma medida. Assim, ficou calada, seguindo seu guia em direção a um jogo de portas duplas mais intimidadoras do que a ponte levadiça. Ela ficou ali, quieta, esperando Arturo Taccone aparecer.
Quando as portas se abriram, ele estava sentado atrás de uma mesa antiga, perto de outra lareira com chamas altas, num aposento muito parecido com o escritório da propriedade rural da família Hale. Havia livros, decanters, janelas altas e um piano de cauda que Kat imaginou que Taconne tocasse com frequência. Embora a casa tivesse no mínimo uns 2 mil metros quadrados, Kat suspeitava que era naquele cômodo que o dono vivia.
— Deixe-nos a sós — ordenou ele ao guia de Kat.
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Ela ouviu as portas duplas se fecharem às suas costas e teve certeza de que era pelo menos um pouco insensato não tremer ao ficar sozinha com os aquele homem. Ainda assim, as mãos de Kat continuaram firmes. Sua pulsação não acelerou.
— Devo lhe dar as boas-vindas à minha casa, Katarina — falou ele, inclinando de leve a cabeça. — Preciso dizer que é uma surpresa. E sou um homem que não se surpreende com facilidade.
— Bem — disse Kat, devagar —, me deu vontade de comer um espaguete.
Taccone sorriu.
— E você veio sozinha — afirmou ele, embora fosse uma pergunta, na verdade.
— Eu poderia dizer que sim e você acharia que estou mentindo. — Ela deu um passo à frente e correu a mão sobre o couro macio de uma poltrona. — Ou poderia dizer que não e você acharia que estou blefando. Então acho que direi apenas: sem comentários.
Ele empurrou sua cadeira para trás, afastando-se da mesa, enquanto a analisava.
— Então você tem, como dizem os americanos, cobertura?
— Não exatamente.
— Mas não está com medo, está?
Ela estava no aposento favorito de Arturo Taccone, mas, em todos os aspectos realmente importantes, Kat estava de volta ao terreno que dominava.
— Não. Acho que não.
Ele a encarou, acrescentando após uma pausa excruciante:
— Talvez esteja pensando que eu seria incapaz de machucar uma garotinha.
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Por motivos que Taccone jamais compreenderia, Kat ficou surpresa com essas palavras. Era estranho ouvir alguém se referir a ela dessa forma. Por mais que não pudesse negar o diminutivo, ser chamada de garota era que esquisito. Mulher ou moça não teriam sido nada melhores. O fato era que ela pertencia havia tanto tempo àquele círculo masculino que às vezes se esquecia de que, pelo menos em termos anatômicos, não era uma versão mais jovem e menor dos homens que se sentavam em torno da mesa do tio Eddie. Ela era, de um ponto de vista biológico, bem parecida com Gabrielle.
— Bela peça — disse Kat, apontando para o armário Luís XV próximo à lareira.
O homem ergueu as sobrancelhas.
— Você veio roubá-la?
— Droga — falou Kat, estalando os dedos. — Sabia que deveria ter trazido minha bolsa grande.
Homens assustadores fazem coisas assustadoras, mas para Kat nada era tão aterrorizante quanto o som da risada de Arturo Taccone.
— É uma pena que nossos caminhos não tenham se cruzado em circunstâncias diferentes, Katarina. Acho que teria gostado de conhecer você. Mas infelizmente não foi assim. — Ele se levantou, andou até uma cristaleira e serviu-se de uma taça de algo que parecia muito antigo e muito caro. — Suponho que não esteja com meus quadros.
— Venho falando isso desde o início.
— Se você veio até aqui pedir mais tempo, então...
— Como eu disse aos seus rapazes em Vegas, estou trabalhando nisso. — Ela que olhou para o Capanga 2, que havia entrado sorrateiramente e estava parado como uma estátua diante da porta. — Ou você não recebeu a mensagem?
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— Ah, sim. — Ele se sentou no sofá de couro no centro do cômodo. — Você tem mesmo feito algumas visitas interessantes. A casa do seu tio-avô em Nova York, isso eu consigo entender. Ele é o tipo de homem que deve ser consultado. Mas a viagem para Las Vegas... — Ele se recostou e tomou um gole de sua bebida. — Essa me surpreendeu. E agora fico sabendo que temos visitantes. Você deve compreender minha perplexidade.
— Eu lhe contei tudo em Paris — explicou Kat com a voz firme. — Meu pai não roubou seus quadros. Com um pouco de tempo e de ajuda, pode ser que eu consiga descobrir quem roubou. Talvez até consiga devolvê-los.
O sorriso dele se alargou.
— Essa, sim, é uma proposta interessante.
— Mas primeiro eu quero... C
— Ajuda? — adivinhou o homem.
Ela assentiu.
— Você insiste em dizer que meu pai fez esse serviço.
— Eu sei que foi ele.
— Como?
— Ora, Katarina, certamente qualquer ladrão que se preze saberia que tomei precauções para proteger a mim e aos meus bens.
Arturo Taccone ergueu uma das mãos, indicando com um gesto a opulência que os cercava.
— O protocolo de segurança Stig 360 — completou ela com um sorriso. — Impressionante. Pessoalmente, prefiro as câmeras da norma 340. Elas são mais pesadonas, mas têm um alcance maior.
Do lado de fora da vila, a chuva caía torrencialmente, mas, lá dentro, a voz de Taccone era seca.
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— Pensei que você iria aceitar minha afirmação de que foi seu pai quem fez essa coisa terrível, Katarina. Mas se...
— Preste atenção. — A voz de Kat saiu mais cortante do que ela imaginava ser possível ao se aproximar do homem no centro da sala.
O Capanga 2 se moveu na direção dela, mas Taccone fez um sinal para que ele parasse.
— Não é uma questão de orgulho. Nem de confiança. Mas de informação. Posso dizer que é um homem que toma decisões com base nas melhores informações disponíveis, não é, signor Taccone?
— É claro.
— Então me ajude. Me ajude a conseguir seus quadros de volta. Disse que tem provas, não disse?
Taccone ergueu seu drinque em direção à luz como se brindasse a Kat e à sua coragem.
— Obviamente.
Kat sorriu, mas não havia alegria alguma em sua expressão.
— Então me mostre o que tem.
Chegaria uma época, embora Kat ainda não soubesse disso, em que sua conversa com Taccone naquela noite seria contada e recontada mil vezes em volta da mesa da cozinha do tio Eddie. Em que a história de quando ela cruzou a ponte levadiça envolveria balas em vez de chuva. E em que seu pedido de ajuda a Arturo Taccone incluiria ameaças, janelas e algo sobre um par de pistolas de duelo antigas (que, de acordo com a lenda, Kat também roubaria).
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No entanto, a própria Kat jamais contou essa história.
Hale e Gabrielle estavam deitados no escuro, olhando para o terreno da propriedade mais abaixo, quando a ponte levadiça foi baixada e Kat saiu de lá por livre e espontânea vontade, sem a menor pressa.
Enquanto ela atravessava a chuva e a escuridão, Hale e Gabrielle não perceberam que carregava um pequeno CD de Arturo Taccone debaixo do braço. Mas, obviamente, eles o veriam em breve.
E é claro que, em breve, ele mudaria tudo.
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Capítulo 10
A suíte do hotel era luxuosa. Hale (ou, para ser mais exato, Marcus) não sabia como reservar nada diferente. O sofá era de veludo e a televisão era grande, mas, quando Kat se acomodou para assistir ao CD que Taccone havia lhe dado, estava longe de se sentir à vontade.
— A gente devia ter pedido pipoca — comentou Gabrielle, sua voz atravessando a suíte.
Kat vestiu um casaco seco e tentou se convencer de que a chuva e seu cabelo molhado eram o que estava lhe dando arrepios.
— Chocolate — disse Hale, enquanto afundava no sofá. — Sou louco por aquelas bolinhas de caramelo cobertas de chocolate.
De repente, Kat percebeu de onde estava vindo todo aquele frio que sentia.
Hale não havia lhe dirigido a palavra no carro nem olhado para ela no elevador. Kat tirou um notebook da bolsa e cruzou as pernas, perguntando-se se algum dia ele iria perdoá-la por ter lhe dado as costas e ido embora. De novo.
Ela apanhou o controle remoto e apertou o PLAY. Imagens fantasmagóricas em preto e branco surgiram na tela da televisão: o longo corredor de entrada que Kat tinha atravessado uma hora
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atrás, uma cozinha de nível profissional, uma adega, um salão de bilhar, o escritório particular de Arturo Taccone. E, por fim...
Kat apertou o PAUSE e a imagem congelou num aposento que ela não tinha visto — na verdade, um aposento que pouquíssimas pessoas deveriam ter visto na vida.
A única mobília ali era um banco. O piso era de pedra, em vez de mármore ou madeira. Porém, o que havia de mais impressionante eram os cinco quadros pendurados na parede dos fundos.
— As plantas — disse ela, mas Hale já estava desenrolando os papéis sobre a mesinha de centro entre o sofá e a televisão.
— Aqui. — Kat apontou para um cômodo no desenho que tinha as mesmas dimensões do que estava na tela. — Parece que é uma câmara subterrânea, provavelmente acessível somente por aqui. — Ela apontou para o papel. — Um elevador escondido no escritório de Taccone.
— Como sabe disso? — perguntou Gabrielle.
Kat pensou nos painéis de madeira atrás da mesa de Taccone.
— Porque tenho quase certeza de que fiquei bem de frente para ele esta noite.
Hale ficou tenso ao lado dela, mas não falou nada ao tocar o controle remoto. As imagens em preto e branco continuaram, como um velho filme do cinema mudo sem atores, até o vídeo retornar para o escritório de Taccone.
Janelas que iam do chão ao teto dominavam uma das paredes, de modo que foi fácil ver o relâmpago que cortou o céu na tela. Uma fração de segundo depois, a imagem ficou preta. Kat pôde imaginar toda a vila se apagando enquanto alguém reclamava da fiação antiga e comentava como odiava tempestades.
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Mas, na suíte, Kat ouviu apenas os suspiros profundos de seus companheiros e os dois exclamarem ao mesmo tempo:
— Benjamin Franklin!
Como ela mesma tinha usado essa tática mais de uma vez, não foi difícil para Kat imaginar o ladrão explorando a vila antiga e bolando um plano. Ela o visualizou alugando um quarto na cidade — uma pousada para turistas, talvez. Um lugar em que ele pudesse ser apenas mais um visitante enquanto ficava observando e esperando por uma noite chuvosa.
Quando a gravação voltou, Kat se inclinou para a frente e estreitou os olhos.
— Quanto tempo os geradores levaram para ser acionados?
— Quarenta e cinco segundos — respondeu Gabrielle.
— Nada mau — disse Hale.
— Para o sistema de Taccone ou para o cara que fez o serviço? — perguntou Gabrielle.
Ele deu de ombros.
— Tudo ficou às escuras, exceto este lugar. — Kat apontou para o recinto em formato de cripta que enchia a tela. — Ele não é abastecido pela mesma fonte de energia que o resto da casa. As câmeras de lá continuaram gravando. — Kat olhou da tela para as plantas. — Parece que ele fica bem embaixo...
Mas ela deixou a frase pela metade quando, na tela, começou a pingar água do teto da galeria.
— Do fosso — concluíram os três em uníssono.
— Demais! — A voz de Hale entregava sua admiração. — Benjamin Franklin com um toque de Monstro do Lago Ness.
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— Eca! — exclamou Gabrielle. — Aquele fosso é nojento. Fala sério. Eu nunca chegaria nem perto dele.
— Pelo que estou vendo, tem pelo menos cinco Velhos Mestres lá dentro, Gabs — disse Hale. — Você chegaria perto dele, sim.
— Talvez — admitiu Gabrielle. — Mas, se ele abriu um buraco no teto de uma galeria que fica debaixo do fosso, como é que ela não foi alagada?
Kat desviou o olhar da tela, sem precisar ver as imagens para saber o que estava acontecendo.
— Ele veio do lago num minissubmarino, parou bem em cima da galeria e se acoplou ao teto, selando o espaço. Depois disso, tudo o que precisou fazer foi abrir a escotilha, cortar o buraco e... um minissubmarino — repetiu Kat, balançando a cabeça, como se tentasse afastar um caso terrível de déjà vu.
Sua prima olhou para ela.
— Como você sabe?
— Porque foi isso que meu pai fez.
O silêncio caiu sobre eles enquanto Kat se levantava e andava até as janelas que davam para as ruas silenciosas.
— Dois anos atrás. Em Veneza. Foi...
— Lindo — disse Rale, mas Kat tinha outra palavra em mente.
— Arriscado.
— Bem — continuou Hale —, pelo menos agora sabemos por que seu pai é o principal suspeito de Taccone.
— Único suspeito — corrigiu Gabrielle.
Na tela, um homem mascarado usando uma roupa de mergulho preta descia pelo buraco recém-aberto no teto da galeria, movendo-
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se com uma determinação silenciosa. Não houve um só passo apressado ou desperdiçado enquanto ele desativava os sensores de pressão de cada um dos quadros e os retirava da parede, guardando-os com cuidado em estojos à prova d’água e passando-os pelo buraco no teto até o veículo que Kat sabia estar esperando no fosso.
— Taccone disse que, quando a energia foi cortada, alguém parou a filmagem da guarita e pôs uma gravação para ficar se repetindo, por isso ninguém viu nada. O que estamos assistindo foi recuperado de um sistema de backup externo que o cara que fez o serviço desconhecia ou ignorou. — Kat deu de ombros. — Seja como for, ninguém percebeu que os quadros tinham sido roubados até Taccone voltar de uma viagem de negócios.
— E que tipo de negócio é o dele? — perguntou Gabrielle.
— O negócio dele é ser incrivelmente assustador — respondeu Kat ao mesmo tempo que Hale disse apenas:
— Fazer o mal.
As duas olharam para ele. Quando tornou a falar, sua voz saiu baixa.
— O negócio de Arturo Taccone é fazer o mal.
Algo na maneira como Rale se virou para a televisão sugeriu a Kat que ele estava escondendo alguma coisa — alguma informação obtida por meio de detetives particulares ou informantes, de socialites de Manhattan ou funcionários do alto escalão do governo italiano. O tipo de história que era contado em salões enfumaçados por charutos cubanos caríssimos.
Mas certas histórias fazem suas mãos tremerem. E às vezes o excesso de detalhes faz você ficar se revirando na cama à noite. De modo que Kat não pediu a Hale para lhe contar nada. Ela apenas o encarou, observando-o jogar o controle remoto sobre a mesa e dizer:
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— Então, da próxima vez que você decidir dar um passeio, acho que vou me algemar a você.
— Eu estava segura — insistiu Kat, querendo desesperadamente que ele entendesse. — Taccone gosta de mim. Ele se diverte comigo. Acha que eu sou... igual a ele — completou ela, somente agora se dando conta disso.
— Você não é — falou Hale sem pensar. Pela primeira vez em horas, ele a encarou. — Você não é igual a Arturo Taccone.
Algumas vezes, Kat achava saber tudo sobre W. W. Hale V — com exceção do seu primeiro nome. Mas também havia momentos como esse, em que ele lhe parecia a primeira edição de um romance antigo, do qual ela não tinha sequer terminado de ler o primeiro capítulo.
— Qual é a profundidade da parte mais rasa do rio que deságua no fosso? — perguntou Gabrielle.
— Dois metros e meio? — chutou Kat.
Hale assentiu.
— Eu diria três, no máximo.
— De que tamanho seria o submarino? — perguntou Gabrielle.
— Bem pequeno — respondeu Kat.
Então Hale insistiu:
— Mas de que medidas estamos falando?
Kat ouviu o ronco de uma motocicleta na rua adiante e viu luzes brilhando no Coliseu ao longe. Na penumbra do quarto de hotel, um homem mascarado estava congelado na tela da televisão, pego no ato de roubar cinco quadros inestimáveis e o futuro de seu pai.
— Só existe uma maneira de descobrir.
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10 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
NÁPOLIS,
ITÁLIA
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Capítulo 11
A loja de equipamentos de mergulho Mariano, em Nápoles, era um negócio de família — o que era motivo de muito orgulho. O pai de Mariano II havia sido pescador, mas seu filho possuía uma lamentável tendência a enjoar no mar, de modo que foi forçado a encontrar uma carreira respeitável que pudesse ser conduzida com segurança em terra firme. Assim, ele foi construir barcos.
Mariano III construiu barcos maiores.
No momento em que uma garota que trabalhava com um tipo bem diferente de negócio familiar chegou em frente à loja deles na costa do Mediterrâneo, Mariano W já havia construído e patenteado pelo menos seis das embarcações mais sofisticadas (e caras) do mundo.
Ou pelo menos foi isso que o pai de Kat lhe dissera logo antes de fazer uma viagem para Veneza.
Assim que a atendente do II Negozio di Mariano & Figli viu o rapaz passar pela porta dupla de vidro, percebeu que ele era endinheirado — que, para quase tudo o que a loja tinha a oferecer, ele poderia simplesmente fazer um cheque. Talvez pagar em
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dinheiro vivo. Sem dúvida jogar em qualquer cartão de crédito com limite absurdamente alto que tivesse na carteira.
Mas não foi por isso que ela sorriu quando o rapaz tirou seus óculos escuros, se debruçou sobre o balcão de vidro e falou:
— Ciao. Será que você poderia me ajudar?
Comandar uma equipe significa delegar tarefas, ou seja, saber quando se afastar e permitir que outros assumam o comando — além de compreender quais são seus melhores recursos e como usá-los. Porém, enquanto Kat esperava naquela movimentada rua à beira-mar, observando a jovem atendente flertar com Hale, começou a temer que ele acabasse saindo de lá com uma namorada e não com um nome.
A falta de um nome a perturbava. A existência de uma namorada, não, como Kat fez questão de dizer a si mesma.
Ela ficou 10 minutos lá fora, acompanhando a cena através da grande janela panorâmica. Esfregava as mãos nos ombros. Piscava sem parar. Todo aquele espetáculo a deixava tão ansiosa que Kat não conseguia parar quieta (embora qualquer ladrão que se preze saiba que é muito menos provável você ser notado se ficar totalmente imóvel).
— Você está vendo aquilo? — perguntou ela para Gabrielle pela quarta vez.
Mas sua prima tinha olhos apenas para o rapaz sentado numa cafeteria no calçadão, caidinho por ela e, para ser mais exato, por sua saia escandalosamente inadequada.
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— Ele vai estragar tudo — disse Kat, atirando as mãos para cima. — É nossa única pista decente e ele vai estragar tudo.
Só que Gabrielle não ouviu nada disso. Caso contrário, talvez tivesse dito — ou feito — alguma coisa. De qualquer forma, ela só se virou para ver o que estava acontecendo quando Kat já estava do outro lado da rua, atravessando as portas reluzentes.
— Achei você — disse Kat, esbaforida, quase sem precisar fingir estar sem fôlego ao seguir rumo ao balcão.
— Oi — respondeu Hale, largando a mão da vendedora como se tivesse levado um choque. — Eu estava só... — começou a explicar.
Kat suspirou.
— Papai falou que você tem 30 minutos para voltar ao barco ou então nós vamos para Maiorca sozinhos e diremos à sua mãe que você caiu no mar. — Kat se voltou para a vendedora. — É claro que sugeri que ele fosse jogado no mar. — Ela bufou. — Sou irmã dele.
— Meia-irmã — acrescentou Hale, sem titubear.
A garota sorriu ao descobrir que Kat não era namorada dele. Não representava perigo. Era apenas uma menina baixinha, branca e magra demais para ter passado muito tempo no litoral italiano.
— Você já está acabando? — perguntou Kat com uma irritação um tanto genuína.
— Já — respondeu Hale, soando exatamente como o bilionário entediado que era. — Eles têm umas coisinhas legais aqui.
Kat desconfiava de que os gênios por trás das melhores embarcações do mundo não gostariam muito de ouvir suas
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invenções sendo chamadas de “coisinhas legais”, mas, se a vendedora pensava o mesmo, não demonstrou.
— Então você vai comprar um ou não vai? — perguntou Kat.
— Hã... Vou — disse Hale, andando pela loja. — Acho que gostei deste aqui. Se Kat não soubesse de antemão, ela poderia ter pensado que o veículo que Hale havia escolhido era um modelo, uma réplica, algo encolhido para caber ali dentro. Mas esse, obviamente, não era o caso. E essa, obviamente, era a questão.
O Sirena Royal era o menor veículo subaquático não militar do mundo. Não muito maior do que as sereias que inspiraram seu nome, ele tinha pouco mais de 1,80 metro de largura e 1,20 metro de altura, sendo quase do tamanho de um kart — o tipo de embarcação que poderia submergir no pequeno rio que se comunicava com o fosso de Taccone. E o tipo de embarcação que, até aquele momento, era a única pista que eles tinham.
— É — disse Hale, recuando um pouco para admirá-lo. — Vou levar este.
— Eccellente, signor! — exclamou a vendedora, mas Hale simplesmente virou a cabeça na direção de Kat.
— Você está com o cartão de crédito, não está, maninha?
Kat teve o maior prazer em acompanhar a garota até o balcão alto, onde esta começou a apanhar formulários e manusear papéis até a mão branca de Kat pousar sobre a dela, interrompendo-a.
— Para ser sincera, Lucia — disse Kat, lendo o nome da vendedora no crachá —, meu querido meio-irmão é um garotinho entediado. — Kat olhou de esguelha para Hale. — Ele adora brinquedos.
Kat jamais saberia se Hale a escutara ou não, mas o fato é que ele escolheu esse exato momento para apanhar a miniatura de um barco
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de competição e começar a fazer sons borbulhantes com a boca enquanto o mergulhava até o fundo de um lago imaginário.
— Três anos atrás, ele convenceu a mãe a comprar uma vila no lago de Como porque precisava de um lugar para brincar. — Kat fez uma pequena pausa, recordando que a família de Hale tinha mesmo uma casa no norte da Itália. — No ano seguinte, ele comprou um iate de 80 pés porque precisava de algo com que brincar.
Atrás dela, Hale estava usando seu barquinho para bombardear um porta-lápis.
Kat chegou mais perto da vendedora e baixou a voz.
— Mas garotinhos não gostam de compartilhar seus brinquedos, não é, Lucia?
A vendedora balançou a cabeça.
—Não.
— Então, quando os irmãos Bernard compraram um iate de 90 pés no verão passado, meu querido meio-irmão não ficou muito contente. E — acrescentou ela, lançando um rápido olhar para Hale e baixando ainda mais a voz até um sussurro conspiratório —, infelizmente, quando ele fica chateado, a mãe dele também fica, e aí já viu...
Lucia assentiu.
— Sei como é.
— Estou lhe dizendo isso porque ele realmente precisa ser o cara que tem um Sirena Royal e não um dos caras que tem um Sirena Royal— Kat abriu seu sorriso mais cativante. — Acredite, se a gente chegar em casa e descobrir que tem outro logo em frente...
— Ah, não! Não vai ter! — exclamou Lucia.
— Não mesmo? — perguntou Kat.
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— Bem, na verdade... — Lucia lançou um olhar furtivo em volta da loja, como se o que estava prestes a dizer fosse fazer três gerações da família Mariano se revirarem no túmulo. — Eles são mais para exibir, sabe? Não vendemos tantos assim.
Num canto do salão, Hale tinha se enfiado dentro do Sirena Royal e estava fazendo sua melhor imitação de um piloto de combate da Segunda Guerra Mundial, bombardeando inimigos desavisados.
— Mas eles são tão legais... — comentou Kat. — Acho até difícil acreditar nisso.
— É sério — sussurrou Lucia. — No ano passado, só vendemos dois.
— Eu sabia! — exclamou Kat, jogando as mãos para cima e começando a andar na direção de Hale. — Falei para meu irmão que os irmãos Bernard já teriam...
— Ah, não — falou Lucia. — Não foi para dois irmãos que nós vendemos.
— Não? — disse Kat, virando-se. — Tem certeza?
— Tenho, sim. O primeiro foi para uma empresa que faz pesquisas subaquáticas. Na verdade, é muito...
— E o outro? — perguntou Kat, chegando mais perto.
— Foi para um homem que deve frequentar os mesmos... círculos que sua família — admitiu Lucia com cautela, mas Kat pensou: você nem imagina.
Ela ficou observando a garota hesitar, como se tentasse decidir o que dizer, ou, mais exatamente, como dizê-lo. Por fim, ela sussurrou:
— Esse homem era muito... abastado.
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— Bem, então, infelizmente... — lamentou Kat, voltando-se para ir embora e esperando que Lucia fosse entregar a qualquer momento...
— Mas ele não mora na Itália!
Kat se virou lentamente.
—Ah, não?
— Não. Não o Sr. Romani.
— Romani? — perguntou Kat.
— Isso — confirmou a garota. — Visily Romani. Ele deu ordens muito específicas. Queria que o Sirena fosse entregue na Áustria.
— Na Áustria?
— É, diretamente numa de suas propriedades. Perto de Viena.
Embora jamais fosse admitir em voz alta, Katarina Bishop tinha aprendido a gostar de várias coisas na Escola Colgan.
Dormir na mesma cama todas as noites e sempre saber o caminho até o banheiro no escuro tinha lá suas vantagens. Ela simplesmente adorava a biblioteca — um prédio inteiro em que qualquer pessoa poderia pegar itens que não eram dela sem o menor remorso. Mas o que Kat mais gostava — a coisa de que mais sentia falta sentada ao lado de Hale e Gabrielle num trem a caminho de Viena — era do fato de uma das escolas preparatórias mais rígidas do mundo ser o único lugar em que Kat já estivera onde era permitido não pensar.
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Afinal de contas, em seu primeiro dia na Colgan ela havia recebido uma folha de papel indicando quais aulas deveria assistir e em que horários. Havia um quadro no saguão principal anunciando quais pratos ela iria comer e a quais eventos esportivos iria assistir. A cada semana, seus professores lhe diziam quais capítulos ela deveria ler de determinados livros, quais trabalhos ela realizaria e em que ordem.
Era exatamente como Kat havia suspeitado desde a noite em que seu tio Vinnie. (que não era seu tio de verdade) a puxara da cozinha do tio Eddie para lhe informar que um internato era muito parecido com uma prisão — que era, por ironia, onde ele tinha estado antes de aparecer na varanda do tio Eddie naquela mesmíssima noite.
Kat o escutara com uma lucidez digna da sobrinha-neta do tio Eddie. Não se deixou intimidar. Apenas analisou a questão de todos os ângulos e chegou à conclusão de que tio Vinnie tinha toda a razão e que suas opções era basicamente duas: a Colgan agora ou a cadeia no futuro.
Os uniformes da Colgan eram mais bonitos.
Mas agora o outono tinha acabado e a escola ficara para trás. Tudo o que restava a Kat era ficar olhando pela janela do trem para os Alpes cobertos de neve. No bolso de seu casaco havia três passaportes e um dos cartões de crédito de Hale. Ela falava muito bem quatro línguas e conseguia se virar em outras duas. Podia ir a qualquer lugar. Podia fazer o que quisesse. Talvez fosse a altitude, mas de repente Kat começou a se sentir tonta — sem ar e sufocada pelas infinitas possibilidades que se estendiam diante dela e pelas perguntas que sua mente não conseguia deixar de fazer.
Por exemplo: como era possível Gabrielle ser ainda mais bonita quando dormia, ao passo que a própria Kat dificilmente acordava sem se deparar com pelo menos um pouquinho de baba escorrendo da boca?
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E por que Gabrielle insistia em dormir com a cabeça no ombro de Hale, quando Kat — que já o havia acertado ali várias vezes — sabia que ele era bem duro e que o compartimento acima dos assentos tinha um monte de travesseiros supermacios?
Kat tentou não pensar nas outras coisas, nas perguntas sérias que estavam do lado de fora, apostando corrida com o trem. Ela desejou poder correr mais rápido do que elas, poder despistá-las. Mas sabia que isso era impossível. Elas estariam à sua espera na Áustria.
Kat sentiu um estalo nos ouvidos à medida que o trem acelerava, subindo mais e mais, e os pensamentos que se agitavam em sua mente se afunilaram, concentrando-se numa só pessoa, num só lugar.
Visily Romani.
Viena, Áustria.
E, com isso, Kat fechou os olhos. Ela não viu os primeiros flocos de neve caírem do lado de fora da janela. Não percebeu quando Hale a agasalhou com um cobertor. Já dormia profundamente.
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9 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
VIENA,
ÁUSTRIA
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Capítulo 12
A única coisa em que Kat não pensara durante a viagem de trem foi a primeira que bombardeou sua mente assim que eles chegaram à estação na manhã seguinte: às vezes, estar acompanhada de um bilionário é bem conveniente.
— A senhorita fez uma boa viagem? — perguntou Marcus, aparecendo do nada na plataforma abarrotada de gente.
As malas deles já estavam no carrinho à sua frente. Quando saíram, Kat foi surpreendida pelo ar gelado, mas felizmente um carro estava à sua espera.
A primeira neve do inverno tinha sido removida com esmero para o acostamento das ruas e as calçadas estavam repletas de turistas e moradores indo e vindo. Kat olhou pela janela do carro e pensou: Visily Romani poderia estar aqui.
Visily Romani poderia estar em qualquer lugar.
Visily Romani poderia ser qualquer um.
Ninguém conversou durante o trajeto nem disse uma só palavra enquanto eles atravessavam o saguão do hotel. Kat pensou que era legal chegar a uma cobertura pelo elevador e não por um duto de
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ventilação e, enquanto subiam, ela fechou os olhos. Poderia muito bem ter ficado desse jeito o dia inteiro. A semana inteira. O ano inteiro. Mas as portas não tardaram a se abrir.
E Kat ouviu uma voz gutural dizer:
— Olá, Katarina.
Kat já ouvira falar da suíte presidencial do hotel Das Palace de Viena, é claro. Qualquer ladrão de respeito sabia que o quarto era tradicionalmente usado para hospedar reis e príncipes, presidentes e diretores-executivos. Mas, apesar de toda a sua história, a coisa mais intimidadora sobre o lugar naquele instante era a presença do tio Eddie, de pé ao lado de uma lareira crepitante.
— Bem-vindos a Viena.
Quando tio Eddie estendeu os braços, Gabrielle saiu correndo para se atirar neles, tagarelando num russo acelerado. Ninguém traduziu para Hale, mas ele entendeu a conversa. Quatro dias atrás, Kat tinha voltado para casa e para as graças do tio, mas qualquer um poderia ver que Gabrielle, que passara os últimos seis meses usando decotes e suas mãos rápidas para bater algumas das carteiras mais recheadas da Riviera, nunca havia deixado a cozinha da família.
— E sua mãe? — perguntou tio Eddie, segurando Gabrielle com os braços esticados.
— Está noiva — respondeu Gabrielle com um suspiro.
Tio Eddie assentiu com a cabeça, como se já tivesse ouvido aquela história antes.
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— Ele tem algum envolvimento com arte?
— Joias — disse Gabrielle. — Herança de família. É um conde.
— Ou um duque — atalhou Hale.
— Eu confundo os dois — confessou Gabrielle.
— E quem não confunde? — admitiu tio Eddie, dando de ombros só palavra enquanto continuava a segurar a sobrinha, radiante. — É muito bom ver você, minha pequenina. — Ele deu uma olhada em sua minissaia. — Só preferiria não estar vendo tanto assim.
Gabrielle sequer registrou o insulto.
— É muito bom ver o senhor também. Mas como conseguiu...
Tio Eddie balançou a cabeça. A questão não era como seu tio havia chegado ali. A questão era, e Kat sabia disso, o que ele tinha ido lhes dizer. Que tipo de coisa ele teria descoberto que era impossível contar por telefone? O que ela precisaria fazer a respeito?
Ele se acomodou na poltrona mais próxima da lareira e ergueu os olhos
— Você foi visitar o signor Mariano?
Kat sentiu um leve aroma de café de boa qualidade e percebeu que, em ubre o lugar algum momento, uma xícara de porcelana havia surgido nas mãos do seu tio Eddie. Mas sua atenção, como a de Hale e a de Gabrielle, estava totalmente voltada para ele.
— Visily Romani. — Embora ele estivesse falando para todos, Kat sentiu o olhar do tio se deter sobre ela. — Esse nome não lhes parece familiar?
— É um nome falso? — perguntou Kat.
— Naturalmente.
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Ele sorriu como se apreciasse a ideia de que ela talvez ainda fosse, em parte, uma garotinha.
— E quanto ao endereço de entrega aqui na Áustria? — perguntou Hale.
— Vocês fizeram mesmo o dever de casa. — Tio Eddie deu uma risadinha, mas logo tornou a ficar sério. — Pena que tenha sido em vão.
— Quem é ele? — perguntou Kat.
— Ele não é ninguém. — O olhar do tio Eddie se voltou para Gabrielle. — Ele pode ser qualquer um.
Tio Eddie não era dado a charadas, então Kat sabia que essas palavras deviam ser importantes, embora não fizessem sentido para ela.
— Não entendi — admitiu ela.
— Trata-se de um Chelovek Pseudonima, Katarina — disse seu tio, fazendo Gabrielle arquejar de espanto.
Kat pestanejou diante do brilho do fogo. Lá fora, a neve caía suavemente, mas sua sensação era a de que toda a Áustria estava em suspenso, como se nada jamais pudesse quebrar aquele transe, até que...
— O que é um Chelovek Pseudonima?
Kat olhou surpresa para Rale, recordando com algum esforço que, apesar de ser fluente no idioma daquela família, esta jamais seria sua primeira língua. E que aquela jamais seria sua família de fato.
— O que foi? — disse Hale, erguendo a voz com frustração. — Qual é o problema? O que é um Chelovek Pseudo...
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— Homem de Nome Falso — sussurrou Gabrielle. — Um Chelovek Pseudonima é um Homem de Nome Falso.
Mas a tradução literal não fazia sentido para Hale. Kat percebia nos olhos dele, em suas mãos impacientes.
— Vem das famílias antigas — Kat começou a explicar, fitando-o nos olhos. — Elas tinham nomes, pseudônimos, que só usavam quando estavam fazendo coisas grandes demais, perigosas demais... coisas que precisavam esconder até mesmo dos próprios parentes. Esses eram nomes secretos, Hale. Nomes sagrados.
Kat olhou para o tio. Imaginou que, em todos os seus anos de vida, poucas tinham sido as vezes que ele vira um Pseudonima ser usado. Se Kat tivesse pedido para ouvir as histórias, seu tio talvez lhe dissesse que, certa vez, Visily Romani havia roubado documentos altamente incriminatórios de um czar ou um diamante de uma rainha. Que ele havia contrabandeado planos de guerra nazistas da Alemanha e trabalhado bastante por trás da uma risadinha, Cortina de Ferro. Mas seu tio Eddie não compartilhou detalhes desse tipo.
Em vez disso, olhou para a próxima geração e sorriu diante da ironia enquanto explicava:
— Se Visily Romani fosse real, ele teria 400 anos de idade e seria o maior ladrão de todos os tempos.
Hale encarou os três, um por um.
— Ainda não estou entendendo.
— Trata-se de um pseudônimo que não deve ser usado levianamente, meu jovem — respondeu tio Eddie.
Kat sabia que essas palavras, na verdade, eram direcionadas a ela.
