terça-feira, 9 de julho de 2013

Rachel Cohn - Pão de Mel 01


RACHEL COHN Pão-de-mel Tradução de SANTIAGO NAZARIAN
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Orelhas do livro: Segundo seu padrasto, Cyd Charisse é uma "arruaceira em recuperação", e ele tem boas razões para pensar assim. Ela foi expulsa do colégio interno, se delicia em ensinar palavrões para a irmã mais nova e insiste em fugir de casa para passar a noite com seu namorado, Siri. Nesta nova fase "sem aulas", ela tem de voltar para São Francisco e conviver com sua família. Não demora muito tempo para Cyd aprontar novamente: dorme fora de casa mais uma vez e ganha um belo castigo de presente. Fica claro que o melhor para todos é que ela fique longe do seu amor surfista — de preferência a milhares de quilômetros. E é o que acontece. Cyd é mandada para Nova York, onde vai morar com o pai, Frank, que não a vê há anos... A melhor lembrança que ela guarda dele é Pão-de-Mel, uma boneca de pano que ganhou aos 5 anos e de quem nunca mais se separou. Deixar Siri para trás definitivamente não estava em seus planos, mas trocar o pesadelo que é sua casa com a mãe e o padrasto pelo hype das ruas de Nova York pode ser bem legal. Mas o verão na cidade não é o que ela esperava — e Cyd está longe de ser o que a nova família imaginava. Com Pão-de-Mel, Rachel Cohn cria um romance encantador, com personagens reais que ficarão no imaginário dos leitores por muito tempo. Irrepreensível e adorável, Cyd Charis-se tempera os dilemas da adolescência com bom humor e irreverência. RACHEL COHN cresceu nos arredores de Washington, D.C. e viveu em São Francisco por muitos anos. Atualmente, mora em Nova York. Pão-de-Mel é seu romance de estréia, originalmente inspirado no desenho de um amigo e escrito nas longas horas que passou em cafeterias ou andando pelas colinas de Ocean Beach e Pacific Heights, em São Francisco. Contra-capa: Depois de ser expulsa do colégio interno, a rebelde, obstinada e viciada em café Cyd Charisse volta a São Francisco para viver com a mãe e o padrasto. Mas para ela não há como sobreviver neste lar imaculado: Cyd quer ser livre, e não se importa em quebrar as regras. Felizmente ela tem Pão-de-Mel, sua inseparável e confidente boneca de pano, e seu novo namorado surfista, Siri. Quando sua rebeldia sai do controle, seus pais a despacham para Nova York a fim de passar o verão com seu pai, Frank. Trocar o tédio de São Francisco pelas ruas agitadas de Nova York pode até ser legal. E conviver com o pai e os meios-irmãos era algo que a garota esperava havia muito tempo. Mas o verão na cidade não corre como ela planejara — e Cyd está longe de ser o que a nova família imaginava.
Para Daina e Rob Agradecimentos Agradeço a Steve Malk, David Gale, John Rudolph, Daina Cbiu, Rob Coffman, Stepbanie Gillis, Maura Brown, Wendy Zarganis, Elizabeth Bryer, Irving e Lenore Cohn, Elizabeth Cohn, Steven Merrill e Shelagh Sayers, Marcy e James Silliman e Ângelo e Mary Lee Russo o seu apoio e encorajamento.
Um Aqueles que chamo de pais detestam meu namorado, Siri. Nem sei se acreditam que ele é meu namorado. Só de olhar para o seu visual largado, de camisetona de surfe, e jeans caído, comendo biscoitos Pop Tart, com o cabelo espetado, já dá para ver a confusão explodindo como bombas nas suas cabeças, como se pensassem "Ah, não, Cyd Charisse, esse rapazinho não é para você." Mas garanto que é. Pelo menos Siri se lembra de chamar minha mãe de senhora, em vez de ficar só grunhindo para ela, como faz a maioria dos caras da minha idade. E nenhum pai pode negar que sair com Siri é um avanço em relação a Justin, meu ex do antigo colégio onde eu estudava. Justin me trouxe grandes problemas. Mas essa fase já era. Não que Sid e Nancy se importem com isso. Fiz aos meus pais o favor de me tornar mais ou menos invisível. Sid, meu pai, diz que sou uma "arruaceira em recuperação". Sid é na verdade meu padrasto. Pode-se praticamente dizer que não conheci meu pai verdadeiro. Eu o encontrei no aeroporto uma vez, quando eu tinha cinco anos. Era alto e magrelo e tinha cabelo preto retinto, igual ao meu. Almoçamos numa lanchonete enfumaçada no aeroporto Dallas-Fort Worth. Não gostei do meu hambúrguer, então meu pai abriu sua pasta e me ofereceu um pedaço de pão de mel caseiro que ele tinha embrulhado em papel-alumínio. Comprou para mim uma boneca de pano marrom numa loja do aeroporto. A própria moça do caixa havia feito a boneca. Disse que tinha deixado ela escondida embaixo da registradora esperando apenas pela garota certa. Meu pai verdadeiro deu à moça uma nota de cem dólares e lhe disse para ficar com o troco. Dei à boneca o nome de Pão-de-Mel. Nancy e eu estávamos a caminho de São Francisco para entrarmos para a família de Sid. Meu pai biológico estava voltando para Nova York, para sua esposa e família verdadeiras, que nem sabiam da minha existência. Tenho quase certeza de que a verdadeira esposa do meu pai não se
importaria por eu fazer cortes de tesoura nos meus braços e depois ficar cutucando as feridas. Sua esposa provavelmente faz pão de mel todo dia, escreve listas de "Coisas a Fazer" e faz suas próprias compras no supermercado, em vez de ter uma empregada e um motorista que cuidem de tudo por ela, como Nancy tem. Nancy só viu Justin uma vez, na reunião sobre a expulsão. O diretor disse a ela que Justin e eu fomos pegos nos agarrando numa sala cheia de garrafas de Jack Daniels e remédios tarja preta. Em flagrante delicio foram as palavras que o diretor usou. Fui reprovada em latim. Nancy disse que Justin era "de uma excelente família de Connecticut" e perguntou como eu poderia envergonhar a ela e a Sid daquela maneira. Era Justin que estava vendendo ecstasy em frente a seu quarto, não eu. Foi Justin que disse que escapou por pouco. Sid e Nancy nunca souberam dessa parte. Nancy entrou no meu quarto uma noite depois que voltei para São Francisco. Sid e meus meios-irmãos mais novos estavam na reunião dos pais na escola onde eles estudam francês. — Espero que seus namorados usem camisinha — disse Nancy, o que era engraçado, porque ela sabia que Siri era meu único namorado. Ela jogou uma caixa de camisinhas Trojans na minha cama com colcha de renda e quatro colunas, que eu odiava. Siri é um garoto cuidadoso, ele pensa nisso tudo. Se a história do internato tivesse sido com Siri, ele teria ido comigo para a clínica. — Posso colocar um futon no chão em vez dessa cama ridícula de princesa? — perguntei. Só de pensar que minha mãe sabia sobre contraceptivos, sem falar em ficar distribuindo coisas para isso, já era inacreditável; discutir a respeito, nem pensar! Nancy suspirou. Suspirar é o que ela faz em vez de comer. — Paguei dez mil dólares para redecorar este quarto enquanto você estava no internato. Então não, você não pode, Cyd Charisse. Todo mundo na minha família me chama pelos dois nomes, já que o nome do meu pai se pronuncia da mesma maneira que o meu. Quando tinha vinte anos e estava grávida de mim, Nancy achou que acabaria se casando com meu verdadeiro pai. Me deu o nome daquela atriz-bailarina de uns mil anos atrás que estrelou um filme que Nancy e meu pai biológico assistiram
no seu primeiro encontro, antes de ela descobrir que ele tinha toda uma outra vida. A verdadeira Cyd Charisse é uma espécie de deusa do sexo, incrivelmente linda. Eu até que sou bonitinha. Mas nunca poderia ser divinamente sexy como a verdadeira Cyd Charisse. Quero dizer, só há espaço para tanta graça e beleza em uma pessoa chamada Cyd Charisse, não em duas. Nancy tirou um pacote de balinhas de sua jaqueta de grife e ofereceu para mim. — Quer um pouco do meu jantar?
Dois Eu podia não ter me apaixonado por Siri, se não fosse por Pão-Doce. Ele estava passando pelo quarto de Pão-Doce, na casa de repouso, cantando uma música que falava de pegar o trem A em algum lugar. Pelas fotos em cima da cama da Pão-Doce, dava para dizer que Siri devia ter a mesma altura da irmã gêmea dela falecida há tempos, que também tinha cabelo-castanho claro e um jeito desleixado. Mas Pão-Doce não enxergava muito bem, então acho que foi a música que chamou sua atenção. — Querida, é você? — chamou Pão-Doce. Ela não via nada, mas ouvia de São Francisco até seu estado natal o Mississípi. Estava tão distraída pela música de Siri que pôs as cartas na bandeja de comida e pude ver que na próxima jogada ela me pegaria se eu baixasse o rei de copas, como estava prestes a fazer. — Pão-de-Açúcar? — chamou Pão-Doce. Pequenas lágrimas escorriam pelas fendas de seu rosto enrugado. Pão-de-Açúcar ia ser a dama de honra no casamento de Pão-Doce com um membro das forças armadas que ela havia conhecido em Biloxi, durante a Segunda Guerra Mundial. Mas Pão-de-Açúcar e o noivo fugiram juntos e desapareceram. Dois dias depois estavam mortos. Caíram com o carro num abismo em Nevada quando o freio de mão se soltou. Estavam no banco de trás se esfregando sob as estrelas. Pão-Doce não guardava rancor. Nunca encontrou outro marido, mas teve um cachorro, um labrador chocolate chamado "Açúcar", que era seu melhor amigo. Açúcar, o cachorro, morreu pouco antes de Pão-Doce vir morar na casa de repouso. Foi quando eu me tornei sua família. No começo, só vinha porque o serviço comunitário era parte das determinações do juiz pelo meu probleminha de roubo de loja. Mas agora venho porque adoro Pão. Siri ficou parado na porta do quarto de Pão-Doce. — Açúcar? Alguém disse açúcar? — perguntou ele tirando uma torta de limão da mochila e oferecendo para Pão. Ela balançou a cabeça, respingando pequenas lágrimas no meu braço. Eu nunca tinha visto Pão-
Doce recusar doces. Dei a ela meu rei de copas, mesmo que, por minhas regras, não deixasse ninguém ganhar nas cartas só por ser velho. Siri me olhou e disse: — Ei, você é da escola. — Ele tinha uma voz estranhamente profunda e grave, que você não esperaria em alguém tão baixo e esquelético, e tinha cabelo castanho-claro, com uma mecha platinada e espetada na frente, sobre a testa. Se eu fosse uma personagem de desenho animado, apareceriam as letras D-E-S-E-J-O piscando nos meus olhos, como os mostruários de caça-níqueis de Las Vegas. Desde que fui chutada do chique internato na Nova Inglaterra, andei freqüentando escolas "alternativas" de artes em São Francisco. A escola é na verdade apenas um depósito para os filhos de pais ricos que não são totalmente desajustados socialmente, mas que não têm interesse de serem crianças-perfeitas-na-última-moda. Eles também têm uma bolsa para estudantes com talento de verdade, como Siri. Pão-Doce olhou Siri com aquele cabelo arrepiado e uns olhos azuis profundos, — Cyd Charisse, eis a sua estrela — disse Pão-Doce. Ela era vidente e lia tarô em seu próprio consultório, antes de se aposentar. A tristeza de Pão-de-Açúcar havia deixado Pão-Doce sonolenta. Foi pegar algumas moedas enfiadas embaixo do colchão. — Vocês dois, tomem um café por mim — disse ela, Não aceitamos o dinheiro, mas aceitamos a sugestão. Após três mochiatos com cafeína reduzida, Siri havia se tornado meu homem. Era o primeiro e único amigo da minha idade que eu havia feito desde que voltei da Nova Inglaterra. Ele me disse que seu serviço comunitário na casa de repouso era a pena por fazer uma excursão à meia-noite a uma exclusiva academia de ginástica de yuppies na marina e grafitar um mural do lado de fora fazendo um porco suado, com cifrões no lugar dos olhos. Quando perguntou como fui parar diante de um juiz, contei sobre o meu antigo hábito de furtar em lojas de equipamentos cirúrgicos. Siri fez um desenho meu cutucando uma ferida na coxa. Desenhou minha saia muito mais curta do que era realmente, mas capturou perfeitamente minhas longas pernas e botas de combate. Sou uma verdadeira tábua, mas em matéria de pernas, sou muito bem servida.
Não me importei de ser 12 centímetros mais alta do que Siri — mais ainda quando uso minhas plataformas de 12 centímetros — ou por ele escutar disco music numa vitrola antigona que herdou do irmão mais velho. Eu estava sofrendo de síndrome pós-traumática de Justin, e Siri era exatamente o que eu precisava. Ele tem um coração enorme.
Três Um dia vou ter minha própria comunidade num lugar como o Taiti. Não um desses esquemas psicóticos dos quais as pessoas têm de ser desprogramadas depois, mas algo como uma cabana gigante feita de palha e barro. Artistas, fugitivos e músicos virão e pintarão seus rostos e dançarão como se fossem guerreiros tribais. Nossos uniformes vão ser saias de grama e camisas feitas de flores. Golfinhos vão nos deixar cavalgar nas suas costas e não vamos explorá-los depois fazendo filmes idiotas sobre eles. Siri e eu vamos ter nosso próprio quarto e vamos dormir num saco feito de plantas nativas. Vamos descobrir um jeito de cultivar esse troço. Pão-de-Mel vai ter sua própria casa de bonecas sob uma janela com brisa do mar, no nosso quarto. Vamos mandá-la brincar lá fora quando quisermos aprontar. Pão-Doce vai ter um quarto especial na nossa comunidade. Vai ser de frente para o mar. Não vamos ficar bravos quando ela disser para ficarmos quietos porque seu programa está passando. Vamos ter uma antena parabólica gigante no topo de uma montanha, vulcânica, com a palavra "Pão-Doce" grafitada só para ela. Sid, Nancy e seus filhos vão nos visitar nas férias e declarar que nossa comunidade é "fofa". Não vamos ligar quando Nancy mudar de lugar a mobília que nós construímos. Podemos pôr tudo no lugar depois que ela for embora. Vamos até deixar meu verdadeiro pai vir e ficar sempre que precisar escapar das luzes ofuscantes e da cidade grande e tirar férias de sua velha esposa e filhos. Siri, Pão-Doce e eu vamos esperar na praia até seu barco aparecer no horizonte. Quando ele desembarcar, vai ter pão de mel quentinho à sua espera. Ele pode até ficar para sempre.
Quatro Siri mora com o irmão mais velho, Wallace, numa cabana com estrelas-do-mar pintadas no teto na rua que acompanha a Ocean Beach. Eles têm um telescópio no telhado. "Wallace e Siri são surfistas. Não daquele tipo "e aí, brôu, vou pegar um bronze e curtir umas ondas iradas", fazem mais o estilo surfista zen. Você tem de ser bem tranqüilo para querer surfar na neblina, com água congelante, cercado de placas avisando quantas pessoas morrem na correnteza forte de Ocean Beach. Se Wallace e Siri pudessem passar o tempo todo surfando, pintando e tomando café, seriam pessoas muito felizes. Justin nem saberia o que fazer com uma prancha de surfe se alguém enfiasse uma em sua bunda de riquinho alimentado a queijo brie e que só sabe jogar hóquei. Wallace é famoso em Ocean Beach. Além do fato de ser um gato daquele jeito misterioso e inatingível de cara mais velho, Wallace também é um tipo de magnata da vizinhança. Todo mundo o conhece como "Java the Hut". Ele transformou um carrinho de servir café, que ele empurrava na faculdade, em três cafeterias. São chamadas de "Java the Hut" e as três ficam em Sunset District, na região de Ocean Beach. As pessoas na cidade se preocupam muito com café, e também gostam de estabelecimentos locais, lojas independentes: o Java the Hut está na onda anti-Starbucks. Na Nova Inglaterra não se consegue um cuppa joe decente, exceto no Dunkin Donuts. É o lugar lá da costa Leste do qual mais sinto falta aqui. Se eu pudesse comer Dunkin Donuts em todas as refeições até morrer, estaria ótimo para mim. Em vez disso, sobrevivo de burritos do Mission, guiozas do Clement Street, yo quiero Taco Bell, de todos os cantos e os Pop Tarts de açúcar mascavo do Siri. Nancy diz que vou ficar com espinhas por causa das porcarias que como. Mas sei que ela adoraria poder comer a mesma coisa. Justin estava sempre chapado, mas nunca tinha coisas para beliscar.
Sempre me fazia ir até o 7-Eleven para comprar Doritos e Ring Dings. Eu fazia tudo por popularidade naquela época, então, me escondia do inspetor e escalava as cercas no final do terreno da escola. Voltava gelada, tremendo, tipo: "Uh-hu, como sou descolada, roubei umas balas Fireballs extras." Todo mundo no quarto de Justin dizia coisas como: "sua namorada é maneira, cara." Estou tão aliviada por não ser mais aquela pessoa... Siri quer saber como Rice Krispies, Cap'n Crunch e Frosted Flakes têm seus próprios mascotes mas Pop Tarts não tem. Ele está convencido de que há nisso uma espécie de conspiração. Desenha sempre mascotes para Pop Tarts e manda para a empresa. Eles respondem mandando cartas educadas com cupons de cereais dentro. Mas sempre escrevem o sobrenome dele errado. Justin era capitão do time de lacrosse. Eu adorava seu bíceps imenso e sua panturrilha durinha. Eu tinha problemas hormonais naquele tempo. As garotas desmaiavam por ele e me veneravam por tê-lo. Garota vazia, seu nome era Cyd Charisse. Até conhecer Siri, eu não sabia que era possível gostar tanto de outra pessoa a ponto de nosso coração querer queimar de felicidade sempre que estamos ao lado dela. Acho que eu ia morrer de solidão se ele e Pão-Doce não tivessem entrado na minha vida. Obrigada, juizado de menores. Vou fazer uma tatuagem na parte interna da coxa só para Siri. Uma logo dançante de Pop Tart. Vou chamar meu mascote de "Sr. Humm-mm bom" ou algo assim. Vou usar saias tão curtas que Nancy vai achar que viu algo lá, mas vai ter medo de perguntar. Há muitas perguntas para as quais Nancy não quer as respostas. Viu só, levei bomba em latim, mas ainda sei usar os pronomes direitinho. Queria poder morar na casa de Wallace e de Siri. Eles pintaram murais nas paredes, penduraram uma bandeira pirata na entrada e têm móveis velhos e gastos que fariam a cara de plástica do decorador de Nancy rachar ao meio, como num filme de terror. Os dois sempre escutavam um velho blues sobre uma mulher louca e sexy partindo corações. Adoravam sair juntos. É difícil imaginar um Wallace sem um Siri, e vice-versa. Não consigo imaginar ninguém na minha família sendo assim
comigo. "Wallace diz que preferiria andar pelo mundo a servir café. Ele tem vergonha de seu sucesso, mas no fundo adora ser conhecido como o Java the Hut. Tem de trabalhar muitas horas. Os seus negócios estão atrapalhando seriamente o surfe. Agora que Siri terminou seu serviço comunitário, vai trabalhar numa loja Java the Hut. Ainda vai visitar Pão-Doce e o resto do pessoal no lar, porque eles têm os melhores rostos para se desenhar e as melhores histórias sobre "os bons tempos". Siri e eu gostamos de ouvir essas histórias e quando vamos embora, comentamos que os "bons tempos" também eram a época das leis de Jim Crow, da segregação e do fascismo. Mas admitimos que iríamos adorar dançar swing, tomar coca-cola por um centavo e não ter que se preocupar em trancar as portas de casa. Os pais de Wallace e Siri vivem "fora", como diz Nancy. Aposentaram-se de seus empregos de professor e entraram para o Corpo da Paz para construir casas e pontes abaixo do equador. Deixaram Siri morando com Wallace para que Siri pudesse ir à escola de artes. Sid e Nancy não tiveram problema de me enviar para uma escola que era praticamente uma academia preparatória para os Alcoólicos Anônimos, mas pirariam se eu pedisse para sair de casa aos 16 anos de idade. Ultimamente, tenho passado algumas noites na casa de Siri. A primeira vez que fiz isso, voltei escondida para casa, lã pelas seis da manhã e entrei pela porta dos fundos. Tinha certeza de que àquela hora Sid e Nancy já tinham chamado a polícia. Não sei o que me apavorava mais: que eles me mandassem para alguma escola militar para meninas como punição ou que não se importassem. Leila, a empregada, já estava de pé, passando os uniformes de escola dos meus meios-irmãos. Ela balançou a cabeça para mim e disse: "Menina má", mas eu sabia que não iria me dedurar. Meus pais davam nos nervos dela tanto quanto nos meus. Minha mãe está sempre dizendo: "a Leila isso", "a Leila aquilo", "muito obrigada, Leila". E tão falso, e ela só faz isso quando Sid está por perto. Quando não está, o papo é outro: "Eu disse para dobrar os guardanapos do jantar em formato de flor. Eu tenho de fazer tudo, Leila?" Nancy, na verdade, morre de medo de Leila, então toda vez que diz
algo ruim, manda um beijinho para ela e lhe dá uma tarde de folga. Então se queixa de que ninguém a ajuda. Nancy pensa que Leila é algum tipo de criatura superior porque fala francês. Nancy fala francês, pas. Ela gosta de bancar a mulher de sociedade supetchique, mas se você prestar atenção, ainda pode ouvir os vestígios de seu sotaque caipira de "Minheusouda"? Nancy não tem noção da vida real dos empregados, acho que ela nem sabe que o netinho de Fernando, o motorista, teve leucemia, mas, graças a Deus, agora está em recuperação, ou que Leila é de fato franco-canadense, não francesa. Eu gostaria de saber se essa discrepância desqualifica Leila para usar um verdadeiro uniforme de criada francesa. Quando Nancy não está por perto, Leila e eu fazemos lasanha e biscoitos para a família de Fernando. — Sua mãe vai levantar em cinco minutos — disse Leila. Ela estava preparando o chá de Nancy. — Sugiro que bagunce sua cama para parecer que você dormiu lá. — Não perceberam? — perguntei. — Non — disse Leila, sem conseguir me olhar nos olhos.
Cinco Estou sabendo tudo sobre meu pai verdadeiro. Li sobre ele no almanaque Who's Who of Corporate America, na biblioteca da minha antiga escola. Seu nome é Frank. Ele é diretor de uma grande agência de publicidade em Nova York. Nancy conheceu Frank quando era modelo. Era assim que ela ganhava a vida quando morava em Nova York. Nunca conseguiu levar adiante seu verdadeiro sonho de ser bailarina profissional. Meu pai verdadeiro, Frank, tem uma filha, Rhonda, e um filho, Daniel. Rhonda é um nome tão ruim para uma menina... Ela tem uns quinze anos a mais que eu. Aposto que quando estava na escola fumava haxixe no banheiro e matava aula para andar por Greenwich Village. Provavelmente usava muito delineador líquido preto nos olhos, batom verde e meia-calça preta com buracos presos com alfinete de segurança, só para aborrecer Frank. Se eu me chamasse Rhonda, é o que eu faria. Seria tão bacana ligar para ela um dia e só dizer algo como "Ei, Rhonda, aqui é a sua meia-irmã favorita, Cyd Charisse. Vamos sair hoje, sem falta?" Ela ia querer escovar meu cabelo até brilhar e fazer uma dúzia de trancas. Me daria conselhos sobre controle de natalidade e, talvez, se estivéssemos animadas, me contasse em segredo as técnicas sexuais que aprendeu lendo livros de sacanagem quando tinha minha idade. Daniel tem dez anos a mais que eu. Se me conhecesse, seria bem protetor e me chamaria de "menina" o tempo todo. Bagunçaria meu cabelo, daria tapinhas nas minhas costas e sempre me escolheria primeiro para seu time de futebol no dia de Ação de Graças. Daria um chega pra lá em seus amigos quando ficassem me olhando. Daniel daria um esporro em Justin por me meter em roubada. Deixaria que eu chorasse em seu ombro quando voltei da clínica, e teria trazido Dunkin Donuts pro meu quarto, prometendo não contar nada a ninguém.
Seis Siri, Pão-Doce e eu decidimos levar Pão-de-Mel para uma viagem ao campo. Java the Hut teve de trabalhar, claro, então deixou que pegássemos seu Fusca descolado. O Fusca do Java é vermelho brilhante com um interior de couro preto. Parece uma joaninha. Estamos indo para Santa Cruz. Siri vai surfar e Pão-Doce e eu vamos levar Pão-de-Mel para passear no calçadão. Nancy deu um piti quando eu disse que ia passar o domingo com Siri e Pão. — Mas é nosso dia em família — resmungou ela. — Papai prometeu desligar o celular e nem entrar no escritório. Vamos levar você e as crianças para os museus no parque, depois tomar um sorvete. — É mesmo? — exclamei, fazendo minha melhor imitação de uma criança Von Trapp. Quase fiquei mal porque o rosto pálido de Nancy pareceu muito magoado. Então ela disse: — Não me lembro de você ter pedido permissão para passar o dia com aquele garoto. — Ela se recusa a chamar aquele garoto de "Siri". Eu disse a ela que aquele garoto também atende pelo nome do meio, Flash. Mas ela insiste em chamá-lo de aquele garoto. — Pedi semana passada, antes de você tomar chá com as outras mães do bale! — Na verdade, nunca pedi. Pensei nisso quando ela estava entretendo as mães das amigas da minha irmãzinha, mas não pedi. E como Nancy é famosa por não prestar atenção quando está exibindo a casa para seus amigos da alta sociedade, eu sabia que a mentira colaria. — Bem, certo, Cyd Charisse, está certo, pode ir, tive de mexer nos compromissos de todos nós para que pudéssemos passar um dia juntos em família, mas pode sair com aquele garoto — reclamou Nancy. Eu podia ver Leila com o canto do olho, arrumando umas flores. Ela balançava a cabeça como quem diz que dessa vez até que Nancy pegou leve. Quando estava saindo, Nancy me parou na longa porta envidraçada.
A maquiagem em seus olhos parecia borrada, como se ela tivesse chorado, o que para Nancy era incomum. Ela sempre estava impecavelmente linda e loura. — Por que você me odeia? — perguntou ela. Aquela pergunta congelou meu coração. — Por que você me odeia? — retruquei. Saí correndo da casa porque senti que era o que devia fazer depois de um comentário daqueles, mas na verdade fiquei bem quieta e triste no caminho todo para Santa Cruz. Nem mesmo dividir uma xícara de chocolate com Pão-Doce me fez sentir melhor. — Você é uma menina mimada, Senhorita Ranheta — me disse Pão-Doce lá do banco de trás do Fusca, quando atávamos na metade do caminho para Santa Cruz. Me deu uma miniatura de barra Butterfinger para mostrar que dizia aquilo no bom sentido. Pão e eu adoramos comer doces em miniatura, com exceção de Nestlé Crunches, que nós duas concordamos que são muito nhami-nhami-glupt-glupt para serem comidos em miniatura. Preferimos que sejam tamanho família. — Sou nada! — disse eu. Não comi a mínibarra. Ser chamada de mimada me fez passar de triste a zangada. Prefiro achar que sou incompreendida. Siri riu enquanto mastigava sua Pop Tart com glacê de morango. — Cyd Charisse, você é mesmo — disse ele. — Não, sei como fui acabar com a garota mais mimada do mundo. Pão, a culpa é sua! — Ele estava todo animadinho me provocando. Mas deve ter sentido meu coração balançar, porque se inclinou para beijar minha bochecha, o que não era uma boa idéia, considerando-se que estávamos passando por uma estrada cheia de curvas num penhasco sobre o mar e as mãos de Siri estavam agitadas pelos expressos duplos que tomou de manhã. O carro de repente deu uma guinada e Siri voltou a prestar atenção um segundo antes que fosse tarde demais e caíssemos no penhasco. Na minha comunidade não vai haver carros. Provavelmente seremos tão evoluídos e desprendidos que poderemos voar. — Preste atenção na estrada — reclamei. Acho que fazer beicinho é idiota, mas às vezes é bem útil. Não retribuí o beijo, já que ele praticamente nos matou.
