terça-feira, 9 de julho de 2013

Rachel Cohn - Pão de Mel 02


Siri - Rachel Cohn
Cyd Charisse está de volta a São Francisco. E se aprendeu uma lição nas férias em Nova
York foi que seu coração só tem um dono: Siri, "aquele garoto", como diz sua mãe. Depois
da agitada temporada na Big Apple, quando reencontrou o pai biológico, conheceu seus
meios-irmãos e aprontou algumas boas, parece que a Pequena Rebelde agora sabe o que
quer e está disposta a tudo para reconquistar o seu grande amor.
É também o último ano no colégio e Cyd está realmente mudada. Pena que isso não tenha
muito a ver com tirar boas notas ou ter planos para a faculdade. Ela até tenta se esforçar,
porém sua prioridade é Siri. Mas o surfista parece mudado também, e talvez os dois
precisem se conhecer novamente para terem certeza do que querem.
No caminho da reconquista, algumas armadilhas estão prontas: como Cyd vai se
reaproximar do surfista e continuar em paz com sua mãe? Será que um feriado prolongado
em Nova York pode balançar o coração da jovem? Para o que precisar, ela poderá contar
com a ajuda da sempre amável Pão-Doce e de novas amigas, Helen e Autumn. À medida
que a formatura se aproxima, Cyd percebe que o futuro é muito maior que uma paixão e
precisa decidir como será sua vida - independentemente de estar com ou sem o seu Siri.
Nesta sequencia de Pão-de-Mel, Rachel Cohn mantém o humor afiado e a atitude
irreverente. Em Siri, Cyd está um pouco mais velha e amadurecida, mas ainda rebelde e
determinada a encontrar seu caminho - e do seu jeito.
RACHEL COHN cresceu nos arredores de Washington, D.C., e viveu em São Francisco
por muitos anos. Atualmente, vive em Nova York. Pão-de-Mel foi seu primeiro romance,
originalmente inspirado no desenho de um amigo e escrito nas longas horas que passou em
cafeterias ou andando pelascolinas de Ocean Beach e Pacific Heights, em São Francisco. É
também autora de Princesa Pop.
*
Para mamãe, vovó e vovô.
*
Agradecimentos
Pelo apoio extraordinário, um “muito obrigada” para David Gale, Alexandra Cooper, Beth
Gamel, Xanthe Tabor, Virginia Barber, Jennifer Rudolph Walsh, Alicia Gordon, Amy
Sherman-Palladino, Robert Lipsyte e Ceridwen Morris. Um “oi” para Joey Regan e Molly
Regan, e obrigada ao Writers Room em Nova York pelo incrível espaço para escrever. E,
especialmente, muito amor e agradecimentos a todos os leitores que escreveram pedindo
uma continuação.
Um
Minha irmãzinha Ashley apossou-se oficialmente da minha boneca Pão-de-Mel no meu
17º aniversário. Você pode dizer que 17 anos é um pouco demais para finalmente largar
uma boneca da infância, mas a Pão-de-Mel não era uma boneca comum. Ela tinha sido
minha irmã espiritual número um a vida toda, essa querida boneca de pano foi a única coisa
decente que meu pai biológico, Frank, me deu na vida que não fosse uma poupança, a
transferência genética da altura de um mutante e um verão em Nova York sozinha com ele,
onde se relevou ser um cachorro de primeira. E, de qualquer forma, se alguém perguntasse
“quantos anos você tem para ainda estar carregando uma boneca?”, eu apenas lançaria um
olhar inexpressivo do tipo: “O que você tem a ver com isso?”
Eu dormia como uma pedra na manhã do meu aniversário quando senti meu futon novo
balançando. Meus sonhos me disseram para sair da cama e correr para o vão da porta:
terremoto. A sensação do pijama de flanela esfregando nos meus braços e o cheiro do hálito
de cereal de chocolate disseram outra coisa aos meus sonhos. Abri meus olhos para ver o
rosto dos meus meio-irmãos, Ashley e Joshua.
— Feliz aniversário, Pedacinhos de Cyd Charisse! — disse Ashley, no que soava
basicamente como um grito, mas que nada mais era do que uma tentativa de cantar. O
estrado do futon estalou sob seu peso, enquanto ela pulava na cama. Ash está na segunda
série em termos de idade, mas na quinta em matéria de peso. O verdadeiro aluno da quinta
série, Josh, tentou se enrolar no colchão, como se quisesse virar uma múmia nele. Talvez
pedir um futon novo como presente de aniversário para substituir a velha cama de dossel à
la princesinha que costumava estar em meu quarto — projeto do decorador de minha mãe
para assombrar meus sonhos — não tenha sido a ideia mais inteligente do mundo.
— Adivinhe o que mamãe e papai compraram para você de aniversário! — disse Ash.
— Você está estragando o meu presente neste exato momento! — resmunguei. Agarrei-a e
a coloquei na cama ao meu lado. Ash e Josh estavam dormindo quando voltei de Nova
York na noite anterior, portanto era a primeira vez que eu os via desde que voltara para
casa, em São Francisco. Só havia ficado fora algumas semanas, que pareceram uma
eternidade, então eu precisava ver se Josh e Ash pareciam tão diferentes quanto eu sentia.
Estavam iguais, talvez mais bonitinhos: Josh, com seu corte de cabelo lourinho tipo pajem e
olhos azul-bebê, herdou a beleza escandinava de nossa mãe. Ash, com seu angelical rosto
redondo e cachinhos castanhos puxou o papai Sid, que tinha pouco cabelo castanho em sua
cabeça quase toda careca, mas que, como Ash, está sempre com as bochechas rosadas e
feliz de terminar a sobremesa de todo mundo. Depois do último verão, estou bem
consciente de que sou um clone magrelo, bizarramente alto e de cabelos pretos do meu pai
biológico, Frank. Pelo menos na aparência. A personalidade, espero puxar de outro lugar.
Ash esfregou a cabeça de cachos castanhos no meu ombro, depois virou os olhos para Pãode-
Mel, deitada no travesseiro ao meu lado.
— Acho que Pão-de-Mel deveria vir morar comigo, droga — cochichou ela na minha
orelha. O acampamento de verão da Ash deve ter funcionado como uma escola de etiqueta
para resultar na bem-sucedida transição de sua palavra favorita com “p” para “droga”. E ela
teve a decência de não pronunciar esses pensamentos alto na frente da Pão-de-Mel, embora
a boneca provavelmente já saiba. Uau, que progresso.
— Sem chance — cochichei de volta. Se eu não tinha deixado Pão-de-Mel em Nova York
com a senhorita Loretta, sua mãe espiritual que fazia Pão-de-Mel, por que eu a deixaria
com Ash, que é puro terror? Apesar de Pão-de-Mel estar ficando mal-humorada comigo
vagabundeando por aí e ter insinuado que preferia um estilo de vida mais tranquilo, como
ficar deitada na cama de alguém, cuidando das outras bonecas.
Josh subiu na minha barriga.
— Mamãe e papai compraram outra coisa além da cama. Compraram uma máquina de
cacapuccino para você. — Sua boca borbulhou com um barulho de peido.
— É CAPP-U-CCINO, não CACA-PU-CCINO — corrigi. E, eca, apreciei a ideia de um
presente de níver de Sid e Nancy, mas não o presente. O ponto principal do meu grande
plano de um dia ser a maior proprietária de cafés do mundo é poder sair de casa para tomar
um café, não ficar em casa. É por isso que dizem “Estou saindo para um café”, e não “Oh,
deixe-me tirar uns cappuccinos descafeinados para o papaizinho e a mamãezinha e vamos
todos assistir a um filme bobinho juntos.” Que arrepio.
— Você viu os bolinhos na noite passada? — perguntou Josh.
Quando voltei para casa do aeroporto, Ash e Josh haviam deixado um presente na mesa da
sala de jantar para mim: mini-bolinhos de chocolate com cobertura de cream cheese
arrumados sobre a mesa para formar as palavras FELIZ ANIVER....
— Ash e Josh só tinham bolinhos suficientes para escrever aniver — dissera Papai Sid
quando me encontrou na sala de jantar. Ele me agarrou num abraço de urso, só que eu era a
ursa; ele bate no meu queixo. Meu padrasto, que é mais do que isso porque é o único pai
que eu tive de verdade, estava dando a Ash e a Josh o crédito pelos bolinhos, mas eu sabia
que a ideia era dele. Quando minha mãe e eu viemos morar com ele, em sua casa em
Pacific Heights, que quando eu tinha 5 anos parecia maior do que qualquer castelo da
Disney que eu poderia imaginar, ele me levou pela mão até meu quarto novo, onde uma
trilha de bolinhos estava esperando por mim na cômoda. Eles formavam a frase BEMVINDA
CYD CHARISSE. Nancy dera a dica para ele que eu tinha um fraco por doces,
principalmente bolinhos que sempre achei muito melhores do que bolos grandes. Docinhos
são seres independentes. É por isso que quando papai Sid não me chama de Pequena
Rebelde, ele usa esse outro nome carinhoso para mim, Docinho. Se Frank, meu pai
biológico, algum dia tivesse tido um apelido para mim, provavelmente seria um nome de
índio americano, tipo Aliviado Quando Ela Vai Embora.
— Sim, Hipergaroto, eu vi os bolinhos e muito obrigada — disse eu para Josh. Levantei a
coberta do outro lado e ele se jogou perto de mim. Eu estava tentando me imaginar
deitando na cama com lisBETH e Danny, meus meios-irmãos em Nova York. LisBETH e
Danny são adultos e não haveria espaço para nós três numa cama, de qualquer forma, mas
ainda assim não consigo ver nós três tão próximos como sou de Ash e Josh. LisBETH, não
Elisabeth, nem Beth, lisBETH, é tipo minha mãe — irritante, mas está ao seu lado quando
você precisa dela —, mas de forma alguma eu me sentiria confortável numa conversa
matinal com lisBETH, olho no olho com cabelo bagunçado e dentes que ainda não foram
escovados. Eu mal a conheço. Com Danny... talvez, algum dia.
— Se você esteve em Nova York este verão visitando sua outra irmã e seu outro irmão, por
que eles não são nossos irmãos também? — perguntou Josh.
Honestamente, eu adoro ser a irmã mais velha e maneira deitada em seu futon de
aniversário servindo de recheio de sanduíche com Ash e Josh enquanto eles brincam, um de
cada lado, com meu cabelo. Mas não acho que seja minha responsabilidade explicar-lhes
sobre Nancy, nossa mãe. Que era uma dançarina que virou modelo aos 23 anos em Nova
York e ficou grávida de um homem casado, me teve, largou o tal homem casado e mais
tarde se mudou para São Francisco para se casar com papai Sid e procriar Josh e Ash com
ele, e então esperou quase 17 anos para me mandar de volta a Nova York para que eu
encontrasse meu pai biológico e seus dois filhos crescidos. Assim, apenas disse a Josh:
— Porque a bruxa-madrinha que mora no sótão disse que eu era a escolhida.
Fui salva de maiores explicações por Nancy na porta do meu quarto. Ela usava um
uniforme de ioga rosa-claro. Com as calças bem baixas para mostrar sua barriga sequinha e
top rosa combinando, seu cabelo louro puxado para cima num rabo-de-cavalo e os lábios
com brilho labial rosa e bochechas rosadas, ela parecia mais uma musa adolescente do que
uma mãe de três chegando aos 40 anos. Por um momento ela pareceu feliz de ver nós três
juntos na minha cama nova, e então suas sobrancelhas perfeitamente feitas se moveram e
ela franziu a testa apenas um pouco, sua pose clássica de mulher da alta sociedade sem
alegria, como se tivesse acabado de morder um limão.
— Nunca vou entender por que você quis esse traste de colchão em vez daquela elegante
cama antiga e do colchão premium que o decorador escolheu para você. Garanto que você
vai ter problemas nas costas em uma semana nesse futon. — Ela soltou um de seus antigos
suspiros, então, no que parecia ser uma mudança de ânimo pré-menopausa, disse: — Feliz
aniversário, querida. Bem-vinda de volta. — E seguiu pelo corredor afora.
Achei que tinha sentido Ash e Josh se encolherem, um de cada lado do meu corpo, quando
Nancy pronunciou as palavras bem-vinda de volta e querida. Antes de eu partir para Nova
York, quando estava de castigo no meu quarto fazendo jus ao apelido de Pequena Rebelde,
não Docinho, Nancy e eu estávamos em estado de guerra. As cortesias que Ash e Josh
ouviram pela última vez Nancy e eu trocarmos envolviam gritos ensurdecedores seguidos
por batidas de portas que sacudiam o quarto. Mas desde a inesperada visita de Nancy a
Nova York, quando eu estava na casa de Frank, meu pai biológico, em que ela realmente
me ajudou com minha pequena crise lá (nota para mim: Pequena Crise daria um excelente
nome para uma banda, preciso arrumar talento musical), as coisas estão mais tranquilas
entre nós. Por enquanto. Nancy só recentemente elevou Siri, o amor da minha vida e uma
das causas do castigo anteriormente mencionado, da posição de “aquele garoto” para a
categoria de merecer ser chamado por seu verdadeiro nome (que realmente é Siri; já vi sua
certidão de nascimento). Quem sabe quanto tempo a nova paz com Nancy vai durar depois
que o ano escolar começar e o destino desfizer aquela cruel piada de Siri me dando o fora
no começo do verão passado e o trouxer de volta para seu papel de meu único amor
verdadeiro?
— O que vai fazer hoje? — quis saber Ash.
— Vou andar por aí — disse eu. Andar por aí é o melhor presente de todos depois do
castigo de ficar trancada no meu quarto. Agora estou livre para ir onde eu quiser. E em
Nova York aprendi que andar, sem destino e com um pai biológico que não se importava o
suficiente para te mostrar as coisas é a melhor forma de sentir as ruas, mesmo quando o
tempo está escaldante e elas têm cheiro de lixo assado misturado com castanhas confeitadas
vendidas na esquina.
Nunca tive um aniversário só para mim antes e não tinha certeza do que fazer com ele. Eu
não tinha amigos da minha idade com quem celebrar, para ir ao shopping, fazer identidades
falsas ou qualquer coisa normal que garotas de 17 anos fazem com suas amigas em seus
aniversários. Eu esperava ter notícias do Siri, mas nem tinha certeza se ele sabia que era
meu aniversário. Por mais que estivéssemos muito próximos na última primavera, o fato é
que eu nunca contara a ele sobre as coisas no passado que levaram à minha pequena crise,
nunca vi fotos de seus pais ou soube o nome deles, que estavam longe no Corpo da Paz,
como voluntários ajudando o Terceiro Mundo. Além do mais, considerando que estamos
tecnicamente separados e tudo mais, eu não tenho direito de esperar um presente ou mesmo
um telefonema dele.
— Não sei onde vou hoje — respondi —, mas se mamãe e papai deixarem, vocês podem
vir com Pão-de-Mel e comigo. Vamos andar pelas ruas e ver o que acontece. — Olhei pela
janela do meu quarto do alto de um morro em Pacific Heights em direção à verdadeira ilha
de Alcatraz ao longe: essa antiga prisioneira iria sentir prazer com essa simples liberdade.
Ash se vestiu e saiu comigo num instante. Ela não iria se meter com a simples liberdade
também, e não reclamou enquanto subíamos a Divisadero Street, uma ladeira tão inclinada
que nem ônibus se arriscavam em passar por essa parte dela — e Diviz é uma grande via de
acesso da cidade. Subimos, ofegantes, até o topo da Diviz na Broadway, no topo de Pacific
Heights, então descemos, respirando fundo, em direção a California Street. Quando eu
estava no colégio interno na Nova Inglaterra, eu costumava odiar voltar para casa em São
Francisco, mais do que eu odiava aquela antiga e idiota Nova Inglaterra. Agora “A Cidade”
(como os nativos a chamam) parece diferente. Enquanto Ash e eu vagávamos em frente às
casas vitorianas, eu aproveitava de verdade o ar frio da baía, que soprava através do meu
corpo, a brisa oceânica misturada com o cheiro de eucalipto e fumaça de chaminés de todas
as casas e lareiras. A sensação e o cheiro do ar frio me esquentaram, me fazendo lembrar de
Siri.
Ash segurou minha mão enquanto atravessávamos para Fillmore, onde decidimos que
deveríamos pegar um ônibus para Castro, a descolada capital gay do mundo. Meu primeiro
negócio lá seria comprar uma xícara decente de café na Castro Street, então iríamos para
Mission, comer burritos. Dá para achar uma xícara de café decente em Nova York, pelo
menos no café Danny’s, mas não há burritos bons naquela cidade. Burritos são uma forma
de arte que deveria ser deixada só para a costa oeste, suspeito eu. Nova York já tem muitas
outras coisas para se gabar.
Claro, todo o tempo que andamos, Ash ficou bem comportadinha, segurando minha mão,
sem reclamar de andar, o que acabou sendo a parte de sua estratégia para me amolecer.
Mais tarde, naquele dia, depois que voltamos para casa, Ash me convidou para seu quarto.
Pão-de-Mel estava deitada na cama dela, obviamente raptada durante meu banho.
— Ela é minha agora — declarou Ash. Então minha irmãzinha iniciou o ataque final.
Ash tinha uma enorme coleção de Barbies customizadas por ela mesma. Além da Barbie
Filme de Terror (cabeça arrancada pela metade, roupas rasgadas e destruídas), Barbie
Comando (bandana camuflada, Ken com pistolas de brinquedo roubadas do Josh), e a
minha favorita: a Barbie Gorda (vestida num saião, com enchimento no corpo e um queixo
duplo, graças à discreta colocação de massinha). Acho a Barbie Gorda genial, mas Nancy
surtou quando a viu. Nossa mãe, cuja beleza de estátua loura de Minnesota faz com que ela
pareça uma Barbie, usa tamanho 36 em seus dias mais gordos. Nancy é tão preocupada com
o peso de Ash que não a deixa ter sua Barbie São Francisco, que usa uma bela jaqueta
dourada com uma longa saia preta rodada — bem retrô dos anos 1950 — porque a Barbie é
feita especialmente para uma loja de balas e Nancy fica preocupada com a mensagem
subliminar que Ash pode receber. Talvez Nancy devesse voltar atrás e se preocupar mais
com as mensagens não tão subliminares que o ideal de Barbie sorridente, magricela, de
peitões dá para uma garota de 7 anos de idade, mas, o que eu sei da vida?, como Nancy
sempre me lembra.
Nancy realmente teria surtado com a Barbie Safada, a nova criação da Ash, que ela vestiu
enquanto eu estava tomando banho. A Barbie Safada, deixada na cama da Ash para eu
inspecionar, foi inspirada em nosso programa na Castro Street mais cedo. Culpa minha por
ter deixado meu vício por cafeína prejudicar meu julgamento tempo o suficiente para deixar
Ash vagar pela loja ao lado enquanto eu pedia um café com leite. A Barbie Safada, metida
num corpete de couro preto com um decote em V que descia de seus ombros até seu
umbigo, segurando um chicote de borracha em sua mão, foi inspirada nas roupas de couro,
chicotes e correntes feitas para bonecas Barbie que Ash comprou sem meu conhecimento
no que pareceu ser uma loja de fetiches para Barbies ao lado do café. Culpa minha. Eu
tinha acabado de ganhar permissão para pegar o ônibus, e meu jantar de aniversário era a
oportunidade que eu queria para convencê-los a deixarem eu tirar a carteira de motorista. E
Ash sabia que eu não iria arriscar minha nova liberdade admitindo que deixei minha
irmãzinha entrar em uma loja para adultos enquanto eu estava cuidando do meu vício por
café.
— O que quer dizer S&M? — perguntou Ashley, com cara de inocente.
— Sucos e Marshmallows — respondi. Ela balançou sua cabeça grande, indicando que não
acreditava na minha resposta. Então eu não tinha escolha. — Qual é seu preço, gênio do
mal? — perguntei.
Ash apontou para Pão-de-Mel.
Então eu levantei o assunto com Pão-de-Mel, que é de certa forma uma telepata. Disse a
ela, você sabe que Ash só quer você porque ela quer tudo o que é meu, e você sabe que ela
vai ficar entediada em, tipo, uma semana porque você não vai planejar com ela maneiras de
destruir o universo que é o quarto dela, mas a coisa é que eu meio que não posso fazer
nada. Estou na missão Siri, e não posso deixar que uns acessórios de fetiche Sadomasô da
Barbie estraguem isso. E Pão-de-Mel veio com tudo: esses velhos ossos de trapos estão
cansados de sacudir por aí na sua bolsa por todos os lugares que você vai agora: me dá um
descanso e o controle remoto — sim, vamos fazer isso. Eu disse, você é legal, Pão-de- Mel.
Nós sabemos que a Ash vai fazer de tudo para te torturar, mas vou avisar com todas as
letras que ela pode bagunçar o quarto, estragar suas bonecas e a coleção de lingerie
Christian Dior da mamãe, mas cabeças vão rolar se ela tentar esse absurdo com você.
Especificamente, cabeças de Barbies.
Assim, Pão-de-Mel graciosamente aceitou o novo acordo de moradia.
Eu estava sentada na cama de Ash, entregando a Pão-de-Mel para minha irmãzinha,
explicando as regras — Pão-de-Mel é uma rainha que deve reinar estritamente na cama de
Ash, e não pode ser encontrada pendurada de cabeça para baixo nos puxadores da gaveta da
cômoda de Ash, jamais — quando Nancy passou pelo quarto de Ash e então se virou.
— Não acredito nisso — disse Nancy, observando a troca. Ela esteve atrás de mim para
largar minha boneca quase desde que eu ganhei Pão-de-Mel, quando eu tinha 5 anos e meu
pai biológico, Frank, a deu pra mim da única vez que eu o encontrei, sem contar o verão
passado. — Vai chover canivete?
O que me restava fazer?
O risco agora é maior com essa nova paz.
Dois
Preciso encontrar o Siri.
Fui procurar por ele em Ocean Beach, no pôr-do-sol no último dia de setembro antes de as
aulas começarem. Me sentei no longo banco de concreto separando a praia do
estacionamento, coberta com várias camadas de suéteres e meias-calças e coturnos, mas
aquecida com o pensamento de resgatar meu amor perdido. E, como uma engrenagem, logo
depois que o grande sol vermelho caiu no horizonte, todos os turistas, que estavam lá para
ver o pôr-do-sol correram para seus carros porque estavam congelando no frio de São
Francisco. A marcha de turistas logo foi seguida por um exército de surfistas de roupas
molhadas emergindo do oceano, todos com corpos deliciosos apoiando suas pranchas nos
quadris. Os surfistas se dispersaram para o estacionamento, para ficar atrás de seus furgões,
onde eles tremiam enquanto trocavam os macacões molhados por roupas normais, para
todo mundo ver. Pior para os turistas, que fugiram todos em seus carros alugados e
perderam uma verdadeira exibição que só Cyd Charisse pôde testemunhar.
Procurei pelo pequeno entre o batalhão de surfistas passando pelos furgões em direção a
Great Highway, os moradores locais que iam para casa a pé e pendurariam as roupas
molhadas nas varandas e sacadas, mas não vi Siri, nem mesmo Java. Não que eu pudesse
ter perdido o Siri de vista, o cara mais baixo com o cabelo arrepiado e uma mecha platinada
na frente. Nós dois temos um tipo de conexão cósmica, então mesmo que eu não o tivesse
visto, eu o teria sentido. E de jeito nenhum penso que ele perderia o último dia de surfe
antes das aulas recomeçarem, especialmente com as ondas superaltas devido ao recente
tsunami em Taiwan ou onde quer que seja que fez com que todos os surfistas comentassem
sobre as ondas incríveis.
A garota que estava sentada num banco vários metros de mim com uma prancheta de
desenho em seu colo gritou para que eu ouvisse.
— Está procurando pelo Siri?
Assenti, desconfiada, pensando que talvez essa garota estranha pudesse ser a famosa
Autumn, que foi a razão primordial, creio eu, para o Siri decidir, no começo do verão
passado, que nós precisávamos dar um tempo. Mas Autumn era uma surfista hippie e a
garota levantando do banco e vindo na minha direção era uma gordinha oriental usando
calças cargo, coturnos pretos e uma camiseta branca com uma foto do Elvis apertando a
mão do presidente Nixon, além de um cinto com uma fivela da Hello Kitty. Admiro
mulheres grandes que usam calças apertadas na cintura com cintos de couro e camisetas
justas mostrando republicanos; é um baita visual que nenhuma hippie enterrando suas
curvas sob saris indianos falsos jamais ousaria usar. Além disso, eu nunca poderia imaginar
alguém chamada Autumn com um cabelo preto cortado curto com uma mancha vermelha
na forma de uma mão pintada no topo da cabeça.
— Sabe onde o Siri está? — perguntei à menina. Ela veio sentar no banco junto a mim.
— Você não deveria saber? — disse ela. —Achei que vocês dois fossem inseparáveis.
Eu estava prestes a dizer "quem é você para saber da minha vida" quando eu a reconheci.
Eu a conhecia. Ela estava na minha classe de história no ano passado na École Des Bizarres
Enfants Terribles, a escola particular "alternativa" em que minha mãe me matriculou no ano
passado, depois que eu fui expulsa do colégio interno chique lá do leste. A escola artística
para bizarros que desafiam a popularidade acabou não sendo tão ruim, na verdade, mesmo
que eu não a frequentasse (tipo, diariamente) como minha mãe pensava (culpa de Siri). A
escola era definitivamente melhor do que qualquer colégio interno metido à besta da Nova
Inglaterra — entretanto, vamos lembrar que ainda é uma escola, que na minha opinião é
uma instituição de merda que nada mais é do que um ritual conspiratório opressor. Dessas
pessoas que dizem "o colégio foi a melhor época da minha vida" eu (a) desconfio muito e
(b) estou convencida de que são uns bostas. Para minha sorte, finalmente cheguei ao último
ano, e então a liberdade será para sempre. Nove meses e estarei solta no mundo. Cuidado,
mundo.
No ano passado, na escola, essa garota tinha o cabelo comprido e preto como o meu que
caía sobre a mesa quando ela dormia durante as aulas, um sono em que ela sempre
terminava com o dedão na boca e uma baba escorrendo pela mesa ao meu lado. Seu nome
era... não me lembro. Semestre passado foi uma intoxicação profunda de Siri. Não sei de
nada sobre ninguém nem nada que tenha acontecido comigo naquele período.
— Terminamos — disse eu. Mas era mais algo como: ele me largou no começo das férias
de verão porque eu estava supostamente estragando o barato dele quando o acusei de estar
aprontando por aí com uma garota chamada Autumn enquanto eu estava presa em Alcatraz,
anteriormente conhecido como meu quarto, por passar a noite na casa dele. Mas o
verdadeiro amor é uma força que não pode ser negada, e eu sei que de uma forma ou de
outra Siri e eu vamos voltar.
E eu estou bem mais calma agora.
Mas onde será que o Siri está? As ligações para a casa que ele divide com o irmão só dão
na secretária eletrônica e ele não apareceu para ver nossa amiga Pão-Doce na casa de
repouso desde o final de agosto, e ela também não sabe onde ele está.
— Que droga — a garota disse.
Helen! Esse era o nome dela, como o da minha morta famosa favorita, Helen Keller.
— Vocês dois viviam grudados um no outro ano passado, estou surpresa que te reconheci,
considerando que seu rosto estava sempre enfiado no dele toda vez que te via na escola.
Ouvi dizer que o Siri está surfando no Pacífico Sul e, tipo, volta pra escola quando cansar
de lá. Quer ir para o Java the Hut e ter certeza?
— Não — disse eu. A primeira vez que eu encontrar Siri novamente depois de nossa
separação de verão não quero que seja no café do irmão dele em Ocean Beach, onde Siri e
eu trabalhávamos juntos. No mesmo local onde eu desenvolvi essa insaciável atração
paralela PURAMENTE PLATÔNICA pelo irmão dele, Java, cujo nome verdadeiro é
Wallace. Java é uma versão mais alta e mais encorpada de Siri, que também é uma visão de
perfeição física. Ele pode ser o magnata do café, mas Java não é o Siri, Java é o cara com
quem você teria fantasias sexuais envolvendo banheiras quentes e lamber chocolates em
partes do corpo, o tipo de fantasia a que você provavelmente faria "eca" se a oportunidade
real aparecesse. Siri é o cara com quem você quer acordar de conchinha pelo resto da sua
vida sem nem se preocupar em ter uma bala de menta no primeiro contato de manhã.
Olhei para o colo de Helen, para a prancheta com um desenho a carvão no estilo de
quadrinhos, mostrando um velho esquisitão e baixinho usando uma jaqueta de couro, botas
de caubói e uma bandana amarrada no pescoço, e uma longa barba grisalha e pontuda
saindo do queixo. Ele estava no meio de um monte de árvores e a visão de perfil de seu
corpo inclinado mostrava as palavras CAÇADOR DE BOLAS nas costas de sua jaqueta de
couro.
— O que é isso? — perguntei a ela. O tal Caçador de Bolas parecia familiar.
— É uma história em quadrinhos que estou tentando desenvolver. É sobre um super-herói
idoso que está sempre no campo de golfe em Land's End caçando bolas de golfe que se
perdem entre as árvores. E, tipo, talvez resolva mistérios e tudo mais.
— Já vi esse cara! — No topo da pirambeira que é o Land's End, onde a colina dá vista para
o ponto onde o Oceano Pacífico encontra a Golden Gate (e onde Siri e eu ficamos pela
primeira vez no carro detonado do irmão dele, estacionado sob árvores curvadas na crista
da rua onde venta), há um belo museu chamado Califórnia Palace da Legião de Honra. O
museu foi construído em um estilo neo-alguma-coisa ou outro parecido com uma escultura
do pensador de Rodin na frente. A Legião de Honra é famosa também por estar em algum
filme do Alfred Hitchcock estrelado por alguma louraça com sobrancelhas arqueadas como
se estivesse assustada que não era a minha xará, aquela outra Cyd Charisse, a estrela de
cinema dançarina e bonitona com belas e longas pernas que se esticavam eternamente. Uma
vez eu tirei Pão-Doce do asilo e fomos visitar o museu juntas. Aí ela apontou para esse
cara, que parece um gnomo, no meio das árvores no campo de golfe lá fora. Pão-Doce disse
que todo mundo na Cidade sabia que o cara tinha uma espécie de poder sobrenatural e por
isso ele nunca foi expulso do campo por caçar as bolas.
Helen virou minha nova heroína, ou algo assim. Fora o fato de Siri ser um artista, logo
estou naturalmente inclinada a adorar tipos desenhistas-pintores. Eu realmente admiro
gente que cria vida de uma página vazia, onde apenas espaço em branco existia antes. Eu
mal consigo desenhar um boneco de palitinho. Meus talentos são mais na área econômica,
na de atendimento ao cliente e na de encontrar caras bonitinhos.
— Bem, a outra coisa de que me lembro sobre você — disse Helen — é que quando seu
rosto não estava enfiado no de Siri, estava na frente de uma xícara de café. Quer tomar um
café no Richmond, já que você não quer passar no Java the Hut por causa do seu carinha?
Helen levantou do banco e seguiu em direção ao penhasco em Land's End na rua que
levava ao Richmond District, claramente esperando que eu simplesmente a acompanhasse.
Sou uma mulher de homens. Passei 17 anos nesse planeta passando da garotinha do papai
Sid àquela largadona que arrastava bonequinha de pano, e então para a namorada do
capitão de lacrosse do colégio interno e finalmente para o amor verdadeiro do mais gostoso
surfista-artista de bolso de São Francisco. Fazer amigas nunca foi uma prioridade — nem
pra elas nem pra mim. A única amiga de verdade que eu já tive é Pão-Doce, que é velha o
bastante para contar histórias sobre sacudir o esqueleto em bailes das forças armadas na
Segunda Guerra e depois tirar vantagem de uns poucos bons homens. Mas, neste último
verão, meu novo favorito (e único) irmão mais velho, Danny, me disse que Pão-Doce não
contava realmente, que eu precisava diversificar os negócios.
Então levantei do banco e segui Helen morro acima em direção a Richmond, onde se quer
mesmo saber, os bolinhos são melhores do que os cafés, mas onde aparentemente minha
primeira possível amiga da minha idade estava me convidando a ir.
Três
Fato triste: surfistas não são apenas bonitos; podem ser idiotas também.
Segundo a Helen.
Helen diz que os professores de arte na escola acham que Siri tem potencial para ser um
grande artista, mas falta ambição e orientação. Ela diz que donos de galerias importantes
vieram às exposições de arte da escola porque são amigos dos professores, e mostraram
interesse no trabalho do Siri, mas ele não deu importância. De acordo com Helen, um
"verdadeiro" artista mataria por uma oportunidade dessas. Helen diz que Siri
provavelmente poderia ir para as melhores escolas de artes do mundo se quisesse, mas ele
não corre atrás de oportunidades e pessoas que poderiam ajudá-lo a elevar seu talento a um
nível mais alto. Ele prefere ir atrás das ondas a encontrar outros artistas e estudar em Nova
York ou Paris.
Eu não sei se gosto de que Helen saiba coisas sobre Siri que eu nunca soube. Eu sabia que
ele era talentoso, mas não sabia nada sobre os donos de galeria; nunca ouvi dizer que os
professores queriam ajudá-lo a entrar em escolas de arte famosas longe de casa. Então tive
de dizer a Helen o que ela não sabia sobre Siri, porque ela nunca poderia conhecê-lo como
eu o conheço.
— Você está errada. Siri quer manter sua arte pura. Ele não gosta de se vender. Ele acha
que a grande arte não é a tela ou a escultura, mas a forma como o artista vive a vida,
vivenciando intensamente as experiências e, tipo, em comunhão com a natureza e por aí.
— Bobagem — disse Helen. — Você acredita nisso? É só uma desculpa para ele não
encarar o desafio de trabalhar mais duro, pensar maior.
Uma garçonete colocou dois cappuccinos na nossa mesa e se afastou. A espuma dos cappuccinos
estava aguada e derretida, primeiro sinal de um mau barista. A espuma deve ser densa e pontudinha,
como uma montanha coberta de neve. Quando levantei a xícara na minha direção, o cheiro do café,
que deveria ter despertado minhas narinas, estava fraco e amargo. Mas fui com fé, de qualquer
forma, e tomei um gole, que imediatamente tive de cuspir de volta para a xícara.
— O café daqui é um lixo — disse para Helen.
— Quer ir a outro lugar? — Helen perguntou.
Assenti. Helen não sabe uma vírgula sobre meu homem ou sobre o processo correto de se fazer
café. Se íamos nos tornar amigas, talvez precisássemos desviar para outros caminhos que não
levassem a falar sobre Siri ou consumir café ruim.
Deixamos o dinheiro na mesa e vagamos por Clement Street, minha rua favorita na Cidade, uma
longa avenida de restaurantes chineses, tailandeses e vietnamitas misturados com pubs irlandeses,
mercadinhos, cafeterias e livrarias. Minhas pernas são muito mais compridas do que as de Helen,
mas eu mal podia acompanhá-la. Clement Street é exatamente como imagino uma rua em Xangai
ou Hong Kong: estreita e barulhenta com os ônibus e caminhões de entrega, cheia de pedestres e
bicicletas e vovós empurrando carrinhos com bebês chineses de bochechas rosadas tão adoráveis
que você tem vontade de pegá-los e sufocá-los de beijos. Helen desceu a rua como se fosse a dona
dela, deslizando através da horda de gente sem nem se importar em acenar de volta para os donos
das lojas que obviamente a conheciam e estavam acenando para ela.
Eu estava espiando uma loja de coisinhas fofas, mas Helen parou para se virar, esperou que eu a
alcançasse, e então apontou para um restaurante chinês do outro lado da rua.
— Se importa se a gente for lá um segundo para eu deixar a prancheta de desenho? Não estou a fim
de ficar carregando esse troço pra lá e pra cá.
Eu a segui para dentro do restaurante, que era o mais sujo e escuro possível — toalhas de
plástico, plantas falsas nos cantos, lanternas de papel no teto — mas estava lotado de
fregueses, a maioria chineses. O papai Sid diz que São Francisco está cheio de ótimos
restaurantes chineses, mas os melhores não estão nas armadilhas turísticas de Chinatown e
sim os pés-sujos das "avenidas" de Richmond e Sunset, e a melhor forma de descobrir quais
são os melhores desses bairros é entrar num que esteja cheio de chineses.
Segui atrás de Helen enquanto ela se metia por entre uma fila de pessoas esperando para
sentar, eu a segui enquanto ela atravessava o restaurante onde mesas estavam cheias de
tigelas de macarrão e bolinhos salgados e vegetais nadando em sopa e, sério, o cheiro era
tão bom que eu quase puxei uma cadeira na mesa de um estranho para comer também.
Helen chegou ao final do salão e foi até à cozinha. Eu a estava seguindo por uma escadinha
nos fundos quando um grito que soava como uma gralha (pelo menos pela forma como eu
imagino que uma gralha soaria; eu nunca ouvi uma realmente) veio de trás de nós.
— Aieeeeeeeeeeee, Helen... — seguido de um fluxo incompreensível de palavras em chinês
que eu espero que fossem xingamentos porque assim quem gritava estava dando uma
bronca realmente excelente.
Helen parou no meio da escadinha e virou-se para ver a mulher que gritava ao pé da escada.
A moça estava usando um par de luvas rosa-choque para lavar louça e acenando com um
repolho como se fosse uma arma mortal.
A moça gritou com Helen em chinês por um bom tempo, apontando para a própria cabeça e
batendo com o repolho nela. Quando ela terminou, Helen retrucou:
— Deixa disso, mãe. — Helen subiu apressada pelas escadas e eu a segui. Uma porta no
topo das escadas abriu para um enorme apartamento de São Francisco, que tomava todo o
andar de um prédio. Eu segui Helen até seu quarto, onde ela bateu a porta tão forte que o
chão tremeu.
Isto é identificação. Só porque eu vivo numa quase-mansão em Pacific Heights não
significa que uma cena como a de Helen com sua mãe nunca tivesse acontecido na casa de
Cyd Charisse.
O quarto de Helen tinha roupas e cintos e botas espalhaclas por todo o canto, como se um
ciclone tivesse passado por suas gavetas da cômoda e do armário, jogando as coisas
aleatoriamente pelo quarto. Sua cama estava desfeita e as paredes estavam cobertas de
trabalhos artísticos por todos os cantos, pôsteres aleatoriamente colocados, de Andy Warhol
e da fotógrafa Diane Arbus e de Dalí misturados com pinturas que tinham o estilo do
Caçador de Bolas de Helen. A parte de trás da porta de seu quarto estava repleta de fotos da
série de TV da Mulher Maravilha, capas de gibis antigos, figurinhas de chiclete e desenhos
coloridos a lápis.
Eu nem tive a oportunidade de ter alguma reação ao quarto — muito menos de perguntar: o
que aconteceu lá embaixo? — quando a porta da Mulher Maravilha abriu-se novamente. A
mãe de Helen apontou o repolho para Helen, dizendo:
— Você conhece as regras. Amigos aqui em cima, a porta fica aberta. — Então a mãe de
Helen terminou o que estava dizendo em chinês. Era uma mulher pequenininha, parecia
afundar sob o avental que estava usando sobre a camiseta, e tinha um longo cabelo preto
como o de Helen, mas com raízes brancas e amarrado atrás num coque preso com dois
palitinhos chineses.
Helen revirou os olhos.
— Tá! — disse ela. — Mas eu não vou deixar de raspar o cabelo. Não me importo que a
titia esteja vindo. — A mãe de Helen suspirou. Ah, era exatamente como minha mãe,
genial; e desceu as escadas.
Helen sentou-se na cama bagunçada.
— Desculpe por isso — ela me disse. — Minha mãe está louca por causa do meu novo
corte de cabelo. Fiz hoje mesmo em Haight Street, e ela não tinha visto ainda. Ela não pode
fazer nada comigo por estar quase careca, mas estou morta se eu não me livrar desta tinta
cobre.
Eu tive de aprovar o bom gosto da mãe de Helen. O corte da Helen era bacana, mas a tinta cobre é
uma péssima moda, uma boa ideia em teoria, mas demais na realidade.
Eu perguntei:
— Por que ela falou um pouco em inglês com você e o resto em chinês?
— Porque a parte em inglês, sobre deixar a porta aberta, era pra você ouvir e entender. O resto,
sobre o cabelo e a vergonha de a irmã dela ver sua filha assim, era só para mim.
— Por que ela queria que eu ouvisse sobre a porta aberta? Ela acha que vou ter pesadelos com a
Mulher Maravilha?
— Não, minha mãe não quer minhas amigas aqui em cima desde que ela entrou e me viu beijando
uma menina. E impressionante ela ter deixado você subir. Amigos homens nem podem mais subir.
Mais uns meses e EU não vou mais poder entrar no meu quarto.
Muy interessante.
— Você é lésbica? — perguntei para Helen. Com seu cabelo raspado, seu coturno e toda aquela
fartura de quadris, barriga e peito, Helen tinha um tipo meio machão.
— Deixe de rótulos, Cyd Charisse. Nossa, que nome enorme. Posso te chamar só de CC?
Adoro novas identidades e, além do mais, é assim que meu irmão Danny de Nova York me chama.
— Tudo bem. Mas, sério, você é lésbica? — Conheci vários caras gays, mas nunca uma menina
que fosse lésbica.
— Estou tentada a dizer que sim, porque ser uma realmente emputeceria minha mãe. Mas ainda
não me decidi.
— Então o que você é, uma dessas lésbicas até a formatura, até que apareça um carinha?
— Eu nunca seria uma idiota hipócrita dessas. Gosto de beijar meninas e gosto de beijar caras.
Simplesmente gosto de beijar. Neste momento eu diria que sou bi, mas eu não experimentei o
suficiente de cada lado para saber ao certo. Faz sentido?
Totalmente. Ser bissexual é provavelmente como ser bi-costeira, como eu. Como fazer parte de dois
lugares nas costas leste e oeste, São Francisco e Nova York, e amá-los ao mesmo tempo, feliz de
estar num e sempre querer o outro.
Helen enfiou seu desenho embaixo da cama e então olhou para o relógio, comentando:
— Todos os gostosões irlandeses estão terminando de jogar futebol no Kezar Stadium
agora e indo para o pub. Tenho pelo menos duas horas antes da correria do jantar lá
embaixo terminar e minha mãe começar a pegar no meu pé porque a escola começa
amanhã. Vamos sair daqui. Os caras do futebol têm um sotaque irlandês super sexy. Juro
que você mal pode entender uma palavra do que dizem. Eles usam aqueles shorts de futebol
com aquelas camisetas da Copa do Mundo tão apertadas, que você vai querer ser cega e
poder ler os tanquinhos deles em braile. Você acha que o Siri é um tesão? Vem comigo ao
pub numa manhã de sábado quando eles passam jogos internacionais ao vivo e todos os
irlandeses estão reunidos, gritando para a TV com suas cervejas Guinness. Eu piro só de
pensar nisso...
A sugestão de Helen parecia o antigo apelido de Cyd Charisse, "Rebelde". Se papai Sid
estivesse aqui, ele me daria aquele olhar de foi assim que você conseguiu ser chamada de
Pequena Rebelde. Mas papai Sid não está aqui. E desta vez eu não tive problema em manter
o passo com Helen quando ela saiu de seu quarto de volta para Clement Street.
Gosto do jeito de pensar dessa Helen.
Quatro
A Pequena Rebelde tem sido boazinha há muito tempo e foi muito neutralizada em seus
pequenos tumultos — pelo menos para ter alguma diversão. Pode apostar na telepatia
radioativa da minha mãe para ligar no momento exato em que os problemas estavam
prestes a acelerar.
Helen e eu havíamos entrado no pub e pedido Cocas. Helen e eu parecíamos ter idade o
suficiente para estar num pub e ninguém nos questionou. Não abusamos da sorte pedindo
alguma bebida alcoólica. Por que deveríamos, quando o lugar estava aparentemente cheio
de jogadores de futebol com mais de 21 anos, todos suados de seus jogos, que não podiam
esperar para nos trazer cervejas? O que deveríamos dizer — não? Então, quando eu estava
provocando o capitão do time, Eamon, que tinha cabelo vermelho-fogo e olhos verdes,
perguntando se seu nome era A-men, ou Eh, mon, eu não imaginava realmente que logo
estaria do lado de fora do pub com ele, apertada de encontro ao muro, esquecendo sobre
meu amor verdadeiro — Siri, é, era esse seu nome.
Acho que foi uma coisa boa ter seguido o gostosão Eamon para fora, porque seria um
inferno se eu estivesse dentro do pub barulhento e não ouvisse meu novo celular tocando no
bolso da minha jaqueta, piscando o nome Nancy, no exato momento em que os lábios
rosados de Eamon estavam prestes a encontrar os meus. Nancy acha que, como não
estamos gritando uma com a outra o tempo todo agora, vamos ser tipo amiguinhas, e que
devemos fazer coisas de meninas como ir às compras e assistir a séries dramáticas de TV
sobre mães e filhas, ou, pior de tudo, conversar no meu terrível telefone celular. Meus pais
soltaram a coleira para eu vagar pela cidade sozinha, para pegar o ônibus e não ser levada
por aí pelo Fernando, o braço direito do papai Sid, mas o preço da nova liberdade é que
tenho de concordar em carregar um telefone celular para que Nancy possa me localizar o
tempo todo. Tenho certeza de que o telefone é a forma da minha mãe colocar um cinto de
castidade em mim.
Eamon deu um passo atrás para longe da minha boca enquanto eu abria o telefone. Ele
acendeu um cigarro, efetivamente matando qualquer chance de pegação que poderia estar
prestes a ocorrer, porque grudar meus lábios num pedaço de nicotina e alcatrão é um grande
É bom que você seja pelo menos nota 8.6 numa escala de 10 de muito gostoso se sua boca
cheirando a cigarro quer grudar na minha. Eamon provavelmente tinha nota 7.8.
O sincronismo da minha mãe nunca falha, juro.
— Oi — disse eu ao telefone.
— Onde você está, Cyd Charisse? Está ficando tarde. Você não está ainda na casa de
repouso com a Pão-Doce, está?
Me dá um crédito. Pelo menos não disse à minha mãe que estava na biblioteca. Até ela é
esperta demais para engolir essa.
— Não, já saí faz um tempo. Só estou dando uma volta pela Clement Street. Parei numa
livraria e agora só estou comprando uns materiais pra escola. — Materiais pra escola! Essa
foi boa, Cyd Charisse. Mesmo depois de dois copos de cerveja, eu ainda consigo criar
frases feitas para pais. Só espero não ter enrolado a língua.
— Já está escuro e eu realmente não gosto de você andando por aí em bairros estranhos
sozinha. Posso mandar o Fernando te buscar?
— Não! — Eu não preciso de um nicaraguense ranzinza parando um Mercedes luxuoso
com janelas fumê e sentindo meu cheiro de álcool. Isso poderia provocar uma nova fase de
encarceramento em Alcatraz.
— Bem, volte logo, por favor. É a última noite antes das aulas e não quero que você fique
fora até tarde. E pensei que poderíamos ver suas roupas novas para a escola e ver o que
combina com a nova maquiagem que comprei pra você, podíamos experimentar juntas. —
Minha mãe torrou o cartão de crédito em roupas novas e maquiagem para mim, e você sabe
o que vou usar na escola este ano? O mesmo visual barato de minissaias pretas, meiascalças
pretas, camisetas velhas de flanela e coturnos que eu usava ano passado. Mas
realmente gosto do batom Chanel, Vamp, escuro e Gótico no meu rosto pálido de habitante
da neblina.
Uma característica sensacional que eu adoro nos telefones celulares é quando o sinal cai.
— Volto logo, mãe — disse no celular antes de a ligação cair.
Helen saiu do pub, grudada num colega de time do Eamon. Ela sorriu para mim enquanto
ficávamos juntas encostadas na parede. Eamon e seu amigo se juntaram no canto da rua,
fumando e provavelmente discutindo os detalhes da pegação — levamos as meninas para a
nossa casa ou pelo menos para nossos carros? Você gosta da alta sem peito ou da oriental
de cabelo louco?
Não tenho problemas em dar uns amassos em gostosões, mas amanhã é o primeiro dia do
meu último ano da escola, que na verdade vai ser só com o Siri, quando eu o encontrar.
Meu ano anterior na escola foi todo um dramalhão — o problema em que meu ex, Justin,
me meteu, ser expulsa do colégio interno, voltar para casa em São Francisco e brigar o
tempo todo com Nancy. A prisão em Alcatraz depois de dormir sem autorização na casa do
Siri. Ah, e então ser jogada no verão de Nova York para conhecer meu pai biológico e seus
filhos pela primeira vez. Então pelamordedeus, não mereço uma noite louca depois que me
tornei a garota reformada Cyd Charisse? Não toco numa bebida ou mesmo num baseado há
quase um ano, desde o colégio interno.
Mas ainda assim, de jeito nenhum eu ia me atracar com nenhum carinha de um pub
irlandês, não importa quantos copos de cerveja eles me trouxessem. Um quase-beijo de encontro
à parede é uma coisa, mas passar da agarração com um cara qualquer já de olho na
cama é completamente diferente. Não sou uma vadia dessas; tenho princípios, apesar de
tudo.
— Então — perguntei a Helen. — Você gosta do ruivo ou do grandão? Porque eu preciso
voltar pra casa.
— Por favor! — disse Helen. — Nenhum dos dois. Gosto de cerveja de graça. Mas é a
última noite antes das aulas, CC, cai na real.
Ela pegou minha mão e me levou de volta para o pub lotado antes que Eamon e seu amigos
notassem que estávamos dando o fora.
Mais uma cerveja, certo? Droga, eu nem sabia que gostava de cerveja antes desta noite, mas
essas Guinness são gostosas e enchem a barriga. Quem precisa de jantar? Mas logo eu
estava sentada em cima de uma mesa do pub, cercada de rapazes olhando minhas longas
pernas sacudindo e perguntando que músicas eu queria que eles colocassem na Jukebox.
Será que os caras acham mesmo que qualquer mulherzinha com a mínima noção de gosto
musical iria querer escutar Jimmy Buffet? Deixa eu só dar uma paradinha para enfiar um
dedo na minha garganta.
Mandei um cara colocar Ramones antes que o cara do Jimmy Buffet pudesse chegar lá —
por favor, S.O.S, vá — enquanto eu tentava descobrir se podia fazer um desses belos
espécimes masculinos me levar em casa sem me preocupar se ele ia pular em cima de mim.
A matemática dessa equação multiplicada pela química de como eu iria entrar em casa sem
minha mãe perceber e ir direto para o chuveiro me livrar do cheiro de cigarro e bebida e,
sim, possivelmente vomitar toda essa cerveja enquanto eu estava no banheiro. Bem, todo
esse trabalho mental estava fazendo minha cabeça literalmente girar.
Eu desviei os olhos do sinal vermelho de SAÍDA, me perguntando se eu tinha dinheiro o
suficiente para pegar um táxi para casa, quando eu vi exatamente a última pessoa — a não
ser algum ditador malvado como Stalin ou Pol Pot — que eu poderia querer ver na minha
frente, no canto da mesa, olhando para mim como se eu tivesse sido pega em flagrante.
Alexei, o Terrível, me disse:
— Bem, se não é a Pequena Rebelde. Vamos ver, se minha memória não falha, a última vez
que te vi foi a cerca de dois verões atrás, quando você me fez levá-la a um filme e só depois
eu descobri que a única razão que você queria que eu fosse era porque o filme era
censurado para menores e sua mãe a havia proibido de assistir. Isso quer dizer que você tem
quantos anos agora? — Alexei escreveu uma equação no ar com seu dedo indicador. — Ah,
sim, ainda não tem idade o suficiente para estar neste pub.
Desde que Alexei, o Terrível, foi para a faculdade e eu estava no colégio interno, foi um
grande privilégio apagar esse triste ser da minha existência durante o longo tempo que não
o vi. Ele é afilhado do Fernando, praticamente filho dele, porque o pai falecido do Alexei
era o melhor amigo de toda vida do Fernando, como um irmão para ele. Meu padrasto, Sid,
meio que queria que Alexei fosse seu afilhado também. Ele acha que Alexei é o
universitário da Ivy League mais promissor, que se destaca, e blablablá desde os
primórdios. O papai Sid escreveu a carta de recomendação de Alexei para a faculdade,
ajudou Alexei a pegar as melhores bolsas para pagar essa educação cara. O papai Sid
aparentemente não tem noção — como eu tenho desde os 8 anos, quando Alexei me chutou
da minha nova cama elástica quando ninguém estava olhando porque ele disse que eu era
uma princesinha mimada que nem sabia usar meus brinquedos direito — que Alexei é na
verdade pretensioso, ambicioso, metido a pseudo-intelectual, limitado e escroto (tudo o que
o Siri não é).
Mas ele também pode ser capaz de salvar a minha pele.
— Alexei — disse eu. — Por favor, por favor, por favor, pode me dar uma carona para
casa?
Foi engraçado ver um cara grande como ele se contorcer. Ele foi campeão de luta livre na
escola e é uma dessas pessoas que toma shakes de proteína como se eles realmente
tivessem um gosto bom.
— O que eu ganho em troca? — Por sorte, eu não tive de responder, porque Alexei
acrescentou: — Na verdade, eu disse ao Fernando que eu ia passar por lá para ajudá-lo a
mudar uns móveis de lugar. Mas ainda assim, ajudar a Pequena Rebelde, eu não sei...
Fernando se mudou para um apartamento ao lado da nossa casa, agora que Leila, que era
nossa empregada, voltara para o Canadá. Fernando sempre foi mais um tio do que um
empregado, de qualquer forma, só que ele sabe os atalhos até a estrada e faz empanadas de
matar. Fernando tem uma longa cicatriz vermelha, que ele ganhou durante a guerra civil na
Nicarágua, cortando seu rosto, e eu acho que é por isso que o papai Sid o contratou a
princípio, porque Fernando quase assusta, até que você descubra que ele está pertíssimo de
ser um ursinho carinhoso — quero dizer, a não ser que ele fique puto por ter de pegar você
no meio da noite na casa do seu namorado. Meu padrasto é presidente de uma empresa com
milhares de pessoas trabalhando para ele, mas eu acho que Fernando é o único empregado em que
papai Sid realmente confia. Também acho que ainda que tecnicamente Fernando seja o motorista da
família, menos técnica que oficialmente, o status dele de motorista é só um disfarce para que Sid
não diga que contratou um tipo de segurança para nossa família, além de evitar que Sid tenha de
procurar lugares para estacionar.
Pulei da mesa do bar e fiquei cara a cara com Alexei, o que deve ser um tanto irritante para ele,
porque ele gosta de garotinhas pequenas e femininas, todas risonhas com os lábios brilhando, que
não podem olhá-lo friamente nos olhos, de igual para igual. Sei que eu deveria estar séria ao ser
pega em flagrante e tudo isso, mas por dentro eu estava me sentindo bem e meu rosto não podia
evitar de abrir um sorriso para Alexei. E provavelmente pela primeira vez em dez anos, que é o
infeliz tempo que eu o conheço, Alexei sorriu de volta para mim. Era um sorriso tenso em seu rosto
eslavo de bochechas vermelhas, maçãs do rosto proeminentes e sobrancelhas grossas — realmente,
ele nunca deveria sorrir.
— Tudo bem, Cyd Charisse — disse ele. — Vou quebrar o seu galho. Mas me deve uma, de
verdade.
Eu me despedi de Helen e saí com Alexei, o Terrível. O preço da carona era esse: ouvir um
sermão. E se um policial estivesse no bar e pedisse minha identidade? No que eu estava
pensando? Eu realmente esperava que todos aqueles caras apenas quisessem me pagar uma
cerveja, que não tivessem mais nada em mente? Como eu podia ser tão ingênua?