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— Não é um nome que qualquer um possa usar — continuou ele, levantando-se da poltrona. — Acabou, Katarina. — Ele andou em direção à porta como se tivesse largado uma panela no fogo. — Vou falar com seu pai. E tentar acertar as coisas com o Sr. Taccone.
— Mas... — interveio Gabrielle, colocando-se de pé.
— Um Pseudonima é uma coisa sagrada! — disse seu tio, girando o corpo. — Um serviço feito sob o nome de Visily Romani não será desfeito por crianças!
De certa forma, todo ladrão que Kat conhecia era no fundo uma criança e a única coisa infantil nela era o corpo, que poderia ser utilizado de forma muito eficaz se os dutos de ventilação fossem pequenos ou os guardas, ingênuos. Mas ninguém jamais havia se dirigido a ela como se fosse uma menininha.
Seu tio se deteve junto à porta. Marcus estava ali, esperando em silêncio com o casaco dele.
— Pode voltar para a escola, se quiser, Katarina. — Tio Eddie colocou o chapéu enquanto o mordomo abria a porta. — Infelizmente, agora essa questão foge até mesmo à sua alçada.
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Capítulo 13
Kat não observou seu tio partir. Ela permaneceu sentada no sofá, com a vaga impressão de ouvir Gabrielle falar sobre passar o inverno aproveitando os chalés das estações de esqui da Suíça. Percebeu em algum momento que Hale tinha mandado Marcus comprar comida. Estava se perguntando como ele poderia comer numa hora daquelas quando Hale se voltou para ela e disse:
— E agora?
Kat achou ter ouvido Gabrielle ao telefone num dos quartos, explicando que ela talvez estivesse chegando à cidade e dizendo coisas como “Ah, Sven, você é um fofo...”.
Mas a voz do tio ainda ecoava nos ouvidos de Kat — agora essa questão foge até mesmo à sua alçada —, ressoando o que ele não disse.
Alguém muito bom tinha ido atrás dos quadros de Taccone.
Alguém muito bem relacionado sabia o bastante para lançar mão de uma das regras mais antigas do mundo deles.
Alguém muito ambicioso havia permitido que seu pai ficasse sozinho sob os holofotes de Taccone.
Somente alguém muito idiota desobedeceria ao tio Eddie e tentaria fazer alguma coisa a respeito agora.
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Isto é, se ainda fosse possível fazer alguma coisa.
— Bem, sempre temos a possibilidade de... — Hale começou a falar, mas Kat já havia se levantado e seguia em direção à porta.
— Já volto...
Ela se deteve e o encarou. A expressão nos olhos dele lhe dizia que, se a segurança de seu pai fosse algo que ele pudesse comprar, Hale teria passado um cheque, vendido seu Monet, seu Bentley, sua alma. Ela queria lhe agradecer, perguntar por que alguém como ele escolheria atravessar meio mundo, na companhia de alguém como ela.
Mas não conseguiu dizer nada além daquele patético “Já volto”. E então saiu, rumo ao frio lá de fora.
Kat não sabia ao certo há quanto tempo estava na rua nem para onde estava indo. Horas se passaram. As imagens do vídeo que Arturo Taccone lhe dera se repetiam sem parar na sua cabeça, até que se viu em frente a uma padaria. Ela saboreou o aroma de pão e percebeu que estava faminta. Então, de forma igualmente repentina, notou que não estava sozinha.
— Se você morrer de pneumonia, tenho certeza de que existem pelo menos uns 10 sujeitos que vão tentar me matar e fazer parecer que foi acidente.
Kat estudou o reflexo de Hale na vitrine da padaria. Ele não sorriu. Não lhe deu uma bronca. Simplesmente lhe estendeu uma xícara de chocolate quente e colocou um casaco pesado em volta de seus ombros.
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Ao redor deles, a neve caía mais forte, cobrindo as ruas como uma manta — um novo começo. Mas Kat era uma excelente ladra. Sabia que nem mesmo um inverno austríaco poderia ajudá-los a apagar seus rastros. Ela se virou e olhou de um lado para o outro da rua. Um bonde atravessava silenciosamente uma praça de paralelepípedos. Em todas as direções, montanhas com o topo coberto de neve e prédios ornamentados do século XVIII se estendiam a perder de vista. Kat se sentiu minúscula à sombra dos Alpes e impressionantemente jovem num lugar tão antigo.
— O que vamos fazer agora, Hale? — Kat não queria chorar. Ordenou que tentaria fazer sua voz não falhasse. — O que vamos fazer?
— O tio Eddie nos disse para não fazer nada. — Hale passou o braço ao redor dela e a conduziu pela calçada.
Por um instante, Kat achou que suas pernas tivessem se congelado, que houvesse desaprendido a andar.
— Você confia no tio Eddie? — perguntou ele.
— Claro. Ele faria qualquer coisa por mim.
Hale parou de andar. Sua respiração era uma névoa turva e fina.
— Mas o que ele faria pelo seu pai?
Às vezes é preciso ter a perspectiva de alguém de fora para enxergar a verdade. Parada ali, Kat soube que deveria estar se fazendo aquela pergunta desde o início. Ela pensou na ordem do tio e nos olhos frios de Taccone.
Arturo Taccone não iria conseguir seus quadros de volta.
Arturo Taccone jamais tornaria a vê-los.
Ela levou a bebida aos lábios, mas estava quente demais. Olhou para as espirais de chocolate enquanto a neve caía dentro do copo e, em sua mente, o vídeo continuava a passar.
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— Nós somos loucos — disse Hale, tremendo sem um casaco.
Ele tomou seu braço, tentando levá-la para a marquise de um café próximo dali. Mas Kat continuou olhando para a neve à medida que os flocos gordos se derretiam dentro de seu chocolate fumegante. De repente, se lembrou de uma porta vermelha. Lembrou-se também de estar brincando entre pilhas de livros e de estar sentada quietinha no colo de sua mãe.
— O que foi? — perguntou Hale, chegando mais perto.
Kat fechou os olhos e tentou fingir que estava de volta à Colgan, fazendo uma prova. A resposta estava num livro que ela havia lido, numa palestra que tinha ouvido — tudo o que precisava fazer era entrar no cofre da sua mente e roubar a verdade guardada ali.
— Kat — disse Hale, tentando quebrar sua concentração. — Eu perguntei...
— Por que Taccone não vai à polícia? — falou ela de repente.
Hale espalmou as mãos, como se a resposta fosse óbvia. E era.
— Ele não gosta da polícia. E não quer as impressões digitais nojentas dos detetives em seus belos quadros.
— Mas e se não for só isso? — sugeriu ela. — Por que mantê-los escondidos debaixo do fosso? Por que não fazer um seguro para eles? E se...
— Os quadros na verdade não forem dele?
Ao redor dos dois, as lojas iam se fechando. Ela olhou para as vitrines escurecidas, ainda procurando pela porta vermelha a centenas de quilômetros dali.
— Kat...
— Varsóvia — disse ela.
Sinos de igreja começaram a repicar.
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— Temos que ir para Varsóvia.
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8 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
VARSÔVIA,
POLÔNIA
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Capítulo 14
Abiram Stein já estava acostumado a receber adolescentes à porta de sua casa. Quase todos diziam ser estudantes em busca de notas melhores enquanto fuçavam suas fileiras de arquivos e pilhas de livros. Alguns poucos eram caçadores de tesouros, convencidos de que haviam visto um Renoir ou um Rembrandt perdido no sótão da avó e curiosos por saber que tipo de comissão poderiam esperar receber por eles.
Quando, porém, ele acordou ao som de batidas naquela manhã de segunda-feira, vestiu seu roupão e atravessou a casa escura sem a menor ideia do que poderia encontrar.
— Wer ist da? — perguntou, escancarando a porta. Esperava ter que apertar os olhos contra a luz, mas havia calculado mal as horas. O sol ainda estava baixo demais para brilhar por sobre a livraria do outro lado da rua. — Was wollen Sie? Es ist mal smach ehr früh — ralhou o Sr. Stein em alemão, sua língua materna.
Os dois adolescentes parados na entrada de sua casa estavam de mochila como os estudantes e tinham olhos agitados e esperançosos como os dos caçadores de tesouros. Porém, o Sr. Stein não conseguia determinar a que grupo eles pertenciam. Sabia apenas que sua cama no andar de cima era quente e macia, enquanto ali fora estava frio, e que não tinha dúvida de qual opção preferia.
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— Ich entschuldige mich für die Stunde, Herr Stein — falou a garota em alemão com um levíssimo sotaque americano.
O rapaz permaneceu calado.
O que o Sr. Stein queria, mais do que tudo, era fechar a porta e voltar para o andar de cima, mas ficara curioso em relação àquela garota. E em relação ao rapaz também. Afinal, apesar de todos os mochileiros e homens de olhos arregalados que já havia visto na entrada de casa, nenhum deles tinha aparecido antes do nascer do sol.
— Vocês acham melhor conversar em inglês, não é? — perguntou ele. — perguntou ele.
Kat achou que estava usando um alemão impecável, mas o homem tinha detectado seu sotaque com muita facilidade. A Colgan, pensou ela, temerosa, talvez a houvesse privado de mais coisas do que imaginava.
— Para mim, tanto faz — disse a garota, mas o Sr. Stein indicou com a cabeça o rapaz ao seu lado.
— Imagino que seu companheiro não pense da mesma forma.
Hale bocejou. Sua expressão era neutra. E Kat se lembrou de que, apesar dos motoristas e dos jatinhos particulares, havia coisas que nem mesmo um Hale poderia comprar, como uma boa noite de sono.
— Desculpe-nos pelo horário, Sr. Stein — disse Kat, abandonando seu alemão (pelo jeito, enferrujado). — Mas é que acabamos de chegar a Varsóvia. Normalmente, teríamos esperado...
— Então esperem! — resmungou o homem, começando a fechar a porta.
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Por mais que estivesse sonolento, Hale continuava rápido, de modo que se recostou em silêncio contra a porta vermelha como se simplesmente precisasse de uma maneira de se manter de pé.
— Infelizmente, não temos tempo para esperar, senhor — declarou Kat.
— Meu tempo também é precioso, fraulein. Quase tão precioso quanto meu descanso.
— É claro — concordou ela, baixando o olhar.
Apesar do vento gelado, ela retirou o gorro preto da cabeça. No vidro da pequena janela da porta, viu seu cabelo de pé e sentiu a energia estática atravessando seu corpo. Sabia que haveria respostas atrás daquela porta vermelha. Não todas. Mas algumas. E temia que, se desse meia-volta para ir embora naquele instante e agarrasse o corrimão de metal da escada, o choque acabasse fazendo seu coração parar.
— Temos algumas perguntas, senhor... sobre arte.
Ela fez uma pausa, esperando, mas o homem se limitou a encará-la com olhos sonolentos. Atrás dele, fileiras de arquivos cobriam a parede em frente a várias janelas, bloqueando a luz da manhã. Pilhas de papéis se espalhavam pelo interior da casa, formando um labirinto.
— Tente o Instituto Smithsonian — disse ele com um leve sorriso. — Sou só um velho maluco com tempo de sobra e poucos amigos.
— Fui informada de que o senhor poderia me ajudar.
— Por quem? — perguntou ele com rispidez.
Hale olhou para Kat, como se tivesse a mesma dúvida. O Sr. Stein se aproximou. Os primeiros raios de sol estavam começando a despontar sobre os prédios do outro lado da rua. Eles iluminaram os
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traços daquela garota pequena com cabelos negros e, antes mesmo de ela falar, o homem soube qual seria sua resposta.
— Pela minha mãe.
— Você se parece com ela — disse Abiram Stein, entregando uma xícara de café para Kat. — Imagino que já tenham lhe dito isso antes.
Kat não sabia o que era mais cruel: parecer tanto com uma mãe que havia partido cedo demais, o que tornava você metade filha e metade fantasma, ou não ter nenhum traço do pai. Mas Kat gostava da maneira como o Sr. Stein a encarava. Era diferente da forma como tio Eddie a comparava à mãe como ladra. E não lembrava em nada os momentos em que seu pai parecia espantado com ela, como se seus olhos a tivessem confundido com a esposa havia tempos falecida.
Enquanto o Sr. Stein bebericava seu café quente e observava Kat, ele sorria como se tivesse encontrado em uma vitrine uma réplica de seu brinquedo favorito na infância — feliz por constatar que algo que ele amava não tinha desaparecido por completo do mundo.
— Achei mesmo que você fosse voltar para me ver um dia — comentou ele após um longo silêncio.
Ao lado de Kat, Hale estava despertando de vez, assimilando cada aspecto da existência tumultuada de Abiram Stein.
— O senhor não tem computador?
O Sr. Stein riu com desdém. Kat respondeu em seu lugar:
— Ele é o computador.
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O Sr. Stein tornou a encará-la e assentiu com gosto.
— Consigo manter boa parte da minha pesquisa — disse o homem mais velho, cutucando a cabeça — em lugares seguros. — Ele se debruçou sobre a mesa entulhada. — Mas imagino que meus métodos de organização não sejam o motivo da visita de vocês.
— Nós estávamos viajando e tivemos algumas dúvidas...
— Sobre arte — completou o Sr. Stein, sinalizando com um giro das mãos para Kat ir direto ao ponto.
— E minha mãe sempre falou muito bem do senhor.
— Você se lembra de quando esteve aqui?
Kat fez que sim com a cabeça.
— Meu chocolate estava quente demais, então o senhor abriu uma janela e segurou a xícara do lado de fora até alguns flocos de neve caírem dentro dela. — Ela sorriu diante dessa lembrança. — Depois daquele dia, passei um mês inteiro quase levando meus pais à loucura. Eu me recusava a tomar chocolate quente sem neve fresca.
O Sr. Stein dava a impressão de querer rir mas de não se lembrar como se faz isso.
— Você era tão pequena naquela época... E tão parecida com sua mãe... Você a perdeu cedo demais, Katarina — disse ele. — Nós. Todos nós a perdemos cedo demais.
— Obrigada. O trabalho do senhor era muito importante para ela.
— E sua vinda até aqui significa que você descobriu algo sobre nosso trabalho em parceria?
Kat balançou a cabeça. Hale se ajeitou na cadeira e ela sentiu que ele estava ficando impaciente.
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— Infelizmente, vim aqui por conta de outro assunto.
— Entendo. E que tipo de assunto seria esse? — perguntou o homem.
Hale olhou para Kat. Foi um olhar breve, que só poderia ser traduzido de uma forma: podemos confiar nele?
A resposta dela foi simples: não temos saída.
— O tipo de assunto em que minha mãe se envolvia quando não estava fazendo pesquisas aqui, com o senhor.
Kat havia se perguntando várias vezes no decorrer das últimas horas quanto o Sr. Stein sabia sobre a vida de sua mãe. No final das contas, a resposta surgiu nos olhos de Abiram Stein quando ele sorriu.
— Compreendo.
— Nós precisamos saber... — prosseguiu Kat. — Eu preciso saber se esses quadros significam alguma coisa para o senhor.
Hale enfiou a mão no bolso do casaco e retirou cinco folhas de papel. Cinco impressões — imagens de baixa resolução, em ângulos enviesados, tiradas de uma gravação de vídeo.
O Sr. Stein estendeu os papéis sobre a mesa entulhada e os observou por muito tempo, sussurrando baixinho numa língua que Kat não entendia. Por um instante, teve certeza de que ele havia se esquecido de que ela e Hale
estavam ali. Analisava as imagens como se fossem um baralho e ele, um cartomante tentando ler seu próprio destino.
— Estes... — disse finalmente. Sua voz soou mais ríspida quando ele perguntou: — Como? Onde?
— É... — titubeou Kat, ao perceber que enfim havia encontrado uma pessoa para a qual não sabia como mentir.
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Por sorte, Hale nunca teve o mesmo problema.
— Vimos uma espécie de filme caseiro recentemente e estes quadros estavam nele, atrás dela
Os olhos do Sr. Stein se arregalaram mais ainda. —
— Eles estão juntos? Todos num lugar só?
Hale assentiu. membros
— Achamos que sim. É uma coleção que nós...
— Isso não é uma coleção! — exclamou Abiram Stein. — Eles são prisioneiros de guerra.
Kat voltou a pensar na galeria escondida debaixo do fosso, guardada por um dos melhores sistemas de segurança do mundo, e não teve dúvidas de que ele tinha razão. Arturo Taccone havia capturado cinco peças históricas inestimáveis e aprisionado todas elas até a noite em que Visily Romani foi libertá-las.
— Você sabe o que é isto aqui, meu jovem? — perguntou o Sr. Stein a Hale, erguendo a foto de uma pintura: uma jovem graciosa usando um garotos vestido branco atrás de uma cortina, espreitando um palco.
— Parece um Degas — respondeu Hale.
— E é. — O Sr. Stein meneou a cabeça, aprovando o gosto de Kat para companhias. — Ele se chama Dançarina aguardando na coxia.
O homem se levantou da cadeira e atravessou a sala até um arquivo abarrotado de livros, revistas e plantas trepadeiras que desciam do teto até o chão empoeirado. Ele abriu um gavetão e retirou uma pasta, levando-a de volta até a mesa.
— Suponho que você seja um rapaz viajado — afirmou o Sr. Stein. — Diga-me, já viu este quadro antes?
Hale balançou a cabeça em negação.
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— Isso porque ninguém o viu em mais de meio século. — O Sr. Stein se acomodou em sua cadeira de madeira dura como se, ao atravessar a sala, tivesse esgotado todas as suas energias e já não encontrasse forças para se manter de pé. — Johan Schulhoff era banqueiro numa cidade pequena mas próspera perto da fronteira da Áustria, em 1938. Tinha uma filha adorável, uma mulher linda e uma bela casa.
O Sr. Stein abriu a pasta. Havia uma fotocópia de um retrato de família dentro dela. Eram três pessoas usando suas melhores roupas, sorrindo, enquanto o quadro Dançarina aguardando na coxia as observava da parede atrás delas.
— Esse quadro ficava pendurado na sala de jantar até o dia em que os nazistas chegaram e o levaram embora, assim como fizeram com todos os membros dessa família. Nenhum deles foi visto novamente. — Ele olhou para a foto. Lágrimas se acumularam em seus olhos quando sussurrou: — Até agora.
Kat pensou na mãe, que havia se sentado naquela mesma cadeira e folheado aqueles mesmos arquivos sem jamais ter chegado tão perto de encontrar algo que estivesse quase certamente perdido para sempre.
— Mas você já sabia disso, não é, Katarina? — perguntou o Sr. Stein. Então, ergueu outra fotografia para eles. — Este aqui se chama Dois meninos correndo em meio a montes de feno, de Renoir.
Kat e Hale se inclinaram para ver melhor a pintura. O chapéu de um dos garotos tinha sido soprado pelo vento, que o arrastava pela grama. Eles o perseguiam.
— Ele foi encomendado por um funcionário muito rico do governo francês e retrata os dois filhos brincando em seu château perto de Nice. Ele ficava na casa do primogênito em Paris até a ocupação alemã. Um dos irmãos sobreviveu aos campos de
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concentração. Temíamos que este quadro — o Sr. Stein parou para enxugar os olhos — não houvesse sobrevivido.
Kat e Hale ficaram em silêncio enquanto o Sr. Stein lhes contava sobre um Vermeer chamado O filósofo e um quadro de Rafael cujo tema era o filho pródigo. Então, como se fosse possível, ele ficou ainda mais sério ao estender a última imagem para os dois com tanto cuidado quanto se estivesse segurando a obra-prima original.
— Conhece este quadro, Katarina?
— Não — respondeu Kat com a voz falhando.
— Olhe com atenção — insistiu o Sr. Stein.
— Não conheço — disse Kat, notando a decepção dele.
— Esta obra se chama Menina rezando para São Nicolau — explicou o Sr. Stein, tornando a olhar para a pintura e depois para Kat. — Ela está muito longe de casa.
O Sr. Stein avaliou Kat detidamente.
— Sua mãe costumava se sentar nesta mesma cadeira e ouvir este velho reclamar sobre as fronteiras nos mapas e as leis nos livros que, mesmo depois de décadas, ainda têm o poder de determinar o que é certo e o que é errado. Países e suas legislações quanto à proveniência das obras — disse ele, rindo com sarcasmo. — Museus com notas fiscais falsas.
A tristeza do Sr. Stein se transformou em fervor.
— E foi por isso que sua mãe veio até aqui. Ela me disse que, às vezes, somente um ladrão pode apanhar um ladrão. — Os olhos dele brilharam.
— Você vai roubar esses quadros, não vai, Katarina?
Kat queria explicar tudo, mas naquele momento a verdade lhe pareceu a coisa mais cruel de todas.
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— Sr. Stein — a voz de Rale soou calma e firme —, temo que seja uma história muito longa.
O homem assentiu.
— Entendo. — Ele fitou Kat com o olhar de um homem que há muito desistira de tentar consertar tudo o que havia de errado no mundo. — Os homens que roubaram o Dançarina aguardando na coxia da sala de jantar da família Schulhoff eram perversos, minha querida. Os homens que o receberam deles também. Esses quadros foram trocados por favores tenebrosos numa época tenebrosa. — O Sr. Stein respirou fundo. — Nenhuma pessoa boa poderia ter essa coleção de pinturas, Katarina. Então, para onde quer que você vá — prosseguiu ele, levantando-se —, o que quer que faça... — O Sr. Stein estendeu a mão. E, com a mão pequena de Kat envolvida na sua, ele a fitou nos olhos e disse: — Tenha cuidado.
Parada nos degraus da entrada da casa de Abiram Stein, virada para a rua, Kat se sentiu bem diferente de quando estivera naquele mesmo lugar 40 minutos antes, de frente para a porta. Suspeitas tinham se transformado em fatos. Medos haviam se tornado realidade. E fantasmas estavam vivos enquanto ela ficava ali parada, onde sua mãe estivera um dia, sem saber ao certo como seguir seus passos.
— Foi um prazer revê-la, Katarina — falou o Sr. Stein à porta. — Quando percebi quem você era...
— Sim? — perguntou ela, ao que o Sr. Stein sorriu.
— Achei que talvez vocês estivessem aqui pelo que aconteceu no Henley.
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Hale já estava no carro, porém a menção ao melhor museu do mundo chamou sua atenção.
— O que aconteceu no Henley?
O Sr. Stein soltou uma risada breve, gutural.
— Vocês é que deveriam estar me contando isso. Ele foi roubado — informou, sussurrando a última palavra. — Ou pelo menos é o que dizem — acrescentou ele, dando de ombros.
Apesar de tudo, Kat conseguiu sorrir.
— Não se preocupe, Sr. Stein. Infelizmente, eu não estava em condições de roubar o Henley.
— Ah. — O homem assentiu. — Eu sei. A polícia já tem um suspeito, um homem chamado Visily Romani.
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7 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
LONDRES,
INGLATERRA
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Capítulo 15
Existem 24 museus realmente grandiosos no mundo. Talvez 25, se você não se importar com o fato de o Louvre estar sempre tão cheio, era o que o pai de Kat sempre dizia. Mas, obviamente, nem mesmo os melhores museus são iguais. Alguns não passam de casarões velhos com um pé-direito alto e sancas deslumbrantes, algumas poucas câmeras de segurança e guardas mal remunerados. Outros contratam empresas de consultoria e conseguem equipamentos de monitoração com a CIA.
E existe o Henley.
— Então este é o Henley — disse Hale enquanto eles atravessavam o magnífico saguão envidraçado. Ele estava com as mãos nos bolsos e o cabelo ainda úmido do banho que havia tomado. — É menor do que eu esperava.
Kat parou na hora.
— Você nunca tinha vindo ao Henley?
Hale inclinou a cabeça.
— Um alcoólatra deve frequentar uma champanheria?
Kat voltou a andar.
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— Faz sentido.
Havia nove entradas oficiais no Henley e Kat estava até um pouco orgulhosa por ter optado pelas portas principais (ou por qualquer porta, verdade seja dita). Talvez ela estivesse amadurecendo. Ou estivesse com preguiça. Ou talvez apenas adorasse o foyer do Henley.
Dois andares de vidro cortado em vários ângulos diferentes emolduravam a entrada. Era parte solário e parte saguão principal. Parte sauna, também. O sol batia forte e, apesar do vento gelado que soprava lá fora, a temperatura no átrio era de no mínimo 25 graus. Homens tiravam seus paletós. Mulheres desenrolavam os cachecóis dos pescoços. Mas Hale nem sequer estava suando.
Dois dias antes, o Henley tinha ficado fechado até as 13 horas, depois que um segurança que fazia sua ronda da meia-noite encontrou um cartão de visitas preso entre uma pintura e sua moldura. Não era nada grave, na verdade, só que o segurança havia jurado que, às 22 horas, não tinha cartão nenhum ali.
Um alerta foi transmitido. Mais agentes de segurança foram chamados. E, infelizmente, também uma repórter da imprensa local. A Scotland Yard analisou cada trecho das filmagens do sistema de vigilância. Todos os membros da equipe de segurança, os funcionários da limpeza e os voluntários foram entrevistados, mas nenhum deles tinha visto qualquer pessoa perigosamente próxima do quadro em questão.
E assim, na terça de manhã, a posição oficial das fontes oficiais, desde o diretor do Henley até o principal investigador da Scotland Yard, era a de que a equipe de segurança havia se enganado. O cartão, que provavelmente fora deixado por algum visitante durante o dia, teria passado despercebido pelo pessoal da limpeza.
A posição não oficial das fontes não oficiais era a de que alguém de uma das famílias antigas estava pregando uma peça. Mas Kat e
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Hale não estavam achando graça. E tampouco o pessoal do Henley, pensou Kat.
Enquanto esperava na longa fila, Kat não conseguia ficar parada. Ela cruzou os braços. Era como se seu corpo tivesse mais energia — mais nervos — do que o normal. Precisava fazer um esforço para se acalmar.
— Visitei uma exposição aqui em agosto — disse a mulher na frente deles para a amiga que a acompanhava. — Não tinha detectores de metal na época.
Hale olhou para Kat, que leu sua mente. Os detectores de metal eram novidade. O que mais seria?
— Bem, em agosto não tinha nenhum homem misterioso entrando aqui e largando cartões de visita — comentou a outra mulher.
Eles deram um passo à frente.
— Vai ver que algum ladrão bonitão e charmoso se arrependeu.
Kat ficou vermelha e pensou no pai.
— Talvez ele esteja aqui agora mesmo — falou a primeira mulher com uma risadinha. — Pode estar sondando o local.
Ela se virou e correu os olhos pelo átrio, como se procurasse pelo ladrão. O que viu foi Hale, que meneou a cabeça e sorriu. Foi a vez de a mulher ficar vermelha.
— Eu não me importaria nem um pouco de conhecer um ladrão atraente — sussurrou a amiga da mulher.
Hale piscou para Kat. Ela ergueu as sobrancelhas e sussurrou:
— Eu também gostaria de conhecer um desses.
Hale levou as mãos ao peito, fingindo estar magoado, mas Kat estava preocupada e cansada demais para entrar na brincadeira. Ela
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notou que Hale a encarava e sentiu a esperança que crescia dentro dele. Mas fingiu não perceber.
— Não deve ser nada — disse ela.
Ele deu outro passo.
— Claro.
— Com certeza é só uma coincidência — afirmou Kat, como se de fato acreditasse no que dizia.
— Concordo plenamente — mentiu Hale.
A fila andou um pouco.
— Acho que a gente está perdendo tempo aqui.
— Eu não teria dito melhor.
Mas ser um mestre da trapaça tem suas desvantagens. E uma delas é que você se torna muito difícil de enganar. Mesmo quando as mentiras que está contando são para si mesmo.
Aquele era um dia muito bizarro na semana que estava se transformando na mais estranha da existência nada normal do Henley.
Embora Katarina Bishop ainda não soubesse o suficiente para perceber isso, o fato estava na cara para os seguranças, guias voluntários, curadores, funcionários, supervisores e visitantes comuns, que sabiam muito bem que nunca havia fila antes das 9 horas da manhã nos dias de semana. As senhoras com blazers cor de vinho que ficavam atrás do balcão de informações comentavam que todas as oito excursões escolares que visitavam o museu no dia
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pareciam extraordinariamente caladas, como se estivessem tentando ouvir ou enxergar um fantasma.
O piso do salão dedicado ao Renascimento estava sempre um pouco mais lustroso, as molduras sempre um pouco mais alinhadas e o quadro no centro dele — Anjo retornando ao Paraíso, de Leonardo da Vinci — sempre atraía mais visitantes boquiabertos do que qualquer outra obra exibida no Henley. Mas, naquela manhã, a impressão era a de que a joia mais valiosa do museu havia de certa forma perdido seu esplendor.
O salão dedicado aos renascentistas estava vazio, enquanto longas filas se formavam nos corredores de mármore, com todos os visitantes seguindo para o mesmíssimo lugar.
— É aqui — disse Kat.
Ela não precisou ler a placa na entrada para saber que eles tinham chegado à coleção certa. Bastou ver a quantidade de pessoas que havia ali e ouvir o burburinho: Visily Romani.
Turistas e especialistas estavam lado alado, colados uns atrás dos outros, perplexos, esperando para ver o lugar em que um cartão havia aparecido misteriosamente no meio da noite num dos edifícios mais seguros de toda a cidade de Londres.
Kat e Hale permaneceram calados enquanto esperavam para entrar no salão abarrotado. Não comentaram os ângulos em que as câmeras estavam nem o posicionamento dos seguranças. De certa forma, também eram turistas. Curiosos. Ansiosos para saber a verdade sobre o acontecimento incomum, mas por motivos totalmente diferentes.
— Ele esteve aqui — afirmou Kat quando finalmente chegou lá dentro.
A maioria olhava somente por alguns segundos e depois ia embora. Kat, no entanto, se demorou mais. Ela e Hale eram como o
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eixo de uma roda, mal se movendo enquanto o restante das pessoas circulava ao redor.
— É, só que não levou nada — disse Hale.
— Ele esteve ali.
Kat sentiu sua mão se erguer. Viu seu dedo apontar. Cinco quadros estavam pendurados ao longo da parede oposta da galeria. Dois dias antes, Visily Romani havia prendido seu cartão à moldura do quadro do meio.
Um cartão de visitas, diziam os boatos. Papel branco e letras pretas desenhando um nome que, até então, tinha sido apenas sussurrado nos cantos sombrios dos salões mais escuros.
Um cartão deixado por um fantasma, dizendo simplesmente: Visily Romani esteve aqui.
Kat pensou sobre o cartão e algo em seu coração — ou talvez apenas seu sangue — lhe disse que, em meio a todas as pessoas que lotavam o Henley naquele dia, o maior ladrão do mundo estava falando diretamente com ela.
— Para que invadir um museu e não levar nada? — perguntou Hale, mas Kat apenas balançou a cabeça.
Então, ela fez uma pergunta melhor:
— Para que invadir um museu e deixar algo?
Kat chegou mais perto do quadro central. Flores num dia frio de primavera era seu nome. Uma pequena e bela natureza-morta. O artista era razoavelmente famoso. Porém, não havia nada de extraordinário na tela, a não ser o fato de ter sido o lugar que Visily Romani escolhera para deixar seu cartão.
Kat se afastou, olhando para as outras cinco pinturas no salão, tentando adivinhar o que Romani havia pensado.
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Ela fechou os olhos e recordou as histórias que tinha passado a vida inteira ouvindo — lendas sobre o maior ladrão de todos os tempos.
E agora cinco quadros estavam desaparecidos.
Kat olhou para a parede da galeria.
Cinco quadros continuavam ali.
Ela girou o corpo devagar, examinando cada uma das telas, avaliando suas dimensões. Sentiu o coração acelerar.
— E se ele não tiver deixado só o cartão?
— O quê? — perguntou Hale, virando-se para encará-la, mas Kat já avançava, examinando as molduras rebuscadas em volta das obras inestimáveis.
— Senhorita — chamou um dos guias voluntários quando Kat se inclinou para a frente. — Senhorita, vou ter que pedir que se afaste um pouco.
O homem se colocou entre Kat e o quadro, mas não antes de a ideia já ter se enraizado na mente de Hale.
— Não — Hale começou a falar, olhando para as telas e então de volta para Kat. — Por que alguém invadiria o Henley para deixar cinco quadros inestimáveis... — Ele olhou para as paredes. Contou. — . . .atrás de cinco quadros diferentes? — concluiu, sem sequer disfarçar o espanto em sua voz.
Porque ele já fez coisas desse tipo antes, Kat quis responder. Porque, quando você usa o nome Romani, significa que tem um plano — um motivo. Porque serviços sob um Pseudonima não são serviços comuns. Porque Visily Romani não é um ladrão comum.
— Mas por que alguém faria uma coisa dessas?
— Sei lá, Hale.
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— Mas por que...
— Eu... eu não faço ideia.
De repente, Kat sentiu necessidade de se ver livre daquele monte de gente, do barulho e das histórias penduradas em cada parede, zombando dela.
— Isso é um jogo! — exclamou Kat com raiva enquanto saía da sala de exposições e começava a descer a imponente esplanada do museu. Andava depressa, com Hale em seu encalço, tentando alcançá-la. — Alguém está se divertindo com isso tudo! E não se importa com o fato de outras pessoas acabarem machucadas por causa do que ele fez.
Os visitantes estavam começando a olhar para eles, de modo que Hale passou o braço em volta dos ombros de Kat e tentou detê-la, acalmá-la.
— Eu sei — sussurrou ele. — Mas talvez isso seja bom.
— Bom? Taccone está atrás do meu pai, Hale. Taccone...
— Talvez isso signifique que já os encontramos. E, se eles podem ser encontrados...
Katarina Bishop teve a sensação de que todos os momentos do passado muito longo e muito duvidoso de sua família haviam sido uma preparação para que ela dissesse:
— Eles podem ser roubados.
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Capítulo 16
Enquanto observava a cidade passar do banco de trás de um carro preto e comprido, Kat tinha plena consciência de que lhe restavam três — talvez quatro — opções.
Primeira opção: ela poderia telefonar para Arturo Taccone e pedir que a encontrasse no Henley. Como iria fazer para tirar as telas da parede e do museu seria problema dele. Essa, é claro, era a opção que fazia mais sentido, envolvia o menor risco e, pelo que o Sr. Stein lhes contara, era a que apresentava a maior chance de ser atirada no fosso de Arturo Taccone. Portanto, Kat não a cogitou por muito tempo.
Se aqueles fossem outros tipos de quadros — ou se Arturo Taccone fosse outro tipo de homem —, então a segunda opção teria ganhado de lavada. Tudo o que Kat precisaria fazer seria telefonar para o diretor do Henley e sugerir que um cartão de visitas talvez não fosse a única coisa que Visily Romani deixara para trás. Mas não havia como Kat saber ao certo se Taccone se apropriara das pinturas licitamente o bastante para que ele as recebesse de volta ou ilicitamente o bastante para mandá-lo para a cadeia. A única coisa da qual Kat tinha certeza era de que, se ela fizesse Taccone perder as coisas que amava, mais cedo ou mais tarde ele retribuiria o favor.
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A terceira opção ainda estava se formando nos recônditos da mente de Kat, mas ela sabia que certamente envolveria uma bronca de seu pai e uma convocação geral de todos os arrombadores, pirotécnicos, pilotos de fuga e elementos infiltrados do seu ramo. Levando-se em conta os acontecimentos recentes, era provável que também envolvesse aturar muita gente falando com ela mas vendo a filha ou a sobrinha de alguém. E, com certeza, incluiria o risco de os quadros de Arturo Taccone não serem os únicos retirados do Henley. Isto é, se o tio Eddie permitisse.