— Burr-ito — disse Siri. Ele sempre diz isso quando entro no que ele chama de modo "geladeira", irritada e fria. Pão estava tonta pela guinada repentina. Talvez a tenha feito pensar na lua-de-mel da finada Pão-de-Açúcar. Paramos o carro numa área de descanso porque ela pensou que fosse vomitar. Mas na verdade ficou boa quando o carro parou. Quando o enjôo passou, Pão sugeriu que ficássemos ali descansando um pouco antes de voltar para a estrada. Siri disse que aquele lugar era para isso mesmo. Ele abaixou o banco do fusca para que Pão pudesse tirar um cochilo. Cobriu-a com um velho cobertor angorá que estava no chão do carro, grudado num pedaço de chiclete, e eu pus a Pão-de-Mel em seus braços, para manter Pão-Doce aquecida e segura. Enquanto Pão cochilava, Siri e eu descemos por uma trilha até o mar. — Por que está tão nervosa, afinal? — perguntou Siri. Odeio quando isso acontece, mas lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto, sem que eu pudesse contê-las. Estava me lembrando de quando nos mudamos para São Francisco, enquanto Sid estava trabalhando, Nancy ficava entediada e solitária por não conhecer ninguém. Algumas vezes me dizia para não ir à escola e saíamos pela estrada litorânea e ela nem se importava que eu levasse Pão-de-Mel, mesmo ela detestando aquela boneca. O problema com minha mãe é que ela é tão bonita... e quando estávamos ali seguindo por aquela estrada cheia de curvas eu me sentia tão menos bacana sentada a seu lado no conversível. Antigamente eu queria me vestir como ela, então antes de sairmos eu colocava uma echarpe de seda idêntica à dela na cabeça e amarrava embaixo do queixo para proteger o cabelo do vento, então ela pegava meu queixo com suas mãos macias e perfumadas e passava batom em mim. Depois me dava um beijinho de esquimó na bochecha, para não borrar o batom. Ela sempre tinha um par a mais de óculos gatinho com strass para eu usar. Quando chegávamos em Santa Cruz, ela comprava algodão-doce para mim e me levava na assustadora montanha-russa, não a de crianças, mesmo eu não tendo idade suficiente. Sempre fui alta e parecia bem mais velha do que era, além disso, implorava para ela me levar. Nancy gritava horrores pelas viradas repentinas e quedas bruscas da montanha-russa, enquanto eu ria sem parar. Você não tem medo de nada, dizia ela. Em vez de responder à pergunta de Siri, dei de ombros. Às vezes quando há muito a explicar, é mais fácil não dizer nada. Ele ficou confuso.
Eu estava tremendo e chorando, sem explicar nada. Ele estava com aquela cara que "Wallace faz quando uma de suas namoradas muda de país: — Mulheres! Sid fica com a mesma cara quando Nancy reclama do tempo que ele passa sendo o Grande Chefão da Empresa, deixando de lado a família. E um tipo universal de olhar dos caras, uma mistura de perturbação, desejo e vontade de poder estar assistindo ao Sports Center em vez de ver sua mulher pirando. Se Justin estivesse comigo nesta situação, teria caído fora tão rápido que eu não teria tempo de dizer uma palavra, mesmo que quisesse. Felizmente, Siri não tinha de bancar o garoto sensível, tentando me abraçar e enxugar minhas lágrimas. Às vezes as lágrimas têm de correr, e é bom ter um namorado que entende isso sem ser cruel ou meloso. Quando terminei, nos sentamos numas pedras de frente para o mar. Foi bom ter deixado Pão-de-Mel abraçada com Pão-Doce, porque a brisa do mar estava seriamente gelada. — Vamos brincar de Trabalho por Um Dia — propôs Siri e me animei um pouquinho. Ele estava olhando para o sol e as ondas lá embaixo e eu sabia que estava louco para voltar para o carro e chegar logo a Santa Cruz. Gostei de ele ter se oferecido para brincar do meu jogo favorito para que Pão pudesse descansar e eu pudesse esfriar a cabeça. Siri começou. — Gostaria de ser, por um dia, o mensageiro do Campton Place Hotel que parece com o cara do gim Beefeater. — A imagem de Siri usando o uniforme de porteiro com a meia-calça e o chapéu estranhos, parando carros para turistas, me fez rir. O uniforme seria maior do que ele. — Cozinheira de coisas rápidas, porque eu gostaria de saber como fazer ovos perfeitos — disse eu. — Você acha que em um dia aprenderia a fazer ovos mexidos, ovos estrelados e omeletes perfeitos? — perguntou Siri. — Todo tipo de ovos — garanti. — Cobrador de pedágio na ponte Golden Gate — prosseguiu Siri. — Você ficaria tão bonitinho naquele uniforme de estacionamento — disse eu. Um raio de sol brilhou no seu cabelo louro espetado e ele sorriu.
— Acha mesmo? — perguntou e num instante meu burr-ito derreteu. — Ok, eu gostaria de ser a moça da voz da caixa postal. "Você tem três novas mensagens." Só que usaria uma voz pornô rouca e ficaria ofegante e excitada e sei lá. "Para apagar essa mensagem aperte... me, querido." Siri riu da minha interpretação. — Você seria boa nisso, e seria engraçado também, já que detesta falar ao telefone. — Ele pensou por um tempo e então disse: — O cara do tráfego de helicópteros. Poderia fazer algo do tipo... — ele fez uma voz grave de locutor. — Para quem segue na direção Oeste, o tráfego na Bay Bridge está uma zona, luzes de sinalização estão acesas graças a Bob, que acabou de ligar para relatar um acidente na pista da direita logo depois da ilha, otários! — Excelente! — exclamei. — Garota do tempo. Só que eu poderia usar saias supercurtas com fendas do lado e botas de salto e deixar as unhas bem compridas e pintá-las de preto para ficarem parecendo com a vareta de mostrar as coisas no mapa. — É uma previsão que eu assistiria. — disse Siri. — Diretor de arte e vice-presidente executivo da Pop Tarts. — Divisão de açúcar mascavo? — perguntei. — Com certeza. — Maneiro — disse eu. — Gostaria de ser uma moça de promoção de produtos. Eu poderia usar aquele uniforme branco e fazer as pessoas felizes quando desse a elas amostras grátis. — Legal — disse Siri. — Só não dê amostras grátis de chocolate branco. Ninguém gosta realmente de chocolate branco e seria sacanagem dar isso como amostra grátis. — Você tem toda razão — disse eu. Uma vez tentei jogar "Trabalho por Um dia" com Justin e a única coisa em que ele conseguiu pensar foi em ser zagueiro dos New England Patriots. Que esperto. — O cara do censo — Siri disse. — Mas as pessoas podem ser realmente grossas com você. — Observei. — Por isso é um trabalho por um dia — lembrou Siri. — Você pode
fazer qualquer coisa por um dia. Ter filhos é um trabalho que estou feliz de manter longe do meu currículo, mesmo que fosse só por um dia. Nancy ficou em trabalho de parto o dia todo quando meu irmãozinho nasceu. Ela disse que foi a experiência mais dolorosa de toda vida. Como o meu foi um parto fácil, ela achou que seria sempre assim. Fez Sid levá-la para um spa no Arizona um mês depois e enquanto esteve fora, Leila me deixou dar mamadeira a meu meio-irmão. Alimentar bebê não é tão ruim, na verdade. Ele chora e chora até você achar que seus tímpanos vão explodir, mas quando chega a mamadeira você sente o corpo todo dele relaxar e meio que se fundir com você quando está no seu colo. Meu irmãozinho agarrava meu polegar enquanto mamava e ficava me paquerando o tempo todo. Ele era a coisa mais fofa e eu estava quase totalmente apaixonada por ele. Acho que se pode dizer que eu estava meio-apaixonada por ele, já que ele é meu meio-irmão, mas quando Nancy voltou não me deixou mais segurá-lo e Sid sempre me fazia lavar as mãos antes de chegar perto dele. Agora o bebê está na terceira série e só gosta de brincar com armas e brinquedos que fazem som de explosão. Mas ainda me ama. Quando acordei esta manhã, olhei a data no meu relógio do exército suíço e percebi que hoje, segundo o médico, seria o dia do nascimento do meu filho. Foi quando chamei Siri e perguntei se podíamos viajar. Se as coisas fossem diferentes, eu poderia estar dando à luz agora. O bebê teria meu cabelo escuro e os olhos azuis de Justin. Talvez fosse uma menina e eu poderia enfeitá-la com echarpes de seda, óculos gatinho, batom vermelho e lhe dar beijos de esquimó. Não consigo imaginar mais nada sobre o bebê.
Sete Apesar do que Nancy diz, não sou só trevas e sofrimento, sabe? Posso me soltar. Posso me divertir. Acho. Quando chegamos em Santa Cruz, Pão-Doce, Pão-de-Mel e eu ficamos na praia, pegando sol e escutando o barulho do mar, enquanto Siri surfava. Uma banda mariachi de mexicanos tocava num píer próximo e parecia uma cantiga de ninar no acordeão. Fiquei de pé e mostrei para Pão minha dança do ventre; eu rebolava levemente e movia minhas mãos e dedos em formas bacanas, como eu vi uma vez, num documentário sobre as dançarinas da Ilha de Bali. Enquanto dançava, cantarolava baixinho como se estivesse numa mesquita islâmica, mesmo que minha dança fosse provavelmente um sacrilégio. — Gosta da minha dança? — perguntei. — Gosto — respondeu Pão. — Mas acho que não é muito boa idéia uma boa menina fazer uma dança dessas usando esse biquíni e essa canga transparente numa praia lotada de rapazes. Você pode arrumar confusão. Girando a cabeça de um lado para o outro, tirei os grampos e meu longo cabelo preto caiu pelas costas enquanto eu fazia a dança do ventre no ritmo da bela canção de ninar mexicana. Pisquei para Pão-de-Mel. Ela também piscou. Ela adora minha dança do ventre. — Não se preocupe comigo, Pão. Já me meti em confusão suficiente para a vida toda. Provavelmente o estoque se esgotou. — Garota, você é a própria confusão. — Obrigada, Pão — disse eu. Por um segundo tive ímpetos de contar a ela sobre o outono passado, quando estava realmente em apuros. Nem contei a Siri sobre isso. As únicas pessoas que sabem são Justin e meu pai verdadeiro, e só porque não tinha diñero para cuidar do meu probleminha, e Justin ficava prometendo arrumar a grana, mas a cada dia que passava eu vomitava mais e mais, e nada de grana. Um dia, já quase sem desculpas para escapar da aula de
educação física, fui para a enfermaria e liguei para o serviço de informações de Manhattan, quando a enfermeira não estava na sala. Consegui o número da empresa do meu pai verdadeiro, Frank. Liguei para a telefonista da empresa e pedi para falar com ele, mas me passaram para a secretária. Ela tinha aquele sotaque pesado e nasal de Nova York. Eu disse que queria falar com Frank, por favor; ela perguntou quem estava falando e pedi que, por favor, dissesse a ele que era Cyd Charisse. Certo, disse a secretária, e eu sou Greta Garbo. Acontece o tempo todo. Mas talvez ela tenha sentido o pânico na minha voz e talvez tivesse ficado impressionada por eu ter dito "por favor" duas vezes, porque quando pedi para falar com ele de novo, ela me deixou esperando e pareceu surpresa quando voltou, dizendo que ele já ia atender. — O que houve, menina? — perguntou ele quando atendeu. Sua voz estava animada e tinha um tom de intimidade, como se essa não fosse a primeira vez que nos falávamos desde aquele dia no aeroporto quando eu tinha cinco anos e ele me comprou Pão-de-Mel. Ele não me pôs no viva-voz como meu pai Sid sempre faz e estava um pouco sem fôlego, como se tivesse pulado da cadeira e fechado a porta de seu escritório para que sua secretária, que não era Greta Garbo, não o escutasse. Não conseguia acreditar que era ele mesmo no telefone. Queria poder gravar sua voz para nunca esquecer como ela é. — Eu ainda tenho a Pão-de-Mel — disse eu, suavemente. — O que é Pão-de-Mel?—perguntou ele. Parecia quase incomodado, como se tivesse medo que eu estivesse usando alguma espécie de código. O que é Pão-de-Mel? Eu não podia acreditar no que ouvia. Me senti tão traída que quis gritar, mas em vez disso fiquei brava e fui direto ao assunto. — Preciso de trezentos dólares — eu disse, adequando-me a seu tom de voz. — Estou com problemas. — Que tipo de problema? — perguntou ele. — O que você acha? — respondi. Foi tudo o que precisei dizer. Ele me mandou o dinheiro naquela noite na hora do jantar. Então, contando com aquele dia quando eu tinha cinco anos, aquela ligação foi a segunda vez que falei com meu pai na vida. Parei a dança do ventre para admirar Siri exatamente quando seu
corpinho sarado pegou uma onda assassina; o oceano se ergueu sobre sua cabeça e a caveira pintada na ponta de sua prancha levantou-se na água. Era um momento perfeito do Siri. Perguntei à Pão: — Já teve um namorado que de cara parecesse a pessoa certa para você, como se a tivesse conhecido a vida toda? — Tive — disse ela. — Só que ele sentia isso pela minha irmã também. Xiiii. — Talvez você ainda não tenha encontrado sua alma gêmea — disse a ela. — Venha, vamos encontrá-la. — Eu a puxei da areia e, de braços dados, fomos para o calçadão. Enquanto andávamos pela praia, com nossos dedos acolchoados pela suave e quente areia, perguntei: — Acha mesmo que sou mimada? — Acho, querida — disse ela. — Você nem começou a entender os privilégios que tem na vida. Mas tem um coração de ouro puro. Isso é o que importa. Tinha que lembrar de dizer a Siri que eu queria ser uma cantora de um sucesso só, com disco de ouro, na próxima vez que brincássemos de Trabalho por Um Dia. E vai ser minha missão encontrar a alma gêmea de Pão. Almoçamos num restaurante e depois dividimos uma fatia de torta de chocolate e Pão-Doce leu as cartas de taro para mim. Primeiro me fez embaralhar seu antigo baralho e disse para eu me concentrar numa pergunta, ou num assunto específico para o qual quisesse respostas ou orientação. Siri, Siri, Siri, pense: enquanto embaralhava e separava as cartas em três pilhas. Estava feliz por que o dia com minhas duas pessoas favoritas acabou sendo muito mais agradável do que passar o dia tendo um filho. Pão pôs suas mãos sobre minhas três pilhas de cartas para sentir qual pilha emanava mais energia. Depois de escolher a do meio, tirou três cartas; de repente, ergueu a cabeça e me olhou com os olhos faiscando. — Parece que você se meteu numa baita encrenca, Cyd Charisse — disse ela. Seus olhos se abrandaram enquanto ela continuava dando as cartas. Era como se eu pudesse ouvir seu coração chegando até mim, preocupado. Quando terminou de baixar as cartas, apertou minha mão e
disse: — Mocinha, tem algo que queira me contar? Sorri porque não é freqüente uma garota alta como eu ser tratada no diminutivo e não é freqüente eu sorrir. Meu pai Sid é o único que me chama de "mocinha". O apelido é uma pequena piada nossa. Sou oito centímetros mais alta do que ele. Quando não respondi à sua pergunta, Pão disse: — Bem, em que pensou quando embaralhou as cartas? — Eu queria saber sobre meu futuro com Siri e se eu ia aumentar um número no sutiã — respondi. Ela riu e então disse: — Só isso? Às vezes a necessidade de revelar um segredo pode ser opressora. — Talvez se as coisas tivessem sido diferentes, podia estar fazendo algo bem diferente hoje em vez de vir para Santa Cruz com você e Siri. — Disse eu. Achei que se uma pessoa de quem eu gosto ficasse sabendo, talvez não doesse tanto. — Como ter um bebê — sussurrei. Pão apontou para o sete e o cinco de espadas e assentiu com a cabeça, como se estivesse fazendo a matemática das cartas e do que eu tinha acabado de lhe dizer. — Claro — sussurrou ela. — Traição. — Ela não estava toda chorosa do tipo me-deixe-abraçá-la. Sabia o que se passava na minha cabeça. — Você fez a coisa certa — disse e uma enorme onda de alívio se apossou de mim. — Vê esse cinco de copas? — perguntou. — Percebe como duas copas ainda estão em pé? O que pode aprender dessas cartas é que talvez você tenha se machucado, mas nem tudo está perdido. Pequenas lágrimas se formaram em meus olhos, mas consegui contê-las. — Eu não queria machucá-lo — disse eu, recusando-me a engasgar nas quase-lágrimas. — Só não estava preparada. — Você fez a coisa certa, Cyd Charisse — repetiu Pão-Doce. Abaixou outra carta e apontou para as facas atravessando um coração. — Posso ver que não teve muita ajuda daquele infeliz que você chamava de "namorado". Balancei a cabeça. Não queria entrar naquela. É engraçado pensar
que um ano atrás eu estava totalmente obcecada pelo Justin e agora agradeço por estar do outro lado do país, longe dele. Ele ainda tenta me ligar. Pedi a Leila para nem me dar os recados dele. — Cyd Charisse, eu nunca disse isso a ninguém, mas lembra daquela história que contei sobre minha irmã fugir com meu noivo? Assenti. — Bem, a parte da história que deixo de fora é que no mesmo dia que soube da morte deles, soube que estava grávida. Parece coisa de novela, eu sei, mas a vida é engraçada, querida, e isso não é piada. — Ela assentiu solenemente. — O que você fez? — Eu tinha 18 anos, era solteira, sem trabalho, tinha acabado de perder minha irmã e meu namorado. Fiz o que você fez. Só que não era legalizado naquela época e foi num beco no porão de um médico negro. A experiência mais dolorosa da minha vida. — A bela cor de café-com-leite de Pão empalideceu ao lembrar. Eu me lembro da terrível fisgada na barriga depois da operação, que aconteceu num ambiente seguro e legalizado. Nem podia imaginar o que ela deve ter passado, cinqüenta anos atrás. — Se arrependeu de ter feito? — perguntei. Porque é o que me assombra, que mais tarde eu queira e não consiga. — Nunca — disse ela. Meio que acreditei. — Se eu não tivesse feito isso, nunca teria chegado à Califórnia. Fui para Nova York, Paris, Chicago, e todos esses lugares antes de vir para cá. Tive algumas aventuras. — Seus lábios vermelhos voltaram a ter cor e ela sorriu. — Sabe, houve um tempo em que pensei que o mundo tinha acabado para mim. E eu só tinha 18 anos. Achei que não tinha mais vida pela frente. E olho para essas cartas diante de mim e vejo que você também se sentiu assim. Mas os momentos da vida, bons e maus, serão vários, ainda estão por vir. Agora é a hora de você pensar no seu futuro, fazer novos amigos, ver novos lugares. Pode ter passado pelo inferno, menina, mas se apegar ao Siri e passar o resto da sua vida com essa velha não é tudo o que há para você nas cartas. Pão baixou uma nova carta. — O futuro — disse ela. — Vê o Louco aqui? Ele é inocente, não tem medo, está prestes a cair de um precipício. Esta carta pode lhe dizer
que você não sabe o que está por vir. A mim parece que novas pessoas estão chegando à sua vida, e algumas antigas voltando. Como se você estivesse de volta a antigos lugares. — Hã?— exclamei. — Colégio interno não! — Talvez não o colégio interno. Mas definitivamente de volta a um antigo lugar. Aqui está a carta do Carro. As coisas mudam rapidamente, às vezes até retrocedendo. Té-dio. — Siri é minha alma gêmea? — perguntei. — Por que a carta dos Enamorados não saiu? — Talvez você vá ter muitas almas gêmeas na vida — disse ela. — O que será o oposto de mim. Tive muitos amores mas só uma alma gêmea. Talvez você tenha muitas alma gêmeas, mas só um amor. Você tirou a carta dez de ouros. Essa carta indica alguém com quem você tem uma verdadeira conexão de alma. — Siri! — exclamei. Pão riu. — Quem disse que eu estava falando do Siri?
Oito — Você acha que Pão estava tentando me deixar confusa? — perguntei a Siri naquela noite depois de deixarmos Pão em casa. Estávamos nos agarrando no banco de trás do Fusca, estacionado sob as árvores de uma colina em Lands End, com vista para o oceano Pacífico e a ponte Golden Gate. Siri suspirou. Era mais ou menos a sexta vez que eu perguntava isso a ele. Ele tirou a mão que estava debaixo da minha camisa, sentou-se e amarrou a cordinha do short, então inclinou-se para fazer carinho no meu rosto. — Não, Cyd — disse ele —, não acho que Pão-Doce estivesse tentando deixar você confusa. Acho que ela estava tentando dizer para você fazer mais amigos além de mim e dela, e admitir a possibilidade de não ficarmos juntos para sempre. Ele disse isso na maior tranqüilidade. Eu esperava que Pão-de-Mel tivesse tapado os ouvidos. — Não acha que vamos ficar juntos para sempre? — perguntei. Minha voz estava acelerada e ansiosa, chocada. Só de pensar... A noite estava um breu, exceto pelas estrelas brilhando através do teto solar do Fusca, mas eu podia ver as pupilas dele se dilatando de medo por ter de decidir uma coisa tão importante imediatamente. — Não sei — disse ele. — Nunca pensei nisso. Gosto pacas de você. Mas mal sei o que vou pintar amanhã ou onde vou querer surfar no final de semana que vem, muito menos com quem vou ficar para o resto da vida. O que você acha, que vamos ficar juntos para sempre? — Agora acho que não — respondi e empurrei o corpo dele para longe do meu. Estava ficando realmente chateada. Adoro Siri e talvez um dia, quando eu tiver uns trinta ou algo assim, vou querer casar com ele se eu decidir que acredito em casamento, mas isso está longe à beca e neste momento não parece que tenho de passar todo segundo com ele. Acho que eu só queria saber se ele me via quando imaginava seu futuro. E já que não disse isso, anunciei: — Talvez as cartas de taro estivessem certas. Talvez
você não seja minha alma gêmea. Siri suspirou novamente. — Ou talvez você esteja fazendo as cartas do taro estarem certas. — Você não acredita em taro, acredita? — indaguei. Ele nem hesitou. — Não. — Então acha que a Pão é mentirosa? — perguntei. — Não foi o que eu disse. — Ele respirou fundo, mostrando que estava prestes a falar mais do que aqueles comentários normalmente mínimos. — Eu disse que não acredito nessas cartas mais do que acredito que o destino é predeterminado e que não temos escolha. Estou dizendo que se você decidir que as cartas dizem que não sou sua alma gêmea ou seu eterno qualquer coisa, então talvez agora você esteja prestes a fazer a profecia se realizar. — Senhor Fala Difícil! — disse eu em tom de acusação, e logo quis ter algum aparelho automático de tabefes que eu pudesse usar em mim mesma. Tinha acabado de bancar a Nancy, que sempre dá a mim ou a Sid apelidos idiotas quando dizemos algo bem inteligente e ela não consegue pensar em nenhuma resposta rápida e inteligente também. É por isso que Sid é freqüentemente chamado de "Senhor Executivo Importante" e eu fico com "Senhorita Pesadelo Ranzinza Adolescente". — Senhor Fala Difícil — repetiu Siri, rindo, como se eu tivesse acabado de entrar num novo nível de falta de jeito. — Cyd Charisse, você é uma delícia. Ele se inclinou para me beijar, mas eu estava rindo também. Briga esquecida. Estiquei os braços e ele se aconchegou. Não transamos. Só ficamos olhando a lua e as estrelas através do teto solar, enquanto Siri sussurrava um rap ao meu ouvido. "Senhor Fala Difícil. Amante do palavreado interdimensional planetário. Cyd Charisse e Siri na terra da fala difícil, voando através de haikais multissilábicos, iâmbios, pentâmetros, pela detenção, retenção do juizado de menores. Palavra." Quando ele terminou, sussurrei em seu ouvido: — Amo você. — E — murmurou ele naquela voz sexy e profunda —, idem. Para um cara baixinho, ele com certeza sabia deixar uma garota excitada.
Nove Quando Siri me deixou em casa, entrei peta porta dos fundos. Sid e Nancy estavam conversando no escritório dele, tomando martínis. Devem ter tido um dia bem cansativo, porque normalmente Sid só toma os martínis que eu faço para ele. Quando eu era mais nova, Sid costumava me pagar um dólar para eu fazer seus martínis e cortar a ponta do charuto que ele fuma de noite. Sid diz que sou sua criação perfeita, que só eu faço o martíni perfeito. Nancy estava dizendo para Sid: — Bem, pelo menos ela não está saindo com um traficante, nem apareceu grávida. Acho que temos de agradecer por isso. Quase soltei um enorme "HÁ!" do outro lado da porta de correr do escritório. — Nancy — disse Sid. Um sentimento de conforto e segurança se apossou de mim, causado, como percebi, pelo cheiro do charuto de Sid. — Relaxe. Acho que o período ruim de arruaças já passou. Francamente, não sei por que você está tão preocupada com aquele garoto. Parece que desde que eles estão juntos, ela conseguiu não ser presa por roubo ou ser expulsa da escola. E um bom garoto. Sabe que ele vai trabalhar meio período no Java the Hut na Ocean Beach? Coisa boa para um jovem, arrumar um trabalho. — Ela passa o tempo todo com ele! — reclamou Nancy. — Não sabemos nada sobre sua família! Pelo menos de Justin nós conhecíamos a família. — Se quer saber, Justin era o problema de Cyd Charisse, não esse sujeito, o Siri. O pequeno segredinho sujo da nossa família é que Papai Sid ama todos seus filhos, mas eu sou sua queridinha. Ele sempre me defende. Deixa Nancy louca. — Como você sabe tanto sobre aquele garoto, Senhor Empada Súbita? — Se você passasse algum tempo realmente conversando com ele,
em vez de ficar reclamando do cabelo, das roupas ou do seu jeito de falar, talvez o conhecesse também. Garotos são como cachorros, Nancy. Eles sabem quem são os amigos. — Mas... — resmungou Nancy. — Chega! — disse Sid. E esta Cyd agradeceu silenciosamente e subiu para seu quarto. Uau, ele tinha ficado mesmo do lado de Siri. Sei bem que Sid estremece de horror toda vez que vê o cabelo louro espetado de Siri e seu colar de dente de tubarão. Provavelmente Sid só queria contrariar Nancy. E assim que eles se acertam. Quando fui para meu quarto, pulei na cama de princesa-vômito. Uma voz exclamou "ai!". Virei de bruços e espiei embaixo da cama para ver que criatura estava lá. — Esse pulo acertou minha cabeça! — disse meu irmão de nove anos. — Talvez um pestinha não devesse se esconder aqui — retruquei, Josh saiu de baixo da cama e fez aquela maratona esquisita, correndo pelo meu quarto, batendo com a mão em cada canto que passava, como se estivesse marcando território. Decididamente, esse garoto não se preocupa a mínima se os pais vão pegá-lo acordado até mais tarde. — Venha cá, Super-Menino — disse eu. Afastei os lençóis para dar espaço para ele. Josh mergulhou como uma bomba em minha cama enquanto eu pegava o livro de Nárnia no criado-mudo. — Faça as vozes! Faça as vozes! — exclamou ele. Josh é louco pelo Aslan que eu faço. — Está bem — disse eu —, mas tem de ficar quieto. Josh tapou a boca com as mãos, fazendo uns barulhos que pareciam bolhas. Fechei o livro e comecei a guardá-lo. — Ok, ok, ok, ok, ok, ok, ok — sussurrou ele rapidamente. — Vou ficar extra-hiper-super-quieto. — Ele bateu a cabeça no meu ombro algumas vezes antes de se aninhar no meu colo. Baguncei seu cabelo só de brincadeira e comecei a ler. Sou a única pessoa com quem ele fica quieto e calmo a noite toda. Ele enlouquece Leila e acho que é responsável por todos os novos cabelos brancos que Nancy tem de tingir, apesar de dizer que a culpada por eles sou
eu. — Gosto quando você me põe na cama, Cyd Charisse — cochichou Josh. Sei que era preciso um poder sobre-humano para ele não gritar. — Prefiro quando você está aqui do que quando está lá longe, na escola. — Não vá se acostumado demais com isso — disse eu. — Ainda não tenho certeza se vou ficar.
Dez Estou pensando em mudar minha comunidade para a Sibéria. Vamos convidar Wallace e sua nova namorada, Delia. Ela é do Alasca e provavelmente sabe tudo sobre situações de frio selvagem. Wallace e Delia podiam descobrir como fazer iglus de café congelado para morarmos. Iríamos chamar de "cafíglus". Todo mundo talvez penasse para dormir, porque as paredes dos cafíglus emitiriam uma aura de cafeína, então poderíamos contar histórias de fantasmas. Ouviríamos o vento soprar e os coiotes uivarem, e usaríamos aqueles chapéus bacanas de pele com proteção nas orelhas. Provavelmente Wallace e Siri teriam de aprender a pescar no gelo mesmo sendo vegetarianos. Sobrevivência é tudo. Eles sentariam no buraco por horas e horas, sem falar, comunicando-se mais telepaticamente. Delia e eu dançaríamos em volta dos cafíglus enquanto eles estivessem fora, e escutaríamos nossas vozes ecoarem nos topos das planícies. Tenho quase certeza de que ninguém mais que conheço vai querer visitar minha comunidade na Sibéria, mas isso nos dará a chance de conhecer melhor os nativos. Eles vão nos ensinar a fazer sopa borscht e nos falar dos velhos tempos, quando havia os campos de concentração de Stalin na Sibéria. Não ficaremos com medo.