Estudantes, mesmo as loucas como eu, não deveriam frequentar lugares como esses.
Ai, que papo de velho. Coloquei no piloto automático
enquanto Alexei me contava como ele estava tirando um semestre de folga da universidade
chique dele e iria passar o tempo em São Francisco trabalhando em algum projeto que iria
ficar ótimo em seu currículo. Ronquei.
Alexei, o Terrível, me passou uma dessas terríveis pastilhas para melhorar o hálito antes de
entrarmos na minha casa.
— Você está cheirando a Guinness e a Marlboro — disse Alexei. — É melhor concordar
com o que eu disser.
Meus pais estavam no estúdio que dava para o corredor principal, quando chegamos.
Quando nos viu na porta, papai Sid disse:
— Alexei! Que surpresa!
— Olha o que achei na livraria em Clement Street. Muito nobre da parte dela querer pegar
o ônibus, mas eu já estava vindo ver o Fernando mesmo.
Nancy olhou de cima de uma pilha de convites em seu colo e fungou.
— Quem está cheirando a cigarro? E... — minha mãe virou seu narizinho perfeito e
empinado — estou sentindo cheiro de cerveja?
Eu estava um pouco tonta, mas Alexei segurou minhas costas com suas mãos quando
minhas pernas pareciam precisar de um descanso e disse:
— Eu. Eu estava no pub vendo o futebol com alguns amigos quando vi Cyd Charisse pela
janela, saindo da livraria do outro lado da rua. Cyd ficou reclamando do cheiro o caminho
todo também. Não, Cyd, não vou ficar bravo se você for para o chuveiro agora em vez de
me ajudar a descarregar as caixas na casa do Fernando.
Meus pais são realmente cegos quando se trata de Alexei, o Terrível, porque o campeonato
ainda não começou e de jeito nenhum Alexei iria assistir a jogos da pré-temporada do
campeonato do, tipo, Japão. O papai Sid disse:
— Obrigado, Alexei. Pode ficar um pouco, contar sobre o seu semestre de folga? —
Solucei, e as mãos de Alexei nas minhas costas me empurraram em direção à escada. Eu
corri para o meu quarto antes que Nancy pudesse me convidar para olhar suas amostras de
tecido ou qualquer coisa assim.
Quando cheguei no meu quarto, fechei a porta e fiquei encostada nela, respirando
profundamente, pronta para uma boa ducha e uma escovada de dentes.
Essa foi por pouco. E agora eu estava em dívida com Alexei, o Terrível. Merda.
Um cartão-postal estava jogado no meu travesseiro. Era um cartão turístico de Fiji,
mostrando uma bela morena com cabelo até a cintura, usando uma saia de palha e um
biquíni, fazendo uma dessas danças de luau perto de uma fogueira na areia branca com um
oceano azul-tropical e um pôr-do-sol vermelho no fundo. Um desenho colorido a lápis
estava grudado ao lado dela, mostrando um surfista branco baixinho com cabelo louro sujo
e uma mecha platinada na frente. Ele estava ao lado da garota dançarina, tocando gaita-defole.
Suspiro. Gaita-de-fole sempre me fez sentir chorosa e sexy ao mesmo tempo, e a única
pessoa que sabe disso escreveu do outro lado do cartão. Saudades de mim? O cartão estava
assinado com um desenho a lápis de um siri.
Cinco
Talvez não seja um bom sinal que meu último ano de ensino merda, quero dizer, médio,
comece com uma leve ressaca, mas vamos lá.
Helen estava tão mal quanto eu. Estava com a mão na testa quando eu a encontrei na
cantina na hora do almoço.
— Ai — ela gemeu —, que dor de cabeça. Ei, quem era o cara com quem você foi embora
a noite passada? Ele pode provocar sérias fantasias sexuais na Sibéria.
A pele no meu braço se arrepiou como se houvesse larvas andando por baixo.
— CALE A BOCA! — disse eu. — Meu estômago está começando a ficar melhor agora,
não diga esse tipo de coisas. Alexei, o Terrível, é só um queridinho chato do meu pai.
Odeio ele, só que agora estou em dívida por ele me ajudar a passar ilesa por meus pais na
noite anterior. Mas se você o vir novamente, não deixe que ele pense que você o acha
gostosão. ECA! O ego dele é maior do que os bíceps de Hulk que ele tem.
Com um sorriso sarcástico em sua boca de batom verde, Helen disse:
— Mas você só pensa no Siri, não é mesmo? — Mostrei a língua para ela. A resposta dela
foi uma língua com piercing. Ai!
Todos aqueles tipos, artistas que são amigos da Helen e do Siri sentaram-se com a gente na
cantina, uma experiência totalmente nova para mim. Se eu fosse Cyd Charisse, detetive
particular, criando uma tabela detalhada dos almoços nas escolas das vidas passadas de Cyd
Charisse, menina má reformada, seria assim:
Período
Até a 4a série
Atividade no Almoço
Sozinha no fundo da cantina, usando preto e franzindo a testa, comendo sanduíche de
manteiga de amendoim com geléia e passando as comidas saudáveis para Pão-de-Mel.
Perseguindo um menino gatinho no intervalo, tentando beijá-lo.
Período
Até a 8a série
Atividade no Almoço
Repetição da primeira fase do ensino fundamental, acrescente um desnecessário sutiã.
Período
Colégio Interno
Atividade no Almoço
A "esquisita gostosona" (para citar os amigos malvados do meu ex, Justin) cutucando
feridas nos braços enquanto esperava no canto da cantina o fodão do colégio, Justin, capitão
do time de lacrosse, largar seus amigos populares e levá-la a seu quarto para se pegarem.
Período
Escola para "Adolescentes Especiais" (aberrações, que Deus os abençõe)
Atividade no Almoço
A "garota gótica transferida" (para citar os amigos do prestes-a-não-ser-ex, Siri) que fica
perto dos fumantes do lado de fora. Não perto o suficiente para deixar seu cabelo fedendo a
cigarro, mas o suficiente para ao menos parecer que ela pertence a algum lugar, esperando
o Siri encontrá-la e levá-la ao KFC.
Helen me passou um pacote de vitamina C, dizendo:
— Misture na água que vai ajudar a curar a ressaca. Quer vir à minha casa de noite para me
ajudar a tirar a tinta do meu cabelo? Estarei ferrada se não tirar isso hoje, mas eu estava
doida demais para fazer isso noite passada.
O cara sentado ao lado de Helen, com um cabelo moicano vermelho da cor do de Ronald
McDonald e lápis de olho preto borrado disse:
— Helena de Tróia, precisa deixar a tinta, tá o máximo. — E se virou para mim. — Então,
com o Siri longe, alguém da escola vai realmente conseguir conhecer você?
Fiquei surpresa com a pergunta, porém mais surpresa Com o povo colorido de moicano e
cortes assimétricos dos anos 1980 que se viraram com essa pergunta. Devia haver sete
pares de olhos, mais com piercings nas sobrancelhas do que sem, esperando minha
resposta.
Eu fiz, tipo, acho que sim? Isso foi o mais perto de estar num grupinho que eu já estive.
Não pense que significa que minha pele está prestes a experimentar algum tipo de piercing
ou tatuagem só porque parecia uma forma popular de auto-expressão na mesa. Eu tenho
boa resistência à dor, mas à dor emocional, não à dor física. E o meu segredo é que sou bem
boba. Ainda assim, quase-amigos de verdade olhavam para mim no grupo. No ritmo que
estou indo, vou ser líder de torcida na época da formatura.
Todo mundo queria saber do Siri — onde ele estava? Eu mencionei o cartão de Fiji, mas as
pessoas ouviram outros boatos. Quando terminei meu sanduíche de manteiga de amendoim
e geléia, dei a maçã para Helen e fiquei com o pudim para mim, a Missão Siri determinara
que Siri estava longe da escola por causa de um dos motivos a seguir:
(1) estava construindo cabanas de palha para os nativos na Papua-Nova Guiné;
(2) tinha sido adotado por uma tribo de pescadores espiritualizados no Taiti;
(3) estava na Nova Zelândia pedindo cidadania, para que então pudesse ser o próximo
grande surfista nativo;
ou minha teoria favorita:
(4) ele fazia uma turnê pela Romênia, onde é aparentemente um grande pop star.
Fiquei quase decepcionada de ter o mistério solucionado logo depois do almoço, quando
esperava do lado de fora do escritório do orientador. Eu estava preenchendo uns papéis que
iriam me permitir sair mais cedo da escola para meu estágio este semestre (plano genial,
CC, modo genial de fugir legalmente da escola) quando quem passa por mim, diante do
banco em que eu estava sentada, senão a namorada do irmão de Siri, Delia; não dava para
não ver o cabelo crespo cor de cenoura dela. Ela se virou. Não sei por que ela ficou
surpresa em me ver — eu frequento essa escola, sério — e, de qualquer forma, o que ela
estava fazendo aqui?
Por eu estar querendo tanto ver o Siri, e ali encontrava ao vivo a primeira pessoa ligada a
ele, fiquei muda, paralisada — e se ela não estivesse feliz em me ver? Quando Siri e eu
terminamos não foi da melhor forma, eu o acusando de me trair com essa tal de Autumn e
ele me acusando de ser uma mala e de alimentar uma paixonite por seu irmão mais velho.
Ambas as acusações do Siri eram de fato verdadeiras, mas quando eu passei a melhor parte
do meu verão em Nova York, trabalhando como uma deusa barista no café do meu meioirmão
Danny em West Village, o Idiotas do Village, e contando à clientela toda a saga Siri,
eles disseram que tirei conclusões precipitadas sobre Siri e Autumn. Pelo que eles ouviram,
o Siri não soava como o tipo de cara que pudesse trair.
Claro, se o Siri não saiu com a Autumn, antes de eu o acusar, não quer dizer que ele não
saiu depois. ODEIO isso! E não estou sendo hipócrita considerando que quase tive um caso
em Nova York com Luis, que se pronuncia Lu-isi, cujos beijos são mais quentes que seu
tanquinho, e com o qual tive um contato físico no qual não houve penetração de fato, por
isso não conta. Fico louca mesmo só de pensar na mão-boba da Autumn tocando o Siri.
Me pergunto se sou uma maníaca ou tenho tendências ciumentas potencialmente assassinas.
Isso seria uma droga.
Mas uma maníaca ganharia o tipo de cumprimento que Delia me deu? Delia é dançarina e
gerente do Java the Hut, em Ocean Beach, e ela faz esse plié esquisitinho toda alegre por
me ver antes de pegar minha mão e me levantar do banco. Ela me prendeu num abraço
gigante.
— Olhe quem está de volta — disse ela. — Cyd Charisse!
Eu não podia nem ser educada o suficiente para jogar conversa fora. Eu tinha de saber.
— Onde está o Siri?
Delia sorriu.
— Está em Papua-Nova Guiné, com os pais. Acabaram de terminar a tarefa no exterior e
estão viajando pelo Pacífico Sul juntos. Vão voltar em algumas semanas. Os pais dele estão
vindo para cá também, supostamente para ficar. Wallace está lá dentro falando com o
orientador sobre as atividades escolares do Siri e o que ele vai ter de fazer quando voltar.
— Então os pais deles estão terminando o trabalho para o Corpo da Paz? — perguntei.
Ouvi uma risadinha vindo do corredor e lá estava Java, grande suspiro, Java com o rosto do
Siri, maduro e mais pesado, o cabelo e os olhos castanhos e o corpo de surfista. Java, que
ainda tinha cheiro de chá de menta. Tentei não soltar um gemido involuntário quando ele
tocou nos meus dois ombros. Ele parecia genuinamente feliz em me ver. Que alívio.
— Corpo da Paz! — disse ele. Sua risada parecia impressionada, mas um pouco amarga
também. — Siri realmente não falou que nossos pais estão no Corpo da Paz, falou? — Eu
dei de ombros. Siri nunca me disse exatamente, agora que eu pensava nisso. — Porque eu
acho difícil que pessoas com a ficha policial deles sejam convidadas para o Corpo da Paz.
— Juro que Java estava prestes a se acabar de rir com a ideia.
Delia levantou sua mão esquerda no ar, balançando o dedo anelar, que tinha um pequeno
diamante.
— Adivinhe! Wallace e eu estamos noivos!
Cacete! Delia iria começar um casamento com Java pressionando-o de encontro a seu peito
e enrolando as pernas dela nele, tudo com autorização legal do estado da Califórnia e a
aprovação de Deus. Que garota de sorte!
— Sim, vamos nos casar na véspera do Ano-Novo. Pensamos em fazer na praia, depois
pensamos: Isso já cansou, vamos fazer do jeito certo, um grande espetáculo e tudo mais.
Assim, vamos fazer a cerimônia e a festa num hotel em Nob Hill. Estamos indo agora ver
os convites, daí vamos deixar a lista de presentes na Tiffany e na Crate & Barrel. Você vem
pro casamento, certo? Vai ser o máximo. O organizador de cerimônia encontrou uma puta
banda de suingue e um ótimo bufê e...
E de uma hora para outra, meu antigo insaciável desejo/tesão por Java não foi apenas
saciado, mas 99% apagado. Lista de casamento na Tiffany e na Crate & Barrel? Fiquei
assim, tipo, Wallace, cara, antigo DEUS DO SEXO, dá para ser mais burguês do que isso?
O 1% restante do meu tesão pode permanecer em respeito à total maravilha que é o Java.
Siri e eu provavelmente nunca vamos nos casar, apesar de que espero viver com ele em
pecado glorioso por muitos anos. Vamos morar num loft gigante de frente para a Ocean
Beach com uma enorme cama no meio coberta por um mosquiteiro pendurado no teto,
envolvendo a cama num casulo que será tão bonito quanto desnecessário. Nosso loft vai ter
um telescópio na janela onde Siri e eu vamos observar o céu sob a luz do luar, à meia-noite,
pelados, olhando através dos ecos do Pacífico, tentando ver estrelas cadentes. Vai haver um
estúdio de arte num canto para ele, e no canto oposto vai ter uma máquina gigante de
expresso, uma daquelas italianas, junto com uma batedeira de tamanho industrial, como
Danny tinha, para eu fazer cafés e cozinhar coisinhas para quem quiser aparecer e servir por
lá e fazer arte e serei uma boa anfitriã, mas nunca uma perua. Siri e eu nunca vamos nos
cansar um do outro ou entrar na instituição burguesa do matrimônio.
Sid e Nancy são casados, mas o casamento deles parece mais um casamento de
conveniência — ela fica com o estilo de vida ricaço dele; ele fica com uma bela esposa
como troféu. Eles se bicam o tempo todo, mas acho que de alguma forma eles se amam —
apesar de que eu realmente espero que eles não façam mais sexo. As únicas pessoas que eu
conheço que realmente se amam e são amigos e companheiros e almas gêmeas tanto quanto
são amantes são Danny e seu namorado, Aaron. E eles não podem se casar nos Estados
Unidos, tipo tudo oficial e legal, mesmo sendo cidadãos responsáveis que reciclam o lixo e
pagam impostos. Que porra de lógica é essa?
Java e Delia estavam tão animados que eu não queria interrompê-los enquanto eles
tagarelavam sobre o casamento do século, mas eu realmente os estava examinando como
um drama jurídico. Quando exatamente o Siri volta para casa? Se os pais não estão
construindo pontes ou qualquer coisa no Corpo da Paz, o que exatamente eles estão fazendo
ao sul do equador? Por favor, atualizem meus dados, Siri sente saudades de mim, ele quer
que eu volte para ele? O que rola com essa tal de Autumn?
Os planos de casamento de Java e Delia eram tão fantasticamente tediosos que eu não
fiquei chateada pelo celular estar vibrando no meu bolso. Eu pensei, "se for a Nancy —
mensagem de voz, qualquer outra pessoa — sorte a minha."
E como não era a Nancy, eu atendi o telefone. A ligação era da secretária do papai Sid, me
dando instruções de onde me apresentar para meu estágio. O plano é que eu iria passar o
semestre ajudando no trabalho administrativo da cantina da empresa do papai Sid. Não é
um trabalho tão bom quanto ser barista, mas com sorte eu aprendo a dirigir um negócio no
ramo de alimentação. Mas espere um minuto — a secretária realmente disse que os sócios
resolveram fechar a cantina e agora papai Sid quer que eu trabalhe num novo restaurante
em que ele investiu, o mesmo onde Alexei, o Terrível, está passando seu semestre fora da
faculdade? Isso era estática no celular ou eu realmente ouvira as palavras "Todo mundo
aqui ama o Alexei, um grande cara. Seu pai está tão feliz com esse projeto e com o fato de
que você vai trabalhar com o Alexei."
Demais para meu plano genial de sair mais cedo da escola dois dias por semana. Agora eu
sei que Ash não pegou apenas seu rostinho inocente de bebê do papai Sid, mas também
suas habilidades diabólicas.
Seis
Se eu achava embaraçoso ter sido apanhada na escola por Fernando na Mercedes no ano
passado, havia uma bela surpresa por vir. Muito mais vergonhoso era ter minha mãe me
buscando depois da escola.
Helen e eu estávamos sentadas no ponto de ônibus do lado de fora da escola. Eu estava
enrolando os cabelos com os dedos, lembrando como o Siri adorava fazer isso em mim e
Helen estava com sua prancheta no colo, desenhando seus quadrinhos do Caçador de Bolas,
que havia acabado de descobrir que um turista, que tirava fotos todo dia no mesmo lugar na
frente da Legião de Honra, era na verdade um radical ecoterrorista planejando explodir a
escultura do Rodin do lado de fora do museu e instalar no local uma estufa de plantas. O
Caçador de Bolas alertou as autoridades, mas elas não o levaram a sério. Ele vai ter de
cuidar desse cara com suas próprias mãos.
Uma caminhonete Mercedes preta parou na esquina perto de onde estávamos sentadas. A
janela do lado do passageiro desceu. Helen olhou para a motorista e resmungou.
— Aff, uma daquelas pessoas. Motorista loura perfeita que provavelmente se perdeu depois
de sua aula de pilates e precisa de informações para voltar à marina. Odeio essa gente em
caminhonetes chiques.
A loira perfeita que dirigia o carro disse:
— Entre logo, Cyd Charisse. Ouviu a mensagem de voz que deixei para você mais cedo
hoje? Esqueci de dizer que sua hora no médico é hoje à tarde, então eu mesma vim te
buscar.
— Mãe! — disse eu, mortificada. Eu não havia escutado a mensagem dela.
Helen arregalou os olhos.
— Desculpe — resmungou ela. — Eu não sabia. Me liga mais tarde.
Helen e eu podemos ser novas amigas instantâneas, mas eu não a conheço tempo o
suficiente para expô-la ao estilo de vida da minha família, então acho que não posso ficar
brava com ela por desprezar minha mãe sem querer. Mas, ei, minha mãe é que vai me levar
ao ginecologista para falar sobre controle de natalidade. A mãe da Helen nem quer que
meninas entrem no seu quarto.
Entrei no carro. Nancy seguiu dirigindo, bebendo uma água vitaminada.
— Quer que eu entre com você? Não para o exame, mas para falar com o médico.
— Não — disse eu quase sussurrando.
Um dos preços da nossa nova paz é que devemos começar a fazer terapia em família, então eu não
preciso que ela também me acompanhe ao consultório do ginecologista. Só posso aguentar tortura
até certo ponto. Minha mãe descobriu Recentemente, enquanto eu estava em Nova York, sobre o
que realmente aconteceu comigo e o Justin, meu ex do colégio interno, antes de eu ser expulsa
daquela escola, sobre como ele me deixou ir sozinha para a clínica, como se o problema fosse só
meu. E embora esteja muito grata por Nancy ter esquecido de me dizer o dia da consulta no
ginecologista, porque provavelmente seria insuportavelmente doloroso ter minha cabeça e útero
apalpados, também estou feliz por não ter tido tempo de ter medo disso, e Nancy ainda tem de ir
marcar uma hora para nós duas com um psicólogo. Minha teoria pessoal é que há um grande drama
a ser trabalhado dos anos de adolescente dela em Minnesota e talvez ela não esteja com tanta pressa
de seguir com a parte da terapia familiar no seu plano pós-pequena crise que eu tive.
— O quê? — disse Nancy. — Não consigo te ouvir.
O motorista à nossa frente, que Nancy fracassadamente tentou fechar, mostrou o dedo para ela pela
janela.
— NÃO — repeti eu para a pergunta da Nancy, só que mais alto, então quis mudar de assunto, por
isso disse: — Papai vai me fazer trabalhar com o Alexei. Posso arrumar outro estágio?
Nancy também mostrou o dedo para o motorista à frente: com sua suave mão rosada de unhas feitas
à francesinha e enorme pedra na aliança, o ato quase parecia bonitinho.
— Não fale comigo sobre o estágio, resolva com seu pai. Mas estou surpresa, achei que
você iria gostar de trabalhar com o Alexei. Você não é toda vidrada em caras bonitões? —
ela riu, sério, péssimo. — Oh, esqueci. Alexei é o Inimigo Público Número Um. Deus a
proibiu de pensar bem de um cara que estuda em uma das melhores faculdades do país, um
cara com metas, que come comida saudável e... — Come comida saudável? O que isso tem
a ver com todo o resto? Tipo, de onde vieram as células do cérebro da minha mãe? — Não
gosto que você esteja nesse esquema de estágio, de qualquer forma. Você mal tem créditos
suficientes para se formar como se deve, e as aulas que você faz não têm exatamente o
nível preparatório para a faculdade. Mas resolva com seu pai; ele sempre fica do seu lado,
de qualquer forma. Vocês dois me deixaram de fora desse assunto de estágio, então não vou
me meter.
Nancy parou na frente de um prédio de consultórios na Fillmore Street.
— Suba. Vou estacionar o carro e esperar você no Peet's Coffee da Fillmore. O consultório
já tem todas as suas informações, e eu falei com a médica ao telefone sobre seu... hum,
assunto. Bem, ela sabe o que está acontecendo. — Nancy agora parecia tão envergonhada
quanto eu.
— Papai sabe? — É estranho o suficiente que minha mãe saiba sobre meu... assunto, mas
também é um alívio. Mas se o papai Sid soubesse também, talvez eu não fosse mais sua
queridinha. Filhinhas queridas não fazem abortos quando mal têm 16 anos de idade.
— Não — disse Nancy. Seu tom mantinha uma ameaça velada, como se ela tivesse feito o
favor de não contar a ele, mas ainda pudesse.
Nancy procurou atrás de seu banco e me passou um pacote.
— Aqui — disse ela. — Algo legal para abrir enquanto você estiver esperando no
consultório. Nunca é legal esperar por uma consulta com o ginecologista, mas vai ficar tudo
bem. Confie em mim, não é ruim, e você vai ficar surpresa do quão aliviada vai se sentir
depois.
O pacote vinha de Papua-Nova Guiné. Eu saltei para fora do carro, corri para o prédio e
abri a caixa. Dentro havia uma pintura no verso de uma caixa de cereais, cortada do
tamanho de uma foto 5x7. Era uma pintura no estilo do Picasso, mostrando um corpo
masculino sem cabeça usando roupa de surfista que abraçava ternamente a cabeça de uma
mulher. Quando olhei mais perto e vi o cabelo preto comprido, a pele branca e os lábios
pretos, percebi que a cabeça era minha.
O quadro era o melhor incentivo que eu poderia ter para entrar no consultório da
ginecologista.
Gosto da ideia que minha mãe saiba que depois da experiência toda, o lugar onde eu mais
gostaria de encontrá-la era mesmo o Peet's, uma cafeteria para quem pensa. Quando
cheguei lá pedi um expresso duplo em homenagem ao Siri, que bebe seu expresso puro e
diz que lattes e cappuccinos equivalem a drinques yuppies idiotas como Cosmopolitan ou
Sex on the Beach.
Minha mãe estava sentada sozinha numa mesa, lendo uma de suas revistas de moda com
fotos de todas as estrelas de cinema esqueléticas em roupas de luxo. Ela parecia não notar
que todos os homens no café olhavam para ela como se quisessem que ela derrubasse algo
para que eles pudessem ir correndo pegar.
— E então? — perguntou ela quando me sentei na sua frente.
Não sei que tipo de relatório ela estava esperando. Ela já havia ido a um ginecologista
antes; e sabe exatamente o que acontece. Eu dei de ombros.
— Ela falou com você sobre o quê? — Peguei os panfletos na minha bolsa e os espalhei
sobre a mesa, o que pareceu dar um jeito em todos os caras que olhavam para minha mãe.
Talvez fosse a foto de verrugas genitais na capa de um panfleto, ou as grandes letras HIV
na capa de outro.
— Bom — disse Nancy.
Ela pareceu triste e realmente queria mais informação de mim, então decidi ajudá-la.
— A médica me deu uma receita para pílula anticoncepcional, e fez um longo discurso sobre o uso
de camisinhas. E ela disse que está tudo bem comigo depois do meu... hum... assunto. Estou com
ótima saúde, apesar de ela dizer que eu não deveria comer tanta bobagem. — O que me lembrou de
enfiar a mão na minha bolsa novamente para tirar uma barra gigante de chocolate Crunch que ficaria
excelente mergulhada no expresso. Não contei a Nancy que eu tomo pílula desde a consulta do
ano passado, e foi uma nova receita que a médica me deu. Nossa casa funciona mais pacificamente
quando esse tipo de assunto é filtrado para Nancy de forma que faça com que ela pense que foi idia
dela.
Nancy era quem estava pressionando por informações, então por que havia lágrimas em seus olhos?
E perguntei:
— Qual é o problema, mãe? Achei que era isso o que você queria para mim.
— Eu não quero isso para você, Cyd Charisse. Mas eu entendo a necessidade. — Ela parou, fungou
um pouco, e enxugou os olhos com um lenço de papel.
— Sabe, quando você era bebê, com apenas alguns meses, você teve uma crise de cólica por umas
duas semanas. Você gritava e gritava sem parar. Eu mesma era tão jovem, tão sozinha, e eu lembro
que me senti perdida e sem esperança, honestamente, eu estava prestes a enlouquecer com o choro.
Nada conseguia confortá-la. E eu me lembro que uma noite, perto do final, quando nenhuma de nós
duas não dormia havia dias e eu estava nas últimas, pronta para desistir, eu me lembro que pensei:
Se pudermos passar por isso, tudo ficará bem. Se conseguirmos passar por isso. Agora, olhando
para trás, parece que foi ontem, ainda assim aqui estamos, numa situação bem diferente mas ainda é
outro isso. Tenha paciência comigo; sua mãe não está pronta. Pensei que estava, mas é mais difícil
do que eu esperava.
Não entendo mesmo para o que ela não está pronta. Foi ela quem decidiu me mandar para o colégio
interno, a 4 mil quilômetros de casa quando eu mal tinha completado 14 anos. Achei que ela tinha
desistido havia muito tempo.
Mas o rosto dela manchado de lágrimas era tão bonito e patético ao mesmo tempo que eu tinha de
tentar alegrá-la.
— Vou preparar o jantar esta noite — me ofereci.
Nancy está perturbada agora que Leila se foi e Sid está reduzindo os empregados em casa porque as
crianças estão mais velhas, então agora só temos uma faxineira e um jardineiro e uma babá por
meio período, e claro um Fernando, mas nenhuma cozinheira ou empregada fixa. Leila encontrou
um cara careca na reunião da escola dela em Quebec, no verão, e se mudou de volta para
Montreal para casar com ele. É tudo muito como um filme açucarado e estou com uma
baita inveja da Leila e seu amor de verdade e todo o sexo que ela deve estar tendo agora.
Mas não vou sentir falta da Leila gritando comigo com seu sotaque de Celine Dion sobre
como sou mimada e nunca ajudei com os pratos, mesmo que eu tenha ajudado mas, tipo,
por que me importar se, toda vez que eu enchia a lava-louça, Leila retirava tudo de volta e
rearrumava como se de alguma forma os pratos ficassem mais limpos se fossem colocados
em fileiras de tamanhos uniformes. Psicótica. Infelizmente, nossa psicótica também era a
sagrada preparadora de refeições da família e Nancy não consegue cozinhar e não tem
vontade de aprender. O que é bom para Nancy, porque ela não come, de qualquer forma.
Mas o resto de nós sim e só podemos comer comida que pedimos fora ou implorar para o
Fernando cozinhar arroz con pollo, sua especialidade, algumas noites.
Minha oferta para cozinhar recebeu um sorriso de gratidão da minha mãe.
Tem essa receita de dar água na boca de camarão creole que estou doida para experimentar.
Sete
Tenho um segredinho sujo. Minha música de coração é o punk, mas não recuso uma boa
sinfonia. Não entendo a diferença entre um concerto de um opus em Dó maior ou o que
seja, mas uma coisa que sei é que adoro violinos e violoncelos todos juntos com uma
percussão por cima e um maestro no tablado todo suado agitando os braços.
É uma pena que eu tenha péssimo ouvido, porque eu não me importaria de ser uma das
poucas condutoras mulher. Quando Siri e eu brincávamos de Trabalho por Um Dia,
maestro era minha escolha número um. Siri era o cara de pé no fundo da orquestra
sinfônica, batendo no gongo gigante quando eu apontava para ele a batuta no milissegundo
exato — tempo que faz a diferença entre um grande maestro e um apenas bom, de acordo
com o papai Sid. Eu, a condutora, e o Siri, no gongo, teríamos um caso secreto que
ninguém na seção de cordas ou sopros iria saber, mas todos os percussionistas havia muito
cooperavam com a gente. Eles apenas não eram fofoqueiros.
Quase não chegamos na hora da sinfonia porque Nancy teve uma crise de chatice,
reclamando que minha minissaia preta com uma camiseta da seleção de futebol irlandesa,
jaqueta de couro preta e coturnos não eram uma vestimenta apropriada para um concerto. O
papai Sid ficou do meu lado, perguntando a Nancy se ela preferia que eu me vestisse de
debutante ou que tivesse contato com a música. Nancy desistiu, mas ainda estava magoada
quando chegamos no Symphony Hall. Ficou feliz com nossos lugares no camarote sobre a
orquestra, lugares excelentes para Nancy olhar os outros camarotes para ver quem ela
conhecia que poderia ter lugares um pouquinho melhores do que os nossos, e cantinho ideal
para o papai Sid e eu fecharmos nossos olhos e deixarmos a música fluir. A sinfonia de
Mozart, de início suave e então feroz, inspirou um grande show de laser nos meus olhos
fechados por uns bons 15 minutos. Então o gongo gigante bateu e meus olhos se abriram
bem.
Eu podia sentir um par de olhos olhando para mim do outro lado, e meus olhos seguiram da
orquestra abaixo dos nossos assentos para o camarote oposto ao nosso.
SIRI!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Eu queria saltar da minha cadeira para o saguão para um encontro tipo de filme, em câmara
lenta, mas Nancy teria ficado louca se eu levantasse antes do intervalo, e de qualquer
forma, Siri não ficou de pé como se fosse correr para me encontrar. Ele nem acenou, apenas
deu um sorriso safadinho. Em vez de espetado, seu cabelo estava mais comprido e caindo
em seu rosto, e a antiga mecha platinada espetada na testa cresceu na cor natural louro-sujo.
Seu rosto parecia maior, mais bronzeado, e mais vermelho, como se ele estivesse fritando
no sol desde seu exílio temporário da neblina de São Francisco. Eu quase caí da minha
cadeira e do camarote querendo abrir meus braços para que eles corressem até ele.
Normalmente eu detesto intervalos porque eles parecem uma grande perda de tempo e eu só
sinto vontade de vomitar vendo Nancy socializar com todas as suas amigas peruaças sobre
jantares de caridade e sim, vamos almoçar semana que vem, mas agora os minutos antes do
intervalo chegaram a parecer uma eternidade. As luzes não estavam ligadas e os aplausos
mal haviam começado com o fim da música quando levantei da poltrona. Nancy começou:
— Cyd Charisse! Onde você vai? — Mas eu já estava longe.
Esqueça o encontro em câmara lenta; eu estava correndo. Desacelerei quando virava na
área do bar no saguão. Não queria parecer entusiasmada demais, mas Siri me venceu. Ele já
estava no bar, e não estava sem fôlego.
Oh, céus, quanto eu o amo? Ele usava um blazer amarelo-canário com uma camisa branca
enfiada dentro da calça e um enorme colarinho colocado por cima do blazer. Ele parecia
uma espécie de cafetão da noite, deus abençoe sua gostosura. Ele estava mais alto e mais
pesado do que eu me lembrava, pelo menos cinco centímetros e um mês inteiro dos amados
milk-shakes de manteiga de amendoim com biscoito esmagado e brownies, que ele adora. E
isso não apenas porque eu não estava usando botas de plataforma. Ele estava da altura do
meu nariz, e não do meu queixo, quando fiquei na frente dele.
Estranho que duas pessoas que foram o mais íntimas possível nem pudessem mais dar um
simples toque no primeiro encontro depois de uma separação — nenhum carinho no ombro,
nenhum toque de mãos, nenhum abraço, e certamente nenhum beijo. É como se houvesse
uma viga invisível entre nós, como as prisões de Jornada nas Estrelas, que fazem bzzz e nos
repelem se Siri ou eu ousássemos passar sobre a energia invisível para nos tocarmos.
— Oi — disse Siri.
— Oi — disse eu. — Você parece mais alto.
— Sim. Java agora me chama de Siri Jumbo.
— Então, Jumbo, quando voltou? Quando volta pra escola?
— Voltei faz uns dias, volto pra escola na segunda. Peguei umas ondas hoje. Ocean Beach
parece mais mansa depois das ondas no Pacífico Sul. Ainda assim é melhor do que
compensar três semanas de trabalho escolar.
Na minha cabeça eu estava visualizando Nancy tendo uma crise histérica apenas pela
sugestão de eu perder três semanas de aula para ficar em Papua-Nova Guiné, e surfar e
construir coisas e sei lá mais o quê.
— Papua-Nova Guiné foi legal? — perguntei.
— Sim, exceto pela disenteria da primeria semana. Como foi Nova York?
Havia coisas demais para contar sobre isso.
O público do concerto havia saído de seus lugares e se amontoava no saguão. O barulho das
conversas aumentou consideravelmente, então foi surpreendente que pudemos distinguir a
voz feminina que gritou:
— Siri! Por que saiu tão rápido? — A voz era bem alta.
Siri fechou os olhos por um momento e acho que deixou escapar um pequeno tremor.
Uma mulher pesadona — não gorda, apenas larga — no final da meia-idade com cabelo
longo, em proporções iguais de grisalho e castanho, na altura da cintura, veio para o lado do
Siri. Ela era da altura dele, usando jeans e camisa bordada da América Central e sandálias
sem meias cujos pés estavam precisando urgentemente de manicure. Ela era o tipo de
mulher riponga que Nancy e suas amigas gostariam de ver ser barrada por causa da
vestimenta antes de ser autorizada a entrar no Symphony Hall.
Siri parecia estar prestes a me apresentá-la quando a mulher me examinou com seus olhos
castanhos e disse:
— É Cyd Charisse, claro! — me envolveu em um abraço tão apertado que poderia ter
esmagado meus órgãos. — Já vi pelos trabalhos de arte.
Siri murmurou:
— Mãe, Cyd. Cyd, mãe.
Um cara baixinho, mais baixinho do que o Siri pré-jumbo, ficou atrás da mãe de Siri. Ele
parecia uma cópia exata do Siri, só que menor, mais quieto, talvez mais triste.
Ele esticou sua mão na minha direção e se apresentou como o pai de Siri. Seu murmúrio era
mais inaudível do que o do filho.
Siri — com os pais! Essa é a coisa mais bizarra de todos os tempos! Siri e Java eram como
irmãos caubóis solitários que não davam satisfação a ninguém, a não ser um ao outro.
Comecei a dizer:
— Prazer em conhecê-los, Sr. e Sra....
Mas a mãe dele exclamou:
— Por favor! Somos Iris e Billy.
Siri poderia ser um juiz aposentado da Suprema Corte, e ainda assim seria melhor chamar
Sid e Nancy de "senhor" e "senhora".
Iris me deu outro abraço, ela estava quase me sacudindo pra cima e pra baixo. Quando me
soltou, disse a ela:
— Parabéns pelo casamento do Wallace. Sei que ele e Delia vão ser muito felizes. — Jesus,
estou começando a soar como Nancy. Preciso fumar uma erva ou roubar umas barras de
chocolate Hershey's, logo.
— Acredita nisso? — perguntou Iris. — Isso me deixa tão triste. Já é ruim o suficiente que
eles sintam necessidade de fazer parte do sistema dessa forma, mas um hotel chique em
Nob Hill? Um bufê? Listas de presente? Disse para eles "Deus do céu, se vocês precisam
tanto fazer isso, Billy e eu conhecemos um guru espiritual que realiza cerimônias. Façam
com ele. Cada um traz um prato e nos reunimos no quintal, Billy toca violão e colocamos
músicas da década de 1960 no toca-discos quando o povo quiser dançar. Não desperdice
dinheiro assim!" Não percebe quantas famílias do Terceiro Mundo poderiam comer num
ano pelo mesmo custo desse casamento?
Hum, não, Iris, não faço a menor ideia. Só achei que Java e Delia eram meio chatos por
escolher o casamento padrão com dez padrinhos e damas de honra. Mas música dos anos
1960? Me dê uma banda cara de suingue correndo.
— Mãe... — Siri tentou falar.
Mas ela o interrompeu novamente.
— Billy e eu não sentimos necessidade de casar! Sabemos do nosso compromisso um com
o outro.
— MAE! — interrompeu Siri. Eu nunca o ouvira gritar antes. Sua voz baixa geralmente soa
como um profundo e sexy sussurro. Eu não sabia que um cara meigo como o Siri
fosse capaz de gritar, muito menos de ficar irritado, como uma pessoa normal, o tipo de
pessoa que convive na minha família. — Já chega.
As luzes piscaram, sinalizando o final do intervalo.
Iris disse:
— Cyd Charisse, ouvi tanto sobre você. Preciso que você apareça logo, esta semana, com
certeza, vamos dar uma festa. Posso ver sua aura mesmo através do preto que você está
usando. Billy, a aura dessa garota, pode ver? Amarela! Mais amarela do que o blazer do
Siri! Prometa que nos fará uma visita essa semana, Cyd Charisse? Nosso amigo de
Humboldt County acabou de vir nos visitar e nos deixou com um pequeno estoque, então
você sabe o que isso significa. Vamos nos divertir bastante, realmente vamos nos conhecer.
Não podia aceitar o convite se o Siri não o confirmasse, então só sorri um pouco, educada.
— Vejo você na escola — Siri murmurou.
Isso não parecia muito encorajador.
Iris e Billy deram adeus e voltaram para seus assentos com seu filho fodão embaixo da asa.
Eu fiquei lá confusa e querendo saber o que há em Humboldt County; talvez se minha mãe
não tivesse me mandado para o colégio interno por tanto tempo eu saberia o que há no meu
próprio estado.
Então, quando estava indo para as escadas em direção aos camarotes, Siri se virou e andou
de volta para onde eu estava no saguão, ainda parada observando-o, perdendo o fôlego de
felicidade — e confusão. Siri ficou na minha frente e foi como nosso estranho momento em
câmara lenta. O que deveríamos fazer ali? Ao menos nos conhecíamos ainda? Siri inclinou
seu rosto em minha direção como se fosse me beijar. Eu queria muito os lábios carnudos
dele, mas virei minha bochecha levemente e ofereci minha mão no lugar.
Temos um longo caminho a trilhar, apesar da vontade de rasgar aquele blazer amarelocanário
e me afundar no corpo dele.
Seu rosto se inclinou perto dos meus lábios novamente, então foi para minha orelha.
— No próximo sábado, dia oito, festa dos meus pais. No telhado.
A sensação de seus lábios suaves novamente na minha mão, o roçar de sua barbinha do
queixo em meu pulso e seu hálito suspirando na minha orelha fizeram com que minhas
pernas virassem geléia e eu estava bamba quando me virei para voltar ao meu assento. Meu
olhar parou em Nancy, que estava sendo observada por todos os homens, com seu cabelo
louro num coque perfeito estilo francês e sua figura de modelo usando um vestido de altacostura
bem justo, de pé num canto com uma Perrier em sua mão manicurada, de onde ela
deveria estar observando o Siri e eu.
Nancy novamente estava com aquela cara de quem comeu e não gostou, tipo oh, não, lá
vamos nós de novo.
Oito
Realmente eu já superei bastante minha queda pelo Wallace, mas voltar para aquele
telhado da casa do Java e do Siri, com vista para Ocean Beach, com o cheiro de café de
verdade sendo feito e a visão de Java virando os hambúrgueres vegetarianos na grelha
usando um avental do Java the Hut sobre sua roupa molhada, bem, eu não podia deixar de
pensar, hum, me dê um pedaço disso aí. Algo no cheiro salgado do ar de Ocean Beach
misturado ao das árvores de eucalipto e ao aroma dos grãos de café do Java the Hut, algo
naquela combinação particular de odores me trouxe instantaneamente para o começo do
verão, quando Siri e eu ainda estávamos juntos. O cheiro enlouqueceu instantaneamente
meus hormônios e quase me fez esquecer como eu havia decidido que o Wallace
comprometido era carta fora do baralho e eu não gostaria de vê-lo nu numa lua-de-mel,
todo saidinho jogando grãos de café na nossa cama, em vez de pétalas de rosa.
Dei a mim mesma um tapa mental e tentei me livrar desses pensamentos impuros. Meus
olhos buscaram o telhado, onde um grande grupo de pessoas, que iam de adolescentes à
meia-idade — hippies, surfistas, artistas bem desleixados, o povo de sempre de Ocean
Beach — estava, curtindo a festa de boas-vindas da Iris e do Billy. Da porta, eu estava procurando
por Siri com os olhos e dei com ele deitado numa rede me chamando de onde eu estava. Lambi a
baba provocada por Java dos lábios e atravessei a multidão em direção ao Siri.
Não podia evitar de me lembrar que, da última vez que estivera nesse telhado, eu me
envolvi numa conversa sussurrada, iluminada pela lua, com o Java — nada romântico, só
papeando sobre a vida e sobre antigos amores e nossos pensamentos profundos básicos,
creio eu — enquanto Siri e Delia já tinham apagado em seus sacos de dormir, ao nosso
lado. Minha recepção em casa, depois daquela festa, foi uma sentença em Alcatraz, cortesia
de Sid e Nancy. Agora eu não apenas tinha saído da prisão, mas sob condicional, e tive de
prometer esperar lá embaixo para ser pega por Fernando pontualmente às onze da noite.
Mais impressionante era que o ar da noite estava quente o suficiente para que eu não
precisasse ficar coberta de lã. Isso é uma coisa que adoro em Nova York: o verão fica por lá
até tarde da noite, quando é tão quente que você pode ficar como veio ao mundo, com um
hidrante jogando água em você e ficar perfeitamente satisfeita. Danny e seu namorado têm
uma grande área de estar no telhado de seu prédio. Acho que é um consolo para eles por
viver num prédio de cinco andares sem elevador. Eles têm cadeiras de plástico espalhadas
com livros da Jackie Collins e do Sidney Sheldon em cima e mesas de carteado para
quando seus amigos vêm jogar mah-jongg, e um aparelho de karaokê que Aaron usa para
cantar músicas da Kylie Minogue. Do telhado você pode ver o Empire State e toda
Manhattan parecendo um jogo de Lego. Do telhado do Siri e do Java você pode ver o
oceano Pacífico e o monte Tamalpais, em Marin County, se não estiver nublado demais e
se você estiver preparada para vencer o frio de Ocean Beach.
As redes são mesmo boas para manter a intimidade, então fiquei feliz que o Siri estivesse sentado
numa quando eu cheguei até ele. Podia sentir meu instinto Atração Fatal de meter a faca em todo
mundo na festa, só para me livrar deles e poder passar um tempinho deitada só com o Siri na rede.
Mandei uma nota mental para meu futuro, dizendo: Rede — cuide desse espaço. O desejo de me
deitar de conchinha com o Siri por trás, talvez colocar a cabeça dele no meu ombro, os dedos dele
no meu cabelo massageando minha cabeça, só nós dois juntinhos respirando o ar do oceano e um ao
outro, seria algo que teria de esperar mais um pouquinho. Minha nota mental recebeu uma resposta
imediata: CC, banque um pouco a difícil, tá? O garoto terminou com você e quase partiu seu
coração.
Eu me sentei na rede ao lado do Siri e cruzei os braços sobre o peito.
— Oi — disse eu.
— Oi — disse ele de volta.
Que troço é esse de "oi"? Ele já esteve, tipo, dentro de mim. Você pensa que duas almas gêmeas
teriam mais o que dizer, mas ficamos os dois em silêncio depois do cumprimento. Nossa nãoconversa
foi quebrada pelo som do mar batendo na Great Highway. O som do mar quebrando o
silêncio foi como calda de chocolate jogada num copo de leite, descendo como estranhas listras
negras enquanto espera para ser mexido.
Se Siri é meu verdadeiro amor, a conversa não deveria ser um pouco mais fácil?
Vi Helen sentada num banco no outro lado do telhado, falando com um cara com pinta de
surfistinha e uma garota de dreadlocks. Helen acenou para mim e eu acenei de volta. Pensei em
largar o Siri no vácuo e ir falar com ela. Eu mal a conheço, e acho que posso passar horas de papo
com ela (falando principalmente sobre o Siri). Sem pressão.
Meu aceno fez com que o Siri falasse:
— Conhece a Helen? — Não as palavras que eu estava esperando: Ah, Cyd Charisse, senti tanto
sua falta, penso em você a cada segundo, te amo, preciso, quero você, gata, não posso viver mais
um segundo sem você.
— Sim, ela é minha nova camarada. — Para a surpresa do Siri, eu acrescentei. -—Tá
estranhando por quê?
Siri deu de ombros.
— Legal. Nunca soube que você tivesse alguma amiga.
— Bem, talvez você não me conhecesse realmente bem também.
— E vice-versa. — Seu tom não era de raiva ou maldade, e o meu também não havia sido.
Só estávamos colocando os fatos.
— De onde você conhece a Helen? — perguntei. — Das suas aulas de arte?
— Mais ou menos — disse Siri. — Principalmente porque uma pessoa aí tem uma
quedinha por ela.
Oh, alguém tem uma queda pela Helen! Delícia! Eu apontei para o garoto surfista com
quem ela estava falando.
— Aquele cara? — perguntei.
Siri riu.
— Arran, o surfista de long board? Não, acho que não. Ele está se guardando para alguma
gostosona ideal tipo Playboy que nunca vai surgir fora das fantasias noturnas dele.
— Siri mexeu a cabeça em direção à garota de dreadlocks que estava falando com Helen e
Arran. — Ela. Autumn.
AQUELA É A AUTUMN! Meus olhos se abriram e eu tentei olhar melhor para a diaba que
andou perturbando meus sonhos desde que Siri terminou comigo. Autumn estava de pé sob
um cordão de luzes vermelhas e parecia ter a pele bem escura, mas com um formato de
olhos e uma estrutura óssea parecida com as garotas vietnamitas dos restaurantes de
Clement Street. Ela possuía um desses sorrisos calorosos, contagiantes, numa boca com
formato perfeito
— lábios carnudos e dentes bem brancos e brilhantes — que me fez querer pular nela.
Exagerei pensando que qualquer surfista chamada Autumn só poderia ser ruiva com o
sovaco peludo, cantora de folk e bronzeada pelo sol da Califórnia. E exagerei pensando que
essa tal de Autumn estava dando em cima do meu homem.
Eu ri um pouco e pela primeira vez desde que voltei à casa do Siri e do Java, eu relaxei.
Descruzei meus braços e me inclinei um pouco mais na direção dele.
— Por que está rindo? — ele perguntou.
— Talvez eu só esteja surpresa. No verão passado quando eu estava de castigo e Delia me
contou que Autumn era sua amiga surfista e como ela havia pego meu emprego no Java the
Hut, eu tinha toda a certeza de que você e ela se pegaram enquanto eu estava presa em
Pacific Heights.
— Eu te falei, quando brigamos, que não tinha acontecido nada entre mim e a Autumn —
disse Siri. Suas mãos se mexeram de seu colo para seu joelho e seu dedo rosinha estava
tocando o meu, nossos joelhos estavam bem pertinho. Seria falta de educação se pegar
numa rede numa festa onde as pessoas estão socializando a sua volta, e onde os pais de seu
suposto parceiro estão celebrando, certo? Mesmo que houvesse claramente uma
necessidade de celebrar algo mais, que essa Autumn não era uma jogadora no duelo de
amor de Siri e CC?
— Se eu soubesse que Autumn era gay eu não ficaria, você sabe, com essa ideia de que ela
ficou com você — comentei.
— Ah, a gente ficou. Depois. — Meus hormônios mudaram do ponto do desejo, em
ebulição, para um estado idêntico ao de uma crise de nervos. Eu tive de me segurar com
todas as forças para não GRITAR a plenos pulmões. Meu ataque foi contido ao ver Iris ao
lado de Java. Eu tive de desviar meus olhos para que a mãe de Siri não percebesse minha
aura mudando para TEMPESTADE DE RAIVA, RAIVA, RAIVA. — Logo antes de eu ir
para Papua-Nova Guiné. Nós apenas não, tipo, terminamos o trabalho. Foi uma ficada do
tipo, você está aqui e eu estou aqui, e estamos ambos entediados e curiosos. Não significou
nada, sabe.
Sim, eu sei. Seu nome era Luis, mas o que isso tem a ver com todo o resto?
Por que Siri tem de ser tão sincero o tempo todo? Por que ele não pode mentir, só um
pouquinho que seja, para evitar que eu salte sobre a Autumn e arranque os olhos dela? E eu
não me importaria de esfaquear meu parceiro de rede para fazer uma moqueca de Siri agora
mesmo também.
Meus braços se cruzaram de novo e eu pude sentir minha boca abrindo de um jeito tão
louco que aquela expressão arriscava ficar permanentemente moldada à minha mandíbula.
— Sim, de fato, eu sei. Teve um cara em Nova York que trabalhava para meu pai
biológico. Mas também não foi nada demais.
Olhei para os olhos do Siri e pensei. Estamos quites agora? Podemos seguir em frente?
Aparentemente não. Siri deixou escapar:
— Já superou a queda pelo meu irmão?
Se Siri e eu voltarmos à mesma, um de nós vai ter de ceder, então como num experimento
de melhora da aura, pensei, por que não pode ser eu?
— Essa chamada "queda" é como um tumor, mas um tumor benigno, sabe? Dá para
entender?
A boca do Siri se transformou num meio-sorriso leve e torto.
— Acho que sim — disse ele. — Eu até tenho uma quedinha pela sua mãe.
Vingança é uma merda.
Iris parou ao lado da nossa rede, sentando-se num banco feito de toco de árvore. A presença
dela me fez evitar responder ao Siri, o que iria requerer que eu entrasse numa área tão
nojenta que tudo o que eu conseguia enxergar era uma pintura como as de Goya, afundando comigo
num caldeirão fervente com criaturas nojentas, tipo minhocas e cobras, se enrolando na minha
pessoa. ECAAAA!
— Cyd Charisse — disse Iris. Ela pegou minha mão. — Estou tão feliz que você pôde vir esta
noite. Um pouco surpresa também. Siri, Wallace e Delia, todos tinham apostado se sua mãe deixaria
você voltar a essa casa. — Iris gritou em direção a Delia, que estava pegando uma bebida. — Dee,
você deve dez pratas ao Siri!
Siri bateu no meu joelho como se fosse meu avô, "o que foi isso?", e levantou da rede.
— Te encontro mais tarde — disse ele para mim. Hum, queria evitar a mãe?
Observei Siri por trás — ele tem mesmo uma bela bundinha pequena e redonda e saliente
na medida certa — enquanto ele andava na direção do irmão. A visão de Wallace e Siri de
pé juntos, idênticos cabelos lambidos pelo oceano, rindo a mesma risada e sorrindo o
mesmo sorriso, me fez virar para Iris, a criadora. Ela estava olhando para os irmãos
também, com aquele olhar leonino de orgulho. "Deus abençoe a mãe deles" eram as
palavras flutuando na minha cabeça, e do grande sorriso de Iris para mim, eu percebi que as
palavras haviam viajado do meu cérebro para minha boca. Iris se aproximou e passou a
mão na frente do meu cabelo, como Nancy faz quando eu deixo. Aquele gesto simples de
mãe me ajudou a diminuir a temperatura de ebulição.
— Você tem um espacinho para mim nessa rede? — perguntou ela. Ela levantou-se de sua
cadeira de tronco e enrolou as pontas de sua longa túnica apertada em suas pernas. Eu me
mexi para dar espaço, mas ela disse: — oh, não, vamos ficar deitadas e ver as estrelas.
Claro, com toda a poluição daqui você não pode ver realmente o céu noturno como no
Pacífico Sul, mas aposto que a gente vê algo que vale a pena.
Sendo essencialmente esquisita e mimada, eu não queria dividir minha rede com ela, mas
ela também era mãe do meu destino manifesto, então achei que era melhor não ofendê-la
sugerindo que ela poderia estar invadindo meu espaço pessoal. Por sorte, Iris deitou-se na
direção oposta a mim, então ficamos pé com cabeça em vez de cabeça com cabeça. Devo
admitir, o suave balanço de nossos corpos na rede era bem legal no ar fresco da noite à
beira-mar, e, ei, essas estrelas aí, as que você podia ver levemente através da neblina,
estavam brilhando direitinho.
— Não sou mesmo uma pessoa da cidade, mas eu adoro São Francisco. O cheiro de
eucalipto aqui na praia é quase intoxicante. E está quente hoje, pelo menos para São
Francisco! A última vez que estive aqui, quando Siri se mudou para esta casa com Wallace,
eu tive de usar um casaco para ficar no telhado com os meninos. E era verão!
Da próxima vez que eu convencer o Siri para mais uma rodada de Trabalho por Um Dia,
quero ser a recepcionista em um desses hotéis chiquérrimos de São Francisco, pois estou
certa de que os turistas iriam apreciar meu conhecimento sobre a Cidade e seus
microclimas.
— É porque é outono — expliquei a Iris —, o que em São Francisco significa que somos
privados da chegada do verão pela neblina e o frio supremo durante julho e agosto.
Setembro e outubro são os melhores meses na Cidade, quentes e ensolarados, praticamente
amenos. Claro, se você vive em Mission ou Noe Valley você provavelmente vê o sol todo
dia, mas aqui em Ocean Beach e muitas vezes em Pacific Heights, você pode passar dias
sem ver o sol no verão. — Os primeiros meses de outono, quentes e ensolarados e sem os
turistas do verão, tão ignorantes que acham que podem conhecer os Garotos de Praia da
Califórnia, em São Francisco, são meus meses favoritos na Cidade. Este outono será o
primeiro em três anos que eu estive em casa para aproveitar.
— Fiquei sabendo que você passou o mês de agosto em Nova York. Como foi? —
perguntou Iris. — Billy e eu fomos lá uma vez, há alguns anos. Nós protestamos numa
reunião econômica do G-7. Paramos o trânsito por toda a Park Avenue. Bons tempos.
Nota mental: nunca convidar Iris para conhecer papai Sid.
— Nova York foi estranha e interessante, e assustadora de um modo bom, e eu gostaria de
voltar, mas em circunstâncias diferentes. Se eu voltasse, eu gostaria de ficar com meu
irmão e seu namorado em vez de com o meu pai biológico, e Siri deveria vir porque ele ia
amar todos os museus e galerias de arte e, hum, há arte por todo lado, como o grafite nos
metrôs e as pinturas com spray estilo hip-hop nas laterais dos prédios e em grandes caixasd'água
que ficam nos telhados dos maiores prédios. Siri iria pirar com aquela cidade.