No entanto, tio Eddie tinha dito que aquele assunto estava encerrado. Afirmara se tratar de algo sagrado. E, se ele achava que Kat não poderia (ou não deveria) desfazer o que Visily Romani havia feito, então nenhum outro ladrão no mundo se arriscaria a tentar. Ainda assim, a mente de Kat não parava de voltar à terceira opção.
Talvez porque fosse a melhor delas. Ou talvez, temia ela, porque fosse a opção que estava em seu sangue.
— Não temos muito tempo — dizia Hale. — Para um alvo do tamanho do Henley, vamos ter que...
— Isso é loucura — Kat deixou escapar, mais para si mesma do que para Hale. — Roubar desse tal de Visily Romani, seja ele quem for, é uma coisa. Mas roubar... — ela se deteve, olhou para a nuca de Marcus e baixou a voz
— ...do HENLEY?
Quando o carro parou, Kat e Hale saíram. Kat andava depressa, esmagando o cascalho debaixo de seus pés, e passava a mão pelos cabelos, o mesmo gesto que tinha visto seu pai fazer mil vezes...
Logo antes de topar fazer alguma idiotice.
— Mesmo que a gente faça isso — disse ela, erguendo os olhos para Hale, que andava no mesmo ritmo ao seu lado —, é o Henley.
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— Eu sei — falou Hale com tranquilidade.
— Ninguém jamais roubou tela nenhuma do Henley.
— Eu sei — repetiu Hale, ficando empolgado.
Kat parou de andar.
— E roubaríamos cinco.
— Bem, tecnicamente, estaríamos pegando de volta — afirmou ele com ironia. — É quase como se uma coisa anulasse a outra.
Kat deu as costas para ele novamente e começou a atravessar um gramado extenso, sem rumo.
— Supondo que a gente consiga fazer isso, seria preciso uma equipe grande.
— E ninguém vai muito com a sua cara — acrescentou Hale, sem sorrir.
O vento estava gelado sob o céu cinzento e soprava as folhas pelo chão.
— Precisamos de equipamentos... e dos bons. Coisas muito caras.
— Pena que só tenho minha beleza — disse Hale. — Quer dizer, eu canto melhor do que a média, também.
Kat revirou os olhos.
— Sete dias, Hale.
Dessa vez, ele não deu nenhuma resposta. Nenhuma solução. Se Kat havia aprendido alguma coisa com a morte da mãe era que nem mesmo o melhor ladrão do mundo é capaz de roubar tempo.
Kat olhou em direção às colinas, aos muros de pedra que se cruzavam
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lindamente no horizonte. Londres parecia a um milhão de quilômetros de distância.
— Onde nós estamos?
Hale apontou atrás dela.
— Na casa de campo — respondeu ele, mas, naturalmente, quando falava casa ele queria dizer mansão.
Kat se virou e viu um jardim planejado com perfeição se estendendo por um dos lados de uma propriedade gigantesca. Havia fumaça subindo em espirais de pelo menos três chaminés. Ela imaginou que, em algum lugar daquela grande construção antiga, Marcus logo estaria preparando sopa e chá.
E sentiu falta do tio Eddie.
Eles se encaminharam para o casarão de pedra, com o peso daquilo que precisavam fazer se acomodando sobre seus ombros.
— O Sr. Stein... — Kat começou a falar, mas Hale a interrompeu.
— Não pense nisso.
— Aqueles quadros não são de Taccone, Hale.
Ele a deteve. Os braços dela pareciam bem pequenos nas mãos de Hale enquanto a segurava ali, fitando-a nos olhos.
— Precisamos salvar seu pai. — Havia uma urgência em sua voz que fez Kat se esquecer de lutar à medida que Hale limitava suas opções a uma só. — Primeiro, vamos roubar o Henley.
Então, ele passou o braço em volta dela e a conduziu rumo à casa em que W. W. Hale I havia nascido.
— Vamos precisar de uma equipe — disse Kat enquanto Marcus abria as grandes portas duplas. — De pessoas de confiança — acrescentou ela.
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Hale assentiu, guiando-a ao longo do corredor decorado e parando diante de duas portas deslizantes. Ele as empurrou para o lado, revelando uma biblioteca de dois andares, uma lareira acesa e os rostos familiares dos irmãos Bagshaw, de Simon e de Gabrielle.
— Essas aqui servem?
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Capítulo 17
A montagem de uma equipe é um acontecimento monumental na vida de um jovem ladrão. São reuniões, telefonemas, discussões e, às vezes, até um bolo para comemorar. Famílias normais têm formaturas. Famílias de ladrões têm isso. Kat deveria estar se sentindo um pouco traída por ter ficado de fora de toda a diversão. Mas não estava.
Olhou para Hale. Ele deu de ombros.
— Tive um pressentimento.
Então, ele pegou um dos canapés que Marcus estava servindo pela biblioteca e jogou-o inteiro dentro da boca, mal se permitindo mastigar antes de pegar outro na bandeja.
Ninguém trocou apertos de mão nem disse oi. Os amigos de Kat pareciam preparados para ficar ali a noite inteira, bolando um plano. E, embora estivessem basicamente em círculo, Kat notou a maneira como eles a observavam e, pela primeira vez na vida, soube o que era estar no comando da situação.
— Obrigada por terem vindo. — Ela se aproximou, agarrando o espaldar de uma cadeira Queen Anne. — Tenho um serviço para vocês.
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— Eu sabia! — exclamou Hamish. — Falei para o Angus que tinha alguma coisa acontecendo quando a gente viu você na casa do tio Eddie. Então, o que vai ser? — Ele esfregou as mãos. — Vamos roubar uma joalheria?
— Um banco? — arriscou Angus.
— Você sabe como eu adoro roubos a banco bem planejados — disse Hamish. — Eles são tão melhores do que os... mal planejados.
— É um serviço que ninguém aqui fez antes — afirmou Hale, lançando um olhar para os irmãos Bagshaw que deixava claro não haver necessidade de nenhum deles voltar a interromper Kat.
Naquele momento, a biblioteca pareceu se encher de uma nova energia. Simon remexia os dedos. Hamish e Angus se inclinaram um pouco mais para a frente. Até mesmo Gabrielle parecia estar dando à prima toda a sua atenção enquanto Kat examinava os olhares dos presentes e respirava fundo.
— Tudo o que vamos fazer daqui em diante — disse ela — será sem a autorização do tio Eddie.
A princípio, ninguém falou nada. Então, Hamish olhou para o irmão mais velho, sorrindo, como se aguardasse permissão para rir. Afinal, só poderia ser uma piada. Mas Gabrielle estava séria, enquanto Simon murmurava algo sobre Vegas e ficava pálido. Deviam estar pensando: alguma coisa havia atraído Kat de volta para o mundo deles.
Hale diminuiu as luzes e ligou a televisão. O mesmo vídeo em preto e branco que vinha assombrando os sonhos de Kat começou a passar na tela.
— O que vocês estão vendo fica numa vila particular na Itália.
A imagem se congelou no salão vazio, semelhante a uma galeria.
— Particular mesmo — prosseguiu ela.
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— Como vamos entrar? — perguntou Angus, aproximando-se da tela.
Hale e Kat trocaram olhares. Ela balançou a cabeça e declarou:
— Nós não vamos entrar.
Então, como se estivesse apenas esperando uma deixa, o homem que eles chamavam de Romani surgiu na tela.
— Alguém já nos fez esse favor — completou Kat.
Eles observaram o artista trabalhar por alguns momentos.
— Ei, Kat — Simon começou a falar —, aquele ali é...
— Não é o meu pai!
— Eu ia dizer: aquele ali é um Degas?
— Ah, sim — disse ela. O Sr. Stein lhe veio à cabeça. — Havia cinco quadros ao todo. Dos Velhos Mestres.
— Quem é esse cara? — Hamish quis saber.
— Isso importa? — perguntou Hale.
Hamish deu de ombros. Todos os olhares estavam voltados para Kat.
Aquele era o momento de lhes contar toda a história. Também era o momento de mentir. Kat se perguntou o que seu pai faria e o que o tio Eddie iria dizer.
Então, optou pela mentira que sabia ser a mais verdadeira.
— Esse cara é Visily Romani.
Kat não ficou surpresa diante do silêncio deles.
Simon foi o único que se manifestou.
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— O Visily Romani que roubou cinco bancos suíços numa única noite em 1932? O Visily Romani que fugiu com metade das joias da coroa russa em 1960? — O suor se acumulou na testa de Simon. — O Visily Romani?
Hale se recostou e cruzou as pernas.
— Não se preocupe, Simon. — disse ele, atirando outro canapé na boca. — É muito pior do que você pensa.
Kat quase conseguia sentir no ar a empolgação dos irmãos Bagshaw. Hamish esfregou as mãos sobre as coxas, aquecendo-as, preparando-se para alguma coisa — qualquer coisa.
Angus parecia estar fazendo algum cálculo de cabeça.
— Se ele fez um serviço em 1932, isso não significa que é um pouco velho?
— Visily Romani é um dos Pseudonimas, um dos nomes sagrados — explicou Kat.
— Então esse cara... — Angus deixou a frase pela metade, mas apontou para o homem na tela.
— Poderia ser qualquer um — comentou Simon.
Kat se virou e olhou pela janela em direção aos jardins e ao terreno da propriedade, tudo aquilo que caracterizava o mundo de Hale, enquanto pensava nas leis que regiam o seu.
— E poderia estar em qualquer parte — completou ela.
Simon se levantou e começou a andar de um lado para outro.
— Então estamos todos aqui porque precisamos... — balbuciou ele, apontando para a tela. — Você quer dizer que isto é... — Ele se deteve e levou as mãos aos quadris. Sua camisa despontava debaixo do pulôver. Seu rosto estava ficando mais vermelho a cada segundo. — Eu tinha a impressão de que os Pseudonimas fossem um tanto...
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— Intocáveis? — respondeu Gabrielle para ele. Em seguida, sorriu. — Ah, são, sim. Ou pelo menos eram.
— Vocês podem cair fora agora mesmo. Qualquer um de vocês — lembrou Kat. — O tio Eddie já disse que esse é um serviço que não pode, ou que não deve, ser feito. — Ela respirou fundo, perguntando-se se havia mesmo alguma diferença entre as duas coisas. — Não vou censurar ninguém aqui que decida dar meia-volta e ir embora neste...
— Você está brincando? — perguntou Hamish. — Tem algumas centenas de milhares de euros naquelas paredes. — Ele olhou para o irmão. —Estamos dentro.
— Certo — continuou Kat. — Como eu disse, não é um serviço comum. — Ela não sabia o que era mais difícil: o que tinha para dizer ou a maneira como todos a olhavam enquanto ela o dizia. — O Sr. Taccone... — Kat escolheu as palavras com cuidado — ... pediu nossa ajuda para recuperar os quadros.
— Mas e aí? Rola algum tipo de recompensa? — perguntou Angus.
— Não é bem assim — admitiu Kat.
— O que rola é a promessa de que Taccone não vai atirar o tio Bobby no fosso que protege a vila — explicou Gabrielle, sem fazer rodeios.
Kat abriu um sorriso fraco enquanto olhava para todos.
— E eu vou ficar devendo uma a vocês.
Kat esperava que seus amigos fossem precisar de um tempo para pensar. Provavelmente iriam dar uma volta pela propriedade para clarear as ideias, colocar a cabeça no lugar. Achava até que metade deles fosse deixar sua família orgulhosa e desaparecer sorrateiramente no meio da noite, mas, para sua surpresa, não foi o que aconteceu.
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Em vez disso, Hamish deu um tapa nas costas do irmão e disse:
— Estamos dentro. Conte com a gente para o que der e vier, Kat.
Simon levou a mão à boca, roendo as unhas enquanto olhava para lugar nenhum, ponderando.
— O tio Eddie vai ficar sabendo disso?
— Ora, Simon — resmungou Hale. — Qual é a probabilidade de ele já saber?
Os irmãos Bagshaw trocaram olhares e falaram ao mesmo tempo:
— Dois para um.
Simon engoliu em seco. Mas acabou dizendo:
— O.k.
Kat olhou para Gabrielle, que tinha começado a lixar as unhas do pé. A garota nem sequer ergueu os olhos, mas, quando Kat abriu a boca para falar, Gabrielle soltou um “Dã” e ela soube que não havia mais nada a acrescentar.
— Ótimo. Obrigada. Acho que amanhã mesmo podemos começar a sondar o alvo.
— E qual é o alvo? — perguntou Angus.
Hale olhou para Kat. Por um instante, tudo pareceu estar bem.
E então Kat disse:
— O Henley.
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6 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
LONDRES,
INGLATERRA
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Capítulo 18
Se o ano fosse 1921, você tivesse mais dinheiro do que tempo e fosse uma mulher, haveria bem poucas atividades aceitáveis de entretenimento. Algumas mulheres jogavam cartas. Outras tocavam algum instrumento musical. A maioria se contentava com vestidos e chapéus, jardins perfeitamente bem cuidados e xícaras de chá preparadas com esmero. Mas Veronica Miles Henley estava à frente de seu tempo. Ela dedicou a enorme fortuna que possuía à sua grande paixão e construiu, quase sozinha, o melhor museu do mundo.
Ou pelo menos foi isso que a mãe de Katarina Bishop lhe contara. E era nisso que a própria Kat acreditava.
— Melhor do que o Louvre? — perguntou Hale, sua voz cortando o som da fonte em frente à entrada principal envidraçada.
Kat revirou os olhos.
— Lotado demais.
— Do que a Tate?
— Pretensiosa demais.
— Do que o Museu Egípcio no Cairo?
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Kat jogou as costas para trás e deixou os dedos agitarem a água.
— Quente demais.
As câmeras de vigilância instaladas nos muros que circundavam o Henley captaram tudo isso, é claro. Elas estavam perfeitamente posicionadas e calibradas com precisão.
Os seguranças que vigiavam cada entrada sem dúvida notaram o rapaz e a garota que zanzavam diante da fonte, comendo sanduíches e jogando migalhas para os pássaros, como centenas de outros casais adolescentes que passavam por ali todos os anos.
Eles talvez tenham visto o rapaz passar o braço em volta do pescoço da garota e segurar uma câmera em frente ao rosto para tirar fotos. Talvez tenham notado como o casal foi andando de uma ponta do muro à outra.
O que eles não perceberam, obviamente, foi que as fotos eram, na verdade, das posições das câmeras e que os passos calculados daqueles dois estavam mapeando as dimensões do muro do museu.
Para os seguranças, aqueles eram apenas dois adolescentes aproveitando um lindo dia de outono.
Mas é claro que havia muitas outras coisas que eles deixavam passar.
Se os seguranças do Henley não prestaram muita atenção no rapaz e na garota que zanzavam em frente ao museu, certamente não notaram os dois irmãos à toa em frente à cafeteria, tirando fotos bobas de coisas como portas e respiradouros enquanto aguardavam uma mesa. Também não viram o garoto branquelo com uma mochila e um pequeno videogame portátil vagando sem destino
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pelos corredores... até trombar com um dos guias voluntários e cair no chão.
O videogame em sua mão saiu deslizando pelo chão de mármore.
— Não! — gritou o garoto, correndo atrás dele.
Mas, assim que o aparelho parou aos pés de um dos seguranças do museu, o adolescente congelou.
O segurança se abaixou e pegou o videogame. Se tivesse se concentrado mais no rapaz do que no brinquedo, poderia ter percebido que Simon prendia a respiração e estava tão pálido quanto a estátua de mármore atrás dele. Mas o guarda estava cativado demais pelo labirinto de grades, pontos e linhas na tela para lhe dar atenção.
— O que é isso?
— Nada! — respondeu Simon mais depressa do que devia, mas seu rosto de bebê era inocente demais para causar qualquer preocupação ao guia ou ao segurança.
O guia olhou por cima do ombro do segurança.
— Esse jogo aí é o Underworld Warrior 2, não é? — perguntou o guia, se aproximando para examinar a tela.
— Ei, o que é isso...
O segurança começou a apertar o botão vermelho, fazendo Simon se encolher.
— Não... Não... Por favor, não...
— É bem diferente do primeiro, hein? — indagou o segurança, ainda apertando o botão, sem saber o caos que estava causando na sala de controle a 6 metros dali, à medida que cada sensor de movimento do prédio começava a piscar. — O que este aqui faz?
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O segurança moveu o dedo para outro botão, mas, antes que pudesse fazer todos os aparelhos eletrônicos num raio de 10 metros entrarem em curto-circuito, Simon correu para cima dele.
— É tipo um... protótipo — respondeu, tirando o aparelho da mão do homem antes que os seus colegas percebessem que algo de errado estava acontecendo. Simon, por sinal, estava falando a verdade, de modo que não teve o menor problema em acrescentar: — Meu pai projeta essas coisas.
O segurança tornou a olhar para o aparelho, então deu um tapinha nas costas de Simon.
— Garoto de sorte. Olhe por onde anda, está bem?
— Pode deixar — disse Simon.
Os guias voluntários do Henley estavam acostumados a ver quase qualquer tipo de comportamento nos milhares de visitantes que frequentavam o museu todos os anos.
Mas, quando uma adolescente usando saltos altíssimos atravessou os corredores naquele dia, algo nela chamou muito a atenção dos seguranças. Houve quem comentasse depois que foi a minissaia que ela vestia. Outros comentaram, com muita sabedoria, que provavelmente foram suas pernas. De qualquer forma, os olhos deles certamente não estavam em suas mãos.
— Nossa! — exclamou alto demais a garota quando entrou no local que, havia pouco tempo, passara a ser conhecido como Sala Romani. Ela espichou o pescoço para olhar o teto ornamentado. — Como é alto!
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Os guias do Henley não sabiam o que todo ladrão sabe: se você não tem como fazer algo sem visto, então é melhor fazê-lo da maneira mais evidente possível.
— Que coisa mais linda! — disse Gabrielle, girando sobre seus saltos altos e apontando para o quadro pendurado no centro da galeria.
Os seguranças que estavam vigiando a Sala Romani naquele dia nunca haviam sido acusados de preguiçosos, lentos, incompetentes ou distraídos. Mas isso não mudava o fato de que nunca tinham visto uma jovem aparentemente embriagada atravessar cambaleando um piso de mármore e se jogar em cima de um quadro de meio milhão de dólares.
Os turistas, até então educados demais para olhar sem disfarçar, tiveram que sair correndo do caminho. Os seguranças, que estavam muito ocupados avaliando as pernas da garota para notar a direção em que elas a carregavam, ficaram apenas assistindo, boquiabertos.
A mão dela tocou a moldura e suas pernas deixaram, imediatamente, de ser a coisa mais interessante a seu respeito.
Uma onda de choque ecoou pela sala. Grades de metal desceram do teto, bloqueando as portas numa fração de segundo, enquanto mulheres gritavam, crianças choravam e uma sirene cortava o ar num volume tão alto que homens largaram as mãos dos filhos para taparem as orelhas.
Até mesmo os seguranças fizeram caretas e dobraram o corpo, o crepitar de seus rádios perdendo-se no caos de sirenes e turistas encurralados. Quando se lembraram da garota de pernas compridas e minissaia caída no chão de mármore, ela já estava inconsciente.
Ninguém notou Kat do outro lado das grades, observando o desenrolar de toda a cena, com tampões no ouvido bloqueando o som. Sua mente já arquitetava planos enquanto ela dava meia-volta e se encaminhava a passos lentos rumo à saída.
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Se não fossem os alarmes e as grades, os turistas encurralados e a garota inconsciente, alguém no Henley talvez tivesse notado os dois capangas que surgiram, aparentemente do nada, cercando Kat.
Alguém podia ter visto Kat e os homens desaparecerem atrás do vidro fumê de uma limusine e ter constatado que ela não gritou. Apenas disse:
— Olá, signor Taccone.
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Capítulo 19
A primeira coisa que Kat fez, naturalmente, foi se repreender. Ela já deveria estar esperando por aquilo. Tinha que ter ouvido os capangas se aproximarem. Mas os alarmes soaram alto demais, os tampões de ouvido se mostraram bastante eficientes e sua mente se concentrou no trabalho sério que tinha pela frente — de modo que a guarda de Kat estava baixa naquele dia. Mas ela não iria permitir que Arturo Taccone soubesse disso.
Ele abriu um sorriso gélido na outra ponta do banco de trás da limusine e, apesar de tudo, ela ficou quase feliz ao sentir o calor dos corpos dos capangas que a ladeavam.
— Seus esforços são divertidos, Katarina — disse ele com uma risadinha.
— Inúteis, mas divertidos.
Kat pensou na visão de sua prima desabando no chão frio da galeria enquanto o sistema de defesa de última geração do Henley era testado por uma garota de 16 anos. E suas pernas.
— Falei que não era a pessoa certa para esse serviço — declarou Kat. — Agora, conheço uma equipe japonesa muito bem
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recomendada. Posso conseguir o nome e o telefone dela, se estiver interessado.
Ao ver o gesto desdenhoso que Taccone fez com a mão, Kat percebeu que ele estava gostando daquilo. Pensou em seu bunker e se deu conta de que o prazer que ele sentia ao manter coisas tão belas e preciosas fechadas a sete chaves não era nada comparado à emoção de segui-los pela Europa. Afinal de contas, quadros não passavam de coisas. O que Arturo Taccone mais gostava era de perseguir pessoas.
— Então me diga, Katarina — falou ele, entortando a cabeça em direção ao prédio antigo e grandioso que desaparecia ao longe —, o que você vai roubar? O Anjo de Da Vinci, talvez? Eu pagaria uma quantia bem generosa para acrescentá-lo à minha coleção, sabia?
— Eu não sou uma ladra — disse Kat.
Ele a encarou.
— Quer dizer — acrescentou ela —, não sou mais uma ladra.
Taccone nem sequer tentou disfarçar como estava achando graça.
— Estou aqui para recuperar os seus quadros, signor Taccone, então, tecnicamente falando, vou pegá-los de volta. — A voz de Hale tornou a ecoar na sua cabeça. — E, nesse caso, é como se uma coisa anulasse a outra.
— Você acha que seu pai escondeu meus quadros dentro do Henley? — Taccone riu com sarcasmo, um som cruel e gutural. — E por que faria isso?
— Não foi meu pai — rebateu ela. — Lembra?
— Ah, Katarina. Se não foi seu pai, quem foi, então?
Ela pensou por um instante em Visily Romani — uma lenda, um fantasma. Mas ele não era exatamente um fantasma. Em algum
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lugar do mundo havia um homem de carne e osso que tinha o conhecimento necessário para invadir o museu mais seguro do mundo usando aquele pseudônimo específico.
Seu verdadeiro nome não era Visily Romani. Mas Kat duvidava que Arturo Taccone fosse entender isso.
— Eu encontrei seus quadros, signor Taccone — afirmou Kat, aproximando-se dele e se empertigando no banco do carro. — Posso lhe dizer onde eles estão e aí imagino que não vá precisar mais de mim. Afinal — ela gesticulou para trás —, como viu, meus amigos e eu não estamos preparados para um desafio tão grande.
— Só que eu acho, Katarina, que você está muito bem preparada.
Ele abriu um sorriso e Kat se perguntou se aquele homem tinha mais confiança em sua capacidade do que o próprio tio, talvez mais até do que o próprio pai. Mas, por outro lado, aquele mesmo homem não se importaria se ela acabasse morta ou na cadeia, desde que conseguisse seus quadros de volta, de modo que talvez não fosse a pessoa mais indicada para julgar quanto ela era boa.
— Precisamos de mais tempo. — Kat disse isso como uma afirmação, não como um pedido, e ficou surpresa ao ouvir a firmeza da própria voz. — Estamos falando do Henley. Ninguém jamais roubou o Henley.
— Se estiver correta, seu pai driblou a segurança deles para deixar meus quadros...
— Escute aqui! — Kat só percebeu que estava esticando os braços na direção dele quando sentiu sua bengala nas mãos. — Tudo bem que não confie em mim quando digo que meu pai não roubou seus quadros. Também não ligo se não acredita que estejam naquele museu. Só que eles estão. E pode crer que nenhuma equipe vai conseguir roubar o Henley em seis dias. Isso não vai acontecer. É impossível.
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Kat sentiu os capangas se mexerem. Ela sabia que havia acabado de mudar as regras do jogo de Arturo Taccone e que aqueles brutamontes, com toda sua força e seus músculos, nunca tinham imaginado que um dia alguém fosse tocar o chefe deles — muito menos uma garota baixinha de 15 anos.
— Sabia que o Henley tem no mínimo 100 seguranças trabalhando em três turnos de oito horas? — perguntou Kat. — E não são seguranças comuns. A maioria é composta de ex-policiais. São todos bem treinados e, além disso, qualquer pessoa nova tem que esperar cinco semanas para ser contratada enquanto o museu faz uma devassa na vida dela. Ou seja, não temos como infiltrar ninguém lá dentro.
Ela se sentiu impelida a continuar e Taccone não a interrompeu.
— Sabia que eles têm o mesmo tipo de câmeras de vigilância que a CIA usa nos anexos da sede em Langley? Isso sem contar os pisos sensíveis ao peso ou as molduras eletrificadas que minha querida prima fez a gentileza de demonstrar como funcionam. Aliás, já falei dos sensores de pressão? Naturalmente, não sei nada a respeito deles, porque estamos falando do Henley. E eles não costumam colocar as especificações de segurança do museu na internet. Mas pode apostar quanto quiser que eles têm dispositivos tão sensíveis atrás daqueles quadros que, se uma mosca pousasse num deles, o lugar inteiro travaria antes que você pudesse falar “Renascimento”.
Ele tornou a sorrir, mais devagar dessa vez, e Kat sentiu um calafrio tão cortante quando um vento gelado.
— Vou ficar com saudade das nossas conversas, Katarina. Você deveria saber que é por respeito à família de sua mãe que venho tentando fazer isso da forma mais justa possível. Eu já lhe disse o que quero. Já lhe dei tempo mais do que suficiente para cumprir o combinado. E, ainda assim, ninguém me devolveu meus quadros.
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Ele parecia sinceramente surpreso, como se estivesse esperando, dia após dia, que eles chegassem pelo correio.
Kat se aproximou dele e, dessa vez, o medo em sua voz foi indisfarçável.
— Eu... não... vou... conseguir.
— Não se preocupe, Katarina. Daqui a seis dias, se eu ainda não estiver com meus quadros, vou fazer uma visita ao seu pai e fazer umas perguntinhas para ele pessoalmente.
— Meu pai não sabe de nada — retrucou Kat, mas Taccone prosseguiu:
— Talvez até lá seus amigos da Interpol já tenham ido embora e eu possa falar com ele cara a cara. Sim — disse Taccone, balançando a cabeça devagar —, quando chegar a hora, seu pai vai me dar o que preciso.
Kat começou a falar, mas, antes que pudesse dizer uma só palavra,
Taccone se voltou para o Capanga 1.
— Você não está sentindo calor com essas luvas?
Mas não estava quente. Nem um pouco. Kat prendeu a respiração enquanto o homem corpulento tirava a luva de sua mão esquerda e a colocava sobre o joelho esquerdo, a poucos centímetros da bengala que ela estava segurando. Quando Kat viu o cabo de metal da bengala pela primeira vez, achou bonito o desenho entalhado. Mas isso foi antes de notar uma marca idêntica a ele na mão ao seu lado, uma queimadura — uma advertência — cicatrizada para sempre na carne.
— Quando chegar a hora, vou questionar o seu pai. — A voz de Taccone era fria e cruel. — Não se preocupe, Katarina. Posso ser muito persuasivo.
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O carro desacelerou. Kat sentiu algo cair sobre seu colo e, ao olhar para baixo, viu um envelope grande de papel pardo.
— Enquanto isso, Katarina, eu lhe desejo sorte em sua missão. — Novamente, ele não estava brincando. Parecia acreditar mesmo nela enquanto puxava sua bengala de volta e dizia: — Você tem tudo para se sair bem.
O Capanga 1 abriu a porta e saiu de dentro do carro. Com sua mão deformada, sinalizou para que ela fizesse o mesmo.
Kat ficou um bom tempo totalmente imóvel na calçada da Trafalgar Square, sentindo o envelope pesar em suas mãos. Então, prendeu a respiração e olhou dentro dele. Fotografias. Mas não fotografias quaisquer. A palavra que veio à cabeça de Katarina Bishop foi: manipulação.
Ela sentiu náuseas. Tremeu com o vento frio. Ônibus vermelhos de dois andares e luzes de neon brilhantes a cercavam, produzindo reflexos nas imagens em preto e branco em suas mãos. De todas as fotos que Arturo Taccone havia tirado na vida, era bem provável que poucas mesma tivessem lhe trazido tanta satisfação quanto as que Kat segurava naquele momento.
Gabrielle embarcando num trem em Viena, com o vento agitando seus cabelos.
Hale atravessando o lobby de um hotel em Las Vegas.
Seu pai bebericando um café enquanto cruzava uma praça cheia de gente em Paris.
Seu tio Eddie sentado num banco num parque do Brooklyn.
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As pessoas que ela mais amava no mundo estavam retratadas ali, em preto e branco, e a mensagem era clara: Arturo Taccone sabia como encontrar as pessoas e as coisas importantes para ela e, se Kat não fizesse o mesmo, ele não seria o único a perder algo que amava.
Pela primeira vez na vida de Katarina Bishop, ela entendeu de verdade que uma imagem vale mais que mil palavras.
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Capítulo 20
Kat chegou atrasada em casa. Ou melhor, à casa de campo da família de Hale. O único lugar que Kat poderia chamar de casa ficava num prédio de arenito em Nova York e seu dono a proibira terminantemente de fazer o que ela estava fazendo.
Ela enfiara o envelope com as fotografias sob o cós da calça jeans e o sentia contra a pele de sua barriga. Precisava escondê-lo.
O foyer era espaçoso e frio. Estava vazio. Pinturas de membros há muito falecidos da família Hale cobriam as paredes do corredor. Kat os imaginou fazendo uma vigília, esperando que algum Rale vivo voltasse para casa.
Kat sentia saudade do tio Eddie.
Foi invadida por um desejo repentino de tomar sopa.
Teve vontade de conversar com o pai.
Ela deu um passo, tornando a sentir o envelope contra a barriga, e na mesma hora quis telefonar para todas as pessoas que conhecia e pedir para elas fugirem, se esconderem. Mas as únicas que conhecia eram ladrões profissionais. Elas nunca paravam de se esconder.
— Angus, ela voltou!
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Kat não teve dúvidas de que a voz de Hamish Bagshaw tinha mudado. Ele estava sentado ao pé da escada, esperando por ela.
Enquanto ele mascava chiclete e sorria, seu irmão apareceu no corredor, carregando um balde de gelo.
— Beleza — disse Angus.
Kat queria continuar andando, mas Angus parou na sua frente.
— Será que podia nos dar um minuto do seu precioso tempo? — perguntou ele.
Hamish lançou um olhar ao longo do corredor vazio e então acrescentou:
— A sós?
Angus era 11 meses mais velho do que o irmão e um pouco mais alto. O tom do cabelo dos dois ficava entre o loiro e o ruivo e sua pele parecia capaz de se queimar mesmo num dia nublado. Seus ombros eram largos, mas seus braços, franzinos, e Kat percebeu que eles ainda estavam em fase de crescimento — ainda bem longe de se tornarem homens.
— O que foi? — indagou Kat.
— Já faz um tempo que a gente está querendo falar com você sobre... é... alguns incidentes recentes e só queríamos dizer que...
— Espere um instante — interrompeu Kat. — Que incidentes recentes?
— Bem... — Hamish começou a falar. — Tivemos uns probleminhas com um serviço algum tempo atrás.
— Em Luxemburgo? — perguntou Kat.
— Hale já falou com você sobre Luxemburgo? — perguntou Hamish. — Aquele, sim, foi um golpe e tanto, você precisava...
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— Hamish! — ralhou Kat.
Os irmãos balançaram a cabeça.
— Depois de Luxemburgo — esclareceu Angus.
— O que... — Kat começou a falar, mas Hamish já estava passando o braço ao redor dela, dizendo:
— Sabe do que mais gosto em você, Kat?
— Além da sua beleza — interrompeu Angus, embora, até onde Kat sabia, nenhum deles jamais tivesse notado que ela era de fato uma representante do sexo oposto.
— Além disso — confirmou Hamish.
— E da sua mente — acrescentou Angus.
— Uma mente brilhante — concordou Hamish.
— Gente — disse Kat, sentindo sua paciência se esgotar —, o que aconteceu?
— Olha, Kat, a questão não envolve muito o quê... — falou Angus, deixando a palavra no ar.
— Mas sim quem — concluiu o irmão.
Angus se afastou, analisando-a em seguida.
— Você jura que não ficou sabendo? — Enquanto Kat balançava a cabeça, ele baixou os olhos. — Puxa, Kat, você tinha se mandado.
Mais do que a sensação de retornar à cozinha do tio Eddie, a expressão no rosto dos dois irmãos lhe dizia que era verdade — ela fizera mesmo aquilo. Katarina Bishop havia abandonado o ramo. Uma vez. Por algum tempo. Não tinha sido um sonho.
— O que aconteceu? — perguntou Kat.
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— Não foi tão grave, na verdade — falou Hamish. — Nós não devíamos...
— Eu vou ter que ligar para o tio Eddie? — ameaçou ela.
— Não sabíamos que elas eram freiras!
Havia uma regra mais antiga do que a do Chevolek Pseudonima. Uma verdade que nem mesmo o maior mentiroso do mundo poderia negar: você não pode dar um golpe num homem honesto. Mas, se der... Vai se arrepender.
— Estamos na lista negra, Kat — admitiu Angus, lançando um olhar cheio de culpa para o irmão. — O tio Eddie disse que vamos ter que ficar um tempo sem trabalhar, mas seu pai sempre foi legal com nós dois. Então, se você disser para a gente cair fora, a gente cai fora. E se você disser que a gente está dentro...
Kat ficou olhando para aqueles mesmos garotos que tinham surrupiado o primeiro dente que ela perdera na vida e tentado pedir um resgate por ele para a fada dos dentes. Os irmãos que uma vez haviam roubado um Tyrannosaurus Rex do Museu de História Natural — um osso de cada vez.
— Meninos, o tio Eddie não quer que ninguém faça esse serviço. — Kat se virou e começou a atravessar o casarão imenso, gritando no caminho:
— Vocês estão dentro!
Pouco depois, quando entrou na biblioteca, Kat soube que algo estava errado.
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Para começar, Simon parecia mais pálido do que o normal. Gabrielle estava deitada no sofá, com os pés para cima e um pano úmido na testa; seu cabelo estava consideravelmente mais crespo e, quando Angus colocou o balde de gelo ao seu lado, nenhum dos irmãos Bagshaw tentou espiar seu decote.
— Bem-vinda de volta — disse Hale. Kat viu que ele estava apoiado num banco perto da janela, nem sentado nem de pé, do outro lado da biblioteca. — Que bom que conseguiu se juntar a nós.