Onze Pensei num plano brilhante para enlouquecer Nancy. Arrumar um emprego de verão no Java the Hut. Nancy não pode dizer nada sobre isso porque Sid acha que jovens precisam trabalhar, como ele fez quando era criança e tinha de andar sete quilômetros até a escola, na neve, toda manhã, antes de se tornar um zilionário à custa do seu próprio esforço. Sid acha que ter um emprego de verão vai "endireitar a pequena arruaceira" mesmo que seja trabalhando com aquele garoto. Além disso, agora posso agradecer Siri e Pão por não chamar mais Cyd Charisse de "mimada", muito brigada. Acho que tenho sorte de não ter de trabalhar por dinheiro. Na verdade, não me importo muito se tenho dinheiro ou não. Pão-Doce diz que isso é coisa de gente rica, mas eu disse a ela que não é minha culpa Sid ser rico. Ela concordou, é verdade. De qualquer forma, não sou do tipo fanática por shopping, que precisa guardar dinheiro para grampos de cabelo, maquiagem com purpurina e cds de hoy bands. Com licença, mas passo batido por isso. Então tento não usar o fato de não precisar realmente do trabalho no Java the Hut como motivo para ser grossa com os clientes quando eles reclamam que seu café não está quente o suficiente ou dizem "pedi um cappuccino e você me deu um latte", pff, quando sei com certeza que a palavra latte foi dita para mim. Também tento não revirar os olhos para os clientes que acreditam que, por eu ser uma adolescente trabalhando por um salário mínimo e uma gorjeta menor ainda, têm que falar bem lentamente. — Moça, por favor... eu... queria... um... cappuccino... descafeinado... com... espuma... extra. Entendeu? Tem certeza? Quer repetir para mim? Se você tem de ter um trabalho, o Java the Hut é o lugar ideal. Talvez porque a cafeteria fique espalhada por toda a nublada e fria Ocean Beach, mas todo mundo é bem bacana. O lugar tem velhos sacos de feijão como assentos e sofás do Exército da Salvação, prateleiras com livros antigos que os clientes realmente lêem e há sempre o cheiro de água
salgada misturado ao do café. Wallace instalou até um rack especial para os clientes guardarem suas pranchas de surfe. O que é extradescolado é que, já que o mar na Ocean Beach é tão agitado, os surfistas têm de ser extra-fortes para nadar lá. O que significa que Cyd Charisse pode admirar o dia todo alguns clientes com corpos malhados e definidinhos em roupas de neoprene, uh-uh. Alguns estabelecimentos têm letreiros que dizem: Favor entrar de camiseta e sapatos. No Java the Hut, camisetas e sapatos são opcionais para quem não se importa de congelar com o frio da Ocean Beach, mas já na porta dá para saber que o lugar é legal. Quero dizer, aqui os empregados não têm de perguntar se você não prefere fazer um pedido maior com aquele sorriso perolado. Delia, que é gerente-assistente do turno do dia e namorada do Java, faz o tempo passar rápido. Estuda dança na San Francisco State. Fica na ponta do pé quando está moendo café e se balança ao som de um hip-hop quando limpa as mesas. Deixa uma música agitada tocando na loja. Gosta de se sacudir enquanto faz registro dos recibos no final do dia cantando "Faça funk como eu faço, quero dançar funk com você." Delia pergunta como posso me chamar Cyd Charisse e não ser dançarina. — Você já viu algum filme com a Cyd Charisse dançando? — perguntou ela. — Na verdade, não — respondi. Delia está tentando me levar para as aulas de dança moderna que ela dá numa academia ali perto, mas quando me imagino lá, me vejo usando tiara e um tutu de tule, na ponta dos pés, usando botina de soldado com a testa franzida. Não, obrigada. Nancy descobriu um jeito de me atazanar por ter um emprego de verão. Manda Fernando, nosso motorista, me pegar no final do dia no Mercedes de vidro fume. Ofereci a Fernando todo meu salário para que não viesse me buscar, mas ele não aceita. — Ordens são ordens — diz ele, o que eu entendo. Fernando toma café preto todo dia enquanto espera que eu termine de lavar os pratos e varrer a cozinha. Foi assim que descobri algo a seu respeito. Ele é a alma gêmea de Pão. Todo dia depois de eu dar a ele seu café, conto o tempo que
ele leva pondo açúcar: uns dez segundos inteiros. É muito açúcar para um cara com uma longa cicatriz vermelha no rosto, um tipo a quem você nunca pensaria em perguntar: — Que tal um expresso esta noite? — Quero dizer, é café preto e só. Com açúcar. Fernando não é tão velho, mesmo já sendo avô. E viúvo. Eu diria que tem sessenta e poucos anos, ou seja, é um pouco jovem para Pão, mas e daí? Um bom homem é um bom homem, não importa a idade. Ele adquiriu aquela longa cicatriz no rosto durante a guerra civil da Nicarágua. Foi tudo o que me disse sobre isso. Fernando não é exatamente um cara falador, então não sei muito sobre ele. Sei com certeza que não tem esse nome por causa da música "Fernando" do Abba. Gosto dele e vou armar para que fique com Pão, mas sinto dizer que vou ter de me livrar dele, com ordens ou sem ordens. Final da tarde, depois do trabalho, é hora sagrada para Siri e Wallace surfarem, e Delia e eu queremos começar a fazer churrasco ao pôr-do-sol para podermos jantar todos juntos quando a lua aparecer. Viu, estou prontinha para minha comunidade. Tendo uma grelha, a gente faz uma comunidade. Em troca por deixarem eu ter um emprego, precisei prometer ser uma filha-cidadã-modelo, e nessas primeiras semanas trabalhando no Java the Hut, fui mesmo. Deixei Fernando me pegar no trabalho e jantei com a família toda noite. Meus dias de roubar em loja acabaram, até consegui notas decentes no último semestre, e não fiz desenhos com gilete em nenhuma parte do meu corpo. Restringi meu tempo com Siri a agarrá-lo no depósito do Java the Hut e a rápidos pulos na areia fria da praia durante nossos intervalos, mas agora chega. Uma garota só pode ser dedicada até certo ponto. Faltam poucos dias para o solstício de verão e Delia e eu estamos planejando uma festa na casa de Wallace e de Siri. Vou passar a noite lá, com Sid e Nancy percebendo ou não. Vou ser tão rebelde quanto eu quiser.
Doze Siri é meu prato principal, mas será que posso confessar que não me importaria de pedir um Java para acompanhar? O irmão de Siri é um tesão. Wallace é pouco mais alto do que Siri, mas preenche muito mais sua roupa de neoprene. Tem um corpão de deixar qualquer uma babando e um lindo cabelo comprido loiro desbotado que ele prende num rabo-de-cavalo, mas não de um jeito gay como faz o Fábio. Tem olhos cinza ardentes, que queimam quando as contas do Java the Hut não batem ou quando os entregadores se atrasam ou quando ele trabalha desde as cinco da manhã e sai para surfar no final do dia e as ondas estão fracas e o sol está forte, e não tapado pela neblina, o que significa que há turistas por todo canto. Acho que vou queimar no inferno como em uma tragédia grega por ter tesão pelo irmão do meu namorado, que por acaso também é namorado da minha nova amiga Delia, do Alasca. Mas também acho que há uma longa lista de coisas pelas quais vou queimar no inferno, então por que não adicionar uma quedinha secreta pelo irmão de Siri? De qualquer forma, não é uma queda perigosa: não vou bancar a Lolita e meter Wallace em algum tipo de triângulo amoroso sacana. Me poupe. Wallace é só um sonho estético que eu pintaria se fosse artista, algo que me torturaria e que eu desejaria sempre, mas nunca teria. É difícil não suspirar por esses garotos olhando para eles através de binóculos do terraço da casa deles. Esses garotos são uma coisa. O sol estava se pondo no oceano quando Siri e Wallace, de roupa de neoprene e carregando as pranchas embaixo do braço, cruzaram a Great Highway em direção à casa. Suas cabeças estavam viradas exatamente no mesmo ângulo e o vento agitava seus cabelos molhados de forma que pareciam surfistas punks quase idênticos. Nove da noite do dia mais longo do ano e Delta e eu estávamos fazendo o churrasco do solstício de verão num terraço construído no telhado da casa de Siri e de Wallace enquanto víamos o sol se pôr sob o Pacífico. Estávamos fazendo hambúrgueres vegetarianos deliciosos para
nossos homens comerem depois do surfe. A curiosidade estava me matando e eu queria perguntar a Delia como é tocar em Wallace, sentir o peso dele no corpo. Por sorte, antes de eu perguntar, minha mente começou a dar alarme de perigo e apenas perguntei a ela: — Como veio do Alasca para São Francisco? — Acho que não me importa saber como ou por que Delia chegou aqui, só acho que é bacana ser desse lugar remoto e selvagem que tem um nome maneiro como A-las-ca, e de qualquer modo, é engraçado ouvi-la, porque ela tem uma voz rouca que não combina nem um pouco com seu visual, senhorita vestidinhos longos e pliés e jettés de bale quando anda. — Fiquei sem professores de dança no Alasca — disse Delia. — E quem não quer morar em São Francisco? Não quero morar em São Francisco. Não me importo de morar aqui porque é de uma beleza ensandecida, mas troco pela minha comunidade ou por mudar para Nova York e usar só preto na primeira oportunidade. — Você morava num iglu no Alasca? —perguntei. Delia riu como se eu fosse hilária. — Não exatamente, Cyd Charisse — disse ela. — Cresci numa bela casa dos subúrbios em Anchorage, com água encanada e TV a cabo. Os invernos são frios e os verões são belos e dançantes, sempre. — Ah — exclamei. Tenho de admitir que fiquei decepcionada. Não estava decepcionada por conseguir despistar Fernando. Disse a ele para me pegar na casa de repouso de Pão depois do trabalho, sabendo que quando Fernando descobrisse que eu não estava lá, o Java the Hut estaria fechado e estaríamos fazendo hamburgueres vegetarianos e Fernando estaria apaixonado por Pão. Tudo certo. Pelo toque do telefone, enquanto eu olhava Siri e Wallace pelo binóculo, soube que Fernando já tinha descoberto tudo. — Hola — disse eu no telefone sem fio. — Muito engraçado — respondeu Fernando. — Está totalmente apaixonado por Pão? — perguntei. Fernando fingiu não ouvir minha pergunta. — Quer contar isso para sua mãe ou conto eu? Não tinha certeza. Para mim, ele ia contar, se ela prestasse atenção.
Não era grande coisa. Pão pegou o fone e disse; — Cyd Charisse, menina levada. Está tentando meter Fernando em apuros? — Fernando não vai ficar em apuros, Pãozita. Eu é que vou. O suspiro de Pão-Doce durou horas. — Não, querida. É responsabilidade dele se assegurar de que você vai do trabalho para casa toda noite. Foi o combinado com seus pais. Se ele não chegar em casa com você, está em apuros. — Mas não é justo! — disse eu. — Exatamente — retrucou Pão e passou o telefone de volta para Fernando. — Chiquita bonita? — disse ele. — Vou ligar para Nancy agora. Direi a ela que enrolei você. — Adios — disse Fernando. Clique. Foi assim que eu soube que tinha entrado numa zona totalmente maluca, quando liguei para Nancy, ela disse que não tinha problema eu jantar com Siri, desde que eu não voltasse muito tarde. Ela estava oferecendo uma grande recepção para suas amigas da sociedade, então acho que ficou aliviada de não me ver passando pela porta e ter de explicar para todas aquelas frescas que a sua filha tinha... coff-coff.... um TRABALHO... coff-coff... na Ocean Beach! Ocean o quê? Teriam perguntado, como se a zona da Ocean Beach não ficasse a seis quilômetros das suas mansões em Pacific Heights. — Estou livre! — exclamei quando Siri chegou no terraço e me abraçou por trás. Não me importei que sua roupa de neoprene ainda estivesse molhada ou que seu cabelo raspando no meu pescoço pingasse água gelada pelo meu peito. Estava ótimo. "La vie en Cyd Charisse estava ficando terrivelmente aconchegante", pensei. Eu não arrumo problemas há anos, tenho um namorado que é o máximo, um trabalho de verão sério e Nancy até me dá permissão para sair com aquele garoto. Podia até ficar entediada, percebi, enquanto me virei para abraçar Siri, mas de relance olhei para Wallace e percebi que ele estava me olhando bastante também. Perigo.
Treze — Você é bacana — sussurrou Wallace à luz da lua. Delia e Siri estavam desmaiados em seus sacos de dormir ao nosso lado. Só o som das ondas batendo sobrepunha-se a seus roncos. Como eu poderia dormir quando Java the Hut, com seu hálito de menta, ficava me contando histórias a noite toda, com aquele maravilhoso cabelo comprido caindo nos ombros e seus olhos incendiários queimando através de minha visão enluarada. Oh, senhor, reze por mim agora teria dito Pão-Doce se estivesse aqui. — É — respondi e então pensei, É? Cyd Charisse, seu vocabulário está deficitário. Devo ser uma espécie de escavadora de túmulos, porque Wallace tem quase um quarto de século e quero demais abrir o saco de dormir dele e me apertar lá dentro. Na minha comunidade, não vai ter problema amar dois irmãos, só que não ao mesmo tempo. Depois que Siri e Delia pegaram no sono, Wallace e eu começamos a falar sobre antigos namorados. Contei a ele sobre meu primeiro namorado, Luke, quando eu tinha 14 anos, quase 15. Luke tinha 17 e uma moto. Na verdade, era uma mobilete e ele era péssimo motorista. Estava sempre tirando fino de tudo no estacionamento. Não é à toa que tenha virado monitor de latim, tinha de ser bom em alguma coisa. Ele também era bom em beijar. Quando devíamos estar estudando declinações, ele estava na verdade me ensinando como beijar usando todas as partes da boca, meus lábios, minha língua, meus dentes — e como beijar com calda de chocolate Hersheys na minha língua e um marshmallow na dele. Nojento talvez, mas delicioso... com certeza. Às vezes beijávamos, jogando fumaça na boca um do outro, depois de tragar maconha jamaicana de um cachimbo improvisado em uma lata de Coca-Cola. Fiquei entediada dessa coisa de maconha há muito tempo, mas o beijo de alma eu mantive. Pouco importa de quantas substâncias Luke abusava, ou quantas
jaquetas de couro tinha, ou como ficou comprido seu cabelo, ou como tentava parecer com Kurt Cobain: não conseguia se livrar do ar de jovem Irritadinho. O cara era um psicótico de primeira que estava destinado a ir para Harvard e ser um gênio da neurofísico-químico-atômica, apesar de ter se especializado nas artes da cama. Espero que um dia ganhe o prêmio Nobel; ele vai se lembrar que fui eu que lhe disse que ele era só um CDF que podia transar como um campeão, mas, na verdade, tinha mais é que largar essa rebeldia e voltar para os livros, Luke me trocou por uma matemática que pintou no pedaço. Mas naquela época os bíceps inchados do Justin e as panturrilhas de quem joga lacrosse já tinham entrado no meu campo visual com problemas hormonais, e eu estava mais para: Luke, que Luke? E o troquei pelo Justin num piscar de olhos. Quid pro quo, quero dizer, Justin tinha o corpo de um deus. Me perdoe, mas é verdade. Eu só queria passar a mão nele todo, todo o tempo. E assim que começam os problemas, viu? Nos programas de TV, quando adolescentes transam —, isso é sempre uma coisa ruim, ou algo que precisa ser discutido e rediscutido até que os personagens possam finalmente transar. Na vida real, não é tão difícil. Olhar, querer, tocar, problema. O sexo não termina sempre em problema. Na TV, se você é adolescente e faz sexo ou você é (a) um personagem secundário, ou (b) vai aprender uma lição importante, seja porque fica grávida, porque pega Aids ou qualquer outra doença sexualmente transmissível, ou pelo menos vai sofrer com cenas de pais histéricos por causa disso. A maioria das pessoas da minha idade que conheço simplesmente faz isso, não fica conversando sem parar a esse respeito, e certamente não tolera conversar sobre isso com os pais. Não é todo mundo que tem de ter liçõezinhas de moral como eu tive. Porque a verdade é que você nunca vê esses adolescentes, que falam e falam sobre sexo na TV, realmente se pegando gostoso. Porque o que deveria ser um segredo é que — sssh, vamos falar baixo — o sexo pode ser bem legal, muito brigado. Mas é melhor quando é com uma pessoa de quem você gosta, além de ter tesão. O primeiro amor do Wallace foi uma garota australia-na-indonésia chamada Lucinda. Ela tinha olhos azuis da cor dos mares tropicais e um longo cabelo preto que batia na cintura. Ele a conheceu no ano que passou
mochilando pela Ásia, antes de ir para a faculdade. A pele de Lucinda era de um marrom-alaranjado brilhante como o pôr-do-sol e ela sempre falava com um sotaque tão australiano quanto seu pai. Lucinda usava sarongues de seda e Wallace se vestia com roupas étnicas. Eles saíam juntos e faziam amor embaixo de cachoeiras e se agarravam no quente oceano Indico, tenho certeza. A família de Lucinda morava numa cabana na praia. Seu pai era exportador de café. Foi assim que o Java the Hut nasceu, aprendendo o ofício com os pais de Lucinda. Sacou? Perguntei a Wallace por que ele não ficou na Indonésia e, não casou com Lucinda e teve filhos californianos-americanos-australianos-indonésios? Porque, pelo jeito como ele falava da Lucinda, dava para ver que ela tinha sido o amor da vida dele. Wallace respondeu que queria mochilar pelo Nepal, pela índia e pelo Vietnã e Lucinda não queria ficar tão longe de seus pais. Ele ainda queria ir para a faculdade. Então foi embora. Era jovem e burro. Ah, disse eu. Certo. Será que Lucinda pensa em Wallace sob a lua balinesa do mesmo jeito que eu, sob a lua em Ocean Beach, São Francisco? Será que se a gente se conhecesse ela não se importaria de me ensinar aquela dança indonésia descolada, com as mãos viradas e o sexy jogo de quadris? Será que um dingo comeria seu bebê, se ela tivesse um? Talvez ela tenha tido um filho secreto de Wallace e um dingo o tenha comido quando ela estava visitando seus avós na Austrália e agora ela está totalmente traumatizada e nunca sai de sua cabana mesmo com a mãe dela sempre tentando fazê-la dançar e ser feliz novamente. Será que Lucinda esqueceu Wallace depois de quase seis anos? Duvido. — É tão legal a forma como seus pais deixam Siri morar com você enquanto estão cavando fossos e sei lá mais o quê — disse eu. Wallace riu, mas seus olhos não estavam rindo. — Não é tão legal assim — murmurou ele. — Quê? — perguntei. Não ter os pais por perto só pode ser esplêndido. Wallace adotou um tom de adulto que soou totalmente bizarro.
— Na verdade, o menino precisa de pais. Ele ainda é um menino, e os pais de um menino devem ficar com ele, e não sair por aí fazendo tentativas egoístas de resgatar a juventude, pensando que estão ajudando pessoas que não precisam deles tanto quanto um filho precisa. Adoro ter ele aqui, não me entenda mal, só que... não sou pai dele, sabe? Era engraçado ouvir Siri ser chamado de "menino". Pode me chamar de inocente, mas não costumo pensar no cara com quem estou transando como "menino". "Menino", para mim, é uma criança baixinha como meu irmão Super-Menino, o Josh, que adora arrotar e abrir bem a boca quando está comendo, para que todo mundo possa ver o sorvete e balas de goma amarelas e vermelhas. "Menino" para mim não é o Rei de Copas, que gosta de dançar juntinho comigo, usando a roupa de neoprene mesmo quando não tem música tocando. — Não, não sei — respondi. Pais que deixam os filhos adolescentes crescerem em paz têm de ser os melhores. Acho. Se pudesse pagar o aluguel, eu ficaria para sempre nesse telhado num saco de dormir, feito um sanduíche entre os irmãos mais gatos do mundo. Quem diria que a vida poderia ser tão boa? Claro, os tentáculos de Nancy devem ter sentido por radar meu prazer, e ela teve pesadelos, porque do nada escutamos uma buzina bem alta vindo da rua. O tipo de buzina que a uma da manhã só pode vir da Mercedes blindada do meu padrasto, com um Fernando grande, com uma cicatriz no rosto, bebedor de café, ao volante. — Droga! — exclamei. Me levantei e saí do saco de dormir antes que Wallace pudesse explicar por que seus pais não deveriam estar viajando pelo mundo. Siri acordou com o som da buzina. Já estava acostumado. — Tchau, gata — murmurou, enquanto eu corria em direção à escada. Quando passei por ele, sua mão esticada tocou a tornozeleira que ele fez pra mim. Ele é um GATO GATO GATO e o irmão também e não vou mais tolerar essas interferências da minha figura materna.
Catorze Quando cheguei em casa, descobri que uma farra também tinha acontecido em Pacific Heights. O tipo de farra que acontece quando Nancy acorda no meio da noite e vem para o meu quarto ver se estou dormindo ou se estou acordada, tirando as cutículas ou com outro tipo de comportamento doentio. Em vez disso, descobre que saí, e sai pela casa acordando todo mundo com seus berros e guinchos. Minha irmãzinha Ashley estava esperando por mim na porta quando cheguei com Fernando. — Os pedacinhos de Cyd Charisse chegaram e ela está numa puta en-cren-ca! — cantarolou ela. Tem seis anos, mas age como se tivesse 16, e talvez seja mais monstra do que o Super-Menino Josh. Tem um rostinho de anjo, com uma boca suja que só ela. Eu a acho adorável. Mas você nunca vai me pegar dizendo isso. Não achava Ash adorável porque ela sempre mexia nas minhas coisas, mas depois Nancy redecorou meu quarto e agora não tenho mais vontade de deixar minhas coisas naquele lugarzinho de princesa-vômito. Além disso, não sou o tipo de menina que guarda um diário com um cadeado e uma chave. Tenho todos meus segredos na cabeça, onde ninguém além de mim e Pão-de-Mel, que é telepata, podem mexer. Todas as outras coisas importantes — cartas antigas do Justin, desenhos de Siri, minha receita de anticoncepcional, o travesseiro de "Lar Doce Lar" que bordei para Pão-de-Mel na aula de tarefas domésticas — mantenho numa caixa no quarto de Pão-Doce, na casa de repouso. Ela nunca mexe nas minhas coisas. Vive muito ocupada ganhando dinheiro com as cartas e tendo tarô para os velhos. Ash estava com a fantasia de fada que ela ama tanto que dá ataques quando você tenta fazê-la tirar. Ficou na entrada abanando a varinha de condão para mim, vestida com meia-calça rosa, collant rosa, saia de tule rosa, uma tiara de pedrinhas e com um bigode rosa de refresco em cima da boca.
Cutuquei sua barriga quando passei. — Não toque na minha banhinha! — gritou ela. Se eu me considerasse realmente parte dessa família, diria que somos um bando de doidos completos. — Não é banhinha — retruquei. — São os chocolates Twinkies que você esconde embaixo da cama e que ninguém além de você e dos ratos que passeiam por ali sabe que existem. Não me diga quem está numa puta en-cren-ca. Nancy se preocupa tanto com o peso de Ash que eu tinha esperanças que ela logo parasse de gritar comigo, para cuidar do suprimento de açúcar debaixo da cama. — Cale a boca! — disse Ash. — Não, cale você. Nancy estava de pé no saguão esperando por mim. Ela apontou para Ash e disse. — O que eu disse sobre palavrão, Ashley? Vá já para cama, Senhorita Princesinha. E é melhor que eu não encontre nenhuma comida embaixo dela quando for lá daqui a pouco. Ash ignorou nossa mãe e ficou de pé na porta, apesar do frio da baía de São Francisco. — Feche a porta! — gritou Josh descendo a escada pelo corrimão. — Burr-ito! — Essa expressão é minha — reclamei. Minha expressão via Sirilicioso. Papai Sid não estava à vista, mas eu podia sentir o cheiro de seu charuto saindo do escritório, certamente com seu martíni ao lado. — Obrigada, Fernando — disse Nancy, e parecia estar falando para valer desta vez. Eu não ia agradecer Fernando. Não apenas eu o apresentei à sua nova conselheira espiritual, Pão-Doce, mas também não gostava pessoalmente de ser arrancada do meu paraíso fraternal, em Ocean Beach, por um grande nicaragüense que não deixou nem a gente parar para um donut no caminho de volta para casa. Além do mais, no carro, ele me disse que eu estava sempre magoando meus pais. Muito esperto esse tal de Fernando.
— Está feliz, Cyd Charisse? — perguntou Nancy, enquanto Josh e Ash corriam um atrás do outro pelo saguão gritando. — O caos reina nesta casa e, mais uma vez, por sua causa. Ah, desculpe, mas se tivessem me deixado em paz com os Irmãos Gatões, a referida cena de caos no meio da noite nunca teria acontecido. — Estou pensando em me emancipar legalmente — anunciei. Tenho 16 anos e é hora de começarmos a falar seriamente uma com a outra, como adultas. — Pode esperar uma ligação do meu advogado de manhã. Comecei a subir pelas escadas quando senti Nancy agarrando as costas da minha blusa para me puxar de volta. — Isso pode ser tomado como maus-tratos num tribunal! — exclamei. O rosto de Nancy estava pálido e furioso quando me virei para encará-la. — Não vou mais tolerar suas gracinhas — ela disse, tentando ficar calma. — Rebelde — gritou Sid do escritório. — Venha cá. Agora. Virei a cara para Nancy, que me seguiu até o escritório. Leila veio levar meus meios-irmãos de volta para a cama. Ela me lançou um olhar de puro ódio e, por um segundo, quase me senti mal. Leila odeia ser acordada no meio da noite. Ela tem muita dificuldade em voltar a dormir. Prometi a mim mesma que iria levar chá na cama para ela depois que eu resolvesse a situação com Sid e Nancy. Achei que serviço de chá na cama, por uma quase-garçonete de verdade, era o mínimo que eu podia fazer por Leila. Fiquei diante de Sid, que estava usando smoking enquanto fumava seu charuto. Tenho de admitir que ele tem estilo. Ele me olhou de um jeito tão desapontado que desviei os olhos. Por trás dele, vi a estante cheia de suas lembranças favoritas: uma foto emoldurada comigo, Josh e Ash; sua luva de beisebol da faculdade; e o troféu que ganhamos juntos pela corrida de saco de batatas de pai e filha no piquenique da sua firma alguns anos atrás. Ao lado do troféu estava a bola de beisebol com a qual brincávamos quando eu era pequena e estava me acostumando com a casa nova em São Francisco, antes de Josh e Ash nascerem. Naquela época, papai Sid vinha do trabalho mais cedo para jogar
bola e ler livros comigo: mais tarde, quando entrei para a Littie League, ele às vezes mandava Fernando me levar a seu escritório depois da escola, e então íamos para um parque lá perto jogar bola. Você joga como uma garota, dizia ele, implicando. E eu lembrava a ele que sou uma garota. — Pa... — comecei a dizer, mas ele me cortou no meio. — Sente-se — disse ele. Quando hesitei, ele acrescentou: — Agora! — e minha bunda caiu no sofá de couro na mesma hora, quase como se estivesse separada do meu corpo e pensasse sozinha. Nancy ficou na porta, assoando o nariz com um lenço e tentando engolir as lágrimas. — Não entendi por que todo esse drama — disse eu. — É claro que não entendeu — disse Sid. — Mas é um drama muito grande, passar a noite na casa daquele garoto. — Mas nem estávamos transando! — protestei. Isso é que é ser prestativa demais para passar informações. Papai Sid é bem careca, então logo se percebe quando seu rosto fica vermelho. Quase-filhas que jogam como uma garota não podem crescer e fazer sexo. Sid não me olhou nos olhos quando disse: — Você saiu sem permissão e prometeu à sua mãe que estaria em casa às onze. Abusou dessa nova confiança que tentamos estabelecer, e retribuiu com desprezo a nossa boa-fé. Boa-fé? Cruzei as pernas e balancei o tornozelo antes de anunciar: — Já tinha passado a noite lá antes e vocês nem perceberam ou nem ligaram. Houve um silencio gostoso no escritório. Minha declaração era uma novidade para Sid e Nancy. Eles não haviam percebido minhas escapadas. Eu os peguei.
Quinze Aparentemente, não vou mais pegar Sid e Nancy. Aparentemente, agora vão perceber tudo, ligar para tudo. Estou presa, e pelo visto para sempre. Não posso mais trabalhar no Java the Hut. Posso ver Pão-Doce uma vez por semana, mas só porque Fernando interveio e disse a Sid e Nancy que realmente precisam de mim na casa de repouso. Mas agora tenho de passar tanto tempo limpando banheiros em casa quanto visitando Pão-Doce. É a vingança de Fernando. Ah, e agora que não tenho mais um salário, não posso pagar aquele advogado que teria cuidado de todo esse negócio da emancipação. Estou confinada a essa bela casa que mais parece um museu e não um lar onde pessoas vivem e respiram. Do meu quarto, que dá para Pacific Heights e a marina, posso ver a velha ilha da prisão de Alcatraz. Sabia que os prisioneiros que eram condenados a Alcatraz podiam realmente ouvir de suas celas as vozes das pessoas em São Francisco lindo e se divertindo, trazidas pelos fortes ventos da baía? Agora chamo meu quarto de Alcatraz. É minha ilha desolada de onde posso ver gente rindo e se divertindo do lado de fora, e tenho certeza de que todas podem passar a noite na casa dos namorados sem serem trancafiadas. Todo mundo está andando pela casa como se fosse uma funerária. Até os superirmãos estão esquisitos. Todo mundo está tentando ser super legal comigo, como se tivessem medo de que eu fosse ficar totalmente isolada na minha nova equação de 1 + Pão-de-Mel = quarto da princesa de Alcatraz. Estamos todos cochichando uns com os outros e dizendo "por favor" e "obrigado" o tempo todo, como se fôssemos estranhos. Depois da noite de gritaria e, de portas batendo e lágrimas, ninguém quer romper a paz. Eu quero. Mas estou esperando a hora certa. Sid e Nancy me proibiram de ver Siri até que o ano letivo recomece. Eles dizem que precisamos de um tempo para esfriar. Não sei do que têm
medo. Se tivessem alguma noção, saberiam que ele é o namorado dos sonhos. E eu não sou nenhuma virgem casta. O diretor do colégio interno fez questão de que eles ficassem sabendo. Acho que Nancy gosta de praticar o que chamam de "história revisionista" nas minhas aulas de estudos sociais, porque está tentando me prender como se ainda houvesse algo sagrado em mim que valesse a pena salvar. Josh e Ash estão me seguindo pela casa como cachorrinhos. Não estão acostumados a me ver em casa tanto tempo. Mas nem o Josh imitando Pee Wee Herman ou a Ash fazendo trancas no meu cabelo e deixando eu usar sua barriga de geléia como travesseiro quando estamos vendo vídeos conseguem me alegrar. Preciso de um Siri. Preciso de um Wallace e de histórias de amantes australianas-indonésias. Preciso de Delia fazendo pliés em volta da máquina de expresso. PRECISO DE UM CAFÉ DO JAVA THE HUT! URGENTE! A única coisa a se fazer em Alcatraz é bancar Helen Keller. Quando eu era pequena, Nancy lia para mim o livro com a história de Helen, cega e surda superando cada obstáculo para se tornar uma pessoa inspiradora. Eu gostaria de ser uma pessoa inspiradora, então, tarde da noite, quando todos estamos dormindo e eu preferia estar me agarrando com Siri, ponho uma venda nos olhos e fones nos ouvidos para abafar os sons dos ventos da baía, aperto Pão-de-Mel contra o peito e andamos pelo quarto de princesa-vômito sentindo as paredes duras e pressionando nossas bochechas nos vidros frios das janelas. Quem sabe aprender a sofrer sem a visão e a audição não vai nos levar a um caminho inspirador? Helen não era muda, mas estou tentando ser. Não falo com Nancy, exceto quando não tem outro jeito. Quando esbarramos uma na outra toda manhã, eu murmuro: "licença" e continuo o meu caminho. Meu caminho para lugar nenhum, quero dizer, vagando por essa enorme e entediante casa onde Leila nem se importa quando tento falar com ela na cozinha para explicar a diferença entre um latte e um cappuccino. É tudo uma questão de leite vaporizado versus leite espumante e os tipos de xícara que se usam, tento dizer a ela, mas ela é toda franco-canadense Zut Alors! E me diz que tem trabalho para fazer e que saia da frente.