Por que eu estava contando tudo isso para Iris? Essas eram as palavras que deveriam ter preenchido
o vazio da minha conversa com Siri. Eu estava morrendo de vontade de contar a ele sobre Nova
York — e ainda não havia ouvido sobre suas aventuras em terras distantes.
— Você tem bom gosto para homens — disse Iris.
— Concordo. — Nem sempre eu tive bom gosto, mas Siri mudou isso tudo.
Iris anunciou:
— Agora, nossa oferta especial. — Eu estava pensando: souflé de chocolate? Alguém fez um suflê
de chocolate? Eles são bem difíceis de fazer, mas tão deliciosos, mas a ideia da Iris de oferta
especial era bem diferente da minha. Eu levantei minha cabeça da rede para ver Iris enfiando a mão
no bolso do seu vestido, de onde ela tirou um isqueiro e um baseado bem gordo.
Iris é a mãe mais descolada de todos os tempos.
Ela acendeu e deu uma longa tragada. Não tossiu nem uma vez enquanto fazia anéis soltando
fumaça. Eu a venero! Cafeína é minha droga, mas quem era eu para recusar o bagulho quando Iris o
passou para mim? Oferta especial de fato. O cheiro dessa parada era bom demais para me preocupar
em debater a sabedoria de compartilhar a experiência com a mãe do meu belo e infiel amor
verdadeiro.
— Hum, cheiro bom. Legal.
— O melhor de Humboldt — falou Iris. Então era isso que ela queria dizer com pequeno estoque
deixado por seus amigos de Humboldt County.
Dei uma tragada pequena — já fazia muito tempo para mim, desde meu segundo ano do ensino
médio, e ninguém no colégio interno nunca arrumava bagulhos tão bons e FORTES assim — mas
eu ainda tossi a tragada.
— Tente outra; mais lenta, mais curta — Iris aconselhou.
Tentei de novo, respirando lentamente para que a fumaça pudesse descer sem ser incômoda. Ahhh.
Maravilhoso Humboldt County, muito bem.
— Me fale sobre você, Cyd Charisse — disse Iris. Mais uma tragada e devolvi o baseado
para Iris. Podia sentir a raiva pela ficada do Siri com a Autumn não exatamente indo
embora, mas dissipando-se num suave sentimento de Bem, não tenho de gostar, mas que é
justo, é justo. Lu-isi.
Eu quase me senti cantando, mas em vez disso eu falei numa batida, como se minhas
palavras tivessem ritmo e eu fosse algum tipo de poeta beatnik.
— Estou pensando em mudar meu nome permanentemente para CC. Estou tentando
conseguir minha própria identidade e devolver a da estrela de cinema a ela. — Pensando
nisso, só vou chamar o Java por seu nome verdadeiro, Wallace, de agora em diante, para
diminuir seu apelo sexual comigo.
— Faculdade? — perguntou Iris.
— Vou deixar pra lá, é, vou deixar pra lá — disse eu, mas minha tentativa inspirada por J
de fazer um rap acabou soando mais como Pssss, shhhh, psssst.
— CC, estou pensando que você e o Siri podem ter um novo começo, depois de toda essa
bobagem que Siri e Wallace me contaram envolvendo seus pais. Seus velhos só precisam
relaxar. Você é uma mulher crescida agora, independente.
EXATAMENTE.
Eu me lembro de como Nancy me contou, na época da minha pequena crise, como Siri
apareceu lá em casa depois que fui para Nova York e pediu desculpas a Nancy por nós
sermos "jovens e idiotas", antes dos acontecimentos que levaram a Alcatraz. Eu não estava
certa de que isso era um sinal de sua intenção de ficarmos juntos novamente, quando eu
voltasse para casa ou se foi só um caso infeliz de puxação de saco, mas de repente eu tinha
de saber, imediamente.
Nenhuma quantidade de maconha pode acalmar a louca em mim.
Levantei da rede.
— Até mais, Iris — disse eu. — Preciso falar com seu filho. Obrigada pelo Especial de
Humboldt.
— De nada, CC — disse Iris. — E só para registrar, eu não tenho o menor problema se
você quiser passar a noite aqui, então volte logo. Ouvi dizer que você gosta de cozinhar, e
sobrou o bastante para a receita favorita de brownie do Billy.
Honestamente, Iris, entre para o Narcóticos Anônimos ou algo assim.
Fui até Siri, Helen, Arran e Autumn. Eles estavam brindando com copos de plástico cheios
de cerveja e dizendo:
— Kampei! Saúde!
Helen me apresentou.
— Ei, CC, você já conhece a Autumn e o Arran? É estranho de soletrar, A-R-R-A-N.
Eu ignorei Autumn e disse para o Arran.
— Siri disse que você surfa de long board. Como é?
Arran disse:
— Sim, o Siri acha que pranchas curtas são melhores e pranchas compridas são uma droga
porque vários surfistas de pranchas curtas acham isso, mesmo que sem as pranchas longas
as pranchas curtas não estariam por aí, e nem, Endless Summer, o melhor filme do mundo.
Pranchas longas versus pranchas curtas: quem liga pra isso? Inspecionei Autumn enquanto
Arran tagarelava. Autumn era ainda mais bonita de perto; odeio isso. Ela parecia uma
dessas pessoas com as melhores partes do DNA de uma dúzia de nacionalidades diferentes,
juntas para criar a Garota de Dreadlock com Potencial de Supermodelo. Assim, você podia
vê-la numa revista, num comercial de perfume, usando um vestidinho preto básico de Nova
York de pés descalços, andando por uma rua molhada com prédios de lofts e escritórios
industriais em Lower Manhattan, sem maquiagem, só brilho labial para emoldurar seus
lábios carnudos perfeitos e cílios postiços para tornar seus olhos asiáticos ainda mais sexies,
com um bando de motoqueiros gostosões atrás dela e uma legenda embaixo da página
dizendo: MINIMAL — EM TODAS AS LOJAS.
A necessidade de matar a larica e acertar as coisas de uma vez por todas com Siri bateu
junto no relógio de Cinderela, são-quase-onze-horas. Eu me virei para o Siri e disse:
— Você e o Wallace ainda têm sanduíches congelados no freezer? Porque eu queria muito
um agora.
Siri se inclinou para perto de mim, com sua boca acariciando minha orelha, acelerando meu
coração.
— Não diga a Iris porque ela vai enlouquecer — sussurrou ele —, mas Java e eu voltamos
a comer carne. Temos uns burritos da lanchonete 24 horas no freezer, atrás das
garrafas de Absolut. Te deixei com água na boca?
UAU!
A mão dele pegou a minha e eu agarrei firme, fechei a cara para Autumn e disse adeus para
Arran e Helen.
Segui o Siri pela escada estreita para dentro da casa, sem soltar sua mão. Chegamos na
geladeira e fiquei encostada nela, e quando seu corpo iria se encostar no meu, e o beijo, o
beijo "Voltamos Oficialmente" estava prestes a acontecer, Wallace apareceu.
— Ei, crianças — cantou ele. Estava usando a tiara de pedrinhas da Delia. Meu olhar para
ele foi rápido e doce e inocente, mas o suficiente para Siri se afastar de mim. Wallace veio
entre nós, pegando no freezer uma garrafa de vodca Absolut. — Não façam nada que eu
não faria — provocou Wallace. Eu não estava pensando em quão gostoso o Java, quero
dizer, Wallace, era com sua bundinha sob o macacão de surfe enquanto ele andava. Fala
sério.
Quando Wallace se foi, puxei Siri de volta para mim. O novo e melhorado Siri Jumbo tinha
toda essa — como se diz? — "sustância", que eu estava louca para provar, mas Siri se
afastou de mim.
— Acho melhor sermos só amigos.
A Garota Desesperada esqueceu tudo sobre bancar a difícil, e se lançou para o beijo mesmo
assim, de língua, uma mão massageando a nuca dele, a outra passando pelo centro de seu
corpo. Sua boca tinha o gosto do velho Siri, expresso com Pop Tarts, pelos poucos
segundos que ele me deixou saboreá-lo, antes de se afastar.
— Não sei se estou pronto para essa loucura de novo — murmurou ele.
A necessidade de estar com ele, junto dele, provar mais de seus beijos, ameaçou acabar
comigo.
— Mas e o desenho?! — gritei. Você não manda desenhos de baixo do equador para uma
garota, desenhos ilustrando sua saudade dela, a não ser que você a queira, e muito.
— Eu não disse que não quero não voltar com você — Siri falou. Hein? Odeio duplas,
quero dizer, triplas negativas.
— Bom. Porque eu também não disse isso. — O que quer que eu não tenha dito nesse
contexto, um pouco passada e muito confusa. Eu só queria abrir as calças dele. Grande
diferença.
— Então estamos de acordo. Vamos ser apenas amigos agora. Já tenho muito para lidar
com meus pais de volta em casa e todo esse trabalho da escola e Java está pensando em
abrir uma loja em East Bay, o que significa que vou trabalhar muitas horas, e tem o surfe e
o tempo da minha arte e...
Eu não precisava ficar ouvindo tudo isso eternamente.
— Já entendi — retruquei.
— Não fique assim — disse Siri. — É que tem muita coisa esquisita rolando agora. Não
consegue sentir?
Eu sabia que ele estava certo, mas parte de mim não podia evitar se sentir contrariada
também. Quero dizer, os caras não devem estar sempre loucos para pegar qualquer pedaço
de carne que aparece pela frente, sem se importar com as consequências?
Siri abriu o freezer e pegou o burrito para mim, como se fosse um tratado de paz, mas eu
disse:
— Não. Obrigada. — Liguei para o Fernando vir me buscar mais cedo. Sabia que Fernando
me levaria para uma lanchonete Krispy Kreme, ficaria em silêncio e de cara fechada e não
ia perguntar por que meus olhos estavam vermelhos, se porque eu estava chapada ou
porque eu estava de coração partido.
Nove
A ironia do meu último ano ser todo baseado no Siri é que o cara de quem eu não consigo
me livrar é Alexei, o Terrível. Adivinha quem estava no carro quando Fernando veio me
buscar?
— Olá, princesa — disse Alexei quando sentei no banco traseiro da Mercedes. Só a visão
dele foi o suficiente para estragar minha viagem de Humboldt. — Acho que você já
esqueceu como usar o MUNI, nosso amado sistema de transporte público da cidade. — O
carro tinha o cheiro do purificador de ar de eucalipto pendurado no espelho retrovisor,
misturado com suor e a terrível colônia Calvin Klein do Alexei.
— Na verdade, não — disse Fernando. — Eu fiz questão. Você sabe quantos viciados em
heroína e crack vivem neste bairro? Ela não vai pegar um MUNI de Ocean Beach nesta
hora da noite, enquanto eu estiver de olho. Loco. — Como Fernando se pronunciou por
mim, eu não disse que Ocean Beach pode parecer deprimente, mas também é lar do Siri
"Apenas Amigos", cuja presença já é suficiente para abrilhantar qualquer vizinhança
essencialmente deprimente. Mas por mais que eu goste de pensar em Ocean Beach como o
paraíso de Cyd Charisse e Siri, Fernando tinha razão. Ocean Beach não é a terra de belezas
da praia ou de gente feliz, mas de neblina e frio e, sim, motelzinhos fuleiros, bares
decadentes e uma pequena, mas crescente população de drogados barra-pesada, junto aos
gloriosos surfistas do Oceano Pacífico.
— Alexei — disse eu —, seria possível que você cuidasse da sua própria vida e parasse de
se intrometer na minha? Por que você está no carro, para começar? — Eu procurei na
minha mochila Sailor Moon o meu discman. O som do Dead Kennedys não pôde abafar
Alexei rápido o suficiente.
Rezo para que eu consiga passar o semestre todo trabalhando com ele. No meu primeiro dia
de estágio eu não pude nem dizer a ele que é possível uma garota punk-gótica ser querida e
até mesmo, me atrevo a dizer, amada pelos clientes, ou que eu poderia ajudar a consertar a
máquina de expresso quando estiver emperrada, antes que ele dissesse para mim:
— Não vou passar meu semestre de folga sendo babá da Pequena Rebelde. Não sei o que o
Sid estava pensando, colocando você neste ambiente; não imagino que você tenha alguma
habilidade útil. — E eu apenas saltei em cima dele. Ele sabia que fui Funcionária do Mês
dois meses consecutivos quando trabalhei no Java the Hut? Ele sabia quantos clientes
pediam para ser atendidos especificamente por mim no Java the Hut e no Idiotas do
Village? Não é um fato que eu repetidamente trabalhava dois turnos, sem pedirem, em
ambos os estabelecimentos, quando empregados desligados não apareciam porque eles se
achavam bons demais para o salário mínimo? Me pergunte como o jarro de gorjetas ficava
cheio quando eu trabalhava, só pergunte, Alexei. Então papai Sid enfiou sua cabeça careca
no restaurante, com um grupo de colegas investidores, bem quando eu estava prestes a
ensinar ao Alexei a diferença entre entender o que faz um trabalho e o que faz uma carreira:
algo chamado ética de trabalho.
— Está tudo bem aqui? — Papai Sid perguntou. Ele parecia feliz de nos ver, especialmente
em contraste com o exército de caras pálidos e sem expressão que estava com ele.
— Ótimo! —Alexei e eu dissemos.
Alexei se virou para me olhar do banco da frente do carro. Seu rosto estava bem vermelho,
mas daquele jeito saudável, a cor de suas bochechas mais acentuada ainda por causa da
bandana vermelha em sua cabeça, amarrada sobre a testa como uma versão estoniana do
rapper Tupac. Senti um espasmo involuntário passando pelo meu corpo, um breve tremor.
Eca, Alexi não é totalmente feio, se você gosta desse tipo de rosto esculpido e corpo de
lutador e mentalidade carreirista. O que não é a minha praia.
— Não precisa explodir comigo, princesa. Fernando e eu estávamos na academia quando
você ligou para te pegar mais cedo. Ei, Fernando, você sabe que a Pequena Rebelde
queridinha do papai faz os ajudantes do restaurante jogarem comida nos fregueses? Ela só
trabalhou dois dias e já fez o restaurante perder seu primeiro cliente-celebridade. Muito
bem, princesa.
— Ei, Fernando — eu retruquei, enquanto metia os fones no ouvido. — Você sabia que foi
só UM ajudante, e que eu não posso ser responsável se o dito-cujo presta mais atenção em
mim pegando um cardápio do chão do que no fato de estar limpando a mesa dos jogadores
do time de futebol americano San Francisco Forty Niners para outra rodada de chope?
— Não, não foi assim que... — começou Alexei, mas eu saltei de volta, com os fones
desligados. Agora eu estava louca, explodindo quase como Chernobyl.
— Ei, Fernando, você sabia que esse universitário aí fez você e o papai acreditarem que ele
tirou o semestre de folga para ter sua grande experiência ajudando a gerenciar um
restaurante chique teoricamente porque vai ficar bom no currículo dele de ingresso do
MBA, mas na verdade ele está no restaurante POR CAUSA DE UMA GAROTA? Vai,
Alexei, conte ao Fernando sobre a Kari.
Cá-ri. Não Ke-ri, me desculpe, é a gerente-geral do restaurante chique onde o papai Sid me meteu
para trabalhar de recepcionista duas tardes por semana, como estágio. A única coisa que Alexei e eu
temos em comum é que ambos pensamos e agimos impulsionados pela parte errada de nossa
anatomia, e eu sei que ele está louco pela Kari, e eu sei que ficar com ela é a única razão para esse
semestre de folga. Triste, realmente. Olha só, nosso jovem Alexei conheceu a Kari num bar na
marina no verão. Eles conversaram. Ela estava sendo entrevistada para esse Grande Emprego nesse
restaurante novo. Alexei tem esse estranho fetiche por mulheres mais velhas e estava tentando dar
uns pegas nela. Acontece que ambos conheciam um cara, também conhecido como papai Sid, que
(a) definitivamente daria ouvidos para a recomendação de Alexei para que Kari ganhasse o emprego
de gerente-geral e (b) adoraria mudar as regras um pouco para ter Alexei trabalhando lá por um
semestre, para conseguir a experiência que um dia iria ajudá-lo a entrar na Faculdade de
Administração de Harvard.
Como eu consegui toda essa informação? Bem, digamos que há vantagens em ter um bando de
ajudantes a fim de você, especialmente aqueles que gostam de fofocar sobre sua odiada patroa, a
Senhora Imperatriz Kari.
— Não é verdade! —Alexei protestou do banco da frente. Seus ombros enormes se fecharam um
pouco. — Kari abriu e gerenciou três restaurantes de luxo na Bay Area e em Napa. Até um perfil
fizeram dela no Wall Street Journal. Trabalhar com alguém com a capacidade e a experiência dela é
uma oportunidade inacreditável, vale a pena tirar um semestre de folga da faculdade. É ótimo para o
currículo, e ótimo para a conta bancária. Nem todos nós temos poupanças para pagar nossa faculdade,
princesa.
Cá-ri, que tem idade próxima da minha mãe, é uma Garota de Supercarreira — ela usa
terríveis ternos curtinhos com saltos enormes e cabelo negro Chanel com franja desfiada na
navalha e o resto caindo abaixo das orelhas, com grandes olhos azul-bebê e belos (para uma
pessoa velha) lábios carnudos. A coisa interessante no rosto entediante da Kari é que ela
tem o olho esquerdo parado e eu tenho de praticar olhar para a ponta do nariz dela quando
ela fala, em vez de olhá-la no olho, para que eu não seja flagrada encarando o olho azulbebê
que não se mexe.
E Kari é qualquer coisa, menos preguiçosa. Ela anda pelo restaurante com seu headphone,
latindo ordens para a cozinha e para a recepção com aquele seu tom de general, como se
colocar as mesas 12 e 14 juntas e prepará-las para 13 pessoas fosse um plano de batalha que
assegurasse a vitória dos aliados. No pouco tempo que trabalho no restaurante, tive de me
aperfeiçoar na arte de não olhar para seu olho paralisado e também não cair no chão
histérica toda vez que ela grita naquele microfone (que na verdade é bem fálico e obsceno
de encontro àquela boca de boneca — tenho certeza de que é por isso que Alexei está
alistado no pelotão de admiradores dela).
Provando que eu estava certa sobre as intenções de Alexei com a Senhora Imperatriz Kari,
Alexei se virou para a frente do carro, para que eu não pudesse ver seus olhos. Mesmo que
Alexei seja Terrível, ele também tem o rosto mais honesto de todos; sempre dá para ver
quando ele está mentindo. Quando eu estava no ensino fundamental e Alexei ficava no
carro quando Fernando me buscava, eu perguntava se ele tinha outro suco para me dar e ele
dizia "NÃO", mas então seu rosto ficava vermelho e seus olhos ficavam que nem os de um
cachorrinho, pela mentira, então milagrosamente ele encontrava um suco extra em sua
mochila e jogava para mim. Eu quase sentia pena do Alexei agora porque Kari o trata mais
como um secretário do que como um subgerente. Por trás das minhas pilhas de cardápios eu
já a testemunhei mandando-o pegar seu terrível terninho na lavanderia e mandando-o
confirmar a hora que ela marcara no cabeleireiro.
— Dios mio, já chega! — exclamou Fernando. Ele pisou fundo no freio do carro na Great
Highway. Paramos num sinal vermelho, verdade, mas a freada brusca era definitivamente
para nos jogar em nossos assentos. Fernando se benzeu daquele jeito que ele sempre faz,
você sabe, aquele troço de Pai-filho-e-espírito-santo. — Vou fazer o possível para me
lembrar de nunca mais levar vocês dois juntos no carro novamente. — Alexei e eu ficamos
quietos com a freada e deixamos que ele escutasse a rádio de salsa em paz pelo resto do
caminho para Daly City.
Quero perguntar ao papai Sid se eu poderia largar esse trabalho e voltar a trabalhar no Java
the Hut, porque trabalhar com o Sr. "Apenas Amigos" Siri e a mocinha Autumn seria
melhor do que o restaurante metido para os falsos do Centro Econômico, mas sinto que já
decepcionei muito papai Sid no passado, e que desta vez eu tenho de passar por isso.
Também há a remota possibilidade de que, apesar da nova paz que reina em nosso lar, ao
pedir para voltar a trabalhar no Java the Hut, onde toda a história louca que levou a
Alcatraz começou, seja como pedir para abrir os portões do inferno.
O celular do Fernando tocou quando paramos no estacionamento da lanchonete em Daly
City, a "periferia" logo abaixo de São Francisco com todas aquelas casinhas no morro que
parecem as do Banco Imobiliário.
— Preciso atender essa ligação. Por que não vão para a fila? Sabem o que eu quero, certo?
— disse Fernando.
Saltei do carro e disse para o Fernando pela janela do motorista:
— Você quer uma dúzia de donuts de dulce de leche supostamente para dividir com seus
netos, mas na verdade sei que você vai comer metade sozinho, meu bom rapaz, e se não
tiverem de doce de leite você vai querer o original, com glacê.
— Exatamente — disse Fernando com uma risada. Ele começou a falar ao telefone em
espanhol.
Enquanto esperávamos na fila, Alexei disse:
— Tem uma loja de comida natural Jamba Juice onde eu posso tomar um Shake
Powerboost aqui perto, certo?
— Aposto que está fechada — disse eu. — De qualquer forma, relaxa um pouco, tá?
— Acho que um donut sem recheio não vai me matar. Mas na verdade eu prefiro o
Dunkin'Donuts lá do leste.
Recentemente converti-me espiritualmente do Dunkin'Donuts para o Krispy Kreme,
quando Luis em Nueva York me disse que os Dunkin'Donuts são congelados e depois
colocados no microondas, enquanto os Krispy Kremes são feitos fresquinhos todos os dias.
Não tenho certeza se não é apenas uma lenda urbana, mas não acho que Luis iria mentir
sobre algo tão importante como isso, e não estou a fim de correr o risco.
— Sem recheio! — eu disse para o Alexei. — Esses donuts são uma porcaria. São os
últimos donuts da escala de sabor. Você está no Krispy KREME. Se vai afundar em calorias,
pelo menos coma um de chocolate com glacê.
O melhor donut que eu já comi foi num jantar em família num posto de caminhões na
estrada I-5 quando eu era pequena, antes de Josh e Ash nascerem, quando papai Sid tentou
levar Nancy e a mim para acampar no Yosemite e não permanecemos mais do que uma
hora nos sacos de dormir antes de implorar para o Sid nos levar para um hotelzinho. Aquele
donut do posto, simples com glacê e canela, era a perfeição: feito em casa, quente, molhadinho,
derretendo na boca de tão delicioso, uma verdadeira maravilha que eu não espero
encontrar novamente na minha vida, então não sei por que eu estava defendendo Krispy
Kreme tão bravamente para o Alexei. Mas havia dezenas de pessoas esperando na fila à
nossa frente da loja numa noite de sábado, o que deve ser algum testemunho a favor da
instituição.
Alexei suspirou.
— Você sempre tem de acabar com um cara? Não pode relaxar um pouco? Acho que você
me deve um pouco de gratidão por um certo incidente num pub, não faz muito tempo, então
gostaria de cobrar. Por favor, apenas cale a boca.
Eu protestei.
— Mas não posso pagar de volta deixando você consumir donuts ruins. Isso faria de mim
uma babaca.
Fernando se juntou a nós na fila.
— Que tal uma trégua entre vocês dois?
Alexei e eu protestamos.
— Mas...
Fernando fez o gesto de pausa.
— Animem-se. Vamos parar na casa de repouso a caminho de casa. A Pão-Doce não pode
esperar até depois da igreja amanhã de manhã para comer seu donut.
Dez
A verdade é que tenho meio que evitado a Pão-Doce desde que voltei de Nova York.
Tenho ido para a casa de repouso as dez horas por semana de sempre, do meu serviço
comunitário, e apesar de sempre meter a cabeça pela porta para dizer oi, não tenho ficado
com ela como eu costumava. Não tenho feito horas extras no quarto dela jogando cartas ou
implorando para que ela leia o tarô ou ouvindo-a explicar sobre as múltiplas personalidades
da Vicki (e a complicada vida amorosa dela) do programa One Life to Live. Não que ficar
com a Pão-Doce não seja mais interessante do que trocar roupas de cama e ler livros do
Harry Potter em voz alta para os velhinhos que são mais obcecados por ele do que meu
irmãozinho, mas há algo nesta época do ano que me faz lembrar do segredo que Pão-Doce
e eu temos em comum: um aborto em nosso passado. Além disso, a Pão-Doce tem um amor
verdadeiro agora. Ela não precisa que eu estrague o barato dela.
Por mais que eu esteja adorando o outono de São Francisco, não consigo deixar de lembrar
que, nessa época, no ano passado, eu estava grávida e em pânico lá no colégio interno na
Nova Inglaterra. Já estava na sexta semana antes de finalmente ter coragem de ligar para
meu pai verdadeiro, Frank, e pedir o dinheiro de que eu precisava, já que Justin não
ajudaria e eu não tinha amigos naquela escola. Não consigo deixar de lembrar que naquela
época no ano passado, eu ficava vomitando entre as aulas e suando em bicas na minha
cama de noite, me perguntando o que fazer, me sentindo completamente solitária e
desesperada. Acho que parte de mim pode olhar para trás agora e dizer Hum, um ano
passou, e veja o quanto minha vida melhorou, olhe como eu mudei e olhe quantas pessoas
ótimas tenho em minha vida agora. Outra parte de mim, mais escondida, mas que parece
surgir quando vejo a Pão-Doce, que foi a primeira amiga que fiz depois de vir para São
Francisco, essa parte pensa: Hum, se as coisas tivessem sido diferentes, eu poderia estar
vivendo num lar para mães adolescentes agora, embalando um bebezinho e me perguntando
se ele estava mesmo sorrindo para mim, a mamãe, ou se era apenas gás na sua barriguinha.
Talvez essa sensação vá embora quando o outono passar, quando o aniversário daquela data
passar. Me pergunto se essa é uma dor que vou sentir todo ano, se todo ano eu vou imaginar
um álbum de fotos do que poderia ser a vida daquele bebê. Meu bebê seria assim tentando
apagar a vela de seu primeiro aniversário, ou esse é o bebê acenando do ônibus escolar no
primeiro dia da pré-escola. Talvez chegue um ano em que eu nem me lembre mais, e não
sei se isso será uma coisa boa ou ruim.
Não ajuda o fato da Pão-Doce ter se apaixonado completamente pela neta extremamente
adorável de um ano do Fernando, com seus grandes olhos negros e pele de canela e uma
cascata de cachinhos escuros. Não dá mais para entrar no quarto da Pão-Doce sem
encontrar a netinha dele engatinhando pelo lugar, puxando as gavetas ou passando para
você o livro do Coelhinho Pat, para ser lido novamente. Se não fosse por aquela visita
clínica, eu poderia agora ser mãe de um bebê que iria ter apenas alguns meses menos do
que a neta do Fernando.
Eu realmente amo bebês. Adoro o cheirinho de seus cabelos macios, adoro o jeito que eles
agarram seu dedo, adoro quando eles riem quando você brinca com eles. Especialmente
adoro quando eles começam a gritar e você pode devolvê-los a suas mães e sair para tomar
um cappuccino — e se as mães deles são como Nancy, então elas passam o bebê chorando
para uma babá, para pegar de volta só quando o bebê está bonitinho de novo. Mas esta noite
eu não pude — ou não quis — focar no bebê brincando no quarto da Pão-Doce, dando uma
de bonitinha para ela, para Alexei, Fernando e a mãe dela, a filha de Fernando. Em vez
disso, decidi sentar-me num canto do quarto, lambendo o creme das laterais do meu donut
do Krispy Kreme e olhar o céu da noite pela janela. Lembrei do ano passado, sozinha de
noite na cama do colégio interno, lutando contra desejos bizarros por comida e alterações
de humor e lágrimas perturbadoras. Não percebi que lágrimas reais eram visíveis em meu
rosto até que a Pão-Doce perguntou:
— Querida, você está bem? — Nada escapa a essa mulher.
— Alergia — disse a ela.
A bela pele café-com-leite dela franziu levemente.
— Hum — disse ela.
— Não sei por que você vive aqui — eu disse a ela, meio bruscamente, mas querendo
mudar de assunto. Pão-Doce já me corrigiu dizendo que vive num lar com assistência para
idosos, não numa casa de repouso, muito obrigada, mas o que quer que seja, ainda é uma
instituição com cheiro de enfermaria de hospital, situada numa casa úmida vitoriana
assombrada com cheiro de Clorox e de urina e de lareira que não é limpa há anos.
Quando eu for velha, espero que, se eu viver num lar como o da Pão-Doce, eu tenha o
melhor plano de TV a cabo. Ou talvez Siri e eu estejamos juntos novamente até lá e quando
olharmos um para o outro, de cabelo branquinho, corpos curvados e pele enrugada, vamos
pensar Uau, você está tão bem quanto no dia que te conheci e me apaixonei, e não: uau, o
que aconteceu com você?
— Talvez eu não fique aqui muito mais tempo — disse Pão-Doce. Para uma pessoa idosa,
ela parece superbem: o rosto dela tem algumas rugas, que eu gosto de pensar que são mapas
do tesouro de seu passado, mas sua pele tem uma cor linda e profunda, brilhando agora pelo
amor verdadeiro que ela esperou uma vida toda chegar até ela.
Agora estou mais deprimida. Pão-Doce está dizendo que vai morrer logo? Não, isso não é
possível. Ela está com uma saúde razoavelmente decente em virtude da diálise que ela faz
três vezes por semana por causa de um problema nos rins, e a única razão pela qual ela se
mudou para esse "lar assistido" é porque ela não tem uma família para cuidar dela nos dias
da diálise. Mas nos dias em que não passa por esse tratamento ela está bem assanhadinha
— pelo menos o suficiente para ter uma conexão amorosa com Fernando (encontro
promovido pela garota aqui; eu sei como reunir duas almas gêmeas), que tem pelo menos
dez anos (tosse) a menos do que ela. Seu romance de maio a dezembro durou o verão todo
e o outono, e está oficialmente revelado, também — netos pulando na cama e um jantar
oficial num restaurante com Sid e Nancy e tudo o mais.
— Há algo que você queira dizer? — perguntou Pão-Doce.
— Não posso conversar com você com todas essas pessoas em volta — resmunguei.
— Alguém não está sendo um pouco egoísta? — disse Pão-Doce. — Se você não percebeu,
todo mundo neste quarto está prestando atenção no bebê e nos donuts e na
Ilha da Fantasia na TV. Se você tem algo a dizer, diga. Seu mau humor está acabando com
meu bom momento e o de todas essas pessoas legais me visitando.
Fiz uma pausa.
— O primeiro aniversário de... bem... você sabe, está chegando.
— E? — disse Pão-Doce.
— E? — repeti. — Não sei. Só está me perturbando, é isso.
Pão-Doce apontou para a TV encostada num canto da parede em seu quarto, onde o
anãozinho chamado Tattoo estava anunciando "O avião, patrão, o avião!".
— Talvez o que esteja te perturbando — argumentou Pão-Doce — é que tem outro certo
carinha, um para quem você precisa contar o que aconteceu. Porque se você quer esse
garoto, que você diz ser seu verdadeiro amor, de volta para sua vida, você sabe o que
precisa fazer.
— Você é a vidente. Vai ficar tudo bem se eu contar?
— Não prometo nada, querida. Não prometo.
— Estou preocupada — sussurrei. Não tanto pelo fato de Siri saber sobre a data "daquilo"
quanto por todo o tempo que ficamos juntos e eu nunca mencionei essa informação
importante sobre o que aconteceu comigo logo antes de conhecê-lo. Bem, além disso, os
caras são estranhos quanto a isso.
Pão-Doce disse:
— É uma barra superar, uma barra tremenda, mas nada que possa se transformar em um
peso entre vocês no final. É aí que você tem de lembrar que algumas pessoas não têm pés.
Olhei para minhas sandálias de plataforma, com unhas pintadas de preto e pés feitos pela
pedicure. O que quer dizer? Podem me chamar de loura, mas levei um minuto para
perceber o que a Pão-Doce estava querendo dizer: quando a vida te dá um limão, não faça
uma limonada — tenha perspectivas. Grande merda.
Onze
A coisa sobre a nova paz é que na verdade é mais difícil do que a velha guerra. Tentar
manter-me numa boa com Nancy, agora que ela está me perseguindo com formulários de
faculdades (apesar de ela saber que eu não quero ir) ou me acordando de manhã para
perguntar se quero ir para a ioga com ela (onde o professor Zen de sua academia de ioga
sempre tem uma leve ereção sob sua bermuda na metade do tempo — distrai bastante) é
muito mais difícil do que o velho sistema. Antes, eu não hesitava em apenas gritar "Sai da
minha frente!" e ela não hesitava em gritar de volta "AHHHH!" e então batia a porta na
minha cara; depois nós nos ignorávamos e ficávamos nessa por dias, como sempre. Nesse
novo regime, estamos ambas presas a um implícito código, de ao menos tentar.
Então eu não posso levar em conta que ela escolheu passar dos limites durante meu sono da
manhã de domingo, depois do barato do Krispy Kreme e da depressão por aquela data.
— Acorde, querida! — foi tudo o que ela disse, muito suave, em meus ouvidos. Senti dedos
no meu cabelo, massageando minha cabeça. Mas eu estava recém-desperta e murmurei:
— Sai daqui — empurrei a mão dela da minha cabeça e ajeitei meu travesseiro de volta
numa posição confortável, mantendo meus olhos fechados para que eu pudesse voltar a
dormir sem que a luz forte da manhã me acordasse ainda mais.
Ela murmurou, daquela forma particular da Nancy que irrita ainda mais quando minha vaca
interior está louca para ser solta.
— Alguém acordou com o pé esquerdo esta manhã.
Meus olhos se abriram para ver o rosto azedo dela sobre mim.
— ALGUÉM... — eu disparei — ...NEM MESMO ACORDOU AINDA. DEUS! QUAL É
O SEU PROBLEMA? NÃO PODE ME DEIXAR EM PAZ?
Ela levantou os olhos e fez sua clássica pose de Nancy: um dar de ombros combinado com
um suspiro tão audível que eu podia registrar na escala Richter.
— Alguém chamada Helen, de cabelo interessante, está esperando por você lá embaixo.
Levante, Senhorita Adolescente de Humor Variável. — Meus olhos voltaram a se fechar.
— AGORA! — O pronunciamento dela provavelmente foi ouvido por toda Ocean Beach.
Desta vez ela chutou a moldura de madeira da minha cama. Adeus para a Boa Mamãe
Despertadora.
Minha manhã não melhorou depois que escovei meus dentes e fui descendo as escadas
ainda usando meu pijama de flanela estilo country, apenas para tropeçar numa metralhadora
de brinquedo do Josh deixada no meio do caminho. Agora eu entendo por que armas de
brinquedo aparentemente promovem a violência infantil: eu estava prestes a matar Josh.
— PORRA! — eu gritei com uma dor lancinante no meu pé. O papai Sid saiu do quarto
dele, perto de onde eu estava. Usava seu paletó de smoking de seda vermelha, que eu gosto
pelo estilo incrível, mesmo que não fosse a hora certa do dia para usar e eu nunca tenha
visto ele acender um charuto antes de seu martíní da noite.
— Docinho — papai Sid disse, e eu admito, por um segundo meu humor começou a
melhorar. — Não gosto de palavras obscenas na manhã de domingo, e em especial não
gosto de ouvir você gritando para sua mãe sair do quarto. Mostre-me um mínimo de
respeito. Entendeu? — Eu quase protestei, mas meu pé doeu para cacete e pela cara dele
pude dizer que papai Sid não estaria mais ouvindo. Assenti e murmurei.
— Entendi. — E então ele bateu a porta de seu quarto na minha cara!
Pô, o que foi que eu fiz?
Então eu estava bem rabugenta quando cheguei lá embaixo para encontrar Helen sentada na
sala com a gostosona da AUTUMN. Essa era com certeza a pior manhã de domingo de
todos os tempos, tipo, se eu pudesse apagar uma no tempo, essa seria a manhã. Eu voltaria
a dormir e seria acordada pelo cachorrinho que a Nancy não me deixa ter lambendo meu
rosto, a psicótica Leila iria estar de volta na cozinha fazendo panquecas de amora e Sid,
Nancy e os monstrinhos já estariam no zoológico ou algo assim. Eu teria a casa toda só para
mim, para eu colocar Iggy Pop e os Beastie Boys e superpop japonês como Puffy Ami Yumi, e
eu dançaria pela casa usando só cuecas e um top, tipo Tom Cruise em Negócio Arriscado, mas com
uma trilha sonora bem melhor.
— Você nasceu em berço de ouro, hein? — provocou Helen, sentada na sala cercada de obras de
arte de zilhões de dólares e tapeçarias subindo pelas paredes.
— Não chateie — cuspi de volta. Essa vergonhosa casa bonitona é a razão pela qual eu ainda não
havia convidado Helen para me visitar, o que claro trouxe a pergunta: o que ela está fazendo aqui,
ainda mais ousando vir com a tal Autumn, aquela dentuça sorridente ensolarada, que estava sentada
ao lado de Helen, quando tudo o que eu podia sentir na manhã de domingo era o el niño?
Helen virou-se para Autumn.
— Nossa CC é uma anfitriã bem graciosa também, como pode ver. Luxo, riqueza, poder e uma
dama. — Helen colocou seus All Stars para cima, da posição em que estava sentada, só para piorar.
Ela e Autumn, ambas vestidas como punks de butique, ficavam engraçadas sentadas naquele sofá
vermelho macio, importado da França. Pela primeira vez eu percebi como eu deveria parecer
naquela casa: um choque total, ainda que de alguma forma fazendo parte e me sentindo confortável
também.
— Então, o que foi? — perguntei.
— Decidimos levar você para uma aventura hoje — declarou Helen. — Sua mãe já nos contou que
você não tem nada para fazer hoje, e de acordo com seu pai, que tem uma bela queda sartorial por
paletós de smoking, historicamente você nunca nem se importou em fingir que fazia deveres de
casa nos domingos. Então sua mãe disse que desde que você chegue em casa até as oito, você pode
vir.
Hum, que parte vou explicar para a Helen primeiro: que é bem capaz que eu fique de mau humor o
dia todo, uma vez que já estou e que não preciso de nenhuma aventurazinha de garotas para ajudar a
mudar isso, ou que DE JEITO NENHUM vou sair com essa Autumn. Ela pode tirar essa rastafári da
minha casa e ir pra onde quiser, não me importo, mas saia daqui. Além disso, o que é sartorial?
Ao meu silêncio, Helen acrescentou:
— Sua mãe também disse que comprou uma nova máquina de expresso para o seu aniversário,
então estou pensando que podemos começar nossa aventura preparando algumas bebidinhas. —
Helen pegou minha mão e me tirou da sala, enquanto Autumn continuava sentada.
Quando chegamos na cozinha, eu disse a Helen:
— Obrigada por pensar em mim, mas não vou sair com aquela garota. Não gosto dela.
— Como você sabe? Nem falou com ela ontem na festa. Ela é, tipo, a mais legal. — Helen
examinou a cozinha imaculada com os utilitários da melhor qualidade e as portas de vidro dando
para o pátio externo com vista para a baía de São Francisco. — Uau, essa cozinha talvez seja maior
do que minha casa inteira.
Apontei meu indicador e balancei minha cabeça para Helen, lançando aquele olhar de "nem
comece".
— Autumn é também a garota que saiu com o Siri no verão passado — informei a ela.
— E daí? Fiquei com ele uma vez na oitava série. Você melhor do que ninguém, deveria saber que
aquele menino é uma coisa. Siri é como um petisco que toda menina deveria provar uma vez na
vida, de algum jeito pelo menos. Mas acho que todas nós sabemos que você é a garota permanente
na vida dele.
Sou uma idiota; aquela última frase me amoleceu um pouco.
Mas, porra, eu não tinha ideia de que o Siri era tão galinha.
Helen deve ter percebido que suavizei minha birra, porque ela disse:
— De qualquer forma, esse negócio do Siri e da Autumn no verão passado foi só uma
noite, e não foi nada! Ela nem gosta de garotos, sério. Então deixe para lá. Você é melhor
do que isso.
Agora eu estava quase oficialmente domesticada. Tirei o leite Hershey's da geladeira para
fazer os cappuccinos especiais de Cyd Charisse, com leite achocolatado espumante. Liguei
a máquina de expresso para deixá-la prontinha.
— Não sei ao certo o que você quer dizer com isso — comentei.
Helen encontrou o Peet's Coffee no freezer (como o café do Java the Hut está banido desta
casa até que Siri retire seu embargo em relação a mim) e me passou um saco.
— Quero dizer — disse ela —, acho que você é melhor do que uma bundona que é
ameaçada por outras meninas e pensa nelas como rivais, mais do que amigas. Isso significa
que te desafio a ser amiga da Autumn.
Ash estava sentada na mesa de café-da-manhã comendo uma tigela de cereais e afundando
a cabeça de uma Barbie no leite, depois girando os fios loiros pela tigela.
— Você disse bundona! — disse Ash. — Ótimo!
Os olhos de Ash aprovaram Helen, começando pelo tênis de cano alto cheio de estrelinhas
da garota até a calça de xadrez vermelho e azul e a camiseta branca mostrando uma
curvilínea Lynda Carter em seu patriótico, mas não prático, diminuto uniforme de Mulher
Maravilha. A aprovação terminou na cabeça raspada de Helen, com cabelo preto que havia
crescido cerca de dois centímetros. Ash perguntou a Helen:
— O que é você?
Helen apertou os olhos enquanto olhava o cabelo da Barbie girar. Ela retrucou:
— O que você acha que eu sou?
Ash respondeu:
— Não sei, mas parece que já teve tinta colorida na sua cabeça quase careca.
— Sim, tinta cobre é difícil de tirar. E sou Helen, amiga da CC.
— Haha! — Ash começou a rir, quase engasgando com os cereais.
Helen olhou para mim, confusa. Eu expliquei:
— Ela nunca viu algum amigo meu de verdade que não fosse meu namorado, nesta casa.
Ash levantou da cadeira e foi até Helen. É bonitinho; Ash e Helen têm o mesmo tipo de
corpo — baixo e gordinho, como ursinhos de pelúcia. O que não foi bonito foi que Ash
então bateu na barriga saliente da Helen, como se tivesse de provar para si mesma que sua
irmã tinha de fato uma amiga de carne-e-osso na casa. Ash pôs-se a gritar para nosso irmão,
Josh, que jogava videogame na sala de lazer ao lado da cozinha.
— JOSH! VEM VER! CYD CHARISSE TEM UM AMIGO AQUI, PRATICAMENTE
CARECA E COM PIERCINGS, QUE É UMA MENINA!
Doze
A política sexual da turma do Siri acabou se mostrando bem complicada. Se eu fosse um
detetive particular criando um novo gráfico para ilustrar suas conexões amorosas, minha
cabeça simplesmente explodiria.
Começando com Siri e eu. Terminamos. Então eu e essa pseudoqueda pelo Wallace, o Siri
com a ficada só de uma noite com a Autumn (tipo, sem penetração — um detalhe técnico
que faz pouca diferença, mas ao mesmo tempo é importante, porque me permite ao menos
considerar o desafio da Helen). Agora descobri que Wallace saía com uma das irmãs mais
velhas da Helen antes de ficar com a Delia, que aparentemente já teve um rolo com aquele
surfista Arran, que tem uma queda pela Autumn — ignorando por completo a queda da
Helen por ele, porque é tão superficial que nem nota que uma garota que vista manequim
maior do que 40 esteja a fim dele — enquanto Autumn tem a mesma queda por Helen que
eu tenho pelo Wallace: totalmente benigna e doce, e sem base numa ficada real.
Se eu aprendi tudo isso apenas no ônibus para Haight Street, eu tinha medo de pensar em
todos os envolvimentos sexuais que eu descobriria se Helen, Autumn e eu realmente
sairmos mais do que um dia. Quando chegamos na Amoeba Records eu considerei um
milagre que o povo da Ocean Beach no Java the Hut não tivesse uma invasão maciça de
DST.
Um dos meus barulhos favoritos no mundo é o som dos clientes escolhendo CD por CD no
Amoeba Records, um som rítmico que se espalha pela enorme loja de discos usados que
soa quase como se viesse de uma máquina: clique-clique-clique. Por cima do barulho,
Autumn estava explicando para mim sobre seu novo voto de celibato. Ela não está saindo e
não está procurando — está apenas tentando se divertir neste último ano. No ano que vem
ela vai voltar à ativa, quando, com sorte, ela vai para a Universidade da Califórnia, se for
aceita, o que obviamente vai acontecer, porque ela é um crânio, poderia ser a garota do
pôster do candidato dos sonhos para o escritório de admissões da universidade Berkeley:
parte afro-americana, parte vietnamita, parte irlandesa e alemã, e lésbica. Por enquanto,
Autumn diz, ela não pode encontrar uma garota da escola pela qual esteja a fim e que
realmente admita ser gay, e está cansada de sair com os surfistas, porque eles são todos...
com exceção do Siri e do Wallace, basicamente porcos sexistas que a deixam surfar com
eles, mesmo que pelas costas eles cochichem que garotas não são fortes o suficiente para
vencer a correnteza de Ocean Beach. E a razão pela qual eles a deixam pegar ondas com
eles é pela remota fantasia que essa dita permissão vai de alguma forma deixar que eles se
divirtam com ela e outra menina. Os garotos são mesmo uns idiotas.
Helen estava trocando alguns CDs em outra parte da loja, então perguntei a Autumn.
— E quanto a Helen? Por que não sai com ela?
— Ela diz que ainda não decidiu, mas eu te digo, ela não é gay. Pode ser um pouco bi, mas
estou quase certa de que os raros beijos que ela deu em meninas foram principalmente para
enlouquecer a mãe dela. Quero dizer, você viu a Helen com os jogadores de futebol
irlandeses? — Levantamos o olhar para ver Helen flertando com o vendedor da seção de
trocas, a cabeça dos dois jogada para trás, rindo, porque algo no CD da Patti Smith era ou
histérico ou sexy. Mesmo em Haight Street, onde maltrapilhos de 30 anos + velharias
hippies + garotos de rua punks + yuppies chiques formam uma rua com grandes lojas e
muitas atitudes assustadoras, Helen podia fazer amigos. Talvez seja o jeito dela, ela é uma
dessas raras pessoas, como Siri, que conhece todo mundo, fala com todo mundo, gosta de
todo mundo: uma extrovertida natural.
— Você não pode ser completamente gay — disse eu. — E o Siri?
Há algo nessa Autumn, o jeito que ela te olha diretamente no olho, como ela projeta esse
calor natural, que fez com que eu não pudesse duvidar da sinceridade da resposta.
— Siri foi uma coisa isolada. Tipo, eu precisava ter certeza sobre minha preferência sexual,
e ele era uma pessoa segura para experimentar. E ele estava meio triste e confuso e... — A
mão dela tocou a minha sobre um CD importado do Smiths. — ... sinto muito por ter
acontecido, se te magoa tanto.
Autumn torna difícil não gostar dela. É uma característica bem perturbadora.
Eu tirei a mão, mas disse:
— Não se preocupe com isso. — Eu posso, de fato, até ter sido sincera.
Helen apareceu perto da gente.
— Adivinha quem está na seção de jazz? Arran! E adivinhe que CDs ele está olhando?
ACID JAZZ! Ele precisa ser linchado por isso. Qual é?
Seu grande rosto rosado brilhava enquanto ela olhava para a outra sala. Ficamos na entrada dessa
sala tempo o suficiente para ver Arran olhando um CD do Kenny G. Isso era demais e nós três
começamos a rir tão alto que quase caímos no chão. Rimos tanto que as pessoas ao nosso redor
começaram a rir também, sem motivo além de estarmos rindo. Não que a situação fosse tão
engraçada, mas de alguma forma nossas risadas mútuas se alimentaram umas das outras. O fato é
que nossa risada se tornou mais engraçada do que a piada, até que nós três caímos histéricas no
chão.
Provavelmente eu já tinha encontrado o Arran antes da festa do Siri, quando estava trabalhando no
Java the Hut, se ele faz parte dessa turma toda, mas eu não lembrava dele — depois de um tempo,
todos esses surfistas, com seus corpos incríveis, vocabulário idêntico e inteligência limitada (mas
quem se importa? Veja "corpos incríveis" acima) quase se transformam em um, exceto pelo ser
único que é o Siri. Geralmente, se você se lembra de um surfista, só está se lembrando de sua
unidade coletiva. Agora Arran com certeza se destacou no meio da multidão. Ele olhou ao redor
com todo o barulho e, nos vendo, seu rosto bronzeado ficou totalmente pálido e quase se podia ver
seu cabelo louro encaracolado se arrepiando.
— Ei, Arran — Helen o chamou do chão. — Acho que vi o CD do Yanni que você deixou cair.
Está à esquerda do seu tênis Vans, perto do vinil do Mannheim Steamroller.
Não tenho a mínima ideia do que é Mannheim Steamroller, mas só o som do nome era o suficiente
para fazer com que Helen, Autumn e eu começássemos a rir de novo. Estávamos rindo tanto que
lágrimas caíram dos nossos olhos.
Arran andou para onde estávamos jogadas no chão. Seus olhos estavam loucos de raiva,
mas isso não o impediu de dar uma olhada no traseiro da Autumn, que usava uma minissaia
jeans, caída no chão de histeria. De perto e de dia, pude vê-lo melhor. Ele era alto, magro,
de proporções perfeitas, louro de olhos azuis, mas com uma determinação em seu passo,
como se você pudesse vê-lo de uniforme dizendo "Heil!", mas seu uniforme seria de
skatista e seu "Heil!" pregaria liberdade a algum louco de esquerda da costa leste, tipo o
Jerry Brown, ex-governador da Califórnia.
— Cara — ele disse para nós sério e claramente sem entender a piada. — É tão engraçado
que não consigo parar de rir. — Ele parou na frente do Nirvana, acho que para salvar a sua
honra.
— Oh-oh — disse Helen. — Melhor eu ir lá e fazer as pazes com ele. Devo deixar ele usar
meu crédito de troca?
Autumn e eu balançamos a cabeça discordando.
— Só seja legal — eu disse a Helen. — Não precisa tanto para fazer as pazes. Não gaste
cinquenta pilas de crédito numa paquera.
Autumn assentiu concordando.
— Kenny G? Deixa disso, ele que provocou. Mas não posso ficar vendo você tentando
fazer as pazes com ele, porque eu sei que ele vai tirar vantagem da situação e logo vocês
vão marcar de levar a piranha atual dele para fazer uma identidade falsa. Que tal se a CC e
eu formos para a loja Goodwill e depois te encontrar no restaurante de crepes daqui a meia
hora?
— Então tá. — Mas ela já estava indo consolar o Arran, como se já tivesse esquecido da
gente.
O estranho é que não fiz qualquer objeção aos planos da Autumn. Tá bom, admito. Eu
gosto da gostosona da Autumn. Superei.
Mais tarde, quando estávamos no restaurante de crepes e Autumn e Helen dividiam um
com montes de vegetais e queijo, enquanto eu comia um de Nutella, interrompi a conversa
delas.
— Me falem do Siri. — Eu pedi, sentindo meu coração prestes a explodir por querer saber
sobre ele, ouvir sobre ele de amigas que o conhecem há mais tempo que eu.
Teve uma época em que ser louca significava tomar ecstasy com o Justin e não me importar
de usar camisinha quando transávamos, ou ficar na casa do Siri sem nem me importar se
meus pais percebiam. Mas fazer esse pedido a essas garotas — e descobrir a verdade —
parecia muito mais louco e arriscado.
Treze
Eu estava sentada no meu quarto silenciosamente na noite de domingo, realmente fazendo
o dever de casa, quando senti uma presença atrás de mim. Tirei os fones do ouvido e me
virei na cadeira para ver minha mãe parada na porta do meu quarto, as sobrancelhas
franzidas, com a boca semi-aberta, como se ela não pudesse decidir se dizia ou não o que
tinha a dizer.
— O que foi? — eu perguntei. O olhar dela indicava que eu iria sofrer por algo que eu fiz,
ou que ela iria ter outro ataque de procurar faculdade no fim de semana, ou pior de tudo, se
eu não poderia considerar uma reforma no meu quarto.
Nancy hesitou, e então, como se decidisse naquele momento dizer o que ela tinha a dizer,
respondeu:
— Como estão as "coisas" entre você e o Siri? — Ela realmente usou os dedos para dar
aspas à palavra "coisas".
Deus, qual é o problema dela? Por que ela quer saber tudo sobre mim?
— Nossas "coisas" — eu respondi, também usando os dedos — estão como "apenas
amigos" — novamente com aspas nos dedos. — Está feliz? — Nancy é, por me levar ao
ginecologista e parecer ao menos engolir a ideia do Siri, também a pessoa que me prendeu
o verão passado para que eu não pudesse vê-lo. Às vezes, nessa nova paz, eu posso gostar
da minha mãe de uma nova forma e sei que posso confiar nela, e às vezes antigas feridas
doem muito, e eu posso perdoar, mas não esquecer. E o assunto do Siri ainda é o mais
vulnerável na nossa frágil paz.
Nancy soltou:
— O que quer dizer com "está feliz"? Acho que deixei bem claro que não sou contra vocês
dois terem um relacionamento novamente, com sorte um que seja menos intenso, talvez um
pouco mais lento e cauteloso. O que você acha, que quero realmente que você seja infeliz?
— Não sei. Você quer?
Ela suspirou frustrada.
— Está tentando me enlouquecer? Queria te fazer um favor, me aproximar do Siri e
apenas...
— Que favor? — Qualquer que seja o esquema dela, só pode ser ruim, ruim e ruim.
— Estou organizando uma ação de caridade para o hospital infantil. Achei que poderia
encarregar o Siri de criar uma obra. — Obras de caridade para o povo da Nancy significam
uma oportunidade para gente rica competir e ver quem parece mais anoréxico em seus
trajes e jóias, que custam mais do que se gastaria para colocar uma família sem-teto num
apartamento por um ano, tudo sob o pretexto de ser "para as crianças".
— Ele não vai fazer isso — informei a ela. Siri é bacana demais para uma merda dessas.
— Como você sabe?
— Eu apenas sei.
— Bem, Senhorita Sabe-Tudo, então por que ele está lá embaixo no escritório do seu pai
falando com ele sobre os materiais que vai precisar e...
— Nããããããão!
Joguei o Moby Dick na minha cama e corri para baixo, enquanto a Nancy me seguia
falando algo como:
— Quando eu liguei, não achei que ele viria nesse mesmo minuto.
E era pra valer. Siri estava sentado à mesa antiga de mogno do papai Sid, seu cabelo lourosujo
preso num rabo-de-cavalo apertado no topo da cabeça, um penteado que o fazia
parecer com um minilutador de sumô. Estava usando uma camisa havaiana abotoada até em
cima com uma gravata no colarinho e uma bermuda. Ícone fashion? NÃO. Um tesãozinho?
SIM.
Ele olhou para mim.
— Oi.
Ah, não, não o "oi" de novo.
O papai Sid disse:
— Posso te servir uma bebida, meu jovem?
— Eu faço o martíni perfeito — me ofereci. E faço mesmo. O papai Sid me ensinou a fazer
quando eu era pequena, e ele ainda me paga um dólar toda vez que lhe faço um.
O papai Sid deu um tapinha no meu ombro.
— Essa é boa, Cyd Charrisse.
— Agora eu sou CC — eu o corrigi.
Papai Sid assentiu seriamente.
— Sinto muito, CC. Que tal se eu pegar umas cocas na geladeira? O talento culinário da
sua mãe está se expandindo e eu acho que ela vai esquentar alguns bolinhos vegetarianos
Trader Joe no microondas. Quem sabe em breve ela ganhe um diploma no curso completo
de fogão. — Ele riu enquanto saía do escritório, mas se virou mais uma vez, deu um último
olhar para o Siri e tenho quase certeza de que o ouvi murmurando: — Bicho estranho.