Ela sentiu o envelope deslizar contra sua barriga. Poderia jurar que conseguiu ouvi-lo raspando contra o jeans, tão alto quanto um grito num quarto silencioso. Mas eram apenas seus ouvidos pregando uma peça nela. Talvez seu autocontrole fosse mais uma das coisas que havia perdido durante a estadia na Colgan.
— Ah, estou bem, Kat — respondeu Gabrielle à pergunta que não tinha sido feita, com um gesto dramático de sua mão boa. — Tenho certeza de que as queimaduras nos meus pés vão sarar logo, logo.
Mas todos os outros continuaram calados. Ficaram apenas olhando para Kat, nenhum deles querendo ser o portador das más notícias.
— O que houve? — perguntou Kat, correndo os olhos pela biblioteca.
— Simon — disse Hale, deixando-se cair sobre um dos sofás de couro e colocando os pés para cima.
Em seguida, fez um sinal para que o rapaz começasse a falar.
— Os paramédicos garantiram que a tonteira vai passar com o tempo — comentou Gabrielle do sofá.
Todos a ignoraram.
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— Bem — começou Simon, devagar. Três laptops estavam dispostos à sua frente. O pequeno aparelho que ele havia levado para o Heniey estava conectado a um dos computadores e um diagrama tridimensional surgiu nas telas. — É... — prosseguiu ele, como se tentasse recordar o termo técnico correto — ... difícil.
— Eles me deram uma pomada maravilhosa para as queimaduras na ponta dos dedos — acrescentou Gabrielle.
Ninguém prestou atenção.
— Qual notícia você quer primeiro: a boa ou a ruim? — perguntou Simon.
— A boa — disseram Kat e Hale ao mesmo tempo.
— O Henley passou os últimos seis meses atualizando todo o sistema de segurança, que já era bom. Então, o novo sistema é...
— Achei que tivesse falado que ia dar a boa notícia — comentou Hale.
Simon assentiu.
— Uma mudança dessas não acontece da noite para o dia, então eles estão trocando o sistema galeria por galeria, começando pelas salas mais valiosas e...
— A Sala Romani não está no topo da lista? — adivinhou Kat.
Simon balançou a cabeça.
— Nem de longe. Se existe um lugar vulnerável no Henley é essa sala.
Kat passara horas se perguntando por que aquela sala do museu.
Ela sabia que não tinha sido uma escolha aleatória. Um ladrão como Romani teria um motivo para escolher aquela galeria no lugar da sala do Renascimento ou de qualquer outra do Henley, e lá estava ele. Ela sorriu.
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De certa forma, o mundo estava começando a fazer sentido outra vez.
— E a má notícia? — perguntou Hale.
Simon deu de ombros.
— Ainda é o Henley.
Levou um tempo para a ficha cair, para que todos percebessem a magnitude do que precisava ser feito. O sucesso no mundo de Kat dependia tanto dos detalhes que muitas vezes se perdia a noção da coisa como um todo. Mas Kat tinha consciência do que eles estavam fazendo. E, à medida que aquele momento se estendia, todos os outros pareceram ter também.
— O sistema de segurança deles é totalmente fechado — prosseguiu Simon alguns instantes depois. — Impossível de hackear de fora. Mas disso nós já sabíamos.
— Por que você não pula para as partes que nós não sabemos? — sugeriu Hale com impaciência.
— Certo — falou Simon, apontando para Hale como se essa fosse uma ideia brilhante. — Eles já trocaram toda a fiação do prédio. Coisa de última geração. Sério, é sensacional...
— Simon — ralhou Hale.
— Bem, essa, sim, é a má notícia — concluiu Simon. — É impossível hackear a rede deles. Mesmo que eu conseguisse chegar ao computador principal, não teria como assumir o controle do sistema.
— Espero que mais uma boa notícia ainda esteja por vir — acrescentou Hamish.
Simon sorriu.
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— Remodelar prédios antigos como o Henley é... complicado — disse ele, seus olhos brilhando.
— E...? — instigou Hale.
— E às vezes, quando eles instalam um sistema novo... — continuou Simon, mas Kat já estava entendendo.
— Eles deixam o sistema antigo no mesmo lugar que antes — concluiu ela. Kat olhou para Hale e os dois falaram juntos: — Como aquele serviço em Dubai.
Simon assentiu.
— Não estou dizendo que eu possa colocar o sistema antigo para funcionar, mas, se eu conseguir entrar numa sala de segurança máxima por 15 minutos e se estiver correto, essa será nossa porta de entrada para o coração do museu.
— Faça isso — disse Hale, e então parou de falar.
Em seguida, olhou para Kat e gesticulou como se dissesse “primeiro as damas”
Kat se voltou para a prima.
— E aí, Gabrielle, o que descobrimos?
Gabrielle a fuzilou com o olhar.
— Descobrimos que, na próxima vez que você quiser saber que tipo de mecanismos de segurança um lugar possui, pode... — mas ela não concluiu a frase enquanto caía de volta sobre o travesseiro. — O que eu estava dizendo?
Kat olhou para os irmãos.
— As grades da sala de exibição desceram 1,2 segundo após o contato — explicou Angus.
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— O saguão principal foi isolado menos de cinco segundos depois disso — acrescentou Hamish, cruzando as pernas. — Não vamos fazer nada que exija uma fuga rápida até a saída mais próxima, isso eu garanto.
— É — concordou Angus. — Aqueles seguranças do Henley não pareciam do tipo que nos permitiriam sair pela porta da frente com cinco quadros debaixo do braço em plena luz do dia.
— Mesmo que os quadros não sejam deles — disse seu irmão.
— Maravilha — falou Gabrielle do sofá. — Estraguei minhas unhas à toa.
— Não foi à toa — disse Kat. — Graças a você, Gabs, acabamos de descobrir algumas maneiras de não roubar o Henley.
— Mary Poppins? — sugeriu Hale quatro horas depois.
— Você conhece algum jeito de fazer chover entre hoje e quinta? — retrucou Gabrielle.
— Escuridão às Cinco? — perguntou Hamish.
— Os geradores de emergência nos dão apenas 15 segundos — disse Simon, balançando a cabeça.
Eles já haviam repassado todas as táticas que conheciam, além de algumas que Kat imaginava que os irmãos Bagshaw tivessem inventado na hora, mas ela só se deu conta de como estava tarde quando Gabrielle conteve um bocejo. Kat estava absorvida demais por um relógio que não parava de tiquetaquear em sua cabeça. Um prazo. Um plano. Olhava para as listas e os diagramas que eles
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haviam feito por todo o vidro das janelas da biblioteca com um marcador e, depois que a carga dele acabou, com um delineador.
— É inútil — desabafou Hale, deixando-se cair num dos sofás de couro. — Se tivéssemos um mês... talvez...
— Mas não temos — disse Kat.
— E se tivéssemos mais umas três pessoas...
Kat fechou os olhos.
— Mas não temos.
— Princesa Prometida? — sugeriu Hamish, mas seu irmão se virou para ele e retrucou:
— Você por acaso sabe onde a gente poderia arranjar um homem com seis dedos assim, em cima da hora?
Kat conseguia sentir a atmosfera mudando, a esperança se esvaindo. Talvez eles estivessem cansados demais. Talvez simplesmente tivessem passado muito tempo enfurnados naquela biblioteca. Mas, ainda assim, pulou de susto quando ouviu Hale anunciar:
— Temos que ligar para o tio Eddie.
—Não.
Kat tinha pensado nisso, é claro. Mas precisou de um instante para perceber que a voz que havia respondido pertencia a Gabrielle.
— O tio Eddie disse não. Vocês não entendem? Se ele disse, então...
Ela deixou a frase no ar. Pareceu precisar de toda a sua energia para se sentar ereta no sofá.
— Nós temos que fazer isso — concluiu Kat.
Simon olhou para Kat.
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— E se for à noite? Romani fez o serviço à noite.
Se é que ele fez o serviço, pensou Kat, mas não ousou dizer. Não quis lembrar a ninguém, muito menos a si mesma, que poderia não haver nada atrás daqueles cinco quadros além dos dispositivos antirroubo mais sensíveis já desenvolvidos pelo homem. Que aquele poderia ser, em todos os sentidos, um esforço inútil, uma grande furada. O maior golpe dado pelo maior trapaceiro que nunca existiu.
— Está vendo esses planos, Kat? — Hale gesticulou para as janelas cobertas de rabiscos. — Um deles até poderia funcionar se tivéssemos a melhor equipe de oito homens no mundo. Só que — ele se virou e contou rapidamente as cabeças —, pois é, ainda somos apenas seis.
— Podemos conseguir com seis.
— Com seis fica arriscado.
— É — disse Kat, virando-se para ele. — Tanto quanto servir de facilitadora aos 5 anos quando papai roubou a Torre de Londres. Mas eu consegui.
Num dos cantos da biblioteca, Hamish e Angus estavam sorrindo.
— Bons tempos — comentou Angus.
— Você se atrasou hoje à noite — disse Hale, com a voz impassível, fria até.
Kat percebeu que aquela era a hora de lhe contar sobre as fotos. Ou fazia isso ou dava as costas e ia embora.
— Gabrielle — ela se virou e olhou para a prima —, obrigada. Beba bastante líquido para se hidratar. Simon — disse Kat enquanto tentava não olhar para Hale —, enquanto eu estiver fora, descubra como colocar nossos olhos e ouvidos lá dentro.
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— Pode deixar — falou Simon. — Nós poderíamos executar um... espere um instante. Aonde você vai?
Quando Kat chegou à porta, de alguma forma Marcus já estava lá, com uma mala nas mãos.
— Creio que a senhorita vá precisar de uma destas.
Hale deu um suspiro.
— Paris? — Ele desviou o olhar. — Mande minhas lembranças ao seu pai.
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5 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
PARIS,
FRANÇA
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Capítulo 21
Amelia Bennett não era a pessoa mais jovem na divisão de Roubos de Obras de Arte da Interpol a ter alcançado o posto de detetive. Também não era a única mulher ali. Mas, ainda assim, numa agência que era, sob todos os aspectos, parte de um sistema controlado por homens mais velhos, era impossível olhar para ela sem notar logo de cara que a detetive não pertencia ao clube. E isso só contribuía para a aura de mistério que a cercava desde que ela saíra de Londres para a sucursal de Paris. A coisa que mais intrigava os profissionais que solucionavam mistérios naquele pequeno braço da sede europeia da Interpol era o fato de Amelia Bennett ser tão sortuda.
E, naquela manhã, naturalmente, não foi diferente.
Assim que ela entrou no escritório abarrotado e nada glamouroso, um de seus colegas da velha guarda a deteve junto à porta.
— Você tem uma testemunha para aquele roubo da galeria — disse ele em inglês e a detetive Bennett não pareceu nem um pouco surpresa com o fato de seu caso antigo voltar à vida. — Uma garota americana — prosseguiu o homem. — Uma turista. Ela estava
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andando pela rua na noite da invasão. Disse que viu um homem suspeito na área.
Ao ouvir isso, a detetive Bennett ergueu as sobrancelhas.
— Esse homem é alguém que a gente conheça?
O colega da detetive sorriu, conduzindo-a até a sala em que a jovem estava esperando.
— Muito obrigada por vir falar conosco. Eu sou a detetive Bennett — disse a mulher. — Qual é o seu nome?
— Melanie O’Hara — respondeu a garota baixinha.
— O Henley?
Kat ouviu a voz de seu pai. Através do pequeno binóculo que sempre carregava, ela o via andar em meio à multidão na praça que lhe era familiar, com o celular colado ao ouvido, sem desconfiar de que sua filha estava no campanário da igreja, observando tudo.
— Que bela maneira de cumprimentar sua filha. Que tal: “Oi, querida. Como vai a escola?” — provocou ela.
Seu pai mantinha a mão esquerda enfiada no bolso, bem dentro do casaco de caxemira, e Kat pensou em como havia esfriado na última semana.
— O Henley? — perguntou ele de novo. — Sabe, alguém me disse que minha filha ia — ele se interrompeu e correu os olhos ao redor enquanto baixava a voz — roubar o Henley, mas só pode ser mentira. Minha filha está na Escola Colgan.
— Pai, eu...
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— Deixe o Henley em paz, Kat — falou ele de pronto. — Você não tem nenhuma prova para fazer? Nenhum baile para ir?
— E desde quando eu vou a bailes da escola?
— Kat, filhota, você não quer fazer isso.
— É claro que não quero, papai — concordou ela, sabendo muito bem como esse sentimento era verdadeiro e profundo. — Mas nós não temos saída.
— Nós? Quem exatamente você está chamando de nós?
— Hale. — Mesmo a um quarteirão de distância, ela viu seu pai fazer uma careta. — Simon. Gabrielle. — Kat queria manter a voz firme, inabalada. — Hamish e Angus...
— Os irmãos Bagshaw? — perguntou ele, sem esconder sua reprovação.
— Eles não sabiam que ela era uma freira!
Um vento frio soprou pela torre e desceu até onde seu pai estava.
— Então quer dizer que é isso? — perguntou ele. — Você reuniu sua própria equipe de ladrões de elite e agora vai roubar o Henley? — Ele se virou e começou a descer a rua movimentada. — Ligue para o tio Eddie, Kat. Diga a ele que acabou. Que você está fora.
— Acha mesmo que o tio Eddie me encarregou disso? — Ela observou suas palavras fazerem efeito. — Tem alguma dúvida de que ele já não pegou um avião e falou para eu deixar que ele cuide disso?
— Então deixe que ele cuide disso.
— Ah, claro — disse Kat, esforçando-se para conter uma risada. — Afinal, o tio Eddie sempre coloca os seus interesses em primeiro lugar, não é, papai?
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— Kat... — A voz do seu pai ficou mais branda. — Fique longe de Arturo Taccone. Ele...
— Está indo atrás de você.
— Eu estou bem, Kat.
— Por enquanto, papai. Você está bem por enquanto. Pode tomar café, ler jornal e fazer seu showzinho para qualquer agente da Interpol que o esteja seguindo no momento. Mas se Taccone não conseguir os quadros dele de volta daqui a cinco dias, quando a Interpol não estiver vigiando e você se distrair, Arturo Taccone vai aparecer e você vai estar qualquer coisa, menos bem.
Ele balançou a cabeça.
— Você não tem como saber disso.
— Tenho, sim. — Kat se virou, recostando-se contra a pedra fria e áspera do campanário enquanto falava baixinho ao telefone. — Ele mesmo me disse.
Kat se virou de volta para a praça a tempo de ver o choque tomar conta do rosto de seu pai, seguido rapidamente pelo medo.
— Fique fora disso, Kat. Fique longe de...
— Tarde demais, papai.
— O que significa isso?
Quando as sirenes irromperam no ar frio e úmido que os cercava, Bobby Bishop nem sequer pareceu surpreso. Ele já havia aceitado aquilo fazia muito tempo, mas a consciência de sua filha não estava tão limpa. Ela teve calafrios.
— Significa que você foi um ótimo professor para mim.
— Robert Bishop?
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Kat ouviu a voz de Amelia Bennett com clareza pelo telefone. Observou seu pai analisar a mulher que vinha na direção dele, com seu corte de cabelo chique e seu casaco estiloso, e soube que, se não fosse pelo distintivo que ela trazia na mão, seu pai jamais imaginaria que fosse uma policial. Ou, para ser mais exato, uma agente da Interpol.
— Desligue o telefone e coloque as mãos nas costas, senhor — disse um lugar, não é, policial fardado, surgindo ao lado do pai de Kat.
Mas seu pai não se mexeu. Em vez disso, gritou:
— Não faça isso, Kat!
Ela observou o policial apanhar o telefone e ouviu seu pai gritar uma última vez:
— Volte para a escola, Kat!
E depois, nada. A cena na praça já parecia um filme mudo quando Kat Interpol que o falou: “Papai.” Mas ninguém a ouviu.
A multidão abriu caminho. Sirenes ressoaram. E, bem acima de todo aquele caos, Kat sussurrou:
— Me desculpe.
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Capítulo 22
Kat já gostara muito de Paris, mas, ao dar as costas ao pai naquela tarde, tomar conta as calçadas lhe pareceram tumultuadas, estranhas e frias demais. Ela queria ir para casa. Onde quer que isso fosse.
Sentiu alguém esbarrar nela enquanto esperava o sinal abrir numa esquina. Ouviu um “desculpe” baixinho, mas não se virou para ver quem havia falado sua língua naquela rua estrangeira.
É claro que, nas semanas seguintes, Kat voltaria a pensar nessa decisão aceitado aquilo diversas vezes, permitindo a si mesma se sentir pelo menos um pouco idiota. Verdade seja dita que a garota tinha muita coisa na cabeça na hora. Estava preocupada com o pai. Aflita com a possibilidade de a polícia descobrir que Melanie O’Hara e Katarina Bishop eram a mesma pessoa e de que o relato da primeira fosse bom o suficiente para que o pai da segunda fosse detido e ficasse longe de Taccone — mas não bom o suficiente para mantê-lo na cadeia.
Kat também estava apreensiva com o que o tio Eddie diria quando descobrisse que ela havia desrespeitado o código mais importante de qualquer ladrão (para não dizer o de qualquer filha).
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Levando-se em conta seu estado mental, seria compreensível que o instinto, e nada mais, tivesse feito Kat esbarrar no menino que, dois segundos antes, havia esbarrado nela.
Mas quem sabe, perguntou-se Kat mais tarde, não tenha sido o destino?
— Ela o encontrou, senhor? — disse o recepcionista ao passar pelo rapaz na escada do hotel.
O rapaz parou.
— Quem?
— A moça, senhor. Ela falou que era sua prima. — O recepcionista fez uma pausa, o receio aumentando em seu rosto. — Informou também que tinha uma chave, senhor. Sabia o seu nome e o número do seu quarto.
O recepcionista não notou a apreensão que lampejou por um instante nos olhos do outro.
— Ah, ótimo. Ela conseguiu chegar — mentiu o rapaz com tranquilidade enquanto processava a informação.
O recepcionista viu o jovem se virar e percorrer casualmente o corredor. Mas não viu a expressão chocada dele quando a porta do quarto 157, que estava destrancada, se abriu sem resistência alguma.
Tampouco viu quando a garota que estava sentada ali, com as pernas jogadas sobre um dos braços de uma poltrona, arqueou uma sobrancelha e disse:
— Seja bem-vindo.
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O elemento surpresa é uma das maiores armas que um ladrão pode ter, ou pelo menos foi nisso que Kat não pôde deixar de pensar quando viu o rosto do rapaz. Ele ficou parado ali, emoldurado pelo batente da porta de seu próprio quarto de hotel, olhando para ela, pasmo.
— O que foi? — perguntou Kat, fingindo não entender nada. — Não vai dizer um “Oi, tudo bem”? Ou um “Querida, cheguei”?
—Você.
Ele virou a cabeça e olhou para o corredor estreito e vazio, como se ela bis segundos tivesse acabado de vir correndo por ali e entrado no quarto.
— Acho que não fomos devidamente apresentados na rua. — Kat tirou as pernas de cima do braço estofado da poltrona. — Sou Katarina Bishop. Mas você já deve saber disso, se tiver olhado dentro da carteira no bolso interno esquerdo do seu casaco.
Ele tocou o bolso, como se quisesse confirmar que ela estava certa. E estava.
— Meus amigos me chamam de Kat. — Ela olhou o rapaz de cima a baixo.
— Não sei bem como você deveria me chamar.
No final do corredor, uma televisão estava ligada no último volume. Kat escutou uma apresentadora de telejornal anunciando a prisão de um suspeito do roubo de uma escultura valiosa de um museu da região. Ela se encolheu, torcendo para que o rapaz não tivesse escutado.
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— Como entrou aqui? — perguntou ele.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Você sabe bater carteiras.
A mão do rapaz voou em direção ao bolso de trás da sua calça.
— Eu sei arrombar fechaduras. Está procurando por isto aqui? — Perguntou Kat, erguendo a carteira dele. — Ops. Parece que também sei bater carteiras.
Kat estendeu a carteira para ele.
— Quer trocar? — perguntou e depois abriu-a e conferiu a identidade que havia lá dentro — Nicholas Smith. Dezesseis anos. Cidadão britânico. — Ela ficou olhando para a foto no documento e para o rapaz à sua frente. — Não é muito fotogênico.
Em seguida, saltou da poltrona e tirou sua própria carteira da mão frouxa do jovem. Jogou a dele em cima da cama de hotel.
— Como... — ele começou a falar, mas o olhar de Kat fez com que se ite calasse.
— Está estragando seu disfarce — disse ela com naturalidade.
Kat estava preparada para contra-argumentações e mentiras — para qualquer coisa exceto a visão do rapaz sorrindo e o som de sua voz dizendo:
— Nossa. Talentosa e bonita. É um prazer conhecer você, Katarina. — O garoto se sentou na beirada da cama e tirou um sapato. — Quantos anos você tem, só de curiosidade?
Kat não respondeu.
Em vez disso, ela se virou e passou os dedos pelas flores frescas sobre a mesa, encarando as cortinas de seda que bloqueavam a vista.
— Belo hotel. Você paga por ele aplicando pequenos golpes?
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O rapaz ergueu os olhos para ela. Ele tinha cabelos pretos curtos, olhos azuis radiantes e o tipo de sorriso que fazia você esquecer o que estava pensando.
— Entre outras coisas.
— E vem praticando há quanto tempo? — Kat tornou a encará-lo. — Dois anos? — chutou ela. A expressão satisfeita em seu rosto bastou para responder a pergunta. — Onde você aprendeu?
— Por aí — disse ele, encolhendo os ombros. — Fui pegando as manhas. Praticando.
Kat vinha “pegando as manhas” desde seu aniversário de 3 anos, quando o pai de Hamish e Angus os levou ao circo porque precisava “pegar emprestado” um elefante.
— Já foi pego alguma vez? — perguntou ela, ao que o rapaz tornou a encolher os ombros.
— Não pela polícia.
— Tem ficha corrida?
Ele balançou a cabeça.
— Faz parte de alguma equipe? — quis saber Kat.
— Trabalho sozinho.
Kat se perguntou se o rapaz que havia esbarrado nela numa rua de Paris era tão bom quanto ela pensava. E se ele sabia disso ou não.
Ela o analisou, imaginando se a parte que faltava do seu plano teria mesmo vindo andando ao seu encontro.
— E quer continuar assim?
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4 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
SOLAR WYNDHAM,
INGLATERRA
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Capítulo 23
De todas as coisas que deveriam estar dentro da zona de conforto de Katarina Bishop, entrar às escondidas numa mansão (especialmente naquela mansão) às 3 da madrugada era para ser uma das primeiríssimas da lista. Afinal de contas, Kat conhecia todos os segredos do sistema de segurança (porque ela mesma o recomendara). Conhecia também a casa, então sabia muito bem que as portas do pátio tinham sido pintadas de modo a ficarem sempre lacradas pela tinta e que as roseiras debaixo das janelas da sala de jantar contavam com uma quantidade especialmente desagradável de espinhos.
Mas, naquela noite, atravessar a porta de entrada da propriedade da família Hale foi muito semelhante a retornar à cozinha do tio Eddie. Ela sentia, outra vez, como se tivesse ido embora sem permissão e talvez jamais voltasse a pertencer àquele lugar.
Por isso, tentou se manter nas sombras. Torcia para que todos estivessem dormindo.
— Kat?
Ela parou no ato e xingou o piso barulhento.
— Kat, é você?
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A voz de Gabrielle soava aguda, estridente. Apesar da escuridão, Kat distinguiu com facilidade sua prima sentada no topo da escada. Ela abraçava os próprios joelhos. Seus cabelos estavam presos de forma caótica no topo da cabeça.
— O que houve? — perguntou Kat. — Aconteceu alguma coisa? Foi Taccone? Ele...
— É seu pai, Kat. Ele foi preso.
Uma luz se acendeu num dos quartos do andar de cima e Kat escutou vozes se aproximando.
Ela olhou para Gabrielle, torcendo para que sua prima entendesse.
— Eu sei.
— Você fez o quê?
Kat não saberia dizer quem falou primeiro, pois lhe parecia que todo
o grupo tinha feito a pergunta ao mesmo tempo. Nem mesmo sabia para onde olhar, porque cada par de olhos na sala de bilhar a encarava com conforto de tanta intensidade que era como ela tentasse fitar diretamente o sol.
— Foi uma decisão que precisei tomar sozinha — disse-lhes Kat.
— Então você foi à polícia? — perguntou Simon, como se tivesse conectado aquela informação à sua mente brilhante e os dados não batessem.
— À Interpol, na verdade — declarou Kat.
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— E entregou seu pai? — perguntou Angus.
— Ele está mais seguro assim. Confiem em mim.
— Mas você é a filha dele, Kat. — Os olhos de Hamish estavam arregalados. O tio Eddie vai matar você.
— Também sou a garota que está tentando desfazer o único serviço feito por um Pseudonima na nossa geração, Hamish. Nem o tio Eddie pode matar duas vezes.
Simon se deixou cair no sofá.
— Não acho que eu me daria bem na prisão.
Kat tentou não notar a maneira como Hamish e Angus agarravam seus tacos de bilhar ou o modo como Gabrielle ficou sentada em silêncio ao lado da janela, com a preocupação estampada no rosto.
— Gente, eu...
— Ela fez a coisa certa.
Aquelas eram palavras que ela jamais teria esperado ouvir, ainda mais da pessoa que as pronunciou. Hale se sentou em um divã e prosseguiu em sua defesa:
— Se isso não der certo e... — ele estava quase sorrindo — vai ser quase um milagre se der, então seu pai vai precisar da maior quantidade possível de obstáculos entre ele e Arturo Taccone.
Ele olhou para Kat. Uma espécie de vínculo se estabeleceu entre eles naquele momento e ela soube que ninguém iria contradizer Hale — nem duvidar dele. Ninguém iria brigar com os dois. Então, talvez o clima ruim se dissipasse naquele momento. E a tensão poderia desaparecer sozinha. Isso se um rapaz desconhecido não tivesse escolhido aquele momento para surgir no vão da porta e dizer:
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— Olá.
Simon saiu correndo em direção a um laptop que estava aberto no balcão do bar e o fechou com um estalo. Hamish jogou um casaco sobre a maquete do Henley disposta no chão, ao lado do sofá, mas Hale não moveu um só músculo. Ele apenas olhou para o garoto parado no vão da porta e de volta para Kat.
— Quem é esse cara? — indagou ele, indicando com a cabeça o rapaz, que mantinha a mão estendida.
— Oi, eu sou o Nick. Kat me disse...
— Para esperar lá fora — alertou Kat.
— E...? — perguntou Hale, sem desgrudar os olhos de Kat.
— Nick é um batedor de carteiras. Nós... nos esbarramos em Paris. — Kat queria parecer segura e no controle, como alguém que merecia estar ali. — Nick, esta aqui é a Gabrielle.
A prima acenou de forma quase imperceptível com dois dedos.
— Os irmãos Bagshaw, Angus e Hamish. Já lhe falei sobre Simon. E este aqui é o Hale — concluiu Kat. — Hale...
— Hale quer saber o que Nick está fazendo aqui.
Kat tentou detectar a ironia de sempre na voz de Hale, mas sabia que ele não estava achando a menor graça daquilo.
— Foi você mesmo quem disse, Hale — afirmou Kat, baixando a voz. — Precisamos de mais uma pessoa.
— De mais duas — corrigiu Hale. — Na verdade, eu disse que precisávamos de mais duas pessoas e ele...
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— Ele está dentro — anunciou Kat categoricamente. — Podemos fazer esse serviço com sete pessoas.
Kat olhou para sua equipe: Angus era o mais velho, Simon era o mais inteligente, Gabrielle era a mais rápida e Hamish era o mais forte. Mas Hale era o único disposto a falar o que todos os outros estavam pensando.
— Eu sabia — disse ele, dando as costas para Kat. — Eu sabia que deveria ter ido com você. Primeiro conta uma história fajuta sobre seu pai para a polícia...
— Para a Interpol — corrigiram Hamish, Angus e Simon.
— E depois me aparece com isso? — irrompeu Hale, apontando para Nick como se o garoto não estivesse ouvindo. Como se Kat fosse uma amadora. Uma idiota.
Kat balançou a cabeça, desejando poder assegurar a todos que ele estava errado.
— Posso falar com você lá fora um minuto? — disse ela.
Kat fuzilou Hale com os olhos, então andou até as portas do pátio, saindo para a varanda.
Enquanto Rale fechava a porta às suas costas, Kat escutou Angus dizer:
— 1h, mamãe e papai vão brigar agora.
Lá fora, o ar estava gelado. Ela se arrependeu de não ter pegado um casaco e desejou que Rale passasse seu braço em volta dela e a provocasse por trazer para casa vira-latas e causas perdidas. Mas o tom dele era qualquer coisa, menos caloroso.
— Esse serviço é pessoal demais para você, Kat. Está muito envolvida para pensar...
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— Eu sei — rebateu ela, praticamente gritando. — É claro que é pessoal. É a minha vida, Rale. Minha. Meu pai. Meu serviço. Minha responsabilidade.
— Sem dúvida.
Ele parecia muito calmo e indiferente, O oposto dela.
— Sei o que estou fazendo, Rale.
— É mesmo? Porque eu poderia jurar que, nas últimas 24 horas, você entregou seu pai...
— Cinco minutos atrás você achou que essa era uma ótima ideia — recordou ela.
Hale prosseguiu:
— ...para a polícia e trouxe um estranho para cá.
— Nick é bom, Rale. Ele esvaziou meus bolsos e nem percebi.
Hale balançou a cabeça.
— Péssima decisão, Kat. Se o tio Eddie estivesse aqui...
— O tio Eddie não está aqui — esbravejou ela. — O tio Eddie não vai estar aqui.
Sua voz falhou, mas Hale ou não percebeu ou não se importou.
— O tio Eddie impediria você.
Kat o encarou, percebendo a indiferença fria em seus olhos.
— Então é isso que você vai fazer? — perguntou ela. — Vai me impedir?
Ela queria que Hale dissesse: “É claro que não.” Mas, em vez disso, ele a fitou bem dentro dos olhos e falou:
— Talvez eu devesse fazer isso. — Ele se aproximou. — Esse cara...
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— O quê, Hale? — gritou Kat, mais alto desta vez. — O que tem ele?
— Ele não é da família.
— Ah, tá... — Kat deu um suspiro. — Nem você.
Katarina Bishop era uma criminosa. Mas nunca havia empunhado uma arma. Nunca tinha dado um soco sequer. Até aquele momento, não sabia qual era a sensação de machucar alguém e, assim que viu a expressão no rosto de Hale, teve vontade de retirar suas palavras.
E desejou poder fazer com que machucassem ainda mais.
As duas coisas ao mesmo tempo.
Então, voltou para dentro da casa, incapaz de fazer qualquer uma das duas coisas.
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Capítulo 24
Gregory Reginald Wainwright ainda era relativamente novo no Henley. Não que nove meses não tivessem sido tempo mais do que suficiente para tirar seus artigos pessoais das caixas e guardá-los dentro das gavetas. Nesse meio-tempo, ele conseguira aprender os nomes de quase todos os seguranças e guias voluntários que trabalhavam entre as 10 e as 18 horas. Mas a lua de mel, como se costuma dizer, estava quase chegando ao fim para o novo diretor do museu. Logo o conselho começaria a pedir para ver os relatórios trimestrais e questioná-lo a respeito do nível das doações, dos excedentes orçamentários e, é claro, do homem chamado Visily Romani.
Essas eram as preocupações que povoavam a mente do diretor, impedindo que ele se concentrasse em ler o jornal naquela manhã de sexta. Talvez tenha sido por isso que ele não se importou com a distração quando o interfone em sua mesa começou a tocar.
— Sr. Wainwright — disse sua assistente —, tem um rapaz aqui que gostaria de conversar com o senhor.
Ele resmungou. O Henley estava sempre cheio de rapazes. E de moças, também. O que não passava de uma maneira educada de se dizer pirralhos. Eles derramavam refrigerante na cafeteria e deixavam marcas de dedos no vidro do átrio. Enchiam ônibus de
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excursões ao museu a cada dia do ano letivo, atravancando as exibições, falando alto demais e forçando o diretor do Henley a se retirar para o santuário do seu escritório com seu chá e seu jornal.
— Sr. Wainwright? — A voz da assistente pareceu mais urgente dessa vez. — Devo mandar o rapaz entrar? Ele não tem hora marcada, mas está perguntado se o senhor poderia lhe dar um minuto do seu tempo.
Gregory Wainwright começou a pensar numa resposta — numa desculpa —, mas, antes que pudesse alegar que estava esperando uma ligação importante, sua secretária acrescentou:
— O nome dele é W. W. Hale V.
— Ele é bom?
Kat sentia a respiração quente de Nick contra a orelha. Eles estavam perto demais, pensou ela, enquanto observavam ao longo dos saguões do museu em direção a uma porta sem placa, onde dois corredores formavam uma interseção em forma de T. Alguém vai notar, pensou Kat, preocupada. Alguém pode desconfiar de alguma coisa. E ainda assim ele continuava atrás dela, espiando enquanto a porta do escritório particular do diretor se abria e um homem ligeiramente calvo, barrigudo e desajeitado surgia lá de dentro, acompanhado de um rapaz que era o seu oposto em quase todos os aspectos.
Kat observou Hale segurar a porta aberta para o homem mais velho passar. Duvidava que qualquer um que não fosse um profissional calejado notasse o pedacinho de fita que ele colocou no trinco e o breve olhar que lançou na direção dela.
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Com isso, Kat soltou a respiração e disse:
— Sim. Ele é bom.
O que pensou, porém, foi: Ele ainda está com raiva.
O diretor tirou um pequeno cartão do bolso interno do paletó e o passou num leitor eletrônico. O Henley possui um sistema de segurança de última geração, dizia o gesto. Nenhuma obra de arte está tão segura quanto as deste museu, independentemente do que você possa ter lido nos jornais.
Mas é claro que ele não sabia sobre Hale e sua fita adesiva.
Quando o homem devolveu o cartão ao bolso do paletó, Kat se voltou para Nick.
— Você viu? — perguntou ela.
Nick fez que sim com a cabeça.
— Bolso interno esquerdo. — Ele relaxou a postura e abriu um sorriso. — Sorte que eu sou canhoto.
— A sorte, meu caro, não tem nada a ver com isso — disse Gabrielle com uma voz indiferente enquanto passava.
Não havia flerte ou gracejo algum em seu tom. Totalmente compenetrada, ela passou rebolando rumo ao final do corredor e disse:
— Venham comigo, por favor.
Na mesma hora, o pequeno ponto no ouvido de Kat começou a chiar. Era como se um bando de pássaros estridentes tivesse se aninhado em sua cabeça enquanto um grupo de 150 crianças se reunia atrás de Gabrielle, seguindo-a pelo pequeno corredor.
O barulho era ensurdecedor. Kat e Nick se encostaram na parede, abrindo caminho para as crianças.
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— Pedimos desculpas pelo incômodo — gritava Gabrielle para os professores que encabeçavam o grupo. — Hoje vamos começar todas as visitas pelo jardim das esculturas.
Em seu ponto, acima da gritaria das crianças, Kat ouvia Hale conversando com o diretor sobre Londres. Sobre a chuva. Sobre sua busca incansável pelo prato perfeito de peixe com batatas fritas. Os seguranças no final do corredor estavam grudados à parede, esquecendo-se temporariamente de suas obrigações em meio ao caos que vinha no encalço de Gabrielle.