Leila está furiosa comigo porque agora Nancy fica em casa o dia todo me vigiando como um gavião, o que significa que também fica no pé de Leila todo o tempo: Leila faça isso, Leila faça aquilo. Me ofereci para ajudar a fazer isso e aquilo, mas Leila disse que non. Acho que se eu fosse a Leila também ficaria brava comigo. Só Pão-de-Mel entende. Ela concorda que temos de pensar numa forma de nos emancipar. Estamos pensando em começar a fumar, já que isso ao menos vai ocupar um pouco o nosso tempo, Além disso, fumar vai irritar Nancy para valer. Infelizmente, não gostamos que nosso cabelo tenha cheiro de fumaça, então, estamos tentando chegar a um meio-termo. Pão-de-Mel está com saudades de suas raízes. Quer ver o pai verdadeiro, Frank. Papai Sid tem vindo do trabalho para casa mais cedo, tentando me atrair lá para fora para fazer churrasco com ele ou jogar bola. Quer que eu "participe" da família. Eu lhe disse que não estou com fome e não gosto mais de esportes, mas obrigada. Uma vez ele veio ao meu quarto com um cappuccino especial que comprou a caminho de casa para mim. Perguntei se era um cappuccino seco? e ele disse, "hein"? e eu disse, você sabe, com espuma extra e ele disse, "hein"? e eu disse, não estou mais muito a fim de café, mas obrigada. De novo. Nancy veio ao meu quarto e perguntou: — Vai nos dar o prazer de sua presença no jantar hoje de noite, senhora Sou Boa Demais para Comer com Minha Família? — O sarcasmo acaba voltando contra quem usa — respondi. Forrest Gump é o filme favorito de Nancy. Isso diz tudo o que você precisa saber sobre minha mãe. Nancy ficou parada na porta do meu quarto, sem nenhum fio de cabelo fora do lugar. Ela suspirou, mas não explodiu. O Prozac está realmente funcionando, ela está realmente tentando. Calmamente, ela disse: — Leila fez seu prato favorito: macarrão com queijo. — Você vai fazer Ashley comer peixe grelhado com arroz integral e não vai deixar que ela coma sobremesa? — perguntei. — Não é da sua conta — retrucou Nancy. — Ashley tem um
problema de peso que pode afetá-la socialmente. Você nunca vai entender. Nem todo mundo é metabolicamente abençoado como você e pode comer tudo o que quer. Fiquei tentada a fazer um comentário bem ríspido sobre algumas espécies masculinas que metabolizei, mas Pão-de-Mel me calou. — Ela tem seis anos — disse eu. — Não deveria estar de dieta. E é uma garota tão mandona que você não precisa se preocupar com ela na escola. Os meninos da escola dela têm muito medo de não ser seus amigos. Acho bem triste que minha irmãzinha acorde no meio da noite para roubar comida da geladeira quando acha que todo mundo está dormindo, porque está com fome pelo jantar que a Nancy não a deixou terminar. Quando escuto Ash tarde da noite, eu a deixo vir a Alcatraz e bebemos chá de faz-de-conta das xicarazinhas de Pão-de-Mel e comemos Crunches miniaturas da Nestlé. Então pulamos na cama e dançamos techno-pop que altera a mente para queimar as calorias, mesmo que detestemos esse tipo de música. — Ela está sete quilos acima do peso — disse Nancy. — Isso não é saudável para uma criança de seis anos. Você não é mãe, senhorita Sabe Tudo. Não me diga como criar minha filha. Não sei se atrapalho ou ajudo no caso de Ash, defendendo-a, então mudei de assunto. — Aposto que meu pai verdadeiro não me prenderia assim — disse eu. Nancy balançou a cabeça e eu podia ver que ela queria explodir comigo. Em vez disso, disse: — Tome cuidado com o que você deseja — e foi embora. — Pão-de-Mel e eu vamos comer seus Lifesavers de jantar! — gritei depois que ela saiu. Tenho de respeitá-la por isso. Quando Nancy dobrou no corredor e achou que eu não podia mais vê-la, me mostrou o dedo pelas costas.
Dezesseis Quando eu estava achando que ia começar um novo esporte chamado Tédio Extremo, um milagre aconteceu em Alcatraz, graças à minha nova melhor amiga, Delia. Delia ligou para minha mãe e disse que era professora de dança meio período na minha escola e tinha percebido que eu era uma dançarina nata e perguntou se Nancy não gostaria de me inscrever em suas aulas de verão, numa pequena escola de dança em Ocean Beach. Bem, disse Nancy, ela está de castigo, mas talvez isso seja bom. Ela está me enlouquecendo com aquela cara emburrada o tempo todo. Ela tem o nome de uma famosa dançarina, você sabe, não é? O único problema é que Delia realmente esperava que eu dançasse, — Seu nome é Cyd Charisse! — disse ela quando cheguei para a primeira aula. — Tem de aprender a dançar. O que adorei foi que, depois de me deixar, o Vingador Fernando foi para a casa de repouso jogar dados com Pão-Doce e seus amigos, Ter olhares soturnos de um nicaragüense enquanto eu tentava me movimentar na aula de dança seria demais depois daquele encarceramento. — Por favor, não me diga que você quer que eu use um daqueles collants e leggings e aja como aquelas meninas que querem ser dançarinas — reclamei. — Alguém veio para minha aula de má vontade — Delia disse. —Alguém parece ter esquecido quem a tirou do castigo pelo resto do verão. — Alguém — disse eu, quase gritando — ESTÁ SEM CAFEÍNA HÁ MAIS DE UMA SEMANA! Foi aí que Siri apareceu saindo do vestiário carregando um mocha duplo com chantili extra, bem como eu gosto. Não sabia se agarrava ele ou o café. Escolhi o café, tenho minhas prioridades. Sentamos todos no gigantesco piso de madeira, vendo nossos reflexos nos espelhos gigantescos. Delia ficava falando sem parar sobre
sapateado versus dança moderna para a primeira aula, mas eu a desliguei para me afundar em Siri, enquanto ainda tinha chance. Queria gravar na memória cada centímetro de seu rosto e corpo e levá-los comigo para os longos dias e noites em Alcatraz. Siri sentou-se ao meu lado com um sorrisinho no canto da boca. O cabelo parafinado espetado na frente da cabeça estava um pouco mais comprido e as raízes mais escuras do que da última vez que eu o vi, e seus cílios, refletindo o sol da tarde que atravessava a neblina lá fora das janelas da escola de dança, brilhavam como ouro. Quando o mocha com chantili extra do Java the Hut entrou na minha corrente sangüínea, me senti de repente com vontade de dançar mesmo. Uma dança tipo saculejo livre uh-uh à la Siri e Cyd, vulgo Fred e Ginger pornô. Queria que Delia, bonitinha como ela era com seu cabelo ruivo crespo preso no alto da cabeça e suas meias-calças de zebra, se mandasse dali. Talvez eu seja apenas uma maníaca sexual afinal. Siri tinha um pouco de creme no lábio superior e não pude evitar. Me inclinei para lambê-lo, mas Siri olhou em meus olhos e entendeu o que se passava na minha cabeça. Deu uma olhadela para Delia e desviou o rosto, então acabei dando um inocente beijo esquimó na bochecha dele. Aquele gesto meio que me encheu o saco. O que ele acha que eu ia fazer, pegá-lo de jeito bem na frente de Delia? Ele simplesmente parecia tão apetitoso e tinha cheiro de montanhas de grãos de café... quem não gostaria de lambê-lo? Mas sou uma garota respeitável e seria uma lambida respeitável. — Sentimos sua falta na cafeteria! — disse Delia. Ela tagarelava num ritmo acelerado, movido a muito expresso. — Todos os fregueses têm perguntado por você. Temos uma garota nova trabalhando no seu turno chamada Autumn. Bonitinha, mas um desastre! Ela não se entende com a máquina de expresso, quebra copos o tempo todo, sempre esquece os pedidos dos clientes, mas é amiga de surfe do Siri e você sabe que o Wallace gosta de empregar a garotada de Ocean Beach. Eu ainda não tinha ouvido Siri falar dessa tal de Autumn. Cyd Charisse não está feliz.
De repente, tive um mau pressentimento sobre Siri não ler querido a lambida. — Vocês não vão me fazer dançar mesmo, vão? — perguntei. Talvez tenha sido o repentino estímulo de ser arrancada de Alcatraz e mergulhada em café e estar junto com Siri depois de tanto tempo de privação, mas eu estava começando a ficar com dor de cabeça. — Porque não tenho vontade de dançar e todo esse café me faz querer ir ao banheiro. Não sei por que tinha de ser má e geniosa quando Delia e Siri estavam sendo tão legais comigo. — Cara — disse Siri — não estrague nossa onda. — Bem, porque não vai procurar a senhorita Autumn e pedir que ela entre na onda com você? — sugeri e saí pisando forte para o banheiro. Sentada na privada com a saia nos tornozelos, apoiei os cotovelos na coxa e escondi o rosto nas mãos. Queria chorar, mas todo aquele café de cinco minutos atrás fazia minhas mãos tremerem e eu não conseguia me concentrar o bastante para chorar. Autumn. AUTUMN? — Foda-se a Autumn! — gritei do banheiro. Autumn era provavelmente uma hipponga, com cabelo avermelhado e sovacos peludos, que carregava um violão para tocar músicas folk idiotas quando não estava tentando ser a bacana Miss Ocean Beach com sua prancha de surfe numa das mãos e um latte do Java the Hut na outra — descafeinado, claro, porque provavelmente ela iria querer manter um clima meigo o tempo todo, cara. A pequena senhorita Autumn não gostaria de estragar a onda de alguém enquanto Cyd Charisse está em pedaços trancada em Alcatraz, bafejando as janelas para se divertir. Quando voltei do banheiro, Delia tinha ido embora. Siri estava olhando pelas enormes janelas com uma cara tão amarrada que parecia até a de Fernando. — Onde está Delia? — perguntei. — Achou que devíamos ficar um pouco sozinhos — murmurou ele. — Mas quero aprender a dançar! — eu disse. Havia tanta cafeína, tanto açúcar e tantas pontadas de dor de cabeça pedindo para serem liberados no meu corpo que eu estava pronta para ser a Senhora da Dança. — Cyd — disse Siri, e percebi imediatamente que as coisas estavam
mal. Ele geralmente fala meu nome baixinho, com desejo nos olhos. Que reencontro idiota. — Precisamos conversar — prosseguiu Siri. Isso era uma qualidade que Justin tinha. Não era um cara sensível do tipo Vamos Falar Sobre Nossos Sentimentos. Ele era só sexo, drogas e rock'n'roll. Às vezes isso é bom. — Falar do quê? — perguntei. Eu tinha que gastar um pouco de energia, então comecei a andar pelos cantos da sala de dança sem mobília. — De nós — disse Siri. — Não posso acreditar — retruquei. O combustível de café estava prestes a sair pela minha boca. — Eu finalmente deixo aquele poço do inferno chamado casa monstro da minha mãe e você quer "conversar". Está terminando comigo? Porque se estiver (a) essa é uma hora para isso, (b) é totalmente equivocado da sua parte me trazer café primeiro, ser todo doce e legal e depois se virar contra mim. Matemática era a matéria em que eu ia melhor no colégio interno. O professor dizia que eu era excelente em raciocínio dedutivo. — Eu estou fazendo isso com você? — perguntou Siri. — Olhe! Você é uma pessoa totalmente diferente agora. E como o Curl, aquele cachorro, que adotamos quando eu era criança. Ele ficou numa gaiola por meses e virou um monstro selvagem quando foi solto. Você está me lembrando o Curl agora. Seus pais devem ter realmente surtado com você enquanto esteve de castigo. — Pelo menos eles ficam do meu lado! — retruquei enquanto andava. Instantaneamente me arrependi daquilo, mas é assim que as más palavras são: não dá para desfazer o estrago, mas (a) é mais difícil quando você está cheia de café e (b) você nunca pode retirar o que disse, nunca. Siri murchou e parou de seguir meus passos com os olhos. Era como uma mudança de maré tão rápida que podíamos evaporar na neblina de Ocean Beach que corria densa e tempestuosa lá fora. Como nosso reencontro deu tão errado, tão rápido? Houve um silêncio que durou muito tempo, quebrado apenas pelos meus passos duros no piso da sala de dança. Afinal, Siri falou: — Pode parar um pouco? Está me deixando tonto andando desse jeito.
Parei exatamente na frente dele. Parada ali, eu queria gravar seu rosto e seu cheiro na memória, pois, eu bem sabia, isso seria tudo o que restaria dele. Toquei seu cabelo espetado, fechei meus olhos e fingi que era Helen Keller. Helen passou as mãos nas bochechas e olhos de Siri, nos seus lábios e no seu nariz, para guardar aquelas feições para sempre. — E agora? — perguntei, com os olhos ainda fechados. O silêncio tinha sido bom, mas não podia bancar a surda para sempre. — Essa separação me fez pensar. Estamos saindo tanto desde que nos conhecemos que eu mal tenho tempo para terminar uma tela, ver meus amigos do surfe ou qualquer outra coisa. Não estava certo até agora, mas talvez ficar afastado por um tempo seja uma coisa boa. Talvez seus pais não sejam tão idiotas quanto pensa — disse Siri. — Você me ama? — sussurrei. Quando Siri não respondeu, deixei aos mãos caírem ao lado do corpo e abri os olhos de Helen para o mundo cruel. Era como se ele nem tivesse me ouvido. — Até você ir embora, não percebia como estávamos presentes na vida um do outro. Preciso de tempo e espaço para meu surfe e minha pintura, sabe? — E para Autumn? — perguntei. Olhei direto em seus belos olhos para que não pudesse mentir para mim. — Não há nada entre mim e Autumn — disse ele, sem me encarar. — Acabou de mentir para Helen! — exclamei. Os olhos o entregaram. — Hein? — indagou Siri. — Então é isso? — perguntei. Porque por semanas em Alcatraz fiquei esperando a hora de voltar a ver Siri, tocá-lo, rir com ele. Não de brigar com ele. Certamente não de terminar com ele. Especialmente não de ser trocada por Autumn. — Vamos nos encontrar quando as aulas começarem. Aí veremos o que acontece. Certo. Quando ele saiu, se virou para mim e murmurou: — Talvez você precise de um certo tempo para pensar sobre sua queda pelo meu irmão.
Então ele saiu da escola de dança, desapareceu na neblina e fechei meus olhos para que Helen não tivesse de testemunhar esse horror final. — Achei que você era para sempre — disse Helen para a sombra negra dele.
Dezessete A nova comunidade de Helen Keller agora está em sessão em Alcatraz. É a comunidade não-fale-não-veja-não-ouça. Aceitamos novos membros só pelo cheiro. Pessoas com cheiro das senhoras da Neiman Marcus estão fora. Portanto, infelizmente, Nancy não vai se unir a nós. Martínis e charutos cubanos são sempre agradáveis, mas papai Sid não enviou uma ficha de inscrição. Nicaragüenses que têm cheiro de empanadas e de missas matinais podem ser admitidos se pedirem com jeitinho. Quem não adora cheiro de doce? É sempre um prazer ter você na nova comunidade Helen Keller, Pão-Doce e sua coleção de chocolate. Não tem sentido convidar o Nada — aquele cujo nome dói tanto só de pensar, que é bom não ter de mencioná-lo ou imaginá-lo (afinal, somos surdas e cegas). O irmão Java do Nada faria uma contribuição aromática à nossa comunidade, mas não podemos correr o risco de cair no choro convidando ele ou Delia e então sermos potencialmente tentados a perguntar sobre Nada. Telepaticamente convidei Lucinda, a antiga namorada australiana-indonésia de Wallace, e eia respondeu de volta: "Ó-tchi-mo!" Ela sabe como dói ser largada por um belo surfistinha punk. Ash e Josh, que sempre têm cheiro de cookies de chocolate e de travessuras são membros vips da comunidade Helen Keller. Todo dia vagamos pela Quem Se Importa Se E uma Bela Casa Porque Não Podemos Ver com vendas nos olhos e fones no ouvido. A gerência infelizmente nos transferiu para o porão depois que quebramos muitos vasos, mas na comunidade do porão de Helen Keller podemos pular em camas-elásticas sem medo de cair e nos machucar porque estamos juntos e isso nos deixa felizes. Logo vou ter de contar a Ash e Josh sobre nossos futuros novos membros, Rhonda e Daniel, meus outros meios-irmãos. Só porque Rhonda e Daniel são um pouco velhos para brincar de comunidade Helen Keller não significa que não venham, Sou irmã deles, sangue do seu sangue, e mesmo que não possam me ver ou ouvir, podem me sentir. Sei disso.
Dezoito Às vezes bancar a Helen Keller não sendo realmente cega ou surda não é uma forma eficaz de não pensar que você foi largada por Siri ou que morre de tédio, de tristeza e louca para que alguma coisa, qualquer coisa, mude, para tornar a vida interessante e excitante novamente, mesmo quando está de castigo pela eternidade. Eu estava vagando pela casa depois que Ash e Josh tinham ido "dormir" quando parei na porta do escritório de papai Sid. Nancy dizia: — Não agüento mais a senhorita Melancolia. Ela está me enlouquecendo. Enlouquecendo você? Qual é? Que tal dizer me enlouquecendo? — Então, quer que ela vá embora? Porque por mais que eu sentisse uma saudade enorme dela quando estava no colégio interno, é evidente que essa experiência de castigo não está funcionando. Todo mundo nesta casa está infeliz. Talvez seja hora da Pequena Rebelde aprender a apreciar as pessoas que a amam e se preocupam com ela. E mandá-la para você-sabe-onde pode ser a melhor forma de conseguir isso — disse Sid. Tirei meus fones de ouvido para ouvir melhor. Isso era demais. Eu sabia que Nancy e eu não estávamos nos dando bem, mas nunca pensei que ela quisesse me chutar. E onde quer que fosse esse você-sabe-onde, eu não iria. Mas se tivesse de fugir, para onde seria? Não para Siri. Talvez para Wallace. Isso daria uma lição em Siri. Eu podia ter Wallace num minuto, se eu quisesse. Mas há certas Unhas que até eu sei que é melhor não cruzar. O único lugar para onde eu realmente queria ir era Nova York. Para a casa do pai verdadeiro Frank. É como se o corpo de Cyd Charisse fosse um grande quebra-cabeça com peças mostrando Siri (menino mau); Pão-Doce, Ash e Josh; Alcatraz; Pão-de-Mel, é claro; Fernando e Lei Ia; e Sid e Nancy. Mas as peças estão todas embaralhadas e só podem ser juntadas de forma correta se eu conseguir encontrar as figuras com o Empire State
Building, Rhonda e Daniel, e meu pai verdadeiro. Ainda assim, não parecia legal saber que Nancy queria que eu fosse embora. Eu nunca ia querer que minha filha me deixasse. — Talvez seja a hora. Esta família não vai sobreviver ao verão com toda essa tensão. Por mais que eu odeie atirá-la às feras desse jeito, talvez conhecer Frank, Deus a proteja, seja uma boa coisa para ela. Permitirá que cresça — disse Nancy. Uau! Minha mãe quer me mandar para o único lugar para onde quero ir! A idéia de que minha mãe possa ser vidente chega a me deixar enjoada. — Então estamos combinados? — perguntou papai Sid. Pude perceber um leve tom de tristeza em sua voz. A voz de Nancy oscilou só um pouco. — Acho que sim. Você liga para o Frank de manha? — Ligo — disse papai Sid, e riu. — O velho Frank não sabe em que se meteu quando pediu para passar um tempo com a Pequena Rebelde. O Rei da Publicidade de Nova York está prester a aprender uma lição de humildade. Acho que papai Sid estava me fazendo um elogio, mas não tenho certeza. Corri para Alcatraz para contar as novidades a Pao-de-Mel. Pulei na cama, animada com algo pela primeira vez desde que consegui o emprego no Java the Hut, que foi só há umas oito semanas, mas parecia uma eternidade. — Vamos para Nova York, Pão-de-Mel! Vamos para Nova York. Vamos ver Frank, conhecer Rhonda e Daniel, vamos andar de metrô, sentir a sujeira, usar preto o dia todo e não vamos sentir a MENOR falta de Siri! Pão-de-Mel sorriu. Às vezes ela me faz lembrar da sra. Butterworth e posso dizer que ela está prestes a abrir os braços e me dar um abraço ou um caramelo. Eu ainda estava pulando quando ouvi uma batida na porta, então caí na cama e gritei "ENTRE!" Fechei a cara para que Nancy não se assustasse com minha animação repentina. — Não precisa gritar — disse Nancy —, as crianças estão dormindo. Até parece, Voltando para o quarto, vi Ash e Josh jogando War com uma lanterna embaixo da cama dele. Mas decidi ser legal e não dedurar. Às
vezes é melhor deixar a Nancy viver nesse seu mundinho de fantasia onde somos uma grande família silenciosa e feliz. — Ah, desculpe — sussurrei. — Por que está sem fôlego? — perguntou Nancy. Seu rosto estava até corado, talvez porque Sid tenha dado a noite de folga para Leila e grelhado carne e legumes para o jantar e Nancy tenha realmente comido. — Não sei — respondi, tentando conter o sorriso que estava prestes a explodir em meus lábios. Nancy sentou ao meu lado na cama de princesa-vômito. Então fez algo chocante. Pegou Pão-de-Mel e colocou em seu colo. Pão-de-Mel foi boazinha, não reclamou. — Acho que é óbvio que nem eu nem você estamos felizes com a atual situação nesta casa — disse Nancy. Tem uma coisa que eu gosto em Nancy: ela não fica enrolando para chegar ao ponto. Nada dessa história de "precisamos conversar". Eu queria ser superlegal, porque Nancy estava segurando seu martírio, Pão-de-Mel, então disse: — Posso me esforçar mais. Nancy riu de verdade! Então se inclinou um pouco e mexeu no meu cabelo. — Sei que pode, querida. Acho que posso também. — Ela fez uma pausa e então acrescentou: — Estamos mesmo tendo uma conversa sem xingamentos e gritos? — Não vamos exagerar — disse eu. — Certo — disse Nancy. — Você sempre quis conhecer seu pai biológico. Bem, tenho muitas ressalvas quanto a isso, mas se estiver pronta, então eu deixo. A esposa dele morreu ano passado e ele entrou em contato com Sid e comigo e quer que você o visite em Nova York. O que acha disso? — Claro — murmurei. Para Pão-de-Mel, eu disse por telepatia: "OBAAAA!" Meu pai verdadeiro tinha ficado viúvo. Tragédia prestes a ser remediada pela chegada de Cyd Charisse, a extraordinária filha rebelde. — Talvez passar um tempo em Nova York possa ajudá-la a não pensar naquele garoto.. . — ela esperou, acho que pensando que eu fosse
deixar escapar algo sobre se aquele garoto e eu tínhamos conseguido nos comunicar durante meu encarceramento em Alcatraz. Ela esperou. — E então, quer ir? — perguntou Nancy. — Posso ir com você, se quiser. Minha aventura em Nova York com Frank, meu pai verdadeiro, e Nancy andando por lá? Eu hein! — Não, obrigada — disse eu. Até prisioneiros sabem ser educados.
Dezenove Eu estava tão nervosa porque ia encontrar Frank, meu verdadeiro pai, que de fato comecei a suar quando o avião pousou em Nova York. Até Pão-de-Mel estava nervosa. Eu podia praticamente senti-la pulando no meu colo. — Você não está um pouco velha para bonecas? — perguntou um executivo estranhíssimo sentado ao meu lado na primeira classe. Ele passou o vôo inteiro fingindo não olhar para ela, que estava sentada na minha meia-calça preta, bem abaixo da minha saia curtinha. — Você não está? — retruquei. O executivo estranhíssimo não tentou me ajudar com minha bagagem no compartimento superior. Como eu não tinha um histórico escolar exemplar ou uma tiara de rainha para impressionar meu verdadeiro pai, trouxe pra ele um pão de mel de verdade que eu mesma preparei, sem ajuda de Leila. Ficou meio solado, mas tinha um cheiro de cravo e canela delicioso sob o papel-alumínio. A boneca Pão-de-Mel não ficou chateada pelos meus esforços culinários; não é igual quando você vai para uma fazenda por um dia e fica amiga das vacas que sabe que serão bife no futuro. Ela entendeu a diferença entre um nome e a cadeia alimentar. Então lá estava eu, indo para a área de desembarque do aeroporto, carregando a boneca Pão-de-Mel e torcendo para que o pão de mel ficasse inteiro até eu dar para meu pai verdadeiro, Frank, mas claro que eu tropecei no cadarço da minha bota plataforma de doze centímetros que tinha desamarrado e caí com tudo. O pão de mel foi esmagado; a boneca Pão-de-Mel voou longe; os pedaços de Cyd Charisse ficaram mortificados. Vi meu rosto, que é geralmente branco como giz, num espelho quando levantei. Estava da cor de um tomate. — Você é a Cyd? — disse um cara que parecia John Travolta. Ele pôs a mão no meu ombro para me amparar. Sua outra mão estava carregando uma placa com meu nome. Era alto como um jogador do New
York Knicks, com olhos cor de mel de porto-riquenho e uma pele de canela-ardente. Um certo garoto cujo nome rima com caqui, kiwi e abacaxi era o Nada mais distante da minha mente. Deixe-me dizer que mesmo que meu nome não fosse Cyd, eu teria dito: "Pode apostar!" — Como você sabia? — perguntei enquanto me abaixava para catar Pão-de-Mel. Ele tinha aquele sotaque de Nova York loucamente sexy. — Você é a cara de Frank — disse ele. — Só podia ser sua sobrinha. Ele me mandou vir buscá-la. Meu nome é Luís. Trabalho para Frank. Vamos nos ver bastante nas próximas semanas. — Sobrinha? — perguntei. Peguei o pão de mel e joguei no lixo.