Eu não via o Siri desde o incidente "Apenas Amigos", na festa em sua casa, mas fiquei
sabendo muito sobre ele nesse meio-tempo por Helen e Autumn. Quase me senti uma
traidora, confabulando pelas costas dele para conhecê-lo, mas não é isso o que as garotas
que são amigas devem fazer — falar sobre interesses amorosos, analisar, trocar ideias?
Então estou no caminho certo com essa coisa de amizade entre garotas.
Sei algumas coisas interessantes sobre o Siri e a família dele agora. Por exemplo, descobri
que Iris teve outra família antes de Billy, Wallace e Siri. Ela era, tipo, uma dona-de-casa
entediada na Flórida, casada com um policial, e tinha uma filha de 10 anos. Daí ela
conheceu Billy, que vendeu maconha para ela, e ela largou o marido e a filha para começar
outra vida com Billy. Simplesmente foi embora, então disseram para ela nunca mais voltar,
aparentemente. Então existe uma irmã mais velha do Siri e do Wallace, sem mãe, vagando
por algum lugar, provavelmente da mesma idade da lisBETH — imagine só. Mas o passado
todo, creio eu, e o fato da Iris e do Billy terem deixado o Siri na porta do Wallace para que
pudessem saracotear por Papua-Nova Guiné, supostamente ensinando inglês e construindo
pontes ou o que seja, deixou Siri com sérios problemas de abandono. Não sou a primeira
namorada com quem ele terminou antes que ela pudesse terminar com ele.
Eu sou a única que é seu amor verdadeiro e que vai ficar do seu lado e em seu coração por
tanto tempo quanto ele me deixar — isso se ele me deixar voltar.
Mas, eca, não consigo esquecer aquele comentário de ele ter "uma quedinha pela minha
mãe". Fico me coçando toda vez que penso nisso. Mas, talvez seja o mesmo que ele sinta
quando ele pensa em mim tendo uma quedinha pelo irmão dele, mas talvez suas coceiras
sejam de ciúme de verdade e não de desgosto, porque, vamos ser honestos, Wallace e eu é
uma possibilidade que poderia realmente acontecer, apesar de que nunca acontecerá.
Cheguei perto do Siri do outro lado da mesa onde ele estava sentado, desenhando com
carvão.
— Você está fazendo isso para se vingar de mim? — sussurrei.
Ele levantou o olhar, com seus olhos bem azuis brilhando para mim.
— Não — ele disse. — Estou fazendo isso para chegar ate você. — Sua cabeça abaixou
novamente e ele voltou ao desenho.
Hum, isso é uma coisa legal de se dizer. Acho.
— Além disso — ele acrescentou —, meus pais estão me deixando louco naquela casa.
Vim para cá assim que sua mãe me chamou.
Ahhh, minha cabeça está girando confusa sobre onde Siri e eu estamos. Mas então pensei:
por que não viver esse momento simplesmente e aprender um pouco mais sobre o Siri?
Me sentei no sofá de couro perto da mesa.
— Ainda não me contou sobre como foi em Papua Nova Guiné.
Siri não levantou o olhar do seu desenho, mas começou a falar.
— Foi incrível. É realmente um lugar bonito, mas triste e estranho também. Há muita
pobreza e também o problema de algumas corporações jogando lixo tóxico lá porque o
governo quase não existe. É, tipo, tão bonito quanto deprimente. Fiji foi meu lugar favorito
de todos os que visitamos. Eu podia viver e surfar naquele paraíso para sempre. E as
pessoas são tão legais, não dá para acreditar.
— Por que os seus pais decidiram voltar para casa?
Siri olhou para a porta, vendo se Sid e Nancy haviam ido para a sala, acho.
— Meu pai tem esse hábito de ser expulso de vários lugares quando seu talento para
cultivar e vender maconha é descoberto. Adoro o cara, mas é meio... vergonhoso, sabe? —
Isso me pareceu um comentário estranho vindo do Siri, que eu sempre acreditei ser a pessoa
mais livre de julgamentos no mundo. Siri olhou ao redor do escritório meticulosamente
arrumado com as antiguidades e as prateleiras cheias de livros até o teto. — Você sempre
reclamou dos seus pais, mas acho que você tem muita sorte. Eles são, tipo, sólidos, sabe?
Eu concordei. Na verdade, eu sei mesmo.
— Então, como foi Nova York? — perguntou Siri. — Como é seu pai biológico?
— Decepcionante.
— Meio que achei que seria.
— Mas meu irmão, Danny, ele é tão legal. Quero muito que você o conheça. E Nova York!
Você TEM de ir...
Os monstrinhos fizeram uma balbúrdia na sala ao entrar gritando:
— Siri! Siri! — Os dois correram para cima dele. Ash instalou-se no seu joelho esquerdo,
enquanto Josh manteve uma distância de homem, mas com um olhar de idolatria, ao ver
Siri. Sid e Nancy apareceram logo atrás, carregando bebidas e bolinhos fumegantes numa
bandeja.
A nova paz estava claramente descontrolada. Nunca vai durar.
Catorze
Siri instalou seu ateliê temporário no deque do lado de fora da cozinha da nossa casa. É um
deque bonito, posicionado no alto do morro íngreme de Pacific Heights onde fica a nossa
casa, de frente para a baía de São Francisco, Alcatraz e Tiburon, com uma grande vista da
neblina grossa que passa pela Golden Gate ao anoitecer. Siri levou um cavalete, tintas,
pincéis e uma lona para o deque. Ele arrumou seu espaço de trabalho nos fundos, onde a
vista é melhor, mas numa posição em que ninguém consegue ver o que ele está pintando.
Estranhamente, quando ele vai embora, nenhum de nós olha embaixo da lona para ver a
pintura, e somos uma família que sempre procura lugares secretos para esconder presentes
nos aniversários. É como se tivéssemos um pacto velado de respeitar o processo do Siri, e
todos queríamos ser surpreendidos no final, quando víssemos o trabalho pronto.
Se ele está pintando algum quadro a óleo de barcos navegando em Sausalito, sinceramente
vou perder todo o respeito por ele. Meu respeito por ele já está prejudicado, porque desde
que Nancy pediu a ele para fazer a pintura, há algumas semanas, Siri virou quase um móvel
a mais na nossa casa. Se a Nancy levar mais uma limonada para ele, não sei o que vou
fazer. Está mesmo me enlouquecendo — pior ainda, ela acha que a limonada em caixa é
limonada de verdade. Siri trabalhou até tão tarde uma noite que Sid e Nancy o deixaram
passar a noite no sofá do escritório, e o convite foi descompromissado e sob uma tranquila
vigilância também. Nenhum drama, nenhuma longa discussão antes, apenas:
— Siri, você ainda está aqui e é tão tarde. Você tem trabalhado tanto e seus olhos parecem
tão cansados. Por que não dorme no sofá? — !!!!!!!!!!
E Siri não fez nenhuma tentativa de entrar no meu quarto para aprontar, apesar de eu ter
passado a noite em claro, quase com uma lesão por esforço repetitivo na minha mão por
fazer o que eu queria que o Siri fizesse por mim.
Ele está levando mesmo a sério essa coisa de "apenas amigos". Até Sid e Nancy entraram
no esquema, e acredite, eles estão adorando. Eles têm a vantagem de dizer "Veja como
aceitamos o Siri" sem nenhuma das desvantagens de se preocupar com a Pequena Rebelde
aprontando com ele.
O pior é a expectativa. Ultimamente estou confiante de que eu e o Siri vamos voltar, e estou
tratando esse negócio de "apenas amigos" como uma oportunidade de ser apenas isso,
amiga do Siri, então adiar a reconciliação final é como um jogo mental que só vai tornar
tudo mais delicioso quando acontecer.
— Ei, amigo — eu disse para o Siri. Eu tinha chegado do trabalho no restaurante e
encontrei Siri no deque, pintando. Sua cabeça estava balançando ao ritmo da ópera saindo
da janela do quarto do Sid e da Nancy, logo acima do deque. Ash e Josh estavam brincando
no pátio em silêncio, perto dele, se dá para acreditar nisso. Ash com suas Barbies e Josh
com seu Game Boy. Ter o Siri e sua energia suave permeando a nossa casa é como ter
antidepressivo espalhado pelos dutos de aquecimento.
— Papai quer saber se você vai jantar com a gente.
— Quem vai cozinhar? — Siri perguntou. O artista se se estabeleceu aqui mesmo, para
saber que se é a Nancy que está cozinhando (ela fez batatinhas congeladas com caldo de
carne, semana passada) é melhor recusar, mas se eu chego em casa com comida do
restaurante ou se o papai Sid vai ligar a grelha, vale a pena ficar.
— Papai. Carne.
— Fico! — disse Siri.
Na noite anterior, Iris me convidou para jantar com eles. Ela fez lasanha de tofu. Não sei se
a comida era ruim ou apenas a tensão na casa — Iris está tentando se apoderar dos planos
de casamento do Wallace e da Delia, frequentemente passando ideias de menu para eles no
Java the Hut durante o trabalho, ou está argumentando com o organizador de casamento
para reservar um salão de festas num hotel chique que não tenha acordos trabalhistas com
seus funcionários — mas eu me encontrei fugindo da mesa do jantar para ligar para papai
Sid do meu celular. Achei que a família do Siri precisava de um momento de privacidade
de qualquer forma. Iris olhou através da mesa para o Siri e disse:
— Sua pele está horrivelmente rosada. — Então ela fungou e disse: — Você tem comido
carne! — Então Billy, que raramente tem algo a dizer porque Iris sempre está lá para isso,
lembrou-se de que comeu lombinho e murmurou:
— E daí? — O protesto de Billy foi seguido por Siri e Wallace, ambos disseram:
— É, e daí? — Opa! Eu pedi licença da mesa, meu estômago doendo, e corri para o telhado
para ligar para o papai Sid e fazê-lo prometer fazer carne no jantar do dia seguinte. Todo
aquele papo da família sobre a ética de comer carne e de quem era o problema, se não
deveria ser uma decisão pessoal, me fez querer muito um bife de Nova York.
Não tenho certeza se a vinda de Iris e Billy para casa foi uma coisa boa. Wallace e Siri
pareciam mais felizes antes, sem eles. Tipo, eles estavam indo bem sozinhos, e agora é
tarde demais para Iris e Billy ficarem todos paternais com eles. Isso sem mencionar o fato
de que Iris e Billy são praticamente hóspedes. Wallace comprou e é o dono da casa, foi o
Wallace que construiu um negócio de café do nada, sem a ajuda deles. É ele quem paga as
contas. Posso entender por que Wallace não está levando numa boa Iris estar querendo
bancar a mãezona do noivo e tentando ditar como planejar o casamento.
O velho e metido Pacific Heights nunca pareceu tão bom, devo admitir.
De alguma forma minha casa se tornou um santuário. Não sei se é a nova paz ou Fernando
morando aqui, porque ele é como se fosse da família e Leila nunca foi, mas essa paz está
começando a parecer sustentável. Estou tentando descobrir o que faz um casamento dar
certo quando olho para o Sid e a Nancy. Eles são o casal mais estranho — um cara baixo,
velho careca com uma loura alta, jovem e glamourosa —, mas ainda assim funciona, muito
melhor do que a Iris e o Billy; não sei por quê. Nos 12 anos desde que Nancy se casou com
Sid, tenho observado eles mudarem de colegas cuidadosos e educados — quase como
estranhos — para a situação de agora; eu não diria que há uma enorme paixão, mas estão
confortáveis, como se fossem um time ou algo assim. Mesmo quando estão se bicando — e
a paz resultou neles se bicando menos (o que foi isso?) — você sabe que um conta com o
outro.
Mas ainda espero realmente que eles não estejam mais fazendo sexo.
A paz parece tão boa e ter o Siri por perto é estranho, mas ótimo. A data daquele
aniversário veio e foi, e eu ainda não contei ao Siri. Contei a Helen e a Autumn, mas não
sei se ele reagiria como elas reagiram — me apoiando, mas também indiferentes, como se
fosse importante eu ter contado a elas, mas aconteceu no passado e eu tinha de esquecer.
Claro que Siri encararia da mesma forma. Tenho de superar isso, contar a ele para que
possamos ir em frente, passar de "apenas amigos" e virar namorados de verdade — sem
segredos. Vendo o Siri pintar e cantar de brincadeira a ária vindo do quarto de Sid e Nancy
em cima do deque, eu sabia que era uma boa hora, que era agora ou nunca.
Disse a Ash e Josh.
— Mamãe disse que vocês podem ver TV na sala até ela voltar da ioga. — Eles olharam
para mim, desinteressados.
— Mentira! — disse Ash, e bateu com a Barbie no Ken.
— Não-não — disse Josh, rindo para mim.
— Tá bom. Se vocês forem assistir à TV, eu prometo ler uma história na hora de dormir —
continuei.
— Harry Potter? — retrucou Josh.
— Sim — concordei revirando os olhos, com medo de outra rodada disso.
Mas Josh ainda balançava sua cabeça para mim e disse:
— Não.
Fiquei sem escolha a não ser exercitar minha grande prerrogativa de irmã mais velha.
— CAIAM FORA! — Gritei. E eles saíram.
Eu sentei na frente do Siri.
— Eu tenho que te contar uma coisa — disse eu.
Ele continuou pintando.
— Estou ouvindo.
Como você começa uma conversa dessas? Eu não sabia, então simplesmente comecei,
como quando o Siri e eu costumávamos descer para Santa Cruz na primavera passada e ele
entrava lentamente no mar usando um macacão de surfe, mas eu ignorava a água gelada e
mergulhava usando apenas um biquíni, sem nem me importar de molhar os pés primeiro,
querendo pular aquele gelo inicial.
— Você provavelmente nem se importa com isso, mas, hum, há algo que eu achei que
devia te contar. Ano passado, nesta época do ano eu fiz um aborto. Foi pouco antes de ser
expulsa do colégio interno. — Uau, pronto, eu disse. Agora podemos partir para outra.
A mão do Siri parou de pintar e ele não olhou para mim.
— Justin? — ele murmurou, o que REALMENTE me deixou puta.
— Claro que do Justin! — gritei. Por alguma razão eu tenho a reputação de ser doida, mas a
verdade é que só estive com dois caras, no sentido bíblico: Justin e Siri. — O mesmo Justin
que não se importou de me ajudar, que me fez ir para a clínica sozinha. Que merda você
acha, que era de um estranho qualquer?
Siri deu de ombros, ainda sem me olhar nos olhos. Seu silêncio dizia muito.
Senti meu rosto ficar vermelho de vergonha e tristeza — mas vergonha e tristeza pelo Siri,
não por mim, porque aparentemente ele não era o cara bacana que eu achei que fosse, um
que podia lidar com uma garota com um passado.
Siri levantou da cadeira, colocou a lona sobre o cavalete e entrou na casa. Ele saiu assim,
sem dizer adeus ou falamos disso depois.
Se nossa casa tinha virado um santuário, de repente eu queria Alcatraz de volta, sozinha no
meu quarto, trancada. Corri para o segundo andar, mas parei quando estava passando pelo
quarto de Sid e Nancy. Papai Sid estava debruçado na janela aberta do quarto, com vista
para o deque e o jardim. Quando me viu parada na porta, eu vi que seus olhos estavam
molhados e seu rosto inchado. E eu sabia.
— Você ouviu? — perguntei, olhando além dele para a janela aberta. Eu devia ter prestado
mais atenção no nível de decibéis da minha voz quando a voz do Siri parou de balançar no
ritmo da ópera que estava saindo da janela do quarto para o pátio abaixo, quando a música
foi desligada.
Papai Sid assentiu.
Pensei que meu maior medo era o Siri descobrir meu segredo, mas só então percebi que na
verdade era o meu pai descobrir, fiquei parada na porta, paralisada, sem saber o que fazer
ou dizer.
— Docinho — papai Sid disse, e eu senti uma onda de alívio, porque mesmo sabendo, ele
ainda me amava, para me chamar daquele jeito, certo? — Venha cá, por favor. — Entrei no
quarto e ele fez um gesto para eu sentar no divã perto da janela.
Entendi que ele queria conversar sobre isso, ou fazer um sermão ou gritar, não sei o quê,
mas em vez disso ele começou a chorar, o que me machucou mais do que aquele
procedimento doloroso jamais machucou. A única vez em que eu o vi chorando antes, além
de quando ele ficava com os olhos nublados falando sobre o primeiro jogador da base do
Boston Red Sox que deixou a bola cair entre suas pernas e perdeu o jogo no campeonato
mundial, foi quando Josh e Ash nasceram, e quando Leonardo DiCaprio afundou no
Titanic. Papai Sid não se esforçou para se recompor, enquanto se derramava:
— Tudo o que eu sempre quis foi proteger você, para que tivesse uma boa vida, e agora,
saber que passou por isso, que se deixou entrar numa situação dessas... — Suas lágrimas
tomaram forma de raiva. — VOCÊ É TÃO IDIOTA ASSIM PARA SE METER NESSE
TIPO DE SITUAÇÃO?
— Eu era — sussurrei. As palavras saíram furiosamente da minha boca, como se eu
precisasse trabalhar em dobro para chegar até ele. — Eu sei. Sinto muito. Pai. Sinto tanto.
Nunca mais vai acontecer. Eu nunca vou deixar de me prevenir. Por favor, não me odeie,
por favor, não fique bravo comigo. Já aconteceu há mais de um ano! — Eu estava falando
inutilmente. Pude ver em seu rosto que eu teria de viver com a decepção dele comigo pelo
resto da vida. Não posso mudar isso.
Mas vendo a emoção em seu rosto, senti uma mudança também. Desde que Nancy casou
com ele, eu o considerei basicamente meu pai. Ele é o único que eu conheci. Eu sempre o
amei — o que não havia para amar? — mas parte de mim teve uma resistência também, me
distanciando dele alguns graus em minha mente, por ser meu padrasto e pai adotivo, não
meu pai natural. Desde o verão com Frank, tinha entendido, mas só agora eu tinha
vivenciado realmente, sem comparação: o papai Sid é meu pai. O melhor que Frank já fez
por mim era querer saber se eu estava bem. O papai Sid sofre por mim, sente por mim, tem
esperanças por mim.
— Claro que eu não te odeio. Não seja ridícula. Sou seu pai, sempre vou te amar, isso não
vai mudar nunca. Mas não estou tão feliz com você agora. Sei que aconteceu há mais de um
ano, mas descobrir assim, saber que você passou por isso e manteve escondido todo esse
tempo. Foi ao ginecologista desde então? — ele perguntou. — Fez um check-up?
— Sim — eu disse, sem pensar. — A mamãe me levou quando ela descobriu...
A expressão no rosto dele mudou de raiva para algo totalmente diferente, algo que eu podia
explicar só como o olhar que uma pessoa casada tem para outra quando o outro esconde
uma informação crucial sobre a família.
Alcatraz é um destino especialmente bom para onde fugir agora. Vou apenas pegar Pão-de-
Mel de volta do quarto da Ash e ficar com ela, pelos velhos tempos.
Quinze
Alexei é menos terrível e talvez seja apenas um pouquinho mais como uma espécie de
Pobre Idiota. Seu semestre de folga das aulas na faculdade é um completo fracasso. O
"subgerente" no novo restaurante metido à besta da cidade foi reduzido a se sentar ao lado
da Pequena Rebelde, dobrando guardanapos e trocando cardápios de almoço para os de
jantar nas tardes tranquilas depois da correria do almoço executivo.
O ponto fraco de Alexei é que tenho certeza de que ele está aprontando com a Senhora
Imperatriz Kari. Mais de uma vez eu o peguei saindo do escritório dela meio afobado,
enfiando a camisa para dentro da calça, me lançando um olhar tipicamente Alexei, que me
indicava para manter a boca fechada sobre o que estava ou não acontecendo naquele
escritório. Não consigo imaginar como uma pegação com aquela mulher terrível vale um
semestre fora da faculdade preciosa dele, mas quem sou eu para criticar em matéria de
amor? Não sou exatamente uma especialista em relacionamentos, vendo que eu nem pude
passar no quesito "apenas amigos" esses dias, mesmo querendo.
— Cyd Charisse, você está fazendo um belo trabalho dobrando esses guardanapos! — Kari
disse toda docinha para mim enquanto passava deslizando pela mesa redonda em que eu
estava com o Alexei.
— Obrigada! — eu disse de volta na minha voz mais meiguinha, mas Kari não pegou o
sarcasmo. Ela piscou seu olho paralisado para mim. — Ela é uma estrela! — Kari
cantarolou antes de entrar na cozinha para gritar com o sous chef por não ter comprado
peixe mahi-mahi suficiente no mercado de manhã. Mesmo Alexei, sentado ao meu lado,
gemeu.
O restaurante emprega várias recepcionistas em diferentes turnos. Sou a mais jovem,
trabalho o menor número de horas, só em dois dias da semana, no turno das 14h às 17h, que
é o menos cheio do restaurante, nos dias menos estressantes da semana. Ainda assim, sou a
única recepcionista que Kari elogia especialmente pelo talento com os guardanapos e por
fazer um trabalho fantástico levando o cliente à mesa sete. Sim, como se fazer vincos num
pedaço de pano ou levar um grupo de pessoas para uma mesa, dar a elas um cardápio e
oferecer um sorriso falso fosse difícil. Além do mais, a puxação de saco me permite um
certo privilégio que as outras recepcionistas não têm, apesar de nenhuma outra querer isso:
eu consigo horas extras na cozinha com os sous chefs, se eu quiser, picando vegetais,
aprendendo como fazê-los sauté, vendo como os caldinhos são feitos.
— A Kari realmente acha que puxar tanto meu saco vai fazer com que eu fale dela com
meu pai? — perguntei ao Alexei. — Porque eu não falo com ele especificamente sobre este
trabalho, e se eu falasse, eu não estaria especificamente elogiando a Kari.
Se eu falasse com papai Sid sobre o restaurante, eu poderia dizer que é o Alexei, não a
Kari, que se certifica que os garçons dividam suas gorjetas com os ajudantes e os lavadores
de louça. Foi o Alexei que tirou o novo sommelier de um restaurante rival, Alexei que deve
ter corrido uma maratona falando com o expert em vinho sobre a apreciação mútua de
Chardonnay Sonoma e do Detroit Red Wings na esteira da academia que eles fazem juntos.
Kari deve ter sido responsável só por contratar o especialista em vinho cuja grande
reputação está trazendo uma tonelada de novos clientes, mas ela não é a pessoa que tem os
"contatos certos" para trazer o sommelier em primeiro lugar, como ela diz.
Não falo com o papai Sid sobre o restaurante porque meu semestre de estágio é uma grande
perda de tempo, na minha opinião. (Mas se eu falasse, com certeza eu diria a palavra
sommelier, porque impressiona. Se o vestibular tivesse associações de palavras do tipo
chocolate está para fazer amor assim como sommelier está para____, eu detonaria nesse
teste idiota.) Ficar na cozinha pode ser divertido, mas principalmente é apenas um uma
tática para desviar a atenção e cheirar ingredientes gostosos e não pensar na situação com o
Siri. Eu não pertenço a um lugar desses. Não me importo com gastronomia fusion. Não dou
a mínima para um estabelecimento que é considerado "do momento". Odeio mudar para
uma saia careta, blusa branca e sapatilhas quando começo meu turno depois da escola; o
uniforme é sufocante. Detesto clientes que pedem salada de beterraba com queijo de cabra,
lombinho e torta de maçã, só para vomitar sua refeição no banheiro feminino depois, e sei
disso porque ao me voluntariar para checar o banheiro de hora em hora acabei mais de uma
vez fazendo descobertas desagradáveis de restos nos assentos da privada. O que há de
errado com as pessoas? Os clientes no Java the Hut não são assim. Claro que é um lugar
completamente diferente, com um público completamente diferente — é como comparar
maçãs com laranjas, mas talvez eu seja uma laranja num restaurante de maçãs e não posso
evitar desejar estar entre os meus.
Não que o Java the Hut seja um estabelecimento que eu vá frequentar tão cedo. Nesta
semana, desde que contei ao Siri da fatídica data, nós mal nos cumprimentamos na escola e
a lona cobrindo sua pintura inacabada no pátio de casa está intocada. Papai Sid não está por
aqui para eu pedir para trocar de trabalho, de qualquer forma. Ele saiu quase imediatamente
para uma viagem de negócios na Costa Leste, depois de nossa conversa em seu quarto,
quando eu deixei escapar sobre a Nancy saber do meu... assunto, e não dizer nada a ele.
A temperatura da paz na nossa casa passou por uma repentina mudança de clima para: burrito
(para pegar emprestada a expressão do nosso agora Nem-amigos, Siri).
Alexei depositou uma bandeja de candelabros de vidro vazios para nós prepararmos para o
jantar com velas novas.
— Não sei o que a Kari pensa, mas o puxa-saquismo é um pouco exagerado. Sabe disso,
mocinha? — Mocinha? — Fernando estava certo. Você tem uma ética de trabalho, vou te
dar algum crédito. Achei que você seria completamente inútil e uma mala aqui, mas você
dá duro, para uma princesinha magrela.
— Muito obrigada, Alexei. Mal posso expressar como me sinto aliviada por saber que
minha ética de trabalho faz jus aos seus padrões. — Fiz uma bolinha com um guardanapo
dobrado e a joguei no rosto dele. Ele riu.
— Alexei — disse eu. — Qual é o lance com os caras e todo esse complexo de
Madonna/puta?
— O QUÊ? — Alexei disse, com o rosto vermelho como um tomate, seus genes do Leste
Europeu se manifestando muito bem.
— Tipo, por que os caras querem tanto pegar uma garota, mas depois que ela topa, usam
isso contra ela? Por que isso? Quero dizer, você tem um passado, todo mundo sabe do
escândalo com sua primeira namorada na escola, que era sua professora de trigonometria,
bem mais velha do que você, mas suas namoradas desde então usam isso contra você?
— Nem sei como responder tudo. De onde veio isso?
— Só queria umas respostas. E você é o homem heterossexual mais próximo que eu
conheço que poderia me explicar. Então?
Alexei dando de ombros comprovava a verdade da questão.
— Os caras são assim. Não sei por quê. Com qualquer garota que o cara saia seriamente,
ele vai querer pensar que ela não aprontou por aí.
— Você é assim? Se, digo, hipoteticamente, claro, você estiver saindo com alguém tipo a
Kari e descobrir que ela teve, tipo, algumas derrapadas no passado, você perderia o
interesse nela?
Por que sou tão idiota? Tenho uma pergunta muito importante e Alexei era de fato a única
pessoa que poderia me dar uma explicação razoável dessa psicologia masculina
Madonna/puta na sua maneira falsamente intelectual que poderia fazer sentido, mas
estraguei tudo usando a Kari como exemplo.
Alexei jogou o guardanapo de volta para mim.
— Não sei do que você está falando — disse ele. Ele levantou da mesa e foi para a cozinha.
Ouvi um barulho de uma bandeja de copos d'água caindo e levantei o olhar para ver a
Nancy passando seu quadril ossudo por um ajudante, cuja boca estava aberta pela visão da
loura alta em seu curto terninho Chanel cor-de-rosa. Ela não se virou para ver a comoção
que causou; apenas continuou andando até minha mesa.
— Pensei em pegar você no trabalho para jantarmos juntas — disse ela. — A babá pode
ficar até mais tarde com as crianças e dar o jantar delas hoje.
Ah, que alegria, a dobradinha mãe-filha, com homens que não falam com elas, passando
uma noite na cidade.
— Nah — eu grunhi. Nancy provavelmente iria querer ficar no restaurante para jantar, só
para saborear o puxa-saquismo da Kari.
— Você pode escolher o lugar — disse Nancy.
Bem, assim a coisa é completamente diferente.
— Podemos ir para o Zachary Pizza em Oakland? — Minha boca ficou cheia d'água ao
pensar na pizza grossa estilo Chicago, de espinafre e cogumelo com o incrível tomate
cozido, cobertos com queijo derretido. Me pergunto se há algo de errado comigo. Eu só
penso em comida e sexo.
— Não — respondeu Nancy.
— Mas você disse...
— Não vou dirigir pela Bay Bridge no horário do rush. Vai levar mais tempo para chegar lá
do que para comer. E não vou comer pizza do Zachary. Acabei de voltar a caber nesta
roupa. Por que não ficamos aqui? O sushi é bom.
Não dá para jogar um osso para um cachorro e pegar de volta assim. Então eu não estava a
fim de cooperar. Eu não pedi esse favor.
— Sem chance.
Nancy tentou novamente.
— No Green's?
A oferta foi um interessante jogo de poder da parte dela, porque ela sugeriu meu restaurante
favorito para ocasiões especiais, que fica num cais dando para a Golden Gate e a prisão de
Alcatraz, com suculentos produtos de uma fazenda orgânica zen-budista em Marin County,
que são usados num menu vegetariano matador. Literalmente. Se eu estivesse no corredor
da morte eu iria querer que minha última refeição fosse do Green's. E ninguém é mais
carnívora do que eu. Mas ainda assim, eu hesitei, então Nancy jogou mais um osso, na
forma das chaves do carro que ela tirou da bolsa.
— Você pode dirigir — disse ela.
Oh, meu Deus. Nancy queria mesmo minha companhia.
Peguei as chaves.
— Eu vou. — Tenho uma permissão de aprendiz agora, mas entre a escola e o trabalho não
tive tempo de praticar direção, e Fernando não é exatamente voluntário para ser o adulto no
carro quando eu tento manobrar um veículo grande nas ruas íngremes de Pacific Heights,
ou pior ainda, descendo as ruas. Parece que tenho problemas com a intensidade com que
piso nos freios nas ladeiras, e Fernando disse que há um limite de remédio que ele pode
tomar para dor de cabeça.
Depois de ter trocado de roupa, encontrei Nancy na recepção. Quando saímos, o manobrista
estava esperando com a Mercedes dela.
— Iris disse que esses veículos são a causa da guerra do petróleo, e que são uma doença
global do desperdício, poluindo o ambiente. Íris disse que dirigir um desses é praticamente
colaborar com o terrorismo. Iris disse...
Nancy me cortou.
— Bom para a Iris pensar assim — disse ela e entrou no banco do passageiro.
Dezesseis
Não acho que minhas habilidades na direção sejam assim tão ruins, mas o rosto da Nancy
estava pálido quando chegamos no Green's. Ela pediu um vinho tinto antes que a
recepcionista pudesse nos entregar o cardápio.
Ao checar o menu, perguntei a Nancy.
— Então qual é o problema com o papai? — Coloquei Pão-de-Mel na mesa, encostada na
janela fumê.
— Você está de brincadeira comigo? — disse Nancy, evitando minha pergunta e apontando
para Pão-de-Mel, que está acostumada com os abusos por parte dela, então não tenho de me
preocupar se fica irritada por ser apontada. — Achei que você tinha aposentado Pão-de-
Mel.
— Bonecas são como pessoas idosas, mãe. Não são acessórios bonitinhos. Precisam de ar
de vez em quando.
— Se você está tentando me fazer deixá-la dirigir o carro com a Pão-Doce como sua adulta
responsável, a resposta é não.
Droga.
— Você e o papai estão brigados?
— Estamos bem.
— Você não parece bem — disse eu. — Ouvi vocês gritando um com o outro no quarto
antes de ele ir para Nova York. Desculpe, se for minha culpa.
— Cyd Charisse... — apontei para Nancy, para lembrá-la da correção no meu nome. —...
Oh, pelo amor de Deus, CC. O que acontece entre seu pai e eu não é para você se
preocupar. Ele estava um pouco bravo e eu entendo o porquê.
— Por quê?
Nancy disse exasperada:
— Esse é mesmo um assunto entre duas pessoas casadas, não para mãe e filha discutirem.
— Não sou mais criança — eu a lembrei.
Ela tomou minha declaração como uma desculpa para mudar de assunto.
— Concordo. Por isso pensei que deveríamos passar algum tempo juntas esta noite para
falar sobre seu futuro. Não pode evitar falar sobre a faculdade para sempre. Já é final de
outubro e os prazos finais de inscrição estão chegando logo. O que você pensa em fazer?
Deixei vários folhetos de faculdades em seu quarto, e percebi que você jogou todos na lata
do lixo reciclável. Seu histórico escolar pode ser um pouco fraco, mas há muitas faculdades
que vão aceitá-la, lugares que eu acho que você até vai gostar. Você não é idiota, apesar do
que seu visual possa sugerir.
— Eu sei, mas obrigada pelo elogio às avessas, de qualquer forma. — Por que os adultos
acham que toda menina que não pensa só em se dar bem precisa ser lembrada sobre sua
inteligência? Gente, minha auto-estima está legal, obrigado. Posso não ser a melhor da
escola, e posso fazer coisas extremamente idiotas às vezes, mas sei que sou esperta. E eu
bateria qualquer nerd no Mortal Combat da vida.
— Não foi isso que eu quis dizer e você sabe muito bem. Você vai ter de fazer alguma
coisa ano que vem depois de se formar. O que vai ser?
Por que eu TENHO de fazer algo? O que há de errado em não ter planos, não ir para a
faculdade? Não pretendo ser aquela garotinha rica com poupança para a faculdade que vive
da conta bancária do papai (ou no meu caso, papais). Pretendo seguir meu próprio caminho.
Eu só não sei que caminho ainda. Mas se eu não quiser fazer nada por um tempo, o que há
de errado com isso? Não é como se eu estivesse pedindo cidadania para viver na nação da
Vagabunlândia.
Não me vejo na faculdade e não vejo nenhum crime nisso. Eu não me importaria em ter um
café ou algo assim algum dia — mas mais tarde, depois de eu ter tempo de passar por toda
essa bobagem de autoconhecimento que acontece no final da adolescência. De qualquer
forma, o melhor futuro que imagino é simplesmente ser namorada do Siri, e essa
possibilidade está parecendo bem remota agora.
Decidi mudar de assunto de volta para o que eu queria falar:
— Por que papai está tão bravo? Você não estava escondendo um segredo dele. Eu pedi
para você não contar.
O garçom veio pegar nossos pedidos. Nancy disse que ele devia trazer uma garrafa de
vinho, porque uma taça claramente não iria dar conta da noite.
Nancy terminou sua primeira taça num longo gole.
— Se você quer mesmo saber, o assunto é mais profundo do que não contar a ele. Ele está
bravo porque eu mantive segredo quando ele se sente como se fosse seu pai, e era direito
dele saber. Mas a razão de ele ter saído de uma hora para outra para Nova York fechar um
negócio que ele poderia ter negociado perfeitamente bem daqui de São Francisco é que a
situação trouxe de volta as brigas que costumavamos ter sobre enviar você para o colégio
interno ou não. Ele achou o colégio interno uma má ideia, desde o princípio.
— Por que você fez isso, então? — perguntei. Tomei um gole da segunda taça de vinho.
Era um bom cabernet, mas francamente, um vinho branco teria combinado melhor com a
comida que ela pediu. — Porque eu odiei aquele lugar e nunca entendi o que fiz de tão
errado para ser mandada para lá.
— Você não fez nada de errado para ser mandada para lá. Por que você achou isso? Você
realmente acha isso? Eu queria que você tivesse a melhor educação possível, conhecesse as
pessoas certas. Queria que você tivesse os luxos que eu nunca tive.
Ela pareceu bastante magoada, então não disse, você queria que eu fosse pra lá porque ter a
Pequena Rebelde longe era mais fácil pra você. A situação toda foi bem igual à da baronesa
no A Noviça Rebelde, que queria mandar as crianças Von Trapp para longe para que ela
pudesse ter o Christopher Plummer só para ela e não lidar mais com a complicação de
adolescentes e seus hormônios e tudo o mais.
Adoro esse filme, A Noviça Rebelde. Toda vez que a câmera passa pela Julie Andrews
naquela montanha cantando sobre as colinas serem vivas, ou quando as crianças cantam
juntas num crescendo de ah-ah-ahs, rios de lágrimas jorram dos meus olhos, fora de
controle. Talvez esse pudesse ser meu plano futuro; vou tirar um ano e ser uma das pessoas
que vão para os cinemas ao redor do mundo cantar as músicas de A Noviça Rebelde. Isso
seria o máximo como plano de algo para FAZER.
— Você e o papai não vão se separar nem nada assim certo? — Não estou preocupada, mas
me sinto um pouco mal por meu problema ter magoado tanto papai Sid. Servi mais uma
taça de vinho para a Nancy, que ela tomou de uma vez.
— Claro que não. Isso é só uma pedra no caminho. Casamento é complicado. É como um
navio no mar, balança para a frente e para trás numa longa jornada. O melhor que você
pode esperar é segurar firme, navegar suave, mas há momentos em que uma tempestade
pode se transformar numa crise. Mas a tempestade passa. E há momentos em que o barco...
Eu coloquei o vinho no lado mais distante da mesa, perto da Pão-de-Mel. Nancy e seus
sorrisos sem sentido não precisavam de mais nenhuma ajuda do vinho.
— Siri é um hipócrita — disse a ela. Ela estava altinha; que mal haveria se eu me abrisse só
um pouquinho com ela? Ela provavelmente nem vai se lembrar. — Ele age como se fosse o
todo meiguinho Senhor Paz, Amor e Compreensão, mas parece tudo encenação.
— Percebi que ele não tem aparecido lá em casa para trabalhar na pintura. Acho que ele
não levou numa boa quando você contou sobre o Justin.
— Sim. Quer saber o pior? Ele até teve o disparate de perguntar se era do Justin, como se
pensasse que poderia ser de outro. Ele poderia ter me dado um soco no estômago, de tanto
que doeu. Siri e Justin foram os únicos caras com quem eu fui, você sabe, até o fim. — Um
olhar de alívio e surpresa passou pelo rosto dela, como se ela também tivesse pensado,
como eu fui pega em flagrante com Justin, que eu estava provavelmente dormindo com
outros caras também. Legal saber que até minha mãe achou que era possível que eu andasse
transando por aí. Nancy ficaria surpresa de saber que sua suposta filha malvada reformada
não tem vergonha de seu passado, mas se ela tivesse de fazer tudo de novo, ela teria
esperado um pouco mais antes de fazer "aquilo". Será que ela não entende que uma vez que
você começa com a coisa, não tem volta? — Por que os caras são assim? Ou você é uma
santa ou uma puta. Não tem meio-termo para eles.
— Querida, se você puder encontrar a chave desse mistério sobre os homens, você pode
engarrafar, vender e se tornar a mulher mais rica do mundo. Mas eu digo que, sem querer
defender o Siri, pela reação dele talvez você só o tenha pego de surpresa. Talvez ele tivesse
essa visão idealizada de você e não tenha conseguido lidar com a decepção, naquele
momento em particular. Ele vai voltar, e vai se arrepender. É óbvio para todo mundo o
quanto ele gosta de você. Seja paciente, e quando ele aparecer, seja compreensiva. Mas não
ouse se desculpar com ele. É o que eles querem, que nós nos desculpemos por sermos
meros seres mortais, e não perfeitas.
— Você vai se desculpar com o papai?
Nancy suspirou.
— Bem, sim. Mas é justo. Eu estava errada. Sobre o colégio interno. E sobre deixar ele ser
seu pai por todos esses anos, mas não deixar quando mais importava. Você cometeu um
erro, mas faz parte do seu passado, e não é nada de que você precise se desculpar com
ninguém, em especial com o Siri, entre todas as pessoas. Ele não tem nada a ver com isso.
Lágrimas se formaram no canto dos olhos da Nancy. Eu toquei a mão dela.
— Talvez seja melhor eu dirigir para casa, depois do jantar.
Ela bocejou.
— Seria ótimo.
Dezessete
Nunca fiquei tanto tempo sem namorado, ou pelo menos um ficante decente, desde o
ensino fundamental. Ainda estou brava demais com o Siri para ponderar como vou
canalizar a frustração sexual que está se formando dentro de mim. Até o Alexei está
começando a parecer gostosão, mas não estou falando de gostosão perigoso tipo Lu-isi. Eu
vomitaria beijando qualquer lábio que tivesse... feito coisas com/para/na Senhora
Imperatriz Kari. Eca!
O bônus inesperado do Siri estar sem falar comigo é que a Autumn e a Helen acabaram
sendo aceitáveis no quesito companhia.
Por que não fiz amigas antes? Por que todas as meninas que eu conheci no colégio interno
eram idiotas ou por que eu não sabia como ser amiga de outras meninas?
Eu estava preocupada com o fato de H&A passarem tempo demais na minha casa porque
você nunca sabe quando Fernando ou o papai Sid vão soltar uma piada sobre um motorista
asiático, mas Autumn nem dirige, e Helen conhece mais piadas de motoristas asiáticos do
que Fernando. Essas meninas adoram ficar na minha casa. Afinal é uma bela casa com uma
sala de jogos com uma enorme TV, videogames e toneladas de filmes, um jardim com
cama elástica, um irmão mais novo que adora bagunçar, uma irmã mais nova que é
fascinada por ver seu boneco Ken transformado em Sid Vicious pelas amigas da irmã mais
velha; não é uma prisão para todo mundo.
Eu tinha acabado de acordar na manhã de sábado e estava descendo as escadas para fazer
café quando a porta da frente abriu. Helen não se dá ao trabalho de bater, ela já aprendeu o
código de segurança. Estava carregando uma caixa com bebidas e passou por mim com
Autumn na cola. Helen disse:
— Ainda está com cara de sono, CC.
Eu as segui até a cozinha. Fernando estava sentado à mesa lendo o jornal em espanhol.
Helen passou para ele um dos chás borbulhantes com bolinhas de tapioca no fundo do copo
que ela tirou da caixa.
— Aqui está, Ferdie — disse ela. — A loja de chá em Clement Street tem um balcão de
pedidos para viagem.
Fernando não levantou o olhar do jornal, mas tomou um gole do chá pelo canudo. E fez
uma piada sobre os péssimos motoristas asiáticos, que só Helen entendeu. Ela e "Ferdie" se
completavam.
Acho que a mãe da Helen adora que ela passe tempo na nossa casa, mais ainda do que a
própria Helen, porque daí ela não sacaneia a mãe por não ter senso de estilo ou grita com
ela dizendo que vai para uma ESCOLA DE ARTES, não para uma FACULDADE, mesmo
que ela mesma tenha de pagar. Helen tem duas irmãs mais velhas — uma está no primeiro
ano da faculdade de direito em Stanford e a outra está se formando em engenharia pela
Universidade da Califórnia, então a mãe da Helen suspeita que houve uma troca de bebês
no hospital quando a Helen nasceu, porque ela não está correspondendo às expectativas
familiares do que é uma boa garota chinesa. Helen fuma e adora cerveja — e a noite do
futebol irlandês no pub. Ela é bem inteligente, mas suas notas são mais ou menos. Ela é
temperamental, daí a de colégio "alternativo". Ela se recusa a trabalhar no restaurante da
família. (Helen me garante que quanto a isso sua mãe está aliviada.) Mas Helen nunca
fingiu ser uma "boa" garota chinesa. Ela é apenas... Helen.
Talvez Helen e eu tenhamos sido bebês trocados na maternidade, porque ela se encaixa
perfeitamente na minha casa, enquanto eu sou provavelmente uma aberração aqui. Eu me
amarraria em viver num apartamento entulhado de coisas em cima de um restaurante chinês
em Richmond, com uma mãe que iria me ensinar a fazer pasteizinhos e sanduíches de
lombo de porco e me contar histórias vibrantes de como ela escapou de um regime
comunista brutal.
— Onde está a Senhora Vogue? — perguntou Helen. — Ela me prometeu que eu poderia
ver o book de modelo dela hoje. Preciso tirar algumas fotos para meu portfólio da escola de
arte, e quero ver se tiro algumas ideias estilo anos 1980.
A Senhora Vogue nos encontrou na cozinha, trazendo uma lista de compras nas mãos. Ela
estava toda vestida de Gucci para sua grande ida até o supermercado Safeway.
— Bom dia, meninas! — Acho que Nancy ama H&A na nossa casa mais do que eu. Ela até
gosta do apelido que a Helen colocou nela, em homenagem àquela patética revista de
peruas anoréxicas, a favorita de Nancy, e diz que fico menos rabugenta e sem-noção
quando minhas amigas estão presentes. Talvez Nancy devesse se preocupar em conseguir
ela mesma um diploma de faculdade, não eu. Assim ela poderia parar com esse papo de
livros de auto-ajuda e psicologia pop de "amigas são presentes", blablablá. — Estou indo
para o mercado. Vou fazer bolo de carne e ensopado de feijão-verde para o jantar! Querem
ficar para o jantar?
Sid e Nancy fizeram as pazes quando ele voltou da viagem de negócios, mas Nancy ainda
está trabalhando extra-pesado (para alguém que não tem emprego há quase vinte anos) para
provar ao papai Sid o quanto ela se importa com ele e como ela pode sobreviver sem a
Leila (ela não pode). A triste consequência dos esforços da Nancy é que nossa família está
sendo submetida a uma terrível cozinha típica do Meio-Oeste, a única do repertório dela, o
que significa bolo de carne-seca e ensopados feitos com vegetais congelados e mistura para
sopa.
— Não, obrigada — H&A disseram juntas. Como eu falei, meninas espertas.
— Fernando — disse Nancy. — Sid vai ficar no escritório até à noite. Vou levar Ashley
comigo assim que ela ficar pronta. Preciso que você a busque na festa de aniversário às
13h, e Josh na casa de seu amigo às 14h. Aqui estão os endereços.
— Si — disse Fernando, pegando o pedaço de papel da mão de Nancy.
Helen passou um copo de chá para minha mãe.
— Senhora Vogue, pode me mostrar seu book de modelo antes de sair?
O rosto da Nancy se iluminou.
— Claro! Uau, não olho aquela coisa há anos. Ninguém nesta casa nunca demonstrou
interesse, se entende o que quero dizer. — Ela olhou na minha direção. — Vem comigo.
Vou dar tanto na Helen por isso.
Fernando levantou da mesa.
— Mande um "oi" a Pão-Doce — eu disse a ele. Ele nem me respondeu, enquanto saía da
cozinha. O romance deles pode ter sido assumido, mas ele é uma pessoa bem reservada e
não gosta que pensemos que ele vai estar com ela quando tem algumas horas livres. Porque
ele vai estar.
Autumn se sentou na cadeira que Fernando deixou livre.
— Posso usar o computador da sala hoje para ver alguns currículos e bolsas de faculdades?
— perguntou ela.
— Óbvio — disse eu. Autumn vive num apartamento abarrotado de um quarto em Sunset
com seu pai, que é poeta, ou seja, falido o tempo todo. E tem um computador que é uma
droga.
— Por que você não foi à festa do Arran na noite passada? — Autumn perguntou.
— Por que você acha? — Faz duas semanas que contei ao Siri sobre o aniversário
"daquilo": na primeira ele me ignorou na escola, e na segunda ele simplesmente não foi à
aula. Mas eu sabia que ele ia à festa do Arran, então eu não ia de jeito nenhum.
— Ele não foi — disse ela.
— Ah... — ENTÃO ONDE ELE ESTAVA?! — Como foi a festa?
— O básico: cerveja, bebidas e garotas empinando os peitos.
— Então por que você foi? Lá você não iria encontrar ninguém em quem poderia se
interessar no meio daqueles surfistas. — O rolo da Autumn com o Siri foi a experiência que
a fez decidir que era gay com certeza, mas ela não está correndo atrás de um
relacionamento. Eu a invejo por isso. Ela ainda tem aquela primeira vez/ primeiro amor
para esperar, mas quando encontrar, ela vai ter merecido. A espera pode ser uma
recompensa melhor para ela.
— Para ficar de olho na Helen — disse Autumn.
— O que quer dizer com isso?
Quer dizer. Com cerveja suficiente, Helen não tem o melhor bom senso em relação a, bem,
favores sexuais, e de natureza não recíproca. Não é à toa que ela conhece dezenas de
garotos e não tem namorados. O que ela espera? Talvez eu precise ter outra conversa com a
Helen sobre o complexo masculino de Madonna/puta. Nós, garotas, não temos de gostar,
mas o fato é que, se Helen quer o Arran para valer, é melhor ficar esperta. Sou totalmente a
favor da liberação sexual, mas ficar por aí, quando não há nenhuma troca, é só um favor,
especialmente quando é com um cara que ela gosta mesmo, alguém que ela gostaria de
conhecer melhor. Helen não aprendeu nada com todo meu lance com o Siri?
— NÃO! — Ouvimos Helen gritar da sala. Autumn e eu corremos para lá. Helen estava
debruçada sobre uma espécie de caderno/pasta preto enorme com páginas cheias de
fotografia. Helen nos viu e disse:
— Sua mãe é a melhor, CC. — Helen mostrou uma foto em preto-e-branco da minha mãe,
mais ou menos na minha idade, numa rua cinzenta de Nova York, com prédios grafitados.
Nancy era ainda mais magra do que agora, usando um vestido curto de couro preto e meias
de dança, com botas de caubói, o cabelo louro formando um topete na frente, sombra nos
olhos — escura de um lado e mais clara do outro — aplicada de forma retangular a partir
do nariz em direção aos olhos, como óculos de sol. Ela parecia uma deusa bizarra tipo
Debbie Harry da época da New Wave do Blondie.
— Puta merda! — exclamei.
Helen tirou uma foto de trás da foto de Debbie Harry, uma dessas instantâneas da minha
mãe rindo e beijando um carinha de barba por fazer, sósia do James Dean.
— O que é isso? — Helen perguntou.
— Sim! — eu disse. — Quem é o gato?
Nancy ficou sem graça e surpresa, como se ela tivesse esquecido das fotos instantâneas
escondidas atrás da outra foto. Mas ela sabia:
— Se segure, CC. Sua mãe teve uma vida antes de você nascer. Esse foi meu primeiro
namorado. Fugimos juntos para Nova York assim que terminamos o ensino médio. Mal
tínhamos completado 18 anos. Eu ia ser dançarina. Ele ia ser fotógrafo.
— O que aconteceu com ele? — perguntou Autumn.
Nancy hesitou por um momento antes de respondei.
— Ele morreu seis meses depois de tirarmos essas fotos. Overdose de heroína. — Para
palavras tão pesadas, o tom dela era leve, mas o rosto estava pálido, seus olhos sem
expressão.
Que coisa mais deprê para se descobrir sobre a vida pregressa de Nancy. Se você tivesse
me perguntado ontem, eu teria dito que Nancy, de sua vida privilegiada do Pacific Heights,
não tinha ideia de como era heroína, ela nem saberia a diferença entre um cara que injetava
e um cara que fumava.
Não posso nem imaginar o quanto eu ficaria acabada se Siri morresse. Não sei como seria.
Como ela conseguiu?
Alguns cálculos mentais explodiram na minha cabeça. Ela deve ter conhecido meu pai
biológico Frank logo após o primeiro amor dela morrer. Toda a minha vida eu tive um
pouco de vergonha de ser produto do relacionamento da minha mãe com um homem
casado, não por causa do aspecto ilegítimo (qualquer um que se preocupe com isso é um
idiota), mas por sentir que minha chegada ao mundo causou dor para um monte de gente.
Mas se fosse comigo e eu tivesse acabado de perder o Siri, eu provavelmente não teria feito
a melhor das escolhas sobre a próxima pessoa com quem eu iria para a cama também. Eu
poderia querer só alguém para tomar conta de mim. Talvez seja o que Nancy achou que ela
conseguiria do Frank.
A campainha tocou e vimos Ashley correr por nós usando seu vestido de aniversário de
veludo, meias-calças brancas e sapatinhos de couro Mary Jane. Ela gritou:
— Eu atendo!
Ash voltou à sala, segurando a mão do Siri.
Nancy disse que ele apareceria, e ela estava certa.
Dezoito
Ash deve ter sentido a onda de ressentimento em direção a Siri provocada pela
solidariedade entre mulheres vindo de mim, H&A e Nancy, porque depois que ela viu a
expressão em nossos rostos, ela largou a mão dele como se ele tivesse sarna.
O cabelo louro-sujo do Siri estava solto e encaracolado por causa da chuva lá fora, e ele
usava calça cargo cáqui, chinelo e camiseta estampada em vermelho com uma única
palavra: FEMINISTA.
Desde quando Siri usa esse visual militar?
— Oi — Siri disse.
Mais um "oi" desses e eu bato nele.
Dava para pensar que estava tendo um incêndio na casa, de tão rápido que todo mundo saiu.
Nancy puxou Ash para fora, para sua festa de aniversário, enquanto Helen e Autumn de
repente tiveram de ir à Union Street comprar hidratante.
Sem falar, Siri e eu fomos em direção à cozinha, e saímos para o deque novamente,
sentando nas mesmas posições em que estávamos da última vez em que ele esteve na casa,
alheios à garoa caindo em nosso rosto. Fernando tinha levado a pintura de Siri e os
materiais para o quiosque do jardim, mas a lona ainda cobria a pintura, e então não
sabíamos o que era.
Hidratante?
— Por onde você andou? — perguntei.
— Fui para o norte com a Iris e o Billy por uma semana. Eles tinham uns negócios em
Eureka, e eu precisava refrescar as ideias, então fui com eles. Fui acampar nas montanhas
sozinho. Precisava desse tempo.
— E a escola?
— Já estou atrasado mesmo, desde que voltei de viagem. Vai fazer diferença? Nunca vou
recuperar.
— Então tirar outra semana de folga foi a resposta para isso? — Até pela minha filosofia
antiescola a lógica dele era estranha.
— Tinha de pensar numas coisas aí.
— Que coisas?
— O que você me contou. Ter Iris e Billy de volta em casa. Que andei comendo carne só
para ofender minha mãe, embora ser vegetariano seja parte intrínseca do que eu sou, ou de
quem eu achava que era. Voltar para a escola quando não estava realmente com vontade,
depois de alguns meses fazendo o que eu realmente gosto: surfar e fazer arte e viajar. O fato
que a última garota com quem eu fiquei, depois de você, decidiu que era gay depois que
ficamos juntos.
Eu não tinha pensado dessa forma. Eu também precisava refrescar as ideias, se tudo isso
estava me acontecendo de uma vez, mas eu nunca iria acampar para clarear minha mente.
Eu iria para um spa, onde bonitões bronzeados usando togas me trariam coquetéis de frutas
decorados com guarda-chuvinhas à beira da piscina.
— E o que você descobriu?
Siri pode ser pequeno, mas é um homem. Ele não evitou meu olhar, não recuou, abaixou
sua voz ou fez qualquer uma dessas manobras que os caras superficiais fazem quando
sabem que foram pegos. Seus olhos azuis profundos olharam direto nos meus, e como ele
tem um grande coração eu sabia que ele falava pra valer.
— Eu ainda não sei nada sobre quase todas as coisas. Mas em relação a você... agi como
um idiota quando você me contou. Eu errei em te perguntar se era do Justin. A pergunta
escapou da minha boca e então eu não pude voltar atrás. Daí fiquei envergonhado por ter
ficado realmente surpreso e sem graça com o que você me contou. Então eu só levantei e
saí. Fiz besteira, admito. Não tenho orgulho disso. Mas foi o que eu fiz.
— Por que ficou sem graça com o que eu te contei? — Eu precisava saber: porque era um
lembrete de que eu estive com outro cara? Quando eu tenho certeza de que ele ficou com
mais meninas do que eu fiquei com caras.
Siri murmurou:
— Sei que não fui o primeiro, mas é estranho saber que você ficou grávida do seu ex.
Eu apontei para o quiosque no fundo do jardim.
— Eu posso pegar uma pá, caso você queira cavar mais fundo.
Siri continuou me encarando olhando na minha alma:
— Não disse que é certo como eu sinto. É problema meu superar isso, não seu.
É verdade.
— Pareço diferente para você? — perguntei.
— Como assim? Desde que me contou o que aconteceu com Justin ou desde que te
conheci?