— Angus, Simon, podem ir — sussurrou Kat.
Os seguranças não viram a porta sem placa ser aberta com facilidade. As crianças do grupo não perceberam quando dois garotos que ninguém nunca tinha visto na vida sumiram de repente do meio delas.
— Entramos — falou Angus no ponto de Kat um segundo depois. As crianças continuaram andando, movendo-se pelos corredores do Henley como uma maré, mas quando Kat se virou para ir embora tomou a direção oposta.
Katarina Bishop não seguia ninguém.
— Vocês sabiam que já existiu um Visily Romani?
— Trate de vigiar a porta, Hamish — alertou Kat.
— Estou de olho, Kitty. Não se preocupe. Mas, como eu ia dizendo, esse tal de Romani era o melhor ladrão do pedaço. Até o dia em que ele caiu de cima de uma torre de vigilância...
199
— Ouvi dizer que ele se afogou. — A voz de Angus encheu o ouvido de Kat, cortando seu irmão.
— Quem está contando a história sou eu — reclamou Hamish.
— Simon — chamou Kat, olhando ao redor dos corredores tumultuados. — Vai precisar de mais quanto tempo?
— Quinze minutos — foi sua resposta.
— Mas Romani não morreu de verdade, entendeu? — prosseguiu Hamish, sem se deixar intimidar. — Bem, tecnicamente falando, ele morreu, mas...
— Hamish, você está vigiando a porta ou não? — repreendeu Gabrielle, entrando na conversa enquanto seguia Hale e o diretor do Henley a uma distância respeitosa.
— Estou, gata. Não tem ninguém por perto. Então, como eu ia dizendo, ele morreu, mas reencarnou, sacou? Cada geração tem um novo Romani.
— Não é nada disso, Hamish — tentou esclarecer Kat.
— Você viajou — disse Angus, sempre bancando o irmão mais velho. — O Romani original se afogou. E ele reencarna de duas em duas gerações.
— Gente... — alertou Kat.
Então algo a deteve. Não conseguiu mais dar bronca nos irmãos Bagshaw e mal conseguiu falar quando percebeu como Nick estava perto dela, olhando-a como ela nunca tinha sido olhada antes.
— Nick, você mora em Paris há muito tempo?
Ela se afastou da estátua que os dois estavam fingindo admirar, feliz por ter para onde fugir.
O rapaz deu de ombros enquanto acompanhava seus passos.
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— Fico lá e cá.
Kat sentiu uma pontada de algo... Seria incômodo? Mas talvez fosse outra coisa.
— Mas seu sotaque não é 100 por cento britânico, é? — perguntou Kat.
— Meu pai era americano. Minha mãe é inglesa.
— E ela não vai achar estranho o seu sumiço repentino?
Nick correu os olhos pela coleção de estátuas antigas do Henley e balançou a cabeça.
— Tenho alguns dias.
— É tudo de que precisamos — comentou Kat.
Nick parou no meio de um passo e sorriu para ela.
— Bem, então é isso que vai ter, Srta. Bishop.
Kat ficou espantada com essas palavras. Ou talvez não tenham sido as palavras em si, mas a maneira como ele as disse. Ela o analisou, tentando enxergá-lo de todos os ângulos possíveis.
— Espere aí — disse ele, sem tirar aquele sorriso enigmático do rosto. Então voltou a andar, um turista como outro qualquer. Um rapaz como outro qualquer. — Esperava mesmo que eu não fosse investigar você? Que não fosse descobrir que você é a Katarina Bishop?
— E como exatamente alguém faz para me “investigar”?
Kat sentiu que estava ficando vermelha, mas não sabia muito bem por quê.
— Só porque trabalho sozinho não significa que não tenha meus contatos. Mas, pelo que ouvi falar, você tinha se afastado do ramo.
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— Eu não... — Kat balançou a cabeça e então tentou novamente, com mais firmeza desta vez. — Ainda estou me afastando.
Eles percorriam o grande pátio e atravessavam os grupos de pessoas que começavam a se dispersar, distribuindo-se de forma mais equilibrada entre as várias seções do museu. Quando passaram pela sala do Renascimento, Kat notou que ela já não era mais negligenciada. Turistas haviam se reunido em volta da última obra-prima de Da Vinci como se o mundo estivesse se endireitando, voltando a entrar nos eixos.
— E aqui temos o Anjo retornando ao Paraíso, de Leonardo da Vinci — declarava um guia voluntário a uns 3 metros de distância. — Adquirido em 1946 pela própria Veronica Henley, é considerado uma das obras de arte mais valiosas do mundo. Aliás, de acordo com ela, é a mais valiosa. Quando repórteres lhe perguntaram logo antes de sua morte que pintura ela preferiria ter em sua coleção, se este quadro ou a Mona Lisa, a Sra. Henley disse: “O Louvre pode ficar com a dama de Da Vinci. Eu tenho o anjo dele.”
O grupo de visitantes seguiu adiante e Kat se aproximou da tela.
— Está tentada? — perguntou Nick.
O quadro era bonito? Sim. Era valioso? Bastante. Mas, enquanto olhava para uma das pinturas mais importantes do mundo, Kat não pôde deixar de se surpreender com o fato de que não sentia quase nenhuma tentação.
E não só porque se tratava de uma peça quase impossível de ser roubada ou porque seria praticamente impossível revendê-la, até no mercado negro.
Não era por nenhum dos motivos que um bom ladrão poderia dar. Seus motivos, concluiu Kat, eram os de uma boa pessoa.
— Mas você já fez serviços grandes antes, não fez? — perguntou Nick.
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Kat deu de ombros.
— Grande é um termo relativo.
— Você e seu pai roubaram a Bolsa de Valores de Tóquio no ano passado, certo?
Kat sorriu, mas não respondeu.
— Teve também o serviço na Embaixada em Paris...
— O que você quer realmente perguntar, Nick?
Ele demorou alguns instantes para balançar a cabeça e dizer:
— Por que aquele serviço na Colgan?
— Não foi um serviço. Foi mais uma... mudança de vida.
Nick olhou para Kat sem entender, então ela acrescentou:
— Uma maneira de expandir meus horizontes acadêmicos.
Nick riu.
— O que uma pessoa como você poderia aprender num lugar daqueles? Aqueles adolescentes são só... adolescentes.
— Eu sei — disse Kat, retomando o passo. — Esse era mais ou menos o plano.
— Está vendo, Sr. Hale, esta é a ala que o seu Monet chamaria de lar. Hale observou a maneira como Gregory Wainwright estendia os braços, como se a parede inteira estivesse à sua disposição e bastaria pegar o que quisesse. Hale já tinha visto esse gesto antes, é claro. Devia ser o que o levava a achar a ideia de pegar tão sedutora.
— Já abrigamos obras maravilhosas de algumas das melhores famílias do mundo — prosseguia o diretor enquanto Hale se virava para analisar o espaço fabuloso, como se estivesse entediado.
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Ele transpirava indiferença, O que lhe parecia quase fácil demais, afinal de contas esse era o papel que ele havia nascido para desempenhar. Mas então o diretor olhou para seu relógio e disse algo sobre a hora, e Hale sentiu que o interesse dele estava diminuindo.
— Diga-me, Sr. Wainwright — começou Hale, apontando para uma tela muito bonita de Manet —, que tipo de garantia eu teria de que meu quadro não será danificado de jeito nenhum?
O diretor chegou a dar uma risadinha enquanto se virava para encarar o rapaz ao seu lado.
— Somos o Henley, meu jovem. Utilizamos apenas as medidas de proteção mais avançadas...
— Guias ou seguranças no recinto a todo momento quando o museu está aberto?
— Sim.
— Protocolos anti-intempéries da Federação Internacional de Museus? — perguntou Hale enquanto o homem andava em direção à saída. — Nível Ouro?
O diretor pareceu insultado.
— Nível Platina.
— Códigos magnéticos ativados por sensores em cada uma das saídas?
— É claro. — O diretor parou de andar. Pela primeira vez desde que havia conhecido aquele jovem, Gregory Wainwright ousou encará-lo como se ele não passasse de outro adolescente irritante. — A propósito, por falar em proteção, sinto muito, mas tenho uma reunião muito importante às 10 horas com nosso chefe de segurança.
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Através do seu ponto, Hale ouviu Kat perguntar o que ele queria saber de verdade.
— Você está pronto para ter companhia, Simon?
— Cinco minutos — respondeu ele a uma ala de distância.
O diretor continuou falando.
— Posso lhe garantir que nosso departamento de aquisições está habituado a aceitar quase todo tipo de pedido, portanto, se o senhor estiver disposto a dar entrada na papelada, talvez devêssemos...
— Ah, mas não vim aqui para dar entrada na papelada.
Hale parou bem no meio do caminho do diretor, enquanto admirava um belo quadro de Pissarro dando a entender que ele possuía telas duas vezes melhores em casa. O que, por sinal, era verdade.
O diretor do museu soltou uma risada nervosa.
— Perdão, senhor. Achei que estivesse interessado em deixar o Monet de sua família em exibição temporária aqui no Henley.
— Não — limitou-se a dizer Hale, entrando na frente do homem e fazendo-o parar, mas apenas por um instante. — Eu não quero deixar o Monet da minha família no Henley.
— Desculpe-me, Sr. Hale. Agora fiquei confuso. O senhor está aqui por causa... — encorajou o diretor.
— Da minha gata — informou Hale, concluindo a frase do homem enquanto olhava para os dois lados do corredor, na direção de Kat e de Nick, que estavam separados por cerca de 70 metros e observavam a cena,
boquiabertos. Mas Gregory Wainwright continuou assentindo, esperando o jovem bilionário concluir. — Estou aqui por causa dela.
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É possível que a maior parte dos homens de negócios de meia-idade ficasse sem ação diante de uma justificativa tão extravagante vinda de um rapaz como aquele. Mas Gregory Wainwright estava acostumado com os hábitos estranhos dos mais abastados, de modo que fez que sim com a cabeça, depois sorriu e perguntou:
— O senhor está falando de uma gata?
— Isso — concordou Hale.
Kat notou que Hale estava se tornando um elemento infiltrado bem razoável. Isto é, quando seguia o combinado. Infelizmente, Hale nunca fazia isso. E o que era pior: Gregory Wainwright tinha começado a andar, forçando Hale a segui-lo.
— A questão, Greg, é que minha mãe está passando por uma fase felina. Binky é uma gata persa — disse Hale, como se isso explicasse tudo. — Ela tem o péssimo hábito de afiar as garras em toda a mobília da sala de estar, entende?
Gregory Wainwright assentiu como se compreendesse perfeitamente.
— Então, tivemos que comprar móveis novos para a sala, que, infelizmente, não combinam com o Monet.
Kat ficou parada ali por um instante, olhando através daquela pequena janela para um mundo em que as pessoas se cansavam de um Monet simplesmente porque ele não combinava com o sofá.
Mas talvez a parte mais estranha fosse que, para Gregory Wainwright, e até para o próprio Hale, a história não parecia nada incomum. Kat pensou no quarto e na casa vazia da mãe de Hale — em todas as coisas de valor que aquela mulher tinha e das quais nunca sentia falta.
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— Ele é bom mesmo. — Nick olhou para Kat, que não conseguiu deixar de sorrir. — Há quanto tempo vocês estão juntos? — perguntou Nick e, num piscar de olhos, Kat já não estava mais sorrindo.
— Não estamos juntos — respondeu ela sem pensar.
Na mesma hora, desejou ter falado outra coisa. Algo evasivo. Algo inteligente. Mas era tarde demais. Já havia soado como uma menina boboca e como uma péssima mentirosa: duas coisas que nunca tinha sido na vida.
— Quero dizer, há quanto tempo estão trabalhando juntos? — corrigiu ele. Então abriu seu sorriso ligeiramente pateta. — Mas também é bom saber disso.
Antes que ela pudesse sequer refletir sobre essa última frase, passos começaram a ecoar no corredor que levava ao escritório do diretor.
— Simon? — perguntou Kat, mas, antes que ele pudesse concluir seu “ Só mais um minuto!”, aconteceu algo que ela nunca tinha vivenciado em qualquer outro serviço.
O diretor e Hale se aproximavam rapidamente e, para a surpresa de Kat, Nick também.
— Pare — sussurrou ela, começando a se virar, a pensar, a trabalhar. Mas, também sem perder tempo, Nick agarrou seu braço e a puxou para junto de si enquanto falava baixinho: “Calma.” E, antes que Kat pudesse cogitar uma tática de distração sequer, ela estava nos braços de Nick, que a beijou bem ali, no meio do corredor do Henley.
Bem na frente de Gregory Wainwright e Rale.
Ela percebeu vagamente os dois parando antes que pudessem dobrar o corredor — e apanhar Simon no ato. Teve certeza de que
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ouviu o diretor murmurar algo muito parecido com “Crianças se beijando nos meus corredores...”.
Através do seu ponto, ouviu Angus falar:
— Já saímos.
Mas a voz que Kat mais queria ouvir era a de Hale.
Ela se afastou de Nick no exato momento em que Hale disse, num tom mais do que casual, totalmente inabalado:
— Para dizer a verdade, Sr. Wainwright, antes de lhe prometer qualquer coisa, eu gostaria de ouvir do senhor que não há nada a temer quanto àquele tal de... — ele estalou os dedos, como se tentasse recordar o nome — .Visily Romani.
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Capítulo 25
A pesar do que diziam as más línguas, a Sra. W. W. Rale III não havia acrescentado um grande solário à propriedade da família na Inglaterra porque era moda na época nem para competir com a Sra. Winthrop Covington II, que havia feito um acréscimo semelhante ao seu solar a uns 5 quilômetros de distância dali. Não, a avó de Hale tinha ordenado a construção daquele cômodo em especial por dois motivos fundamentais primeiro, ela odiava sentir frio. E, segundo, amava de paixão o gigantesco foyer envidraçado do Henley. Forjado.
Quando Kat se reuniu com sua equipe na casa de Hale, naquela noite, no aposento cercado de vidro, tomando sopa e comendo sanduíches, discutindo tudo o que eles haviam descoberto, perguntou-se se mais alguém além dela estava impressionado com a ironia.
— Qual é a nossa situação, Simon? — perguntou Gabrielle.
Simon, completamente absorto diante dos pequenos dispositivos eletrônicos e fios que cobriam a mesa, demorou um pouco para responder.
— Nós temos o vídeo.
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Ele girou o computador e lá estava, em cores e a partir de um ângulo bastante desfavorável, Gregory Wainwright.
Uma voz feminina aguda cortou o ar:
— O Sr. Wainwright?
Simon ficou radiante.
— E o áudio — concluiu ele.
— Ótimo trabalho, Simon — disse Gabrielle, dando-lhe um beijo na bochecha.
— Eu ajudei — recordou Hamish, inclinando a bochecha para ela, mas Gabrielle não seria tão generosa assim.
— Sr. Wainwright? — disse a voz da secretária através do interfone, ao que homem na tela se mexeu.
— Ele está tirando uma soneca! — constatou Gabrielle, rindo.
— O que nós precisamos saber sobre ele, Hale? — perguntou Kat. — Além do fato de que gosta de cochilar no escritório.
— Ele é um executivo. Então, se preocupa com coisas típicas de executivo — informou Hale, deixando claro que era um especialista no assunto. — Doações, fluxo de receita... — Ele fez uma pausa e até os irmãos Bagshaw pararam para escutar — . . .publicidade.
Eles estavam cercados de vidro por três lados. Plantas bem cuidadas se espalhavam ao seu redor e Kat sentia o vigor que o excesso de oxigênio e de possibilidades costuma proporcionar.
— Nosso amigo Romani dificultou bastante a vida do Sr. Wainwright — comentou Hale com um sorriso. Ele se recostou numa cadeira de ferro forjado, que Kat imaginava ser tão antiga quanto a cúpula de vidro que os cercava. — A explicação oficial é a que nós já ouvimos: que foi uma brincadeira de mau gosto, um erro do pessoal da limpeza. Ou seja, o de sempre.
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— Mas e extraoficialmente? — perguntou Angus.
— O Henley é assombrado — respondeu Hale.
A tela mostrava a secretária entrando no escritório. Ela trazia um bloquinho de papel nas mãos e tagarelava sobre um evento para arrecadar fundos, um aquecedor com defeito, um novo registro de visitantes e a avaliação anual das normas de proteção contra incêndios do prédio. E, durante todo esse tempo, Gregory Wainwright ficou meneando a cabeça com impaciência, louco para voltar ao cochilo.
— Estão com medo... — Kat começou a falar.
Ela se levantou. Era bom esticar as pernas. Enquanto andava pelo solário, ela se perguntou como seu pai roubaria o Henley. Em seguida, pensou em como o tio Eddie executaria aquele serviço. E, finalmente, em como sua mãe agiria. Mas apenas um ladrão havia feito o que ela estava tentando desfazer, então, no fim das contas, Kat tentou pensar como Visily Romani.
— Estamos dificultando as coisas — disse Kat, mais para si mesma do que para qualquer outra pessoa ali. — Não queremos roubar do Henley, mas sim dentro do Henley.
Ela começou a andar a passos largos.
— Eles estão com medo — repetiu, parando e se voltando para Hale. — Não é?
Ele fez que sim com a cabeça e se inclinou para a frente, pousando os cotovelos nos joelhos, e algo nesse gesto fez Kat se lembrar do pai. Ela apontou para as plantas do prédio.
— Então vamos dar um motivo para eles ficarem apavorados.
Um silêncio perplexo tomou conta do solário enquanto cinco dos maiores ladrões adolescentes que o mundo jamais conheceria a encaravam e, por fim, diziam:
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— Fogo na Floresta.
— Pode dar certo — disse Simon.
— Vai dar certo — acrescentou Gabrielle.
Angus chegou até a levantar a mão, como se Kat fosse uma professora.
— Tudo bem, mas isso ainda não dá conta de como vamos sair carregando cinco telas do museu mais seguro do mundo...
— Mesmo que essas telas não pertençam a ele — relembrou Hamish.
— ...sem sermos notados — concluiu seu irmão.
Kat andou até o vidro. Tentou enxergar a noite lá fora, mas a vidraça havia se tornado um espelho na escuridão. Ela olhou para os reflexos deles, analisando-os um por um.
— Então vamos fazer com que eles nos notem.
Chamar aquilo de festa seria um exagero. Era mais uma desculpa para aliviar a tensão do que uma comemoração de verdade. Mas, quando Hamish encontrou uma vitrola antiga e uma coleção de discos de ragtime num canto do solário, a música realmente mudou o clima.
Talvez fosse o som penetrante dos trompetes reverberando no vidro. Ou talvez estivessem todos um pouco inebriados pela possibilidade (ou talvez pela ilusão) de que o plano pudesse dar certo. De qualquer forma, Simon acabou chamando Gabrielle para dançar e provou ser surpreendentemente bom. Angus desafiou
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Hamish a equilibrar um taco de críquete no queixo por dois minutos — e ele conseguiu.
E, durante todo esse tempo, Kat ficou sentada numa espreguiçadeira antiga, observando a festa. Hale estava sentado do outro lado do solário, olhando para ela.
— Ele odeia todo mundo ou eu sou um privilegiado?
Kat não precisou se virar. Conseguia ver Nick de pé acima dela, refletido no vidro. Ele esticou uma perna ao longo da espreguiçadeira e se afundou na almofada ao seu lado. De repente, Kat sentiu que estava chamando atenção, como se a espreguiçadeira fosse pequena demais para os dois.
Hale desviou o olhar.
— Você ainda não respondeu àquela minha pergunta — continuou Nick, dando um gole em sua bebida. — A que eu fiz hoje à tarde. — Ele inclinou a cabeça na direção de Hale. — Há quanto tempo vocês estão juntos?
Kat encolheu as pernas, sentando-se em cima delas para afastá-las de Nick.
— Ah, faz um bom tempo — disse ela.
E, por motivos que jamais compreenderia, não conseguiu parar de sorrir diante daquela lembrança.
Certas histórias os ladrões não contam — segredos do oficio, em sua maioria. Algo que possa incriminar um colega. Ou erros constrangedores demais para serem alardeados. A história de Kat e Hale não se encaixava em nenhum desses casos, mas ainda assim ela nunca falava no assunto. Naquele instante, Kat quis saber por quê. Ela o observou do outro lado do solário. Hale sorriu de volta de uma maneira que dizia que, apesar da música e da distância, tinha escutado — e estava pensando a mesma coisa.
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Os irmãos Bagshaw passaram dançando tango, Hamish com o braço direito em volta da cintura de Angus.
— Para mim, ainda foi o tio Felix — dizia Hamish.
— O homem naquela gravação parecia ter uma perna torta para você? — perguntou Angus com a bochecha colada à do irmão.
— O tio Felix machucou a perna? — perguntou Kat, ao que Hamish estremeceu.
— Um crocodilo — informou ele, parando no meio de um passo. — Os safados são mais rápidos do que parecem.
Os irmãos Bagshaw pareciam examiná-la.
— Sorria, Kat — disse Angus. — É um bom plano. O próprio tio Eddie não teria feito melhor.
Hamish ergueu uma taça imaginária.
— Ao tio Eddie.
Todos repetiram o brinde, a não ser o garoto ao lado dela.
— Quem é o tio Eddie?
Talvez tivesse sido imaginação sua, mas Kat poderia ter jurado que a agulha da vitrola deu um pulo. Por um instante, todos pararam de dançar.
Enquanto a equipe toda encarava Nick, Hale abriu um sorriso maldoso para Kat, desafiando-a a explicar o inexplicável.
— O tio Eddie é... meu tio — Kat começou a falar como qualquer bom mentiroso começaria, contando um pouquinho da verdade.
— Nosso tio — acrescentou Gabrielle.
— Sim, Gabrielle — reconheceu Kat. — O tio Eddie é irmão do nosso avô. Ele é nosso tio-avô. — Ela apontou para si mesma e para Gabrielle. — Nós duas somos as parentes de verdade.
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— Bela indireta, Kat — disse Angus meio de brincadeira enquanto os dois irmãos passavam dançando.
— Os irmãos Bagshaw são, tipo... — prosseguiu Kat, lutando para encontrar as palavras.
— Nosso avô trabalhava com Eddie antes mesmo de ele ir para Nova York — explicou Angus.
— Você já ouviu falar do Grande Roubo de Petróleo em Dublin? — indagou Hamish com os olhos arregalados. — Teve também o sequestro daquele cachorrinho que a rainha Elizabeth ia botar para cruzar com todas as que as outras cachorras dela.
— Sendo que depois ela ainda recebeu o cachorro errado de volta — concluiu seu irmão.
Nick fez que não com a cabeça.
Os irmãos encolheram os ombros, como se Nick fosse um caso totalmente perdido, e voltaram a dançar tango. Nick se voltou para Simon, insatisfeito.
— E você? Como conhece esse tio Eddie?
Simon esfregou as mãos.
— Meu pai teve uma espécie de problema de fluxo de caixa quando estava no MIT. Foi quando ele conheceu...
— O meu avô — completou Gabrielle, puxando Simon pelas mãos, para levantá-lo.
— Nosso avô — corrigiu Kat, enquanto Simon dançava com Gabrielle e inclinava o corpo dela até o chão.
— Que era irmão de Eddie — completou Simon, estendendo a mão para a garota que agora estava estatelada no chão duro pela segunda vez em três dias.
Do outro lado do solário, Hale abriu um leve sorriso.
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— Podemos fazer um gráfico, se você precisar.
— Não, obrigado — disse Nick — Acho que já situei todo mundo, menos
— Ah. — Hale deu um sorriso forçado. — É simples.
Kat não estava se mexendo, tampouco dançando, mas seu coração parecia prestes a pular pela boca enquanto ela observava Hale se recostar, adentrando ainda mais as sombras, e dizer:
— Eu sou o cara que por acaso estava em casa na noite em que Kat veio roubar um Monet.
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Capítulo 26
Hale a encontrou no jardim, olhando para uma estatua de Prometeu que W.W. Hale I havia comprado na Grécia e transferido para o Solar Wyndham em algum momento antes da Primeira Guerra Mundial.
— Se eu fosse você, não tentaria roubar essa peça.
A voz veio de trás, mas Kat não se virou.
— O peso dificultaria bastante a operação — disse ela.
De esguelha, Kat ouviu parar ao seu lado com as duas mãos enfiadas no bolso, olhando para cima.
— Você precisaria de um guindaste — prosseguiu ele. — Que é algo bem barulhento.
— E grande.
— E que deixa trilhas horrorosas por todo o jardim.
Kat conseguia praticamente sentir o sorriso dele.
— E nos pátios também. — continuou ele.
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Não era a primeira vez que Kat sentia vontade de perguntar sobre a Colgan, sobre o Porshe e sobre como ele havia feito aquilo. Mas todo bom ladrão sabe que o único serviço que importa é o próximo serviço. Então Kat ficou calada em meio as roseiras, fontes e cercas vivas podadas com perfeição que se estendiam por mais de 10 mil metros quadrados como um labirinto. Estava no centro daquilo tudo nem um pouco surpresa por ter sido encontrada por ele.
— Ele roubou fogo dos deuses. — comentou ela sem entusiasmo, apontando para a estatua.
Hale suspirou.
— O Visily Romani daquela época.
Em comparação, nem mesmo Arturo Taccone parecia uma ameaça tão grande assim. A música estava mais alta e flutuava através do vidro em direção à noite. Lá dentro, alguém deu uma gargalhada. E Katarina Bishop estava parada com Hale no ar gelado, observando a névoa que a respiração dele produzia.
A mão de Hale encontrou a sua. Ela parecia grande e quente ao redor dos seus dedos frios. Era como se houvesse encontrado seu lugar. Então, com a mesma rapidez, Hale soltou sua mão e Kat percebeu que estava segurando um papel áspero e frio.
— Encontrei isto por aí.
Hale analisou o rosto de Kat enquanto ela olhava para o envelope de papel pardo que esperava nunca mais rever.
— Como você...?
— Debaixo do tapete do seu quarto, Kat. Fala sério — disse ele, rindo. Para uma excelente ladra, você é péssima para esconder as coisas.
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Ela não abriu o envelope. Já sabia muito bem o que havia lá dentro.
— A minha ficou muito boa. — Ele virou a cabeça. — Pegaram meu melhor ângulo.
— Nunca percebi que você tinha um.
Ele sorriu.
— Ah, acho que percebeu, sim. — Ele se aproximou. Os dois estavam quase se tocando quando ele disse: — Um pouquinho.
— Hale...
— Se eu matasse Taccone, isso ajudaria seu pai? — perguntou Hale.
Kat estava cansada demais para avaliar se ele estava brincando.
— Marcus faria o serviço — acrescentou ele. — Eu sempre lhe disse que as atribuições do cargo dele poderiam mudar a qualquer momento. Ou Gabrielle, talvez? Ela tem uma lixa de unha que é um verdadeiro canivete.
— E você já viu muitos canivetes nas praias chiques de Martha’s Vineyard?
— Ei, o pessoal do Iate Clube adora uma briga de rua.
Aquilo foi engraçado. Ele era engraçado. Kat queria rir. Tentou se forçar a rir. A dançar. A ser a garota que havia tentado — sem sucesso — ser na Colgan.
Em vez disso, afastou-se um pouco daquele rapaz gentil, engraçado e bonito que a havia seguido até a escuridão, de alguma forma trazendo a música consigo.
— Por que você está nessa, Hale?
— Como assim? — disse ele, ainda perto demais.
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— Você poderia fazer qualquer coisa — falou ela baixinho, olhando para baixo, querendo que ele a escutasse, mas sem vê-la. — Por que está nessa?
Kat sentia o braço quente dele contra o seu.
— Eu sempre quis roubar o Henley.
— Será que você pode falar sério por um segundo?
— Dance comigo.
— O quê? — perguntou Kat, mas os braços dele já estavam envolvendo sua cintura.
Hale apertava o corpo dela contra o seu.
— Dance. Vamos. Você consegue. Parece muito com atravessar uma trama de raios laser. É preciso ritmo. — Ele moveu os quadris ao som da música distante. — E paciência. — Então, girou-a lentamente e a trouxe de volta. — E só é divertido se você confiar no seu parceiro.
Ele inclinou seu corpo de forma tão lenta, tão suave, que Kat só percebeu o que estava acontecendo quando o mundo já havia virado de ponta -cabeça e o rosto de Hale estava a centímetros do seu.
— Conte comigo, Kat. — Ele a apertou com mais força. — Você deve sempre contar comigo.
Nas horas que se seguiram, a paz tomou conta do Solar Wyndham.
Marcus e Nick desapareceram dentro de seus respectivos quartos no terceiro andar. Os irmãos Bagshaw adormeceram no
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solário enquanto a vitrola tocava e a festa continuava em seus sonhos. Gabrielle fez as unhas e, para não perder a prática, bateu a carteira de Simon — duas vezes — antes de subir para se deitar.
Somente dois membros da festa não tiveram tanta facilidade para dormir.
Kat ficou um bom tempo sentada ao pé da escada, olhando para as foto- grafias, lembrando-se do que estava em jogo.
O tio Eddie estava sentado em seu banco favorito. Gabrielle estava mais bonita do que nunca. E Kat era obrigada a admitir que Hale tinha razão: a foto que Taccone havia tirado realmente pegara seu melhor ângulo.
Mas foi a fotografia de seu pai que ela ficou observando por mais tempo. Examinou a praça conhecida, as pessoas na multidão. Amelia Bennett estava lá, ao fundo, e de certa forma Kat se sentiu aliviada ao recordar que alguém ainda estava cuidando de seu pai, mesmo que ela não pudesse fazê-lo E foi aí que Kat viu outra pessoa.
Ela lutou contra o impulso de xingar e se sentir uma idiota. Em vez disso, ficou sentada onde estava e disse:
— Essa não.
Hale também estava acordado. Ele tinha ido até a despensa e fechado a porta. Em meio às latas de molho de tomate e sacos de farinha de trigo, sacou seu celular e discou um número.
— Tio Eddie — falou devagar. Então, respirou fundo. — Acho que preciso de sua ajuda. Quais são nossos contatos em Paris?
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3 DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
SOLAR WYNDHAM,
INGLATERRA
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Capítulo 27
Em seu sonho, Kat ouvia a música. Estava mais alta ali, longe do jardim, reverberando nas paredes de vidro e no piso de cerâmica. Ela procurou por Hale, mas ele tinha sumido, perdendo-se em meio à multidão que enchia o Henley. Esticou o pescoço, tentando encontrá-lo. Mas o sol que inundava o salão era muito forte e a música, alta demais. Mesmo assim, ninguém estava dançando.
— Hale! — gritou Kat. — Gabrielle!
Kat sabia que algo estava errado, mas era tarde demais para impedir...
— Hale! — gritou ela novamente, mas seu nome foi abafado pelo som que ecoava no átrio: um estrondo de trovão, seguido pelo clarão de um relâmpago.
Só que lá fora estava sol. Não havia nenhuma nuvem, nenhuma tempestade. E, ainda assim, chovia. De repente uma nuvem negra se formou, bloqueando a luz enquanto pessoas corriam, choravam e gritavam. Mas Kat ficou parada debaixo da chuva torrencial, olhando através da multidão que se abria para uma mulher de casaco vermelho-vivo e sapatos de verniz. A mulher retribuía o olhar.
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— Mamãe? — Mal dava para escutar a voz de Kat em meio às sirenes das viaturas policiais que se aproximavam e aos alarmes estridentes do museu.
— Mamãe! — Kat tornou a gritar.
Ela atravessou aos empurrões o mar de corpos, seguindo a mulher até o lado de fora.
Então, num piscar de olhos, o sol havia sumido. A noite caíra. A chuva começava a ficar muito fria e o casaco vermelho de sua mãe se destacava contra a manta de neve que cobria as ruas da cidade.
— Mamãe! — berrou Kat, mas a mulher não se virou. — Mamãe, me espere! Kat passou a correr mais rápido, tentando não cair, mas a neve estava profunda demais. Suas mãos ficaram geladas. E, ao longe, os alarmes continuavam tocando.
Eu deveria me esconder, ela pensou. Deveria fugir. Mas, em vez disso, seguiu os passos da mulher, procurando pela porta vermelha, pelo casaco vermelho.
— Mamãe!
A neve caía mais depressa agora, cobrindo as pegadas.
— Volte, mamãe!
Flocos de neve se agarravam aos seus cílios, descendo pelo rosto como lágrimas, enquanto o som das sirenes ficava mais intenso, mais próximo, tirando Kat de um sonho do qual ela não queria sair. Ela estendeu os braços como se houvesse alguma maneira de se agarrar à neve, à noite. Mas o barulho estava alto demais. Kat abriu os olhos, sabendo que sua mãe tinha partido e que não poderia segui-la.
Ela esticou a mão até a mesa de cabeceira e desligou o despertador. Então fechou os olhos, na esperança de que o sonho não tivesse desaparecido para sempre. Mas o quarto já estava
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banhado pela rara luz do sol britânica. Ela sentia o edredom pesado e quente envolvendo seu corpo na cama macia. Kat pensou na mulher de casaco vermelho e soube por que ela não havia esperado.
As filhas não devem seguir suas mães a determinados lugares.
Então Kat se virou de costas, olhou para o teto ornamentado, suspirou e disse:
— Fase três.
Quando Kat finalmente foi para o andar de baixo, Marcus estava ao lado das portas abertas do pátio, com uma bandeja de torradas numa das mãos e um rádio de comunicação na outra. Simon estava sentado no centro de uma mesa longa, cercado de laptops e cabos. Mas foi Nick quem chamou a atenção de Kat, ocupando a cabeceira, com Hale e Gabrielle cercando-o dos dois lados.
— Jamais faça uma pergunta quando souber que a resposta vai ser não — dizia-lhe Hale.
— Nunca se afaste do seu personagem, nem por um segundo — acrescentou Gabrielle.
— Você deve estar sempre no controle da conversa — aconselhou Hale.
— Mas o seu alvo deve achar que ele está no controle da conversa — completou Gabrielle, por sua vez.
Kat conhecia bem aquele discurso.
— E nunca, nunca... — começou Hale, mas Nick tinha se virado na direção de Kat, sorrindo e dizendo:
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— Bom dia. — Ele parecia totalmente em casa, à vontade. — Alguém teve o sono da beleza.
Gabrielle olhou para o cabelo bagunçado e o pijama amarrotado de Kat.
— Isso não é exatamente beleza — discordou ela, abrindo um sorriso maldoso para a prima. — Não me leve a mal.
Antes que Kat pudesse responder, espirais de fumaça escura subiram por detrás dos longos muros de pedra que ziguezagueavam pelos campos ao longe e uma voz arranhada saiu da mão de Marcus.
— Que tal agora? — perguntou Angus, parecendo extremamente satisfeito consigo mesmo.
Gabrielle apontou para cima com o polegar, então Marcus falou pelo rádio:
— Mais forte.
Nick lançou um olhar para Hale.
— Você não tem vizinhos? — perguntou.
Hale o ignorou. Sem responder, se inclinou para mais perto de Kat.
— Ele não está pronto — disse. — Eu deveria fazer isso.
Kat balançou a cabeça.
— Wainwright conhece sua voz.
— Posso imitar o sotaque.
Ela sorriu.
— Como naquela vez em Hong Kong?
Hale bufou com força.
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— Posso imitar o sotaque melhor dessa vez.