Vinte Talvez Frank suspeitasse da nossa estranha semelhança e por isso não tenha vindo me buscar no aeroporto. Talvez estivesse com medo de me ver, medo de se apaixonar totalmente por sua nova filha e nunca mais ser capaz de me mandar de volta para minha família em São Francisco, e por isso me fez esperar com Luis em seu apartamento por horas e horas até voltar do trabalho. Não pude evitar a comparação: papai Sid tirou o dia de folga para me levar pessoalmente ao aeroporto (disse que era porque Fernando ainda estava bravo comigo, mas nós dois sabíamos que era porque ele iria sentir falta de sua Pequena Rebelde). No trajeto ficou me dizendo mil coisas: para eu sempre usar chapéu no sol, tentar achar um lugar no meu coração para me entender com Nancy, para eu não deixar ninguém me convencer a torcer pelos Yankees, já que ele levou anos para fazer de mim uma torcedora do Red Sox. Papai Frank nem se deu o trabalho de ir me buscar no aeroporto, muito menos de ficar comigo nas minhas primeiras horas em Nova York. Não que esperar com o Luis (suspiro) fosse um trauma. Luis e eu ficamos amigos na mesma hora, desde que ignorei a porta traseira do Town Car que ele abriu para mim e sentei no banco da frente, a seu lado. — Gosta da frente, é? — perguntou Luís, sorrindo. — Não — respondi. — É que sou da Cali, onde as pessoas são mais relaxadas. — É assim? — perguntou Luis, o motorista dos sonhos (Fernando, anote tudinho). Meu raciocínio dedutivo entrou em ação e eu disse: — Imagine que você tivesse de me pegar no meio da noite para algo, ok, e... — Oh-oh, já está com problemas? — Com certeza não. Não me deixou terminar. Suponha que tem de me pegar no meio da noite. Pararia para comprar donuts se eu pedisse? Luis pensou por um segundo e perguntou:
— Do Krispy Kremes ou do Dunkin Donuts? — Tanto faz — disse eu, mesmo que a resposta certa fosse Dunkin Donuts. — Krispy Kremes sim. Dunkin Donuts não. Gosto não se discute, como diz Nancy. Eu ainda amava Luis mesmo assim. Estava tentando descobrir se seu bíceps coladinho na camiseta suada podia ser mais sexy. — Como pode estar tão quente aqui? — perguntei, me inclinando para ligar o ar-condicionado. — É agosto! O que esperava? — Não esperava derreter — disse eu. — Em São Francisco no verão você tem de usar casaco. — Ah, qual é! — disse Luis. — Eu juro — retruquei. Quando entramos na cidade, fiquei surpresa de não lembrar de nada. Nasci em Nova York, mas não me senti voltando para casa quando vi aqueles arranha-céus imensos. O contorno dos prédios parecia um reino louco da ficção-científica. — Frank falou de mim? — perguntei a Luis. — Não — disse Luis. — Só me deu as informações sobre o seu vôo. Tive a impressão de que Luis não estava acostumado a perguntar detalhes pessoais a Frank. — Bem, não sou sobrinha dele — disse eu. — Não brinca — exclamou ele, rindo. Acho que sempre imaginei Frank vivendo numa enorme mansão em algum lugar no campo, com um cachorro grandão que babasse em tapetes antigos e fotos emolduradas de Rhonda e Daniel por todo lado em mesas e paredes, registros desde o tempo em que eles eram bebês até a formatura na escola, descabelados e com grandes sorrisos. Talvez houvesse uma parede na sala com marcas indicando como Rhonda e Daniel cresceram a cada ano, do tipo das que Ash, Josh e eu fizemos num armário no porão, porque Nancy ia ter um ataque se a gente tocasse nas paredes decoradas dela. Fiquei surpresa ao chegar num prédio no Upper East Side de Manhattan, que tinha a maior cara de apartamento de um cara solteiro. Havia dois quartos, uma sala de jantar e uma de estar imensas, dando para o Central
Park, mas a mobília era toda de couro e de escritório: nova. Esperava poder dormir no quarto antigo de Rhonda e bisbilhotar os seus álbuns de escola, ler seu diário ou algo assim, mas, em vez disso, Luis me mostrou um quarto de hóspedes que tinha tanta personalidade quanto um copo de leite. E qual é a graça de tomar leite puro sem um pouco de café? A mobília de hotel precisava de um sério toque de estampa de leopardo. De repente, Alcatraz pareceu um resort em comparação às suítes corporativas do Papai Verdadeiro. — Tem uma TV grandona na sala — sugeriu Luis. Acho que ele percebeu que fiquei decepcionada com o apartamento sem sal do vigésimo sétimo andar arranhando o céu. — Não gosto de TV — disse eu. — Você disse que tem 16 anos? — perguntou Luis, ao que eu quase respondi: "Não sou nova demais pra você!", mas só fiz que sim com a cabeça. — Você não gosta desses programas de TV sobre bruxas jovens e coisas assim? — prosseguiu Luis. — Que programas? — perguntei. Ele olhou para mim desconfiado e indagou: — Você se alimenta de que em São Francisco? — De comida — respondi. Comida chinesa com Nada, chocolate com Pão-Doce, café preto para Fernando. Twin-kies para Ash e balinhas de goma para Josh, martinis e bifes para papai Sid e para Nancy os velhos LifeSavers. Na minha comunidade Helen Keller imaginei que no momento em que chegasse em Nova York minha vida seria diferente. Transformada. Em vez disso, me sentia desconfortável e assustada, uma estranha numa terra estranha. Agarrei Pão-de-Mel para me dar uma força. — Uma garota de 16 anos com uma boneca! — exclamou Luis. — É. Houve uma pausa como se Luis esperasse que eu explicasse. Finalmente ele disse: — Ei, por mim tudo bem — e eu podia sentir que Pão-de-Mel estava caidinha por ele também. O sol estava se pondo e o céu era avermelhado sobre o Central Park. Luis e eu jogávamos palavras-cruzadas. Eu sentia-me prestes a acabar com
ele com uma palavra de pontuação tripla, acrescentando "FUNDA" ao seu "MENTAL", quando Frank chegou em casa. Ele soltou sua maleta e disse. — Como vai, menina? Não abriu os braços para mim e de qualquer forma isso teria sido estranho. Continuei sentada, olhando para ele. Senti um nó na garganta. De repente entendi por que era difícil para Nancy olhar para mim. Se meu bebê fosse um lembrete físico de Justin, 24 horas por dia, sete dias por semana, eu sofreria o tempo todo. Luis não estava brincando sobre eu parecer com meu "tio". Frank tinha cabelo liso, preto-retinto com toques de grisalho; grandes olhos; grandes lábios vermelhos; e um nariz comprido e reto igualzinho ao meu. A única diferença entre nós era que ele tinha uma cor alaranjada que parecia vir de uma clínica de bronzeamento, não de um paraíso do Caribe, e eu era pálida por morar na neblina. Além disso, pelas linhas em volta dos olhos, suspeitei que seu rosto produzisse muito mais sorrisos do que o meu. Quando fiquei de pé para cumprimentá-lo, notei que ele era um dos poucos homens que conheci significativamente mais alto do que eu. Frank era também absurdamente bonito. Sou uma tarada por notar isso? Ele tinha um certo ar de astro de cinema aposentado. Mais uma vez, entendi Nancy perfeitamente; se eu tivesse vinte anos e não soubesse de nada (mesmo sabendo, e só tendo dezesseis) eu podia entender que uma dançarina sonhadora, vindo diretamente dos campos de milho de Minnesota, se encantasse com aqueles dentes brancos, olhos brilhantes e mentiras suaves. Acho que até Frank se assustou com nossa semelhança. Ficou olhando para mim como se estivesse pensando: Ah... meu... Deus. Finalmente ele disse: — Deve estar cansada da viagem. Como é? Aqui estou eu, sua filha crescida, que você não vê há muito tempo e o melhor que tem a dizer é "Deve estar cansada da viagem"? Como assim? — Na verdade, não — disse eu. Estava tão não cansada depois do jogo com Luis regado a café do Starbucks (Java que se dane) que eu não me importaria de arrastá-lo para dançar a noite toda, a não ser que fosse
pelo meu grande reencontro com meu pai biológico e tudo mais. Nada demais, certo? Porque me parecia que meu verdadeiro pai Frank tinha muito a explicar, e estava mais do que na hora de começar.
Vinte e Um Qual é a melhor forma de começar, pensei, do que anunciando para Frank: — Não sou sua sobrinha, sabe. Antes que Frank pudesse responder, Luis levantou derrubando o jogo de palavras-cruzadas. Pegou o telefone e disse para Frank. — Estou saindo. Me ligue se precisar de algo. — E puf, de uma hora para outra, Luis foi embora. Olhei para Pão-de-Mel como quem diz: não vá fazer beicinho. Depois que a porta se fechou, Frank parou por um momento como se não soubesse como responder. Então disse: — Calma aí, parceira! Dê às pessoas a chance de se estabilizarem. — Calma aí, parceira?—perguntei. — Maneira de dizer — disse ele. — Em que planeta? Frank suspirou. Apenas dois minutos de reunião com meu pai verdadeiro Frank e eu já o havia exasperado. Suspeitei que esse fosse meu novo recorde pessoal. — Está com fome? — perguntou ele afinal. Já que imaginei que depois de uma boa refeição ele poderia me contar melhor os detalhes sobre, tipo, tudo, a história da minha família pelo seu lado, como conheceu minha mãe, onde esteve minha vida toda, quem ele era realmente, percebi que era mais fácil deixar em aberto por enquanto. — Estou sempre com muita fome — disse a ele. O que é verdade. Quando não estou com fome de comida, estou com fome de algo maior: respostas para os segredos do universo, amor verdadeiro, seios mais substanciais. Os ombros do pai biológico Frank pareceram relaxar um pouquinho, como se o fato de eu estar com fome fosse algo com que ele conseguisse lidar realmente, parte do universo conhecido do que era Cyd Charisse, sua prole.
— Bem, muito bem. — Ele pôs a mala na mesa e foi para a cozinha. Tinha cuidado de não ficar me olhando do jeito que eu olhava para ele. Tinha cheiro de cigarro e martínis, como papai Sid. Eu quis gritar: PARE! Fique na minha frente e me deixe olhar para você. Me deixe entender quem você é. Vamos fazer essa conexão agora. Mesmo que eu fosse passar três semanas com ele, queria parar o tempo para poder saber tudo sobre ele, antes que ele desaparecesse novamente, como fez quando eu tinha cinco anos, no aeroporto Dallas-Fort Worth, quando me deu Pão-de-Mel. Eu o segui até a cozinha e ele me passou um maço de cardápios de entrega em domicílio de uma variedade enorme de comidas: tailandesa, chinesa, malásia, natural, pizza, vietnamita, churrasco texano, mexicana, pub irlandês, deli judia, restaurante grego. Cada menu oferecia pratos que Nancy nunca deixaria entrar em sua bela casa livre de gordura, de açúcar e de gosto, e além do mais, a maioria dos restaurantes entregava até três da manhã. Pensei na grana que papai Sid havia enfiado na minha sacola no aeroporto em São Francisco, e imaginei que se acordasse com fome no meio da noite (o que acontecia muito desde que Nada me deixou), podia pedir comida sem ter de pedir dinheiro a Frank nem me preocupar com as reclamações de Leila de manhã sobre a bagunça que deixei na cozinha. — O que vai ser, menina? — perguntou Frank depois que eu fiquei babando naqueles menus por uns bons dez minutos. Nesse meio tempo, Frank tinha ligado o som e agora estava colocando Frank Sinatra, aquele bonitão de voz macia, "Presidente do Conselho", como diz papai Sid. Ele acha que Francis Albert Sinatra, nascido em 12 de dezembro de 1915 em Hoboken, Nova Jersey, e falecido em 15 de maio de 1998, cujo aniversário nossa casa é forçada a celebrar e cuja morte lamentamos todo ano, é o sol ao redor do qual nós, meros terráqueos, giramos. — Que negócio é esse de "menina"? — perguntei. — Meu nome é Cyd Charisse. — Sua mãe escolheu esse nome — resmungou Frank, como se tivesse vergonha dele. — Acho que é um nome legal — disse eu. Quem poderia imaginar que eu chegasse a defender uma escolha de Nancy? Na verdade, sou imparcial quanto ao meu nome. É o que é, meu e daquela estrela de cinema. — Mesmo eu não sendo uma pessoa da dança e mesmo que, quando eu
digo meu nome, as pessoas exclamem: "Ah, e eu sou Greta Garbo" ou "Ah, e eu sou Grace Kelly". — Grace Kelly — disse Frank, o pai biológico —, ela sim era um arraso. Tanto faz, cara. Escolhi meu jantar e passei para Frank o menu de A Grande Casa de Comidas da Senhorita Loretta. Frank riu. — Qual é a graça? — perguntei. — Entre uma dúzia de menus você escolheu o restaurante de nossa amiga Loretta Jones. Ela foi nossa empregada. Meu filho e eu a ajudamos a começar o negócio. Instantaneamente fiz a ligação. — Ela fez o pão de mel! — exclamei. — É, fez, pão de mel é a especialidade dela. — ... não, ela fez o pão de mel aquela vez. — Que vez? — Aquela vez no aeroporto em Dallas-Fort Worth. Ela fez o pão de mel! — Isso era tipo a coisa mais empolgante do mundo, mas Frank baixou os olhos, envergonhado. — É — gaguejou ele. — Se eu estava levando pão de mel provavelmente foi ela quem fez. Loretta é uma cozinheira incrível. — Frank estava visivelmente embaraçado e eu podia sentir psiquicamente a perturbação de Pão-de-Mel, vindo lá da sala onde ela estava instalada no tabuleiro virado de palavras-cruzadas. — O que gostaria de comer? — Podemos comer lá? No restaurante da senhorita Loretta? — Não — disse Frank apressadamente. Então viu a decepção no meu rosto e acrescentou — Talvez em breve. Não esta noite. Pão-de-Mel e eu achamos que aquilo já era demais. Cruzei os braços e disse: — Você quer dizer não antes de contar à senhorita Loretta que não sou sua sobrinha e que sou sua filha biológica da época em que você estava traindo sua esposa? — Você não mede palavras, hein, Cyd Charisse? — disse Frank. Ele estava constrangido, mas acho que também estava um pouco impressionado.
Me levantei para sentar num dos bancos do bar. — Vamos ser honestos, Frank — disse eu batendo minhas botas no balcão. Nos dias de Alcatraz, antes de eu vir para Nova York, imaginei que Frank e eu iríamos estabelecer uma conexão instantânea de pai-e-filha, que eu o chamaria de papai e ele me chamaria de "princesa" ou algo do gênero, mas isso obviamente não ia acontecer, agora que eu estava vendo como ele era, e não acho que seja o tipo de pessoa que eu chamaria tranqüilamente de "pai". — Frank, não sou sua sobrinha. Sou sua filha biológica. Encare isso, Se está envergonhado por minha causa, diga agora e vou pra outro lugar. — Não sei o que estava pensando, porque não tinha realmente nenhum lugar para ir e queria mais do que tudo nesse mundo idiota conhecer essa pessoa estranha que estava à minha frente, mas ao mesmo tempo não queria estar num lugar onde não era bem-vinda. Frank foi até mim no bar. — Uau — disse ele. — Essa doeu. — Não sei se ele estava se referindo à dor de levar seu corpo de velho até o bar ou se era pelo que eu tinha dito. Ele parou e se virou de lado para olhar para mim. — Tem razão, menina, quero dizer, Cyd. Essa situação toda é muito estranha e nova para mim. Sou um homem de 60 anos com dois filhos adultos e agora uma nova filha de 16 anos. Cometi muitos erros na vida e nem sempre procedi de uma maneira de que me orgulho. Tudo isso é novo para mim, será que você pode me ajudar? Eu ainda estava brava e com certeza nunca tinha ouvido a palavra "procedi" antes, mas disse que sim, porque e se ele fosse um homem de 60 anos que tivesse cometido muitos erros mas que de repente caísse morto de um ataque cardíaco depois do frango com broa, purê de batata e torta de maçã que eu queria pedir, e eu não tivesse dito que tentaria? Acho que eu não poderia viver com isso. — Você é bem centrada, sabe, Cyd Charisse? — disse Frank. — Pelo que sua mãe e Sid dizem, você é o diabo de salto. Como se isso fizesse sentido. — Acho que é hora de pedir, Frank. Não pense que esqueci a história de ir conhecer a senhorita Loretta, mas vamos pedir em casa hoje. De qualquer forma, acho que tem uns programas de bruxas que precisamos
assistir esta noite. Frank, o verdadeiro pai, sorriu. Se eu sorrisse, acho que seria exatamente assim.
Vinte e Dois Então talvez Frank e eu tenhamos começado a nos aproximar durante um programa sobre uma bruxa e o incrível jantar de frango da senhorita Loretta, mas quando acordei no dia seguinte ao meio-dia (o que Nancy nunca deixaria acontecer, mesmo se eu tivesse ficado acordada a noite toda por tortura chinesa ou algo assim), Frank tinha saído. Havia um bilhete na geladeira que dizia: "Luis chegará depois do almoço para lhe mostrar a cidade. Eu chego em casa às dez hoje, jantar de negócios. O porteiro lá embaixo está com as chaves do apartamento para você. Divirta-se, Cyd Charisse. F." Presa ao bilhete havia uma nota de cinqüenta dólares que eu arranquei da geladeira, e joguei no lixo, picada em pedacinhos. Então me lembrei como Pão-Doce disse que tenho valores de menina rica e me senti culpada por desperdiçar dinheiro daquela forma. Mesmo que eu estivesse brava e não quisesse o dinheiro de Frank, não podia ao menos devolver a ele ou dar para uma pessoa pobre que realmente precisasse? Decidi ligar para Pão-Doce e confessar, Adivinhem quem atendeu o telefone? Fernando! Olhei para o relógio de Mickey Mouse, que Nada me deu de dia dos namorados. Ele havia pintado a pulseira de uma forma psicodélica que fez com que o Mickey parecesse um louco. De acordo com Mickey Louco, que ainda estava no horário da Califórnia, Pão devia ter acabado de tomar o café-da-manhã. — Huevos rancberos para dois? — perguntei, nem lembrando da minha confissão. Houve um silêncio e eu soube que Fernando estava se esforçando para que eu não soubesse que ele estava feliz por ouvir minha voz. Eu também sabia que ele estava mortificado, então decidi ser discreta. — Posso falar com Pão, por favor? Houve uma pausa e então a voz de Pãozita respondeu: — Bom dia, querida. Como foi de viagem? — Foi boa. Pão-de-Mel e eu achamos Nova York quente demais. Meu cabelo está cacheado e bagunçado aqui. Então, você e Fernando são um casal agora? Porque isso seria a coisa mais bacana, e você sabe que os
caras mais novos geralmente são os mais legais. — Nada é seis meses mais novo do que eu, mas está um ano inteiro atrás na escola. Pão-Doce disse: — Uma dama nunca conta. — Não seja uma dama — pedi eu. Ela não disse nada. Não estava entregando o jogo. — Fernando é legalzinho, mas não diga a ele que eu disse isso, ok? Ainda estou brava por ele ter me tirado de você sabe onde no meio da noite e começado todo esse problema. — Você sabe que não foi culpa dele. Sabe de quem foi. Sabe que ele estava apenas fazendo o seu trabalho. — Hum — murmurei. Queria tanto perguntar se ela tinha visto Nada e se ele estava sofrendo por mim ou mesmo perguntando sobre mim. Ele sabia que eu tinha vindo para Nova York conhecer meu pai verdadeiro Frank? Sabia que Luis era uma ameaça para ele? — Seu garoto apareceu algumas vezes na semana passada, se é o que você quer saber. — Pão-Doce era vidente mesmo sem suas cartas de tarô. — Tinha uma garota chamada Autumn com ele? — perguntei. — Autumn? Quem é Autumn? A resposta me deixou um pouco mais animada. Pelo menos Nada não estava arrastando ELA para visitar MINHA gente. — Acha que ele tem saudades de mim? — perguntei. — O que você acha, Cyd Charisse? — disse ela. — Que tipo de resposta é essa? — perguntei. — Mocinha, você está na cidade mais empolgante do mundo, deveria estar tendo todo tipo de novas aventuras. Talvez a resposta que você não quer aceitar seja o que você já sabe. Às vezes é preciso perder uma pessoa para nos encontrarmos. Só assim c possível ter essa pessoa de volta. Faz sentido? — Não, Mestre dos Magos — disse eu. — Você vai descobrir. Sentimos sua falta aqui, mas não espero ver você de volta até ter descoberto algumas coisas, ter visto um pouco o mundo. Agora saia do telefone e vá explorar. — Não quer saber sobre meu pai verdadeiro? — perguntei. — Li nas cartas — disse Pão. — Eu já sei. Agora pare de desperdiçar sua vida e vá lá fora se divertir. Mas TOME CUIDADO.
Eu não queria deixá-la desligar. O que eu faria sozinha nesse apartamento de ficção-científica do vigésimo sétimo andar, com buzinas tocando e pessoas correndo rápido por todo lado lá fora? Mas também queria que Pão-Doce curtisse seu tempo com Fernando. Sei o quanto odiava ser interrompida quando Nada e eu estávamos sozinhos. — Ok, tchau. — Estava quase desligando, quando acrescentei: —Amo você, Pão. — Percebi que era fácil, fácil dizer essas palavras para Pão-Doce, mas você nunca vai me flagrar dizendo isso para Nancy. — Eu também, querida. Divirta-se. Me ligue quando tiver algumas aventuras para contar. — Beijos para Fernando — disse eu. Pão soltou uma risada com esse comentário e desligou. Olhei a minha volta e não sabia o que fazer. Tantas semanas presa em Alcatraz e agora que tinha toda a liberdade do mundo na cidade que nunca dorme, estava paralisada. Parecia haver possibilidades demais. Peguei Pão-de-Mel nos meus braços e liguei a TV Havia um programa na TV aberta dessas mulheres indianas usando belos saris e fazendo uma espécie de dança com eles. Era bem espetacular e Pão-de-Mel e eu entramos na dança, como se estivéssemos participando de um programa de exercícios matutino. Eu estava girando a cabeça, e com as mãos na cintura e tra-la-lá, quando ouvi o som de aplauso às minhas costas. Imaginando que deveria ser Luis, fiz biquinho e me virei para dizer — "Ei...", mas não era. Na minha frente, usando uma camiseta que na verdade era cinza, mas que tinha escrito "MARROM" estava um mini-Frank. Bem, não literalmente um mini-Frank, mas um bem mais novo, mais magro e um pouco mais baixo do que meu pai biológico. Eu sabia quem ele era, mas será que ele sabia quem eu era? — Você deve ser Cyd Charisse — disse mini-Frank. — Também sei quem você é. Você é Daniel! Ele pareceu surpreendido e disse: — Meu pai disse que esse é meu nome? Só sou chamado assim em situações como formaturas e consultórios médicos. — Você tem um apelido bonitinho como Júnior ou Flash ou Poncho? — perguntei. Ele pareceu mais confuso ainda e respondeu:
— Não, bonitinha. As pessoas me chamam apenas de Danny. Pulei no sofá — não tenho a menor idéia do motivo de ter feito isso — para apertar a mão de Danny no outro canto. — Pode me chamar de Cyd ou Cyd Charisse. Sid também é o nome do meu outro pai, então o pessoal de casa me chama pelos dois nomes, mas aqui em Manhattan estou estreando uma nova identidade, então pode usar meu nome verdadeiro ou até inventar um se quiser. — Estou adorando você, maninha! — cantarolou Danny. Ele também era adorável. Veio para o meu lado no sofá e se levantou para me cumprimentar. — Prazer em conhecê-la, filha de um amor secreto. — Não é esse o apelido que quer me dar, é? Danny sorriu e disse: — Não, Cyd Charisse. Quando pensar num bom apelido para você, eu digo. — Você não está bravo nem nada por eu estar aqui? — quis saber. Olhando nos olhos dele era como ver um reflexo meu no espelho: o mesmo tom castanho-escuro; seu cabelo era preto como o meu, seus lábios eram iguais, vermelhos-rubi. A diferença entre olhar para ele e Frank, o pai verdadeiro, era que com Danny eu senti uma conexão poderosa instantânea. Quando olhei para Frank e vi nossa semelhança, me senti distante, separada de mim mesma, e um pouco traída, nenhum pouco confortável. Com minha outra família em São Francisco, embora Josh pareça muito com Nancy (ele é o próprio Príncipe William bebê em treinamento), Ash tenha puxado papai Sid e eu pareça com a resposta para a pergunta "o que há de errado nessa foto", pelo menos sabia mais ou menos onde me encaixava naquela família. — Bravo? Não! Como eu poderia ficar bravo se você não tem nada a ver com isso? — disse ele e se jogou, sentando no sofá e fazendo sinal para eu sentar junto dele. Bem estranho: assim que nos sentamos no sofá, nós dois cruzamos as pernas num estilo indiano ao mesmo tempo. — Sei de você há anos, e estava morrendo de vontade de conhecê-la! Papai finalmente me falou a seu respeito na semana passada. Tentei aparentar surpresa, mas não pude esperar que ele nos apresentasse. Sempre quis uma irmã mais nova. — Sempre quis ser uma! — exclamei. — Então perfeito! — disse Danny. Engraçado mas, na minha
imaginação, ele era um tipo jogador de futebol durão e machão, mas ao vivo e em cores pude ver que era um carinha normal com um coração de ouro. — Rhonda vai vir me conhecer também? — perguntei. Porque aquilo seria um belo desfecho, claro, quando minha irmã mais velha e eu nos tornássemos Irmãs, como aquela música do filme Natal Branco; se bem que, provavelmente, não usaríamos roupas iguais nem cantaríamos juntas, mas poderíamos ler a mente uma da outra, por instinto. — Rhonda? — exclamou Danny. — Papai disse que o nome de nossa irmã é Rhonda? Eu não queria contar que li sobre eles num livro e que Frank e eu ainda não tínhamos tocado no assunto de encontrar seus outros filhos, então disse: — Não exatamente. — Minha irmã usa o nome do meio. Rhonda é um velho nome de família. Ela nunca usa — disse Danny. — Então, qual é o nome dela, e ela vem me ver também? Danny abaixou o rosto e disse: — Lisbeth está tendo um pouco de dificuldade com isso. Mas vai aparecer. Quando ele pronunciou o nome dela, disse a parte "Lis" bem rápido e a parte "Beth" bem firme e demorada: lisBETH. Era o tipo de nome idiota que uma garota de 14 anos adota quando está escrevendo um diário e se mantém o nome quando adulta é porque deve ter problemas mesmo. — Ah — exclamei e olhei para o teto para que ele não percebesse as lágrimas que queriam se formar nos meus olhos. — Ela não gosta de mim? — Como ela pode não gostar? Ela nem conhece você — respondeu Danny. Até parece, pensei. — É por isso que ela não está aqui com você? — Lisbeth é... — Danny parou, procurando a palavra certa — especial. Ela pode ficar muito brava e dura, mas quando você a conhece, vê que ela é legal. Ela sempre tem as melhores intenções. Se havia um alerta, era esse. Decidi que a questão lisBETH era para outra hora. Aqui e agora, eu queria conhecer Danny, o irmão mais velho
mais doce do mundo. — Então podemos sair? Não tenho nada pra fazer! — disse eu. Danny olhou o relógio. — Tenho de voltar para o trabalho em meia hora... — O que você faz? — interrompi. — Faço e decoro bolos. — Não! — exclamei, espantada. A idéia de todo esse açúcar sobre minha conversa recente com Pão pareceu destino ou algo assim. — Esse provavelmente é o emprego mais bacana do mundo. Você decora bolos de casamento ou bolos de sacanagem? Danny sorriu e disse: — Um pouco dos dois. Meu companheiro e eu temos um pequeno café em West Village. Ele faz a parte de cozinha e eu de confeitaria e também fazemos bufês para eventos especiais como casamentos, festas e coisas assim. Pude ver que ele observou bem meu rosto quando disse a palavra "companheiro" para ver como eu reagiria. — Seu namorado é bonitinho como você e quer me conhecer também? — perguntei. Pude ver que era um teste velado e que eu tinha sido aprovada aos olhos de Danny. — Quer sim, Aaron quer conhecê-la também. Por que não aparece no café mais para o fim da tarde, quando tudo já estiver pronto para a noite? — Legal! — disse eu. — Devo pedir ao Luis para me levar de carro? — Como eu queria ligar para Nada e dizer que o meu irmão mais velho também tinha um café. Se havia uma evidência cósmica de que éramos almas gêmeas, era essa. Mas tirei aquela idéia da cabeça e dei tchau para ela. — De carro! — exclamou Danny. — Ninguém dirige em Manhattan! Confusa, acrescentei. — Mas Frank me disse que Luis... — Ah — exclamou Danny. — Papai provavelmente imaginou que o tio Sid tem um motorista que leva você pata todo lado, então está sendo competitivo. — Danny revirou os olhos. — Tio Sid? — perguntei. — Você conhece meu pai?
— Se conheço seu pai? Ele é meu padrinho. Ele e papai foram colegas de quarto em Harvard; foram melhores amigos por anos, até o episódio envolvendo você e o tio Sid fugindo com sua mãe. Tudo coisa que supostamente eu não sei. — Ah — foi tudo o que eu consegui dizer. Era demais depois de semanas presa em Alcatraz, bancando a cega, surda e muda. Demais mesmo. — Olhe, preciso ir — disse Danny. — Vou escrever como você faz para pegar o metrô. Pode me ligar de um telefone público se ficar perdida. Seria loucura dirigir com o trânsito e a falta de vagas desta cidade. — Gostei, pois ele confiava em mim e achava que eu era inteligente o bastante para pegar o metrô sozinha numa cidade nova e estranha. Mesmo assim, queria dizer: esqueça as explicações, não pode parar sua vida o resto do dia, sentar-se e contar toda essa história sobre papai Sid e papai Frank, com detalhes dolorosos? Mas Danny já tinha posto a bolsa no ombro e olhava para o relógio como se estivesse ficando atrasado. E, de qualquer forma, achei que seria um pouco estranho implorar por uma conversa franca, quando tínhamos acabado de nos conhecer. Então, bem a tempo, descobri um jeito de saber mais sobre Danny: — Sou uma barista, sabe? — disse eu, quando ele abriu a porta para sair. — Se precisar de ajuda... Eu tinha um emprego, até meus pais me fazerem largar. Fazia um café matador. — Cyd Charisse, acordo fechado — disse Danny. Apareça às três. Vamos lhe dar um avental e pôr você para trabalhar. Ele me beijou na bochecha e saiu. Acenou sem se virar e gritou: — Até mais tarde, bonitinha — e seguiu pelo corredor até o elevador. Não preciso de um motorista para descobrir tudo. Estou indo muito bem sozinha.