— Não sei. Em geral.
Ele parecia completamente diferente de quando eu o conheci. Era porque eu ou ele
havíamos mudado? Além de estar crescido, seu rosto estava mais largo, mais duro, menos
garoto bonitinho e muito mais interessante, especialmente com os dois pelinhos em seu
queixo. Percebi que a primeira vez que o vi, na casa de repouso com a Pão-Doce, depois de
ter sido expulsa do colégio interno, eu o tinha visto numa aura de perfeição, eu estava
querendo escapar da memória do Justin. Agora eu o vejo como ele é: só um cara, ainda que
um cara bonito, surfistinha e punk.
— Honestamente, o que eu mais gosto em você é que você nunca deixa de ser diferente
para mim. Nunca sei o que esperar de você. É preocupante às vezes, mas geralmente é só...
sexy — disse Siri.
Muito bem, me pegou.
Peguei a mão dele e ficamos de pé. Tínhamos essa enorme casa só para nós, o que
raramente acontece, considerando quanta gente vive ou trabalha aqui, mas eu o levei para
longe da casa, descendo as escadas do deque, até o jardim. Abri a porta do quiosque e o
empurrei lá para dentro.
— Sua pintura está aqui, para quando quiser terminá-la — disse eu. Fechei a porta. Tinha
cheiro de ferramentas enferrujadas e óleo. A única luz vinha de um raio de sol
entrando por baixo da porta. Siri me pressionou de encontro à parede e nossos lábios, já
molhados pela chuva, se pegaram conhecendo-se novamente. O cheiro dele, o gosto dele —
era como se minha boca não pudesse ter o suficiente dele. Seus dedos fizeram sua dança
familiar através do meu cabelo comprido e senti a pressão lá embaixo, enquanto nos
beijávamos, indicando que o sentimento era mútuo.
E ainda assim, eu nunca fui de bancar a difícil — se eu quero, eu pego —; mas por melhor
que fosse o beijo, fisicamente, meu cérebro estava separado ao mesmo tempo, lembrando
dele me deixando, e como ele reagiu perguntando sobre o Justin. Meu cérebro perguntou:
Posso confiar que ele não vai mais me machucar?
Me esquivei dele, respirando fundo. Meus hormônios desesperadamente tentaram dizer ao
meu cérebro para deixar de bobagem, mas numa vitória sem precedentes, meu cérebro
prevaleceu.
— Talvez você esteja certo. — Suspirei. — Talvez devêssemos ser apenas amigos por
enquanto.
Dezenove
A guerra recomeçou na nossa casa. Parece os velhos tempos!
O Dia da Comunhão do Frank foi arruinado. Nossa família celebrou o sagrado 12 de Dezembro, o
aniversário de Frank Sinatra, herói mútuo de Sid e Nancy (além da verdadeira Cyd Charisse,
certamente). Nancy foi criada na igreja luterana e papai Sid como judeu, e nenhum dos dois se importa
com educação religiosa ou dias santos, então dia 12 de dezembro é bem importante na nossa
casa.
Nosso ritual começa no café-da-manhã, quando o papai Sid traduz o jornal para nós como notícias
de Frank.
— Crianças, o Tempo Frank de hoje está nublado e fechado até o final da manhã, quando se espera
que o sol desfaça a neblina na hora do almoço e a temperatura chegue a 8°C. Nos Esportes Frank,
os Niners detonaram nas finais do campeonato de futebol, nada os atrapalha este ano. Trânsito
Frank: a construção na rodovia 101 provoca retenções maiores do que o usual na ponte Golden Gate
no lado da marina.
Músicas do Frank tocam em todos os aparelhos da casa o dia inteiro, mas só as coisas boas, com
Count Basie e Nelson Riddle, não a parte tosca como New York, New York, e de noite nós trocamos
presentes num grande jantar com comida do restaurante italiano favorito do papai Sid em North
Beach. A Celebração Frank geralmente termina com um filme exibido na sala de recreação.
Garotos e Garotas e Um Dia em Nova York são os favoritos do Josh e da Ash, mas se o dia os
deixou muito agitados, nós assistimos ao meu favorito, Sob o Domínio do Mal, porque então eles
ficam tão entediados que dormem de uma vez e Nancy fica arrepiada e não percebe que eu comi a
bandeja toda de canolis sozinha.
Eu estava particularmente ansiosa este ano para o Dia da Comunhão Frank, porque ano passado eu
tinha acabado de voltar para casa depois de ser expulsa do colégio interno e havia tanta tensão na
casa que nem nos importamos de celebrar. Comemos o Jantar Frank, então Nancy e eu brigamos
sobre um certo incidente de furto em loja pós-expulsão, portas batendo, EU TE ODEIO, o blablablá
de sempre. E nas duas celebrações anteriores eu estava exilada na Nova Inglaterra e não consegui
sair para o ritual do 12 de Dezembro em Pacific Heights.
Então este 12 de Dezembro eu estava totalmente pronta para festejar. Acordei de manhã ansiosa
para descer as escadas, tomar café e ouvir as Notícias Frank, já que papai Sid prometera que este
ano iria entrar a Astrologia Frank. Nancy ficou na porta do meu quarto enquanto eu me vestia.
— Estou indo na Nordstrom esta manhã enquanto você estiver na escola. Quer que eu te compre um
casaco pesado de inverno? Vai precisar de um para Minnesota. Programei para sairmos na véspera
do Natal e voltarmos alguns dias depois do Ano-Novo. Feliz Aniversário do Frank.
— Feliz Aniversário do Frank para você também — disse eu.
Algumas pessoas podem celebrar o Dia da Comunhão Frank usando camisetas ripongas mostrando
os velhos olhos azuis de chapeuzinho, mas escolhi comemorar de outra forma: vestida como seu
verdadeiro amor, Ava Gardner. Meu visual de tributo ao Frank incluía saia preta, anos 1950, justa
na cintura e descendo até as panturrilhas; blusa com um grande decote e presa na minha cintura;
cabelo preso em ondas estilo Ava e pés descalços manicurados à la Condessa Descalça. Eu até
investi num sutiã com enchimento, para fazer jus a Ava, que é o que falta em Cyd Charisse.
Coloquei longos cílios postiços, e lembrei o que Nancy disse:
— Mas não posso ir para Minnesota. O casamento do Wallace e da Delia é na véspera do Ano-
Novo. — Contei a Nancy apenas alguns milhares de vezes.
— Que pena — disse Nancy. — São nossas férias em família, e você sabe que a saúde da minha
mãe está péssima. Ela não deve durar até o final do inverno. Pode ser o último ano que vocês a
vêem. Anime-se, sua passagem de avião é de primeira classe, e vamos ficar numa suíte com vários
quartos no melhor hotel de Minneapolis. — Como se eu me importasse com viagens de primeira
classe e quartos de hotel.
— Não — disse eu, levantando a voz.
— Sim — disse ela, com a voz mais alta.
— NÃO!
— SIM!
O sistema de equilíbrio do meu temperamento saiu fora do controle.
— EU NÃO VOU! — gritei. — VOCÊ NÃO PODE ME OBRIGAR!
Além de eu não querer perder de jeito nenhum o casamento de Wallace e Delia, além de eu
ser crescida o suficiente para não ir para um lugar só porque minha mãe decidiu que eu
devo ir, tem o fato de que eu realmente odeio a mãe da Nancy. Vovó Babaca (como eu a
chamo) vive num condomínio fechado em algum subúrbio metido à besta de Minneapolis,
numa casa num campo de golfe, como se isso já não fosse razão suficiente para odiá-la.
Mal a vemos. Ela também não é daquelas avós fofinhas que apertam sua bochecha, assam
bolinhos e tricotam casaquinhos. Ela é uma figura ossuda cuja dieta consiste basicamente
em refrigerante, patê e bolachas Ritz (Nancy diz que meu metabolismo milagroso vem dela,
por isso posso comer de tudo). A Vovó Babaca se refere a mim como "a ilegítima", ao
papai Sid como "o judeu", sua enfermeira particular é a "menina de cor" e ela teve a
coragem de chamar Nancy de "porquinha" quando fomos visitá-la depois que a Ash nasceu
e Nancy ainda não tinha perdido todo peso que ganhara na gravidez. Passe um tempinho
com a Vovó Babaca e você vai entender por que a Nancy praticamente tem um distúrbio
alimentar, ou por que ela fugiu com um cara que tinha problemas com heroína assim que
ficou maior de idade.
Nunca conheci o marido da Vovó Babaca, meu avô. Ele morreu quando eu era bebê,
provavelmente para fugir dela. E não vou fingir que estou triste porque a vovó está morrendo,
quando não é verdade. A última vez que a vi foi no verão antes de eu fazer 14 anos.
Ela me pegou num canto na única reunião de família a que tínhamos ido e me explicou
como eram superiores meus primos que iam para a igreja em Minnesota, em comparação
com minha família "estilo São Francisco", enquanto eu observava esses mesmos primos
roubarem notas de 20 dólares da carteira dela para comprar cerveja. Então ela me disse que
eu tinha me tornado uma mocinha linda, mas agora, como eu tinha curvas e peitos, era
melhor eu tomar cuidado para não ficar igual à minha mãe. Honestamente, eu sempre tento
achar o melhor em cada pessoa, mesmo em quem eu não gosto. Mas quanto à Vovó Babaca
não, desculpe, não consigo achar nada que goste e não vou me sentir mal por isso. Algumas
pessoas são apenas babacas e não tem jeito.
Nancy enrola mesmo a língua quando baixa a menina de Minnesota nela. Seu rosto pálido
fica todo vermelho e inchado e ela solta palavras com esse sotaque estranho, arrastando as
vogais, igualzinha a Vovó Babaca. As aulas de dicção que ela teve quando se mudou para
São Francisco corrigiram bem aquele sotaque caipira, mas quando ela fica brava, o sotaque
e suas expressões voltam rápidos e furiosos.
— Você não é adulta, inda, moocinha, é? E não vai ficar neessa casa sozinha enquanto
estamos longe e o Fernando está na Nicarágua para o Natal, gooste ou não. Não tem dizoito
inda, mocinha.
Oh, agora entendo. A mesma mulher que me levou ao médico para pegar receita de
anticoncepcional em setembro é quem agora está tentando me castrar em dezembro. Ela
está preocupada com o que vai acontecer entre mim e o Siri, cuja situação "apenas amigos"
está indo muito bem. Quer dizer, se "apenas amigos" significa um cara e uma garota que
não fazem sexo, mas que andam de mãos dadas no almoço na escola e que ocasionalmente
dão beijos de língua quando se despedem, se "apenas amigos" significa dois ex-namorados
que deram um tempo há várias semanas para se conhecer antes da inevitável reunião de
botas caindo, corpos balançando e cama chacoalhando. Nancy acha que, se o Siri e eu
ficarmos com a casa para nós, vai virar uma putaria sem supervisão.
Não importa que eu esteja indo para a escola todo dia este ano e as notas nem estejam ruins.
Não importa que eu nem voltei a transar com o Siri nem com ninguém, não importa que eu
fiz amigas e desenvolvi uma vida além do radar ligado em meninos. Não importa que eu
fiquei bem boazinha nesta casa também. O fato é: Nancy ainda não confia em mim.
— EU NÃO VOU! Seja para Minnesota ou para a faculdade! — Estava tão brava que eu
não pude evitar de gritar esta última palavra também. Mas simplesmente jogar a palavra
"faculdade" no ringue não era suficiente, então acrescentei: — Não pode me fazer visitar
uma mãe que você mesma odeia para que possa mostrar como você está bem e rica sem a
ajuda dela na sua vida, como também não pode me fazer ir para a faculdade só porque
lamenta que você mesma não foi. Não estou aqui para você viver seus sonhos através de
mim.
— SUA PIRRALHA MIMADA!
— Bem, quem me deixou assim? Você só quer que eu vá para Minnesota ou para a
faculdade para que eu esteja num lugar aonde uma pirralha mimada não quer ir, como fez
quando me mandou para o colégio interno.
Não pude seguir o protocolo normal e fugir para o meu quarto porque eu já estava nele,
então bati a porta do quarto na cara da Nancy e tranquei a porta.
Vinte
A melhor parte de "apenas amigos" é que eu podia esperar o carro detonado verde-limão
do Siri parar no estacionamento da escola, ir até a janela do motorista e dizer "vamos matar
aula hoje", sem expectativas sexuais nesse dia de cabulação. Um "apenas amigo" que
também é uma alma gêmea sabe sem precisar que digam e consegue perceber:
— Bela roupa, Ava, mas e esse rosto fechado? Brigou em casa no Dia do Frank? —
enquanto dava ré para nós irmos embora antes da escola começar.
O macacão de surfe do Siri estava no porta-malas e sua prancha na capota do carro, então
fomos para Ocean Beach. Eu precisava esfriar a cabeça, e assim enquanto ele pegava as
ondas da manhã perto da casa dele na Great Highway, eu dava uma longa caminhada na
praia, meus pés descalços de Ava ficando bem sensíveis afundando-se na areia fria de São
Francisco.
Deixei Nancy ligar para meu celular três vezes antes de atender. Ela não gritou, mas
pareceu cansada quando disse:
— Onde você está?
Eu não podia desligar o bater das ondas atrás de mim, então respondi:
— Onde acha, Sherlock? — Segurei o telefone para pegar o som da água batendo. Coloquei
o telefone de volta na orelha e disse: — Tem de aprender a confiar em mim, mãe. Posso
não ter 18 anos, mas vou ter em breve, e se não quer que eu faça o que você fez com sua
mãe, fugir, vai ter que pegar leve e deixar que eu tome minhas próprias decisões. Não vou
perder o casamento do Wallace e da Delia. Eles são mais minha família do que a sua
família em Minnesota já foi, e você sabe disso. — Desliguei meu telefone, para que então
ela pudesse engolir seu café-da-manhã de balas de rum Lifesavers e tirar um cochilo
enquanto pensava no assunto.
Percebi que ela podia não ser inteligente o bastante para pensar o curso certo sozinha, e
então liguei para o papai Sid. Pude ouvir It Happened in Monterey tocando ao fundo
quando ele atendeu.
— Docinho, é Aniversário do Frank portanto você tem uma dispensa especial e não será
castigada por começar uma briga com sua mãe e se comportar como uma criança nesse dia
tão importante. Mas se está querendo que eu medie a briga, vou dizer o que acabei de dizer
a sua mãe. A resposta é não. Estou cansado de ser o intermediário. Vocês duas que se
resolvam. — E ele desligou na minha cara!
Bem, eu não tinha uma solução para esse problema porque foi a Nancy que começou a
briga, ela é que teria de consertar, então continuei a andar pela praia. Vi o Siri ao longe na
água, cercado por alguns surfistas esperando pacientemente pela onda certa, então remando
furiosamente uma vez que ela surgia. Com seus macacões pretos contra o oceano azulacizentado,
eles pareciam uma escola de golfinhos. Ocean Beach geralmente é fria e
nublada, mas talvez em homenagem ao aniversário do Frank o dia estivesse incomumente
claro e ensolarado, algo que você apreciaria de forma especial se já tivesse passado muito
tempo em Ocean Beach, porque acontece tão raramente. Nos raros dias de sol você pode
ver, a oeste do Pacífico, as ilhas Parallon, ou, ao norte, os belos morros e montanhas verdes
de Marin County, e pode pensar que nunca vai ver uma vista tão bonita e provavelmente
não vai mesmo, porque a neblina densa tem retorno garantido sobre essa beleza.
Essa era a primeira vez que tinha o Siri só para mim nas últimas semanas e ainda assim eu
o entregava ao mar, para que pudesse ficar sozinha. Desde que passei pelo aniversário
"daquele" dia, nós temos saído, mas eu não chamaria issoo de namorar: algumas festas em
casas de Ocean Beach nos finais de semana, algumas aventuras artísticas, como ir ao
jardim-de-inverno japonês no parque Golden Gate e então ir para Colma, a cidade morta
(literalmente) onde todos os cemitérios estão e onde Siri gosta de ir para desenhar lápides.
Mas foi numa noite vendo filmes com a família dele que percebi que eu podia mesmo
confiar nele. Não foi uma coisa específica que ele disse ou fez que indicou que havíamos
superado o lance do Justin, foi mais uma série de momentos. Siri escolheu Meias de Seda
com a verdadeira Cyd Charisse, para assistirmos. E ele derreteu barras de chocolate Crunch
sobre pipocas de microondas do jeitinho que eu adoro, sem eu pedir. Enquanto rolava o
filme, ele se sentou ao meu lado no sofá com seu braço ao meu redor, massageando meu
ombro e meu pescoço. No meio do filme, Billy me passou um baseado, depois de dar uma
tragada, mas Siri o pegou do pai e repassou para Iris, sabendo que eu estava bem satisfeita
para gastar o barato natural com a maconha do Billy. Quando o filme terminou, todo
mundo comentou como a verdadeira Cyd Charisse era bonita e elegante, sua dança com o
par de meias de seda, adorável e como ela era o par perfeito para Fred Astaire. Eu disse que
achava a versão original, não-musical, do filme — Ninotchka, com Greta Garbo — melhor,
e todo mundo pareceu chocado, como se eu tivesse dito um sacrilégio, desprezando minha
xará.
— Você sabe tanto sobre filmes antigos porque você foi batizada com o nome de uma
estrela de antigamente? — Iris perguntou.
— Não, eu só sei o que qualquer renegado social reformado, que passou muito tempo
sozinho em seu quarto, ouvindo Muzak e assistindo a velharias saberia. — Iris e Billy e
Wallace e Delia riram como se eu estivesse chapada, mas eu e o Siri não vimos onde estava
a piada.
ALMAS GÊMEAS.
Eu vaguei pela praia por um bom tempo antes de ver o Siri emergir do mar, andando com
aquele sorriso satisfeito que ele fica depois de se encontrar com o Pacífico. O que Ava
faria? Eu me perguntei. No meu ouvido, Ava sussurrou para mim de sua varanda na Forest
Lawn dos céus dos dinossauros do cinema: Garota, olhe aqui. Sobre essa roupa que você
está usando. Coisa fina. E aquele garoto andando em direção a você, preenche bem o
macacão de surfe dele. Então o que falta para vocês dois voltarem logo a ficar juntos? Eu
tentei explicar a Ava que a coisa de "apenas amigos" estava funcionando muito bem e que o
dia de matar aula era só pra curtir, sem expectativas sexuais envolvidas, é apenas onde eu e
o Siri estamos agora, talvez dividíssemos um chocolate quente cremoso (Humm, alguém
está servido?), mas é só isso. Ava perguntou: Por quê? Já não esperou o bastante? O ato
dois do amor verdadeiro pode esperar só até certo ponto. Tentei explicar sobre como o sexo
muda tudo, mas Ava retrucou algo sobre eu ter medo e ser entediante e que ela tinha um
jogo de pôquer com a strip Lana Turner, o Errol Flynn e o Clark Gable. Safada sortuda.
Siri chegou ao meu lado, pingando, com sua prancha apoiada no quadril. Um forte vento
marítimo soprou água de seus cabelos na minha roupa de Ava. Eu precisava de mais sinais?
— Você estava falando com alguém? — perguntou Siri. — Achei que vi seus lábios se
mexendo, mas não vi ninguém perto de você, ou o celular na sua mão.
Peguei a mão livre dele, fria e enrugada da água.
— Deixa pra lá. Quer ir pra sua casa? — Lambi a orelha dele e sussurrei nela. — Para o seu
quarto? — Não que eu não quisesse aprontar na praia em pleno dia, tudo bem, mas pensar
na areia fria na minha bunda e uns vagabundos passando e olhando por trás das dunas não
era muito excitante.
— Não é uma boa hora — disse Siri.
Eu realmente bati o pé.
— É sim! — disse eu. — É sim! — Por que ele não pode ser o machão ansioso típico, POR
QUÊ? Erro meu, tentar aliciá-lo depois que ele acabou de se dar bem com seu primeiro
amor verdadeiro, o mar, e estava bem zen do surfe para se importar com algum outro tipo
de ação com alguém como euzinha.
Os lábios dele cobriram os meus num breve beijo, tempo suficiente para que eu ficasse
quieta. Então ele disse:
— Iris e Billy provavelmente estão em casa, eles não se importariam, mas eu sim. E nós
dois ainda não nos decidimos se queremos voltar ou não. Quando tomarmos essa decisão,
não deve ser assim, quando você está chateada, quando é mais para escapar do que por estar
pensando na gente. Isso é simplesmente idiota. Quando acontecer, se acontecer, não quer
que seja especial? Não está ótimo agora, só eu e você, o mar, a areia, a praia quase só pra
gente.
— O que você é afinal? — perguntei. — Uma menina?
E se esperamos demais e agora não podemos mais fazer, porque nunca haveria o momento
certo? E se nenhum de nós sentir a confiança certa e o desejo para cruzar essa barreira
invisível do "apenas amigos"?
Vimos Iris ao longe enquanto caminhávamos em direção à estrada. Ela estava passeando
com seu cachorro novo, Aloha, um vira-lata que ela e Billy adotaram da rua. Estranho que
duas pessoas que ainda não decidiram onde vão viver permanentemente agora que voltaram
aos EUA adotem um cachorro antes de saberem que têm um lar verdadeiro para ele. Mas
Wallace não pareceu se importar, provavelmente porque Aloha mantinha Iris ocupada o
suficiente para não se intrometer nos últimos estágios do plano de casamento. O cachorro
apressado estava puxando Iris mais do que ela a ele, e ela quase passou correndo por nós,
sem nos notar. Seu cabelo castanho-grisalho estava preso num rabo-de-cavalo, mas o vento
forte estava jogando fios de cabelo de volta em seu rosto, então ela não nos viu até estarmos
exatamente na frente dela.
— Oi! — disse ela, espantada quando nos percebeu parados ali. Soltou Aloha da coleira e
jogou um pauzinho para o cachorro pegar. Se Nancy estivesse na nossa frente (e não
se recuperando de uma briga logo de manhã), Siri e eu teríamos sido detonados por
faltarmos à escola, mas em se tratando de Iris, quem sabe se ela fez a conexão de que estava
nos encontrando na praia no final da manhã de um dia de escola?
— Querem passear comigo?
Siri disse:
— Preciso tirar essa roupa molhada, mas por que vocês duas não passeiam? A gente se
encontra aqui em casa em meia hora e eu preparo o almoço para vocês duas. O Prato
Especial do Siri: massa com queijo. — Ele olhou para a mãe. — Sem pedaços de bacon —
acrescentou, e Iris riu.
Iris segurou minha mão e retornamos em direção à praia. Ela é mais tranquila quando sua
família não está por perto; ela relaxa e é mais uma pessoa do que uma pseudo-mãe/esposa,
mandando em todo mundo. Billy é um mistério completo para mim; um cara de poucas
palavras, que parece não querer que ninguém além da Iris o conheça. Eu diria que quando
seus olhos não estão chapados, o principal momento em que seu rosto demonstra emoção é
quando seus filhos estão por perto. Ele pode não ser um pai muito presente, mas ele ama
Wallace e Siri, apesar de ser Iris quem domina seu mundo. A chave do mistério de quem é
o Billy talvez seja que não há mistério algum. Após décadas fumando erva, como algumas
pessoas fumam cigarro, simplesmente deve achar que não há mais muito para ele no
mundo.
— Você parece tensa — disse Iris. — Está tudo bem, querida?
— Sim, só uma briguinha com minha mãe. Ela está querendo que eu vá ver a mãe dela
morrendo no Natal, em vez de ir ao casamento do Wallace e da Dee.
— Bem, você não quer ver sua avó antes de ela morrer?
— Ela é uma velha que eu só vi algumas vezes na vida. Não a conheço o bastante para me
importar, e o que conheci dela, não gostei. Ela não é uma pessoa muito legal, e não posso
de uma hora para outra fingir me importar com ela só porque está doente. Isso é tão falso.
Quero dizer, se eu tivese uma doença terminal e ela viesse para cá tipo "oh, minha netinha
querida, os anos que a gente perdeu, deixe-me fingir que me importo agora que você está
prestes a morrer", eu apenas iria vomitar ou algo assim. De qualquer forma, acho que sou
adulta o bastante para tomar essa decisão sobre o que é mais importante para mim.
— Acho que você está certa — disse Iris. — O que você acha que Siri iria escolher, entre
se mudar comigo e o Billy ou ficar aqui com o Wallace e a Dee?
Claro que eu queria dizer: Siri iria escolher uma comunidade Cyd Charisse, onde amizade é
contra a lei e o sexo domina de manhã, de tarde e de noite, e de forma alguma sua mãe será
capaz de tirar o Siri de mim agora que eu o encontrei de novo, mas não falei.
— Por quê? — perguntei.
— Bem, é uma decisão que ele vai ter de tomar uma hora. E estou curiosa para saber o que
a garota que melhor o conhece acha que ele vai escolher.
Seria fácil pensar na Iris como uma hippie louca que se preocupa mais em enfiar suas
opiniões políticas abaixo da goela dos outros do que com o bem de seus próprios filhos,
mas o que a eleva de chata para especial é o quão profundamente ela se importa, quando se
importa. Pude sentir pelo aperto tenso da sua mão que ela estava mais do que preocupada
sobre quem Siri iria escolher; não sei se estava preocupada se ele iria rejeitá-la ou se ele
não a deixaria ir, não sei.
Nancy ligando para o meu celular de novo me deixou soltar a mão do aperto mortal da Iris.
Nancy não se preocupou em dizer "alô" ou me deixar falar, ela apenas saltou para:
— Te faço uma proposta, só desta vez, sem negociação. Alexei fica no apartamento do
Fernando enquanto estamos longe, então pelo menos há um adulto em casa, e você
concorda em escolher duas faculdades e preencher os formulários durante as férias de
Natal. Alexei pode te ajudar se você precisar de ajuda com os formulários. Nesses termos,
pode ficar em São Francisco e ir ao casamento, se é o que você quer. Feito?
— Feito — disse eu.
— E nunca mais eleve sua voz para mim ou bata a porta na minha cara como você fez hoje
de manhã. — Nancy acrescentou. — Acabemos com isso. Se você quer ser tratada como
adulta, aja como uma. — Desta vez ela que desligou na minha cara.
Vinte e Um
O aniversário do bambambam certamente não estava sendo comemorado no Java the Hut
naquela tarde, como testemunhado pela quantidade obscena de gente esquisita no café.
Helen estava sentada num canto, desenhando com violência. Quando olhei para a
prancheta, seu herói em quadrinhos, o Caçador de Bolas, parecia estar sendo perseguido por
um exército de sósias da Mulher Maravilha dirigindo carrinhos de golfe, todas sacudindo os
punhos para ele, refletindo os raios de sol em seus braceletes dourados.
— Pobre Caçador de Bolas — eu disse para Helen. — O que ele fez?
Ela se debruçou sobre o caderno, para que eu não pudesse ver, e olhou para mim.
— Estou tentando trabalhar com privacidade — retrucou ela. — Procurei você na escola
hoje porque precisava da sua ajuda com uma coisa, mas agora é tarde demais. Agora você é
descolada demais para ir à escola?
Hum, tá certo, Helen. Precisa de remédio pra cólica?
Fui até onde Autumn estava, levando uma bandeja com copos sujos para lavar na cozinha.
Quando ficou de pé, vi que ela cortara os dreads e estava com uma cabeça cheia de
toquinhos de cabelo, procurando uma direção a seguir. Autumn tinha aquele rosto lindo de
mil misturas, então pode usar qualquer penteado, mas o novo visual foi uma grande
surpresa e eu fiz uma cara de espanto involuntária quando a vi. Mesmo ela podendo usar
qualquer penteado, não significa que aquele era a melhor escolha.
— Não fale nada do meu cabelo — disse Autumn entre os dentes. — Não fui aceita na
Universidade da Califórnia e fiquei tão louca que comecei a cortar, e agora estou horrível.
— Não está horrível nada... — comecei a dizer, mas ela passou correndo em direção à
cozinha. Foi pelo lado errado da porta e foi atingida por Delia, que passava pelo outro lado.
Autumn derrubou a bandeja de copos no chão, espalhando restos de água e café. Segurou o
nariz enquanto lágrimas formavam-se em seus olhos.
— Autumn, me desculpe! — Delia disse. — Você está bem? Precisa de gelo? Quantas
vezes isso tem de acontecer com você para se lembrar qual é a porta, afinal?
Eu podia ter aceitado o desafio da Helen para ficar amiga da Autumn, mas não sou cega em
relação aos defeitos dela, dos quais o pior, tenho orgulho de dizer, é um que eu suspeitava
ser verdade antes mesmo de conhecê-la: ela é a pior garçonete/barista do mundo. Ela
sempre erra o pedido dos clientes, como se fosse difícil diferenciar leite integral de
desnatado ou um latte de um cappuccino. Ela não tem ideia de que o pano de limpeza está
lá para enxugar café, grãos de açúcar e chocolate em pó do balcão em intervalos regulares,
e podia facilmente levar à falência o Java the Hut por todos os copos que quebrou e
máquinas que ela permanentemente danificou. Siri diz que Wallace e Delia não a demitem
porque Autumn precisa do trabalho para guardar dinheiro para a faculdade, mas acho que
eles a mantêm porque ela é tão bonita que uma clientela de surfistas está sempre vindo para
a loja, independentemente do talento dela como barista (ou da sexualidade dela).
O surfista mais falsamente apaixonado por Autumn, Arran, correu do computador, onde
estava olhando um catálogo online de lingeries da Victoria Secret, para ajudá-la a limpar a
bagunça. De qualquer forma, Delia não podia ajudar Autumn, ou cuidar do nariz
machucado dela porque um ônibus de turismo parou do lado de fora da loja, provavelmente
atraído para Ocean Beach pelo raro dia de sol, e um número considerável de clientes se
colocou diante do balcão, exigindo ser cafeinada.
Delia correu até mim com o avental em mãos.
— Por favor — disse ela. — Pode me ajudar aqui?
Apesar dos muitos meses em que estivera longe do caixa no Java the Hut, eu disse:
— Claro. — Servir bebidas à velocidade da luz é como andar de bicicleta ou desempenhar
algumas atividades sexuais; um talento que depois de desenvolvido, você nunca perde. Mas
o período trabalhando no restaurante com a Senhora Imperatriz Kari deve ter me
acostumado mal, porque atrás daquele balcão eu não pude deixar de perceber como o lugar
era mal organizado, ou como era bom que a Vigilância Sanitária não tivesse aparecido,
porque o nível de limpeza não estava nos trinques, como a Kari gosta que esteja. A Senhora
Imperatriz Kari mantém o restaurante funcionando como uma máquina bem lubrificada, e o
Java the Hut podia receber um pouquinho das chicotadas dela para funcionar direitinho, em
vez de ser um café que fica sem troco para dar aos clientes e precisar que verifiquem a data
de validade dos sanduíches.
Talvez eu não seja uma Laranja numa terra de Maçãs, afinal. Talvez eu achasse que me
encaixava melhor trabalhando num lugar como o Java the Hut, mas depois de tanto tempo
longe, o lugar me parecia diferente. Ainda é ótimo, mas talvez, tipo, eu não goste mais
tanto daquele clima bagunçado. O que não quer dizer que tenho qualquer ideia do que
quero atualmente, mas fico surpresa em perceber quão diferente o Java the Hut parece para
mim agora: parte do passado, acabado, finito. Além disso, verdade seja dita, já tomei cafés
melhores.
Depois de termos cuidado daquele ataque de clientes, Delia colocou atrás da orelha uma
mecha de seu cabelo vermelho crespo que havia soltado do coque, e limpou o suor do rosto.
— Deus te abençoe — disse ela para mim, ao mesmo tempo em que Iris entrava pela porta
da frente do café. Iris viu Delia no caixa, então virou-se e retornou para a rua.
— O que foi isso? — perguntei a Delia.
A voz de Delia abaixou.
— Olha isso. Billy fez algumas, digamos, "transações" aqui na loja, e quando eu e Wallace
percebemos o que estava acontecendo, pedimos para ele não fazer essas coisas aqui. Billy
aceitou numa boa, você sabe que Wallace faz tudo por ele, mas agora Iris está fula porque
pergunta como ela e o Billy vão se mudar para a própria casa se nós não deixamos eles
ganharem a vida. Esses dois, eu juro, se aguentarmos as próximas semanas até o casamento,
vai ser um milagre.
Não sei o que aconteceu, mas ouvi gritos e vi Helen pegando com força seu caderno e sair
correndo do café, deixando Autumn e Arran perto de onde ela estava sentada, com os rostos
espantados.
— Qual é o problema dela? — perguntou Arran.
Ele também saiu da loja tirando sua prancha do suporte do lado de fora e foi em direção à
praia, com sua longa prancha apoiada no quadril.
Delia deu de ombros.
— Não tenho a menor ideia do que está acontecendo, mas pode me fazer mais um
favorzinho? O organizador do casamento vai me encontrar aqui em meia hora para ver os
últimos detalhes, e Autumn ainda tem mais algumas horas de turno e eu preciso mesmo da
ajuda dela, se é que isso é possível. Por favor, fale com ela e a convença a me ajudar. Por
favor, minha querida possível-futura-cunhada? — Delia pediu como um cachorrinho; ela
era quase tão bonitinha quanto Aloha.
— Somos apenas amigos — corrigi Delia. Tirei o avental e o devolvi a ela. — Vou falar
com ela, mas não espere milagres. Não sei o que posso fazer. — O que sou eu, Madre
Teresa agora? Já era duro o bastante gostar da bonitona da Autumn, agora tenho de
conversar sobre o que a está perturbando? Essa coisa de ser amiga de meninas devia vir
com um manual.
Autumn estava sentada nos fundos do café, num velho sofá com um lençol vermelho em
cima. Ela tirou um livro da prateleira, mas a sabedoria do Dalai Lama sobre a arte da
felicidade não deve tê-la interessado porque ela folheou as páginas sem ler uma palavra ou
perceber que havia clientes por lá que podiam querer sentar no sofá. Eu me sentei ao lado
dela.
— Que porra é essa? — disse eu. Foi uma má abordagem? O que aquela apresentadora, a
Oprah, teria dito?
Autumn esfregou seu nariz machucado, então apoiou sua cabeça nas mãos.
— Grrrrrr — ela rugiu. — Podemos apagar este dia do calendário?
— Apagar o Dia do Frank? Nunca! — falei horrorizada. Mas o Dia do Frank podia não ser
uma prioridade na agenda dela. — O que aconteceu? — perguntei. Tentei dar uns tapinhas
nas costas dela, mas devo ter batido forte demais, porque ela se retraiu.
— Ai!
De novo, preciso de um manual aqui.
— Por onde começar? — Autumn disse: — Teve a carta de rejeição da Universidade da
Califórnia que chegou hoje. Ainda posso conseguir entrar na inscrição normal, mas aquela
era a minha carta na manga. Se eu não entrar lá, não sei qual faculdade eu gostaria de ir e
poderia pagar. Então isso foi uma coisa. A outra foi que essa menina da minha escola, nós
meio que saíamos e eu achei que gostava realmente dela, mas agora ela anda pela escola
como se nada tivesse acontecido e de repente ela está praticamente namorando um cara que
ela conheceu no verão passado.
— Achei que você tivesse dito que não iria namorar este ano exatamente por causa disso.
— E você acreditou? — Autumn balançou seu cabelo curto bagunçado. — Como você é
ingênua! Posso te contar também mais uma coisa. Helen queria te contar, mas ficou
enrolando por causa do seu troço de Madonna/puta. Ela está tendo esse tipo de... não posso
chamar de relacionamento, vamos chamar de "rolo"... com Arran. Você sabe, ele pega ela e
eles fazem de tudo, mas nem liga pra ela quando tem outras pessoas em volta, age como se
não houvesse nada entre eles, são apenas conhecidos. Ela gosta muito dele, mesmo que não
admita. Ele é lindo, sim, mas acho que é um idiota. Ele não é como o Siri, isso com certeza.
Helen sabe que não gosto dele e que eu acho que ele a faz de boba. Tipo, a gente quer que
os amigos fiquem com quem os mereça, certo? — Eu assenti. Certo, sim, é assim que
funciona! — Então, agora há pouco, Arran me chamou para sair neste final de semana, bem
na frente da Helen. Fim da história. Foi isso.
Minha primeira providência foi mandar uma mensagem de texto para Helen, convidando-a
para jantar na minha casa. A celebração do Dia do Frank com o falso ídolo de Helen, sra.
Vogue, podia alegrá-la. E eu aproveitaria a ocasião para ficar com Helen sozinha no meu
quarto e conversarmos sobre a situação com o Arran. Enquanto Helen estivesse lá, eu
poderia pegar o dicionário e fazê-la ler em voz alta a palavra "reciprocidade". Também
posso forçá-la a ver dr. Phil ou dra. Ruth ou simplesmente dra. CC até que ela perceba que
sexo oral é a mesma coisa que sexo. E, não fique vermelha, Helen. Não faça sem achar que
não conta, porque conta.
Em seguida eu disse a Autumn:
— Você vai entrar na Universidade da Califórnia, sei que vai. Mas talvez esse seja o
Universo te mandando uma mensagem para não restringir suas opções. Há um mundo
enorme lá fora, Berkeley está do outro lado da baía. Talvez o Universo queira que você
abra as asas um pouquinho e pense nessa rejeição como uma oportunidade, em vez de uma
derrota. — Da capa do livro no colo da Autumn, a foto do Dalai Lama pareceu estar
concordando comigo, me parabenizando por minha sabedoria e empatia. — Vou conversar
com Helen sobre o Arran e consertar as coisas. Não é culpa sua o Arran ter te convidado
para sair na frente dela, mas é culpa sua não ter deixado bem claro para ele que você é
100% gay. Ele provavelmente sabe sobre seu rolo com o Siri, então talvez ele ache que
tenha chance com você. Não o deixe ficar com expectativas não-realistas sobre vocês dois,
especialmente se você sabe que Helen está interessada nele. E você já se assumiu na nossa
escola? Porque não me lembro de você me dizendo que sim, então talvez a garota de quem
você gosta também esteja com informações contraditórias sobre você, iguais as que ela
conta a si mesma. — Dessa vez eu fiz um carinho, em vez de bater nas costas de Autumn.
— E por último, seu cabelo está ótimo, mas se você não gostou, lembre-se de que não é
cabelo de Barbie, vai crescer novo. — Comecei a sentir um bocejo chegando, essa conversa
estava me exaurindo. — Agora é hora de ir pra casa. Minha mãe se tornou inesperadamente
razoável e eu preciso fazer as pazes com ela por causa de uma briga que tivemos de manhã.
Autumn sorriu seu sorriso perfeito e largo com seus grandes dentes. Ficou de pé.
— Você não é ruim nessas coisas — disse ela enquanto voltava ao seu lugar, na frente do
caixa.
— No quê? — gritei pra ela.
— Você sabe! — ela gritou de volta.
Levantei-me para ir embora, mas pelo canto do olho vi um braço apontando na minha
direção. Fui até o canto da loja, perto do depósito de mantimentos, e encontrei Siri
dentro dele, com um sorriso malicioso no rosto. Ele levantou as sobrancelhas brincando
comigo — parecia um Irmão Marx surfista — e fez sinal para eu entrar lá com ele, onde
costumávamos transar durante os intervalos, quando nós dois trabalhávamos no Java the
Hut.
Eu não entrei.
— Ainda não tivemos aquela conversa oficial, amigo.
A boca de Siri se transformou em uma cara de palhaço triste. Uma pegaçãozinha nem
sempre vem sem calcinha, querido. Saí do Java the Hut para pegar o ônibus para casa.
No ano que vem, no Dia do Frank, não vou ser Ava Gardner. Vou ser uma santa.
Vinte e Dois
Motoristas da Bay Area, cuidado: CC está a solta, com carteira oficial da Califórnia para
operar um veículo motorizado. Se eu tivesse percebido antes a liberdade que uma carteira
de motorista me daria, eu teria saltado para o aos-diabos-com-o-meio-ambiente-vamosdirigir
no momento em que fiz 16 anos. Depois que passei na prova, o papai Sid quis me
dar um carro novo, mas eu disse:
— Não, obrigada. Posso usar o carro que a Leila deixou, aquele pequeno e velho carrinho
azul-vivo que parece o carro da Betty Boop?
— Vamos doar esse carro para caridade — Nancy objetou —, como seu pai se recusa a
contratar outra empregada. Você não vai querer ficar com aquele carro. Fique com o
Lexus.
— Por favor — implorei. — Já me dá vergonha estar nesta família sem um emblema que é
aquela monstruosidade veículo. Passe as chaves do carro da Betty Boop para cá e eu serei a
menina mais feliz nessa cidade.
Um carro da Betty Boop que é praticamente uma relíquia parece uma boa herança, na
minha opinião. Se vou ser uma garota californiana mesmo — ou mais importante, a antiga
e futura namorada de um certo surfistinha-artista californiano — um carro de herança é um
passo importante na formação da minha identidade. Siri dirige o carro velho de seu irmão,
um carro dos anos 1970 que já foi do tio deles. O automóvel está pintado de verde-limão e
tem dados de pelúcia pendurados no retrovisor, e às vezes Wallace fica com o olho cheio de
lágrimas quando olha para o carro lembrando-se de como adorou consertá-lo e depois
passá-lo para o irmão mais novo quando as namoradas ficavam reclamando de ele quebrar
na estrada. O carro-herança do Siri parece um veículo que uma senhora de 60 anos que
fuma cigarro Winston e vai ao mercado com bob no cabelo dirigiria, sem ironia, ainda que
o carro claramente pertença ao Siri, como um cachorro vira-lata que apenas pula nos seus
braços e você sabe que tem de levar para casa. Apesar da psicótica da Leila estar quase no
final da minha lista de ídolos e a lembrança do seu sotaque assustador estilo Celine Dion
ser quase o suficiente para eu temer o carma que pode ser transmitido pelo seu carro, o fato
é que Leila fazia panquecas extremamente gostosas. Eu gostaria de um dia fazer panquecas
tão gostosas, então pegar o carro da Leila não significa necessariamente que eu quero ser
como ela, mas uma expressão do meu desejo de acumular carma de boa cozinheira
enquanto o dirijo. Ei, faz sentido para mim.
Eu comemorei a tomada de posse do carro da Betty Boop pegando passageiros para uma
noite de meninas. Já que H&A não se falam há uma semana, desde o incidente no Dia do
Frank. Decidi não contar a elas que ambas estavam incluídas no passeio de meninas com a
Pão-Doce. Helen ficou no banco de trás sem espaço para suas pernas, assim não podia
protestar fisicamente quando parei na frente da casa da Autumn em Sunset. A própria
Autumn pareceu hesitar quando viu Helen pela janela do carro, parada lá na calçada
esperando pela carona. Parei o carro, pulei do banco do motorista, puxei a porta para a
Autumn entrar atrás junto da Helen, sentando-se atrás da Pão-Doce, e disse bem alto para
as duas ouvirem:
— Ficar guardando rancor como vocês duas têm feito desde o incidente com o Arran é uma
das principais razões para eu não ter feito amizade com mulheres no passado. Então por
favor, vamos ser amigos homens, entra aí e supera isso.
O cabelo picado da Autumn estava preso num turbante, então sua virada de olhos foi bem
visível, mas ela sentou no banco de trás. Então ela se apertou junto à janela lateral, o mais
longe possível da Helen, que também se apertou do outro lado, e o rosto de ambas exibia
uma birra idêntica. Estar em cantos opostos no banco de trás de um carrinho tão pequeno,
entretanto, significava que havia dois centímetros entre os corpos, então aquelas caras de
emburradas e a separação física era uma grande perda de tempo.
Voltei para o carro e a Pão-Doce começou a colocar em prática a segunda parte do plano.
Se tem uma coisa que aprendi nos meus 17 anos no planeta Terra é que chocolate é um
grande compensador e depois que a Pão-Doce me passou a abóbora de plástico cheia de
bombons, só levou dois minichocolatinhos para fazer com que a H&A pedissem desculpas
uma a outra pelo incidente com o Arran e entrassem numa conversa animada. Ufa.
Eu queria passar por um restaurante em Geary que tem um ótimo hambúrguer e fica num
vagão de trem nesse bairro quase em ruínas, mas a Pão-Doce queria um lugar mais bacana
e também queria ver o Alexei, afilhado do seu amado, e foi assim que terminamos indo
jantar no restaurante da Senhora Imperatriz Kari. Como meu estágio vai terminar no final
do semestre, Sua Majestade me convidou para continuar trabalhando no restaurante depois
do Natal, e eu podia até trabalhar na cozinha se quisesse, porque parece ser lá que eu
sempre termino passando um bom tempo, mas fiquei com uma crise grave de tô-nem-aí.
Decidi ser uma grande vagabunda depois do Ano-Novo e não trabalhar no segundo e último
semestre de escola. Sim, isso significa mais tempo na escola, mas o plano é também ter
mais tempo para o Siri.
Talvez a Pão-Doce esteja agora na folha de pagamento dos meus pais também, porque
assim que estávamos todas sentadas no restaurante, ela perguntou:
— Então, como estão os planos para a faculdade?
Não tive de me preocupar em lançar um olhar do tipo "nem começa" porque H&A ficaram
falando dos planos delas. Autumn queria fazer psicologia e estudos femininos quando fosse
para a faculdade, e Helen só quer sair da casa da mãe — ela não se importa para onde vai,
contanto que o lugar tenha um curso de arte e seja o mais longe geograficamente possível
de Clement Street em São Francisco. Talvez fossem as ostras de entrada, porque a próxima
pergunta da Pão-Doce envolveu essa questão:
— Como as meninas estão em matéria de amor ultimamente?
Autumn disse:
— Estou fora. Amor é para trouxas.
Fiquei quase inclinada a concordar. Meu meio-irmão Danny tinha me ligado aquela manhã
para dizer que não só seu negócio, o Idiotas do Village, estava fechando como ele estava
praticamente falido, e que ele e seu verdadeiro amor, Aaron — o casal de verdade em quem
você pode sempre confiar, não importa o quanto o amor pareça falido para você —,
terminaram. Pensar em Danny e Aaron separados é terrível demais, então nem pensei,
porque eu sei que eles vão se resolver. Sempre resolvem.
Helen concordou com Autumn.
— Sim, dar uns amassos é uma coisa, mas amor verdadeiro é uma mentira. Não que dar uns
amassos não conte. — Helen olhou na minha direção, assimilando nossa conversa no Dia
do Frank sobre esse assunto, e eu olhei em direção a Autumn, então ela saberia: caso
encerrado. Helen acrescentou: — De qualquer forma, não acredito em amor verdadeiro.
Pense em Tim Armstrong e Brody Dalle, quero dizer, existe gente que pareceu ter amor
verdadeiro, feitos para ficar juntos, mas o D-I-V-Ó-R-C-I-O...
— De quem diabos você está falando? — perguntou Autumn.
— Do cara de moicano do Rancid, que era casado com a garota do The Distillers —
respondeu Helen.
— Brody é uma boa cantora, mas nunca vai se comparar ao Tim Armstrong, como músico
— comentou Pão-Doce.
Todas nós viramos a cabeça em direção a Pão-Doce, tipo, hein? Ela disse:
— Meu vizinho de quarto. O neto dele escuta punk rock e grava CDs para eu ouvir no
discman enquanto estou fazendo diálise. — Às vezes vai além da minha compreensão como
a Pão-Doce pode ser mais legal do que 99,9% da população. — Então, escutem, passo
muito tempo na cadeira fazendo diálise para pensar nessas coisas, aqui vai a sabedoria da
velha senhora: amores verdadeiros podem ir e vir nas nossas vidas, mas seus melhores
amigos são as pessoas que vão ficar com você a vida toda.
Helen, Autumn e eu nos esprememos de leve na mesa e nos detivemos em comer nossas
entradas. Acho que um acordo implícito para nunca — NUNCA — entrar numa irmandade
onde fazemos juramentos para sermos amigas para sempre e damas de honra e madrinhas e
nunca vamos ser amigas do tipo que fazem almoço e passam o final de semana em spas
femininos para ficar falando sobre nossas vidas. H&A e eu vamos apenas.... ser.
Simplesmente amigas, sem complicações, e quando terminarmos o ensino médio vamos
pensar como e se vamos ficar em contato depois de seguirmos direções diferentes. Siri e eu
provavelmente vamos estar apaixonadíssimos de novo até lá e eu mal vou perceber que
H&A estão longe na faculdade.
Nenhuma de nós tem de se preocupar sobre sentimentalismos, porque o corpo durão de
Alexei ficou de pé perto da nossa mesa, segurando a água com gás de cortesia bem cara
numa bela garrafa azul-cobalto.
— Senhoritas — disse ele —, com os cumprimentos da casa. — Ele tinha um guardanapo
pendurado na parte posterior do braço, bem formal e essa merda toda enquanto nos servia a
água. A Pão-Doce não pôde evitar um sorriso para o afilhado de seu verdadeiro amor, tipo,
meu Fernando é parcialmente responsável por esse rapaz ter se saído tão bem!
O foda no Alexei é que os ternos lhe caem realmente bem. Honestamente, vestem muito
bem nele. Ele deve ir a um alfaiate para ajeitar as roupas para que elas caiam tão certinhas
assim no seu corpo. Alexei é tipo o vizinho que puxava a alça do seu sutiã quando vocês
eram crianças e agora você olha para ele e pensa, Bom Deus, cara, como você ficou tão
gato?
Alexei prestou atenção em mim:
— Que bom que trouxe suas amigas para aumentar o prestígio deste lugar. Mas escute,
princesa. Na semana que vem, quando eu ficar na sua casa no Natal, por favor, me poupe
do seu jeito de Pequena Rebelde.
Taí, eu posso reconhecer o tesão que é Alexei, mas isso não significa que ele ainda não seja
Terrível em matéria de personalidade.
Vinte e Três
Cumpri minha pena no estágio com dedicação, mas enquanto o final do semestre na
escola significava liberação do restaurante, livrar-me do Alexei, o Terrível, ainda não seria
possível.
Acredito que é um direito constitucional dormir até mais tarde no dia seguinte ao Natal,
ficar de bobeira em casa o dia todo sem se preocupar em trocar o pijama e comer os restos
da caixa de doces natalinos. O dia deve ser desperdiçado assistindo a A felicidade não se
compra, gritar quando o irmãozinho herói de guerra do George Bailey brinda a seu irmão
mais velho como "o maior homem da cidade", mesmo que seja sua adorável esposa, Donna
Reed, quem salva o dia. No mundo de Alexei, o dia seguinte ao Natal significa ser
acordado às oito da matina (sério), comer claras de ovo no café acrescido por uma corrida
pelas escadas da Lyon Street, seguido por uma tarde soterrando a princesinha aqui com
formulários de faculdade. Claramente ele me considerou o tipo errado de princesa, porque
seus formulários eram de universidades tipo Universidade de Miami, USC, Hofstra e
Universidade de Boston. Eu dei uma olhada rápida nos de Chico State, Loyola, e UC-Santa
Cruz, mas sem encontrar formulários de faculdades que eu realmente consideraria ou que
me considerariam (a Universidade do Havaí, NYU, Hampshire College ou um navioescola),
eu desisti. Minha punição foi um vídeo noturno de um discurso do herói do Alexei,
Noam Chomsky, que ele colocou para nós assistirmos.
Nós, incluía um adendo surpresa na casa. Desde que Nancy fez a proposta para eu ficar em
casa em São Francisco, eu me ofereci para dividir o trabalho de babá com a garota que
geralmente trabalha com o Josh, para Sid e Nancy não terem de cancelar a viagem quando
Josh apareceu com catapora uma semana antes do Natal. Josh estava melhor quando eles
viajaram com Ash para Minnesota, mas não bem o suficiente para viajar e ser sacaneado
pela Vovó B, então ele ficou em casa comigo e Alexei, que estava hospedado no
apartamento do Fernando ao lado da casa enquanto este visitava sua família na Nicarágua.
A babá tomava conta do Josh durante os dias e eu ficava com ele de noite.
Os remédios não conseguiam acabar com Josh, mas Noam Chomsky, com certeza
conseguiu. O quanto um garoto de 10 anos se interessa por um documentário sobre
linguística misturado com política (ou algo do gênero) sem efeitos especiais no meio? Josh
é um menino tão hiperativo que quando era bebê costumava agarrar a barra de segurança do
seu carrinho enquanto pulava no assento, para que pudesse ver toda a ação a sua volta, até
que seu pequeno corpo ficasse tão exausto que ele metia o rosto em sua própria barra de
segurança, morto de sono. Agora Josh trocara a barra de segurança do carrinho pelo colo da
irmã como travesseiro. Estávamos no sofá em L na sala, Alexei de frente para a televisão e
Josh e eu de lado, Josh com um sorriso em seu rostinho bonito com marquinhas de catapora
sumindo, provavelmente sonhando com feiticeiros mirins. Olhei para Alexei e perguntei a
ele:
— Meus pais estão te pagando extra para você nos entediar ao máximo, Alexei?
Siri esteve tão ocupado nos dias antes do casamento do Wallace que eu mal o vi, então
quase fiquei feliz quando Josh ficou doente e teve de ficar em casa, ele é uma ótima
companhia. Às vezes eu amo tanto o Josh que eu quero engolir ele inteirinho; ao mesmo
tempo fico tentada a enchê-lo de ritalina quando ele fica barulhento e agitado demais,
subindo em cima de mim e nunca me deixando vencer no Super Mario, que ele joga
mexendo o corpo todo e xingando palavrões que ele aprendeu com Ash. Mas Josh também
é um ursinho fofinho que me pergunta "você vai embora de novo?" quando eu o coloco
para dormir, e me dá um abraço extraforte quando eu digo a ele que não vou embora tão
cedo, mas que vou ser sempre a garota favorita dele. Pelo menos na minha cabeça, eu vou
ser, mas a competição está ficando acirrada. Ele é um lourinho com cara de príncipe com os
cílios sonhadores mais longos que já se viu, e apesar do que ele diz, que garotas são
"nojentas" (com exceção de mim, é claro), há uma fila de menininhas da escola dele
ligando toda noite e já foi convidado para mais festas neste ano do que eu fui em toda
minha vida. Talvez tenha sido força do destino ele ficar com catapora e preso em casa
comigo se recuperando, porque tive muitas oportunidades de conversar com o garoto sobre
usar seus poderes para o bem, e espero que quando ele for o garoto popular da escola, ele
seja um cara legal com todo mundo, desde o grupo dos esportistas fodões até o dos
excluídos, ao qual sua irmã mais velha tradicionalmente fazia parte até o último ano do
ensino médio. As futuras namoradas do Josh podem me agradecer por moldar seu potencial
de namorado desde cedo.
Alexei pegou Josh do meu colo para carregá-lo para cima para sua cama de verdade.
Quando Alexei desceu de volta, apertou PLAY no CD player sem checar o que estava no
aparelho, então ouvimos Olhos Azuis cantando clássicos de amor. Com a luz fraca na sala,
o garoto caído de sono lá em cima e uma garrafa de cidra aberta na mesa, quase dava para
pensar que esse era um cenário romântico. A não ser por Alexei estar na sala, não o Siri, e
de repente o Doritos que eu estava comendo acabar fazendo efeito e eu deixar um peido
escapar, obrigando o Alexei, geralmente de cara fechada, a cair na gargalhada.
Se eu iria ser humilhada dessa forma, por que não Alexei?
— Então, a Kari te largou, ou você ainda vai fazer papel de bobo com a Mrs. Robinson há
muitos quilômetros de distância quando voltar para a faculdade? — perguntei a ele. O
universitário estava ansioso para voltar para o leste, para a Universidade Metida à Besta,
agora que o semestre tinha acabado, mas ele ficou bem quietinho sobre o relacionamento
com a Kari.