—Não.
Kat não estava a fim de discutir.
— Obrigado pelo voto de confiança, querida — agradeceu Nick com o sotaque londrino perfeito.
Ela viu Hale começar a falar, a contestar o novo status quo, mas então Simon disse “Hora do show” e virou um laptop enorme para que todos pudessem vê-lo.
Pela imagem na tela, dava para ver bem que Gregory Wainwright não era uma pessoa matutina.
Sua gravata estava torta demais para um homem num cargo tão eminente. O terno estava amarrotado. E, enquanto se arrastava em direção à mesa, parecia que seu maior desejo era voltar para a cama.
Hale olhou para Nick.
— Tem certeza de que está à altura da tarefa, novato?
— Ah — respondeu Nick com uma risada —, obrigado por se preocupar, mas acho que vou ficar legal.
— Sei — replicou Hale, sarcástico. — Bem, legal quando você está dando pequenos golpes e batendo carteiras é uma coisa, mas estamos falando de...
O rádio voltou à vida com um chiado.
— Com licença, senhorita — disse Marcus poucos instantes depois. — Os cavalheiros gostariam de saber se... — ele pigarreou — . . .aquele estrondo foi tão irado quanto eles acharam.
Kat não tinha escutado nada além do som da guerra discreta que estava ocorrendo ao seu lado, de modo que coube a Gabrielle se inclinar na direção do mordomo e dizer:
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— Mais fumaça. Menos estrondo.
Marcus transmitiu com obediência a mensagem.
— Pessoal — alertou Simon, abaixando o som do vídeo e apontando para o homem na tela, que agora conversava com sua assistente. — É hora do show — repetiu ele.
Mas nem Nick nem Hale pareceram notar ou se importar com aquilo enquanto se encaravam, sentados à mesa.
Ao longe, Angus seguia Hamish pelo terreno coberto de orvalho rumo à fumaça que subia em espiral e Kat se pegou sussurrando:
— Dois meninos correndo...
Hale ergueu os olhos. Somente ele parecia tê-la escutado e, com isso, fez o telefone deslizar pela mesa até Nick, ordenando:
— Ligue.
Eles viram Wainwright atender o telefone. Depois escutaram Nick dizer:
— Sim, Sr. Wainwright, aqui é Edward Wallace, da Binder and Sloan. Estou ligando para garantir ao senhor que esse problema lamentável com nosso aquecedor modelo Windsor Elite não é tão ruim quanto talvez tenham lhe informado. O chefe dos bombeiros nos garantiu que...
Na tela, eles viam Wainwright falar, mas somente Nick conseguia ouvi-lo.
— Minha nossa — falou Nick, piscando na direção de Kat. — Isso é mesmo constrangedor. Mas não se preocupe, Sr. Wainwright. Vou repetir o que eu disse para o criado pessoal de Sua Majestade hoje pela manhã: nós, da ser Binder and Sloan, somos responsáveis pela segurança e pelo conforto de alguns dos edifícios mais importantes do Reino Unido e não descansaremos até que cada aquecedor defeituoso tenha sido consertado.
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Wainwright se levantou para examinar os pequenos orifícios de calefação no piso do seu escritório, como se esperasse que eles fossem soltar labaredas a qualquer momento.
— Sim, senhor — disse Nick. — Estou vendo aqui que tenho uma equipe disponível para fazer esses reparos daqui a duas semanas, a contar a partir da próxima quinta-feira... Muito longe? É claro, senhor. É uma questão de prioridade máxima, sim, senhor. Naturalmente. Sim. Na primeira hora da segunda-feira, então. Combinado.
O chiado do rádio tornou a encher o ar e Marcus anunciou:
— Com licença, senhorita, mas os jovens cavalheiros dizem que é impossível fazer fumaça sem estrondo e gostariam que a senhorita os aconselhas- se sobre como proceder.
Porém, a mente de Kat ainda estava perdida num devaneio, nublada por com fumaça e fogo.
— Com licença — sussurrou Marcus. — Senhorita, os cavalheiros...
— São uns imbecis — completou Gabrielle, tomando o rádio da mão dele.
Kat observou a prima sair como um furacão, enquanto dizia com um suspiro irritado:
— Parece que tenho que fazer tudo sozinha.
Kat, Hale e Nick ficaram olhando enquanto ela partia. Outra explosão — ribombou ao longe enquanto Kat cruzava olhares com Hale e sussurrava:
— Mais forte.
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Capítulo 28
Às vezes, Katarina Bishop achava que tinha sido vitima de algum imenso erro genético. Afinal de contas, ela sempre preferiu vestir preto a cor-de-rosa e sapatos baixos a saltos altos. Enquanto ficava em pé, perfeitamente imóvel, em cima de uma das poltronas de seda do quarto de vestir da tataravó de Hale, tudo em que conseguia pensar era que talvez nem pudesse ser considerada uma mulher — pelo menos não se comparada a Gabrielle.
Ela baixou os olhos para a prima, que estava ajoelhada ao lado da poltrona com uma almofadinha de alfinetes numa das mãos e um celular na outra.
— É claro que quero ir à sua festa de noivado — disse Gabrielle com um suspiro ao telefone. — Sempre me divirto nelas, mas a senhora sabe como é a Suíça nesta época do ano. — Ela lançou um olhar incisivo para a prima. — Não, mãe, não vejo Kat há séculos. A senhora sabe que não somos muito próximas.
Gabrielle deu uma piscadela.
— Está curta demais — sussurrou Kat no exato momento em que Gabrielle escolheu fazer com a boca: “Acho que está comprida demais.”
— Claro. Acho que a senhora deveria ligar para o tio Eddie — sugeriu Gabrielle ao telefone, mas olhou para cima, encarando a prima. — Quem dedurou o pai de Kat tem que pagar e muito.
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Kat a fulminou com o olhar. Gabrielle gesticulou e fez a palavra “Vire” com a boca.
Kat obedeceu. Conseguia sentir a bainha subir enquanto a prima trabalhava, mas não protestou. Afinal, enquanto o natural para Kat era ser o agente facilitador, o piloto de fuga, o elemento infiltrado, para Gabrielle o natural era ser uma garota. Portanto, Kat continuou quietinha em cima da poltrona, olhando pela janela da sacada em direção ao jardim e à estátua, tentando recordar quais partes da noite anterior tinham sido um sonho.
— Então... — falou Gabrielle devagar, O celular já havia sumido. A saia estava quase terminada e a empolgação em sua voz era nítida quando ela disse: — Onde você e Hale foram se meter ontem à noite?
— Lugar nenhum — respondeu Kat.
— Vire — instruiu Gabrielle.
Kat girou meio passo, mas sem desgrudar os olhos do jardim.
— Se bem me lembro, você costumava mentir melhor.
Kat suspirou.
— Acho que sim.
Mesmo com um alfinete entre os dentes, Gabrielle conseguiu fazer que sim com a cabeça e dizer:
— Foi o que pensei. — Ela segurou a bainha da saia e então gritou: — Ai!
Kat olhou para baixo a tempo de ver Gabrielle puxar um alfinete do dedo.
— Não precisava fazer isso, sabia? — falou Kat. — Marcus está trabalhando nas roupas.
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— Da última vez que Marcus fez nossas roupas, você ficou parecendo uma freira.
— Era para parecer uma freira.
Gabrielle encolheu os ombros, como se essa não fosse a questão.
— Além disso — continuou Gabrielle, e Kat reconheceu o tom provocativo na voz da prima —, você tem pernas.
— Valeu.
— Qual é o problema? Está com medo de que seus homens reparem?
— Que homens?
— Você sabe muito bem — provocou Gabrielle. — Seus namorados... Hale e o garoto novo.
— Hale não é meu namorado — soltou Kat.
— É cl aro que não. — Gabrielle revirou os olhos. — Hale definitivamente não é seu namorado.
— Mas você acabou de dizer...
— Vamos encarar os fatos, Kitty Kat. De todos os homens que você conheceu na vida, Hale é o primeiro cara que poderia ser seu namorado.
Kat começou a protestar, mas Gabrielle a silenciou com a mão.
— E uma parte minúscula dessa sua mente magnífica sempre achou que algum dia ele seria seu namorado.
Kat quis negar, mas tinha desaprendido a falar.
— Vire — ordenou Gabrielle, mas Kat não se moveu. Ela simplesmente ficou olhando a prima concluir. — E Nick... Bem, Nick é o novo Hale.
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— Não — disse Kat como uma voz tão penetrante quanto os alfinetes na mão de Gabrielle —, ele não é.
Gabrielle ergueu as sobrancelhas.
— Bem, então talvez fosse bom você se certificar de que o velho Hale saiba disso.
Kat ficou totalmente parada por um bom tempo, pensando nos homens de sua vida: em quais podia confiar e em quais podia passar a perna, sem ter certeza de realmente saber a diferença entre as duas coisas. Duvidava que um dia pudesse ser tão entendida no assunto quanto Gabrielle.
— Você gosta do Nick? — perguntou Kat, acanhada. — Quer dizer... Você confia nele?
Kat sentiu as mãos de sua prima largarem a saia.
— Essas, minha querida Kat, são duas perguntas muito diferentes. Por que quer saber?
— Você se lembra daquele dia em que me atrasei ao voltar do Henley? Um dia antes de eu conhecer o Nick? Estive com Taccone naquela tarde. Ele me entregou umas...
— Com licença, senhorita — alguém a interrompeu.
Kat se virou e viu Marcus parado diante da porta do quarto de vestir, segurando um buquê imenso de rosas, lírios e orquídeas tão bonito que Kat imaginou que as flores só podiam ter sido roubadas da própria natureza.
Gabrielle soltou um gritinho e correu em direção ao buquê.
— Oooh! Sven! — gritou ela, apanhando o cartão. Mas então se deteve. Uma sombra pareceu cair sobre seu rosto. — São para você.
Sua prima tentou lhe dar o cartão, mas Kat ficou onde estava, observando a cena. Algo lhe dizia que nada tão bonito vinha sem
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algum tipo de condição, de modo que não estendeu os braços para pegar as flores. Tampouco quis ouvir quando Gabrielle começou a ler.
— “Fico triste em saber que seu pai se encontra indisponível no momento. De qualquer forma, estou ansioso para nos reencontrarmos muito em breve. Com carinho, A. Taccone.”
De repente, o quarto ficou frio e o cheiro das flores, sufocante. E tudo o que Gabrielle conseguiu dizer foi:
— Às vezes eu odeio os homens.
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DOIS DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
ROMA,
ITALIA
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Capítulo 29
La Casa di Vetro não era o restaurante mais caro de Roma nem o mais exclusivo, mas Kat conseguia entender por que era o favorito de Taccone. Não havia turistas ali, nenhum tumulto — apenas aromas decadentes e a iluminação suave das velas. Enquanto atravessava o salão de atmosfera intimista, ela tornou a pensar na expressão no rosto de Abiram Stein ao ver o quadro Dois meninos correndo em meio a montes de feno e se lembrou de que o homem na mesinha isolada num dos cantos era mau. Não importava que estivessem num dos melhores restaurantes do mundo: ele ainda era um criminoso comum.
Pensando bem, ela também era.
— Olá, Katarina. — Taccone sorriu enquanto Kat se acomodava em sua cadeira. Seus olhos passaram para Gabrielle, que estava de pé, com os braços cruzados, a um metro de distância. — E esta, quem é? — perguntou ele, avaliando a garota bonita com um desinteresse frio.
— Ela é a força bruta — limitou-se a responder Kat.
Taccone sorriu.
— Suponho que tenha recebido minhas flores.
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Sua voz soava baixa em meio ao falatório dos outros clientes.
— Elas eram lindas.
— Bem — disse ele num tom casual, limpando o canto da boca com o guardanapo. — Espero que tenham alegrado o seu dia. Você tem trabalhado tanto...
— Eu bebo café — afirmou ela com tranquilidade. — Bastante. Dá energia.
Arturo Taccone riu baixinho, mas havia algo estranho naquele som.
Como se também tivesse sido roubado do seu dono original.
Ele cortou um belo filé. Mas se deteve enquanto levava o garfo à boca.
— Perdão. Tem certeza de que não quer que eu peça algo para você e sua amiga?
— Obrigada, mas não precisa.
— Devo dizer que você não está tornando as coisas fáceis para mim, Katarina. — Ele deu uma mordida. — Interessantes, sim. Mas nada fáceis.
— Se lhe servir de consolo, meu pai provavelmente diria o mesmo.
— Ah, sim. — Ele tomou um gole de vinho. — Como está seu pai? Conseguindo se adaptar à nova vida na cadeia? Fiquei sabendo que está enfrentando muito bem a situação. É claro que a acusação contra ele é bem frágil. Uma simples testemunha ocular, até onde sei.
— Exatamente — disse Kat. — Você está olhando para ela.
Um sorriso chocado se espalhou pelo rosto de Taccone e Kat sentiu orgulho, como se tivesse ganhado uma rodada no jogo que
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estavam disputando. Ela só queria que esse jogo já houvesse acabado.
— Espero reencontrá-la depois que isso chegar ao fim, Katarina. Um homem na minha posição tem muitas utilidades para alguém com seus talentos.
— Vou me lembrar disso — mentiu Katarina, mudando de assunto em seguida. — Não vou lhe dizer o dia, mas você vai ficar sabendo quando acontecer.
— Então operações clandestinas não são seu forte?
— Talvez. Ou talvez eu esteja só contando com os caras que você plantou em frente ao Henley para lhe avisar quando chegar a hora.
Ele sorriu e Kat soube que aquele era, de certa forma, o ponto alto de seu jantar incrivelmente patético.
Ela enfiou a mão no bolso e retirou uma tira de papel.
— Vinte e quatro horas depois de concluirmos o serviço, vou encontrá-lo neste endereço com os quadros.
Ela se levantou e teve a sensação de que um grande peso havia sido retirado de seus ombros.
— Você é muito eficiente, Katarina. Eu estava falando sério. Quando terminar, não precisa voltar para a Escola Colgan nem para qualquer lugar parecido. Isto, como costumam dizer, pode ser o início de uma bela amizade.
Kat olhou para a prima.
— Já tenho todos os amigos de que preciso.
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As luzes estavam apagadas quando elas voltaram. A casa estava inerte, em paz. Adormecida. Ou pelo menos foi o que Kat pensou.
— Oi, Hale.
Ela o viu através da porta aberta da sala de jantar, sentado diante de uma mesa de aparência antiquíssima. Vinte cadeiras de espaldar alto o cercavam, mas Hale estava sozinho na cabeceira. Kat sabia que a aguardava.
— Esperando alguma gatinha? — perguntou Kat.
Dessa vez, Hale não tinha nenhuma réplica mordaz na ponta da lín gua.
— Vai ficar com raiva se eu disser que não gosto que você vá encontrar com ele sozinha?
— Está com ciúme? — disse ela, tentando provocá-lo, mas o garoto nas sombras não estava sorrindo.
— Leve Angus e Hamish. Leve Simon.
Kat ergueu as sobrancelhas.
— O.k., então não leve Simon. Leve... Nick, se preferir. — Hale pareceu titubear ao dizer esse nome. — Só lhe peço que não confie em Taccone, Kat.
— Levei Gabrielle. — Kat apontou para a prima, que estava atravessando a porta da frente.
— Eu fui a força bruta — declarou Gabrielle, começando a subir as escadas sem diminuir o passo.
E, ainda assim, Hale não sorriu. Na verdade, Kat ficou com a impressão de que ele sequer ouvira. Ela se perguntou quantos quilômetros eles já haviam viajado até ali e quantos mais ainda precisariam viajar. Apenas 13 dias tinham se passado desde aquele
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dia na casa de campo da famiia Hale, quando ele lhe dissera as palavras que ela não conseguia esquecer e que, agora, repetia.
— Você tem razão. Taccone é um tipo totalmente diferente de bandido. Hale se levantou e andou na direção dela.
— E.
— Por que está fazendo isso, Hale?
— O que você acha?
Kat olhou para a sala luxuosa. Molduras deslumbrantes, mesa lustrosa.
Cadeiras vazias. Era, em todos os aspectos, o oposto da cozinha do tio Eddie e, de certa forma, Kat já sabia a resposta para a pergunta.
— Hale, esta vida... — ela começou, ainda sem saber direito o que dizer.
— Isto... o que nós fazemos... o que minha família faz... tudo parece muito mais glamouroso quando quem escolhe é você.
— Então escolha.
Ele lhe entregou outro envelope. Menor dessa vez. Mais fino.
— O que é isso? — perguntou ela.
— Isso, minha querida, é minha confissão completa. Com datas e horários. — Hale se apoiou na mesa antiga. — Na minha opinião, o recibo do aluguel do guindaste foi um toque de mestre.
Kat olhou para ele, sem conseguir falar.
— É sua passagem de volta para a Colgan. Se quiser — concluiu ele.
— Hale, eu...
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Mas Hale saiu de onde estava, diminuindo a distância entre os dois. Ele parecia inacreditavelmente perto quando sussurrou:
— E eu não escolhi esta vida, Kat. Eu escolhi você.
Kat olhou para o envelope em suas mãos, talvez por conta do que ele representava — sua segunda chance — ou talvez por não saber para onde olhar, o que fazer.
— A entrega está marcada? — perguntou Hale e algo em seu tom de voz lhe disse que ela não precisava falar nada, absolutamente nada.
— Está. — Ela assentiu com a cabeça e ficou ao lado dele. — Agora não tem mais volta.
— Quem não arrisca...
Ela apenas o encarou.
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UM DIAS PARA O
FIM DO PRAZO
SOLAR WYNDHAM,
INGLATERRA
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Capítulo 30
Quando Katarina Bishop saiu do quarto naquela manhã de segunda-feira, não estava esperando que estivesse sol nem estava com medo da chuva. Mas, quando olhou pela janela abaulada no topo da escada, algo na neve a encheu de pavor. Sua respiração embaçou o vidro antigo, enquanto ela ouvia à sua volta os barulhos de uma equipe se preparando para um dia de trabalho pesado. Foi aí que soube que não tinha mais volta, que já haviam ido longe demais.
— Kat?
A voz de Hamish soou mais aguda do que o normal. Vê-lo cutucar Simon com o cotovelo enquanto os dois ficavam parados ao pé da escada foi desconcertante. O fato de Simon ter se virado, olhado para ela e largado no chão um aparelho eletrônico absurdamente caro a deixou em pânico.
— O que foi? — perguntou ela.
Mas os irmãos Bagshaw continuaram boquiabertos e Simon não parava de olhar, enquanto Hale adentrou o foyer e se apoiou no corrimão como se tivesse feito uma aposta muito alta contra todas as probabilidades — e ganhado.
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— O que foi? — repetiu Kat enquanto descia correndo as escadas e atravessava o foyer até a sala de jantar.
Os meninos a seguiram, mas ninguém falou nada.
— Não me digam que vocês estão surtando — disse Kat, virando-se para eles. — Por que hoje não é um bom dia para isso! — Ela ouviu sua voz ficar mais alta e sentiu as mãos formigarem. — O que está acontecendo? — gritou finalmente, quando os olhares e o silêncio ficaram insuportáveis.
— Agora, me diga se esse personagem é ou não é mais divertido do que uma freira — perguntou Gabrielle, desfilando pela sala e olhando de relance para a bainha da sala que ela mesma havia costurado.
Hamish assentiu.
— Kat... você tem... pernas.
— E peitos — acrescentou Angus, lançando um olhar bem direto para a parte da camisa branca que Gabrielle havia deixado um pouco colada demais ao corpo para o gosto de Kat.
— Sério, Kat — comentou Simon, chegando um pouco mais perto —, desde quando você tem peitos?
Hamish olhou para Hale e disse:
— Esses peitos são novos.
— Está usando enchimento? — perguntou Simon, esticando a mão como se quisesse dar uma apertadinha “em prol da ciência”.
— Ei! — reclamou Kat, afastando a mão dele com um tapa.
— Qualquer dia desses o pai dela vai sair da prisão, rapazes — acrescentou Hale.
Kat achou ter visto a sugestão de um sorriso no rosto dele enquanto dizia isso, mas, pensando melhor, estava muito cedo para
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isso. E ela estava estressada. E havia outras coisas na sua cabeça, é claro, principalmente quando a porta da cozinha se abriu e Nick apareceu, recém-saído do banho e nem um pouco abalado pela cena que se desenrolava ali.
Ele não olhou para Kat. Suas mãos não tremeram. Ele não estava agitado nem suando frio. Nada nele indicava que aquele não fosse um dia como qualquer outro.
Andou na direção dela.
— Está pronta? — perguntou.
Se ela estava pronta para o maior serviço da sua vida? Se estava pronta para que aquilo tudo acabasse? Se estava pronta para ser o único ladrão da história a conseguir tirar algo do Henley?
— Já pegou tudo? — Nick quis confirmar.
Ela fez que sim com a cabeça, apanhando um bolinho da bandeja que
Marcus segurava e seguindo em direção à porta.
— Kat — chamou Hale atrás dela.
Hamish sussurrou algo suspeito, que soou como: “O que você acha? Tamanho G?”
Hale seguiu a passos rápidos até o foyer e agarrou Kat pelo braço, detendo-a.
— Kat — começou a falar, mas, quando Nick surgiu atrás dele no hall, Hale se virou e disse: — Você nos dá licença?
Ela nunca ouvira Hale usar esse tom. Ele não parecia estar de brincadeira, mas também não soava intimidador, de modo que Kat não soube como interpretá-lo.
Nick olhou para Kat, que disse:
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— Só um minuto.
Ela ouviu Nick se afastar pelo corredor, mas seu olhar não se desviou de Hale nem por um segundo. O Henley, sua equipe e seu pai pareciam estar a quilômetros de distância.
— Kat. — Ele lançou um olhar rápido para Nick, então espalmou sua mão direita contra a parede atrás dela. Kat sentiu o calor da mão de Hale sobre seu ombro enquanto ele se aproximava mais. ainda e sussurrava: — Estou com um mau pressentimento.
— É um pouco tarde demais para desistir agora, Hale. Como pode ver, eu já revelei meus peitos ao mundo para a ocasião, então...
— Estou falando sério, Kat. Não confio nele.
Kat analisou a maneira como ele a encarava. Quando se deu conta, estava estendendo a mão, deslizando as pontas dos dedos pela lateral da camisa branca engomada dele.
— Confie em mim.
E, com essas palavras, Kat se esquivou e saiu da casa, sentindo Nick alcançá-la e seguir a seu lado. Mas algo a fez parar e dizer:
— Dez e meia.
Hale continuou calado enquanto o coração de Kat disparava.
— Nós nos vemos às 10 e meia — repetiu ela.
Hale sorriu.
— Pode apostar que estarei lá.
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Capítulo 31
Aquela manhã de segunda-feira começou como quase sempre começavam as manhãs de segunda-feira no Henley. O responsável por fazer o café fez o café. O responsável por se lembrar dos aniversários comprou bolo. A reunião com a equipe se alongou, pois Gregory Wainwright ficou falando sobre o aumento do número de visitantes e a queda das doações. Mas, naquela manhã em especial, parecia que menos pessoas estavam cochichando sobre Visily Romani do que na semana anterior. De modo geral, concluíram todos, aquele tinha sido um mês de novembro fora do comum.
Lá fora, a neve caía fina e tanto os guardas quanto os turistas a observavam ser soprada pelo terreno como pó de giz. Várias fileiras de ônibus escolares se formavam em frente à entrada principal.
— É a época das excursões escolares — comentou um segurança com outro.
— Crianças irritantes — reclamou um velho.
Ninguém poderia imaginar que sete dos adolescentes mais talentosos do mundo estivessem chegando ao Henley naquele dia para um tipo totalmente diferente de aprendizado.
— Algum problema? — perguntou Katarina Bishop ao seu acompanhante de cabelos castanhos.
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Nick parou e deixou outra longa fila de crianças passar, enquanto perto dali um guia falava sobre a importância da luz para os grandes artistas holandeses do século XVIII.
— Não — disse ele.
Já não parecia o rapaz que estivera tão tranquilo naquela mesma manhã, parado na cozinha, ou o ladrão habilidoso que havia batido a carteira dela numa rua em Paris. Nick se mostrava diferente à medida que eles seguiam pelo corredor principal. Seria medo? Nervosismo? Kat não sabia ao certo. Mas sem dúvida ele estava diferente e, quando ela parou no centro do átrio, o alerta de Hale ecoou em seus ouvidos.
— Se você quiser desistir, Nick...
— Eu não quero desistir.
— ... é só falar. Agora mesmo. — Ela apontou ao longo do átrio de vidro, em direção aos raios de sol irregulares e à neve branca e seca. — Você pode ir embora.
— Não quero desistir. — Ele correu os olhos pelos corredores cheios de gente. Viu os seguranças. Os guias. Os charmosos casais de idosos com seus blocos de anotações e sacolas de papel com lanches. Um dia comum no Henley. — É só que está... mais movimentado do que eu imaginava.
Kat não sabia se era por conta do nervosismo, do estresse ou do calor do sol naquele espaço envidraçado, mas as primeiras gotas de suor começavam a brotar na testa de Nick. E então ela se fez a pergunta mais simples: o que seu pai diria? Ou o tio Eddie? Ou sua mãe?
— Movimentado — disse ela, citando todos os grandes ladrões que havia conhecido na vida, sorrindo como se fosse apenas uma garota qualquer e aquele apenas um dia qualquer — é muito bom para a gente.
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Basta fingir bem para tornar qualquer coisa realidade. Gabrielle jamais saberia qual membro de sua família tinha dito essa frase primeiro, mas era esse o pensamento que ocupava sua mente enquanto ela dava um passo depois do outro, desfilando pela sala mais ampla do Henley.
— Por aqui. — Sua voz era límpida e suave, como a escultura moderna retorcida que pendia do teto, capturando raios de sol e fazendo-os girar ao redor do espaço grandioso. — O famoso passeio do Henley foi projetado pela própria Sra. Henley em 1922.
Ninguém no grupo de turistas que a seguia em fila pareceu notar que sua saia era um pouco mais curta do que o ditado pelas normas oficiais de conduta do Henley. Ou que seus saltos eram um pouco altos demais.
— Se fizerem a gentileza de me seguir, irei lhes mostrar a magnífica galeria de impressionistas do museu, que abriga a maior coleção de telas de Renoir do mundo. Graças à generosa contribuição de um de nossos doadores, poderemos lhes oferecer a oportunidade de usar com exclusividade esse espaço por toda a tarde.
Os funcionários de plantão na sala da segurança naquela manhã eram veteranos. Coletivamente, a equipe reunida atrás do balcão de monitores já tinha visto quase tudo desde que começara a trabalhar ali: de casais se beijando nos elevadores, passando por mães dando broncas nos filhos em corredores escuros, até executivos que
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tiravam meleca quando achavam que ninguém estava olhando. Isso sem falar numa famosa estrela de cinema que fora filmada tomando uma decisão muito infeliz a respeito de uma lingerie aparentemente desconfortável.
Assim, quando os dois funcionários da Binder & Sloan Aquecimento e Refrigeração Industrial chegaram à entrada de serviço, essa mesma equipe de segurança olhou para os dois rapazes com um ceticismo lapidado por anos de experiência.
— Bom dia, pessoal — cumprimentou Angus enquanto saía do banco do motorista da espaçosa van que Hale havia adquirido especialmente para a ocasião. Disseram que tem um... — ele fingiu ler algo na prancheta que trazia na mão — . . .aquecedor Windsor Elite com defeito aqui. A gente veio fazer o conserto.
O segurança encarregado examinou com atenção os dois homens por um instante. Eles pareciam não passar de garotos. Seus macacões azuis estavam estufados, como se tivessem olhado para a neve que caía naquela manhã e vestido um conjunto extra de roupas por baixo para não sentirem ao frio. Algo naquela dupla não fazia sentido, para dizer o mínimo. No entanto, o memorando sobre o aquecedor defeituoso tinha sido enviado pelo próprio Gregory Wainwright, então o segurança não viu nada de errado em apontar na direção de um jogo de portas duplas largas e falar:
— O aquecedor fica no porão. É só seguirem por ali.
— Ah, é? No porão? — disse Hamish, olhando para o irmão em seguida. — Ouviu só esse cara? Ele acha que a gente pode sair descendo até o aquecedor e começar o conserto assim, sem mais nem menos.
Angus deu risada.
— Parece que ele não se importa que esse lugar inteiro exploda.
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Ao ouvir isso, o segurança se irritou, empertigando-se mais ainda.
— Ei, prestem atenção...
— Não, preste atenção você, meu caro. Aqui fora, como pode ver, nós temos neve. Então aposto que aí dentro vocês têm aquecimento. E, onde tem aquecimento, tem gás. E onde tem gás, tem...
Angus deixou a frase no ar enquanto seu irmão dizia:
— Buuum.
— Então para onde vocês precisam ir? — indagou o segurança, contrariado.
Angus verificou a prancheta que trazia na mão.
— Primeiro andar. Corredor principal.
O segurança olhou uma última vez para os irmãos Bagshaw. Ele não percebeu que os dois estavam prendendo a respiração enquanto esperam ouvi-lo dizer:
— É... Tudo bem.
Num lugar tão público e num dia tão agitado, não era de espantar que ninguém tivesse notado quando um garoto mais baixo do que a média, com cabelos encaracolados e uma camisa que nunca conseguia ficar para dentro da calça, entrou sorrateiramente no banheiro masculino do segundo andar. É claro que ninguém ouviu também quando esse mesmo garoto disse: -
— Kat, já estou posicionado na minha... base.
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No que dizia respeito a bases, infelizmente Simon já tinha visto piores. A cabine do banheiro era maior do que o closet em que ele ficara trancado em Istambul. A privada, muito mais confortável do que o pedaço de tronco de árvore que ele havia sido obrigado a usar como mesa em Buenos Aires.
Ele ficou sentado ali, sem mexer um só músculo, esperando seu laptop iniciar. Quando enfim viu a imagem com o vídeo de Gregory Wainwright dormindo em seu escritório, Simon sorriu e pensou que já estivera, sem dúvida, em situações bem piores.
Kat não tinha se enganado, 15 dias antes, ao se sentar na biblioteca da casa de campo de Hale e perguntar se a família dele era dona de uma companhia de telefonia celular. Quinze dias. De certa forma, para Hale, parecia fazer mais tempo.
Quando seu telefone tocou, Hale atendeu, mas não disse alô. Ele estava em frente ao Henley, tentando se proteger do frio e ouvindo o tio Eddie falar com rispidez:
— Tive notícias de Paris. Você estava certo a respeito dele.
E isso foi tudo o que qualquer um dos dois precisou dizer. Hale guardou o celular de volta no bolso lentamente e ficou olhando para a porta de vidro.
— Vamos seguir em frente ou não? — A voz de Marcus trouxe Hale de volta à realidade.
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Enquanto Katarina Bishop seguia pelo longo corredor em direção à Sala Romani, não pareceu notar os dois rapazes de macacão azul que trabalhavam com afinco em volta de um duto de ventilação aberto e de várias máquinas grandes. Ela contornou as barreiras temporárias e cumprimentou com a cabeça um dos seguranças uniformizados que estava perto dali.
O homem retribuiu a saudação e disse:
— Desculpe o transtorno, senhorita. Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa?
— Ah, não sei bem. — Kat olhou para o corredor coberto de obras de arte como se as estivesse vendo pela primeira vez. — Estou só... olhando, eu acho.
— Pode olhar quanto quiser. Mas não toque em nada.
O segurança deu uma risadinha.
E, enquanto Kat entrava na Sala Romani, ela sorriu e pensou: ah, eu jamais faria uma coisa dessas.
Em algum momento da semana anterior, a coleção menos impressionante do Henley havia se tornado a favorita de Katarina Bishop. Talvez fossem as pinceladas simples, a utilização discreta da luz. Ou talvez Kat se sentisse atraída pelas outras telas penduradas naquela sala — as que os turistas não conseguiam enxergar.
Juntas, as telas de Arturo Taccone valiam mais de meio bilhão de dólares... e a vida de seu pai.
— Como estamos indo, Simon? — sussurrou ela no pequeno microfone na gola da sua camisa.
— Quase lá... — Simon começou a falar lentamente. Então, parou. — Uau.
— O que foi? — perguntou ela, o pânico transparecendo em sua voz.
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— Nada — disse ele rápido demais.
— O que foi? — tornou a perguntar Kat.
— É só que... seus peitos ficam maiores ainda no monitor.
Ela aproveitou a deixa para se virar e fuzilar com os olhos a câmera de segurança mais próxima. Em sua cabine no banheiro, a quase 10 metros de distância, Simon quase caiu da privada.
Kat quis olhar para seu relógio, mas não teve coragem. Aquilo estava mesmo acontecendo e não havia nada que pudesse fazer para impedir.
As pessoas aglomeradas em frente à Sala Romani já estavam se dispersando. Garotas se viravam para observar o jovem bilionário que entrava ali. E, à sua frente, numa cadeira de rodas, estava Marcus.
— Está vendo Hale? — perguntou Simon no ouvido de Kat, que começou a fazer que sim com a cabeça. Nesse exato momento, Hale cruzou olhares com Kat do outro lado da sala.
Eles não deveriam se conhecer.
Não deveria haver nenhuma troca de olhares. Nenhuma palavra. Nem a menor olhadela que fosse.
E, ainda assim, Hale a encarava, com uma expressão desesperada nos olhos.
— Mais devagar! — esbravejou Marcus e Kat não soube dizer se ele estava interpretando o personagem ou não. Ele deveria agir como um velho rabugento, mas também era verdade que Hale estava vindo depressa demais na direção dela. — Deixe-me sair dessa geringonça! — gritou Marcus.
Isso pareceu fazer Hale se lembrar de que havia algo mais importante em jogo. Ele parou a cadeira de rodas e Marcus agarrou os braços dela, como se tentasse se colocar de pé.
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— Calma, tio — Hale começou a falar, inclinando-se na direção do homem que não era mais parente seu do que o tio Eddie —, o senhor sabe que os médicos disseram que...
— Médicos! — resmungou Marcus, irritado.
Kat nunca tinha ouvido o mordomo falar tão alto. A palavra ecoou pela sala comprida. Mais pessoas se viraram para olhar. Kat ficou preocupada que Marcus estivesse curtindo seu momento um pouco mais do que devia, mas não podia fazer nada a respeito.
— Não fique parado aí feito um paspalho! — ralhou ele com Hale como alguém que tivesse vários anos de broncas acumuladas dentro de si e estivesse adorando a oportunidade de botá-las para fora. — Ajude-me a levantar.
Ele tentou se erguer da cadeira, mas outra vez Hale se pôs a desencorajá-lo.
— Mas, tio, o senhor vai aproveitar melhor a coleção do conforto da sua...
— Se você está pensando que vou admirar obras de arte deste ângulo, a sua burrice é tão grande quanto a sua insolência.
Uma expressão de prazer absoluto brilhava nos olhos de Marcus e Kat e começou não soube dizer se ele estava falando como o mordomo de Hale ou como seu “tio”, mas o simples fato de ver Hale sendo obrigado a pegar o cotovelo de Marcus e ajudá-lo a se levantar quase fez tudo aquilo valer a pena.
— Sabia que conheci Picasso? — perguntou Marcus, meneando a cabeça em direção à tela. — Ele era um velho esnobe do...