Vinte e Três Eu estava ocupada demais pirando com essa história de barista e do meu novo e adorado irmão mais velho para pensar em Nada. Então Luis chegou e estava tão gostoso que meu coração não pôde evitar de acelerar, querendo um gatinho para se aconchegar comigo, mesmo nesse clima úmido e pegajoso de Nova York. — Então, já sabe o que quer fazer hoje? — perguntou Luis. Concentrar-se no que ele diz é difícil. Ele é tão BOM de se olhar. — Hã?— respondi apenas, porque mais uma vez eu estava inspecionando seus bíceps inchados e me perguntando sobre sua barriga certamente de tanquinho. — Você malha? —Não pude evitar a pergunta. Concentre-se, Cyd Charisse, disse a mim mesma. Pense em nuvens de algodão, nas combinações do seu antigo armário, não pense nesse corpo. Problemas. — Malho. Toda manhã estou na academia às seis em ponto — disse Luis. — Antes queria ser boxeador. Mas me machuquei demais. Agora estou fazendo faculdade de administração e trabalhando para o seu pa... — pausa — seu ti... — pausa — seu... Frank, meio período, dirigindo, levando encomendas e coisas assim. — Como conheceu o "meu Frank"? — A antiga empregada da família é minha tia. — Senhorita Loretta. — Isso! Como é que você sabe? — Ouvi dizer que ela faz o melhor pão de mel do mundo. — Pão-de-Mel e eu tivemos um momento telepático. Ela sabia que tínhamos um encontro do destino com a senhorita Loretta, que, pensando bem, é de certa forma sua mãe espiritual. — É verdade. Então o que me diz, quer explorar a malvada Nova York? — Arranjei um emprego — disse eu. — Começo esta tarde. — Já? Onde é, levo você lá. Frank disse que eu devia levá-la onde
você quisesse ir. Eu não precisava de um manual para descobrir onde tinha que ir sem um motorista. — Obrigada, mas vou pegar o metrô — disse eu. — Frank sabe disso? — Posso cuidar de mim mesma— respondi, achando que acreditava. Além do mais, depois de falar com Danny, não queria Luis me levando para os lugares se papai Frank estava mesmo tentando competir com papai Sid. Não queria fazer parte disso, mesmo que significasse uma oportunidade de ficar juntinho de Luis. Luis deu de ombros. — O carro está na garagem por enquanto. Se insiste em pegar o metrô, vou com você. De jeito nenhum uma menina de 16 anos que nunca pegou o metrô antes vai sozinha. Está com fome? Que tal um pedaço? — Um pedaço? O que quer dizer? — Acho que eu não me importava, nem um pouco, em sair com o maravilhoso Luis, contanto que ele não dirigisse. Um sacrifício generoso da minha parte, eu sei. Na escala de gatos, Luis era como um Nada tamanho NBA. Gostaria tanto de passar a tarde no sofá transando com ele e esquecer essa história de carro, metrô e tudo mais... — Pizza — disse Luis, fingindo estar espantado. Falou lentamente, no que provavelmente era um ritmo normal para alguém lá do Idaho ou algo assim — Ir... pegar... um... pedaço... de... pizza. — Tem namorada? — perguntei enquanto íamos para o elevador. Eu sei que caras bonitinhos são como uma doença que tenho. — Por quê? Tem uma amiga que quer se candidatar? — perguntou Luis, piscando para mim. — Talvez — disse eu. — Quantos anos você tem? — Acabei de fazer vinte — disse ele. — Tem amigas da minha idade? Acho que era a forma bacana de ele me dizer que eu era chave de cadeia. — Não tenho amigas da minha idade — disse a ele. — Nenhum namorado em Frisco? — perguntou Luis. — Ninguém diz Frisco. Todo mundo diz A Cidade, É uma espécie de
regra idiota que todos seguem. — Nenhum namorado em Frisco? — repetiu Luis. — Tive um amor verdadeiro, mas ele me largou — respondi. Suspirei. O elevador parou e entramos. — Azar dele — disse Luis. — Uma garota bonita como você... Ele vai acordar. Acredite em mim. Apertei o botão de PARAR no elevador enquanto ele descia. O elevador parou bruscamente. — Você acha mesmo? Por que eu estava ficando meio preocupada. Luis apertou o botão de PROSSEGUIR e o elevador recomeçou a descer. — Se nasceram para ficar juntos, você vai descobrir. Deve ter muitos outros amigos para sair, certo? Enquanto você e seu ex pensam no assunto. — Não — disse eu quando chegamos no térreo. — Na escola, sou o tipo de garota que até os garotos estranhos acham que é estranha demais. — Isso só quer dizer que você é a garota mais descolada da escola — disse Luis. — Obrigada, Luis — disse eu. Fingi lhe dar um empurrão enquanto saíamos naquele calor grudento, para pegar um pedaço.
Vinte e Quatro Então posso estar totalmente perdida nesta vasta, estranha e nova cidade louca, mas tem uma situação que eu domino completamente: fazer café. Torrar os grãos, ferver leite, servir à perfeição: aqui, no Idiotas do Village, o café de Danny e Aaron, encontrei um espaço onde me sinto inteiramente à vontade nesta cidade de milhões. — Uau — exclamou Danny —, você foi realmente bem treinada. Não tenho de lhe ensinar nada, exceto onde ficam as coisas. — Você foi enviada por Deus! — disse Aaron, o namorado de Danny. — E eu não sabia como iríamos sobreviver o resto do verão sem um barista decente. As únicas pessoas que podemos pagar são atores sem trabalho, e eles estão muito ocupados olhando no espelho para fazer um café decente. Cyd Charisse, onde esteve durante toda nossa vida? Pergunta engraçada, hein? Foi o que pensei sobre eles. O café deles era provavelmente mais bacana do que o Java the Hut na Ocean Beach. Era decorado com tapeçarias medievais nas paredes e cadeiras de madeira góticas e tinha lindos espelhos no teto que refletiam as maiores delícias que você pode imaginar: os bolos do Danny. Alguns eram macios e delicados, chocolates com pétalas de musse, outros eram torres com camadas de nata, cobertos com buquês de rosa de açúcar. Cada bolo tinha seu próprio trabalho artístico. Não que sua beleza evitasse que eu experimentasse pedacinhos de tantos quantos pudesse agüentar. Olá, delícia, minha nova amiga. Nos fundos, Danny me mostrou alguns dos bolos de sacanagem que ele faz para "despedidas de solteiro" em West Village e Chelsea. Os bolos não eram vulgares ou grosseiros. Eram visões anatomicamente corretas da beleza. Danny sabia com certeza como colocar glacê rosa, raspas de chocolate e chantilly para criar um bom efeito. Devo confessar que alguns dos bolos me deixaram meio excitada. Foi bom o Luís ter ido embora depois de me levar no metrô barulhento e lotado de loucos e me deixar agarrar seus bíceps de arrasar quando vi grandes ratos andando nos trilhos.
Perdi o fôlego. Ainda melhor do que os bolos de Danny e as saladas de macarrão megadeliciosas e as quiches de Aaron era a consciência de que, pelo menos na minha condicional em Manhattan, teria cafeína adequada. O Idiotas do Village preferia café italiano ao indonésio do Java the Hut, mas atribuí essa falha a uma diferença entre Costa Leste/Costa Oeste e decidi que podia ser bacana entrar no esquema do novo café. O gosto era totalmente diferente, mas o café funcionava. A energia voltou a Cyd Charisse. — Dá-lhe, Cyd Charisse! — exclamou Aaron depois que bebi meu primeiro expresso duplo e gritei "EEEEI-AAAAAAA" como uma índia e me remexi com o prazer da cafeína. Pão-de-Mel, que estava encostada numa caneca gigante de porcelana, revirou os olhos para mim, Eu sei, eu sei, respondi por telepatia, não preciso me esforçar tanto, ele é só um novo irmão, há muito perdido, mas é tudo tão bom... e onde vou me sentir mais em casa do que num café cercada de homens lindos? Trato feito, ok? Gostei de Aaron, e não de uma forma perigosa tipo Java-meu-coração-acelera-quando-você-está-perto-de-mim. Aaron não era um garoto bonitinho ou atraente como Java. É alto, corpulento e bagunçado, e para um homossexual assumido, não se veste muito bem, com aquela camiseta desbotada do Aerosmith e umas calças velhas e largonas que usa por causa do calor do forno. É um cara alegre, com cabelo vermelho-morango saindo por baixo do chapéu alto de chef que usa mesmo cozinhando num pequeno café e não num restaurante metido a chique. Tem grandes olhos azuis de bebê que se enternecem toda vez que olhava para Danny. Como eu poderia não gostar dele? Danny e Aaron se conheceram no colégio interno. Estavam juntos há todo esse tempo, uns dez anos. Namoradinhos da escola. Me davam esperança. Sid e Nancy estão juntos há pouco mais que isso, mas não dá para imaginá-los trabalhando lado a lado, ou sem enlouquecer de medo que o negócio não dê toneladas de dinheiro — esse café não deve dar praticamente nenhum, aliás — ou lhes proporcionando muitas influências e admiradores. Você nunca vai ver um deles trazer gelo enrolado num pano de prato quando o outro queimou um dedo e então beijando o dedo para melhorar; você nunca vai vê-los rindo de velhas piadas e disponíveis o
bastante para permitir que uma nova irmã entre em suas vidas sem se sentirem ameaçados ou excluídos. Danny queria tirar folga do turno da noite para ficar comigo e Aaron deu a maior força. — Legal, vá, divirta-se — disse ele. — Uma vez Nada e Java não foram trabalhar porque um primo tinha vindo visitá-los. Contei os minutos para que meu turno acabasse naquele dia; estava tão aflita com a idéia de eles se divertirem sem mim, esquecerem de mim, que quebrei três copos. E ainda fiz cara feia quando Nada me perguntou como foi meu dia, de noite. Uau. Quem bom que Aaron aceitava muito mais facilmente dividir Danny do que eu fazia com relação a Nada. Só conhecia meu irmão há um dia e queria passar o máximo de tempo possível com ele. Queria sugar informações dele como uma esponja. E, de qualquer forma, quando Danny ligou para papai Frank para dizer que estava me raptando aquela noite, juro que pude ouvir um suspiro de alívio do outro lado, mesmo que Danny dissesse que "papai" ficou chateado por ele ter vindo me conhecer sem consultá-lo primeiro. Tive a impressão de que era como as coisas aconteciam nesse canto biológico da família: todo mundo fazia o que queria e contava a Frank, porque não se podia confiar nele para tomar conta de tudo do jeito certo. — Então me fale sobre você, bonitinha, que vou chamar de CC — disse Danny quando finalmente nos sentamos para jantar lá pelas onze horas da noite. Planejávamos nos livrar do Idiotas do Village bem antes, mas o café ficou tão cheio, eu estava tirando uns lattes tão gostosos e Danny servindo os bolos tão bem, que ficamos mais umas duas horas. Além disso, Ella tocando no som estava tão bom e todo o clima, com clientes conversando, garfos tilintando, cafés sendo bebidos, pessoas felizes; estava tão legal, que não podíamos largar Aaron até a multidão ir embora, de barriga cheia e com os dentes à mostra. — Não — disse eu. — Você primeiro. — Eu queria ir esquentando. Estávamos sentados num café ao ar livre, coisa que não existe em São Francisco porque é muito frio de noite; era ótimo sentar lá fora, usando só um vestido preto e botas de combate, sem congelar. Achei o Greenwich Village muito melhor do que a Frankilândia do Upper East Side. Não havia
arranha-céus comerciais nem condomínios residenciais, mas um monte de velhas casas de tijolo, restaurantes modernos e pequenos parques onde as pessoas jogavam dominó e xadrez com timers ao lado da mesa. Ser a irmã mais nova, mesmo Danny tendo mais ou menos minha altura, ser cuidada e amada, era melhor ainda. Espero que um dia quando Ash e Josh crescerem possamos voltar para o Village e jantar e ficar juntos. Com sorte, Sid e Nancy vão estar juntos e não vamos ter de passar nosso tempo de irmãos falando sobre os segredos e mentiras de nossos pais, da forma como Danny e eu iríamos passar nosso primeiro jantar.
Vinte e Cinco — Então foi assim que aconteceu — explicou Danny. — Eu tinha acabado de entrar no Ensino Médio naquela época, e tive de juntar as peças com o passar dos anos, e minha versão não é cem por cento confiável, mas é o que sei. Papai e a sua mãe estavam tendo um caso e ela ficou grávida. Tenho certeza de que conversaram sobre fazer um aborto; se estou deixando você desconfortável, me diga. Mas ela decidiu ter o bebê. Acho que esperava que papai casasse com ela e acho que papai queria. O casamento dos meus pais era péssimo, é bom que saiba. Minha mãe passava a maior parte do tempo na nossa casa em Connecticut e papai tinha um apartamento na cidade onde passava a semana. Realmente só o víamos nos finais de semana quando eu era criança. Ele era um workaholic e era, e ainda é, mulherengo. Isso é fato. CC, só de olhar e conversar com você dá para perceber que você não é tão inocente e ingênua que não possa ouvir essas coisas, acho que pode entender que nosso pai pode ser amoroso mesmo que, como marido ou amante, não fosse nenhum anjo. Certo? — Danny parecia um pouco preocupado por ter dito tanta coisa, tão cedo. Assenti. Fiquei triste de ouvir Danny proclamar o que eu já suspeitava, mas, ao mesmo tempo, acho que me senti aliviada por não ter mais que colocar Frank, o pai verdadeiro, num pedestal. Além do mais, gostei que Danny expusesse os fatos sem enfeitar com açúcar, por mais que eu goste de açúcar. — Minha mãe nunca lhe daria o divórcio. Ela era católica praticante, e acho que queria se vingar dele. Ela o responsabilizava por toda sua infelicidade. — Você odiava sua mãe? — perguntei. Porque mesmo que Nancy e eu não fôssemos exatamente modelos da relação mãe e filha, não a odeio nem um pouco, embora ela ache o contrário. Ela me enlouquece e acho que ela não me entende de jeito nenhum, mas sei que ela tenta fazer o que é certo para mim, mesmo que o que ela pense que está certo geralmente resulte em decisões que detesto, como por exemplo o colégio interno, o
quarto de princesa-vômito, o encarceramento em Alcatraz. Percebi que deve ter precisado fazer um grande esforço para me deixar vir para Nova York sozinha e descobrir coisas de que eu poderia não gostar. Me pergunto se, a seu modo, ela não estaria tentando permitir que eu tivesse uma independência que daria um empurrãozinho no meu processo de amadurecimento. — Não — disse Danny. — Eu amava muito minha mãe, mesmo ela achando que ser gay era pecado. Ela era muito controladora, mas nos amava e faria qualquer coisa por nós. Minha irmã é muito parecida com ela. — Tem saudades? — Tenho — disse Danny. — Brigávamos muito quando eu era adolescente. Ela não aprovava Aaron e sempre se referia a ele como "meu amigo". Nunca disse a seus amigos que eu era gay. Mas no final da vida, quando o câncer a estava consumindo, passei muito tempo com ela, cuidando dela, conversando com ela. Aaron também, e isso fez muita diferença. Ela finalmente conseguiu conhecê-lo e ver como ele é maravilhoso e gostar dele como meu namorado e parceiro. A rejeição foi embora, acho que ela acabou amando-o o quanto podia. Ele foi muito bom para ela, especialmente quando se pensa que no começo ela foi terrível com ele. — E o meu pai? — perguntei. — Papai sempre foi ótimo com Aaron, mas de uma forma bem distante... — Quando perguntei sobre meu pai, eu queria dizer meu pai Sid. Foi ele que sempre esteve comigo, que me amava tanto quanto ama Ash e Josh, que nunca tentou me fazer passar por sua sobrinha. — Era como se ele se esforçasse demais para ser legal com a situação, que acabou apenas aceitando. — E o tio Sid? — expliquei. Agora Danny sorriu. — Tenho saudades dele! Quando eu era pequeno, ele era como um herói para Lisbeth e para mim. Não tinha esposa ou filhos; então, quando vinha nos visitar, nos levava para parques de diversões e jogos de beisebol. Tinha uma energia inesgotável com a gente. Dava para ver que ele queria ter filhos, mas também era um workabolic e não saía muito. Então papai
cometeu o erro de pedir que seu velho amigo Sid cuidasse da sua namorada e do bebê que ficariam na cidade, durante o final de semana, e tudo terminou depois disso. Tio Sid, acho, estava tão furioso pela forma como papai havia se comportado, levando uma vida dupla e mentindo para minha mãe e para sua, que parou de falar com ele e logo depois disso, acho que sua mãe percebeu que papai nunca ia se casar com ela ou ajudá-la a criar a criança, então terminou tudo com ele. Um ano ou dois depois, Sid voltou à cidade, entrou em contato com sua mãe, apaixonou-se por você, pelo que sei, e as levou para São Francisco, o que foi muito conveniente para papai e para minha mãe porque a situação tinha se tornado aquele fardo silencioso, que todo mundo sabia mas sobre o qual ninguém comentava. Isso os tornou grandes inimigos. Lisbeth e eu ficamos presos no meio de uma família muito infeliz. Mais pontos: por tudo isso, na minha opinião, Danny tinha muito para ser amargo, mas aceitava todos em sua família pelo que eles eram, com todas suas imperfeições, e parecia amar todos individualmente mesmo assim. Eu começava a sentir que meu irmão mais velho confeiteiro era uma grande inspiração, talvez até melhor do que Helen Keller. Talvez seja melhor eu prestar atenção em sua influência iluminada. — Ok, CC, agora é sua vez. Vamos lá. Fale de você. Fiquei tímida, meio que revirei os olhos, dei de ombros e apertei os lábios. — Não sei! — disse eu. — Namorado? — perguntou Danny. — Namorada? — Bem — disse eu. — Tive um amor verdadeiro em São Francisco. Ele é artista, surfista e barista também. — Enquanto eu falava, minha pele começou a coçar de saudades Daquele Que Não Pode ser Mencionado. — E? — perguntou Danny. — Minha mãe me fez não vê-lo mais, então ele me largou. Danny me olhou e disse: — Alguma coisa me diz que há algo mais nessa história. — Bem, passei a noite na casa dele e meus pais me puseram de castigo. Ele então decidiu que eu estava sempre muito grudada nele e que precisava de tempo para, tipo, fazer coisas com os outros e sua arte blablablá. — Hum — disse Danny —, Aaron e eu tivemos um período assim,
logo depois da escola. Terminamos por uns seis meses porque achamos que precisávamos sair com outras pessoas, pensamos que precisávamos experimentar coisas separadamente, sem depender um do outro. — Mas vocês deram um jeito! — exclamei animada. — Decidiram que o melhor era ficar juntos! — Decidimos. Mas o tempo afastados foi bom. Precisávamos trabalhar nossas identidades individuais. Ainda precisamos. — Ah — disse eu. — Certo. — Você tem muitos amigos? Não parece uma daquelas adolescentes escandalosas que viaja em turma e gosta de gritar por celebridades em Times Square. — Minha melhor amiga é Pão-Doce. Ela vive numa casa de repouso. É vidente e lê cartas de tarô. — Interessante! Você se dá bem com sua mãe? — perguntou Danny. Hesitei, então disse: — Tentamos. — Eu poderia tentar de verdade, pensei. — Tem planos para o futuro? Sabe o que quer fazer? Balancei a cabeça. — Não entendo essas pessoas que já têm tudo planejado, que sabem que querem ir para a Faculdade XYZ para ser advogado, a garota da previsão do tempo ou o que seja. Se eu entrar num curso técnico já fico feliz. De qualquer forma, talvez só queira ser barista. — Podia ser pior — disse Danny. — Você é ótima nisso e os passos mais importantes para descobrir o que se quer fazer você já deu: ser responsável no trabalho e gostar do que faz. Hummm. Bocejei e olhei para o relógio. Já passava de uma da madrugada e as ruas ainda estavam cheias de gente e de vida, risadas e música. Eu estava um lixo, não apenas com sono, mas emocionalmente exausta. — Está cansada? — perguntou Danny. — Talvez você prefira ficar na nossa casa hoje do que voltar lá para a casa do papai? Me surpreendi ao dizer não. Era quase como se tivéssemos chegado ao final da linha do nosso aprendizado de irmãos, e agora precisássemos respirar, porque havíamos passado por anos de crescimento, luta, brigas e adorado chegar nesse dia e noite de união perfeita.
— Vou pegar um táxi de volta para a casa de Frank — disse eu. Olhei para o Empire State Building. Nasci num hospital no East River à sombra desse monólito. Peças do quebra-cabeça que é Cyd Charisse começaram, ao que parece, a ser identificadas e se ajustar no lugar certo.
Vinte e Seis Depois de cinco dias pegando um pedaço com Luis no almoço e trabalhando no turno do jantar no Idiotas do Village, mereci enfim que Frank me achasse digna de seu tempo. Ele me fez o imenso favor de esvaziar sua agenda no sábado até cinco da tarde, quando teria que se vestir e ir tratar da vida dele. Seríamos pai e filha até que o relógio batesse cinco horas; então, eu voaria sozinha enquanto Frank sairia para ganhar clientes em jantares e, espero eu, não para engravidar jovens dançarinas-modelos impressionáveis. Começamos com uma caminhada pelo Central Park. Pela primeira vez o clima não estava tão úmido e o sol passava por entre os arranha-céus iluminando o rico verde do parque enquanto vagávamos, não andando juntos como amigos, mas mantendo uma ligeira distância um do outro como, acredito, pais cabeçudos e seus filhos bastardos devem fazer. Frank ficou bem orgulhoso quando chegamos no Straw-berry Fields no West Side. — Vê, essa área foi dedicada a John Lennon, que vivia logo ali — disse ele, apontando para um velho prédio que parecia mal-assombrado, entre as árvores distantes. — Quem é John Lennon? — perguntei, e o rosto de Frank desabou. — Era um músico, um compositor, um revolucionário. Vem gente do mundo todo para ver esse tributo. — Quanto você quer apostar que ele tirou essa informação de um comercial? Olhei para ele com uma cara inexpressiva e Frank acrescentou: — Já ouviu falar dos Beatles? — Acho que sim — disse eu, mas estava cantarolando mentalmente: Yeah yeah yeah. Torturar Frank com o conflito de gerações até que era divertido. — Muita gente acha que John Lennon era um herói — disse ele seriamente. — Seu irmão Danny o venerava. — Dava para ver que Frank estava bem satisfeito consigo mesmo por conhecer bem esse lugar com um círculo no chão onde se lê "Imagine".
— Ah, eu me lembro — disse eu. — Não era esse cara que estava sempre chapado e tinha um caso com uma asiática que não era sua esposa? Frank olhou para baixo, depois para mim. — Você não vai facilitar as coisas para mim, vai? — perguntou. — Não — respondi, de um jeito divertido. Andamos em silêncio por um tempo. Quando chegamos perto do meio do parque, Frank disse: — Você se interessa por arte? Podíamos andar até o Metropolitan Museum. — Gosto de arte — respondi. — Gosto especialmente dos artistas. Frank me olhou com ar interrogativo. Mudamos de direção e começamos a ir para o lado leste. Paramos para um refresco num vendedor ambulante, e quando recomeçamos a andar, com o agridoce do limão matando nossa sede, Frank meio que limpou a garganta e disse, como se falasse para o ar e não diretamente para mim: — Então, você... hum... está conseguindo ficar longe de problemas? Percebi que, a seu modo, Frank estava tentando se certificar se eu estava bem; parte de mim suspeitava que era provavelmente o melhor que eu teria dele. — Estou — respondi. — Estou tomando pílula agora. Frank corou, o que era engraçado considerando-se todas as mulheres com vestidos de alcinha e unhas do pé pintadas de vermelho que ele andou secando a tarde toda. E mesmo com seus docksiders da East Coast, sua desengonçada camisa pólo, sua bermuda caqui e seus sessenta anos, elas olhavam para ele também. Eca! Talvez Frank tivesse produzido muitas campanhas públicas como o Rei do Mundo Publicitário, porque disse: — Seu namorado e você... praticam... vocês tomam todas as precauções? Só a pílula não é o bastante. — Eu sei — respondi. E engraçado que eu não queria ter essa conversa com Nancy, mas já que Frank é reconhecidamente um galinha, com ele não me incomodava nem um pouco. — Camisinhas são boas também. — Dei um soquinho amistoso no braço dele e disse: — Lembre-se disso, velho amigo! Frank riu. Acho que percebeu que havia muita estranheza entre nós, então, por que não acabar com ela de uma vez?
Frank relaxou e disse abruptamente: — Esse seu namorado é aquele que meteu você numa encrenca? — Não — respondi. — Esse foi outro. — Deu pra ver que Frank ficou um pouco aliviado por não precisar me fazer um discurso sobre continuar uma relação com um cara que me largou e me fez procurar meu pai secreto para me arrumar dinheiro para o aborto. — Não estou saindo com ninguém no momento. Meu namorado em São Francisco terminou comigo. — Agora Frank pareceu duplamente aliviado. Não apenas não tinha de me fazer o referido discurso, mas também não tinha de se preocupar se eu estava aprontando com um namorado atual. E no entanto, foi ele que jogou Luis no meu mundo carregado de hormônios! Que ironia. Deixando de lado a conversa sobre sexo seguro, Frank podia passar para assuntos mais amenos. — Então, tem uma matéria favorita na escola? — Matar aula é provavelmente minha matéria favorita. Não consigo me interessar por nada que acontece lá. — Quer ir para a faculdade? — Ah — dei de ombros. Sei que é superbacana ser uma dessas adolescentes que se matam em atividades extracurriculares, estudam loucamente para o vestibular e fazem trabalhos extras sobre salvar o meio ambiente para conseguir notas mais altas, mas não sou esse tipo de pessoa. Posso, na verdade, ser daquelas que se satisfazem em fazer um ótimo café, dar uma volta em praias nubladas e não se preocupar muito com os grandes assuntos do mundo. Não acho que isso me torne uma má pessoa. — Sua irmã — disse Frank com orgulho — foi uma estudante exemplar. Foi para Harvard, a mesma universidade que eu. Trabalha agora com investimentos numa firma top em Wall Street. — Quando vou conhecer essa irmã? — perguntei. Rhonda lisBETH era como a sombra negra da minha visita até então. Todos pareciam ficar dançando em torno desse assunto, como se ela fosse um tipo de monstro que não poderia ser solto na frente de filhos bastardos. — Em breve — disse Frank, apesar de eu não achar que ele acreditasse naquilo. Claramente lisBETH era a pessoa que não queria me conhecer. Chegamos à grande escadaria do Met, onde milhares de pessoas se
reuniam, sentadas nos degraus, tomando refrigerante, tirando fotos, descansando na brisa quente do verão. — Então, o que vai ser? — perguntou Frank enquanto subíamos os degraus. — Artefatos egípicios, cerâmica oriental, pinturas renascentistas, do que você gosta? — Não gosto de retratos de antigos reis e rainhas e tapeçarias de veludo. Curto mais arte moderna. Não pinceladas de tinta numa tela que uma criança de 4 anos pode fazer, mais como aquele troço de cubo, as coisas de Picasso, o cara que desenhava janelas, a mulher que fazia flores eróticas e ah, especialmente aquele cara que fazia aquelas coisas matemáticas em preto-e-branco de mãos e prédios e troços assim. Frank pareceu impressionado, Eu não sabia por quê. — Quer dizer Magrirte, Georgia O'Keefe e Escher. — É! — Exclamei. — Esses aí mesmo! — Siri adorava me arrastar para o museu quando matávamos aula juntos. — Hum — disse Frank, satisfeito. Enquanto estávamos na fila para entrar, um cara velho, usando calças de golfe e uma camisa com um pequeno jacaré, veio até nós. — Frankie! — exclamou o cara. — Que bom ver você, que bom ver você. O que ao meio-dia o traz ao Met no meio do verão quando as pessoas mais respeitáveis estão em Vineyard ou em Hamptons? Hehehe. — Fechei os olhos para evitar revirá-los de nojo. Odeio gente esnobe. Frank apontou para mim e disse: — Estou mostrando para minha so... — virou-se para mim e eu o fitei bem no meio da alma. — minha... minha... afilhada — prosseguiu ele —, estou mostrando a ela um pouco da cidade. Ela é fã de arte moderna! Entende bastante também. Ah, por favor. Sei que Frank queria que eu desse um sorriso inocente e doce para seu amigo, mas não dei. Só fiquei olhando para o nada. Dava para ver que o velho ficou confuso e provavelmente nunca tinha visto uma afilhada tão parecida com o padrinho, mas se suspeitou de algo, não demonstrou. O velho me deu um tapinha amistoso no ombro. — Bem, aproveitem! Vejo você mais tarde, meu velho. Almoço no clube um dia desses? — Com certeza. — disse Frank. — Dolores liga para sua secretária.
— Excelente — disse o cara e foi atrás de sua própria família. Quando ele se foi, Frank limpou a garganta e disse: — Esse é um dos meus maiores clientes. Creio que "afilhada" era a melhor ligação que ele podia estabelecer. Eu nem estava brava. Não estava. Acho que o Frank é assim. Ele deve ter interpretado meu silêncio como um pedido de explicação, porque acrescentou: — Ele é o diretor executivo, o cabeça de uma empresa importante. — Eu sei o que é, Frank — retruquei. — É o que meu pai é. Nós dois sabíamos que eu estava me referindo a Sid, meu pai verdadeiro.