Em resposta à minha pergunta, Alexei agarrou os controles remotos na mesa. Desligou o
som com um e ligou de novo a televisão, com o Noam Chomsky, com o outro. Então pulou
para o sofá ao meu lado e começou a me abanar com as mãos. Sua terrível colônia Calvin
Klein era uma disto prazerosa, nesse momento.
Alexei estava olhando para mim e estávamos meio rindo e zoando um com o outro, como
gente que se despreza, mas que não acha o outro totalmente ruim, quando de repente o
clima mudou; uma faísca. De alguma forma nossas bocas ficaram mais perto por uma
gravidade inexplicável que era tão excitante quanto repulsiva, e não era puramente baseada
na frustração sexual com o Siri. Um mantra ecoou no fundo da minha mente, me lembrando
de que Siri e eu éramos "apenas amigos, apenas amigos, apenas amigos". Isso não faz com
que os acompanhamentos sejam permitidos na corte do amor platônico pelo prato
principal? Ainda assim, quando os lábios do Alexei estavam prestes a tocar os meus, nós
dois recuamos no mesmo instante.
— Você está com bafo de Doritos — reclamou Alexei.
— Você tem bafo de Listerine, o que é pior. — Alexei pareceu tão aliviado quanto eu por
nosso estranho momentinho não ter se tornado um beijo de fato.
Talvez Noam Chomsky dissesse que eu experimentei um momento de claridade, porque o
que eu percebi foi isso: não que Alexei e eu não estivéssemos ligados um ao outro dessa
forma, mas que talvez eu seja capaz de ter um amigo platônico que é um cara. Só que não o
Siri.
— Então, se você desligar esse maldito vídeo do Noam Chomsky e colocar a música de
volta — propus —, troco o Sinatra por um Aerosmith clássico, e posso ouvir, se quiser me
dizer, o que tem de tão bom em ir para uma faculdade idiota e, tipo, o que você planeja
fazer da vida depois de terminá-la.
Alexei nos serviu cidra e disse:
— Fique confortável, princesa. Será uma longa noite.
— Bom, como já estou nessa furada, você pode me contar também o que aconteceu com a
Kari.
Vinte e Quatro
Com Josh doente e tendo ficado em São Francisco durante as festas, e Sid e Nancy indo
com Ash para Minnesota para ver a vovó que estava quase morrendo; com todo esse caos a
gente esqueceu de uma data muito importante que cai na semana entre o Natal e o Ano-
Novo: o aniversário do Josh. A situação toda, na minha opinião, era muito parecida com
Esqueceram de Mim misturado com Gatinhas e Gatões, e eu era como as Patricinhas de
Beverly Hills tentando resolver a situação. Todos os amigos de Josh estavam viajando de
férias com suas famílias, então eu não podia convidá-los para uma festinha improvisada, e
eu não iria bancar a Nancy e levá-lo para uma armadilha para turistas tipo o restaurante
Bubba Gump Shrimp Co. no Píer 39, para comemorar seu aniversário. Não havia mais nada
a fazer exceto procurar a pessoa que poderia me dar uma ideia: Pão-Doce. E, óbvio, ela
teve uma ótima ideia.
Se você precisa armar uma festa no último minuto, com convidados que não saíram da
cidade de férias e que podiam amar o Harry Potter mais do que o Josh amava, que lugar
melhor do que a casa de repouso — me desculpe, lar com assistência? Adoro velhinhos.
Quem mais podia ter tempo e amor para decorar seu salão de festas para uma festa temática
do Harry, com um suprimento inesgotável de ponche de frutas, gelatina e balinhas Boston
Baked Beans no lugar das balinhas favoritas do Harry Potter, em apenas algumas horas?
Durante o caminho, Josh não conseguia imaginar por que eu estava usando um chapéu de
McGonagall, ou por que o Alexei havia recheado sua roupa para que parecesse ainda mais
ter o tamanho do Hagrid, até que o levamos para o salão de festas, onde um monte de
velhotes estavam reunidos com Pão-Doce, Siri, Helen e Autumn.
Sem ter a melhor visão coletiva, o grupo da festa não percebeu o convidado de honra até
um minuto depois que ele virou uma tigela de M&Ms em sua corrida para pegar sua
vassoura Nimbus2000 criada apressadamente, mas o sorriso no rosto do Josh, quando o
grupo finalmente disse "SURPRESA" em uníssono, foi grande. A festa dele não tinha uma
piñata, e ninguém lá iria topar uma rodada de twister, mas uma festa cheia de enfeites de
Harry Potter, junto com muitos docinhos e velhos dançando músicas populares (para quem
tem mais de 70 anos), foi mais do que ele esperava.
Hum, ideia de futura carreira para FAZER algo: criar planos de festas de último minuto
para aniversários que foram esquecidos.
Helen, que ficou uma interessante Hermione quase careca com óculos sem lentes quadrados
de nerd, agarrou a mão do Josh para a primeira dança sob as lanternas de papel penduradas
no teto. Duvido que Josh saiba quem era Benny Goodman, mas ele não teve problema em
iniciar uma dança robótica pós-moderna com Helen para a batida de suingue. Alexei pegou
Cho Chang — isso é, Autumn — para dançar, enquanto o menor Dumbledore do mundo,
Siri, pegou minha mão. Eu sempre suspeitei que havia uma magia entre Dumbledore e
McGonagall, e nossa dança lentinha para músicas rápidas — abraçados juntinhos, com
minha cabeça em seu ombro e silêncio entre nós — apenas comprovou isso.
Siri e eu dançamos várias músicas, alheios às mudanças de parceiros acontecendo ao nosso
redor, até que Você-Sabe-Quem — Pão-Doce — entrou na nossa dança. Siri pegou a mão
dela, pensando que ela estava trocando Alexei por ele como parceiro de dança, mas ela deu
a ele o melhor olhar mortal de Voldemort e pegou a minha mão. Os dois ficaram sem
parceiros pelo corte da Pão-Doce. Siri e Alexei trocaram olhares desconcertados mas não se
moveram para dançar um com o outro. Eles trocaram um cumprimento de mãos seguido
pelos obrigatórios soquinhos no ombro, e se distanciaram.
Pão-Doce disse:
— Foi uma dança terrivelmente lenta e coladinha que você e Siri fizeram para "Mack the
Knife". Como você não notou, vou te informar para danças futuras: é uma dança
agitadinha. Então é certo dizer que vocês dois voltaram?
— Ainda não chegamos lá, minha amiga, ainda não.
— Quando acha que vai ser?
— Trouxe suas cartas de tarô para a festa? Por que eu gostaria de descobrir também. Está
tudo tão... legal... entre nós, então é como se não quiséssemos estragar isso. Somos uma
desgraça para nossa libido adolescente. Acho que devemos ter alguma "conversa oficial" se
decidirmos voltar a ficar juntos, mas ou estamos ocupados demais ou fugimos do assunto
totalmente. Pão-Doce, o amor verdadeiro é uma falácia?
A música terminou e Pão-Doce e eu nos sentamos perto da mesa de jantar decorada de
Hogwarts e repleta de bolo e doces e — alguém era precavido — garrafas de antiácido,
Pão-Doce deu um gole no refresco de uva e respondeu minha pergunta.
— Talvez vocês devessem parar de se preocupar tanto com essa ideia de amor verdadeiro, e
pensar mais na simples realidade do amor que têm para dar, e receber em troca. O amor que
é baseado na pessoa, a pessoa real, aquele garoto de alma perdida cujos planos de futuro
são mais vagos do que os seus, aquele que está com medo de admitir o quanto precisa de
você porque talvez tenha medo de perdê-la novamente; e não uma noção romanceada de
quem você pensa que essa pessoa é. Pense se você conhece essa pessoa bem o suficiente
desta vez para ter o direito de chamar esse sentimento de amor.
— Você ama o Fernando?
— Sim, acho que sim.
— É amor verdadeiro?
— É melhor do que isso, é real, o que torna as coisas mais difíceis também, algumas vezes.
Brigas e limitações como ele ir para a Nicarágua passar o Natal sem convidar esta velha
senhora e tudo mais.
Ai.
— Está brava? — Eu perguntei a ela e Pão-Doce assentiu. — Vai terminar com ele? — Ela
balançou a cabeça dizendo que não. Eu queria saber. — Você não está morrendo, está? Por
que você disse que não planeja viver aqui para sempre.
Pão-Doce riu.
— Não que meu médico tenha dito, querida. Posso morrer em alguns anos, mas esta
senhora não está planejando ir a lugar nenhum. Ainda não.
Josh chegou de um SALTO no meu colo, e bateu a cabeça no meu peito. O açúcar, a dança
e um público que conhecia o universo dos Hogwarts melhor do que ele tinham esgotado sua
energia temporariamente. Ele sussurrou na minha orelha:
— Sua outra família não vai levar você embora, vai? — Eu olhei para seu rosto preocupado
e suspeitei que era isso que ele queria me perguntar desde que voltei de Nova York, há
meses, mas talvez tenha sido esse dia especial, e Sid e Nancy longe, que o fizeram
finalmente verbalizar.
Balancei sua cabeça, nosso costume de sempre.
— Não, bobinho — disse a ele.
Para uma filha bastarda que passou a maior parte de sua vida sonhando com sua outra
família, eu mal pensei neles desde que voltei para São Francisco, exceto por Danny, claro,
que vai ser a causa da minha futura tendinite por todas as mensagens de texto no celular
que eu mando para ele para manter contato. Ganhei um presente de Natal do meu pai
biológico Frank: uma caixa azul da Tiffany contendo um colar com um pingente de
diamante em formato de coração, como se eu fosse uma garota que usa essas jóias valiosas
e horríveis. O cartão que o acompanhava dizia, "para uma doce menina de 16 anos".
Acredite, não há nada em mim que Frank ache doce. Acho que a palavra que ele usava para
me descrever era atrevida (mas coloque um som de vômito aqui). Ano passado eu podia ter
ficado impressionada com um presente dele, até mesmo sendo algo tão idiota, mas este ano
— e por sinal, amigo Frank, tenho 17 anos, não 16 — o colar só confirmou como ele me
conhece pouco. Guardei a caixa da Tiffany para doar para caridade.
Autumn e Siri se aproximaram de onde estávamos sentadas, carregando um bolo de
aniversário que fiz para o Josh, enquando todo mundo cantava "Parabéns pra você". Se
alguém me dissesse no verão passado que algum dia na minha vida eu iria testemunhar o
Siri com a Autumn comemorando o aniversário do meu irmão, eu teria caído histérica ou
possivelmente saído correndo. Para citar uma grande dama, Pão-Doce: "A vida é
engraçada, querida, e isso não é piada."
Depois que Josh cortou o bolo, Autumn veio se sentar comigo, enquanto Helen tirava fotos
da festa e pegava os telefones de pelo menos três velhinhos, os últimos a flertar com ela.
Ela me jurou que superou o assunto Arran, acabou, finito, mas flertar faz parte da natureza
da Helen, não importa a idade da conquista, não há limites.
— Esse bolo é delicioso — Autumn disse. — Fez tudo sozinha?
— Sim — disse eu. — Não é grande coisa.
— Acho que um bolo de banana com recheio de chocolate e a melhor cobertura que eu já
provei é grande coisa, sim. Agradeça a seu irmão em Nova York por ensinar a receita, pelas
minhas papilas gustativas. Então, entre todas essas faculdades que o Alexei te mostrou, tem
alguma graduação em confecção de bolos?
Todos os folhetos de faculdades e discussões só confirmaram o que eu já sabia: faculdade
não é lugar para mim. Eu odeio a escola, simples assim. Eu a tolero porque preciso, mas
quando estou lá tudo em que consigo pensar é quando vai terminar o dia de aula, quando
vem o final de semana, quando começam as férias, quando minha vida vai começar de
novo. Prefiro estudar história da Europa indo para a Europa, ou religião oriental viajando
para a China e a Índia. Prefiro aprender sobre as grandes obras da literatura assistindo a
peças de Shakespeare no parque, e entender geometria e álgebra pulando de um precipício
triangular e determinando a distância até o solo pelo tamanho do ferimento e se será
necessário um curativo ou uma visita ao hospital para fazer raios X. Passar pelo meu último
ano do ensino médio — a parte de ir para a escola mesmo, não a de ficar com os amigos —
me faz sentir como uma corredora na minha marca para uma grande corrida, esperando o
disparo da pistola assinalando a formatura, para que eu possa correr para o futuro e para
algum lugar que não seja nem remotamente parecido com uma escola.
— Não — disse eu. — E você? Terminou de fazer suas inscrições?
Autumn disse:
— Sim, e posso até conseguir entrar em alguma realmente difícil.
— Onde?
O dedo indicador de Autumn fez sinal de segredo.
— Falar dá azar.
Vinte e Cinco
O único casamento a que assisti foi o de Sid e Nancy, quando eu tinha 5 anos. Eles se
casaram na prefeitura e a cerimônia foi breve, sem clima e cheia de coceira — Nancy me
fez usar um horrível vestido rosa de babados que me deu alergia no peito e nas costas. Eu
não sabia o que esperar do casamento do Wallace e da Delia, mas eu sabia que eles estavam
planejando uma megafesta: um casamento e uma festa de Ano-Novo numa única e longa
noite comemorativa. Achei que a noite seria uma merda — qualquer acontecimento que
requer tanto planejamento, dinheiro e drama é quase sempre uma decepção — mas eu ainda
estava ansiosa para ver como ia ser. Além do mais, como Sid e Nancy não estavam na
cidade, eu podia ficar fora quanto tempo eu quisesse, porque Alexei havia concordado de
ficar no quarto de hóspedes ao lado do quarto de Josh durante a noite, em troca do meu
código de silêncio em relação a certas indiscrições sexuais que ele admitiu ter acontecido
entre ele e sua antiga patroa, a Senhora Imperatriz Kari. Bem, ele também concordou
porque apesar de ser quase terrível, ele é basicamente um bom moço. Eu decidi esquecer o
caso Kari, porque Alexei diz que essa coisa de mulheres mais velhas não tem tanto a ver
com a idade, mas sim com o fato dele se interessar por mulheres experientes, o que, de
acordo com o Alexei, é mais fácil de ser encontrado em mulheres mais velhas. Que seja,
universitário.
Eu fiz o impensável e revirei o armário da Senhora Vogue para a ocasião. Não queria ser
vista nem morta usando qualquer peça de seu armário de revista de moda, mas o casamento
era um evento a rigor, e a Senhora Vogue tinha uma pequena seleção de vestidos passáveis
junto de seus horríveis vestidões de princesa. Nancy me disse para não usar preto ou branco
num casamento, para não ficar muito sombria e não competir com o vestido da noiva.
Então escolhi um de lamé dourado justinho tamanho tira de espagueti que ficava decotado
demais nos meus seios e curto nas pernas — especial mente em mim, porque minhas pernas
e torso são mais longos do que os da Nancy, então o vestido caía só um pouquinho abaixo
da minha bunda. Tentei usar um par dos sapatos Blahnik Choo ou coisa do gênero
pertencente à Senhora Vogue, mas fiquei me desequilibrando nos saltos finos. Como Nancy
anda nessas coisas parecendo não fazer esforço algum? Troquei os sapatos chiques por um
par de chinelinhos baixos dourados com flores vermelhas, que eu comprei numa loja de um
dólar ao lado do restaurante da família da Helen em Clement Street. Enrolei meus cabelos
pretos para atrás e coloquei dois palitinhos vermelhos da mesma loja de um dólar para
segurá-los, apliquei o batom escuro de vampira da Chanel e estava pronta para ir.
— Não — Alexei olhou para mim quando desci as escadas, onde ele esperava para me dar
carona até o hotel em Nob Hill, porque eu prometi à paranóica Nancy que eu não iria dirigir
no réveillon, o que ela considera um Halloween para motoristas bêbados. — Suba lá e
troque de roupa. Não vai usar isso.
Alexei não iria ficar terrível num smoking, imaginei, admirando seu corpo enfiado num
moletom para sua noite de réveillon só para rapazes vendo vídeos e jogando videogame
com o Josh. Tenho que arrumar uma mulher mais velha para ele, que não seja a Senhora
Imperatriz Kari!
Eu bati no peito de Alexei.
— Cala a boca — disse eu, saindo pela porta da frente em direção ao carro. Alexei
permaneceu parado na porta, como se esperasse que eu de fato fosse voltar ao quarto da
minha mãe para escolher outra roupa. — Sério, Alexei, pode me levar ou não, mas estou
morrendo de frio aqui fora, e se não sair agora e ligar o aquecedor do carro, vou chamar um
táxi — disse eu, parada lá fora, com os braços nus arrepiados pela neblina da noite e pela
brisa fria da baía.
Alexei, derrotado, pegou suas chaves na mesa de entrada e foi até o armário de casacos, deu
uma olhada e tirou algo dele. Quando veio para fora, colocou um longo xale de pashmina
preta nos meus ombros:
— Modéstia — disse ele abrindo a porta do carro para mim. — Aprenda sobre isso.
Na minha ansiedade de ir ao casamento, cheguei cedo demais ao hotel, então fiquei sozinha
por um tempo. Li uma droga de revista de celebridades na loja de suvenires, mas aquilo
parecia dar azar, então eu saí dali. Fiquei andando em volta da fonte no saguão até que
decidi matar o tempo que faltava dando uma volta no parque do outro lado da rua na frente
do hotel. Da rua no topo de Nob Hill eu podia ver a Bay Bridge e a Transamerica Pyramid,
mas o que eu notei principalmente foi uma figura familiar de pé embaixo de uma palmeira,
fumando um cigarro.
Wallace devia estar nervoso, porque ele não costuma fumar. Mas como ele estava bonito de
smoking, com seu longo cabelo castanho caindo em ondas, as mechas da frente atrás da
orelha, e seus belos e grandes olhos olhando para o além. Se eu fosse artista, eu o teria
mumificado assim, para preservá-lo pela eternidade. Wallace assobiou quando me viu.
— Uau! Com certeza você não se chama Cyd Charisse à toa! — Ele sorriu, mas a mão que
ele estendeu para mim, oferecendo o cigarro, estava tremendo um pouco, e não era do frio
da baía.
— Você está bem? — perguntei, sentindo minhas bochechas corarem. Recusei o cigarro.
— Estou bem — respondeu Wallace. — Está tudo bem. Tensão de última hora, sabe. Como
vai você? Pense só, daqui a alguns anos, esta cena poderá ser com você e meu irmão.
Nunca pensei que eu seria o tipo de casar, mas o comentário do Wallace me fez perceber
que (a) Wallace pensa em mim e no Siri como um casal, não como "apenas amigos" e (b)
estou ficando velha o bastante para o casamento não ser mais apenas uma vaga ideia, mas
algo que eu poderia realmente fazer se quisesse.
— Difícil — disse eu. — Casar é besteira.
Para mim, casar é algo que as pessoas solitárias ou grávidas fazem. É uma instituição legal,
acho, para o tipo certo de gente, mas não para quem eu me importo. Amores verdadeiros
não precisam de uma certidão oficial de casamento para validar suas vidas em conjunto.
— Você não está ajudando — disse Wallace com uma risada.
Que droga, eu e essa boca enorme.
— Não quis dizer, tipo, idiota como uma de perda de tempo idiota. Quero dizer, sou jovem
demais para pensar nisso. — Foi um comentário babaca, mas o melhor que consegui
inventar no momento. — Delia é uma ótima garota, e eu sei que vocês dois vão ser muito
felizes.
Wallace soltou uma pequena baforada.
— Felizes, sim. Se conseguirmos tirar Íris e Billy da nossa casa. Vou te dizer, quando meus
pais voltam para casa... Os vagabundos não têm respeito pelo tempo e dinheiro que leva
para manter uma casa. Os pais de hoje... o que se pode fazer? — Wallace jogou seu cigarro
no chão. — Melhor eu entrar. Vai começar o show. Vejo você daqui a pouco?
Wallace se inclinou em direção a meu rosto, como se fosse beijar minha bochecha, mas em
vez disso seus lábios tocaram os meus por um elétrico segundo. O beijo foi romântico, mas
ao mesmo tempo inocente, como se ele dissesse adeus para sua vida de solteiro e eu para
minha queda por ele. O fato de Wallace ser um perfeito nota dez na escala dos gostosões
fez com que eu deixasse de lado o bafo de cigarro. Depois que ele se afastou, eu tirei um
lenço da minha bolsa para limpar a mancha de batom da Chanel da boca dele. Então dei um
tapinha na bochecha dele. Ele piscou para mim antes de voltar para o hotel.
Encontrei Siri no saguão, perto da fonte, quando entrei, ele estava indicando onde era o
salão para um convidado que chegava. Se eu pensava que o Siri ficava melhor num
macacão de surfe é porque eu nunca o tinha visto de smoking.
— Isso é que é vestido — ele murmurou quando me viu. Foi bom eu não ter usado os
sapatos da Nancy, ou eu teria ficado bem mais alta do que ele mesmo, em vez de apenas
passar alguns centímetros.
— Achei que você fosse usar um smoking azul-claro com um cravo azul — disse eu. Tirei
uma poeirinha do paletó escuro dele, mas na verdade eu só queria senti-lo em sua roupa.
Arrumei a margarida em sua lapela.
— Delia não gostou da ideia. Imagine. Ela acha que um padrinho deve usar o mesmo estilo
de smoking do noivo Mulheres! Não têm imaginação... — Ele sorriu. Ele parecia e soava
como seu irmão: nervoso, mas feliz.
Peguei o braço dele e entramos no salão, onde ele me deixou para se juntar aos outros para
a cerimônia, e eu me sentei. Nunca fui uma garota que sonhava com sua festa de casamento
desde que brincava de Barbie, a atividade favorita de Ash, mas fiquei admirada com a
beleza do salão: rosas brancas e vermelhas por todos os lados, um quarteto de cordas no
canto e do mezanino uma impressionante vista do céu de São Francisco, com estrelas
visíveis brilhando no frio da noite.
Como o casamento da Nancy e do Sid, a cerimônia do Wallace da Delia foi breve e sem
graça, então no começo a coisa toda parecia trabalho demais para algo tão rápido. Delia,
que tinha ido naquelas lojas frescas, mas estava incrível em seu vestido de cetim branco
tomara-que-caia com continhas no corpete e um véu de alguns metros, deve ter passado
horas para se transformar em uma noiva. Seu cabelo vermelho crespo estava liso e preso
num penteado bem elegante, e não posso imaginar quanto tempo ela ficou sentada na
cadeira de maquiagem para tirar todas as sardas e ficar com aquela cara de garota de capa
de revista. Eu nunca aguentaria ficar sentada tanto tempo para ser embonecada para uma
cerimônia que demorou só uns vinte minutos. No entanto, não dava para negar a verdadeira
emoção da cerimônia. O pai da Delia caiu em prantos quando levantou o véu para dar a
mão da filha, o que iniciou uma corrente de lágrimas da família: a mãe da Delia começou a
chorar, em seguida Íris e Billy, depois a madrasta da Delia e seu padrasto, e, quando olhei
para os padrinhos, até o Siri estava enxugando uma lágrima da bochecha! No meio da
cerimônia, Siri subiu ao púlpito para ler um poema de amor. Olhou para mim enquanto
estava lendo, o que deixou meus olhos molhadinhos, e quando chegou a vez de Wallace e
Delia fazerem seus votos, os dois estavam em lágrimas. Rímel à prova d'água: grande
invenção. Não estou dizendo que tudo isso significa que o casamento de Wallace e Dee é
destinado a ser o mais feliz do mundo, mas até meu coração frio avesso a casamentos
aqueceu-se com o amor verdadeiro que dava para sentir entre Wallace e Delia, espalhandose
através do salão como pó de pirlimpimpim.
Mas deixe esse blablablá de amor verdadeiro de lado, vamos falar da FESTA. Uma banda
de suingue tocou até a meia-noite, e eu fiquei a maior parte do tempo na minha mesa
reservada, vendo as pessoas dançarem. Sem conhecer muitos dos duzentos e poucos
convidados, e encarada por todos os caras que acharam o vestido da Senhora Vogue mais
apetitoso em sua filhinha do que eu pretendia, fiquei mais do que feliz de desaparecer no
fundão, na primeira hora do evento. Além do mais, eu estava fugindo do meu "amiguinho"
Siri, que de qualquer forma parecia absorto em seu papel de padrinho, e eu estava decidida
que nós não íamos acabar com um beijo-clichê quando o relógio batesse a meia-noite do
Ano-Novo (00:08 ou 1:42 era negociável). A vista da minha mesa oferecia muita diversão.
Delia é uma dançarina profissional, como a maioria dos seus amigos, então a pista podia ser
uma festa de oficiais da Segunda Guerra lá das antigas, de tão bem que essas pessoas
dançavam os ritmos antigos.
Quando voltei para o meu lugar depois de um intervalo no banheiro, a mulher sentada ao
meu lado disse:
— Você acabou de perder, mas Siri fez um brinde adorável para o Wallace e a Delia. Você
é a Cyd Charisse, certo?
Eu assenti.
— Quem é você? — perguntei a ela. Ela se apresentou como Priscilla, meia-irmã da Delia,
do Alasca. Priscilla parecia tão desesperada por uma amiga nesse salão cheio de estranhos
quanto eu. Ela parecia ter quase 40 anos, e tinha cabelo cor de cenoura e enrolado como o
da Delia. Priscilla me contou que só decidiu vir ao casamento no último minuto, ela era
bem mais velha do que Delia e não tinham sido criadas na mesma casa. Ela gostava muito
da irmã, apesar de não conhecê-la muito bem e não vê-la há alguns anos, mas estava
hesitante em vir porque o único membro da família que ela conhecia no casamento era seu
pai, os outros parentes vinham do lado da mãe da Delia. Priscilla acabou vindo ao
casamento quando seu marido, que ficara em Anchorage, disse que ela precisava de um
tempo longe dos filhos, e a presenteou com a viagem para São Francisco, para ela e uma
amiga no Natal. Conforme a gente conversava, eu podia ver que Priscilla achava que teria
alguma paz e tranquilidade em sua aventura longe de casa, mas eu suspeitava que nesta
véspera de Ano-Novo ela preferia crianças despirocadas correndo loucas pela casa para não
ficar órfã nesse salão de baile. Eu provavelmente me sentiria igual a Priscilla se minha
meia-irmã lisBETH se casasse — isto é, se eu fosse ao menos convidada para o casamento
dela. Você nunca sabe se a lisBETH vai ficar envergonhada com a "pequena indiscrição do
papai".
O espumante que eu tomei durante o jantar fez efeito depois da meia-noite, quando a banda
foi substituída por um DJ.
— Venha, amiga abandonada — disse eu a Priscilla. Agarrei a mão dela para levá-la até a
pista de dança enquanto o DJ fazia o chão tremer com Dancing Queen, do Abba. Eu
literalmente tive de arrastar a Priscilla de sua cadeira, ela não queria mesmo ir. Mas uma
vez na pista, não havia como detê-la. Também não havia como deter CC, porque
aparentemente o DJ tinha o mesmo CD de cinco dólares da promoção da Amoeba Records
que praticamente gastou meu discman: Soul Train — The Dance Years: 1977. No final de
Got to Give it Up de Marvin Gaye, Priscilla e eu já havíamos enfiado nossos sapatos
embaixo da mesa, e fervemos na pista de dança por uma boa meia hora rindo e nos
balançando, celebrando. Priscilla me ensinou como dançar o I'm Your Boogie Man do K.C
& The Sunshine Band (melhor música de todos os tempos) e eu mostrei a ela que era
possível dançar a Macarena com Don't Leave me This Way da Thelma Houston. O pai
semicareca de cabelo laranja da Delia e da Priscilla dançou com a gente o Boogie Nights do
Heatwave e nos mostrou seus velhos passos de música lenta da era disco com If I Can't
Have You do filme Os Embalos de Sábado a Noite, e pegou Priscila para dar uns giros, só
os dois.
Nancy diz que sou punk, mas ela está errada. Uma garota punk se importa tanto com a
política na música quanto com o som. Ela sabe o que acontece com o mundo; é esnobe em
relação à música, e completamente dedicada à ideologia punk, que se foda todo o resto.
Quisera eu ser uma garota assim. Helen é assim. Não, meu segredo mais secreto é que eu
gosto de praticamente todo tipo de música, de punk à ópera e até soul, mas se você insistir
em me rotular, deve saber que no meu coração sou uma rainha da disco, uma garota dos
bons tempos.
Depois que a Priscilla dançou com seu pai, ela voltou à nossa mesa para comer bolo e
tomar mais champanhe enquanto víamos Wallace e Delia maravilharem o público com seus
passos de Embalos de Sábado à Noite. Wallace dispensou as aulas de dança de Arthur
Murray em preparação para este casamento e optou por uma aula de disco no centro de
velhinhos de Ocean Beach, e devo dizer que o cara parecia um bom John Travolta. Ele e
Delia estavam impressionantes na pista, um rei e uma rainha em toda a sua glória.
Por volta de uma e meia da manhã, o público estava diminuindo e a música também.
Priscilla e eu dançamos juntas Strawberry Letter 23, acompanhadas do Siri, cujas
obrigações oficiais de padrinho tinham acabado. Seu paletó já tinha sumido há muito
tempo, a gravata estava pendurada solta no pescoço, e sua camisa branca estava
desabotoada até metade de seu peito nu. Ele estava suado de tanto dançar também — mais
gostoso do que nunca. Nós três dançamos o Bump, especialidade da Priscilla, antes de ela
decidir encerrar a noite e voltar para seu quarto de hotel. Ela me abraçou extraforte e
sussurrou na minha orelha que eu transformei uma noite com a qual ela estava nervosa
numa noite divertida no fim das contas. Quando saiu, eu a vi trocar uma breve conversa e
abraços com Wallace e Delia.
— Bem — disse Siri. O globo espelhado pendurado sobre sua cabeça jogava reflexos de luz
em seu peito exposto. — Guardou a última dança para mim?
Os funcionários do hotel estavam ocupados guardando as cadeiras quando eu peguei a mão
suada que Siri estendeu para mim. O DJ estava de saída também, e sua última música foi
uma baladinha.
— Obrigado por cuidar da Priscilla — Siri disse. — Delia queria ter ficado mais tempo
com ela, mas ficou empenhada em toda essa coisa de noiva. Delia toda hora me dizia que
estava preocupada com a Priscilla não conhecer ninguém aqui, mas quando ela a viu
dançando com você sabia que não tinha de se preocupar com ela.
Sabe como uma única música pode mudar tudo? Foi assim que a balada romântica de
Aaliyah me afetou. Eu dancei com a cabeça no ombro do Siri, meu cérebro ainda tremendo
da pulsante batida disco de Thelma Houston onde ela expressava o quanto estava cheia de
amor e desejo e não podia ficar viva sem o amor de seu homem, mas meu coração
sintonizou-se com o som mais lento e triste de Aaliyah que o DJ estava tocando. Aquele
som me fez pensar sobre aquela bela anjinha, que morreu tão jovem sem viver o que
parecia ser uma grande vida pela frente.
Todo o champanhe não teve nada a ver com as palavras que eu disse para o Siri quando a
música acabou.
— Eu te amo — eu disse alto e claro, sem murmurar ou sussurrar pelo sentimento. "Apenas
amigos" era uma mentira que eu não podia mais viver. Eu não me importava que não
tivesse dito "eu te amo" para o Siri desde muito antes de termos terminado, há vários
meses, sem nem saber o que era amar o Siri, porque quando eu disse essas palavras para ele
antes, eu estava expressando um ideal que eu achei que não tinha nada a ver com a pessoa
em si. Não me importava que no momento presente, Siri... o Siri que ficou amigo dos meus
pais para que pudesse voltar à minha vida, o Siri que se assustou com a revelação sobre
Justin, mas que soube superar, o Siri que é sempre leal com seus pais e age sempre
pensando no melhor para eles, não para si — não repetisse aquelas palavras de volta para
mim. Eu só queria que ele soubesse.
— Idem — disse Siri.
Acho que não precisamos de uma grande conversa oficial sobre se devemos ou não voltar,
afinal.
Vinte e Seis
Saímos do hotel juntos e Siri nos levou para a cena original do crime, Land's End, onde ele
estacionou seu carro a primeira vez que ficamos. Aquela primeira vez. Eu me lembro que a
música do U2 tocava no rádio sintonizado na rádio universitária de Berkeley, e quando
transamos no banco traseiro do carro com a voz ultra-sexy do Bono, a experiência foi
quente e urgente, apaixonada. Siri e eu mal havíamos nos conhecido e eu tinha acabado de
passar pela coisa toda com o Justin e o colégio interno. Era como se nenhum de nós
esperasse que nossa relação fosse além de uma simples e extremamente satisfatória ficada,
e quando um relacionamento se desenvolveu nos meses que seguiram, ficamos ambos
surpresos, e despreparados.
Desta vez, a experiência foi... cuidadosa. A experiência que eu esperava com cabeças
batendo e roupas caindo não aconteceu. Nenhuma música tocava no rádio, e o recluso
cenário de Land's End embaixo das árvores onde o Siri estacionou seu carro estava em
silêncio exceto pelo sibilar do vento vindo da baía e o farfalhar das folhas. Barulhos que eu
nunca notei entre nós antes, como a falta de jeito para abrir a camisinha e o barulho de
borracha quando ela foi colocada, o ranger do banco traseiro, os estranhos grunhidos, sua
voz grave e profunda, perguntando se eu estava confortável, estava especialmente alta no
carro desta vez. A sensação de nossos corpos apertados um contra o outro era doce, terna,
mas a terra não se moveu com nossa ação, como se nós dois fôssemos educados demais
para perturbar essa paz, cuidadosos demais para adentrar profundamente no nosso novo
território.
Vai ficar bom de novo. Tenho certeza. Só temos de passar pela primeira vez, a segunda
primeira vez.
Depois disso, voltamos para sua casa em Ocean Beach, Iris e Billy e Wallace e Delia
optaram por passar a noite no hotel. Siri e eu trocamos de roupa — ele tirou o terno e vestiu
um moletom e uma camiseta, e eu retirei o vestido da Senhora Vogue e coloquei um pijama
com calças de flanela do Siri, que ficavam curtas demais nas minhas panturrilhas por causa
das minhas longas pernas e das pernas curtas dele. Levamos Aloha para passear no
quarteirão, de pijamas e chinelos, então voltamos para o quarto do Siri. Ele colocou uma
máscara de dormir nos meus olhos, não como um prelúdio para alguma brincadeira sexual
safada, mas para que ele pudesse, finalmente, mostrar a pintura que ele começou na minha
casa, e que agora estava de pé, coberta, de frente para sua cama desarrumada.
Siri não é o tipo de cara que solta um Eu te amo, razão principal pela qual "idem" é
reciclado em seu vocabulário quando ele tem de verbalizar um sentimento de retorno às
minhas palavras. Siri fala através de sua arte.
— Chamo isso de Ataque-relâmpago de CC — disse Siri quando removeu a máscara de
meus olhos. — Observe o rosto com cuidado; é o mesmo que você fez quando eu disse a
coisa errada aquele dia que você me contou sobre o Justin. — A pintura era de fato um
surto de Cyd Charisse: meu rosto, com esse louco rugido punk que era de alguma forma
sexy e convidativo ao mesmo tempo, colocado no rosto da Estátua da Liberdade. Senhora
Liberdade, a versão CC, não segurava sua tocha usual. Ela estava inclinada colocando um
par de meias de seda cor-de-rosa em suas longas pernas macias, com a Golden Gate em vez
da Ponte do Brooklyn no fundo, uma neblina pesada estilo São Francisco passando por ela.
Não sou especialista em arte, mas até eu sabia que era impressionante, não tendo nada a ver
comigo como inspiração e tudo a ver com a textura das pinceladas e camadas de cor que
iam muito mais fundo do que um simples retrato. Ataque-relâmpago de CC parecia com o
que ele dizia quando eu olhei para ele: sempre diferente. Você podia olhar para a pintura
um milhão de vezes e encontrar algo novo toda vez.
— Uau — foi tudo o que eu consegui dizer. Siri gosta que sua arte seja admirada em
silêncio, então eu sabia que não devia dizer mais nada.
Pegamos umas colchas e Aloha nos seguiu para o telhado, Siri ligou o aquecedor externo,
cobriu Aloha na caminha dele, e então Siri e eu deitamos na rede ao lado do
cachorro. Não tivemos outra rodada de amor — estávamos os dois cansados demais —
então nos enrolamos um no outro sob os cobertores e caímos no sono quase imediatamente,
enquanto o dia nascia no Pacífico.
Amor verdadeiro, com certeza.
Vinte e Sete
A Vovó B morreu em primeiro de janeiro. Acho que ela aguentou tanto para que pudesse
colocar um ano extra em sua lápide. Fiquei triste quando o papai Sid ligou para nos contar,
mas mais triste pela Nancy do que por mim. A morte geralmente é uma merda, certo, mas
quando ela chega especificamente para alguém que te criou deve ser difícil, então me senti
muito mal pela minha mãe. Não sabia o que eu deveria fazer para demonstrar luto por
alguém que eu nunca conheci e de quem não gostava especialmente, então comprei um patê
e bolachas Ritz no supermercado Safeway, que Josh e eu tentamos comer de jantar em
homenagem a Vovó B. Mas o patê e as bolachas eram bem ruins, então fomos até o Siri e
ele nos fez ovos mexidos e Pop Tarts, que era muito melhor. Não tinha de me preocupar se
ia parecer com uma neta fingindo tristeza no funeral, porque uma nevasca no meio-oeste
fechou o aeroporto local, por isso eu e Josh não pudemos voar para Minnesota, e também
tive um tempo extra com o Siri antes que Sid, Nancy e Ash voltassem para São Francisco.
Obrigada, Vovó B!
Eu sabia que Nancy ficaria triste por causa da vovó quando voltasse, claro, mas achei que
ela iria superar isso rapidinho quando eu contasse para ela a novidade de que não havia
preenchido nenhum formulário de faculdade porque eu estava ocupada demais passando as
férias com o meu NAMORADO. Nancy iria me agradecer depois por distraí-la de sua
tristeza e transformá-la em fúria.
Mas para provar que o inferno pode, sim, congelar, Nancy não se tornou uma assassina
quando joguei a bomba nela. Ela estava em casa havia alguns dias, mas ficou em seu
quarto, na cama, a maior parte do tempo. Ela disse que estava com gripe, mas tinha uma
caixa eternamente cheia de balas See's e um controle remoto na mão, trocando entre o
Canal Casa e Jardim e o de filmes clássicos ou para episódios intermináveis de pessoas
feias mudando de aparência. Desculpe, se você está realmente doente só quer sopa e
torradinhas, e seu cérebro mal consegue focar em reprises de Vila Sésamo. No quarto dia
em que Nancy estava em casa e não me acordou para o que teria sido uma tentativa
fracassada de me fazer ir à ioga com ela, fui para seu quarto, onde ela estava sentada na
cama, com uma tigela de cereais e um bule de chá que papai Sid tinha preparado em seu
colo. Ela parecia uma princesa-fada naqueles lençóis brancos engomadinhos, usando uma
camisola branca com seus olhos bem azuis e um lenço de seda branco prendendo seu
cabelo.
— Quer ir para a ioga? — perguntei para ela, segurando dois tapetinhos de ioga.
Nancy desviou o olhar da TV.
— Não estou a fim de ioga esses dias, querida. Mas obrigada. — O tom da sua voz estava
completamente morto. Ela voltou sua atenção para a TV.
Peguei o controle remoto da mão dela, desliguei a TV e vim com essa:
— Siri e eu voltamos e eu não preenchi nenhum formulário, porque a verdade é que eu não
quero ir para a faculdade.
Enquanto seus olhos não registraram nenhuma reação, ela suspirou do jeito clássico de
Nancy. Sua voz permaneceu monótona quando disse:
— Muito bem. Talvez com um namorado na cidade você não desapareça por aí. Vai ficar
em casa mais um ano com a gente. Talvez você faça algumas aulas na faculdade local. Isso
seria bom, certo, Sid? — Sid entrou no quarto e sentou-se na cama ao lado dela, deu um
tapinha na sua mão e um beijo na testa.
— Certo — disse ele. Um leve sorriso apareceu no rosto de Nancy e ela deu um rápido
beijo nos lábios do papai Sid.
Tosse. Eca! Tosse.
Desde que voltaram de Minnesota, Sid e Nancy entraram num percentual
perturbadoramente baixo de briguinhas de marido e mulher, e ela agora o toca o tempo
todo, segurando o braço dele, colocando a cabeça no ombro dele. E para um executivo
supostamente atolado de trabalho, o papai Sid não apenas estendeu suas férias de Natal (o
que ele nunca fez antes — nunca) para ficar com Nancy no funeral, mas também diminuiu
sua carga de trabalho para ficar mais em casa enquanto ela estava "doente". Talvez essa
seja a vingança da Vovó B por eu não ficar chorando por ela. A morte dela transformou
minha casa num estranho necrotério.
— Pode trazer açúcar para o meu chá? — Nancy pediu a Sid.
O papai Sid levantou da cama.
— Um pacote de adoçante está vindo neste instante — disse ele.
— Não — reclamou ela. — Açúcar de verdade. — O choque provocado pelo pedido da
Nancy fez minha cabeça girar 360 graus como a menina possuída de O Exorcista.
Depois que o papai Sid saiu do quarto, eu disse:
— Certo, algo está muito errado com você. O que é? Devo me preocupar?
Nancy deu um tapinha onde o papai Sid estivera sentado me indicando para chegar perto
dela.
— Não, você não deve se preocupar. Só preciso de um tempo. A dor demora um pouco
para ser processada.
— Não entendo — disse eu, tentando fazer uma voz doce (mesmo sem ter uma) para não
soar agressiva. — Você nem gostava da sua mãe.
— Mas era minha mãe, e eu a amava sim— Nancy sussurrou, e uma corrente de lágrimas
brotou de seus olhos. Droga, se não fosse pela bandeja em seu colo, eu podia ter chegado
perto dela e a abraçado ou algo terrível assim. Quando uma mãe está triste assim, é
apenas... doloroso. Nancy acrescentou: — Há tantas coisas não resolvidas, tantas coisas que
eu fui orgulhosa demais para dizer a ela, e agora me sinto tão vazia. Essa é a parte sobre a
qual nunca se fala num discurso de funeral, sobre o que Deus pode fazer para cobrir todo
esse vazio no coração e na alma e em cada parte de você depois que você perde um dos pais
e fica sozinha.
Um silêncio se fez entre nós, porque talvez Nancy estivesse perturbada por ter me contado
algo tão pessoal, e eu fiquei perturbada porque como era possível que ela se sentisse tão
vazia e sozinha quando tinha um marido e três filhos?
Nancy retirou a bandeja colocando-a no chão, se arrumou e disse:
— Os remédios para dormir estão fazendo efeito, então vou tirar um cochilo. Não dormi
nada esta noite. Pode, por favor, fechar a porta quando sair e dizer ao papai para não se
preocupar com o açúcar para o chá?
— Claro — disse eu. E dei um beijo na testa dela.
Vinte e Oito
A insônia da minha mãe evoluiu para o ponto em que ela estava tomando remédios para
dormir tarde da noite em vez de pela manhã, o que significa que ela caía no sono logo
depois das duas da madrugada, e ficava dormindo até que Ash e Josh pulassem em sua
cama cerca de sete da manhã. O novo horário de sono dela é o motivo pelo qual eu posso
sentir meu telefone vibrando, perto do meu coração, onde ele fica enquanto eu durmo,
aproximadamente às três da manhã. O celular vibrando é um sinal que um certo carro
verde-limão está descendo a rua e passando na frente da minha casa (carburador
barulhento) e é hora de eu sair da cama e escapulir de casa.
Então essa não é a velha Cyd Charisse dando uma fugidinha para aprontar por aí. A nova
fuga é só para não perturbar o novo horário de sono da minha mãe quando a fome do meio
da noite chama e eu posso passar um bom tempo com o Siri.
Eu podia sair pela porta da frente, mas não teria graça, além disso, digitar o código de
segurança para abrir a porta faz barulho, e eu não quero correr o risco de acordar todo
mundo. Então depois do sinal vibratório do Siri bater no meu coração, eu rastejo para fora
da janela do quarto e desço pela árvore até o quintal. Dele eu posso sair facilmente pelo
portão trancado da rua, exceto por uma pequena surpresa me esperando embaixo da árvore
desta vez. Certo, uma grande surpresa, como o Fernando, sentado numa cadeira, lendo uma
revista Hola com uma pequena lanterna.
— Buenas noches — diz Fernando.
DROGA!
— Não é o que você pensa — eu disse ao Fernando. — Só vamos para a loja de panquecas
24 horas em Lombard Street. Não quero acordar minha mãe. Você sabe que está difícil para
ela dormir. — Minha voz mostrou preocupação, mais ou menos genuína.
— Se é esse o caso — disse Fernando —, por que eu não vou com você?
— E por que não? — falei. Estou confiante assim com meu relacionamento com o Siri
desde que voltamos. Sei que posso trazer Fernando junto e Siri vai achar divertido em vez
de ficar assustado. Estou quase assustada em como as coisas estão boas entre mim e Siri.
Retomar um relacionamento não foi tão difícil afinal. Voltar foi difícil, mas uma vez de
volta, foi um navegar suave, como Nancy diria, tendo tomado vinho suficiente. Bem. Pelo
menos, na maior parte do tempo. Nancy está lidando bem com o fato de Siri e eu sermos
um casal oficial de novo, provavelmente porque não vou pirar desta vez se não estiver junto
dele 24 horas por dia, sete dias por semana. Tenho outros amigos agora, minha vida
seguindo, não sinto que vou sufocar se não estiver com o Siri a cada segundo. Mas agora
que ele e eu estamos de volta, não é também como se ele tivesse um passe de acesso total
para passar a noite na minha casa, e com a família dele em pé de guerra em Ocean Beach
— Wallace e Delia contra Iris e Billy — a casa dele não é o melhor lugar para ficar
ultimamente. Essa é a maior desvantagem de ser uma quase-adulta: você faz sexo seguro
com seu namorado, você está numa relação estável, todo mundo sabe o que você está
fazendo, mas você ainda precisa fazer escondido, mesmo que esteja fazendo do jeito certo!
As últimas vezes em que matei aula este semestre não foram por estar cansada da escola
(mesmo que eu esteja), mas porque às vezes é o único tempo em que eu posso ficar sozinha
com o Siri com privacidade.
Entretanto, os encontros no meio da noite não são para pegação. São estritamente para as
antigas e premiadas panquecas e para sair com nossos amigos antes que a escola acabe e
todos sigamos caminhos diferentes. Então mesmo que Fernando tenha entrado no carro
comigo e com Siri, ele ainda ficou surpreso quando paramos no canto de sempre, onde
Helen, seu novo namorado e Autumn estavam esperando por nós. Você sabe que Fernando
achou que eu estava mentindo para ele quando eu disse Panquecas e pensou que eu estava
blefando em vez de estar indo mesmo fazer uma festa de carboidratos na madrugada.
— Yo, Ferdie, firmeza? Toca aqui! — disse Helen quando viu Fernando. Ele de fato deu
um cumprimento de surfista pra ela, o que me deixou um tanto enciumada, porque ele
nunca faz isso comigo, a filha do patrão. Helen disse para sua nova paixão: — Chega pra lá,
Eamon. Dê espaço pro meu brother.
Helen finalmente superou o caso com Arran e está com esse carinha novo, que pode durar.
Pelo menos ele é doce, e acredita em relacionamentos tanto quanto em reciprocidade.
Tecnicamente, ele não é de segunda mão, porque eu não beijei o Eamon naquela noite em
que conheci a Helen e fomos para o pub na Clement Street para paquerar os jogadores
irlandeses de futebol. Ela o redescobriu na véspera de Ano-Novo, naquele pub, o mesmo
onde ninguém se importa de pedir a identidade dela. Depois de Eamon reconhecer Helen e
dizer:
— Ei, você e sua amiga já não deram o bolo em mim e no meu amigo? — Os dois
passaram a noite bebendo Guinness e discutindo seu desprezo por pop punk, astros do
futebol brasileiro e a família real britânica. Imagine um cara com cabelo vermelho
espetado, olhos verdes e dentes tortos, pele pálida de morto; acrescenta aí um ininteligível
sotaque irlandês junto de panturrilhas duras como pedra de jogador de futebol e um leve,
não totalmente desagradável, odor de pós-jogo e você vai entender por que Helen ficou
instantaneamente caidinha pelo Eamon. Bum! Helen está de volta às suas raízes hétero,
assim como as raízes negras finalmente cobriram a tinta cobre que havia tingido sua cabeça
quase careca, que agora já estava com o cabelo mais comprido formando uma cabeleira
fantástica. Helen é uma gata!
Siri sentou-se ao lado da Autumn, com Fernando no outro lado, e o resto do grupo
proclamando que Siri e eu não podíamos sentar mais um do lado do outro porque
aparentemente tivemos alguns problemas com demonstrações públicas de afeto desde que
voltamos. É para isso que existem os banheiros de qualquer forma. Eu me juntei a Helen e
Eamon em seu banco.
Autumn me passou um monte de panfletos.
— Pedi esses pra você. Já pensou sobre a escola de culinária? — ela me perguntou.
— Não — disse eu. A parte de culinária, talvez. A parte de escola, eca! Passei para ela um
saco de contas que a Ash e eu pegamos para Autumn, quando estávamos fazendo compras
em Filmore. Autumn está sem dreads e pondo tererê no seu cabelo curto, então Ash e eu
escolhemos várias continhas transparentes que não podemos esperar para ver emoldurando
o rosto dela. Sério, suspeito que a única razão para ela usar esse novo penteado é porque ela
está a fim de uma garçonete da lanchonete de panquecas cuja irmã é dona do salão de
cabeleireiro.
— Como é ser velho? — perguntou Helen ao Fernando.
Todos os nossos garfos pararam na metade do caminho com a pergunta dela, não pela falta
de educação — nenhuma panqueca deve ficar esperando por causa disso — mas por causa
da importância fundamental da questão, uma que nosso grupo andou se perguntando com
certa regularidade.
Fernando engoliu sua panqueca enchendo a boca, deixou escapar um pequeno arroto e
disse:
— Não sei. Me pergunte quando eu for velho.
Bem, nós tínhamos várias outras perguntas, que é o motivo pelo qual nossa reunião se
transformou num interrogatório de uma hora: como é a Nicarágua? Quem são os
sandinistas, afinal? Netos são tão divertidos e bonitinhos mesmo, ou são superestimados
como espécie? Se você fosse para o seriado Survivor, você venceria mentindo, trapaceando
e roubando ou estritamente usando seu sex appeal? Quais são suas intenções com a Pão-
Doce?
Olha, no final daquela refeição, posso assegurar que Fernando nunca mais vai se preocupar
comigo fugindo para comer. Ele iria me empurrar pela porta e implorar para eu não levá-lo
junto.
Quando voltamos para casa, Siri e Fernando saíram do carro e conversaram em particular.
Eu ainda estava no carro, esperando pelo último beijo do meu namorado, quando Siri
entrou e saiu dirigindo antes que eu pudesse sair. Ele estacionou o carro alguns quarteirões
a frente, na Lyon Street, na frente do Presídio.
— O que foi? — perguntei.
Siri inclinou-se para perto do meu rosto.
— Fernando e eu tivemos uma conversa de homem para homem sobre limites. Ele disse
que, contanto que você estivesse em casa em uma hora, ele iria ficar frio. Mas só com a
condição de você contar a seus pais que está saindo para comer de madrugada. Ele disse
que eles não vão se importar, do que eles não gostam é de segredinhos.
Uuuh, segredinhos, essa palavra saindo da boca do meu namorado. TÃO EXCITANTE,
puxei o rosto do Siri para perto do meu e rezei em silêncio agradecendo ao Fernando pela
hora extra.
Vinte e Nove
A boa-nova: DANNY ESTÁ SE MUDANDO PARA SÃO FRANCISCO! A notícia ruim:
ele é um cachorro traidor que deixou seu namorado, Aaron, por outro homem. O novo
namorado do Danny é um advogado (já o detesto) que trabalha na Cidade, e Danny o
conheceu numa boate em Nova York onde esse advogado foi uma vez a negócios, e onde
Danny tinha ido para espairecer pela falência do negócio dele com o Aaron, o Idiotas do
Village. Danny e Aaron perderam o contrato de aluguel do café e não puderam pagar um
novo espaço, então fecharam, e não muito depois disso Danny conheceu esse novo
advogado, encerrando seu relacionamento com o Aaron.
Amor verdadeiro pode ser uma mentira.
Para um cachorro traidor, Danny com certeza pareceu bem animadinho quando eu o peguei
no aeroporto. Estava igualzinho ao que eu me lembrava — como eu, como o papai Frank,
só que mais baixo e mais doce, com uma expressão aberta que brilhava de felicidade. No
setor de desembarque de passageiros no aeroporto, ele pulou no meu carro e beijou minha
bochecha.
— É tão bom estar na Califórnia! — disse ele. — Acabei de escapar da quarta tempestade
de neve este mês. Acho que se eu visse mais um floquinho de neve iria pirar. Ah,
Califórnia, sol e CC. Que sorte eu tenho! Essa troca de cenário é só o que eu precisava. Tô
amando!
Beijei sua bochecha de volta, mas então tive de dizer:
— Não fique tão alegrinho, estou bem brava com você.
Danny sorriu ainda mais. Que raiva!
— Quem está parecendo bem alegrinha também? — ele provocou. Danny puxou uma
mecha do meu cabelo. — Roxo? — ele perguntou. Aparentemente, quando eu disse que
nunca faria arte no meu corpo como uma forma de expressão, eu menti. Siri e eu estávamos
na rede em seu telhado num momento raro quando tínhamos a casa toda só pra gente. Ele
estava me explicando sobre desinteria, que ele teve em Papua-Nova Guiné, enquanto
ouvíamos um CD do Prince. Então Siri e eu tivemos um... vamos chamar isso de um
interlúdio de amor (te disse que ia ficar bom de novo) enquanto o cara de Purple Rain
cantava Erotic City, um interlúdio tão inspirado que não tive escolha a não ser ir para
Haight Street e fazer mechas violeta no meu longo cabelo preto. Algumas meninas podem
fazer tatuagens com o nome do namorado — Johnny Angel ou Muffin Tesão ou o que seja
— mas eu prefiro uma maneira mais passageira de expressar meu amor por um homem.
— Não mude de assunto — eu disse ao Danny. — Qual é o nome dele, afinal?
— Terry.
— Isso é nome de menina.
Danny estalou a língua.
— O Terry não tem nada de menina, posso dizer. Nunca saí com um cara tão bonito na
minha vida. Espere até conhecê-lo! — Danny estalando a língua? Desde quando ele se
tornou um típico garoto do Chelsea, o bairro descolado? Danny é o homossexual digno que
usa camisetas amarrotadas e jeans de dez anos atrás, tem um cabelo preto bagunçado e
olhos castanhos com sobrancelhas escuras tão grandes que praticamente são uma
monocelha, e tem também seu amor pela Pamela Anderson (não me pergunte por quê, não
tenho ideia). Danny é o tipo de cara que se você não soubesse que era gay, acharia que é
um marceneiro, no mínimo, não um amigo confirmado da Judy Garland. Eu gosto de
garotos do Chelsea, aprecio seus belos corpos e noção de moda, e eu também adoro o
seriado Golden Girls, mas o Danny não é assim.
— Bem, onde quer que eu te deixe? — perguntei a ele. — Na casa de Terry, em Oakland,
ou numa clínica para maus namorados que deixam seus amores verdadeiros quando a coisa
aperta para ficar com algum He-Man superficial que provavelmente depila o peito e faz
limpeza de pele com mais frequência do que minha mãe?
Danny desligou o rádio do carro e se virou para mim.