— Venha por aqui, tio — disse Hale. Ele não largou o braço de Marcus, mas se esqueceu da cadeira de rodas e das pessoas ali, da hora que passava e do serviço. Em vez disso, Hale parecia ter apenas um objetivo enquanto atravessava a sala: encarar a garota no canto.
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Siga o plano, Kat tentou lhe dizer com os olhos.
Preciso falar com você, Hale parecia dizer.
O número de pessoas estava aumentando. Hale se aproximava dela. Kat sentiu um frio na barriga, achando que tudo iria sair dos trilhos antes mesmo de começar.
E então uma voz atravessou a sala abarrotada.
— Sr. Hale? — A voz de Gregory Wainwright soou forte e clara. — Achei mesmo que fosse o senhor. Como vai? — cumprimentou o Sr. Wainwright, virando-se para Marcus.
Marcus, ao que parecia, não estava tão preparado para falar com outras pessoas quanto para insultar Hale.
— Eu... hã... eu... eu... odeio mulheres de calça!
Enquanto Gregory Wainwright analisava o homem, Kat começou a se perguntar se a deixariam dividir uma cela com o pai na cadeia. E então o diretor do Henley fez o que pessoas cujas carreiras dependem de doações sempre fazem: ele sorriu, fez que sim com a cabeça e disse:
— Concordo, senhor. Concordo plenamente.
— Sr. Wainwright — disse Hale, voltando ao seu personagem num piscar de olhos —, como vai o senhor?
Apesar dessas palavras, ele ainda se aproximava de Kat. O relógio tiquetaqueava, alto demais, na mente dela.
— Muito bem. É um grande prazer revê-lo. E o senhor — ele se voltou para Marcus — deve ser...
— Fitzwilliam Hale... — apresentou-se Marcus, erguendo o braço para apertar a mão do homem. — ...Terceiro — acrescentou no último segundo.
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Hale fez cara de quem queria revirar os olhos. Kat teve vontade de estrangular os dois.
— Alguns dias atrás seu sobrinho teve a bondade de me falar sobre o Monet que ele possui — disse o diretor para Marcus.
— Aquela porcaria! — exclamou Marcus.
Novamente, Hale a fitou nos olhos. Preciso falar com você, ele parecia gritar.
Dê um jeito no Marcus, ela queria gritar de volta.
— Agora, no meu château, há um belo Cézanne... Cézanne era um artista de verdade — dizia Marcus, enquanto o outro balançava a cabeça, encorajando-o.
Antes, porém, que a mentira pudesse ir mais longe, o som de uma sirene encheu o recinto.
A primeira coisa que passou pela cabeça de Kat foi: estamos perdidos.
A segunda coisa foi correr os olhos pela sala e ver a nuvem de fumaça negra que atravessava as portas em direção às telas preciosas.
Ela não conseguiu ouvir nada em meio ao uivo das sirenes. Tudo o que pôde ver através da fumaça foi o diretor Henley agarrando seus dois visitantes VIPs abastados e empurrando-os em direção à saída.
De repente, havia seguranças por toda parte. Guias apareceram como se tivessem brotado das paredes. Kat foi levada pelo fluxo — somente mais um corpo sendo empurrado rumo às saídas, forçado a se aproximar mais da fumaça, do som das sirenes e do corredor ainda mais abarrotado.
Hale se virou para olhar para trás, vasculhando a multidão e encontrando os olhos dela uma última vez. Mas Gregory
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Wainwright estava segurando seu braço e Hale foi levado embora, arrastado por uma onda num piscar de medo.
— Por aqui! — disse o homem, puxando Hale e Marcus consigo.
— Mas a minha cadeira — Marcus finalmente se lembrou de dizer, mas o diretor do museu não o escutou.
As galerias já estavam sendo isoladas. E o momento de voltar atrás já estava bem distante.
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Capítulo 32
Kat sempre tinha ouvido falar que, se havia uma coisa que os responsável pelos grandes museus do mundo temiam mais do que roubos, era um incêndio. Naquele momento, não teve dúvidas quanto a isso. As sirenes soavam ainda mais alto do que quando Gabrielle caíra, inconsciente, no chão. Crianças gritavam. Turistas corriam. Pessoas se acotovelavam em meio à fumaça e ao caos, correndo em direção às portas de entrada e ao ar fresco de inverno lá fora.
E foi provavelmente por isso que o diretor do Henley não notou o garoto que pressionou o corpo contra o seu enquanto lutava para atravessar a multidão. Ele enfiou a mão no bolso interno do paletó do homem, à procura do pequeno cartão de plástico, livrando-o daquele peso em especial à medida que as pessoas continuavam se lançando para a frente. Então, abriu caminho pela névoa enfumaçada em direção à Sala Romani e à garota que estava lá dentro, esperando.
— Nada mau — fez Kat com a boca enquanto o rapaz passava o cartão pela leitora silenciosamente. Uma luz vermelha ficou verde. As trancas automáticas foram desativadas sem o menor alarde. Então Nick sorriu e, imitando-a, fez com os lábios:
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— Obrigado.
Quando Kat entrou na Sala Romani, sentiu o cheiro da fumaça que ainda pairava no ar. Ouviu o som agudo das sirenes desaparecer atrás das portas maciças, herméticas e à prova de fogo, enquanto elas se trancavam.
Sabia haver apenas uma saída daquele lugar.
Apesar das luzes vermelhas de emergência piscando, a sala era linda, com seu piso lustroso, as molduras reluzentes e, é claro, as telas. Não havia seguranças entre Kat e aquelas obras inestimáveis. Nenhum guia enxerido ou turista cafona.
Kat começou a dar um passo à frente, mas a mão de alguém agarrou seu braço.
— Ainda não — disse Nick.
Ele ergueu os olhos para a câmera de segurança e Kat se lembrou do ponto cego. Ela olhou para o chão e pensou nos sensores.
E aguardou.
— Estou acabando — afirmou Simon no ponto em seu ouvido.
— Se terminasse ainda hoje seria muito bom — retrucou Nick.
— Não se pode apressar o trabalho de um gênio, pessoal — devolveu Simon, em tom de brincadeira, e Kat achou que ele estava soando um pouco convencido demais para alguém que, no momento, operava a partir da terceira privada à esquerda.
De repente, o brilho vermelho das luzes de emergência foi substituído por uma luz azul giratória.
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— Simon! — exclamou Kat. — Anda logo!
Uma nova sirene — mais baixa, porém de certa forma duas vezes mais ameaçadora — apitou, o som percorrendo toda a sala.
— Simon! Temos que começar a trabalhar. Agora!
— Só um segundo — disse ele.
Mas Kat pouco se importava com o código criptográfico que os impedia de chegar perto dos quadros. Ela estava muito mais preocupada com as luzes azuis rodopiantes e com a voz metálica que fazia uma contagem regressiva, dizendo: “As medidas de proteção contra incêndio serão ativadas em CINCO, QUATRO...”
— Simon! — gritou Kat.
— Só mais um...
— Não temos um segundo! — berrou Kat no instante em que as luzes atrás das pararam de girar e um som mais aterrorizante do que qualquer sirene encheu a galeria.
— É claro que sim! — gritou Gregory Wainwright.
Ele levava um celular colado à orelha, mas seu olhar se mantinha fixo nos dois bilionários (ou, para ser mais exato, um bilionário e um mordomo) que estavam a um metro e meio dele, observando a fumaça preta subir em espiral rumo ao céu cinza-claro.
O Henley, afinal de contas, estava em chamas. E tudo o que Gregory lembrou do Wainwright podia fazer era ficar parado a uma distância segura, reclamando do fogo.
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Hale sentia o olhar do homem, reconhecia a autoridade forçada em sua voz enquanto ele falava aos berros:
— Mas é óbvio! É isso que você deve fazer. — devolveu Hale deu as costas para o vento frio e tentou não pensar na fumaça, no soando um fogo e, acima de tudo, em...
— Kat — sussurrou ele, xingando-se em silêncio.
Devia tê-la forçado a falar com ele. Devia ter deixado Marcus para lá, abandonado seu personagem — ter feito Kat ouvir o que o tio Eddie tinha a dizer. Mas agora era tarde demais. Ele estava preso do lado de fora com o diretor enquanto ela estava trancada lá dentro. Com Nick. E naquele instante Hale era tão inútil quanto Wainwright, parado como estava no frio, tentando determinar em que momento exatamente tudo dera errado.
Era um bom plano, não era? Eles tinham se preparado, não tinham? Talvez não. Afinal, uma equipe é tão forte quanto seu elo mais fraco. Talvez houvessem sido precipitados, idiotas e descuidados. Talvez o tio Eddie tivesse razão. Talvez isso fosse simplesmente o que acontecia com qualquer um que ousasse enfrentar Visily Romani.
— Não há de ser nada, Sr. Hale. — O diretor pousou uma das mãos no ombro de Hale, confortando-o. — Não há motivo para se preocupar. Eu lhe garanto que nossas medidas de proteção contra incêndio são de última geração.
— Isso é um alívio — murmurou Hale.
— Na verdade, eu estava ao telefone com meu chefe de segurança agora mesmo — explicou o diretor. — Ele me garantiu que a área afetada já foi completamente evacuada. — Mas então Gregory Wainwright pareceu notar a aflição que essa notícia trouxe aos olhos de Hale. — Não se preocupe, Sr. Hale. Nossas medidas de proteção contra incêndio serão ativadas a qualquer momento.
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— Que medidas seriam essas? — perguntou Marcus.
O diretor deu uma risadinha.
— Bem, não podemos usar uma mangueira de jardim qualquer, os senhores concordam? A água faria um estrago tão grande numa tela de 300 anos quanto a fumaça e o fogo. Em vez disso, simplesmente sugamos todo o oxigênio da sala. Sem oxigênio, não há fogo que resista.
O telefone do diretor tornou a tocar. Ele se virou para atendê-lo enquanto Hale olhava novamente para o museu, seus pensamentos volta para a garota ainda presa lá dentro, com o sujeito que jamais seria um membro da família.
Kat sabia que a mudança estava por vir antes mesmo de escutar o barulho terrível de sucção.
— Simon... — repetiu ela, lutando contra o impulso de atravessar correndo a sala antes de ouvi-lo gritar...
— Agora! As câmeras estão desligadas. Você está liberada, Kat não precisou ouvir isso duas vezes. Sentia Nick no seu encalço enquanto eles corriam lado a lado pelo longo hall da galeria até onde a cadeira de rodas estava abandonada.
Ela manuseou, atrapalhada, as correias que prendiam os cilindros de oxigênio à cadeira de Marcus.
— Gente, daqui a menos de seis segundos vocês vão ficar sem ar — alertou Simon enquanto Kat jogava um cilindro para Nick. — Quatro segundos — falou ele e o chiado de sucção foi aumentando.
A galeria havia ficado mais escura e as telas, de certa forma, embaçadas. Quando o chão começou a girar, Kat caiu de joelhos e ficou impressionada ao perceber que excelente medida de segurança era um chão rodopiante.
— Kat! — gritou Simon.
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Ela ouviu Nick largar o cilindro. Ele caiu sobre o dedão do pé dele e tombou no chão duro.
— As máscaras! — berrou Simon e algo nessa palavra fez com que ela notasse os tubos de plástico longos em suas mãos e visse as máscaras estranhas que despontavam da bolsa nas costas da cadeira de Marcus.
Kat deveria estar fazendo algo, não tinha a menor dúvida, mas de repente se sentiu tão sonolenta... e as máscaras pareciam tão distantes...
— Kat! — tornou a gritar Simon.
Ela reuniu suas últimas reservas de força, colocou a primeira máscara sobre a boca e sorveu o oxigênio puro.
O chão parou de rodar.
De repente, as telas voltaram a parecer deslumbrantes.
Enquanto Kat inspecionava a sala, Nick desparafusava com cautela peças da cadeira de rodas. Quando ele inclinou os tubos de metal, várias ferramentas saíram de dentro deles, deslizando até as palmas de suas mãos. Os dois estavam com óculos de proteção e com as máscaras de oxigênio sobre a boca, de modo que não houve conversa enquanto Nick colocava uma ferramenta nas mãos de Kat, que seguiu rumo à primeira tela, Flores num dia frio de primavera.
Durante a semana anterior, Kat passara a amar a combinação de cores nos botões de flores, o jogo de luz. Não era a obra mais valiosa do Henley, mas ela a achava linda de uma maneira tranquilizadora. Porém, nada seria tão belo quanto o que Kat esperava haver atrás da pintura.
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Ela olhou para Nick. Apesar do vigor proporcionado pelo oxigênio puro, ela se sentiu paralisada.
Está aí atrás, pensou ela. Quase sem querer, Kat estendeu a mão para tocar o local em que o cartão de visitas de Visily Romani aparecera misteriosamente no meio da noite, 10 dias antes.
Tem algo atrás desta tela, parecia dizer seu coração.
Pode ser uma armadilha, sua mente não a deixava esquecer.
Nick ergueu seu relógio digital. O visor brilhava na sala mal iluminada, cronometrando cinco minutos de trás para a frente. Um lembrete concreto daquilo que nenhum deles poderia se esquecer: não tinham o dia todo.
Enquanto pegava um alicate de bico fino, Kat olhou para seu braço direito, esperando ver algum tremor, rezando para que os três meses que passara na Colgan não houvessem tirado isso dela também. Mas sua mão enluvada estava firme enquanto se movia pela parte superior da moldura ornamentada do quadro e encontrava o sensor de pressão. Nick lhe entregou um pedaço de massinha de modelar, que ela pressionou contra o pequeno botão que não conseguia ver.
Um alicate e massinha de modelar, pensou Kat. A tecnologia não é fascinante?
Preparar-se para tirar o quadro da parede era a parte fácil. Tão simples quanto borrifar um jato de ar ao longo da parte de trás da moldura, conferir se havia mais sensores e depois pegar o quadro e suspendê-lo da parede.
A parte difícil era enfrentar a sensação esmagadora de que ela poderia estar enganada, de que aquilo poderia ser uma perda de tempo, uma pegadinha — o maior golpe que Visily Romani já tinha dado.
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— Kat? — disse a voz de Simon em seu ouvido. — Ande logo. A equipe beta já está posicionada.
Mas Kat não podia ir mais rápido. Ela mal conseguia respirar ao abrir a parte de trás do quadro, puxar com cuidado a tela e se deparar com um fantasma, uma pintura atrás da pintura. Uma imagem que poderia ser qualquer coisa, menos Flores num dia frio de primavera.
Ela tinha visto aquela pintura antes, é claro. Uma vez num vídeo e outra numa folha de papel. Mas, enquanto Nick devolvia a outra tela à moldura e pendurava o quadro de volta na parede, Kat só conseguia olhar para os dois meninos que ainda corriam em meio aos montes de feno no vendaval, perseguindo um chapéu de palha por décadas a fio e por todo um continente. r
Nick a observava. Kat o viu fazer as palavras “Qual é o problema?” com a boca. Mas ela estava pensando em Abiram Stein enquanto sussurrava, ainda que somente para si mesma:
— Conheço uma pessoa que procura isso há muito tempo.
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Capítulo 33
Tudo correra quase exatamente dentro do planejado. Ou pelo menos foi isso que os vários membros do departamento de segurança do Henley disseram a si mesmos.
O edifício inteiro havia sido evacuado em menos de quatro minutos. O fogo ficara restringido a uma única ala de uma das seis seções do museu. Um corredor, na verdade, localizado bem longe das exibições principais, como a sala do Renascimento e a galeria dos impressionistas. De modo que, àquela altura, o único temor no Henley era o de que a fumaça houvesse causado pequenos estragos em telas menos importantes.
Se qualquer um dos membros da equipe de segurança tivesse parado para pensar no assunto, poderia ter questionado por que a quantidade de fumaça havia sido tão desproporcionalmente grande em relação ao fogo, para começo de conversa, mas ninguém se deu a esse trabalho. Em vez disso, eles trocaram tapinhas nas costas e já estavam esperando pelos bônus e pelos elogios assim que a notícia de sua rapidez de raciocínio e clareza nas decisões chegasse aos ouvidos dos mandachuvas.
Bem longe da Sala Romani, trancados dentro do anexo de segurança do museu, eles observavam várias peças expostas através
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de uma névoa sinistra, sem notar que a imagem não passava de uma repetição contínua.
Sem ver Simon e os irmãos Bagshaw seguirem pelos corredores vazios em direção a uma porta que certamente estava trancada — a uma ala que os seguranças não tinham dúvidas de que estava abandonada.
Ninguém na sala dos seguranças viu Simon levantar a mão e bater. Nenhuma alma percebeu quando Gabrielle abriu a porta da segunda melhor sala de exposições do Henley.
Ela analisou o trio e disse:
— Vocês estão atrasados.
As telas estavam ali.
Kat as segurava em suas mãos enluvadas. Ela as via através dos óculos de proteção. Não era um sonho nem uma miragem — elas estavam ali. E, ainda assim, Kat não conseguia acreditar naquilo.
— Dois minutos e meio — alertou Simon enquanto Kat passava pelas quatro telas sem moldura recostadas contra a parede, como nas barracas de artistas de rua nova-iorquinos ou parisienses.
Não era difícil imaginar que ela havia voltado algumas centenas de anos no tempo e estivesse olhando para as obras de uns desconhecidos chamados Vermeer e Degas.
Nick havia tirado seu blazer e sua gravata e agora andava depressa pela sala abafada, juntando as coisas, preparando-se para a fase seguinte. Mas ainda restava um quadro e, enquanto Kat se
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aproximava dele, ela podia sentir os segundos passando e algo mais... Esperança? Medo?
Porém, a sensação que mais importava era aquela causada pelos jatos fortes de ar que começaram a jorrar de repente dos orifícios de ventilação, soprando contra o rosto de Kat e balançando seus cabelos à medida que ela estendia a mão para a última tela, detendo-se logo em seguida para erguer e os olhos e ouvir uma voz familiar dizer:
— Olá, Kitty Kat.
O cabelo de Gabrielle deveria estar despenteado enquanto ela ficava pendurada de cabeça para baixo, pendendo de um duto de ventilação a 6 metros do chão. Seu rosto deveria estar sujo. Esta era uma das grandes injustiças da vida, na opinião de Kat: algumas garotas podiam engatinhar por 60 metros de tubulação e sair do outro lado parecendo. ainda mais glamourosas. No entanto, a coisa mais extraordinária a respeito da prima de Kat naquele momento era a expressão em seu rosto enquanto ela examinava as telas enfileiradas e sussurrava:
— São elas.
Kat e Nick tiraram suas máscaras de oxigênio. Jogaram de lado os óculos de proteção. O ar fresco vinha por trás de Gabrielle, enchendo a galeria, enquanto Kat alcançava o último quadro e estendia a mão com cuidado para o dispositivo de pressão. Apesar do ar fresco, Kat prendeu a respiração enquanto suspendia a última pintura da parede, virava-a ao contrário e ouvia sua prima dizer:
— Essa não.
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A cena fora do Henley era exatamente a esperada dentro das circunstâncias. Sirenes agudas enchiam o ar à medida que caminhões de bombeiros e viaturas policiais desciam as ruas de paralelepípedos e bloqueavam a área em torno das entradas principais.
Embora a equipe de segurança jurasse que o fogo havia sido contido, ainda saía fumaça pelas portas e janelas, desaparecendo em seguida em meio à brisa de inverno.
A neve fina tinha dado lugar à garoa, de modo que repórteres transmitiam a notícia para todo o mundo sob a proteção de guarda-chuvas.
O Henley estava em chamas. E parecia que Londres inteira tinha comparecido para assistir.
Gregory Wainwright via sua carreira por um fio. E, mesmo assim, não podia fazer quase nada enquanto os bombeiros desciam de seus caminhões e os estudantes se juntavam nas calçadas para responder às chamadas das excursões. Então se manteve longe da multidão, acompanhado do jovem bilionário e de seu tio, jogando conversa fora — conquistando aliados.
— Bem, foi um prazer revê-lo, Sr. Wainwright — disse Hale, tentando se afastar dali. — Mas agora, se me permite, preciso cuidar do meu tio.
— Ah, meu Deus! — exclamou o diretor. — Sr. Hale! Perdão. Esqueci completamente. Espere. — Ele olhou em volta como se esperasse que uma cadeira de rodas surgisse do nada, como num passe de mágica. — Deixe-me encontrar algum lugar para o senhor descansar. Talvez eu possa mandar algum dos bombeiros recuperar a cadeira para...
— Não! — soltaram Hale e Marcus em uníssono.
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— Estou bem — falou Marcus, descartando a hipótese com um gesto. — Possuo várias iguais a ela. E o senhor já tem muito com que se preocupar...
— Marcus se virou para observar o edifício ainda fumegante, a multidão de turistas tirando fotos e os repórteres com seus sorrisos plastificados. — Faz até a gente imaginar se aquela história do tal Visily Romani não foi nada em si mesmo.
Hale encarou Marcus, porém o homem mais velho não retribuiu o olhar. Em vez disso, enfiou a mão dentro da lapela do seu paletó da maneira que tinha visto ricaços fazerem durante a maior parte de sua vida.
— Mas imagino que não seja culpa do senhor o fato de dois desastres acontecerem num único mês.
Hale observou o diretor apertar os olhos, primeiro com indignação, depois intrigado.
— Coincidências acontecem — prosseguiu Marcus, mas Wainwright já estava fazendo as contas, calculando a probabilidade de o museu mais seguro do mundo ser acometido por um incêndio e um ladrão no espaço de poucas de semanas.
— Com licença, Sr. Hale. — O diretor sacou o celular e saiu andando a passos frenéticos. Deteve-se por um instante para falar por sobre o ombro. — Ligue para minha assistente para falar sobre o Monet!
E, com essas palavras, Gregory Wainwright foi embora.
— Não está aqui — declarou Kat com convicção enquanto olhava para a parte de trás da última moldura.
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— Kat — disse Simon no ponto em seu ouvido. — Estou ouvindo conversas na frequência da segurança. Acho que...
Mas Kat não estava escutando. Estava ocupada demais olhando para o lugar em que a última tela deveria estar... mas não estava.
— Menina rezando para São Nicolau... O Menina rezando para São Nicolau deveria estar aqui!
Kat ergueu o olhar, sem se deter no semblante preocupado de Nick. Ela ignorou completamente a prima, que continuava a pender graciosamente do duto de ventilação, manipulando um cabo longo. Em vez disso, os olhos de Kat vasculharam a sala, contando:
— Um, dois, três...
— Kat! — ralhou Nick.
— Não está aqui — disse Kat, atordoada, ainda olhando para a moldura em suas mãos.
— Kat! — gritou ele e, dessa vez, ela o encarou.
— Não está aqui.
Talvez fosse um engano. Talvez Visily Romani tivesse escondido a quinta tela atrás de uma moldura diferente e cabia a Kat usar seus últimos segundos para escolher uma delas — e com sabedoria.
— Não está... — Kat começou a repetir.
Mas então ela o viu: o cartãozinho branco que estava preso atrás da moldura por um simples pedaço de fita adesiva no lugar exato em que a tela Menina rezando para São Nicolau deveria estar.
Visily Romani tinha estado ali.
Visily Romani fizera aquilo.
Visily Romani deixara um rastro e Kat o seguira. Ela havia sido mais determinada do que seu tio Eddie, mais corajosa do que seu pai e mais inteligente do que as mentes mais brilhantes da Scotland
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Yard. Tinha chegado muito longe. E estar ali, observando sua prima içar quatro telas inestimáveis até o duto de aquecimento, deveria ser o momento de maior orgulho de sua vida. Mas tudo o que Kat conseguia fazer era ficar olhando e dizer:
— Não está aqui.
Ela passou os dedos sobre as letras pretas do cartão de visitas.
— Kat — disse Nick ao pé do seu ouvido. Ele agarrou seu braço com gentileza. — Kat, nosso tempo acabou.
Tempo, o maior ladrão de todos. Por isso mesmo, Kat não parou para o refletir sobre o destino da quinta pintura.
O instinto, a criação e uma vida inteira de treinamento já estavam do para São assumindo o controle enquanto Kat corria até o gancho vazio na parede recolocava a última moldura no lugar.
Ela se virou e viu Gabrielle puxar o filho pródigo de Rafael por um cabo, deslizando-o para dentro do duto de aquecimento no momento exato em que Simon gritou:
— Gente, o tempo de vocês já acabou. Entrem agora ou...
— Aqui! — gritou Nick.
Ele juntou as mãos em concha, pronto para lhe dar o impulso para alcançar o duto, mas Kat não aceitou o favor.
Em vez disso, ela se agachou para apanhar do chão o blazer cor de vinho e a gravata que Nick havia largado. Enquanto corria a mão pelo pequeno emblema sob medida que Gabrielle havia costurado à mão em cima do bolso, as palavras que ela tinha dito para Hale lhe voltaram à mente. Nick?
— Por que você está fazendo isso, Nick?
— Gente! — alertou Simon.
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— Por quê, Nick? — perguntou ela, chegando mais perto. — Só quero que me diga... por quê.
— Eu... eu precisava de um serviço.
— Não — limitou-se a dizer Kat.
Ela balançou a cabeça e, sem desperdiçar mais um só segundo, agarrou o blazer junto ao peito com a mão esquerda e segurou a ponta do cabo com a direita. E de repente ela estava voando, subindo pelo ar em direção ao duto.
Uma vez em segurança lá dentro, olhou de volta para Nick, parado no chão debaixo dela.
— Jogue o cabo para mim, Kat — pediu ele, fitando-a com um olhar inabalável, e Kat percebeu que não via olhos como aqueles desde Paris: desde o dia em que Amelia Bennett levara Bobby Bishop para a cadeia.
— Você se parece com ela, sabia? — disse Kat, encarando-o de cima.
— Kat. — Seu tom ficou mais ríspido. — Jogue o cabo.
— Eu devia ter percebido antes. Tenho certeza de que Hale sacou na hora. — Ela riu, apesar das sirenes, da pressão e do sangue que corria para sua cabeça enquanto ela olhava para baixo. — Acho que eu estava com muita coisa em mente.
— Kat, jogue o...
— Taccone gosta de assustar as pessoas, sabia disso? É o de sempre, na verdade. Insinuações, fotografias ameaçadoras... E, quando vi as fotos que ele tirou do meu pai, você estava nelas, em segundo plano. Estava seguindo meu pai, Nick? Foi por isso que me seguiu também? — perguntou Kat. Ela não esperou por uma resposta. — Aposto que estava planejando ajudar sua mãe a capturar meu pai ficando próximo a mim todo esse tempo.
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— Kat! — ecoou a voz de Gabrielle ao longe.
Ela conseguia ouvir sua prima brigando com as quatro telas inestimáveis, que batiam contra as paredes finas de latão da tubulação. Mas, ainda pequeno assim, não se moveu.
— Desde quando sua mãe vem liderando a investigação sobre meu pai, Nick?
Ele olhou para o chão e admitiu:
—Já faz um tempo.
— E então ela o arrasta pelo mundo inteiro e, em algum momento, você acaba se envolvendo nos negócios da família. — Kat olhou para o garoto que talvez a tivesse ajudado, ou que talvez a tivesse traído, mas que certamente mentira para ela. E, apesar de tudo, ela não pôde deixar de dizer:
— Eu sabia que gostava de você por algum motivo. — Kat recuou mais para do cabo dentro do duto. — Talvez você devesse estudar num internato!
Quando ela começou a desaparecer pela tubulação, Nick gritou:
— Achei que você tivesse largado essa vida!
E algo em sua voz, ou talvez apenas a própria situação, fez Kat sorrir. Ela se virou e se inclinou para fora do duto uma última vez.
— Por que você está fazendo isso, Nick?
— Porque... — Nick se deteve, tentando encontrar as palavras. — Porque eu gosto de você — disse ele, mas Kat não acreditou.
Foi então que uma nova sirene começou a uivar. Era um som diferente, ensurdecedor.
— Kat — repetiu Nick, dando um passo à frente, estendendo a mão como se pedisse ajuda, mas nesse instante o brilho vermelho de raios laser surgiu sobre a abertura da grade. A luz azul e fria da Sala
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Romani foi substituída por um clarão cor de sangue. Nick se virou para as portas como se pudesse ouvir os seguranças se aproximando.
Mas Kat apenas olhou para ele e disse:
— Resposta errada.
Kat tentou ignorar as sirenes que ficavam mais altas a cada centímetro. Ela apertava os olhos e engatinhava pela escuridão. Concentrada num pequeno quadrado de luz distante, arrastava-se pelo duto, aproximando-se daquele ponto. As sirenes uivavam, mais e mais alto. E, embora a vontade de parar e pensar sobre o que acabara de acontecer fosse grande, no lugar onde ela estava não havia espaço nem para pensar — muito menos tempo.
Quando finalmente chegou ao fim do duto, pôde ver Gabrielle mais abaixo, tirando a saia do seu uniforme de guia e virando-a do avesso para transformá-la numa saia xadrez vinho como a dela própria. Simon estava ajudando Hamish com sua gravata; os macacões azuis dos irmãos foram enfiados bem fundo em alguma lixeira no interior do museu. E então ela olhou para o blazer em sua mão. Nick não precisaria dele. Não agora. Largou-o dentro da tubulação e desceu até o chão em meio ao brilho de uma luz vermelha rodopiante.
Tramas de raios laser piscavam raivosamente. Naquele excesso caótico de luzes, ela mal conseguia distinguir os quadros nas paredes. Renoir. Degas. Monet. A ideia de estar perto assim de tantos mestres a deixou tonta. Mas, por outro lado, talvez fosse apenas o gás espesso que estava sendo bombeado para dentro da sala.
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Ela pensou na máscara de oxigênio que havia ficado para trás, mas é claro que já era tarde.
Com a vista embaçada, viu as portas se abrirem e guardas armados entrarem correndo.
— Segurança do museu!
Kat ouviu esse mesmo grito se repetir várias vezes, reverberando ao longo dos corredores.
Ela sentiu sua cabeça pesar. Já havia começado a cair.
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Capítulo 34
Do banco traseiro do Bentley de Arturo Taccone, o mundo inteiro parecia estar desmoronando. Uma televisão pequena mostrava a cobertura ao vivo de um correspondente que estava a apenas 6 metros de distância. Taccone olhava da cena da tela para a que se desenrolava à sua frente e não conseguia saber ao certo qual delas representava a realidade.
— Hoje, no museu Henley, houve mais um acontecimento dramático — dizia o correspondente.
— O que o senhor quer que eu faça, chefe? — perguntou o motorista, virando-se para trás.
Arturo Taccone lançou um último olhar para a cena, então colocou seus óculos escuros.
— Vamos embora.
Sua voz era fria e sem emoção, como se outra rodada de seu jogo favorito tivesse finalmente acabado. Um observador não saberia dizer se ele havia ganhado ou perdido. Arturo Taccone estava apenas feliz pela chance de poder voltar a jogar outro dia.
Ele se recostou mais no seu banco de veludo.
— Apenas dirija para longe daqui.
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Os primeiros homens a atravessar as portas da galeria naquele dia eram profissionais experientes. Haviam sido treinados pelo FBI nos Estados Unidos e pela Scotland Yard no Reino Unido. A maioria era composta de ex-militares. Seu equipamento era de última geração. A equipe do Henley via cada roubo a um museu como um insulto pessoal. Alguns poderiam dizer que suas medidas de segurança extremas eram exageradas, um desperdício, mas naquele momento específico daquele dia tão peculiar elas pareceram uma ótima ideia.
Dez homens pararam diante da entrada da galeria, com suas pistolas de choque em punho e máscaras de gás cobrindo-lhes o rosto, observando portas se abrirem por toda a extensão dos corredores do Henley.
Coletivamente, eles representavam uma das forças de segurança privada mais bem treinadas do mundo.
E, ainda assim, nada poderia tê-los preparado para o que viram.
— Esperem — disse o correspondente na televisão e, no mesmo instante, Arturo Taccone voltou sua atenção para a tela. — Estamos recebendo as primeiras informações, não confirmadas, de que o Henley está seguro.
— Pare — ordenou Arturo Taccone, ao que seu motorista encostou o carro.
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— Crianças! — Kat ouviu um dos guardas gritar em meio à névoa que tomava conta de sua mente. — É um monte de crianças!
Ela rolou de lado e olhou através da fumaça enquanto um homem se apoiava sobre um dos joelhos, inclinando-se em sua direção.
— Está tudo bem — disse ele com gentileza.
— Gás — murmurou ela, tossindo. — Fogo. O museu estava pegando...
Um acesso de tosse a impediu de continuar. Alguém lhe entregou uma máscara e ela respirou ar puro.
Ouviram-se mais tosses ao redor da galeria. Com o canto do olho, ela viu Simon segurando uma máscara contra o rosto. Ele estava deitado no chão ao lado de um cavalete vazio, agarrado a uma tela em branco. Os seguranças estavam ocupados ajudando Angus e Hamish a se levantarem, de modo que não chegaram a ver o menor dos meninos sorrir por detrás da máscara. Mas Kat viu.
Deitada no chão naquele dia, Kat viu tudo.
— O que é isso?
Ela conhecia aquela voz. Na última vez que vira aquele homem, ele estava desaparecendo em meio à multidão e à fumaça. Mas agora Hale não estava ao seu lado.
— Quem são essas crianças? — indagou Gregory Wainwright, exigindo uma resposta dos seguranças.
O guarda apontou para o brasão no blazer cor de vinho de Simon.
— Parece que são do Instituto Knightsbury.
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— Por que não foram evacuadas? — perguntou o diretor aos seguranças, mas não esperou por uma resposta. Ele se virou, repreendendo os adolescentes: — Por que vocês não saíram do museu?
—Nós...
Todos na galeria se voltaram para a garota de pernas compridas e saia curta que se levantava, cambaleante. Dois dos seguranças correram para segurá-la pelo braço e ajudá-la a se manter de pé.
— Nós tínhamos uma... — A tosse a dominou por um instante, mas, mesmo que Gabrielle estivesse desempenhando seu papel com mais fervor do que o necessário, Kat foi a única a achar isso. — ...Nós tínhamos uma aula.
Ela apontou para a mochila a seus pés. Pincéis e tintas estavam espalhados pelo chão de mármore, onde haviam caído em meio ao caos. Cavaletes de madeira estavam dispostos em fila, de frente para as obras de arte. Ninguém se deu conta de que havia cinco crianças. Cinco cavaletes. Quatro telas em branco. Ninguém estava interessado em ficar contando.
— A gente devia... — Ela voltou a tossir. Um dos seguranças pousou a mão em suas costas, como se quisesse protegê-la. — Mandaram a gente esperar aqui. Disseram que essa galeria estava fechada e que poderíamos tentar copiar os quadros. — Gabrielle apontou das telas em branco nos cavaletes para as pinturas dos Velhos Mestres que cobriam as paredes. — Quando as sirenes começaram a tocar, a gente tentou sair, mas as portas estavam...
Ela tossiu outra vez e ergueu os olhos para os homens que a cercavam. Pode ser que ela tenha piscado mais que o normal. Pode ser que seu rosto tenha ruborizado. Mil coisas diferentes podem ter acontecido, mas, no fim das contas, ninguém desconfiou quando ela disse:
— . . .trancadas.
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Isto é, quase ninguém.
— Que aula? Por que não fui informado de nenhuma aula? — rugiu o diretor para os seguranças.