Vinte e Sete Então na categoria Pai Biológico do Ano, Frank talvez não ganhasse prêmio algum nos próximos tempos. Ele perguntou se eu gostaria que Luis saísse comigo na noite de sábado. Se eu gostaria? Nancy teria engasgado com seus LifeSavers antes de deixar um gostosão como o Luis servir de "babá" da sua filha numa noite de sábado, mas Frank nem pensou duas vezes. Fui boazinha, entretanto. Disse que não. Frank não esperava chegar em casa cedo e parecia até um tanto culpado de me deixar sozinha. Danny e Aaron tinham me convidado para uma balada com eles no Village, mas passaram todas as noites da semana trabalhando e rindo comigo, então imaginei que precisavam de uma noite sozinhos, sem Cyd Charisse no pé. Só Deus sabe onde estaria Rhonda lisBETH, não que eu ainda me importasse. Eu sabia que o ar quente e sufocante do verão estava atraindo a Tentação com muita força, então disse a ele que não se importasse comigo. Não precisava de Luis de dama de companhia. Vou ver televisão a cabo, pedir alguma comida chinesa ou outra qualquer e ficar muito bem. Pão-de-Mel e eu vamos cair no sono cedo, sem problema, estava falando sério e Frank foi dizendo, "Bem, Luis disse para chamá-lo se você quiser companhia" e eu disse "tudo bem". Embora a TV geralmente me entediasse, fiquei ligada num filme tosco dos anos 1980 sobre um entregador de pizza desastrado que por engano se torna gigolô de todas essas mulheres bacanas. E o tal entregador de pizza era magretinho, tinha um visual normal, mas era superfofo, e de alguma forma se transformava na fantasia de todas as mulheres. Isso claro que me fez pensar em Nada, porque (a) o entregador tinha um bom coração, (b) era um grande amante, e (c) já mencionei o ar sufocante do verão que seduz sua pele? Mas ainda assim, eu estava bem. Pão-de-Mel me lançou um olhar do tipo: não faça o que sei que está pensando fazer; o que ela queria dizer era:
não vá aprontar com meu menino Luis. Eu lhe disse que não se preocupasse. Está tudo bem. Tinha outros planos em mente. Uma passadinha telefônica. Uma passadinha telefônica é o que eu chamo de equivalente a uma passadinha de carro, quando você está a fim de alguém e resolve passar na frente da casa dele para ver se está em casa, se as luzes estão acesas, se, ah, meu Deus, você está na varanda e "por acaso" eu estava passando, por que não vamos tomar um café ou coisa assim? Coincidência! A passadinha telefônica, no entanto, termina quando você escuta o objeto do seu afeto dizendo — "Alô? Alô? Quem é? Droga, quem é?" — você suspira, porque ama muito aquela pessoa, e aí desliga. Passadinhas telefônicas, por sinal, não são recomendáveis se a pessoa que recebe a ligação tem um identificador de chamadas, o que eu sabia que o meu destinatário não tinha. Então peguei o telefone e Pão-de-Mel fechou os olhos; o telefone fez tu-tu-tu e meu coração fez tum-tum-tum. Depois de seis toques, estava prestes a desligar quando uma voz atendeu secamente — Era o Java. Meu fator-desejo foi até o teto, embora eu quisesse perguntar a ele como andava o você-sabe-quem. Ele está bem? Sente saudades de mim como sinto dele? Você já demitiu aquela merdinha incompetente da Autumn? Mas minha boca congelou, meu corpo ficou quente e quase instantaneamente houve um incêndio dentro de mim que precisava ser apagado. Quase podia ouvir o barulho das ondas de Ocean Beach ao longe e ver Java de pé em sua roupa de neoprene no terraço, com o telefone sem fio na orelha, enquanto olhava para a água, faminto pelas ondas geladas. Quebrando o silêncio, Java disse: — Quem está aí? Alô? Delia, é você? Escute, amor, você sabe que sinto muito por ontem... Desliguei. Lembrei das últimas palavras de Nada para mim: "Talvez você precise de um certo tempo para pensar sobre sua queda pelo meu irmão." Olhei para o relógio do Mickey. Parecia que esse tempo tinha chegado. Olhei para Pão-de-Mel e ela estava com o mesmo olhar que me dava antes de eu fugir para o quarto de Justin para aprontar. Levei Pão-de-Mel para nosso quarto e a guardei. Sussurrei em seu ouvido:
— Não se preocupe, serei cuidadosa. — Dei nela um beijo de esquimó e pus minha máscara de dormir em seus olhos para que a luz da lua não a mantivesse acordada ou distraída. Voltei para a sala e liguei para o celular de Luis. — Ei, amigo — disse eu de forma indiferente, mas meio sexy. — Ah-ah — exclamou Luis. — O que foi, não gosta de ficar em casa sozinha numa noite de sábado? — Talvez — respondi, tímida. — Talvez não. Era assim que eu agia com Justin. E ele acabou caindo nessa também. Homens. Não consigo entender. — Então, o que quer que eu faça? — perguntou Luis. Eu podia ouvir risadas e música no fundo, onde quer que ele estivesse. — Estava pensando em sair para dançar hoje de noite. Tem alguma sugestão de lugar para eu ir? — Não, não vá! Frank me mataria! — exclamou Luis. Acho que ele colocou a mão sobre o telefone, porque houve uma pausa e o que parecia com uma voz exclamando baixinho "Porra!" Então ele voltou ao telefone e disse: — O que você acha de eu aparecer aí e nós sairmos para tomar um café ou um chá? — Long Island Iced Tea? — perguntei. — NÃO! Eu chego logo. Cara, menina, bastou olhar para você para saber que você era encrenca. — O tom da voz dele não era totalmente negativo quando fez essa observação. — Não saia daí. Chego logo. — Tá — disse eu e desliguei. As habilidades psíquicas dela devem ser maiores do que as de Pão-Doce, porque adivinha quem ligou exatamente quando desliguei? Minha mãe. Como ela sabe quando estou prestes a me dar bem? — Ah, olá — disse eu nervosa. Desde que cheguei em Nova York só tinha falado uma vez com Nancy, quando estava no carro, a caminho da casa de Frank, vindo do aeroporto e liguei para ela para dizer que cheguei bem. Ela prometeu não me ligar a cada dois minutos e estava se saindo muito bem. Prometeu que daríamos "espaço" uma para a outra. — Como vão as coisas, querida? — perguntou ela. — Seu pa... ele... Frank está aí? —Não sei o que há de errado com as pessoas. Ninguém sabe dizer o que eu e Frank somos.
— Não, ele saiu. Nancy suspirou, claro. — Surpresa, surpresa — disse ela. — O que está fazendo? Está sozinha em casa? — Pão-de-Mel e eu estamos vendo TV — respondi. Nancy suspirou novamente. — Não acha que já está na hora de você largar essa boneca? Silêncio. — Não. — Você disse que estava vendo TV? Silêncio. — E. Eu podia ouvir Ash e Josh no fundo gritando e derrubando coisas. — Não consigo ouvir nada! — gritou Nancy, dirigindo-se a eles. — Eu não disse nada. Não perdeu nada. — Bem — disse Nancy séria —, estamos com saudades de você aqui. Fique longe de encrenca e, se precisar de qualquer coisa, me ligue. Acho que ela estava tentando ser legal, mas eu só conseguia pensar que ela me pôs de castigo, sem poder ver o amor da minha vida, e que ela era a responsável por ele ter me largado. Quem era ela para me dizer para ficar longe de encrenca? Ela era a minha encrenca. — Tá, certo — disse eu. — Diga oi para o papai e os meninos. — Amo você... — começou ela, mas eu desliguei. Agora eu estava com tesão por ter ouvido a voz do Java e furiosa depois da conversa com Nancy. Tomei uma ducha e tentei me acalmar. Não era brincadeira. Quem poderia mergulhar na minha cota de encrencas além de Luis, que chegou com os olhos chapados e meio trocando as pernas. — Você está chapado — observei quando ele entrou. Ele não respondeu, mas me passou um pacote de alcaçuz Twizzlers. — Está com fome? — perguntou. — Muita — respondi. Eu podia sentir o cabelo molhado nas costas nuas, e gotas que desciam pela minha espinha, me fazendo ficar arrepiada de calor e excitação. Luis se jogou no sofá e disse: — Então, o que há nessa cabecinha? Sou uma garota que vai direto ao ponto, então respondi: — Sei que está me olhando desde que cheguei aqui, também estou de
olho em você e acho que a gente devia fazer alguma coisa a esse respeito. Luis pareceu triste. — Não posso — disse ele. — Você é muito nova. Você é a... de Frank... ou seja lá o que for. — Uma seja lá o que for faz isso? — pus a mão dele na minha cintura e me inclinei para ficar mais perto. Por favor, me deixe viver minha fantasia-Wallace com você, pensei, por favor, me ajude a me livrar dela. "Descarada" foi a palavra que o diretor do colégio interno usou para me descrever. Abri as pernas de Luís e beijei seu pescoço. — Por favor, Luis — sussurrei em seu ouvido. — Me faça esse favor. Não precisamos fazer tudo. Não quero que você vá para a igreja e reze um milhão de ave-marias porque teve sexo consensual com uma menor de idade. Mas já que nós dois estamos jogando esse jogo, por que não correr para o abraço? Ah, era tão bom beijar um cara de novo depois de Alcatraz... Ele nem parou para considerar minha proposta, só me puxou para mais perto e nossos lábios se encontraram. A grande coisa em aprontar com quem está chapado é que não tem necessariamente de chegar a lugar algum; nenhum de nós parecia precisar disso. Era só mãos, cabelo, respiração quente, se arrastando pela eternidade. E sabe do que mais, aqueles bíceps e o tanquinho eram ótimos de tocar. Não sei quanto tempo ficamos ali, pode ter sido vinte minutos, pode ter sido uma hora. A parte estranha era que, por mais que fosse bom, as preliminares todas me fizeram me sentir meio sacana. Não tinha nada ali além do tesão. Percebi que sentiria a mesma coisa se ficasse com Wallace. Meu desejo pelo Siri — e estou dizendo o seu nome, em alto e bom som — aumentava exponencialmente quanto mais eu ficava com Luis. Eu queria um beijo de verdade, e não a sacanagem de chame-um-gostosão-para-sua-casa. Não que o fator sacanagem me impedisse de tirar proveito de Luis. Vamos ser honestos. Meus hormônios estavam precisando. Mas então, quando as mãos dele estavam passando nas minhas coxas nuas embaixo da minissaia e eu passava os dedos em seu cabelo, pensando se não devíamos
ir até o fim, já que tínhamos chegado tão perto, ouvimos uma porta bater e uma voz feminina exclamar: — É, quem sai aos seus não degenera. Luis e eu demos um salto, bem culpados, e ficamos de pé diante de nossa acusadora. — Ai, merda — exclamou Luis, fechando a calça que minhas mãos tinham acabado de abrir, e enfiando a camisa para dentro. Pegou seu saco de alcaçuz da mesinha e disse: — Fui. — Não sei qual cenário era pior para ele: parecer chapado e bêbado ou ficar com a filha bastarda da família. Correu para a porta, murmurando — Essa família... — e foi embora me deixando sozinha com o monstro que era minha irmã mais velha, Rhonda lisBETH.
Vinte e Oito Se Danny era a versão menor, mais magra e mais feliz de Frank, Rhonda lisBETH era certamente a versão Nellie Olson: belo cabelo comprido, mas preso com uma faixa elegante, emoldurando um rosto que seria bonito a não ser pela carranca pelas linhas em torno dos olhos e dos lábios permanentemente grudadas. Dava para dizer de cara olhando para Rhonda que ela só usava roupas que pedia de catálogos de empresas do Maine e provavelmente nunca encontraria uma irmã bastarda de quem gostasse. — Cyd Charisse — disse ela. — Tem um apelido? Não posso me imaginar sendo chamada pelo nome de uma atriz de cinema. — Gosto do meu nome — respondi, então acrescentei: — Rhonda. Ela retrucou tão abruptamente que eu quase pulei. — Quem disse para me chamar assim? — Quem disse para aparecer sem ligar antes? — respondi. Ajeitei o cabelo e a minissaia amarrotada, mas meu coração estava acelerado, como se estivesse em alerta. — Achei que era hora de nos conhecermos — disse ela, toda melindrada. — Aqui estamos — disse eu —, estamos nos conhecendo. Ficamos uma na frente da outra nos encarando, como se nos preparando para um duelo. Eu era mais alta do que ela uns dez centímetros. Ela não conseguia parar de olhar para mim. Eu me perguntava se minha semelhança com Frank a incomodava. — Esse era Luis? — perguntou ela. — Não o vejo há anos, mas podia jurar que era ele. — Como não respondi, ela disse; — Papai não vai gostar disso. Qual é, devo ficar com medo de Frank me deixar de castigo? O Sr. Disseminador de Filhos Bastardos? Sei. Ele provavelmente me aplaudiria por isso. Puxou ao papai, hein? E daria uma piscadinha. Enquanto papai Sid teria feito um sermão sobre o comportamento de uma dama e a
importância de eu respeitar qualquer garoto com quem saísse, e que o tal garoto gostasse de mim e me respeitasse. — Era um amigo meu — disse eu. Num tom hip-hop, acrescentei: —Beleza? Agora Rhonda lisBETH não estava apenas fula, estava confusa. Respondeu de um modo bem lento e pausado: — Tudo bem — como se estivesse corrigindo minha maneira de falar. A seguir, me olhou de alto a baixo e declarou: — Então você é a pequena indiscrição do papai. Se ela não tivesse sido completamente nojenta, eu poderia me sentir mal por ela provavelmente ter tido uma infância bem triste e agora passar horas num caro consultório psiquiátrico trabalhando seus rancores internos. — Você já fez o teste da Síndrome de Tourette? — perguntei. — Do que está falando? Deixei que Pão-Doce entrasse no meu corpo e disse toda faceira: — Mocinha, não me venha com grosserias, porque não vou ouvi-las. Minha dita irmã fez cara de ofendida. — Bem, eu nunca... — Isso mesmo, você nunca — retruquei. Ela se dirigiu para a porta. — Não vou ficar aqui para ser insultada — disse. — Você que começou — fiz questão de lembrar. — Quem é você para me chamar de Pequena Indiscrição do Papai? Talvez Rhonda lisBETH estivesse envergonhada por ter se comportado tão mal, ou talvez só estivesse fula, mas saiu batendo a porta às suas costas. Voltei a abri-la e disse: — Desejo melhor sorte na próxima vez! — enquanto ela ia para o elevador. Então me encolhi na cama com Pão-de-Mel, que me disse que tudo ficada bem e que eu devia ser mais boazinha com gente infeliz.
Vinte e Nove Comunidades não são para famílias, suspeito. É por isso que são comunidades. Você pode escolher sua família, se começa sua própria comunidade É a nova regra. Minha próxima comunidade vai ser em Greenwich Village. Vamos usar bandeiras do arco-íris como roupas e tornozeleiras charmosas com fotos de Ann-Margret. Só vamos comer bolos dignos de Michelangelo, feitos pelo Danny, e vamos dançar músicas punk trash, com metrôs ecoando abaixo de nossos pisos, fazendo-nos vibrar de prazer, mas não de um jeito sacana. Nossa comunidade só vai ter homens bonitos e eu. Vai ser como aquela ilha da Mulher-Maravilha ao contrário, só que não vamos ter superpoderes, embora todos sejamos lindos e superfortes. E vamos curtir mesmo nossa filosofia coletiva, quando conseguirmos descobrir o que ela é. Já que vou ser a única menina, e já que nenhum dos garotos vai estar interessado em mim daquela forma perigosa, vou ficar longe de encrencas. Vou meditar e pensar em modos de me dar bem com as outras mulheres lá fora, que gostam de se afundar na merda e é por isso que tivemos de começar nossa comunidade, para fugir delas. Não vou sair da comunidade até estar pronta, o que pode nunca acontecer.
Trinta Então aconteceu a tal pesquisa da hora do almoço no Idiotas do Village, e fui declarada a Idiota do Village du jour. De acordo com a pesquisa, eu havia exagerado sobre Autumn e tirei conclusões precipitadas sobre a relação de Siri com ela. De acordo com a pesquisa, eu devia ter confiado mais no meu namorado e ser um pouco mais segura com relação a mim mesma antes de acusá-lo de estar me traindo. De acordo com a pesquisa com os clientes que, devo dizer, estavam felizes comendo suas quiches e seus bolos, e que portanto não tinham razão para me sacanear, era eu a parte errada, não a parte prejudicada. O problema de ser barista é que você não pode ser toda timidazinha com sua vida misteriosa. Servir e beber muitas doses de cafeína acaba com isso. Você tem de deixar sua clientela bebedora de café sentir sua dor, mesmo que signifique contar e recontar sua saga amorosa e deixar que a analisem, que façam pesquisas sobre isso e por aí vai. Decidi não me vingar dos clientes jogando água em seus lattes ou servindo leite integral nos cappuccinos quando os fortinhos haviam pedido leite desnatado. Resolvi aceitar a opinião deles como conselho. Depois da pesquisa, Danny se aproximou e disse: — Você pretende me contar sobre a visita da Lisbeth? Já faz dois dias. — Não particularmente — disse eu. Eu estava brava? Muito. Além das suas péssimas insinuações, havia o fato de ela não ser uma garota mais velha legal que queria me pôr debaixo das asas, passar informações importantes sobre homens e sexo, trocar roupas descoladas, ir à pedicure, fingir que estava vomitando diante de modelos magricelas em revistas de moda de pura dor-de-cotovelo. Sorte que um monte de vapor estava saindo do leite que eu servia, então minhas quase lágrimas não ficaram tão evidentes. — Bem, eu queria saber sua versão — disse Danny. — Minha versão! Não há versões aqui! Ela estava errada, só isso.
Apareceu sem avisar, me chamou de "pequena indiscrição do papai" e não foi exatamente o que você chamaria de gracinha e acolhedora. — Uau — exclamou Danny, o que era bonitinho porque ele havia adotado uma das minhas exclamações favoritas e a dizia exatamente da forma como eu digo. — Pare um pouco, CC, vamos sentar e tomar um java. — Café — disse eu. — Não vamos usar a palavra java. — Por quê? — Só não vamos usar. — De alguma forma ao contar a saga do Siri para Danny, Aaron e uma dúzia de clientes do Idiotas do Village, esqueci de mencionar um detalhezinho: eu morria de tesão pelo irmão de Siri. Falha minha. A clientela da pesquisa do almoço havia ido embora e o café estava quase vazio. Danny e eu nos sentamos nas grandes cadeiras acolchoadas da frente, perto da vidraça, olhando o movimento de Greenwich Village. — Lisbeth disse que tinha um cara lá com você. Dei um gole no meu mocha gelado e tentei dar ao rosto uma expressão inocente. Eu? — CC?— disse Danny. Danny era legal demais; não dava para mentir para ele. Levantei a mão como se estivesse no tribunal e disse: — Culpada, meritíssimo. — Quem? Fechei os olhos. — Por favor, não me diga que era Luís — disse Danny. Levantei a mão novamente e repeti: — Culpada. — Cyd Charisse! — exclamou Danny. Ele tentou se mostrar chocado, mas acho que estava impressionado também. Quero dizer qual é, Luis é um verdadeiro tesão. — Papai sabe? — Só se sua irmã contou. — É sua irmã também — disse Danny. — Não é não. E uma aberração biológica que resolvi não aceitar como sendo do meu sangue. E então quem entrou no café? Exatamente aquela aberração
biológica. Ela não nos viu sentados perto da janela, e foi até o balcão onde Aaron estava preparando uma salada. — Aaron! — chamou ela e era triste: o tom era absolutamente suave e pelo jeito como inclinou o tronco e pela expressão feliz naquele rosto severo, dava para perceber que ela tinha uma queda pelo namorado do irmão. Justiça seja feita, Frank gera pessoas complicadas. Agora Danny estava com uma expressão inocente. — Ah, esqueci de comentar que pedi para ela passar aqui esta tarde. Ela tinha uma reunião de negócios não muito longe. — Você... — exclamei em tom de acusação. Se fosse possível se chatear com alguém tão adorável quanto o Danny, eu me chatearia, mas admito, também estava curiosa. Meu primeiro encontro com Rhonda lisBETH havia sido desastroso, mas se Danny e Aaron podiam gostar tanto dela, tinha de haver algo ali que se salvasse. Aaron a trouxe para se sentar conosco. Eu diria que ele e Danny sabiam sobre a quedinha de lisBETH e estavam tentando amolecê-la. — Ah, oi — disse ela quando me viu. — Não sabia que estava aqui. — Ela deu um olhar para Aaron do tipo, tenho de dividir você com ela? — Nem eu — respondi. Dei a Aaron um olhar do tipo, você fica com alergia por isso aí ter uma queda por você? — Vocês sabiam que as duas são umas formigas? — perguntou Danny. — As duas preferem meu bolo de musse de chocolate entre todos os bolos daqui, e as duas gostam de beber mochas! Agora lisBETH e eu demos a Danny o mesmo olhar: está exagerando. — Muito bem — disse Danny, tirando sarro. — Aaron e eu vamos fazer uma comida para nós todos. Por que vocês moças não se sentam e conversam enquanto estamos na cozinha? — E se mandaram antes que pudéssemos protestar. Ela se sentou na minha frente e mais uma vez começou a me encarar. Quebrou o silêncio dizendo: — Então, era seu namorado naquela noite? — Não — respondi. — Só um cara. — Só um cara? Legal. Muito legal — disse ela no limite da impaciência.
— Se você não notou, ele era um tesão — acrescentei. Houve quase um sorriso em seu rosto rígido. — Tenho de concordar — admitiu ela. — Eu sabia! — exclamei. Mas não acrescentei: e ele tem quase idade legal para beber! Não quer dar uma mordida nessa maçã?! — Quantos namorados você já teve? — perguntou lisBETH. — A sério ou não? Houve uma pausa então. Ela disse: — Hum. — De alguma forma eu estava sentindo que lisBETH não teve muitos namorados na vida e talvez eu devesse calar a boca sobre minha fartura. — Com licença, preciso ir ao toalete — disse, levantando e indo em direção ao banheiro. Sua pasta de couro chique estava na cadeira. Danny e Aaron estavam lá atrás na cozinha. Não pude resistir. Por baixo da toalha, enfiei a mão na pasta e a abri. Conteúdo da pasta: uma agenda eletrônica; três grandes documentos de trabalho chamados prospectos; um grupo de faxes perturbadoramente organizados, presos com clipe em ordem decrescente de tamanho; uma bolsa de cosméticos contendo protetor solar, um batom da Channel numa cor ridiculamente fraca, três absorventes internos (do tipo ecologicamente corretos) um minifrasco de esterilizante para mãos e nenhum pacote de camisinhas, nem mesmo no compartimento de zíper (embora houvesse ali um cartão de visita onde estava escrito apenas "Paulo" e um número de telefone... hum...); um telefone celular com uma cor realmente descolada, azul-cristal; um livro chamado Perdoando nossos pais: estratégias de sucesso para construir relações felizes e saudáveis; e um livro com uma capa de alguém chamado Goethe, mas que, quando você abria, era na verdade um livro de auto-ajuda. Mais uma coisa. Havia um pequeno porta-retrato com uma foto de Frank, lisBETH, Danny e a mãe deles. Danny tinha cerca de cinco anos na foto, lisBETH tinha uns dez, e a família estava reunida em volta de uma árvore de Natal abrindo presentes. Danny estava com o cabelo bagunçado e usava pijamas de pezinhos e lisBETH estava de marias-chiquinhas com laços de fita, e usava um vestido com as cores do Natal. Que criança perde tempo para se vestir e arrumar o cabelo com marias-chiquinhas certinhas na manhã de Natal, quando tem presentes para abrir? As crianças como
Rhonda lisBETH, acho eu. A mãe deles, que era mais para normal do que para bonita, e meio pesadona naquela infeliz estilo Betty Crocker, olhava apaixonada para Frank que, todo bonito, fitava o vazio, alheio ao momento familiar. Então essa era a família destruída pela traição de Frank. Me perguntei se Nancy teria visto fotos dos filhos de Frank quando eles estavam saindo juntos. Ergui os olhos e vi lisBETH conversando com Danny no fundo do café. Estavam todos cochichando e gesticulando. Parecia que Danny estava implorando "Por favor!" LisBETH voltou para a mesa, sentou-se e declarou: — Vamos tentar novamente. — Disse aquilo mais como uma ordem do que como um pedido. — Que tal sairmos só nós duas qualquer dia? — Vou estar por aí. — Estou no escritório a maioria dos dias até as dez da noite — disse ela. Na verdade, preciso voltar agora para outra reunião. Que tal neste sábado? Acho que posso encaixá-la lá pela hora do almoço. — Pode mesmo? — indaguei, mas ela não entendeu meu sarcasmo. — Posso. Pego você na casa do meu pai por volta do meio-dia. — Que sorte eu tenho. — LisBETH pegou sua agenda eletrônica para anotar o encontro. Pai dela realmente. Me perguntei se ela tinha alguma curiosidade a meu respeito; se eu fosse ao toalete ela abriria minha mochila plástica da Sailor Moon que comprei no bairro oriental de São Francisco? Conteúdo: vários batons, pó-compacto e minha receita de pílula anticoncepcional enfiada no fundo; um desenho meu (plastificado) que Siri fez no dia em que nos conhecemos na casa onde Pão-Doce mora; cartas com desenhos e fotos de escola que Josh e Ash me mandaram quando eu estava no colégio interno; um travesseiro que fiz para Pão-de-Mel na aula de atividades domésticas; meu walkman com uma fita que Siri gravou para mim e que eu realmente escuto muito porque tem as músicas de A Noviça Rebelde intercaladas com todas essas músicas punk pesadas; um cardápio do Java the Hut; uma bolsinha contendo fio-dental, escova de dente e pasta para usar depois das refeições, porque eu tinha uma grande queda pelo meu dentista desde os oito anos de idade e queria que ele elogiasse minha
higiene bucal; e no compartimento do zíper, um pacote de camisinhas, e em outra bolsinha sem nenhum detalhe particular, um chocalhinho que comprei na farmácia no dia que descobri que estava grávida e que de alguma forma nunca me lembrei de jogar fora.
Trinta e Um Luis não apareceu a semana toda, então Pão-de-Mel e eu decidimos cuidar disso com nossas próprias mãos, por assim dizer. Luis deve ser um daqueles que tem identificador de chamadas, porque não atendia quando eu ligava para o seu celular. Isso significava que eu tinha de procurá-lo pessoalmente. Frank estava trabalhando, não que isso importasse. Depois de duas semanas, tínhamos estabelecido um acordo tácito de não perguntar nada, não contar nada. Nunca haveria uma conexão Papai/Princesa entre nós, e por mais estranho que pareça, eu não estava tão chateada por causa disso. Jantares ocasionais e blocos cuidadosamente encaixados de "bons programas" eram o melhor que Frank tinha a dar; francamente, depois de duas semanas de Frank, isso era o bastante. Pão-de-Mel e eu pegamos o cardápio da Grande Casa de Comidas da Senhorita Loretta e seguimos para a nossa busca do Luis. O engraçado de Manhattan é que na TV e nos filmes todo mundo parece muito rude e as ruas muito cruéis. E é verdade; quando você anda na calçada aqui, quilos de pessoas passam direto por você e ninguém se dá o trabalho de dizer "tenha um bom dia", o que sempre dizem na Califórnia e que eu pessoalmente acho esquisito; mas em Nova York, se você realmente pára por um momento num ponto de ônibus ou numa estação do metrô, numa banca de jornais ou para pegar uma pizza, se olha para alguém e pede ajuda, mal podem esperar para ajudá-lo! As pessoas em Nova York adoram falar sobre Nova York. Pare no balcão da pizzaria e pergunte como ir a algum lugar no Village. Cinco pessoas que estão lendo seus tablóides ou ouvindo rádio, ignorando todo mundo, de repente vão acordar e dar opiniões sobre diferentes modos de pegar o ônibus ou o metrô, ou que indicações dar ao motorista de táxi para que ele não tente enganar você, tomando-o por um turista e pegando o caminho mais comprido. O cara da banca de jornais em que pedi informação para saber como chegar à Senhorita Loretta e que até agora só me conhecia porque todo dia eu
comprava um pacote de chicletes a caminho do Idiotas do Village, praticamente queria me levar até lá. Estava tão animado por eu ter puxado conversa com ele... Uau. Isso é uma cidade perversa? Andei pela Madison Avenue com Pão-de-Mel enfiada na minha bolsa de designer que Nancy me deu no último aniversário, uma bolsa que a seu ver é totalmente chique e cara e para mim é uma limusine perfeita para a Pao-de-Mel. Era engraçado ver as vitrines de todos os estilistas badalados e os vestidos de noiva de alta-costura — só não é engraçado quando você pensa que pessoas como a Nancy passam fome para conseguir usar essas coisas. Depois de uns vinte quarteirões, as lojas chiques acabaram e a vizinhança mudou — a cor, as lojas, os prédios. Agora estávamos quase lá. Viramos a esquina de uma rua lateral e lá estava, a Grande Casa de Comidas da Senhorita Loretta, no térreo de um antigo prédio de arenito. Era o tipo de prédio tão velho e bacana que você podia imaginar que há duzentos anos alguma estranha garota colonial morou ali, com medo de que descobrissem que ela era uma bruxa — se já existisse arenito naqueles tempos. E adivinhem quem estava sentado na varanda de arenito escutando um rádio das antigas com seus parceiros: Luis. — Ei — disse eu. — Ei, você — disse ele quando me viu. Ficou de pé, desceu as escadas e veio para rua, acho que para seus amigos não ouvirem nosso papo. — Que está fazendo aqui? — Parecia embaraçado por me ver. — Tenho uma dívida cármica para pagar — disse eu. — Há? — Duas palavras: sinto muito. Um sorrisinho sem graça surgiu no seu belo rosto. Ele disse bem baixo: — É, eu também. A cena toda foi tão ruim, sob tantos aspectos... — Puxa, foi mesmo — disse eu, também falando baixo, como se fôssemos espiões. — Eu não devia ter ligado quando você estava com seus amigos, quando sabia que você se sentiria obrigado a vir e me manter longe de encrenca, porque tudo o que eu queria era encrenca com você. — E — disse ele —, bem, também não fui nenhum santinho. — Luis fez uma pausa e ficou me olhando, mas não era um olhar sacana, era mais de admiração e respeito. — Não achava que você fosse o tipo de garota que
viria até aqui só para se desculpar, sabe? — Você deve achar que sou mimada, Luis, mas não sou. — Estou vendo — disse ele. Sorriu para valer agora e meu coração derreteu, mas de um jeito vamos-ser-amigos, porque aquele sentimento sacana de quando fomos mais que isso não foi legal. — Então, quer pegar um pedaço? — perguntou ele. — Quer conhecer a melhor pizzaria subindo a rua? — Quero conhecer sua tia, a senhorita Loretta — disse eu. — Garota esperta — disse ele —, entre. O restaurante era no térreo, abaixo da varanda, tinha cortinas vermelhas de algodão penduradas nas janelas e belas toalhas nas poucas mesas. Para um recanto sem muito espaço num bairro afastado, estava lotado. Fui ao balcão onde uma negra esguia com cabelo grisalho estava mexendo na caixa registradora. — Ei, tia L, essa é a... você sabe, de Frank — disse Luis. Senhorita L me olhou de cima abaixo. — Está brincando! — exclamou ela. — Que ótimo conhecê-la, Cyd Charisse — acrescentou. De repente fiquei tímida e murmurei: — Obrigada, igualmente. — Dentro da bolsa, Pão-de-Mel estava se retorcendo e chutando. Tirei ela da bolsa e disse: — Essa é Pão-de-Mel; ela tem esse nome por causa do pão de mel que você fez e que Frank estava levando na mala, numa vez que encontrei com ele quando eu era pequena. Senhorita L não perguntou quantos anos eu tinha para estar com uma boneca. Ela estendeu a mão para Pão-de-Mel. — Prazer em conhecê-la, Pão-de-Mel — disse. — Nunca encontrei alguém com nome das minhas comidas antes. Estou honrada. Pão-de-Mel sorriu. Ela é uma bonequinha de pano doce que não está acostumada a receber um carinho desses de ninguém além de mim. — Conheço seu pai há muitos anos. Eu o conheço desde que ambos éramos crianças, isso é muito tempo — disse senhorita Loretta e fiquei aliviada por ela dispensar aquela história de sobrinha/afilhada/ou o que seja. — Ele sempre foi galinha? — perguntei. Ela riu e disse: — E como! Não é engraçado, eu sei, mas é verdade. Deus, você é a
cara dele. Deve deixar sua mãe louca! — Você colhe o que planta — disse eu. Senhorita Loretta levantou as sobrancelhas para mim. — Bem, todos fazemos escolhas e cometemos erros. E então aprendemos, amadurecemos e seguimos em frente. Interessante. A senhorita Loretta apontou para uma prateleira vazia numa das janelas: — Vê aquele espaço vazio lá? Minha boneca favorita de quando eu era menina ficava lá até recentemente. Seu nome era Flores e quem me deu foi uma tia lá da Jamaica. Ela era preta como a noite e usava um turbante. E juro que sabia até quando eu estava pensando em aprontar. Pão-de-Mel me deu um olhar do tipo "hummm". — Uma das minhas netinhas se encantou com ela um ano atrás, e agora a Flores está vivendo com ela. Então tem um espaço vazio só esperando a boneca certa, se você e Pão-de-Mel um dia acharem que precisam se separar. Fiquei um pouco ressabiada, mas Pão-de-Mel pareceu intrigada com a possibilidade. — Preciso ir ao Village encontrar Danny e Aaron. Mas vamos pensar nisso. Obrigada, senhorita Loretta — disse eu. Senhorita Loretta pegou um pão de mel feito em casa e embrulhou para mim. — Diga ao Danny que ele fa2 bolos de cinema, mas nunca vai fazer um pão de mel bom como o meu! — disse ela sorrindo. Pão-de-Mel e eu fomos embora satisfeitas.