— Escute, CC, sei que é difícil. Se você não consegue aceitar, deve saber que a lisBETH
não fala comigo desde que eu e o Aaron terminamos. Ela está ocupada demais ajudando-o a
encontrar um trabalho e um novo apartamento, como se o Aaron fosse irmão dela, não eu.
Papai enlouqueceu. Nunca levou numa boa essa coisa gay, de qualquer forma, apesar de
sempre vir com essa história de que tudo bem, mas pelo menos com o Aaron ele sabia o
que esperar de mim. Aaron é uma ótima pessoa, não pense que não sei disso. Tivemos
ótimos anos juntos, mas nos tornamos mais amigos do que namorados. Aaron e eu
terminamos muito antes do Terry aparecer. A chama apagou. Então agora estou
desempregado e entrando nesse novo território. Não sei o que vou fazer da minha vida
agora que o Idiotas do Village terminou, e estou bastante inseguro com o Terry. Com
certeza vou surtar. Preciso mesmo de apoio. Me ajude agora, tá bem, CC?
Falso garotinho de Chelsea ou não, ele ainda é o Danny, o meio-irmão que fez meu verão
em Manhattan valer a pena. A única pessoa inteligente o bastante e que se importa o
suficiente para me dar um apelido como CC.
— Falou — disse eu.
— Então, quando eu vou conhecer o famoso Siri? — Danny perguntou.
— Ele está em East Bay procurando um novo imóvel pro Java the Hut com seu irmão esta
tarde, mas quer que a gente se encontre amanhã. Talvez possamos tomar um café-da-manhã
juntos, ou algo assim.
Danny riu.
— Conheço seus truques. Não vou deixar que você falte à escola por minha causa. Vou
falar com o Terry, e talvez nos encontremos todos este final de semana.
— Você está indo morar permanentemente com o Terry?
— Não. Vamos ver como fica, sem compromissos por enquanto. Precisava sair de Nova
York um pouco, e que lugar melhor para escapar do que a Bay Area? Mal tive tempo para
ficar com você no verão passado, e seria ótimo ver o tio Sid de novo. Terry tem uma casa
imensa com uma grande cozinha, acho que posso me manter ocupado enquanto ele trabalha
durante o dia.
Como Danny é relativamente uma nova descoberta em minha vida, esqueci que outras
pessoas além de mim, Josh e Ash, têm uma ligação com o "tio Sid". O papai Sid foi uma
espécie de padrinho para lisBETH e Danny quando eram crianças, porque ele e o pai
biológico Frank eram velhos colegas de quarto na faculdade e melhores amigos, até que
Nancy se meteu entre eles. Quando eu olhei Danny pelo canto do olho, me senti orgulhosa
de chamá-lo de irmão, mal podia esperar para apresentá-lo ao Siri e aos meus amigos —
Helen, Autumn, Pão-Doce — mas não posso dizer que levo numa boa essa coisa do Danny
encontrar o "tio Sid" durante sua estada em São Francisco.
Mais estranho do que pensar no Danny interagindo com meus pais seria o Danny
interagindo com o período de luto da Nancy. A Senhora Vogue não vai à ioga há um mês e
passa a maior parte do tempo jogada pelos cantos usando o velho roupão do hotel Ritz-
Carlton do papai Sid. A Neiman-Marcus pode falir pelo tempo que Nancy não faz compras
lá. Enquanto o talento dela na cozinha não melhora, ela está aperfeiçoando a arte de
preparar misturas prontas para doces. Não temos mais que esconder doces na casa porque a
própria Nancy os está fazendo e comendo. Acho difícil imaginar como a química Danny-
Nancy vai funcionar, especialmente porque ambos estão em estranhos períodos de suas
vidas.
A boa notícia é que Danny chegou a São Francisco e planeja ficar um tempo, mas a
novidade inquietante era que ter o Danny no meu mundo na Costa Oeste poderia significar
que a separação entre as duas famílias poderia não durar mais. A presença de Danny pode
fazer o vórtice que separa velhos amigos e eu da minha outra família e eles de mim fechar
permanentemente, de uma forma que meu curto verão em Manhattan nunca fez.
Trinta
O amor verdadeiro pode estar na moda de novo.
O aniversário de 18 anos da Helen passou, mas isso não significa que ela recebeu permissão
legal para levar Eamon ao seu quarto. Sinto sua dor, por isso estou fazendo o que posso
para ajudá-la. De início, comecei a ficar na cozinha do restaurante chinês da mãe da Helen
em Clement Street, porque meu estágio acabou. Na verdade, eu sentia falta do ambiente de
um restaurante, e também estava procurando uma forma de descontar na Helen por ela
chamar a Senhora Vogue de "a mãe mais legal de todos os tempos". A mãe da Helen se
recusa a me contratar para um cargo efetivo — ela disse que se a própria filha não trabalha
no restaurante, eu também não posso — mas ela tem me ensinado como fazer bolinhos bem
gostosos em troca de uma ajuda no começo da noite descascando e picando vegetais. A mãe
da Helen também quer que eu a encoraje a se livrar de suas novas sobrancelhas tigradas de
cobre, e ela vai me ensinar a fazer talharim se eu convencer a Helen que meninas de
verdade não desenham histórias em quadrinhos sobre velhos imundos com nomes como
Caçador de Bolas.
Os pasteizinhos que a mãe da Helen faz são tão bons que eu fiz uma música romântica para
eles — "Oh, pasteizinhos, vocês são tão gostosos e suculentos, são recheadinhos, adoro
esse gostinho de gengibre..." — A música ainda não passou disso, mas estou trabalhando
numa nova homenagem internacional em forma de canção em celebração à nova delícia do
meu repertório — bolinhos de siri no vapor —, inspirada nas pequenas lições de idioma que
o pessoal da cozinha me deu: "hen hao chi de hsia long bao, delicioso, gostoso bolinho, hsia
ren hsia ren hsia ren, siri, siri, siri."
Eu estava cantando minha música do pastel enquanto recheava um monte de gyozas com
carne quando levantei o olhar para ver Helen acenando para mim da janelinha na porta de
trás do apartamento de sua família, porta que leva ao segundo andar, onde fica o
apartamento, e que abre para a cozinha do restaurante. Ela deve ter pulado dúzias de cercas
dos fundos para chegar naquela entrada sem passar pela frente. Vi o cabelo de fogo
arrepiado do Eamon atrás da cabeça dela. Entendi. Derrubei uma tigela de recheio de
vegetais no chão, fazendo a mãe da Helen, que é louca por limpeza, se juntar a mim
imediatamente para limpar a bagunça. Olhei para cima por baixo da mesa para ver Helen
levando Eamon pela mão, subindo as escadas.
— Obrigada — ela disse entre os lábios para mim. Ah, chu lian, amor jovem.
A escapadinha da Helen me lembrava que minha hora no restaurante havia terminado por
hoje. Siri iria me pegar de carro, pois não vou com o meu para Clement Street por que lá
não tem estacionamento. Vamos para um restaurante bacana em East Bay, encontrar Danny
e Terry. É a primeira vez que Siri vai encontrar Danny, e que vou conhecer Terry, como um
encontro duplo. Quando eu saí, a neblina de Richmond espalhou uma névoa fria pelo meu
rosto, enquanto eu procurava o carro do Siri em Clement Street. Eu estava especialmente
empolgada porque ele não aparecia na escola havia dois dias e eu estava morrendo de
saudade de vê-lo ao vivo e em cores. Dois dias inteiros sem o Siri equivaliam a uma
abstinência de drogas de verdade. Pensei: sou a garota mais sortuda do mundo, vivo na
cidade mais bacana com neblina, tenho um namorado fodão, e vamos encontrar meu novo
melhor meio-irmão e seu namorado para jantar, coisa bem chique de adulto. A vida é boa.
Seria razoável esperar alguma tragédia nesse ponto, só por ironia. Lá estava eu, parada na
minha rua favorita de São Francisco, a vida é bela, estou apaixonaaaaaaaaaaaada, blablablá,
e então, você sabe, o carro do Siri desce a Clement Street e bate num caminhão de entrega
escondido pela neblina e parado em fila dupla. A tragédia indica: Siri ou está morto ou em
coma, e eu passo o resto da minha vida acreditando que foi minha culpa por acreditar na
grande artimanha do universo para conferir o amor verdadeiro e uma vida boa para mim
depois de alguns anos bem fodida.
A realidade não foi tão ruim assim, mas também não foi tão boa. Quando cheguei ao carro
do Siri, ele não me beijou, e anunciou:
— Quando chegarmos a Oakland, só posso entrar para ver seu irmão um minutinho. Tenho
de ir para Berkeley procurar um quarto na casa de um cara aí.
Eu não pude começar uma discussão sobre como ele ousava fugir do jantar com Danny e
Terry, se tantas vezes eu havia sentado para jantar nos últimos tempos com a Família
Briguenta, isso se chama ser uma namorada leal e conhecer pessoas importantes na vida de
seu parceiro, porque primeiro eu tinha de saber:
— O que quer dizer com "um quarto na casa de um cara"?
— Vou ter de mudar para East Bay por um tempo. Agora que Dee está grávida, ela quer
que Iris e Billy saiam do quarto que estão ocupando para que possam começar a reformá-lo
para torná-lo um quarto de bebê. Mas Iris e Billy, você sabe... — Aqui o Siri murmurou
baixo — eles, tipo, não têm dinheiro para um novo lugar. Então vão ficar no meu quarto
por um tempo. Eles ficaram quebrados depois de passar uns tempos no norte com seus
amigos e como eu vou começar a ajudar na nova loja em East Bay, vou apenas morar lá por
um tempinho.
Por onde eu deveria começar com essa bomba?
— Como você vai conseguir viver e trabalhar em East Bay e ir para a escola na cidade? —
Isso sem levar em conta o tempo para ficar com a namorada; quando ele planeja encaixar
isso em sua nova rotina? O que, e quem, eram suas prioridades, afinal?
Siri ficou mexendo na sintonia do rádio antes de parar na estação de notícias com o repórter
do trânsito. Ele está obcecado em ouvir sobre o trânsito a cada dez minutos. Para chateá-lo,
desliguei o rádio assim que começaram a falar.
— Por que fez isso? — resmungou ele.
— Não respondeu minha pergunta.
Estávamos presos num engarrafamento na entrada da rodovia em direção a Bay Bridge,
então não poderia escapar do meu interrogatório.
— Se você quer saber, estou largando. Perdi minha bolsa de estudos, e Wallace não quer
pagar a mensalidade se repetir ou se eu não apareço porque não consigo acompanhar, não
importa o que eu faça. A escola iria me expulsar de qualquer forma. Então eu larguei esta
semana. Foi, tipo, uma decisão unânime.
Certamente não foi unânime porque eu nunca fui consultada, mas não fui eu a garota para
quem ele pintou Ataque-relâmpago de CC, aquela para cujo celular ele liga toda noite para
cantar raps de amor antes de ela dormir? E quanto àqueles outros ditos tão importantes
chamados pais?
— Iris e Billy concordaram com isso? — perguntei.
— Claro — Ele deu de ombros. — Levaram numa boa. Eles sabem que vou conseguir meu
diploma alguma hora.
Aumentei de novo o volume do rádio e mudei a estação para a de música pop, que estava
tocando o mais recente sucesso açucarado de alguma princesinha para vomitar. Siri me
olhou feio e mudou para a estação universitária de música alternativa, tocando uma música
entediante do Radiohead. Devolvi a cara feia para ele e voltei para a estação pop. Às vezes
o Siri é sério demais. Às vezes eu só quero escutar música pop ruim e não me importar se é
patético.
— QUAL É SEU PROBLEMA? — O Artista Antigamente Conhecido como Não Corta
meu Barato gritou para mim. — Odeio essa música de merda. Por que isso? Não me diga
que está brava porque eu saí da escola. Você odeia escola. Por que se importa?
— Eu me importo o suficiente para saber que preciso terminar — disse eu. Eu também me
importava o suficiente para saber que pais que levavam isso "numa boa" não eram muito
legais. Certamente eu me importo o suficiente para saber que ele deveria ter conversado
sobre tudo isso muito, muito antes. Estávamos dormindo juntos, falando sobre nossos
sonhos juntos, acreditando que tínhamos um futuro juntos, por meses, e essa era a primeira
vez que eu ouvia sobre tudo isso? Agora sinto que todo o tempo que passamos juntos desde
que nos tornamos um casal novamente foi uma mentira, porque ele ficou escondendo uma
parte crucial dele o tempo todo, e eu o deixei fazer isso, querendo me envolver no brilho do
amor verdadeiro.
Deixamos na estação de hip-hop e ficamos em silêncio o restante do caminho até East Bay.
Quando chegamos a Pedmont Avenue em Oakland, Siri desacelerou o carro para procurar
um lugar para parar quando chegamos perto do restaurante.
— Só posso entrar por um segundo para encontrar seu irmão. Tenho de ir para Berkeley. —
O carro não tinha parado totalmente, mas eu abri a porta e saí.
— Não precisa — eu disse. Bati a porta do passageiro atrás de mim. O carro parou
completamente, como se hesitasse em como proceder, então fez um retorno não permitido e
desceu a toda a Piedmont Avenue na direção oposta.
Danny estava esperando por mim do lado de fora do restaurante.
— Terry está pegando uma mesa. Onde está o Siri? Estacionando? Mal posso esperar para
finalmente conhecê-lo.
— Ele não vem — murmurei. — Nem quero falar sobre isso. — Senti-me desconfortável
no abraço do Danny, querendo ir para a casa, para a cama, jogar as cobertas na minha cara.
— Ah — Danny disse na minha orelha e soltando o abraço. — O evasivo Siri permanece
evasivo.
Meu humor terrível não ajudava, mas não foi por isso que detestei o Terry. Como o
esperado, Terry era um He-Man superficial e vaidoso, só que pior — é casado com seu
trabalho em vez de com seu visual. E é velho, tipo, pelo menos 40 anos, apesar de seu
bronzeado artificial, seu cabelo louro e corpo de corredor darem a ele a aparência de um
homem muito mais jovem. Como eu podia conhecê-lo, tentar gostar dele, se ele atendia as
chamadas de seu escritório no celular a cada dois minutos? Danny me explicou enquanto
comíamos nossas entradas, quando Terry pediu licença e ficou longe uns bons 15 minutos
numa ligação, que Terry é advogado, sócio num grande escritório de advocacia de São
Francisco, e estava no processo de fechar um negócio bem importante. Eu não podia
imaginar o ex do Danny, Aaron, sequer com um celular na mão, muito menos usando-o
durante um jantar incrível que um famoso chef da Bay Area preparou. Quero dizer,
demonstre um mínimo de respeito...
— Estou entediado — Danny sussurrou na metade de seu prato, um fabuloso filé feito à
perfeição. Terry voltou ao telefone, seu salmão intocado na mesa.
— Entediado com Terry? — perguntei, com esperanças. Não levou muito tempo.
— Você bem que queria! — disse Danny. — Não, a parte do Terry, quando eu consigo vêlo,
é ótimo. E eu vi seu olhar para o telefone da última vez que tocou, e é bom que os
reflexos dele sejam mais rápidos do que os seus, porque eu sei o que você planejava fazer
com aquele telefone. — Danny olhou em direção à moita do lado de fora da janela aberta
atrás da nossa mesa. Meu irmão é mesmo vidente. — Não, minha vida está um tédio. O
subúrbio está me matando. Odeio depender de um carro, e tenho de usar o carro do Terry
para sair durante o dia porque tudo é tão longe, e sempre tem trânsito. E é tão silencioso de
noite nessa casa no morro. Sou de Nova York. Preciso de energia e barulho, metrôs e táxis,
poeira e fuligem, diversidade. Estou até sentindo falta da neve e do frio, frio de verdade,
não esse frio falso da Califórnia! Todo dia o clima nas colinas de Oakland é sempre o
mesmo: perfeito. Todo mundo parece igual: perfeito. É entediante. Tédio, tédio, tédio.
Talvez meu irmão, não o Siri, seja minha alma gêmea.
Terry voltou à mesa, mas eu o peguei olhando as coxas do garçom quando ele vinha encher
a taça de vinho na mesa ao lado. Na verdade, Terry ainda não tinha me olhado nos olhos,
porque no pouco tempo que passara na minha presença, seus olhos passeavam pelo salão,
como se estivesse procurando alguém melhor para paquerar. Ele deve ser de L.A. Terry se
virou para mim.
— Então, mocinha — disse ele, como se não tivesse passado a maior parte do jantar longe
da nossa mesa, portanto, na minha opinião, privado de seu direito de voltar à conversa. —
Faculdade está nos seus planos?
Eu quase cuspi a água que estava bebendo, porque foi então que me ocorreu: Terry era
igualzinho ao nosso pai biológico Frank! Essas eram quase as palavras exatas que o Frank
usou no verão passado num dia que ele passou algum tempo comigo e fomos passear no
Central Park juntos. Como Frank, Terry era bem bonito, mas com um olhar sempre
vagando, sempre fechando negócios e workaholic, provavelmente incapaz de um
relacionamento estável. Não era coincidência o fato de um cara mais velho e bem-sucedido
como o Terry vivesse numa casa grande sozinho na colina. Pobre Danny e seu problema
edipiano ou o que seja! Por favor, faça essa relação horrível terminar logo, rezei, antes que
as contas do Danny na terapia sejam mais altas do que as dívidas deixadas pelo Idiotas do
Village.
Antes que eu pudesse responder à pergunta do Terry, seu celular tocou. De novo. Desta vez
meus reflexos foram mais rápidos e eu peguei o telefone do Terry da mesa antes que ele o
pegasse. Joguei o telefone pela janela, nos arbustos.
Homens. Às vezes eles precisam de uma lição.
Trinta e Um
A conexão Pão-Doce-Fernando-papai-Sid deve estar a toda, porque eu fui chamada ao
escritório do papai Sid para uma conversa. Não contei aos meus pais sobre o Siri sair da
escola, não mencionei nossa briga ou que o Siri e eu não estamos mais nos falando, mas
meus pais devem ter alguma noção de que algo aconteceu.
O papai Sid fechou a porta do escritório e começou a conversa com:
— Então, fiquei sabendo que nosso amigo Siri não está mais matriculado na escola. — A
pintura Ataque-relâmpago de CC do nosso amigo Siri está pendurada atrás da mesa do
papai Sid, comprada por uma boa soma no leilão de caridade para o hospital. Nancy estava
sentada ao lado do papai Sid no sofá de couro, com a mão pressionada na dele. Esses dois
estão ficando ridículos. Tenho de resistir à vontade de vomitar toda vez que eles se tocam
assim quando estou por perto. GENTE: tem crianças na sala. Contenham-se!
— E daí? — disse eu. Ele não é filho deles, o que eles têm com isso?
— Bem, estou horrorizada. — Nancy disse.
Bom, mas não pedi sua opinião.
— Mas não somos pais deles — papai Sid continuou —, então não podemos dizer nada
sobre a decisão dele. Apenas. estamos preocupados porque somos seus pais e pensamos que
agora é um bom momento para você pensar nas suas intenções.
— Não vou largar ou repetir! — disse eu, em defesa. Já estava cheia dessa história do Siri.
Temos de ter essa conversa de "ter de fazer alguma coisa" neste momento?
— Sabemos disso. — Nancy interrompeu. — Mas estamos preocupados com você deixar
de lado. — Olhei para a Senhora Liberdade CC na pintura, colocando as meias de seda nas
pernas, e de repente eu a vi como um peixe tirado do rio Hudson e sem fôlego fora d'água,
jogada num pedaço de jornal e vendida no mercado de peixe, manchete: Deixada de lado!
Para os pais, deixada de lado é só outro termo para falhado.
— O que é preciso para vocês entenderem hein? — bufei. — Estou pertinho de me formar e
tenho um boletim bem respeitável este ano. Tenham um pouquinho de confiança em mim,
que tal? E se querem mesmo saber, como vocês reclamam tanto, eu mesma acho que o Siri
fez uma burrada. Acho que ele vai acordar daqui a alguns anos e todos os amigos dele terão
seguido em frente e ele vai se sentir para trás e lamentar a decisão que tomou, bastante.
Mas sou só a namorada dele e agora nem isso, e não tive oportunidade de influenciar na
decisão. Então fiquem felizes. Eu teria dito para ele não fazer isso. E Siri e eu nem estamos
conversando agora por causa da forma como ele lidou com a coisa toda.
— Oh — Sid e Nancy exclamaram juntos. Era difícil dizer se estavam surpresos ou felizes,
talvez fosse algo entre os dois.
O papai Sid disse, então:
— Minha secretária tentou encontrá-lo para passar um contato que arrumei para ele, mas
ninguém conseguiu encontrá-lo. — É verdade. O evasivo Siri não esteve na minha casa,
nem no Java the Hut em Ocean Beach ou com a Pão-Doce e deve ter ficado com amnésia
em relação ao número do meu celular. Não tenho ideia de onde ele anda desde nossa briga.
— Não posso fechar os olhos para a decisão dele, mas acho que seria interessante ele saber
que há um dono de galeria aqui na cidade que estava no evento do hospital e que está
interessado em ver mais do trabalho do Siri. Pode ser uma oportunidade tremenda para ele.
— Esqueça — disse eu. Isso eu sei bem. Fale com ele sobre uma oportunidade de
transformar arte em dinheiro, não apenas uma ação de caridade para cair nas graças dos
meus pais, e ele vai desaparecer mais rápido do que você pode dizer "na boa".
Nancy apontou para uma pilha de folhetos na mesa.
— Sabemos bem das suas intenções sobre a faculdade e apesar de não planejarmos
insistir...
— ... não quero ir para a faculdade local no ano que vem, nem meio período.
O papai Sid me interrompeu.
— Agora é a vez de quem demonstrar um pouco de confiança? Já captamos sua mensagem:
NADA DE FACULDADE. Esquecendo que a maioria dos estudantes da sua idade ficaria
entusiasmada pelo privilégio que você despreza, de ir a uma faculdade sem se preocupar
em pagar pelas aulas ou com o peso da dívida do crédito estudantil, já ouvimos bem alto e
claro sua opinião sobre isso. Você será uma adulta em breve: não podemos forçá-la a ir. E
francamente, podemos gastar melhor nosso tempo do que tentando insistir nisso. Não, esses
folhetos são para a escola de culinária. Seu estágio no restaurante no outono passado
provou o que eu suspeitava: você é uma candidata natural para a carreira nas artes
gastronômicas.
A ideia era instigante, mas por que ele tinha de usar a palavra carreira? Tem algo mais
brochante? Além disso, não gosto que minha sentença ao trabalhar com a Senhora
Imperatriz Kari tivesse sido, na verdade, parte de um maligno esquema de manipulação
para testar minhas habilidades e inclinações culinárias. Meus olhos se detiveram nos
folhetos mas eu não os peguei. Não ia dar essa satisfação aos meus pais.
— Há algumas escolas excelentes aqui na Bay Area. Seu irmão Danny e eu falamos sobre
isso, e ele recomendou algumas escolas que ele acha que seriam apropriadas para você —
disse papai Sid, como se eu fosse uma gata desconfiada para quem ele oferece a mão para
cheirar primeiro, antes de chegar perto.
Considerei pegar um folheto, talvez até tirar da mesa, quando ouvimos alto — quero dizer
ALTO MESMO — uma música tocando na rua. Fui até a janela e puxei a persiana para ver
um carro verde-limão no mar de Mercedes e BMWs da nossa rua de mansões antigas
sacudindo com os decibéis de música saindo dos alto-falantes. As malditas e emotivas
crianças Von Trapp estavam harmonizando ah-ah-ah num potente som surround. Vizinhos
olharam das janelas de suas casas e alguns turistas japoneses na rua cobriram as orelhas
com suas mãos, então tiraram fotos do carro quando estavam a uma distância segura para
tirar as mãos da orelha. Não sei por que os turistas estavam tão confusos — eles não viram
o filme Digam o que Quiserem? Prefiro o Siri ao John Cusack, mas a cena do Siri tinha de
ser inspirada pelo filme favorito de Wallace e Delia, em que John Cusack segura o som
tocando uma música do Peter Gabriel do lado de fora da casa da namorada.
Oh, a reconciliação vai ser tããããããããão boa depois de passarmos pela conversa (eu) e as
desculpas (ele).
Olhei para Sid e Nancy, os dois sacudindo a cabeça.
— Vai lá — Nancy suspirou, acenando para mim.
— Mas leve um folheto — disse o papai Sid, rapidamente me passando um enquanto eu ia
na direção da porta fechada do escritório. Ele olhou para a janela novamente, balançou a
cabeça de um lado para o outro e murmurou. — Sujeito esquisito.
Peguei o folheto da mão dele e dei uma olhada rápida.
— Volto amanhã de manhã — eu disse enquanto saía pela porta da frente.
— MEIA-NOITE! — Sid e Nancy gritaram.
Trinta e Dois
Siri e eu temos um segredo.
Não, eu não estou grávida.
Setembro que vem, depois que eu me formar e fizer 18 anos, vou me mudar para a East Bay
para morar com ele. Até lá, Siri vai ter guardado dinheiro o bastante para sair da casa de
Um Cara Aí em Berkeley e eu vou ter um trabalho num restaurante ou café na faculdade ou
na Telegraph Avenue. Não vamos nos importar se formos pobres vivendo de salário
mínimo e tivermos de morar em algum barraco com rachaduras e policiais passando o
tempo todo, contanto que estejamos juntos. Vamos fazer amor com muita frequência — em
privacidade, sempre que quisermos, o tempo que quisermos demorar sem tchau-tchau, ou
toque de recolher com que nos preocupar. Quando tivermos de tomar decisões importantes,
como sair da escola ou ir para Joshua Tree para ficar um tempo sozinhos, vamos tomar
essas decisões como um casal, como Sid e Nancy, Wallace e Delia, Bill e Hillary.
A escola de culinária era uma ideia interessante, mas tenho o resto da vida para isso. Prefiro
trabalhar em tempo integral depois de terminar a escola. O ano que vem vai ser todo para o
Siri, desta vez para valer. Planejo uma transformação total de CC para virar uma garota de
East Bay, afinal vou trocar a neblina pelo sol, expresso por café orgânico puro, e vou me
esforçar ao máximo para deixar de dizer uma gíria por frase. Em vez de ir para Berkeley, a
universidade, eu devo estudar Berkeley, a meca da alimentação. Vou ficar bem esnobe com
comida e aprender sobre queijos fedidos, só comprar os melhores produtos no Berkeley
Bowl e fazer macarrão fresco em vez de consumir o de caixa. Siri e eu vamos forrar nossa
sala com a arte dele e com capas de discos — vinil, não CD — de ícones de East Bay como
Towers of Power e Green Day —, vamos ter plantas exóticas, arte do monte Fuji e um som
branco que toca Kitaro para manter um clima de santuário japonês.
A pessoa com quem eu mais queria dividir essa novidade, Danny, chegou no meu café
italiano favorito em North Beach, parecendo cansado, sem se barbear, e usando roupas
amassadas. Não que eu esperasse que o Danny se arrumasse todo para ver meu namorado
pela primeira vez finalmente, mas fiquei surpresa de como ele estava mal quando entrou
no café.
— Terry e eu terminamos — Danny anunciou antes de sentar. Eu resisti à vontade de pular
a mesa e fazer uma dancinha irlandesa que o Eamon me ensinou numa noite dessas de
panqueca. — Aparentemente, eu estava errado quando achei que nosso relacionamento era
exclusivo.
Eu sou tããããããããããããããão boazinha que não disse bem que eu avisei.
— Sinto muito, Danny. — Sinto muito por você estar mal, não porque terminou com
aquele fracassado que nem chegava perto de ser bom com você. — Café e chocolate
ajudam.
— Uma música mais alegre também — disse Danny. Ele falou alto e dirigiu sua voz à
barista que estava perto do som do café. — Essa ópera de Wagner é realmente necessária?
Já ouviu Puccini ou Mozart? Você deve incentivar os clientes a relaxarem, não a cortarem
os pulsos. — Acho que você pode tirar o nova-iorquino de Nova York, mas não a Nova
York do meu irmãozinho "quem-sabia-que-ele-podia-ser-tão-rabugento".
Siri chegou em seguida, também de mau humor. Tudo que o Danny recebeu do Siri foi
"oi", e esse longo olhar de consciência de que eu tinha de fato parentes que pareciam
comigo, seguido por um leve rosnar que só eu percebi que era um rosnar; Danny podia
facilmente ter entendido isso como se o Siri estivesse com gases ou algo assim. Algo assim
significa que o Siri acha que o pai biológico Frank é "coisa ruim" e que precisa ser
convencido de que o Danny não é a mesma coisa, apesar de você achar que o Siri iria
acreditar na minha palavra, mas namorados são estranhamente protetores.
Siri pediu um expresso duplo e disse:
— Não posso ficar muito tempo. Não achei lugar para estacionar, então estou parado num
ponto de carga e descarga, e Iris me espera em Ocean Beach para levá-la até o centro para
ver umas coisas de passaporte.
Eu ficaria passada com a grosseria do Siri, não fosse pelo pobre garoto estar sendo
pressionado por todos os lados: dormindo no sofá na casa de Um Cara Aí em Berkeley,
fazendo uma longa viagem entre East Bay e Ocean Beach para trabalhar, e sendo o
intermediário entre Wallace-Delia e Iris-Billy, isso sem falar da namorada que gostaria de
jogar todas as outras preocupações fora, ter acesso exclusivo ao tempo dele e forçá-lo a
gostar instantaneamente de seu novo irmão. Mas como sou uma namorada paciente, eu
posso ficar na paz em vez de surtar com a grosseria do Siri, porque eu sei que dentro de
alguns meses eu vou ter o Siri só pra mim, e agora que o Terry está fora da parada (aleluia!)
Siri e Danny vão ter muito tempo para se entrosarem.
Danny devia estar com "Nenhum Homem Presta" na cabeça, porque ele disse para o Siri:
— Situação hipotética, você se muda de volta para Papua-Nova Guiné e Cyd Charisse vai
visitá-lo por alguns meses para ver como a relação progride. Sem pressão, mas entende-se
que é um relacionamento exclusivo, certo? Quero dizer, não está implícito? — Eu podia ver
a pequena cabeça do Siri percebendo que estragar o barato de alguém pode ser parte do
plano biológico da linhagem de DNA do Frank.
Se a Pão-Doce estivesse aqui, ela provavelmente diria que é Mercúrio ou algum desastre
astrológico durante o qual não devemos embarcar em novidades. Eu queria que meu amado
amor e meu verdadeiro meio-irmão se encontrassem, mas olhando para os dois juntos
sentados à mesa agora, minha mente pensava: abortar missão! Abortar! Abortar!
Descobri uma saída quando olhei pela janela do café.
— Amor, um guarda de trânsito está parando atrás do seu carro. E melhor você ir. — Como
sou um ser totalmente reformado, beijei o Siri na boca, que parou de rosnar.
Siri disse para o Danny:
— Vamos tentar outra vez, camarada. Depois.
— Ele não é ótimo? — suspirei depois que o Siri nos deixou na mesa sozinhos novamente.
— É exatamente como eu esperava — disse Danny. Não sei o que ele quis dizer com isso,
mas vou segurar um pouquinho mais para contar minha grande novidade ao Danny.
Trinta e Três
Como eu não acho que Sid e Nancy vão ficar tão felizes com meu novo plano para
FAZER algo, sendo esse algo me mudar e ir viver com o Siri, e eu vou estourar se não
contar para alguém logo, decidi que estou pronta para soltar a novidade para o Danny, que
pode se alistar para ajudar-me a amaciá-los. Ele não é apenas uma ponte para minha outra
família em Nova York, também pode ser, na minha grande estratégia, uma ponte para me
ajudar a dar a notícia a Sid e Nancy.
A primavera floresceu e meu amor verdadeiro está desabrochando outra vez, mas não para
o Danny. Veja isso: desde que ele terminou com o Terry, Danny está na nossa casa em
Pacific Heights. O aluguel do apartamento em Nova York, onde ele e o Aaron viviam, está
no nome do Danny, mas a casa nova do Aaron ainda não está pronta e lisBETH ainda não
fala com Danny, e ele nem quer pensar em pedir ajuda ao Frank, então adivinha quem o
salvou? Sua "outra" família.
Primeiro, eu fiquei louca com o pensamento do Danny conhecendo a Nancy — o que eles
poderiam dizer um para o outro? Eu imaginei uma peça de marionetes com uma cena
assim:
MARIONETE DO DANNY
Ah, então você é a mulher que dividiu minha família?
MARIONETE DA NANCY
Cale-se! Meu Deus estou arrepiada de ver como você parece tanto com o homem casado
que me colocou em apuros quando eu era jovem e idiota, depois mentiu quando disse que
sempre ficaria ao meu lado.
MARIONETE DO DANNY
Bem, prazer em conhecê-la, acho.
MARIONETE DA NANCY
Digo o mesmo [marionetes batem cabeças em reconciliação].
O papai Sid e a Nancy convidaram o Danny para almoçar sem eu saber, num dia de aula.
Estou aliviada por não estar presente nesse encontro inicial e não saber que estava
acontecendo até ter terminado. Por mais estranho ou esquisito ou apenas "ah, tá" que fosse
o primeiro encontro deles (ou talvez fosse só eu, me preocupando em como seria), Danny e
Nancy se entenderam. Danny, que já tinha passado todo esse tempo sozinho na casa do
Terry, vendo clipes de música na TV a cabo, disse que minha mãe é radiante. Ela, toda
radiante, disse que o Danny é como uma "versão gentil e mais alegre do Frank". Logo
depois que aconteceu o inevitável rompimento do Danny com o Terry, como romances com
homens vaidosos e superficiais estão fadados a terminar, deixando Danny falido e sem
casa, o "Tio Sid" e sua adorável esposa, mãe de sua irmã ilegítima, ajudaram Danny a se
recuperar, oferecendo o quarto de hóspedes até que seu apartamento em Nova York fosse
desocupado pelo Aaron.
Nancy finalmente tinha de novo um cozinheiro em período integral em casa, e talvez fosse
o alívio por não ter de preparar as refeições, ou mesmo sua risada quando Danny a
lembrava, "a manteiga não é sua inimiga, Nancy", quando ele tirava outra fornada de
biscoitos amanteigados do forno, mas ela parecia estar saindo de seu distúrbio pós-Vovó B..
A Neiman-Marcus pode oficialmente respirar aliviada. Nancy está até com as bochehas
coradas agora, e ela tem curvas sobre os ossos, dos quilos extras que ganhou com a comida
do Danny. Ela parece ótima: saudável e feliz. Ash idolatra Danny porque o bolo de
aniversário da Barbie que ele fez para ela era uma obra de arte de três andares decorada
como um bolo de casamento. O papai Sid está maravilhado por ter seu afilhado de volta em
sua vida, e por finalmente ter alguém em casa que joga Fantasy Baseball com ele. A
exceção de todo esse amor por Danny é o Josh, que o ODEIA. Quando ele era pequeno e
não gostava de alguém, Josh ia até a pessoa, caía no chão e tentava morder os calcanhares
dela. Agora ele apenas ignora o Danny e não pode ser fisicamente removido de seu
Playstation sempre que ele está por perto. Danny não parece se importar — na verdade, eu
diria que ficar com minha família ajudou-o em sua depressão pós-namoro.
Todo mundo sabe como me sinto em relação ao Danny, mesmo depois de ele acabar com
seu verdadeiro amor, o Aaron. Ele não apenas é meu irmão, é também meu irmão
espiritual. E, como eu, ele é um piromaníaco total que gosta de acender velas e derramar
cera quente nas mãos e braços, depois tirar e brincar com ela como se fosse massinha. Sid e
Nancy não gostam dessa mania, e não gostam que Ash e Josh vejam isso, por isso o Danny
ficou no meu quarto uma noite, bem tarde, com a porta fechada, enquanto acendíamos velas
e víamos um filme sentados na minha cama.
— Tem algo que tenho de te contar — comecei. Mas vi o rosto preocupado do Danny e
disse: — Deus, não estou grávida, tá bom?
Danny soltou um suspiro audível de alívio e disse:
— Também tenho uma coisa para te contar.
— Você primeiro — ambos dissemos ao mesmo tempo.
Eu desliguei a TV pus uma música e disse:
— Siri e eu vamos morar juntos. No próximo outono. Vai estar aqui quando eu contar para
o Sid e a Nancy? Eles vão encarar a coisa melhor se você estiver comigo para amortecer o
impacto.
— Um: você não pode estar falando sério. E dois: de jeito nenhum.
Bem, bem, talvez o Danny não seja 100% meu irmão espiritual. Eu não esperava a reação
"você é apenas uma criança. Você não sabe o que está fazendo" do Danny. Eu respondi:
— Estou falando bem sério. Vamos arrumar um lugar em Berkeley ou Oakland. Vamos
trabalhar; não vamos pedir para ninguém nos sustentar. — O rosto do Danny não pareceu
muito convencido. Alistá-lo à minha causa parecia fácil, mas agora tenho de defender a
ideia para ele? Eu continuei: — Passei todo esse tempo querendo voltar com ele. Se eu só
consigo amá-lo mais, mesmo depois que ele não foi legal com algumas coisas, algo deve
estar certo nessa relação. Certo? Toda vez que acontece algo que nos separa, nós ainda
voltamos com mais força e mais amor do que antes. Cara, Siri e eu nascemos para ficar
juntos. Não posso esperar muito para morar com ele, dividir minha vida com ele. Não me
olhe assim. Você mal conheceu o Siri; passou pouco tempo com ele. Não viu a gente junto;
não sabe como é verdadeiro.
— Se não fui capaz de ver como é verdadeiro, por que você pensa que é?
— Porque você não dá uma chance a ele, você...
— Eu daria muitas chances ao Siri, se ele me desse a oportunidade. Ele não é um cara que
se deixa conhecer, talvez só por você. Já vi isso antes. Obviamente o cara está apaixonado
por você, mas onde ele está?
— Você não gosta do Siri? — perguntei. Eu queria tanto que meu namorado e meu irmão
se dessem bem, mas a verdade é que não há nenhuma química entre eles, não como eu tive
com o namorado do Danny, o Aaron, aquele sentimento de, uau, estou tão feliz que meu
mano está com você, você é ótimo.
— Gosto dele, o pouco que o conheço, considerando que as poucas vezes que nos
encontramos ele mal murmurou algumas frases para mim. Siri me parece... jovem. Talvez
imaturo ainda para o grande compromisso.
— Você está errado — disse eu. Não dividi com ele a cera da vela roxa que estava virando
no meu braço.
— Espero que sim, CC, espero mesmo. O que seus amigos acham do seu plano?
— Não contei a ninguém ainda, mas Pão-Doce... tenho certeza de que ela vai achar ótimo,
ela adora o amor verdadeiro. Helen provavelmente vai querer morar com Eamon no ano
que vem, então ela vai entender. E Autumn, bem, provavelmente ela vai para a
Universidade da Califórnia ano que vem e vai ser praticamente nossa vizinha e, de qualquer
forma, acho que mereço uma pontuação tripla de amiga só por ter me aproximado dela,
então tenho certeza de que ela vai apoiar.
— Ninguém merece pontos extras pelo simples ato de se tornar amigo de alguém. Se é o
que você pensa, você tem de aprender muito sobre o que é ser amiga — disse Danny.
Eu não podia gritar com ele porque o resto da casa estava dormindo, então eu sussurrei.
— Já terminou de detonar a CC? Porque acho que você já pode sair do meu quarto. Por que
não vai cozinhar alguma coisa, mostrar esse seu jeito bem-felizinho-mesmo-depois-de-doisrelacionamentos-
fracassados-porque-amo-todo-mundo em OUTRO lugar?
Danny não pareceu magoado ou bravo; ele só sorriu. É difícil mesmo irritá-lo. Ele deve ter
desenvolvido essa habilidade como uma reação pós-traumática por crescer com lisBETH,
irmã-monstro mais velha e mandona. Danny tirou a cera roxa que endureceu no meu braço,
então colou um beijinho no dedo, e no meu braço.
— Mas não te contei a minha novidade ainda.
— Qual é?
— Aaron mudou para o apartamento novo. Posso vollar para casa. Preciso me estruturar e
recomeçar minha vida novamente, não posso morar nesse mundo da fantasia que é a
Califórnia para sempre. Quer voltar comigo, ficar no feriado de Páscoa? Já falei com seus
pais. Tudo bem para eles. Seria bom ter companhia e apoio para voltar ao que vai ser um
apartamento semivazio com muitas lembranças.
Nova York na primavera, como em Desfile de Páscoa com Fred Astaire e Judy Garland,
com o malvado Danny querendo minha ajuda? Torça meu braço com cera de vela.
— Tudo bem — disse eu, mas ainda de cara fechada. — O Siri pode vir também?
— Não. Vamos ver se você sobrevive um fim de semana sozinha numa nova cidade sem
seu amor verdadeiro, daí você pode me contar sobre seus supostos planos de morar com
ele.
Coitado, doce, ignorante Danny. Siri e eu vamos provar que ele está errado.
Trinta Quatro
Devo ter uma síndrome de memórias reprimidas, porque eu vivi na Costa Leste antes, mas
esqueci o que era um frio de verdade. Chegamos tarde na Sexta-feira Santa, uma chuva de
abril, somada à usual temperatura fria, transformou a cidade num temporário país das
maravilhas congelado, cobrindo as ruas com uma camada fina de neve. UAU! Bonito
demais. Só de pensar sobre o que eu poderia usar — a necessidade de luvinhas de tricô, um
longo e pesado casaco de pele falsa de leopardo (o tipo que requer um ritual de sacrifício de
muitos, muitos ursinhos de pelúcia), talvez um cachecol — me fez pensar em fazer compras
em lojas de departamento no sábado de manhã, mas o motorista do táxi acabou com a
minha onda durante a viagem do aeroporto para o apartamento do Danny. O cara com nome
cheio de vogais disse, num sotaque de algum lugar entre Paquistão e Nairobi, via Haiti.
— Nova York! É louca! Neve hoje, primavera amanhã! — Enquanto nos levava através do
Central Park, com suas árvores começando a florescer, parecendo pacífico e calmo com a
neve sobre os galhos, o motorista ligou na estação de rádio para que pudéssemos ouvir a
previsão do tempo com temperaturas amenas para o sábado.
Quando chegamos no prédio do Danny, no Village, após a experiência de rodopiar no táxi,
com o motorista ziguezagueando pelas ruas, passando por todos os sinais amarelos,
cortando dúzias de carros, ônibus e caminhões e xingando muitos pedestres, eu considerei
parar numa farmácia 24 horas perto da casa do Danny para pegar o remédio favorito do
Fernando, Excedrin, para enxaqueca. Mas nenhuma dorzinha de cabeça podia estragar
minha animação por estar de volta a Nova York. Só de respirar o ar frio e observar a cidade
passando pela janela do carro, meu coração batia com a energia do lugar. As ruas cheias de
gente, apertadinhas sob guarda-chuvas e usando botas de neve, parecendo aconchegante por
uma noite que nunca iria terminar. Os bares e restaurantes por que passamos estavam
cheios de gente, e dava para ouvir música por todos os lados. Era como se essa cidade fria
tivesse sua própria pulsação, e ela fosse quente, quente, quente.
A gente acha que uma pessoa sensata como o Danny não ficaria animada de voltar para um
apartamento para o qual você tem de subir cincos longos lances de escada através de
escadarias estreitas e assustadoras para chegar ao topo do prédio, mas até aí, a gente acha
que alguém com tamanha sensatez não deixaria uma joia como o Aaron sair de sua vida e
de seu apartamento, para começar.
O ânimo do Danny só durou até abrir as cinco trancas da porta. Quando entramos,
ofegantes da subida pelas escadas, vi que o apartamento do Danny parecia completamente
diferente de quando eu o visitei no verão passado: vazio. O aluguel podia estar no nome do
Danny, mas obviamente a maioria dos móveis era do Aaron, porque tudo o que sobrou na
sala era um sofá detonado com um lençol sobre ele, uma cadeira dobrável que parecia que
cairia com o peso de um gato e uma mesinha de centro com tampo de vidro coberta de
manchas de copo — os descansos deviam ser do Aaron também. Até a persiana se foi,
então a vista para o Village era ampla, e podíamos ver direto o apartamento do outro lado
da rua, onde um cara gordão estava pelado tocando guitarra e vendo TV. Aaron podia ter
deixado as persianas.
Danny jogou a bagagem no chão e andou pelo apartamento, inspecionando. A reação de seu
corpo e o alto nível de suspiros que ele pegou da Nancy indicou que voltar para casa era tão
doloroso quanto ele esperava. No seu quarto restou apenas um saco de dormir no chão, uma
antiga luminária de criança em formato de avião e um par de gavetas de uma cômoda. O
quarto de hóspedes que Dany e Aaron usavam como escritório estava vazio, exceto por
uma prateleira com os livros de culinária do Danny. Ele suspirou do jeito clássico da Nancy
quando chegamos na cozinha e abriu a geladeira. Tirou uma sacola de compras que dizia
BARNEY GREENGRASS, leu a nota anexada ao saco, com seus olhos apagando um
pouco então me disse:
— Aaron deixou alguns pãezinhos e salmão defumado para nós.
— E esse ato de bondade é causa de tristeza porque... ?
— Porque ele foi no meu restaurante favorito para comprar salmão e comprou pão no H&H
também. Ele teve de ir até o Upper West Side esta manhã para comprar essas coisas e
deixar aqui, embora esteja começando um novo trabalho no East Side.
Eu não disse que o Aaron era uma joia? Eu sabia que estava lá para dar força, mas não pude
me segurar.
— Não é algo que eu poderia ver o Terry fazendo por você. O Aaron já está saindo com
outra pessoa?
— Não faço ideia — respondeu ele. — Mas CC, se você tentar bancar a Cupido, vai ser
excomungada. Eu não estava brincando quando disse que terminou tudo entre mim e o
Aaron. Isso não quer dizer que ele e eu não vamos nos amar para sempre, mas não vamos
voltar.
POR QUÊ?!! Eu não entendo como eles podem se amar, mas ficar completamente
separados.
Danny obviamente não queria mais falar nisso, então eu disse:
— Bem, eu não gosto de salmão defumado, é salgado demais para mim, então por que não
deixa isso tudo pra amanhã e pede para nós uma boa pizza de Nova York? — É o que eu
mais gosto nessa cidade, não são as artes e a cultura e a diversidade, ou o que seja, mas o
fato de você poder pedir qualquer tipo de comida, chinesa, italiana, dominicana, tailandesa,
pizza ou o que seja, para ser entregue no quinto andar do seu prédio a qualquer hora do dia
ou da noite.
Talvez o Danny estivesse com mais saudades das baguetes de Nova York e do salmão do
Barney Greengrass, mas o que eu mais sentia falta era de um pedaço de pizza tipo aquela
que, aquele quase amor de verão, Luis, me viciou no verão passado. Nova York tem a
melhor pizza, mas não é só apenas por ser quente e crocante ou pelo molho de tomate, é
também pela forma como é comida: tire o óleo do queijo com um guardanapo (se quiser),
coloque o tempero da sua escolha no pedaço (gosto de alho em pó e orégano), dobre a fatia
na metade e coma com as mãos, começando pela ponta (mantendo o prato de papel
embaixo para que o óleo escorra, se você não usou a técnica do guardanapo anteriormente
mencionada).
Enquanto estávamos sentados no chão, comendo a pizza, Danny contou sobre nossa agenda
para o fim de semana: comprar móveis baratos na manhã de sábado, seguido por um
trabalho que ele tinha de ver de tarde e, melhor de tudo, o recado do Aaron dizia que sua
banda ia tocar em algum boteco no Village na noite de sábado, se quiséssemos ir.
QUERÍAMOS! O lado ruim: brunch de páscoa com Frank e lisBETH.
— Temos mesmo que ir? — perguntei ao Danny. Devia ter alguma lei de família em que a
gente pudesse escolher um parente favorito com quem fosse possível se relacionar e nunca
ter de lidar com os outros.
— Sim — disse ele, apesar de nem ele mesmo parecer muito animado com a ideia.
Trinta e Cinco
Nenhum de nós dois dormiu muito aquela noite. Quem poderia, entre a empolgação de
estar de volta a Nova York e todo aquele barulho terrível? Tínhamos de dormir com a
janela da sala aberta, porque o aquecedor barulhento esquentava demais. Mas se eu achava
que o barulho do aquecedor incomodava, era suave em comparação ao barulho vindo das
ruas abaixo: buzinas constantes e pneus cantando, gente gritando, um cara que não parava
de dizer "Yo, Sal", do bar no térreo do prédio do Danny. O barulho, junto com as luzes
fortes, seguido pelo sol da manhã passando pelas janelas sem cortinas do apartamento,
mostraram que eu não teria mais do que quatro horas de sono. Dormi no sofá esfarrapado,
que era pequeno demais para minhas pernas, então eu me enrolei como uma bolinha a noite
toda, e Danny dormiu como um bebê; mesmo com o barulho, aninhado em seu saco de
dormir no chão ao lado do sofá porque ele ficou muito perturbado para dormir em seu velho
quarto sozinho pela primeira vez em anos.
Acordei mais cedo do que o Danny, então fui me cafeinar. A temperatura estava
significativamente mais quente do que na noite anterior, mas o ar da primavera ainda estava
frio. As ruas estavam molhadas da neve derretida, que junto com o ar frio tornava a cidade
incomumente limpa e fresca. Encontrei a delicatéssen mais próxima e pedi um café normal,
que eu esqueci que significa algo diferente em Nova York do que no resto do mundo —
café normal significa café com leite em vez de puro — então eu tive de jogar o copo na lata
de lixo. Então fui a dois outros cafés diferentes para tomar um expresso; um era fraco e
amargo demais, e o outro simplesmente uma porcaria, e também tiveram de ser jogados no
lixo. Finalmente, fui até uma loja de sucos para tomar um suco fresco de toranja, porque o
café do Danny e o Dean & DeLuca eram os únicos lugares onde se podia tomar um bom
café em Manhattan, e o Idiotas do Village agora estava fechado e eu não conseguia me
lembrar de como chegar no D&D. Além do mais, meu orçamento para café foi gasto pelo
fim de semana todo.
Quanto voltei para o apartamento, Danny tinha tomado banho, comido seu sanduíche de
salmão e estava pronto para andarmos pela cidade. Vagamos pelas ruas do Village, vendo
alguns móveis usados e lojas de antiguidades. Todos os móveis eram ou feios ou caros
demais, sem considerar o que Danny disse sobre não empenhar seu tempo, dinheiro ou
esforço para remobiliar o apartamento com uma decoração de revista, mas com algo apenas
confortável. Ele fez um parcelamento na loja Crate & Barrel, onde comprou um sofá-cama
básico que ele podia usar como a cama dele até que pudesse comprar uma nova, uma mesa,
algumas cadeiras e uma escrivaninha. Ele entrou em pânico com o custo total, mas eu o
lembrei de que ele tinha uma entrevista de emprego mais tarde naquele dia, que era uma
coisa quase certa, e não iria matar pedir uma ajudinha ao Frank também. Eu nunca iria
pedir ajuda ao Frank novamente, mas por que o Danny não? Frank era apenas meu pai
biológico, e talvez ele nunca tenha sido o paizão do Danny, mas ainda era seu pai. Se o
Frank não pensou duas vezes em ajudar sua filha bastarda numa emergência médica numa
clínica de aborto, ele provavelmente iria querer mais do que ajudar seu filho legítimo, se
Danny pedisse ajuda.
Como parecia que o Danny não ia ter mais um ataque cardíaco, eu saí da loja para olhar ao
redor, já que completar a transação ia levar mais tempo do que eu gastaria olhando o Crate
& Barrel sem ficar entediada. Além disso, nunca prestei atenção em quanto custavam os
móveis antes, mas: Caramba! Siri e eu vamos ter de arrumar muitos empregos para termos
nosso próprio apartamento.
Enquanto andávamos pelas ruas do Village, eu não podia evitar a vontade de que Siri
estivesse ali para viver essa cidade comigo. O ar frio era tão aconchegante, eu poderia me
apertar contra ele. As massas de pessoas andando ao redor pareciam tão diferentes —
jovens e velhos, pretos, brancos, amarelos, marrons e vermelhos, yuppies e hippies,
bizarros e antiquados — que suspeitei que a arte do Siri pudesse ter mais inspiração num
quarteirão desta cidade do que em East Bay inteira. Siri havia prometido me pegar no
aeroporto quando eu voltasse para casa, e minha primeira providência seria tentar vender
pra ele a ideia potencial de nós vivermos juntos em Nova York, em vez de em Oakland ou
Berkeley. Por que não? Amores verdadeiros sabem que não há limites de cidades, então por
que não ampliar as opções? Tínhamos de morar em East Bay? Não é mais importante
vivermos juntos do que ficarmos perto de casa?
Pensar tanto sobre o Siri e saber que desta vez, no ano que vem, nós dois iríamos dividir
uma cabaninha me aquecia. Provavelmente não foi coincidência eu me pegar parada numa
cerca, de pé na calçada, observando um grupo extremamente gostoso de caras suados
usando bermudas longas, sem camiseta, jogando basquete no outro lado da cerca. Saliva
devia estar escorrendo da minha boca até o chão de tão bonitos que eram esses caras, isso
sem falar em como eram bons jogadores: rápidos, graciosos, intensos, como uma gangue de
rua da NBA. Então os caras fizeram um jogo sério. Meus olhos pararam num cara em
particular — eu estava tendo um déjà vu, ou o cara alto do New York Knicks com pele de
canela e cabelo preto liso não era outro que não um cara chamado Luis, também conhecido
como Lu-isi? Quando eu o vi perder um passe porque estava olhando de volta para mim,
depois ser acertado por seus colegas por ter se distraído, eu percebi, Sim, é o tal.
Talvez Nova York não seja a cidade ideal para mim, afinal. A última vez que eu estive
aqui, eu topei com meu ex-namorado Justin na Gap da Madison Avenue. O que acontece
com essa cidade que faz você sempre encontrar as pessoas do seu passado por acaso,
especialmente aquelas com as quais seus pensamentos pecaminosos podem te colocar em
grandes, grandes apuros?
Quando os caras deram um tempo no jogo, Luis driblou a bola até mim, até chegar do meu
lado, do outro lado da cerca.
— Aterrorizando a cidade grande novamente? — perguntou ele, sorrindo, seus olhos me
elogiando de baixo a cima do meu coturno com legging preto justo até minha minissaia
preta e minha jaqueta de couro preto de motoqueira.
Pequenas gotas de suor caíam pelo rosto dele, implorando para serem lambidas.
— Estou passando o fim de semana com meu irmão — eu disse a ele. — E você o que anda
fazendo?
Luis driblou a bola, sem precisar olhar para baixo para vê-la e conectá-la à sua mão. E
minha mente teve de repetir o mantra no ritmo da batida da bola, me lembrando: Siri.
Namorado. Siri. Namorado.
— Eu saí de Nova York por um tempo. Fiquei com uns primos na Virgínia, achei que eu
devia me mudar para lá; ar fresco e custo de vida mais barato; mas acabei voltando. Sou um
nova-iorquino, esse é o único lugar onde me sinto realmente vivo, certo? Então estou
matriculado no Hunter College em tempo integral agora, vivendo na nova casa da minha
tia, no Bronx, vou levar a sério o curso de administração. Um dos garotos joga bola todo
sábado, então eu vim junto hoje. — Ele tinha um sotaque forte de Nova York que parece
horrível até você se acostumar, e era amistoso dessa forma genuína da cidade, que finge
hostilidade mas na verdade é amável, e que você nunca encontra na Califórnia, onde as
pessoas parecem todas ensolaradas, mas preferem nem informar as horas. — E quanto a
você? Você e aquele seu namorado voltaram?
— SIM! — Eu gritei, talvez exagerando no entusiasmo. — Vamos morar juntos no
próximo outono. Provavelmente em Berkeley; vamos arrumar um lugar lá. —
Definitivamente, Berkeley. Nova York, péssima ideia, piração.