O gás já havia se dissipado quase por completo. A respiração de Kat estava mais normalizada. Ela alisou a saia do seu uniforme, sentindo seu equilíbrio voltar. Dois mais dois estavam começando a somar quatro outra vez quando ela se virou e apontou para o aviso na porta aberta, que dizia: GALERIA FECHADA PARA AULA PARTICULAR (PROGRAMA PATROCINADO PELA FUNDAÇÃO W. W. HALE PARA A EXCELÊNCIA ARTÍSTICA).
— Mas... — o diretor começou a falar, virando-se em seguida. Ele passou uma das mãos pelo rosto suado. — Mas e o oxigênio? Os protocolos de segurança contra incêndios deveriam ter matado essas crianças! — Ele se
voltou para Gabrielle. — Por que vocês não estão mortos?
— Senhor — atalhou um dos guardas. — O incêndio foi isolado no corredor seguinte. As medidas de corte de oxigênio não teriam sido acionadas aqui a não ser que...
— Continuem vasculhando as galerias! — gritou o diretor. — Todas!
— As galerias estão todas seguras, senhor.
— Nós achávamos que esta galeria estava segura! — Wainwright olhou para baixo, murmurando algo para si mesmo sobre processos contra o seu museu. — Revistem essas pessoas!
— Senhor — falou baixinho um dos seguranças, se aproximando.
Kat se deliciou com a ironia quando ele sussurrou:
— São apenas crianças.
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— Senhor — interveio Simon, sua voz tremendo a ponto de Kat acreditar que ele estava realmente à beira das lágrimas. — Posso ligar para minha mãe? Não estou me sentindo muito bem.
Então, um dos maiores especialistas em tecnologia do mundo desmaiou.
O som do que veio em seguida foi diferente de qualquer outra coisa que Katarina já tinha ouvido antes. Não era o apito de um alarme. Poderia ser tudo, menos o uivo de sirenes. Um dos museus mais frequentados do mundo parecia uma cidade fantasma, repleta de ecos. Assombrada. E, enquanto os seguranças carregavam Simon até o passeio grandioso, com seu ar mais puro, Kat meio que esperou ver a sombra de Visily Romani pairando acima deles, dizendo-lhe que ela havia se saído bem, mas que não tinha acabado. Ainda não.
Através da porta aberta da galeria dos impressionistas, Kat observou Gabrielle guardar as telas em branco nos estojos grandes. Hamish e Angus botavam pincéis nas mochilas, às pressas. Kat começou a andar até Simon para confortá-lo, mas então se deteve. Ficou escutando.
Um baque. Um eco. Um passo.
Ela se virou no instante em que um homem surgiu na extremidade oposta do passeio. Seus braços se moviam para a frente e para trás.
— Ele se pés batiam com força contra o piso de cerâmica. E foi como se o mundo inteiro tivesse parado de girar quando ele lhes disse:
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— Ele sumiu.
As palavras não foram gritadas. Na verdade, mal passaram de um sussurro Não continham o menor indício de pânico ou medo. O que mais pareciam transmitir era descrença. Sim, era isso, decidiu Kat, embora não soubesse afirmar se a descrença vinha do homem ou dela mesma.
— O Anjo de Leonardo — tornou a falar o homem enquanto o grupo contra o seguia para o centro do majestoso passeio.
As grandes portas duplas da sala do Renascimento estavam abertas.
Uma placa de Plexiglas à prova de fogo e de balas permanecia intacta, protegendo o Anjo de qualquer perigo. Raios laser vermelhos apontavam em todas as direções. Mas qualquer um podia ver que a moldura no centro disso tudo — o coração do Henley — estava vazia.
— Como assim, sumiu? — disse Gregory Wainwright, cambaleando rumo à proteção de Plexiglas, estendendo o braço em direção a uma tela que não estava mais lá. — Ele não pode ter... — o diretor começou a falar, então pareceu finalmente perceber que a moldura não estava vazia, afinal.
O Anjo tinha desaparecido, mas algo ficara ali: um cartão branco com as palavras “Visily Romani”.
É claro que, se eles houvessem revistado Kat, teriam encontrado um cartão idêntico. Se houvessem retirado as camadas da tela branca que cobriam as quatros molduras de sua equipe carregava, teriam visto O Anjo retornando ao Paraiso não era a única
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pintura a sair do Henley naquele dia, embora Kat imaginasse que apenas quatro tivessem saído pela porta da frente.
A tela de Leonardo da Vinci desaparecera. As cinco crianças presas no meio do caos haviam deixado de ser a maior das preocupações. E foi assim que Simon, Angus, Hamish, Kat e sua prima saíram andando em direção à neve fraca com quatro obras-primas guardadas dentro de seus portfolios, cobertas por telas em branco.
Kat respirou o ar fresco. Um novo começo.
Nos dias que se seguiram, nenhum repórter conseguiu entrevistar os jovens artistas que tinham corrido perigo de vida naquele dia. Os curadores do Henley esperaram por uma ligação ou uma visita de um ou mais advogados e algum comunicado sobre quais poderiam ser os prejuízos financeiros, mas não houve nenhuma visita ou ligação do tipo.
Para alguns, era como se os estudantes que tinham ficado presos na galeria dos impressionistas tivessem simplesmente apanhado suas mochilas e telas em branco, saído rumo ao ar de outono e desaparecido feito fumaça.
Um dos guias afirmou ter visto as crianças embarcarem num ônibus escolar parado, com um motorista mais velho ao volante.
Muitos tentaram, sem sucesso, obter declarações de funcionários do Instituto Knightsbury, mas ninguém conseguiu descobrir onde ficava a escola — sem dúvida não havia registro de nenhuma instituição com esse nome em Londres. Nem mesmo em toda a Inglaterra. Algumas das crianças pareciam ter sotaque americano, haviam afirmado os seguranças, mas, após três semanas de tentativas infrutíferas, os jovens, com suas tosses e seus olhos turvos, foram esquecidos, substituídos por alguma notícia mais importante.
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Ninguém viu o homem sentado dentro do Bentley, que ficou observando-os sair do museu em fila indiana. Apenas ele notou que os portfólios que eles carregavam estavam um pouco volumosos demais.
Somente seu motorista o escutou sussurrar:
— Katarina.
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Capítulo 35
Gregor Wainwright não era um idiota. Ele jurava isso para sua mulher e para seu terapeuta. Sua mãe o assegurava de sua capacidade todos os domingos, quando o filho a visitava para tomar chá. Ninguém que o conhecesse de verdade acharia que ele era pessoalmente responsável pela segurança do Henley — afinal, era por isso que contratavam especialistas.
Mas o Anjo... o Anjo havia desaparecido. Sumido do mapa. De modo que Gregory Wainwright tinha quase certeza de que os mandachuvas do museu ficariam inclinados a discordar dele.
Talvez tenha sido por isso que ele não contou a absolutamente ninguém os que seu cartão de acesso havia sumido no meio do caos do incêndio.
Talvez tenha sido por isso que ele não disse uma porção de coisas.
Se outra pintura houvesse sido roubada, talvez tudo pudesse ter sido perdoado. Mas logo o Anjo? Perder o Anjo era demais.
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O artigo publicado na edição vespertina do The Times de Londres não foi bus exatamente o que o público vinha esperando. É claro que a foto em cores da tela desaparecida de Da Vinci estava ali, imensa, no centro do jornal. Nem é preciso dizer que uma manchete sobre o roubo no Henley dominava toda a metade superior da primeira página. E Gregory Wainwright sabia que era apenas uma questão de tempo até as velhas histórias sobre o Anjo voltarem à tona. Sua única surpresa foi o fato de a imprensa ter levado menos de 24 horas para transformar o relato da perda do Henley — e de toda a sociedade — num retrospecto do passado vergonhoso do museu.
Não era culpa de Wainwright que Veronica Miles Henley tivesse comprado o Anjo logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Wainwright não tinha tomado o quadro de seu dono original e o oferecido a um banqueiro que havia colaborado com o partido nazista. Gregory Wainwright não era o juiz que sentenciara que, uma vez que o Anjo tinha sido comprado de boa-fé do patrimônio do banqueiro e uma vez que ficaria exposto ao público, ele não deveria ser retirado das paredes do museu.
“Nada disso é culpa minha!”, o homem queria gritar. Mas é claro que gritar pegaria mal. Pelo menos foi o que sua mãe lhe disse.
A imprensa adorou o caso. O Henley estava sendo vilipendiado e Romani, transformado numa espécie de herói — um Robin Hood que liderava um alegre bando de ladrões.
Ainda assim, se havia algo pelo que Gregory Wainwright poderia se sentir grato, era o fato de os jornalistas nunca terem ouvido falar do garoto.
Wainwright se lembrava de cada detalhe daquele dia como se o estivesse revivendo ininterruptamente...
— Nossos seguranças me garantem que a galeria onde você foi encontrado tinha sido totalmente evacuada antes de os
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procedimentos anti-incêndio serem acionados — afirmou Gregory Wainwright, sentado em frente ao jovem de cabelos pretos e olhos azuis numa pequena sala de interrogatório da Scotland Yard.
Os detetives haviam garantido a ele que estavam preocupados demais em encontrar o ladrão para perderem tempo com aquele garoto, mas o diretor do Henley pensava de outra forma.
— Não vou processá-los — foi a única resposta do rapaz.
— Como você entrou naquela galeria? — tornou a perguntar o homem.
— Eu já disse. Já disse para o cara antes do senhor. Já disse para os caras antes dele e também para os caras que me encontraram: eu estava na galeria quando as sirenes começaram a tocar. Tropecei a caminho da porta.
Quando consegui me levantar, estava preso.
— Mas eu estava naquela galeria. Posso garantir que as portas de nossas salas só travam quando já estão evacuadas.
O menino deu de ombros.
— Acho que o senhor tem um problema de segurança. — Isso era, na melhor das hipóteses, um eufemismo, mas o Sr. Wainwright não estava disposto a admiti-lo. — Talvez minha mãe possa ajudá-lo — ofereceu o menino. — Ela é muito boa nesse tipo de coisa. Sabe, ela trabalha para a Interpol.
Gregory Wainwright podia ver que a mulher ao lado do menino era atraente e bem vestida. Aprendera a avaliar as pessoas quando passou a reparar nas que passavam pelas portas do Henley todos os dias. Sabia identificar turistas e colecionadores, críticos e esnobes, mas não conseguia situar com exatidão a mulher à sua frente.
— Como você sobreviveu às medidas de corte de oxigênio? — perguntou o diretor, ao que o garoto deu de ombros novamente.
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— Um velhote abandonou a cadeira de rodas lá dentro. Ele devia ter problemas respiratórios, porque tinha um cilindro de oxigênio na parte de trás.
Gregory Wainwright fez uma pequena careta ao ouvir um dos homens mais ricos do mundo ser chamado de “velhote”, mas não falou nada.
A mulher começou a se levantar.
— Entendo se precisar que ele assine algum termo de responsabilidade ou outro documento, mas posso lhe garantir que não há razão alguma para segurar meu filho aqui. Ele já sofreu demais.
— Infelizmente, seu filho não pode ir a lugar algum antes que fique provado que ele...
— Provado? — interveio o garoto.
Gregory Wainwright não soube ao certo se o tom era de indignação ou medo, mas a rispidez em sua voz era óbvia.
— Pelo que sei, o roubo aconteceu em outra ala do museu — declarou a mãe.
O garoto abriu os braços.
— Pode me revistar. Vá em frente. Só me diga o seguinte: o que exatamente eu roubei?
A mulher pousou a mão no ombro do filho para tranquilizá-lo, mas o olhar que lançou para Wainwright parecia dizer que essa era uma excelente pergunta.
— Não temos o menor interesse em estender essa questão, Sr. Wainwright — disse a mulher com frieza. — Tenho certeza de que o senhor tem muitas coisas para fazer hoje. Se me permite um conselho, gostaria de lembrá-lo que, em assuntos como esse, a
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rapidez é essencial. Se o senhor não recuperar a tela em uma semana, é bem provável que nunca mais a encontre.
— Sei disso — respondeu o diretor, juntando os lábios finos de modo a passou formar uma linha.
— E, naturalmente, mesmo que ela seja recuperada, pinturas do século XV não reagem bem quando são enfiadas em bolsas de viagem ou jogadas dentro de porta-malas.
— Sei disso — repetiu o diretor.
— E sem dúvida não preciso lhe dizer que o que aconteceu com meu devia ter filho hoje não foi um acidente, preciso?
Pela primeira vez, parecia que a mulher tinha conquistado toda a atenção do homem. Ele ficou boquiaberto, olhando da mãe para o filho como se não fizesse ideia do que falar.
— Alguém causou aquele incêndio, Sr. Wainwright — disse ela e então deu uma risada muito suave. — Mas me sinto uma boba dizendo-lhe isso. — Seus lábios vermelho-escuros se contorceram num sorriso delicado. — Tenho certeza de que já sabe que ele não passou de uma grande distração.
— Ela colocou a palma de uma de suas mãos elegantes sobre a outra. — Um truque de ilusionismo.
O diretor do museu só fez piscar. Sentia-se como se ele próprio ainda estivesse preso numa sala sem oxigênio, enquanto um incêndio corria solto do outro lado da porta. Amelia Bennett se levantou e sinalizou para que o filho a acompanhasse.
— Sem dúvida um homem do seu nível já deve saber que meu filho é tão vítima de Visily Romani quanto o senhor.
Com essas palavras, o último jovem que havia ficado preso no Henley naquele dia deu meia-volta e saiu pela porta, desaparecendo sem deixar rastros.
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E Gregory Wainwright pôde ter seu colapso nervoso em paz.
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ULTIMO DIA
DO PRAZO
PARIS,
FRANÇA
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Capítulo 36
Vinte e quatro horas depois do roubo no Henley, chovia em Paris, O motorista francês de Arturo Taccone parou a limusine (uma Mercedes clássica, azul-escura dessa vez) no acostamento e permitiu que o homem olhasse para a rua estreita, repleta de pequenas lojas. Ele não estava preparado para ouvir alguém batendo na janela embaçada ou para a visão de uma garota que parecia muito pequena e cansada para sua idade entrando no banco de trás ao seu lado.
Ela balançou um pouco seus cabelos curtos, borrifando água sobre os assentos de couro, mas Arturo Taccone não deu importância a isso. Ele estava experimentando muitas outras emoções naquele momento, sendo que a maior delas — ele mal ousava admitir — era a tristeza por aquilo tudo ter acabado.
— Ouvi dizer que gatas não gostam de chuva — provocou ele, olhando para seu cabelo arrepiado e para a capa de chuva encharcada. — Estou vendo que é verdade.
— Já enfrentei chuvas piores — disse a garota e ele não duvidou disso.
— Estou muito feliz em ver você, Katarina. Sã e salva.
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— Porque você ficou com medo de eu ter sido queimada viva no Henley ou porque ficou com medo de eu ser pega e usar nosso acordo como moeda de troca?
— As duas coisas — admitiu o homem.
— Ou sua preocupação era que eu pegasse suas telas e sumisse com elas? E fizesse com que ficassem desaparecidas por mais meio século?
Ele a analisou mais uma vez. Era raro encontrar alguém ao mesmo tempo tão jovem e tão inteligente, tão cheia de frescor e tão vivida.
— Confesso ter nutrido esperanças de que você fosse me trazer, digamos, um bônus. Eu pagaria uma quantia bastante generosa pelo Anjo. Ele teria se encaixado muito bem na minha coleção.
— Não roubei o Da Vinci — disse ela, categórica.
Taccone riu.
— E seu pai não roubou meus quadros — completou ele, dando-lhe uma colher de chá, mas ainda se recusando a acreditar nela. — Sua família é mesmo muito interessante. E você, Katarina, é uma garota excepcional.
Ela sentiu que era sua vez de retribuir o elogio, mas havia mentiras que nem mesmo a sobrinha-neta do tio Eddie era capaz de contar. Então, em cedes vez disso, ela apenas perguntou:
— Meu pai?
Taccone encolheu os ombros.
— A dívida dele comigo está perdoada. Foi uma experiência muito... — irando ele pesou suas palavras — . . .agradável. Quem sabe um dia ele não volte a roubar alguma outra coisa de mim?
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— Ele não... — Kat começou a falar, mas então achou melhor ficar calada.
— Isso, Katarina. Não vamos nos despedir com uma mentira.
Kat o fitou como se quisesse avaliar quanto de verdade poderia haver na alma de um homem como Arturo Taccone, se é que ainda lhe restava algum vestígio de alma.
— As telas estão em condição impecável. Nem um pedacinho de tinta Estou fora do lugar.
Taccone ajustou suas luvas de couro.
— Eu não esperaria menos de você.
— Elas estão prontas para ir para casa. — A voz de Kat falhou e Taccone Flenley percebeu, de alguma forma, que ela não estava mentindo: a melancolia como em suas palavras era sincera. — Estão do outro lado da rua — prosseguiu ela. — Num apartamento abandonado. — Ela apontou através das janelas embaçadas. — Ali. Do lado daquela galeria.
Taccone seguiu seu olhar.
— Estou vendo.
— Agora acabou. Estamos quites — ela fez questão de lembrar.
Ele a analisou.
— Não precisa acabar aqui. Como já disse, um homem na minha posição poderia tornar uma garota como você mais rica do que jamais sonhou.
Kat deslizou em direção à porta.
— Já sei como é ser rica, Sr. Taccone. Acho que vou me contentar em buscar ser feliz.
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Ele deu uma risadinha e a observou partir. Kat já estava fora do carro quando ele disse:
— Tchau, Katarina. Até a próxima.
Kat parou debaixo do toldo de uma loja e o observou sair do carro e atravessar a rua. O motorista não o acompanhou. Ele cruzou a porta do apartamento sozinho.
Embora ela não estivesse ali para ver, sabia exatamente o que ele iria encontrar. Cinco obras de arte inestimáveis.
Quatro telas: uma das bailarinas de Degas, o filho pródigo de Rafael, os meninos de Renoir e O filósofo de Vermeer. E algo mais que ele não estava e esperando: uma estátua que havia sido roubada recentemente da galeria vizinha.
Kat muitas vezes imaginava o que ele haveria pensado ao avistar as telas que amava e a estatueta que nunca tinha visto antes naquele apartamento empoeirado e abandonado.
Perguntava-se se ele teria se virado e olhado para a porta. Talvez houvesse escutado os agentes da Interpol correrem pela rua molhada e se posicionarem em frente às janelas do apartamento.
Será que Arturo Taccone fazia ideia do que estava para acontecer? Kat jamais saberia. Para ela, era suficiente ficar ali observando o bando de agentes uniformizados invadir o local em que ela havia guardado as telas de Taccone e onde o pai tinha escondido sua escultura roubada.
Era suficiente ficar ali e ver o motorista de Arturo Taccone fugir a toda a velocidade, o que não era um problema. A Interpol estava mais do que disposta a dar uma carona para o chefe dele.
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— Elas estão lá dentro?
Kat não deveria ter ficado surpresa ao ouvir a voz, mas ainda assim não pôde deixar de se espantar ao ver o garoto.
— O que você acha? — perguntou.
Nick sorriu.
— Não estou preso, por sinal — disse ele. — Caso você estivesse interessada em saber.
— Não estava.
Por um instante, ele pareceu quase magoado, então Kat acrescentou:
— Ninguém prenderia o filho de uma policial por estar numa galeria em que nada foi roubado.
Mas algo tinha sido roubado no Henley. Eles ficaram um bom tempo parados ali, sem falar nada, até Nick finalmente dizer:
— Ele nos usou. Ou melhor, usou você. Aquele tal de Romani usou você como distração, não foi?
Kat não respondeu. Não havia necessidade. Nick chegou mais perto.
— Um golpe dentro de um golpe. — Ele a encarou. — Está com raiva?
Kat pensou sobre o Anjo do Henley, que naquele instante provavelmente estava batendo as asas de volta para seu verdadeiro lar, e balançou a cabeça.
— Não.
Mesmo assim, nada poderia tê-la surpreendido mais do que ver Nick sorrir e falar:
— Eu também não.
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— Você está dando em cima de mim? — perguntou Kat no mesmo instante. Ela achou que essa era uma pergunta científica perfeitamente válida, até Nick se aproximar dela e dizer:
— Sim.
Ela se afastou dele, daquele flerte.
— Por que você fez aquilo, Nick? E que tal me dizer a verdade dessa vez? s telas Ele desviou o olhar.
— No começo, achei que você me ajudaria a capturar seu pai.
— E depois...? — incentivou Kat.
Nick deu de ombros e chutou uma pedrinha na calçada. Ela foi rolando até uma poça, mas Kat não ouviu o barulho da água.
— Eu quis impressionar minha mãe. E depois...
— Sim?
— E depois achei que poderia... impedir o roubo e ser um herói. Mas...
Kat olhou para a rua, para a chuva. Ela sentiu um calafrio. Depois se defendeu:
— Não costumo roubar nada que não seja meu.
Nick gesticulou para a outra calçada, apontando a dupla de agentes que retirava Arturo Taccone, algemado, do apartamento.
— Você roubou dele.
Ela pensou no Sr. Stein.
— As obras também não eram dele.
Logo em seguida, outro carro passou pela multidão que se formava rapidamente do outro lado da rua, parando no acostamento. Uma morena bonita saiu do banco de trás. Se viu o
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filho debaixo do toldo, não acenou, não sorriu nem questionou por que ele havia ignorado suas ordens de não sair do hotel sem permissão.
— Você é boa mesmo, Kat — disse ele.
— Você quer dizer boa no sentido de habilidosa ou bondosa?
Ele sorriu.
— Você sabe do que estou falando.
Kat ficou olhando Nick ir embora até que a viatura que transportava Arturo Taccone pegou a rua e bloqueou sua visão. Até onde viu, Nick não olhou para trás. O que não era justo, pensou Kat. Porque, dali em diante, ela passaria a vida inteira olhando por sobre o ombro.
Kat mais sentiu do que enxergou a limusine preta parar lentamente ao seu lado no acostamento. Ouviu um pequeno zunido enquanto a janela fumê do banco de trás desaparecia e um rapaz colocava a cabeça para fora.
— Quer dizer que foi o sujeito ali que roubou aquela galeria chique? — perguntou Hale, arregalando os olhos enquanto apontava a viatura que sumia ao longe.
— É o que parece — respondeu Kat. — Fiquei sabendo que ele passou a estátua por um buraco na parede para aquele apartamento vazio.
— Genial — disse Hale, um pouco empolgado demais.
Kat riu enquanto ele abria a porta e ela entrava no carro.
— Pois é — comentou ela. — Na teoria. Só que roubar uma galeria geralmente faz com que a polícia fique um bom tempo rondando o lugar...
— E como é que o cara faz para pegar a estátua dele de volta?
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Kat sabia que era a vez dela, a fala dela. Mas estava cansada de joguinhos. E talvez Hale também.
Ele lançou um olhar para a rua onde Nick havia desaparecido.
— Você não está indo embora com seu namorado?
Kat recostou a cabeça no couro macio.
— Talvez. — Ela fechou os olhos e pensou que essa coisa de flertar não era tão difícil assim, afinal. — Talvez não... Wyndham?
Ela ouviu Hale rir baixinho e então dizer:
— Marcus, vamos para casa.
Enquanto eles pegavam o tráfego, ela deixou o calor do carro se espalhar ou, pelo seu corpo. Não reclamou quando Hale passou o braço em volta dela le não e a puxou para o seu peito. Ele parecia mais macio do que ela se lembrava.
— Bem-vinda de volta, Kat — disse Hale enquanto ela pegava no sono. — Bem-vinda de volta.
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25 DIAS APÓS O
FIM DO PRAZO
NOVA YORK,
EUA
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Capítulo 37
Eles não foram passar o Natal em Cannes. Tio Eddie disse que estava velho demais para viajar — acostumado demais à sua rotina para ser convencido a mudá-la. E, assim, Kat e seu pai se juntaram ao bando que se reuniu no velho prédio de arenito.
Lá dentro estava abafado, como sempre acontecia no inverno, com uma lareira acesa em cada cômodo e o fogão antigo do tio Eddie funcionando na cozinha. De modo que, quando saiu para a varanda, Kat não se importou com a friagem.
— Achei mesmo que fosse encontrar você aqui, Katarina.
Ela entrou em pânico por um segundo, então percebeu que a voz não era de Taccone. Era gentil demais. Simpática demais. Alegre demais.
— Feliz Natal, Sr. Stein.
— Feliz Natal, Katarina — disse ele, tocando o chapéu.
Kat gesticulou em direção à porta.
— O senhor gostaria de entrar?
Com um aceno rápido, ele recusou a oferta.
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— Ah, não, Katarina. Já encontrei a pessoa que estava procurando. — Ele recuou um passo. — Você se importaria de acompanhar um velho como eu numa caminhada breve?
Aquela era uma pergunta fácil — uma das poucas que ela havia escutado em muito tempo.
— Você conquistou um inimigo, minha querida.
Kat levantou sua gola para se proteger do vento gelado.
— Eu poderia ter devolvido as telas para depois roubá-las de volta, mas...
— Teve a ver com o infeliz episódio da prisão de seu pai? — adivinhou ele.
Kat deu de ombros.
— O meu jeito pareceu mais eficiente na hora.
No dia em que havia conhecido Abiram Stein, Kat tinha visto o homem chorar. Era lindo vê-lo rir, pensou ela.
— Li um ótimo artigo sobre o senhor — disse ela.
— No The Times?
— Não, no Telegraph de Londres.
Ele suspirou.
— Foram tantos... Tudo indica que eu sou uma espécie de... Como se diz mesmo? Celebridade instantânea.
Ela riu e aconselhou:
— Não deixe que isso lhe suba à cabeça.
Eles caminharam juntos pela rua tranquila, tendo como companhia apenas os flocos de neve que caíam aqui e ali.
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— Tenho a sensação de que deveria agradecer-lhe, Katarina. Mas isso — ele se deteve e colocou as mãos nos bolsos —, isso seria muito pouco.
— Elas estão... — Kat hesitou, sua voz falhando — ...em casa?
— Algumas, sim — garantiu ele. — Meus colegas e eu conseguimos localizar algumas famílias, alguns sobreviventes. Você leu as reportagens, não leu?
Kat fez que sim com a cabeça.
— Mas, quanto às outras, Katarina, infelizmente os lares delas — ele lutou para encontrar as palavras — já não existem mais.
A neve se intensificou, caindo com mais força enquanto ele continuava a falar:
— Mas os quadros continuam vivos. Agora as pessoas sabem as trajetórias deles. Uma nova geração conhecerá suas histórias. Eles ficarão expostos nos grandes museus do mundo e não aprisionados. — Ele deu um passo em sua direção. Agarrou seus braços, beijou-a uma vez em cada bochecha e então sussurrou: — Você os libertou.
Kat baixou os olhos para a calçada molhada.
— Uma delas não estava lá. — Ela não dissera nada sobre a quinta tela, sobre a moldura vazia, mas de alguma forma sabia que Abiram Stein iria entender. — Só havia quatro. Eu tentei, mas...
— Sim, Katarina — disse ele, assentindo. — Sei de que tela você está falando.
— Eu vou encontrá-la. Vou recuperar essa também.
Uma sensação cada vez mais forte de urgência tomava conta dela, mas o Sr. Stein soou calmo quando falou:
— Sua mãe alguma vez mencionou por que ela me procurou, Katarina? Você sabia que sua trisavó era uma excelente pintora?
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Kat fez que sim com a cabeça. Ela sabia. Quem mais poderia ter forjado a Mona Lisa em exibição no Louvre?
— E sabia que um de seus melhores amigos era um jovem artista chamado Claude Monet?
Eram muitos os boatos que circulavam entre uma família de ladrões e nessa história em especial Kat nunca havia acreditado. Pelo menos até aquele momento.
— Ele pintou sua trisavó certa vez. E deu o quadro a ela de presente. Era seu grande orgulho, seu bem mais valioso. Até 1936, quando um jovem oficial nazista o arrancou de sua parede.
— Mas... — Kat começou a falar.
— Sua trisavó não era judia? — adivinhou Abiram Stein. — Quando o assunto era ganância, minha querida, os nazistas podiam ser muito igualitários.
— Então minha mãe estava procurando pelo quadro da bisavó dela? — disse Kat, compreendendo-a um pouco melhor.
— Foi a única coisa que ela não conseguiu roubar. — Abiram sorriu. — Se eu fosse você, não me preocuparia com o último quadro, Katarina. Essas coisas costumam encontrar o caminho de casa sozinhas.
— E o Anjo? — perguntou Kat.
— Ah, acho que nosso amigo, o Sr. Romani, vai providenciar pessoalmente seu retorno.
Eles pararam no final do quarteirão e Kat ficou olhando enquanto ele chamava um táxi.
— Uma mulher muito sábia me disse certa vez que alguém como você seria muito útil para um homem como eu. Você concorda? — disse ele.
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Mas algo em sua expressão fez com que Kat achasse que ele já sabia a resposta.
Ele andou até o táxi.
— Até mais, Katarina. — Havia um novo brilho em seus olhos quando ele entrou no carro e começou a fechar a porta. — Estou certo de que nos veremos outra vez.
Kat gostaria de acreditar que tinha previsto todas as reviravoltas — que havia identificado todas as peças de Romani e antecipado suas próximas jogadas. Mas, enquanto andava de volta para o prédio de arenito, ela sabia que isso não era verdade. Não era nenhum mestre do crime. Não era tão boa quanto Romani ou o tio Eddie. Jamais seria seu pai ou sua mãe. Mas tampouco era a garota que havia fugido para a — ou da — Escola Colgan.
Quando entrou de volta no prédio, ela percebeu que a casa do seu tio não lhe pareceu quente demais. A cozinha, pensou ela, estava na temperatura perfeita.
Tio Eddie estava diante do fogão, mexendo um cozido e esperando o pão ficar pronto. Seu pai estava sentado com Simon, analisando as plantas do Henley. Ele jurava que seu interesse era puramente acadêmico e que, àquela altura, o museu já teria reformulado o sistema de segurança inteiro, de modo que não havia risco em compartilhar o que tinham descoberto.
Somente Hale ergueu os olhos quando Kat entrou. Ele indicou uma das cadeiras ao seu lado e ela se sentou à mesa sem pensar duas vezes.
Lá fora, a neve ainda caía. No quarto ao lado, tio Vinnie entoava uma antiga canção russa, cujas palavras Kat jamais compreendera.
— E quanto ao senhor, tio Eddie? — perguntou Gabrielle da cabeceira da mesa. — Quem o senhor acha que Romani é na verdade?
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Kat se lembrou das palavras do tio Eddie: “Ele não é ninguém. Ele pode ser qualquer um.” Mas, ainda assim, prendeu a respiração quando seu tio se virou devagar.
— Acho que existem duas pessoas neste mundo que conseguiram planejar um roubo bem-sucedido no Henley, Gabrielle.
Kat sentiu a cozinha ficar em silêncio e o olhar de seu tio se fixar nela.
— Visily Romani, seja ele quem for, é a outra.
Hale estendeu o braço debaixo da mesa para agarrar a mão dela. E, no momento em que Kat se inclinou mais para perto dele, recostando -se relaxada, contra o seu corpo, a porta dos fundos foi escancarada e os irmãos Bagshaw entraram correndo, trazendo junto o ar gelado da rua.
— Está um gelo lá fora — comentou Hamish.
Ele andou até o fogão e pegou uma tigela das mãos do tio Eddie sem pedir, provando com esse simples gesto que Angus e ele haviam sido oficialmente perdoados pelo incidente com a freira e recebidos de volta de braços abertos. Como heróis da conquista. Os meninos que tinham explodido o Henley.
— O que é isso? — perguntou Hale e só então Kat notou o pequeno pacote embrulhado em papel pardo que Angus carregava debaixo do braço.
— Não sei — disse o irmão mais velho. — Encontrei lá fora. Tem um bilhete dizendo que é para Kat.
A primeira pessoa em que ela pensou foi o Sr. Stein. A segunda, mesmo que apenas por um instante, foi Nick. Mas quando pegou o embrulho, rasgou o papel e olhou para a tela em suas mãos, Kat descobriu que os dois palpites estavam errados.
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Uma menina: Ela viu uma menina de cabelos pretos e lisos e um rosto em formato de coração, com um corpo pequenino e uma postura devota, ajoelhada, rezando para Nicolau, o santo padroeiro dos ladrões.
No cômodo ao lado, a cantoria do tio Vinnie ficou mais alta. Ali na cozinha, tio Eddie voltou sua atenção ao cozido. Simon e seu pai analisavam as plantas.
Kat teve a sensação de estar completamente sozinha com Hale e Gabrielle quando ouviu sua prima perguntar:
— Isso é o que eu estou pensando?
Kat assentiu, sem palavras, enquanto um cartão branco caía do embrulho e aterrissava em cima da mesa do tio Eddie.
Querida Katarina,
Pode ter certeza de que o Anjo está feliz e em segurança. A tela em anexo é sua. Já está na hora de ela, também, voltar para sua família.
Bem-vinda ao lar,
Visily Romani
Kat ergueu os olhos e viu o rosto apreensivo de Hale colado ao de Gabrielle. O sorriso dela tranquilizou os dois Por um instante, seus pensamentos se voltaram para a confissão de Hale — sua passagem de volta para a Colgan —, que estava guardada no fundo da sua mala.
Mas quando Kat tornou a baixar os olhos para a tela inestimável no seu colo, ela pensou na menina que rezava para o santo
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padroeiro dos ladrões. Katarina Bishop continuava certa de não ser nenhum Visily Roamni. Mas...
(Ela sorriu.)
... Sabia que poderia ser.
Fim...
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Continua em :
Katarina Bishop tem gasto um monte de rótulos em sua curta vida. Amigo. Sobrinha. Filha. Ladrão. Mas nos últimos dois meses, ela é simplesmente foi conhecida como a garota que dirigia o grupo que roubou o maior museu do mundo. É por isso que Kat não se surpreende quando lhe pediram para roubar a famosa Cleópatra Esmeralda para que ele possa ser devolvido aos seus legítimos proprietários. Existem apenas três problemas. Primeiro, a jóia não foi vista em público em trinta anos. Em segundo lugar, desde a queda do império egípcio e o suicídio de Cleópatra, ninguém que possui a esmeralda a mantém por muito tempo, e no mundo de Kat, a história quase sempre se repete. Mas é o terceiro problema que faz com que a tripulação de Kat fique mais nervosa e isso é simplesmente porque ... a esmeralda é amaldiçoada. Kat pode estar com as coisas sobre sua cabeça, mas ela não vai desistir sem lutar. Afinal, ela tem o seu melhor amigo — o lindo Hale - e o resto de sua tripulação com ela enquanto eles correr atrás de Cleópatra por todo o mundo, esquivando-se de maldições, percebendo que mesmos os truques e os contras que sua família tem usado há séculos são inúteis neste momento. O que significa que, desta vez, Katarina Bishop está fazendo suas próprias regras.
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Série ladrões de Elite é publicado aqui no Brasil pela editora Arqueiro
Ally Carter é uma escritora que vive e trabalha no Centro-Oeste dos Estados Unidos. Ela amava a escola tanto que ela continuou indo até que finalmente ela teve de pós-graduação. Agora ela tem graus de Oklahoma State University e da Universidade de Cornell e uma casa e um emprego e outras coisas muito crescidos.

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