— Berkeley? — perguntou Luis, rindo. — Deixa disso. Você não tem nada a ver com
aquilo lá.
— Como sabe? Já foi?
— Não, mas nem preciso. Você percebeu que tem um bêbado mijando no muro ao seu
lado, e uma mulher louca cantando "Atirei o pau no gato" para ganhar trocados, atrás de
você? Você nem notou. Seu guarda-roupa conhece outra cor além de preto? Você é novaiorquina,
ninã, queira você ou não. Não passei aquele tempo todo te mostrando as coisas a
pedido do Frank para não saber disso.
Não podíamos conversar mais — o jogo estava recomeçando e os caras estavam assobiando
e provocando o Luis para ele sair da cerca. Depois que Luis e eu dissemos adeus, eu me
encaminhei para a entrada do metrô onde o Danny estava esperando por mim num canto
onde disse que me esperaria depois de sair do Crate & Barrel.
— Não acabei de ver você e um cara que é perturbadoramente parecido com o Luis
trocando números de celular, vi? — disse Danny.
— Precisa de óculos, velhinho — disse eu enquanto descíamos pelas escadarias da gloriosa
e fétida estação de metrô.
Quando chegamos na plataforma, como em piloto automático, fui direto para o fim dela
para olhar pelo túnel do metrô e ver se eu conseguia enxergar as luzes de um trem distante
brilhando nos trilhos, indicando que um estava se aproximando da estação, como Luis me
ensinou a fazer no verão passado.
— Olha só a garota de Nova York! — Danny disse. Um trem entrou na estação e Danny me
puxou de volta dali pelo colarinho da minha jaqueta de couro. — Não o suficiente para não
ficar na borda da plataforma com o trem vindo, idiota! — gritou ele sobre o som de trovão.
Andamos de trem algumas estações até Chelsea, onde eu fui até a instituição culinária onde
Danny estava vendo uma oportunidade para dar aulas. Enquanto descíamos a rua, perguntei
ao Danny:
— Que coisa é essa de esbarrar por acaso com as pessoas em Manhattan? Quase não
conheço ninguém no mundo, e nas poucas vezes que estou em Manhattan encontro gente
que conheço.
— Aaron e eu costumávamos chamar isso de SENY — disse Danny. — Só Em Nova York.
Não tenho ideia por que acontece, mas essa cidade é cheia dessas histórias. Acabei de
encontrar uma menina com quem estudei no colégio enquanto eu estava no Crate & Barrel;
ela estava fazendo a lista de casamento. Já viu um programa de TV que se passa em
Manhattan e percebeu como as pessoas sempre se encontram, nessa cidade de milhões? Isso
sempre acontece por aqui. Não me pergunte por quê. Nova York, cara: a maior cidade
pequena do mundo.
Subimos de elevador no prédio do instituto de culinária em Chelsea e seguimos por um
longo corredor com uma série de salas de aula com janelas de vidro. Na primeira janela vi
uma aula de escultura em chocolate, os alunos dando os toques finais num arranjo todinho
comestível de rosas de chocolate branco com um vaso de chocolate amargo. Outra sala
tinha vários alunos usando roupas de chef, sobre uma panela fumegante, preparando
vegetais e carne. A última sala pela qual passamos devia ser a de aula de cozinha italiana,
porque o cheiro de alho e tomate fresco e o olhar sonhador de uma dúzia de estudantes de
meia-idade sugeria que eles, como a Nancy, devem ter lido Sob o Sol da Toscana vezes
demais.
Paramos numa cozinha vazia, para dentro da qual Danny nos levou. O olhar vago que ele
tinha desde que voltara para seu apartamento fantasma pareceu brihar de novo, e eu pude
ver seu rosto iluminando-se novamente, enquanto ele admirava a cozinha imaculada cheia
de equipamentos industriais de primeiríssima qualidade.
— Por que não abre outro café? — perguntei a ele.
— Trabalho demais, dinheiro demais. — Ele ficou com os olhos vidrados sobre a enorme
batedeira KitchenAid no chão, tocando com sua mão a borda da vasilha que de tão grande
quase dava para pular dentro e tomar banho. — Não estou nessa agora. Só quero um
trabalho de professor, um salário fixo sem me preocupar se o balanço está no vermelho ou
no azul este mês. Também posso ganhar uma graninha extra fazendo alguns bolos para a
padaria de um amigo. Provavelmente vou ter de dividir o apartamento para conseguir pagar
o aluguel, se trabalhar só meio período, mas tudo bem. Ter e operar um café é trabalho
demais, CC, e eu não posso fazer isso sozinho, sem um Aaron.
Uma senhora usando roupa de chef e um chapéu maravilhoso entrou na sala e agarrou
Danny, dando um abraço.
— Olhe quem voltou pra casa, finalmente, ao lugar a que ele pertence! Estou tão feliz que
você chegou bem no intervalo da minha aula! — disse ela para ele.
Danny me apresentou para ela, dizendo:
— Essa é minha irmãzinha, Cyd. Sim, eu sei, "pequena", né? Eu a trouxe junto para ela
conhecer o lugar. Ela está pensando em fazer alguns cursos aqui.
— Não, não estou... — comecei a dizer, surpresa, mas o Danny me tirou da sala porque sua
amiga só tinha um pequeno intervalo para contar a ele sobre a oportunidade de emprego.
Saí da grande cozinha e sentei num banco enquanto esperava por meu irmão "maior", meu
irmão enxerido. Junto com muitos cheiros deliciosos vindo da cozinha, também senti o
cheiro de café para me distrair do Siri.
Abri meu celular e liguei para o Siri na casa de Um Cara Aí em Berkeley, rezando para que
o Siri, e não Um Cara Aí ou Outro Cara Lá na república em que ele estava morando,
atendesse o telefone:
— Oi, linda — disse Siri quando ouviu minha voz. Eu deslizei para o outro canto do banco,
para longe da aula de chocolate, não querendo que o calor do meu coração, ao ouvir a voz
rouca do Siri, derretesse as brilhantes esculturas de chocolate. — Não está se apaixonando
por Nova York e esquecendo dos nossos planos? — perguntou ele, provocando.
— Sem chance — respondi. Apesar de perceber que os trajes que os chefs usavam, todos
brancos, passadinhos e geométricos, eram de fato excelentes e formavam acessórios
tentadores.
— Bom. Porque estou trabalhando em algo especial para você nesse fim de semana, para
apresentar essa nova ideia do que eu acho que a gente devia fazer ano que vem. Te conto
quando eu te pegar no aeroporto amanhã de noite.
— Me conte agora! — Por saber que o Siri também estava pensando em variações do nosso
plano de sermos moradores da East Bay, eu não me sentia tão mal pelo meu momentâneo
lapso em considerar uma guinada para Nova York.
— Não. Tem de esperar. Nenhuma palavra deve ser dita até a obra estar completa. Preciso
correr. Um cara aqui precisa usar o telefone. — Eu compraria com certeza um celular para
o Siri se eu não soubesse que ele o jogaria no lixo ou quebraria e usaria os pedaços numa
obra de arte, como ele fez com o telefone que Wallace deu para o que se tornou Celular
Interruptos — pedaços quebrados de celular colados num crucifixo com chuva ácida verde
caindo do topo da tela.
Ouvir o ânimo do Siri iluminou meu espírito, assim decidi não ficar louca com a potencial
manipulação mental do Danny, tentando me fazer escapar para Nova York para que eu me
apaixonasse por essa cidade impressionante e esse lugar no Chelsea que meus olhos e meus
dedos e papilas gustativas estavam ansiosos para experimentar.
— Então, lugar legal, hein? — disse Danny quando saiu da cozinha.
— É, pode ser — disse eu.
O que não era tão legal era o "clube" onde a banda do Aaron estava tocando aquela noite. O
"clube" era só um pubzinho estreito com um palco minúsculo nos fundos, um lugar onde
ninguém se importava com a proibição para não fumar e eu não podia imaginar ninguém se
importando com uma banda tocando também, porque a maioria dos fregueses tinha seus
olhos fixos no jogo do Knicks, na televisão.
Aaron estava sentado no bar bebendo uma cerveja Guinness quando chegamos de noite.
Seu longo cabelo louro estava rareando em cima e foi cortado bem abaixo das orelhas,
caindo sobre seu rosto apenas o suficiente para esconder parcialmente um novo queixo
duplo. Quando se levantou para nos cumprimentar, percebi que tinha muito mais banha
caindo sobre seu cinto do que no verão passado, como se ele tivesse entrado numa dieta de
cerveja e deslizes desde que o Danny não o estava mais arrastando para fora da cama de
manhã para correr no Battery Park. Aaron me abraçou, mas evitou contato de olhares, então
ele e Danny tiveram aquele momento delicado, onde um tentou beijar o outro na bochecha
enquanto o outro tentou dar um abraço, e vice-versa, terminando com um aperto de mão
fraco e um tapinha no braço. Eles pareciam saber que esse primeiro encontro após a
separação, depois de quase uma década juntos, era algo pelo qual eles teriam de passar, mas
os dois ficariam aliviados quando acabasse.
A banda do Aaron, My dad gay son, que significa Meu Filho Gay Morto, era formada por
um grupo de amigos que ele e o Danny conheciam da faculdade e que se juntavam para se
divertir no Idiotas do Village, sem estilo musical favorito, só um monte de covers — de
punk ao soul passando pelo rock e música de programas de TV —, que agora era uma
banda sem nome buscando identidade. Aaron disse que eles estavam pensando em mudar o
nome para Apatia da Recessão ou Síndrome de Hamlet, porque a maioria dos caras perdeu
o trabalho ou as esposas ou amantes no ano passado, e nenhum deles sabia o que queria
fazer da vida, exceto tocar numa banda. A banda não era ruim, focada principalmente em
country alternativo, mas esses caras não eram estrelas de rock.
A última vez que vi a banda tocar foi no Idiotas do Village no verão passado, quando
parecia mais relaxada e divertida. Ouvindo os caras que tocam agora, mais afiados por mais
ensaios e com um repertório focado, era muito menos divertido. Eles pareciam e tocavam
como um grupo chato de mauricinhos. A experiência me lembrava do Dia de Frank Sinatra
em dezembro, quando fui trabalhar no caixa do Java the Hut depois de muitos meses
distante. Eu queria ver o Danny e o Aaron como um grande casal novamente, ficando com
eles no Idiotas do Village, enquanto My dad gay son tocava covers só por diversão, mas
tudo era diferente. O passado havia terminado, fim, finito.
Não havia nada a fazer a não ser seguir em frente, porque você não pode forçar os bons
tempos a voltar, acho. As coisas mudam. As pessoas mudam. O amor verdadeiro pode
simplesmente desaparecer.
Trinta e Seis
O brunch de Páscoa Frank e lisBETH me exigiu não menos do que um visual chocante.
Iria de minissaia, claro, mas o estilo gótico e os coturnos não iam funcionar desta vez. Eu
queria o visual completo de "menina má" para fazer jus à impressão que Frank e lisBETH
tinham de que sou uma filha bastarda louca. E o que seria mais chocante do que uma
"menina má" usando um terrível terninho Chanel rosa-claro tirado do closet da mamãe,
com os sapatos finos combinando e meias brancas para completar o visual? Eu sequei meu
cabelo liso escorrido e acrescentei uma tiara e coloquei um colar no pescoço — o
colarzinho da Tiffany que o Frank me mandara de Natal, salvo da pilha de doações para a
ocasião. Como maquiagem, apliquei pó nas bochechas para ficar com aquele visual
anoréxico de moça de sociedade e pintei meus lábios com batom bege. Pensei em usar essa
roupa na parada de Halloween da Castro Street, onde eu podia me apresentar como Senhora
Nariz-Empinado, passando guias de museus para o público.
— Estamos atrasados! — Danny gritou para mim da sala. — Vamos, CC! Nunca achei que
você fosse uma dessas garotas que levam uma hora para se vestir, qual é o problema?
Com meu visual completo, fui para a sala, o rosto do Danny estava fechado até que me viu
na frente dele. Então ele riu tanto que lágrimas escorreram dos seus olhos e ele caiu do
sofá. Ele ainda estava rindo quando entramos no carro para nos levar para a casa do Frank
no East Side.
Pedimos para o motorista nos deixar a alguns quarteirões do prédio do Frank, porque
mesmo estando atrasados, estávamos com medo desse brunch, e também queríamos andar
um pouco para admirar todas as mulheres que frequentavam a igreja andando pela avenida
com suas roupas de Páscoa e seus belos chapéus. Um cara pelo qual passamos na rua tentou
me passar um adesivo. As pessoas sempre tentam passar algo para você em Manhattan —
anúncios de videntes, filipetas de shows, parafernália de fanáticos religiosos — então você
se acostuma a não esticar o braço quando eles tentam enfiar papel na sua mão. O adesivo
que esse cara estava tentando passar dizia GENTE MÁ É UM SACO, e eu virei de lado
para ele para não pegar, mas o Danny, que estava ficando cada vez mais tenso conforme
nos aproximávamos do prédio do Frank, bateu na mão do cara quando ele tentou enfiar o
adesivo no rosto dele. O cara do adesivo gritou com o Danny:
— Você precisa disso! — A Senhora Nariz-Empinado aqui se virou e disse para ele:
— Não, quem precisa é você, idiota. — Gente com adesivo de Gente Má E Um Saco são as
novas pessoas que mais odeio, depois dos onipresentes caixas que em todo lugar a que você
vai agora têm uma jarra de gorjetas escrito BOM KARMA! Talvez eu seja uma pessoa
chata destinada a atravessar a vida sem um bom karma! Tudo bem. Aceito meu destino.
Podem me deixar em paz, por favor?
— Muito bem, Sra. Cyd Charisse de Nova York — disse Danny.
Frank morava num arranha-céu de ricaços onde tudo parecia e cheirava a novo e fresco.
Um monte de prédios em Nova York são velhos, úmidos no interior e pretos de fuligem do
lado de fora, mas o do Frank era relativamente novo, bacana, com um saguão que tinha um
lustre, grandes painéis florais e espelhos emoldurados. O porteiro conhecia o Danny mas
não se lembrava de mim, talvez por causa do meu disfarce, e nos mandou subir sem
interfonar para o apartamento do Frank.
Eu estava bem nervosa quando subimos de elevador em direção ao céu e então seguimos
pelo corredor do apartamento do Frank. Minha visita no verão passado terminou bem, mas
decepcionante. Todos nós quase nos entendemos no final, mas eu também não diria que
houve um grande amor, exceto entre mim e o Danny. Era tipo, bem, conheci vocês todos e
estou feliz por isso e vocês são todos um tanto sacais e provavelmente acham que eu sou
também, mas acho que podemos concordar que tivemos alguns bons momentos juntos, e
vamos deixar assim. Família, para o bem ou para o mal — apesar de que eu ficaria com
minha família real de São Francisco sem pestanejar. Não precisam mandar cartas ou cartões
ou fazer ligações regulares ou visitas, fique bem e eu te encontro quando der. Agora, nos
veríamos novamente. Posso zoar com a cara do Frank e da lisBETH, mas o fato de
realmente passar um tempo com eles torna mais difícil pensar neles como caricaturas na
minha mente em vez de relações de carne e osso.
Frank abriu a porta. Ui, ele é alto e bonito daquele jeito assustador de ator de cinema
envelhecendo. Algumas vezes, no verão passado, eu olhava longamente para ele, quando
ele não estava prestando atenção, para que eu pudesse guardar seu rosto na minha memória.
Seu rosto parecia, como eu lembrava, exatamente como o meu, mas eu esqueci a total parte
física dele: sua altura, seu cabelo preto brilhante, que deveria ter a dignidade de estar
ficando branco ou rareando nessa idade avançada (aposto que ele tinge), sua pele bronzeada
alaranjada (bronzeamento artificial, com certeza), como ele se apodera de você com esse
sorriso de vendedor e sua simpatia com as pessoas. Ele também usa ternos muito chiques e
caros. O papai Sid também, mas nele parecem meio grandes e enrugados, fofinhos, mas em
Frank, caem direitinho.
— Bem-vindos! — disse ele. Parecia genuinamente feliz de nos ver, ou talvez fosse um
lifting facial forçando o sorriso. — Entrem, feliz Páscoa. — Ele tinha cestas de Páscoa com
nossos nomes na mesa, com coelhinhos e ovos de chocolate mergulhados naquela grama
falsa. Vou dar um desconto ao Frank, pelo esforço.
— Como vai, menina? — ele me perguntou, me dando tapinhas nas costas em vez de me
abraçar (que alívio). — Você parece bem. E, ah, diferente. Essa é a primeira vez que não te
vejo toda de preto. Ficou bem, menina, ficou bonita. — Me senti orgulhosa e sem graça,
tipo, pare de olhar pra mim, você não me conhece!
Frank virou para o Danny, deu a ele um abraço fraco e disse:
— Sentimos sua falta na igreja esta manhã!
— Bem, não lembro do Vaticano apoiando minha turma — murmurou Danny —, então
vou deixar de lado os rituais católicos por enquanto. Mas tenho certeza de que você e
lisBETH tiveram uma ótima missa sem mim.
Frank fez cara de "desculpe, pequerrucho". Eu informei a Frank:
— Não tenho religião. — A Senhora Nariz-Empinado é uma diplomata natural.
Gosto desse Danny mal-humorado. Se ele vai ser o genioso no brunch de família, me alivia
toda a pressão. Obrigada, Danny.
Danny entrou na cozinha para trocar umas palavras com lisBETH, em particular. Esse
brunch foi a primeira vez que ela se dignou a vê-lo desde que Danny deixou Aaron, e Frank
e eu ficamos para trás, para que eles pudessem ter seu primeiro encontro particular. Me
sentei com Frank no sofá, e sem perceber, cruzei minhas pernas numa pose bem Nancy.
Mas Frank e eu não tínhamos muito a dizer um para o outro, então ele me passou um jornal
de Nova York dobrado e marcado em forma de tablóide para ficar mais fácil de ler no
metrô. Frank apontou para um pequeno artigo na seção de negócios para mim. Eu dei uma
olhada no artigo, que anunciava que ele havia se aposentado da função como principal
executivo numa grande agência de publicidade em Nova York.
— Aposentado? — perguntei a ele. Frank não me parecia o tipo que se aposenta. Na
verdade, ele me parece o tipo que fica indo atrás de negócios tão ativamente quanto corre
atrás de rabos-de-saia, até que literalmente caia duro na cova, morto.
— Demitido — disse Frank. — Aposentadoria antecipada é uma forma de dizer. E daí se
ergui a empresa do nada por quase trinta anos, transformei-a de uma pequena lojinha numa
indústria gigantesca? Quem se importa com a lealdade e os melhores anos da minha vida
dedicados à empresa? O novo presidente, meu antigo protegido, e todo os seus coleguinhas
do comitê, eles com certeza não se importam, estou te dizendo.
A Senhora Nariz-Empinado podia ter respondido Bem, Frank, querido, há um ditado: quem
planta colhe.
— O que vai fazer agora? — perguntei a ele.
Ele sorriu. Definitivamente está clareando os dentes no dentista.
— O normal. Consultoria. Golfe. Tênis. Tentar aproveitar minha vida. Conhecer melhor
meus filhos. Tem um tempinho se seu velho for vê-la na Califórnia?
Nancy estava me atazanando para que eu a deixasse fazer uma festa de formatura para mim.
Ela quer fazer no jardim nos fundos da casa, com arranjos de flores fantásticos e um bufê
completo para comemorar a ocasião. Ela disse que está aberta a convidar o Frank para a
festa, se eu quiser. Mas uma festona no jardim parece um exagero para celebrar um período
pelo qual eu vou ficar feliz de ter passado sem nem pensar mais nele. E eu preferia celebrar
a formatura sozinha com o Siri a uma festa no jardim em Pacific Heights com petiscos de
baixas calorias e expressões esquisitas de parabéns dos amigos da Nancy, surpresos por eu
simplesmente ter conseguido me formar. Além disso, a simples ideia de ver os meus dois
pais dividindo a cena, e Nancy chorando de orgulho entre eles, me dá arrepios. Danny pode
ficar na nossa casa, mas não estou pronta para uma integração total ainda. Festas no jardim,
eu passo.
— Se você quiser — disse eu, mas o tom de voz dizia, não me faça nenhum favor, cara.
Mas meus olhos então viram a cesta de Páscoa na mesa e eu lembrei do cumprimento
caloroso dele quando eu e o Danny chegamos. Eu sabia que ele estava se esforçando, então
achei que eu podia me esforçar um pouco também. — Claro — emendei, parecendo mais
legal. — Pode visitar qualquer dia.
Frank estava claramente procurando por algo, qualquer coisa, para dizer numa longa pausa
que se seguiu entre nós, e o que disse foi:
— Então é época da formatura do fundamental. Tem algum plano especial? Algum carinha
que você goste?
Eu toquei o colar que ele me deu com o "16" enquanto falávamos.
— Bem, Frank, como você deve saber, tenho 17 anos, não 16, e estou me formando, o que
significa formatura do ensino médio, não do fundamental. E eu estou numa escola
alternativa, para gente estranha. O conselho estudantil votou por abolir a formatura com
base no fato de que formaturas são uma ferramenta do capitalismo como o Dia dos
Namorados, apenas outra forma de propaganda querendo separar aqueles que têm dos que
não têm. Mas se houvesse uma formatura, o Siri, meu namorado, não "um carinha", e eu
provavelmente iríamos juntos. Eca, baile de formatura. Nada a ver.
— Ah — Frank disse.
LisBETH e Danny saíram da cozinha. LisBETH também estava vestindo um terno Chanel,
embora o dela fosse dourado. Um lenço rosa com coelhinhos da páscoa bordados prendiam
seus longos cachos grossos e pretos, com fios grisalhos.
— Não é que você está uma graça? — ela disse. A mulher não tem senso de ironia. Ela não
tentou me beijar ou me abraçar, então eu procurei esquentar as coisas imediatamente.
— Você também está ótima — disse eu.
LisBETH se esforçou para arrumar a mesa com toalhas finas e uma boa porcelana, e um
belo brunch com presunto, salada de camarão com abacates, ovos, biscoitos frescos e
frutas. Ela devia estar acordada desde cedo para preparar essa festa para nós no
apartamento do papai. Eu associava refeições familiares com barulho — Ash e Josh
batendo nos pratos, brigando um com o outro, derramando bebidas —, então eu não estava
acostumada com uma refeição que, para começar, tinha o Frank fazendo as orações e
lisBETH fazendo uma oração de Páscoa. Depois que nos sentamos, caímos num silêncio
educado. Para começar a conversa, perguntei a lisBETH:
— Apareceu algum carinha bonito desde que te vi pela última vez?
— Minha querida — respondeu ela —, não há nenhum homem solteiro, hétero, bem de
grana, na minha faixa etária que tenha sobrado em Manhattan. Se não fosse pela companhia
do Aaron nos últimos meses... — lisBETH lançou um olhar cortante para Danny. — Estou
pensando em adotar um bebê, talvez da Ásia ou da América do Sul. Não acha que ia ser
divertido?
Toc, toc, lisBETH, hora de acordar. Você tem um grande emprego em Wall Street que
requer que você viaje pelo mundo todo, e você trabalha pelo menos oitenta horas por
semana. Adotar um bebê pode soar divertido para você, mas não para o bebê que requer e
precisa da sua atenção! Você é uma workaholic, como o Frank, talvez não seja uma omissa
como ele, mas não é a Supermulher, garota.
— E você? — disse lisBETH. — Planos para a faculdade? — Sério, se me perguntarem
isso mais uma vez, eu não me responsabilizo por minhas ações, vou perder o controle.
— Não... — disse eu.
— Talvez você só precise de um ano de descanso. Vá para a Europa por um ano — disse
ela.
— Não... — repeti. — Só não vou para a faculdade. Sem brincadeira. E tem muita coisa
para me manter ocupada e feliz na Califórnia. — Siri, Siri, Siri, que saudade, mal posso
esperar para vê-lo hoje no aeroporto!
— Acho que você devia ir para a escola de culinária aqui — disse Danny.
— Oh — lisBETH retrucou —, para que então você tenha sua irmãzinha só pra você?
Aí vamos nós, essa é a velha lisBETH que esperávamos. Não sei qual é o problema dela,
não que ela tenha tentado entrar em contato ou me ver desde o verão passsado. Ela
provavelmente está brava porque eu tive o Danny só para mim nestes últimos meses,
mesmo que tenha sido escolha dela.
— Ou podíamos todos conhecê-la um pouco melhor — respondeu Danny —, se ela se
mudasse para cá e desenvolvesse o talento que tem.
Eu espetei um pedaço de camarão com meu garfo, coloquei na frente dos lábios, para o
Danny ver, e comi.
Frank, obviamente querendo mudar de conversa, disse:
— Danny, como está o Aaron? Tem visto?
— Ele está bem, papi. — Senti a frustração do Danny Ele queria que o pai perguntasse
sobre seus planos futuros, não sobre o passado.
— Bem — disse Frank. — Vou sentir falta dele no dia de Ação de Graças. — Que diabos
ele queria dizer com isso? Ele não tinha ideia do buraco em que estava se enfiando. —
Ainda não entendo por que vocês não resolveram as coisas. Talvez vocês dois precisassem
de um tempo, ver outras pessoas. Mas isso já passou. Por que não tentar de novo?
Danny jogou seu garfo no prato.
— É isso que você quer pra mim, pai? Que eu seja como você? Ficar num casamento sem
amor como você fez depois dos seus casos, para que todo mundo se sentisse péssimo?
— Danny levantou e deixou a sala. Uau!
Frank olhou para mim e para lisBETH, como se quisesse saber, o que eu fiz para merecer
isso? Sério, o Frank vive na terra dos sem-noção, e nunca vai entender a não ser que
alguém enfie a coisa toda pela garganta dele abaixo. Não sei por que eu queria ajudá-lo,
mas quis, provavelmente porque não gosto de ver o Danny magoado.
— Vá falar com ele — pedi ao Frank. — Ele nunca vai pedir sua ajuda, mas precisa dela.
Ele terminou com o namorado de muito tempo por causa de outro homem, e não deu certo.
Ele perdeu o negócio, praticamente perdeu o apartamento, e agora está de volta, começando
tudo do zero, falido, ansioso e solitário. — Frank hesitou, suas sobrancelhas de bonitão
franzidas enquanto considerava meu discurso, como se a obviedade do que eu dizia nunca
tivesse ocorrido a ele. — VÁ LÁ! — disse eu.
Frank jogou o guardanapo na mesa e seguiu Danny para fora da sala.
Eu peguei um terceiro biscoito. LisBETH faz biscoitos deliciosos; é uma pena que ela
nunca tenha tido essa vida de dona-de-casa.
— Bem — lisBETH disse —, acho que um feriado em família não estaria completo sem
pelo menos uma briga. Sabe, você tem um bom apetite.
— Obrigada. Você faz ótimos biscoitos. Pode me passar mais daqueles amanteigados sabor
morango?
LisBETH me observava enquanto eu comia, provavelmente sabendo que eu estava presa
por causa da minha fome e não podia fugir dela. Então ela pediu licença da mesa e eu achei
que ela ia ficar tentando ouvir a conversa do Danny e do Frank, mas, em vez disso, ela
voltou à mesa carregando sua pasta. Ela abriu e me passou um pacote de cartões-postais.
Havia quatro cartões turísticos, de Cleveland, Pequim, Dallas e Milão. Quando eu os virei,
vi que cada um deles foi endereçado a mim, com datas diferentes com alguns intervalos,
desde o verão passado, e cada um tinha um recadinho breve dela.
18/10. Cleveland: Sabe que o Rock & Roll Hall of Fame é aqui? Deveríamos visitar juntas
qualquer dia.
30/11. Pequim: Esta cidade faz Nova York parecer uma cidade fantasma.
23/01. Dallas: As líderes de torcida do time de basquete daqui irritam você tanto quanto a
mim?
2/03. Milão: Roupas, comida, roupas, comida; SUBLIME.
— Hum, obrigada? — disse eu a lisBETH.
— Nunca tive a chance de te mandar isso. Mas eu penso em você de vez em quando. — Ela
olhou para mim com esperança, como se de repente eu também tivesse escrito cartõespostais
para ela, mas também não tivesse conseguido mandar. Acho que eu poderia, se eu
tivesse pensado nisso. No futuro, decidi, eu vou fazer isso. LisBETH, minha nova amiga de
cartões-postais, assinados, selados, mas entregues.
Senti que, em troca, eu devia uma confissão a ela, já que eu não tinha correspondência para
dar.
— Meu namorado e eu vamos morar juntos no próximo outono — disse eu. — Mas não
conte a ninguém, ainda é segredo.
— Não vai se casar ou ficar grávida, vai? — disse ela, como se dissesse Não quero
competição no meu território de ambições!
— Ai, nada a ver — disse eu. Hum, pensei num plano. — LisBETH, tenho um amigo que
vai para uma das faculdades por aqui. Ele é estudante de administração, todo certinho, só
notas A, um cara legal. Acho que ele precisa de um emprego meio período no próximo
outono. Acha que sua empresa poderia dar uma olhada no currículo dele?
LisBETH tirou um cartão de visita da pasta e me passou.
— Fale para ele me ligar. Vou ficar feliz em pelo menos ajudá-lo a chegar até a porta.
Ei, ei: LisBETH, mulher mais velha e solteira, inteligente mas soterrada na carreira, quer
ser mãe, encontra Alexei, o não-tão-terrível, que só pensa na faculdade e tem fetiche por
mulheres mais velhas, e que vive na região durante o ano escolar, daria um ótimo papai.
Sou um gênio; não preciso de faculdade.
Mais tarde, Frank e Danny voltaram para a mesa, mais calmos e mais felizes, além de
cansados, e terminamos a refeição em paz. Quando chegou a hora de ir embora, Frank me
deu um miniabraço — do tipo que você se inclina e toca o outro, mas não um contato total
— e disse:
— Espero vê-la mais no futuro.
— Idem, Frank — disse eu.
No táxi de volta para o apartamento do Danny, ele colocou a cabeça no meu ombro.
— Foi terrível! — disse ele.
Eu massageei seu pescoço.
— Ah, deixa disso. Não foi tão ruim assim.
Trinta e Sete
É por isso que eu sei que o Siri me ama. Ele me pegou naquela noite na área de
desembarque do aeroporto em vez de no ponto para pegar passageiros lá fora. Você não
tem todo esse trabalho se não for por amor verdadeiro.
Eu estava tão feliz em vê-lo que o levantei em meus braços quando ele me abraçou. Sei que
ele é o homem e é isso o que se espera dele, mas ele também está registrado (até na
camiseta) como FEMINISTA, homem o suficiente para lidar com isso.
— Bom ver você também! — disse Siri depois que eu o soltei e enchi o rosto e o pescoço
dele de beijos. — Nova York te faz bem. Nossa, você está incrível. — Demos um longo e
profundo beijo de aeroporto, daquele tipo que, se você está desembarcando e não está
apaixonada, quer bater no casal por expor isso em público.
— Nova York é como uma injeção no braço — comentei —, faz você se sentir viva! Mas
tudo o que me faz sentir mais viva só traz mais saudades suas, e me deixa mais animada
para voltar para casa para ver você. — Repetimos o beijo e num minuto ouvimos três
grunhidos de "vão procurar um quarto" de quem passava. Quando soltamos os lábios,
perguntei. — O que você tem para me contar?
— Você vai ter de esperar um pouco mais, até que cheguemos a um lugar especial. — Eu
achei que fosse nosso lugar de agarramento, em Land's End, mas era bem fora de mão se
ele ainda tivesse de ir pra casa de Um Carinha Aí em East Bay, depois de me deixar em
Pacific Heights.
Na verdade, o lugar especial acabou sendo o restaurante Outback em Daly City.
— Hã? — disse eu, quando paramos no estacionamento lotado. Que pronunciamento
especial um vegetariano podia fazer num restaurante de carnes "australiano", que era tão
australiano quanto Frank Sinatra era venezuelano.
Depois de encontrarmos lugar para sentar, eu pedi um prato do mar em homenagem a você
sabe quem, e adivinha quem pediu o macarrão Walhalla sem carne. Quando a garçonete
pegou o pedido, Siri começou.
— A primeira notícia é essa: Iris e Billy vão voltar para a Nova Zelândia. Um amigo deles
tem uma casa lá e os convidou para ficar na casa de hóspedes, para cuidar da propriedade
quando eles forem viajar, e Iris e Billy vão ter umas terras para usar também. Vão virar
fazendeiros orgânicos.
— Fazendeiros. — De fato. Tem algo mais orgânico do que maconha? Me pergunto quem
os está tirando da cidade: Wallace e Delia ou a polícia federal. — Bom pra eles — disse eu.
— Ouvi dizer que é bem bonito lá.
— Exatamente! — disse Siri.
Meu cérebro juntou os pontos: Outback... Austrália.... perto da Nova Zelândia... —
Exatamente! — ... OH MERDA! Eu mal tinha acabado de computar a lógica do Siri, mas
ele não me deu chance de responder. Ele já tinha começado.
Siri ficou de pé ao lado do banco e ajoelhou-se. Ele esticou a mão, tirando um anel talhado
na madeira, com um desenho talhado e pintado como um pássaro kiwi. Isso não está
acontecendo, pensei. NÃO CHORE! Esse é o Outback em Daly City, pelo amor de deus! E
Siri é vegetariano.
Siri me olhou nos olhos.
— Sei que você não é do tipo que casa, mas estava me perguntando se você podia fazer
uma exceção no meu caso. Estou trabalhando nesse anel para você desde que a Iris e o Billy
me contaram as novidades. Quero mesmo mudar para a Nova Zelândia com eles. O surfe é
foda lá, e posso fazer minha arte, e podemos viajar por toda Austrália e Indonésia e Bali.
Adorei essa parte do mundo que vi no verão passado, e quero mais, mas não dá sem você lá
comigo. A ideia de East Bay era boa, mas essa é muito melhor! Podemos fazer um
mochilão pela Tasmânia, Sydney, Perth, depois pelas ilhas do Pacífico Asiático e por toda a
Nova Zelândia. Surfistas têm sua própria comunidade, sempre se ajudam, então sempre
vamos ter lugar para ficar, onde quer que formos, e podemos ganhar grana com um trabalho
aqui, outro ali quando precisarmos. Podemos ficar com Iris e Billy como base. Os amigos
deles, que fizeram o convite, têm uma casa fodona, enorme, eles dizem. Porra, te amo tanto
que, tipo, dói. Você é a menina mais bacana que eu poderia encontrar na minha vida. O que
você diz?
Uma garçonete carregando uma enorme bandeja de entradas tropeçou no Siri que estava de
joelhos, empurrando o rosto dele na direção do meu joelho. Então ele olhou para mim como
um cachorrinho.
Eu não tinha ideia do que dizer, então balancei minha cabeça em confusão e só fiquei
assustada com a proposta. Siri achou que minha cabeça assentindo e as lágrimas caindo no
meu rosto só podiam significar um sim. E eu não tive forças para contrariá-lo, não quando
ele colocou o anel na minha mão, ficou de pé e esticou as mãos para eu ficar de pé, e dessa
vez me levantou no ar. Os outros fregueses do Outback aplaudiram, vários gritinhos vieram
das mesas ao redor, e duas garrafas de cerveja australiana Foster's, cortesia, chegaram à
nossa mesa — que o gerente do restaurante prontamente levou embora quando nem eu nem
o Siri conseguimos desgrudar nossos lábios para mostrar nossas identidades.
Eu agora estava grata pelo Siri ter escolhido o Outback para sua proposta, porque ninguém
que Sid e Nancy conheciam apareceria por lá, e meus pais teriam ataques cardíacos
simultâneos quando eu contasse a eles, então era melhor não ter espiões para contar as
novidades primeiro.
Depois do choro e do beijo e do aplauso, Siri e eu nos sentamos frente a frente novamente.
Peguei sua mão por baixo da mesa, admirando meu novo anel. Eu disse:
— Eu sei que quero ficar com você. — Na verdade, talvez o casamento não fosse uma ideia
tão ruim. Se nos casássemos, ficaríamos unidos um ao outro. Sem distrações como Lu-isi
ou garotas surfistas que poderiam ter o potencial para nos separar. E por que me importar
em me transformar numa garota da East Bay se eu podia flanar pelo mundo com minha
alma gêmea? Bem, seria longe de casa, e se Sid e Nancy até agora tinham apoiado meu
relacionamento com Siri, esse novo passo iria levá-los ao limite da histeria e das brigas e da
desaprovação total. Alcatraz não seria mais uma opção nesse momento, porque tenho quase
18 anos, e depois do meu aniversário eu posso fazer o que quiser e ir onde quiser, com
quem eu quiser desde que queira seguir meu próprio caminho. E se eu quiser casar com o
Siri, dedicar meu futuro a ele, porque ele é o melhor futuro que eu posso imaginar, bem, é
minha escolha, não deles. Sid e Nancy ou Ash e Josh, Danny, Pão-Doce e Fernando, Helen
e Autumn, minha família, as pessoas com quem mais me importo, eles vão ter de viver com
minha decisão e com o fato de que eu não vou estar presente na vida deles. Eles vão ter de
me amar mesmo assim, e eu vou ter de superar a dor da saudade.
Mas ficar com Iris e Billy como nossa "base"?
— Não tenho tanta certeza sobre seguir seus pais. Talvez essa parte não seja a melhor ideia.
— Mas eles vão para lugares legais — disse Siri. E daí? Eles também são loucamente
irresponsáveis! Iris e Billy fazem o que lhes dá na telha, como abandonar a filha da Iris do
primeiro casamento, para que eles pudessem ficar juntos, ou deixar o Siri aos 14 anos com
o Wallace, para que pudessem ir para Papua-Nova Guiné. Nancy também pode ser louca,
mas pelo menos não é irresponsável, e ela está nessa enquanto durar o jogo, venha o que
vier. (Ela também não é louca de verdade, apesar de que eu pularia no Grand Canyon antes
de admitir isso na cara dela.). Tá certo, e gosto da Iris e do Billy, afinal, eles criaram o Siri,
mas não quero prender meu destino ao deles.
— Nova York é legal. Isso não quer dizer que eu vá morar lá porque meu pai mora.
— Isso é diferente, você sabe. E você disse sim. — Siri ficou de pé no banco e bateu em
seu peito como Tarzã. — ELA DISSE SIM! — ele anunciou para todos os fregueses no
restaurante lotado que podiam não ter ouvido a proposta de joelhos mais cedo. Ele ensaiou
uma dancinha de hip-hop antes de o gerente do restaurante dizer a ele que se sentasse ou
teria de ir embora.
Só que eu não disse sim, pelo menos ainda não. Estou pensando.
Trinta e Oito
Então vamos ter um casamento e um novo bebê na família. Nancy vai ter sua festa no
jardim afinal.
Escolhemos o dia 15 de maio para o casamento, a data do aniversário da passagem de
Frank Sinatra deste plano mortal, porque o papai Sid disse que queria que essa data fosse
associada a novos começos para pessoas da nossa família. Como ele estava bancando o
casamento, ele pensou que deveria ter alguma influência na data.
Eu usava um vestido lavanda de seda chinesa que lisBETH me deu ano passado, que foi o
favorito da avó dela (minha também, apesar de eu nunca tê-la conhecido), mas eu não pude
ficar com aquele terror de sapato de salto, então fiquei descalça com esmalte preto e
anelzinho de madeira no dedo com o desenho de um kiwi. Siri mudou seu cabelo para a
ocasião, então parecia com quando eu o conheci — cabelo louro-sujo curto com uma
mecha platinada espetada na frente. Usava um terno maior do que ele e uma gravata do
Wallace, que o fazia parecer com um professor da escola dominical com cabelo punk, da
Igreja dos Chapados. O olhar de paixão do rosto do Siri no jardim dos fundos da casa dos
meus pais aquele dia era o mesmo que ele me lançou no dia que nos conhecemos no quarto
da Pão-Doce na casa de repouso. Quando olhei de volta para ele, nessa confusão mental
que estávamos desde que voltamos do Outback, eu sabia que nunca amaria outra pessoa na
minha vida como eu o amo.
Quando Pão-Doce e Fernando disseram seus votos para o juiz, sob uma tenda construída
para a ocasião, cheia de rosas brancas e vermelhas, eu fiquei do lado da Pão-Doce, sua
dama de honra, e Alexei ficou do lado do Fernando, o padrinho. Cadeiras estavam
montadas no jardim para a cerimônia, mas foi um evento pequeno, só a família e alguns
amigos. A filha do Fernando e os netos estavam lá, Sid e Nancy e as crianças, Helen e
Autumn, e Siri, Wallace e Delia. Iris e Billy tinham ido para a Nova Zelândia quase
imediatamente quando os chamaram. Nancy estava sentada perto da Dee, tocando a barriga
dela que crescia, e conversando sobre os enjôos matinais.
O parto da Delia vai acontecer em novembro, e o da Nancy em dezembro. Pode confiar em
minha mãe para fazer algo fashion como ficar grávida nessa idade avançada. Nancy parece
feliz, mas relutante. O papai Sid está em êxtase. Ele já está fazendo entrevistas para uma
nova empregada e uma babá, então no final Nancy ganhou novamente. Não acho que essas
novidades sejam como um programa de TV em que os roteiristas ficaram sem ideia então
eles enfiam um bebê tardio para rejuvenescer os velhos pais cansados. Vou sair do limbo
aqui e dizer que duas pessoas que casaram por conveniência — Sid para que pudesse ser
pai e protetor, Nancy para que pudesse ser rica e protegida —, finalmente, mais de
dez anos depois do fato, se apaixonaram. E com o bebê passamos a ser seis. Ainda é
terrível, mas não totalmente.
O apartamento do lado da nossa casa foi reformado para dar acesso à cadeira de rodas nos
dias de diálise da Pão-Doce, e ela vai se mudar para lá depois da lua-de-mel na
Disneylândia com os netos do Fernando. Acho que alguém devia construir uma
comunidade para idosos que fosse também um parque de diversões, onde as rugas nos
rostos dos velhinhos fossem como o mapa de suas vidas, e todas as atrações fossem
adaptadas para acomodar cadeiras de rodas e perda de memória e uma lista completa dos
efeitos colaterais provocados pelos remédios.
Depois do último Natal, quando Fernando não levou Pão-Doce para a Nicarágua para
conhecer sua família lá, ela perguntou para ele:
— Você está nessa ou não está?
Fernando disse a ela que achou que seria muito difícil viajar com ela por causa das suas
necessidades de diálise, e a Pão-Doce respondeu:
— Onde há vontade, há jeito, e eu repito: está nessa ou não?
Fernando então disse:
— Sim, estou, se você estiver. — Mas enquanto a Pão-Doce só queria dizer que queria ir
junto em sua próxima viagem para a Nicarágua, porque ela ouviu que aquele era realmente
um lugar legal, Fernando queria dizer que queria oficializar seu amor verdadeiro. E foi
assim que a Pão-Doce se tornou noiva pela primeira vez aos 70 e poucos anos de idade, e
provavelmente a única pessoa que eu vou conhecer que saiu da casa de repouso para
começar uma nova vida, em vez de esperar para morrer. Ela ficou uma linda noiva em seu
terninho branco e chapeuzinho, de pé com uma bengala que Ash e Josh decoraram com
fitas de flores e minibarras de chocolate. Foi o Fernando, o alto e rabugento homem de
ferro usando um terno preto de seda italiano excelente, que chorou durante a cerimônia.
Depois da cerimônia, puxei Alexei de lado para passar o cartão da lisBETH.
— Só porque você é uma fraude intelectual não quer dizer que Wall Street não teria sorte
de ter você — disse a ele. — Aqui está o cartão da minha irmã. Ela é gerente administrativa
numa grande firma de investimento. Ela precisa de um estagiário para ajudá-la em meio
período no próximo outono. Ligue para ela, falou? — Regra número um de formação de
pares, por Cyd Charisse: sempre faça uma armação, sem que as duas partes interessadas se
encontrem sabendo que é um encontro. Foi como eu juntei a Pão-Doce e o Fernando, e eu
tenho de confessar que as evidências estão a favor do meu método nesse caso.
Siri veio para o meu lado e pegou minha mão. Eu olhei para Pão-Doce e Fernando,
segurando as mãos, radiantes, e pensei, Pão-Doce esperou a vida inteira para ter seu
momento, eu mal tenho 18 anos e poderia ter o meu agora, se eu quisesse, Mas o meu seria
tão de coração e aceito por meus amigos e família? O meu duraria? Josh se colocou do meu
outro lado e pegou minha outra mão. Ele olhou para mim com sua cara de menino
bonitinho e disse:
— Siri disse que vocês vão me levar na montanha-russa em Santa Cruz depois que você se
formar. Você vai ficar aqui todo o verão e não vai embora como no verão passado, não é?
Estive pensando na proposta do Siri desde a noite no Outback, e deixei-o pensar que
iríamos, mas neste momento, vendo o rosto confiante do Josh, eu soube qual era a minha
resposta. Logo, eu teria de contar ao Josh que quando eu assegurei a ele que eu não ia
embora, eu queria dizer por um tempo, mas as coisas mudam, as pessoas mudam, eu iria.
Mas primeiro eu tinha de contar ao Siri.
Mais tarde naquela noite, depois que os convidados tinham ido embora e tudo já estava
limpo, Siri e eu andamos por Presidio para conversar sobre nossos planos. Ficamos em Fort
Point, no velho prédio militar de tijolos embaixo da ponte Golden Gate, onde se passa o
filme do Hitchcock, Um corpo que cai, com a moça das sobrancelhas assustadas pulando na
água fria da baía e o pobre Jimmy Stewart tendo de mergulhar para salvá-la.
Nos sentamos na beira da água, com nossos pés balançando sobre a baía. Não sou de
enrolar, então eu soltei de uma vez. Disse ao Siri:
— Se vou ficar numa ilha, quero que seja numa cidade no centro do universo, não uma que
é sua própria nação no fim do mundo. Não quero ficar tão longe da minha família. Se eu
quisesse me casar, eu iria querer você como marido e parceiro a vida toda, mas não estou
pronta para me casar ainda. Não podemos ir para Nova York?
Siri respondeu como se tivesse um roteiro, como se estivesse praticando o que dizer quando
chegasse o momento da verdade.
— Quero surfar, viajar, pintar, sem o peso de um trabalho fixo ou a necessidade de pagar o
aluguel. Quero liberdade para nós dois. — Ele respirou no meu pescoço da forma que eu
amo, e apesar de eu não afastá-lo, eu me afastei um pouco, então estávamos nos olhando
nos olhos.
— Você diz que quer liberdade para nós dois, mas acho que você quer mesmo é para você.
Ele esfregou o anel de kiwi que tirei do dedo do pé e coloquei no da mão.
— Se isso fosse verdade, eu teria feito isso para você? — ele perguntou. Levou meu dedo
para sua boca.
— Sim — eu retruquei, apesar de não ter tirado meu dedo. Ele é um artista; é o que ele faz:
fala através da arte. Mas um anel de kiwi era seu desejo de ir para a Nova Zelândia e não
me perder ao mesmo tempo, e não seu desejo de se casar comigo. Não quero ser uma
esposa porque o Siri está sem opção. — Você vai ter de escolher entre a Nova Zelândia e
sua namorada.
— Não posso — murmurou ele, soltando meu dedo.
Eu o beijei longa e profundamente para que ele soubesse que quando eu tirasse minha boca
da dele, não haveria amargura nas minhas palavras.
— Você acabou de escolher, querido.
Eu pude sentir o alívio em sua boca quando se inclinou para me beijar de volta. Não
precisamos de palavras para terminar essa conversa. Mãos, corpos e lábios podiam tomar
conta da nossa conversa, em particular, no banco de trás daquele carro histórico.
Trinta e Nove
Se minha vida fosse um filme, aqui estaria a cena final. Uma narradora iria contar (numa
voz brega de atriz cheia de melancolia adolescente precoce e super-sabedoria) que eu achei
que meu ano seria todo dedicado ao Siri, mas, na verdade, foi dedicado a mim. Uma rápida
montagem de clipes iria lembrar o público procurando os últimos vestígios de pipoca do
saco na sala de cinema de chão grudento que, além de me apaixonar perdidamente (mas não
como louca de pedra, como da última vez), eu também me tornei parte da minha própria
família e encontrei garotas da minha idade que são realmente bacanas e que valem a pena.
Bem, tecnicamente eu só fiz duas amigas, e tenho de discordar do Danny — eu mereço
SIM uma pontuação tripla por Autumn, mas isso não me faz gostar menos dela ou da
Helen, ou apagar o fato de que tenho amigas mulheres.
A montagem da vida-como-um-filme iria para a última cena com minha alma gêmea e
amor verdadeiro. Coloque nesta cena uma trilha sonora de algum cantor folk com cabelo
bagunçado que basicamente pareça um branco entediado, e veja a mim e o Siri em nossa
despedida desaparecendo no horizonte num dia raro de sol em Ocean Beach, bem quando o
grande sol vermelho mergulha no Pacífico. Nossa despedida seria triste e doce ao mesmo
tempo; nenhum olho ficaria seco quando tomássemos caminhos diferentes. Mas então —
surpresa! Não saiam do cinema ainda, crianças, porque lá estou eu ao lado do Siri no avião
para a Nova Zelândia, fazendo um comentário sentimental sobre não deixá-lo ver o outro
lado do mundo sem mim, e agradeça ao roteirista por jogar a palavra "antipódico" no
diálogo final antes do grande beijo. Amor verdadeiro, desaparecendo no pôr-do-sol
enquanto o avião viaja por céus de pôr-do-sol. Créditos.
No não-filme estrelado pela não-estrela Cyd Charisse, ficamos com a última cena em
Ocean Beach, mas no que acabou sendo o dia mais frio, mais cheio de neblina do ano —
sério, dava para ver nossos corpos cortando a neblina enquanto eu e o Siri andávamos pela
praia. Pelo menos em Nova York, quando fica frio assim, também há neve. Dá para brincar
com a neve. Não dá para fazer nada com a neblina.
A Nova Zelândia era uma perspectiva interessante, e tenho certeza de que só a troca de
costumes pelos da nova cultura já valeria a pena, mas no final eu decidi compartilhar as
diferenças com a minha família. Não vou para tão longe, mas para Nova York. Vou dividir
o apartamento com o Danny por um tempo, arrumar emprego num café e fazer algumas
aulas na escola de culinária onde o Danny é professor, e se eu gostar, talvez me inscreva no
Culinary Institute of America, ano que vem.
Não vou para Nova York sozinha — minha pontuação tripla acabou vindo junto. Autumn
surpreendeu a todos largando a Califórnia em troca de uma bolsa e muitas dívidas de
crédito estudantil na universidade de Columbia, então vamos conquistar Manhattan juntas.
Helen, que qualquer um pensaria que seria a mais ansiosa para fugir para a bizarra cidade
de Nova York, vai ficar em casa na Califórnia. Ela foi recusada pela escola de artes que
queria — aparentemente o Caçador de Bolas é "recriação de outros personagens" — mas
ela nos surpreendeu mais do que Autumn por decidir ir para a UC-Santa Cruz, onde ela vai
mostrar que esses merdas da escola de arte estavam errados. Ela não admite, mas apesar da
Helen dizer que a escolha dela permite que fique perto do namorado, a verdade é que eu
acho que ela não estava pronta para ficar longe da mamãe.
Pão-de-Mel está saindo do repouso, como Pão-Doce, e foi permanentemente liberada da
prisão da Ash (Ash diz que está "muito velha" para bonecas, sim, certo) então ela vem para
Nova York comigo e com Autumn. Subir cinco andares é uma droga, então Pão-de-Mel
provavelmente só vai ficar na minha cama no Greenwich Village.
Agora entendo como o Danny e o Aaron ainda podem se amar, mas terem terminado, fim,
finito. Por que dói mais perder alguém que você ama do que alguém que você despreza?
Siri e eu entendemos: eu te amo, você me ama, mas você segue seu caminho e eu o meu, e
não vamos nos enganar acreditando que um de nós vai ficar esperando pelo outro. Nunca
vamos ser o casal que mente dizendo "vamos ser amigos para sempre", porque não vamos.
Vamos sempre ser o primeiro amor um do outro, e eu suspeito que sempre vamos encontrar
um caminho de volta para a vida do outro, mas amigos? Duvido. Talvez mais tarde na
minha vida, Siri reapareça e seja um ótimo segundo marido, depois que eu tiver casado por
uma paixão tempestuosa, mas então meu marido número um vai me largar por uma babá
adolescente quando eu me tornar uma chef de restaurante superbem-sucedida que pensa que
está indo muito bem equilibrando carreira e família, e talvez esteja, mas infelizmente casou
com um idiota. Siri vai ter tirado toda essa coisa de viagem e liberdade do sangue e depois
vai estar pronto para descansar na cidade que nunca dorme e vamos nos mudar para Ocean
Beach para criar meus filhos, talvez alguns filhos a mais se nos sentirmos muito parecidos
com a Nancy, de volta ao lugar onde tudo começou. Eu posso cozinhar e ele pode fazer arte
e surfar em Ocean Beach, e vamos estar estabelecidos e velhos.
Siri e eu trocamos esse longo e profundo beijo hollywoodiano em Ocean Beach, mas
estávamos com tanto frio pela temperatura congelante que nossos lábios estavam quase
azuis e com o risco de congelarem um no outro. Talvez essa coisa de bater os dentes, de
estar tremendo fosse uma mensagem cósmica de Deus ou Buda ou Alá ou o que fosse para
que eu e o Siri nos separássemos. Depois desse momento em Ocean Bech, Siri tinha de sair
imediatamente para o aeroporto para ir para a Nova Zelândia. Decidi não ir até o aeroporto
com ele. Não consigo ser esse tipo de garota, chorando e se lamentando e me agarrando a
ele até o último segundo. Não vou ser dessas, porque no fundo é o que eu quero ser. Quero
o adeus cheio de lágrimas, o beijo longo, as falsas promessas e a corrida até o balcão do
aeroporto para comprar uma passagem e seguir o Siri até o fim do mundo, se for isso o
necessário para ficar com ele.
Ele vai estar sempre no meu coração, mas me encarreguei de assegurar que o Siri fique
fisicamente comigo pelo resto da vida, não importa em que parte do universo ele esteja. No
ponto obscuro e não-sexy que fica embaixo do meu braço (escolha em respeito aos meus
possíveis futuros namorados) eu tenho uma tatuagem, minha primeira, um desenho de um
siri rosadinho. Ele tem uma tatuagem de uma minibarra de Crunch no mesmo lugar em seu
braço.
Nossa cena final de beijo foi interrompida pelo latido de Aloha, o cachorro que Iris e Billy
deixariam órfão, se, claro, Wallace e Delia não o tivessem adotado; eles não iriam deixar o
cachorro sofrer pela maneira irresponsável de ser de seus pais. Até Aloha estava com frio
demais nesta cena e queria ir pra casa. Os lábios do Siri se afastaram dos meus, mas eu me
inclinei sobre ele para sentir mais um pouco do gosto de sua boca com sabor de expresso.
Meus lábios deixaram os dele, tocando suas bochechas, seu nariz, seus olhos, para deixar a
lembrança de seu rosto frio em minha mente.
— Burr-ito — disse ele.
Memória completa. Siri pegou minha mão enquanto caminhávamos em direção à Great
Highway. Não estou preocupada. Quando cruzarmos as dunas da Great Highway e virmos
o carro do Wallace e Delia esperando na rua para levar o Siri para o aeroporto, eu soltarei a
mão dele. Eu vou me afastar e não vou ficar tentada a olhar para trás. Sei que, no final da
estrada, sempre haverá um Siri.
FIM
Créditos: Comunidade do orkut sem fins lucrativos - Digitalizações de Livros

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