Trinta e Dois Naquela tarde, quando cheguei ao Idiotas do Village, depois que a clientela do almoço já havia ido embora, Danny e Aaron não repararam na minha presença no café deserto. Estavam no chão, se agarrando, com beijos lentos e doces. Suspiro. Eu me lembro. Gostaria de pensar que se Siri e eu tivéssemos ficado juntos dez anos, ainda estaríamos apaixonados como Danny e Aaron. O legal é que Danny e Aaron não são sôfregos com seu amor; conseguem encontrar espaço para ficar juntos nos momentos mais inesperados. Não precisam ficar se pegando o tempo todo para provar como gostam um do outro. Apenas gostam. — Desculpe, mas eu podia ser um ladrão ou algo assim — anunciei. Eles se afastaram. Aaron saiu de cima de Danny, ficou de pé e disse: — Ei, me ajude a arrumar o palquinho para esta noite? — Agora mesmo! — disse eu. Aaron faz parte de uma banda descontraída chamada My Dead Gay Son, que é formada por profissionais, héteros e gays, que se conhecem desde a faculdade, que tocam juntos sempre que têm tempo e vontade, sem uma agenda particular, musical ou de qualquer tipo. O nome da banda foi tirado de uma frase de um filme dos anos 1980 pelo qual Danny e Aaron eram obcecados desde a escola. A frase "eu amo meu filho gay morto!" é dita pelo pai no funeral de seu filho campeão de futebol. O herói de futebol, que é um idiota homofóbico, é encontrado assassinado numa posição comprometedora com outro jogador de futebol. Eu disse que não me parecia um filme muito divertido e Danny retrucou, não interprete tudo tão literalmente, Cyd Charisse. Para Danny e Aaron, a frase do pai do filme lembra como seus próprios pais reagiram quanto ao relacionamento deles: meio que exageradamente tranqüilos e tolerantes, mascarando muita confusão e desconforto. Danny e Aaron estão sempre provocando um ao outro dizendo — Eu amo meu filho gay morto! — depois, fingem chorar aos prantos e acabam às gargalhadas.
Quando Aaron e eu nos ajoelhamos para arrumar o palquinho, meu irmão/confeiteiro/gênio entrou na cozinha para esfarelar um pedaço do pão de mel da senhorita Loretta e salpicar com ele um dos bolos da noite. — Ele vai sentir tanto sua falta quando você voltar para São Francisco — disse Aaron. — Amamos ter você aqui. Não me restavam muitos dias em Manhattan. Parecia que eu estava lá há muito, muito tempo. Na verdade estava ansiosa para voltar para casa, por mais que adorasse Danny e Aaron. Eu me perguntava se havia crescido e mudado durante meu tempo aqui — como eu saberia se não havia sinais físicos? Sabia que a idéia de viver na Bela Casa de Nancy não me seduzia muito, que eu provavelmente deveria aceitar o conselho de Danny e tentar fazer novos amigos na escola para não ter só uma amiga numa casa de repouso, e aceitar também a idéia de que eu e Siri não havíamos terminado, não ainda. Na verdade, na minha cabeça, talvez quisesse pensar numa maneira de começar tudo de novo. Talvez assim eu soubesse que mudei, pelo menos um pouco. Sabia que queria tentar com Siri novamente, queria tentar não como a mesma pessoa que fui na primeira vez: carente, sempre à espreita, desconfiando de tudo. — Danny provavelmente ficou feliz por eu não ser uma enjoada como sua outra irmã — retruquei. — Lisbeth não é tão má assim — disse Aaron defendendo-a. — Ela é só um osso duro de roer. — Quanto ao osso, tem toda razão. Mais tarde naquela noite, quando My Dead Gay Son estava tocando uma música antiga do Otis Reeding e eu estava servindo um cappuccino para um cliente, senti os braços do Danny embaixo dos meus me dando um abraço por trás. Não sou uma pessoa tão afetiva, mas fechei os olhos por um segundo para aproveitar o momento, enquanto Danny enfiava a cabeça no meu pescoço e sussurrava: — Estou tão feliz por você ter aparecido, CC. — Pela primeira vez, me senti totalmente confortável no tempo e no espaço, grata por ter um relacionamento seguro e terno com um cara, mesmo que ele fosse meu irmão e eu só o conhecesse há algumas semanas. Nosso momento foi interrompido quando erguemos os olhos e demos com o pai verdadeiro, Frank, de pé diante de nós, perto da máquina de
expresso. Danny não tirou seus braços de polvo de mim, só disse: — Jantar, pai? Frank corou um pouco, acho que por ver o afeto que havia entre mim e Danny. Ele nunca havia estado com nós dois juntos e não sabia que tínhamos ficado tão próximos nos momentos que passamos unidos, quase todo dia, quando ele estava trabalhando ou se divertindo com clientes, mulheres ou o que seja, mas em geral quase não ficando comigo. E vim até aqui especificamente para conhecê-lo. — Bem, olá — disse ele, meio sem jeito. — Vim ver se eu podia roubar Cyd Charisse para jantar, Ela já passou tanto tempo aqui que eu mal consegui vê-la. Danny me chutou por baixo do balcão para que eu não dissesse algo rude, como ia fazer. Algo sobre ser hipócrita. — Ela adoraria! — gritou Danny, mais alto que a música. Desta vez, fui eu que o chutei. — Já comi — disse eu. — Por que vocês não se sentam e eu trago uma sobremesa? — propôs Danny. — Seria ótimo, filho — disse Frank e tive de me segurar para não rir daquela formalidade. Danny trouxe um pedaço perfeito de bolo com farelos de pão de mel e chantili em cima. Só um pedaço, para que Frank e eu tivéssemos de dividir, e era impressionantemente gostoso, mesmo dividindo. Frank bebeu chá em um elegante jogo de xícara e pires, e eu peguei pesado: um café duplo naquela hora da noite, totalmente cafeínado, com leite. My Dead Gay Son estava tocando clássicos do jazz, então era mais fácil de ouvir do que quando a banda estava tocando covers do Sex Pistols. Frank disse, antes de um gole no chá de ervas: — Cyd Charisse, você é uma garota adorável. Um pouco, ha... impetuosa, mas adorável. Quero que saiba disso. Sua mãe e Sid fizeram um belo trabalho. — Acho que eles contestariam essa observação, Frank. Mas obrigada. — Não era muito vindo dele, mas era alguma coisa. Na verdade, foi muito, muito, muito bom ouvi-lo dizer essas palavras, se bem que eu não ia deixar ele perceber isso, não depois de ele ter me chamado de
"impetuosa". — Você entende por que tive de fazer as escolhas que fiz? — perguntou ele. — Entendo — disse eu, mas não de forma muito convincente. Frank puxou a carteira e começou a mexer nas fotos. Embaixo de uma foto de lisBETH lá pela quinta série, ele tirou uma foto de Nancy, cabelo loiro amarrado com uma fita, usando um avental de hospital e me segurando no dia em que nasci. O rosto dela estava tão feliz, jovem e lindo, que quase não a recoheci. Embaixo dessa foto tinha uma outra, menor: era eu no jardim-da-infância, no ano cm que nos mudamos para São Francisco. Meu cabelo preto já era comprido, com cachos presos em rabo-de-cavalo e cílios grossos, pretos e recurvados, contornando meus olhos amendoados. Eu não estava sorrindo, mas nunca sorrio em fotos. Lembro que estava muito feliz no dia em que aquela foto foi tirada porque papai Sid tinha ido para escola preparar hambúrgueres para o churrasco de Halloween, naquela tarde, e fiquei muito orgulhosa de ter um pai para mostrar na escola. Amei aquele dia. Era bom saber que por todos esses anos em que fiquei pensando em Frank, querendo conhecê-lo, pelo menos um pedacinho do seu coração ficou comigo. Pensei no que a senhorita Loretta havia dito sobre crescer e mudar, aprender com os erros. — Se tivesse de fazer tudo de novo, você faria? — perguntei. — Provavelmente — disse Frank. Eu amava muito sua mãe. —Ao ouvir essas palavras, fiquei feliz pela Nancy, mesmo achando que ele só estava dizendo o que era a coisa certa para sua filha bastarda. Nancy era jovem e bonita, ele era mais velho e ocupado. Merdas acontecem. Não acho que alguém como Frank seja realmente capaz de amar outra pessoa a ponto de fazer sacrifícios e escolhas difíceis que fizessem ele ficar mal perante os outros. — Mas não fui forte o bastante para fazer o que era necessário para que pudéssemos ser uma família — acrescentou Frank. — Seu pai teve de vir para fazer as escolhas difíceis. — Senti um tantinho de apreciação vindo da auto-percepção de Frank. — Você pensava em mim, tipo, nos meus aniversários? — perguntei. — Não houve um dia desde que nasceu que eu não tenha pensado em você — disse ele. — E quando estiver pronta para a faculdade, vai poder
usar a poupança que fiz para você, depositei dinheiro todo ano no seu aniversário, para seu futuro. — Não preciso de dinheiro — disse eu. Odeio quando os adultos entram nesse assunto. É tão feio... — E para sua informação, talvez tivesse sido muito mais legal você mandar um cartão ou algo assim todo ano, para que eu soubesse que pensava em mim. — Sua mãe e eu concordamos que seria melhor para você que não tivéssemos contato, para poupá-la da confusão de ter dois pais, ainda mais que um deles não podia participar da sua criação — disse Frank. — Legal vocês tomarem essa decisão por mim. — Você era uma criança, não podia saber o que fazer. Concordamos que era melhor esperar até estar mais velha, até que quisesse algum contato, que pudesse entender. A resposta era tão fraca e insatisfatória, mesmo sendo verdade... — Não acho que vá para a faculdade — disse eu. — Talvez você possa dar o dinheiro para Danny e Aaron. Eles mal conseguem manter esse negócio aberto com o custo deste bairro. — O dinheiro é seu para fazer o que quiser, quando tiver idade legal para assumir a responsabilidade. Essa não era uma cena que terminaria em abraços de polvo, mas consegui dizer: — O que eu precisava era de tempo, Frank. E consegui, estou feliz por isso. Precisava conhecer você. Nunca mais vou precisar me perguntar "e se". Eu sei. Frank baixou a cabeça e ficou mexendo o chá com ar distraído. Acho que estava feliz por My Dead Gay Son ter começado a tocar uma música do Led Zep numa altura ensurdecedora.
Trinta e Três Rhonda lisBETH chegou para nosso almoço ao meio-dia em ponto, usando uma bermuda branca cara que batia acima de seus joelhos ossudos, uma pólo verde, tênis brancos baixos e aquelas meias que têm um pompom atrás num tom de verde combinando com a camisa. Seu belo cabelo preto com mechas brancas estava preso sob uma viseira branca. Nem mesmo um "olá". Ela olhou pra mim e disse: — Está usando isso? — Quem poderia imaginar que lisBETH teria uma crise como as de Nancy. Olhei para minhas botas de combate, minha minissaia preta e minha camiseta de malha do New York Knicks sem mangas, tamanho masculino e perguntei: — Qual é o problema? — Os censores da moda deviam agir sobre ela, não sobre mim. — Não acha que essa roupa é muito... reveladora? — Só se eu quiser, lisBETH. — Fiz um barulhinho com a boca. — Como assim? Fiz uns movimentos com as mãos e ergui as sobrancelhas como se dissesse, isso parece familiar? LisBETH fez cara de ponto de interrogação. — Ah, deixe pra lá — disse eu. Ela passou por mim, foi até a mesa e soltou a bolsa que carregava. Virou-se e anunciou, como se fosse um general: — Trouxe uma coisa para você. Admito que estava curiosa sobre a bolsa que parecia bem velha. LisBETH não tinha cara de quem passava a noite fora, numa farra. Ela abriu o zíper da frente da bolsa e meio que esperei que tirasse dali um terrível vestido de formatura do tipo princesa-vômito, mas em vez disso tirou um incrível vestido chinês de seda antiga, justinho, de um lilás pálido, bordado com pequenas flores marfim e jade. Era simples, elegante, maravilhoso. — Não entendi — disse eu.
LisBETH pegou o vestido e o pôs na minha frente. — Como pensei, o tamanho certo — disse ela. Olhou para mim, eu tenho uns dez centímetros a mais do que ela, e disse — Esse vestido pertenceu à minha... à nossa avó, mãe do papai. Vovó Molly era uma figura. Tinha uma loja de bebidas durante a lei-seca, casou cinco vezes, xingava como um marinheiro e fumava três maços de cigarro por dia. Deus, ela era uma mulher de negócios incrivelmente astuta. Fez uma fortuna na bolsa de valores com seus divórcios. Você parece muito com ela, sabe? Fiquei espantadíssima quando vi você pela primeira vez. Acho que papai também vê isso, deve aterrorizá-lo. Mas ele merece. Essa deve ser a sua cruz: ter uma filha secreta que é a cara daquela mãe de cuja sombra ele vem tentando se livrar a vida inteira. Comecei a ver o que Danny e Aaron queriam dizer ao afirmar que lisBETH nem sempre era tão má. — Tem uma foto dela? — perguntei. — Não comigo. Quando você for ao meu apartamento, eu mostro. — Talvez no livro de lisBETH, eu estivesse começando a me tornar também uma personagem não tão desprezível. — Vovó Molly era excepcionalmente alta, como você, e tinha uma certa elegância, mesmo que involuntária — disse ela. — Esse era seu vestido favorito. Eu o limpei e guardei por anos, mas sabe de uma coisa? Quando pego esse vestido ainda posso sentir o cheiro dos cigarros Lucky Strike dela! Posso praticamente vê-la de pé agora, em você, com um cigarro numa das mãos e com o dedo da outra mão distribuindo tarefas para nós. "Vá me fazer um drinque!" "Leve o Sr. Poodle para passear!" — lisBETH soltou uma risada, algo que eu não considerava possível nela. — Vovó Molly queria que eu ficasse com esse vestido, mas vamos ser honestas, nunca vai me servir, não importa o quanto eu engorde ou emagreça. Esse vestido foi feito para uma adorável e leve garota alta. — Pausa dramática. — Como você. Olhei bem nos olhos dela e disse: — Obrigada. Ela reconheceu o momento e disse, sem nenhum traço de sordidez: — De nada. Achei que podíamos comprar sapatos para usar com o vestido. Que tal? — Claro, ótima idéia — disse eu.
— Cyd Charisse, para alguém com esse ar de garota rebelde, devo dÍ2er que você tem maneiras impecáveis. — Não é verdade! —exclamei enquanto saíamos pela porta. — Devemos fazer a primeira parada na Gap? — perguntou ela no elevador com um tom esperançoso. Quando fiz cara de filme de terror, ela acrescentou: — Mas achei que adolescentes gostassem de comprar roupas na Gap! — Ela provavelmente tirou aquela informação de um guia do tipo Como ser mentora da sua irmã adolescente ilegítima. — Não esta aqui! Sou mais do tipo que gosta de descolar coisas baratinhas na Target. Mas sapatos bacanas, isso eu posso comprar. — Se você diz... — falou ela e, sabe de uma coisa, saindo juntas eu quase podia afirmar que ela estava se divertindo. E eu também. Quando andávamos em direção à Madison, perguntei: — Então, lisBETH, algum carinha especial na sua vida? Ela suspirou, bem forte, devo dizer. Eu daria um 8.6 para o suspiro dela. — Não, todos os homens que conheço ou são gays, ou são casados, ou são completos imbecis, ou não têm dinheiro — disse ela. — Às vezes os sem dinheiro são os mais legais — observei. — Não dá para ter um apartamento num bairro agradável e criar uma família sendo só alguém "legal", Cyd Charisse. — Dá sim, é só querer — disse eu. — Ah — disse ela, rindo, um pouco amarga, um pouco impressionada. —Você é ingênua. Quisera eu ser tão segura das coisas. — Ela parou de andar e virou-se para mim. — Ouça, namorei um garoto na faculdade. Cara legal, de boa família, não excepcionalmente inteligente ou ambicioso, mas nos dávamos bem. Quando estávamos para nos formar, ele queria casar. Eu queria arrumar um emprego em Wall Street e fazer meu MBA. Achei que tinha todo o tempo do mundo. Disse a ele que éramos jovens demais, que era melhor esperar, conhecer outras pessoas. Era meu pai, dizendo o que fazer! E sabe de uma coisa? Aquele namorado casou com outra pessoa, engraçado, eu não tinha idéia de que ele seria o último namorado sério que eu teria. Nem imaginava que a piscina ia secar tão rápido. Ui! — LisBETH, acho que se você quisesse mesmo conhecer alguém,
você poderia. Existem serviços de encontros — disse eu. — Você não entende. Se eu casar, tem de ser com alguém que ganhe tanto quanto eu, ou mais, Que tenha uma carreira de respeito. Uma profissional que está destinada a ser diretora de uma grande firma em Wall Street não pode sair com qualquer um. — Isso é uma regra sua — disse eu, recomeçando a caminhar. — Se eu fosse um pintor ou um eletricista bacana, com um coração de ouro, pensaria duas vezes antes de chamá-la para sair, sabendo que pensa desse jeito. — Ah, como você é esperta! — exclamou ela. — De qualquer forma, o que importa? Eu me resignei a ser solteira e ter uma maravilhosa carreira que me leva ao mundo todo. Se eu fizer 39, ainda solteira e sem filhos, bem, dá para ter uma família sem ter um marido. Você, mais do que qualquer um, sabe disso. Essa é Rhonda lisBETH, acho. Dá com uma mão e tira com a outra. De repente entendi aquela queda dela pelo Aaron. Pensei que Aaron e seus nadadorezinhos deviam tomar cuidado. Quando o relógio biológico de Rhonda lisBETH der as 12 badaladas, vão lhe pedir para fazer um favor muito especial, um favor que vai manter "tudo em família", literalmente. Abandonei essa idéia e disse: — Sabe, talvez agora seja uma boa hora para ir à Gap. — Porque mexer em roupas na Gap certamente era uma boa forma de mandar aquele deslize de lisBETH para a Rua das Esquisitices. Claro que havia uma Gap a alguns quarteirões, o que é comum nesse país. Sabe aquela sensação estranha de ser observada? Era a sensação que eu tinha enquanto lisBETH e eu estávamos passando pelos cabides de calças caqui na frente da loja. Então lisBETH se aproximou e disse: — Não olhe agora, mas tem um cara bem tesudinho do outro lado da vitrine que não tira os olhos de você. Estranho lisBETH ter a palavra "tesudinho" em seu vocabulário. Bem, é claro que eu tinha de olhar! E como queria não ter olhado... Lá fora do outro lado da vitrine da Gap, estava Justin.
Trinta e Quatro Assim que nossos olhos se encontraram, não havia mais volta. Agora ele não estava olhando pela vitrine para alguém que podia ser eu. Era eu. Que sorte eu tenho. Ele entrou. Parecia menor do que eu me lembrava, embora ainda fosse bonito, daquele jeito que jovens atores são em filmes sobre garotos rebeldes que estão à beira da masculinidade e provavelmente morrerão de forma trágica e sem sentido. Ele tem uns olhos profundos em que a gente pode se perder, maçãs do rosto proeminentes e lábios grossos, sensuais, extremamente beijáveis. — Uau — exclamou ele. — Você está ótima. Você quer dizer que pareço feliz e satisfeita e não torturada e em pânico? Fiquei sem fala. Quando não respondi, Justin olhou minha camiseta de basquete e disse: — Não sabia que você era fã dos Knicks. — Vocês se conhecem? — perguntou lisBETH, animada. Justin não era apenas lindo, estava usando uma camisa de hóquei da escola mais metida de toda Connecticut. Ele se apresentou. — Ah, conheço esse nome — disse ela. — Sua família mora em Greenwich, certo? Justin sorriu daquele seu jeito convencido. — É — disse ele. — Mas estou passando o fim de semana no nosso apartamento aqui na cidade. — Ele se virou para mim e perguntou: — Como você está? Como anda? Recebeu as mensagens que deixei com sua empregada que tem aquele sotaque estranho de Celine Dion? — Hum — murmurei e dei de ombros. — O que está fazendo aqui? — perguntou ele. Havia uma bela menina com um longo cabelo loiro e liso preso por uma tiara que nos olhava, meio nervosa, do outro lado da vitrine. Muito provavelmente estava usando uma saia de pregas, sapatos de lacinho com meias e o perfume
Love's Baby Soft. — É sua namorada? — perguntei, apontando para ela. Ele não respondeu, o que significava que sim. Disse apenas: — Pensei muito em você. Ponto para lisBETH. Ela deve ter percebido que era uma cena desconfortável, com um histórico ruim; então, afastou-se discretamente para olhar os jeans. Eu só tinha uma coisa para dizer a Justin. — Você me deixou ir lá sozinha. E pior, pensei, continuei a dormir com você depois disso. E provavelmente teria continuado por mais tempo ainda se o diretor não tivesse nos encontrado, nos expulsado e me mandado de volta para casa, onde eu iria descobrir o que é o verdadeiro amor, gentileza e gente legal. Os belos olhos de Justin se desviaram, depois voltaram a me fitar. — Cyd, quando liguei pra você, o que queria dizer era... — Ele parou, então disse: — Não posso acreditar que esteja aqui. Achei que tinha se mudado para Frisco. — Ninguém chama São Francisco de Frisco. — Ok. — O que queria dizer? Ele não conseguia me olhar nos olhos, mas disse. — Me desculpe — murmurou. Juro que meu coração estava batendo tão rápido que pensei que ia sair pela boca e cair como um borrão vermelho numa pilha de camisetas de algodão brancas. Talvez ele tenha dito, mas eu não ia lhe dar os parabéns ou agradecer por ele admitir que era o babaca do século. Chamei lisBETH. — Podemos ir — e, graças a Deus, ela não fez perguntas. Saímos sem nos despedir de Justin. Sem me virar, mostrei o dedo médio pra ele enquanto saíamos da loja.
Trinta e Cinco LisBETH: — Quer falar sobre isso? Eu: — Não. LisBETH: — O que foi aquilo? Eu: — Nada. Só um carinha. LisBETH: — Se precisar conversar... Eu: — Estou bem. Obrigada. Pensando, apenas ande, não pense, apenas ande, não pense. Eu não estava bem. Pedi para terminar nossa aventura das compras, dizendo que estava cansada por causa da umidade e queria cochilar. Quando voltei para o meu quarto nas Suítes Corporativas Papai Verdadeiro, fechei as janelas e me meti na cama com Pão-de-Mel, deitada de lado, encolhida, me perdendo no silencioso zumbido do ar-condicionado. Frank tinha ido passar o dia em Nova Jersey por causa de um torneio de golfe que sua empresa estava patrocinando. Não que eu fosse procurá-lo para conselhos paternos. LisBETH foi ótima, na verdade. Ela não se intrometeu, só disse: — Vou estar em casa se precisar de alguém. — Acho que ela quase queria que eu desabafasse, que lhe desse algo substancial, mas eu não podia. Nem liguei para Danny. Acho que é uma coisa e tanto conhecer sua família biológica e estabelecer laços com eles, mas no frigir dos ovos, algumas semanas de contato não criam grandes confianças, pelo menos não em momentos como este. Talvez a única vez na vida em que me senti mais sozinha foi no dia que o táxi veio e me levou da clínica para casa. Justin não pôde sair de seu jogo de hóquei com o maior rival da nossa escola. Mas também não pôde se dar o trabalho de trazer o dinheiro para ajudar, então não sei por que fiquei surpresa ou decepcionada. Já fazia quase um ano daquela merda toda. Começou em setembro, quando voltamos para o colégio interno depois de um verão separados e
não conseguíamos tirar a mão um do outro. A primeira vez que nos vimos juntos nem pudemos esperar para usar proteção. Não nos importamos. E na manhã seguinte eu sabia: problemas. Apenas senti. No começo de outubro, não podia negar as mudanças no meu corpo, aumento dos seios, náusea de manhã, e a sensação cada vez maior de pânico e histeria que não podia dividir com ninguém. Eu tinha gostado de ser namorada de Justin. Não queria esse problema. Não vou dizer que me iludi achando que estivéssemos apaixonados — mesmo naquela época eu sabia a diferença entre amor e tesão, embora ainda não tivesse vivido a parte amor —, mas gostava de estar com Justin, com ele eu era alguém. Eu não era a garota esquisita, de rosto fechado e manerismos estranhos. Era uma menina bonita que as pessoas escolhem no time e com quem se sentam para almoçar, a garota agarrada à jaqueta esportiva do cara que era praticamente o mais popular da escola. Eu era admirada. Podia ter ficado sem drogas e álcool, mas isso fazia parte do pacote Justin, era um preço que eu queria pagar. Pode acreditar, eu era o tipo de garota que se eu visse hoje em dia na rua, diria "Eca!" Quando contei a ele, a primeira coisa que me disse foi: — Mas você sabe que estou planejando ir para Princeton. Meu pai vai me matar por isso. — E não: — Como você está? — Nem: — Como nós vamos cuidar dessa situação? — Ele só pensava em si mesmo. A única coisa que fez por mim foi conseguir que uma garota de 18 anos me emprestasse sua certidão de nascimento. Dei a ele uma foto minha e ele arranjou uma identidade falsa, com o nome dela. Então tecnicamente está registrado que uma certa Allison Fromme, de 18 anos e dois meses, apareceu sozinha na clínica com uma certidão e uma identidade e não precisava de nenhum tipo de permissão familiar para arrancar o bebê indesejado de seu corpo. Mais tarde, a moça da clínica disse: — Tem alguém para levá-la em casa? — E apontei para um carro estacionado lá fora, que eu sabia que estava esperando uma garota que tinha entrado na mesma hora que eu. — É minha carona — disse, e teria saído correndo se a dor na minha barriga não estivesse praticamente me impedido de andar. Então eu meio
que me arrastei até uma loja 7-Eleven do outro lado da rua e chamei um táxi para me levar de volta para a escola. E devo dizer que não foi a primeira vez que o motorista pegou uma garota naquele 7-Eleven e a levou de volta para aquele chique colégio interno. Bastava ver o jeito como ele olhava meu rosto pálido pelo espelho e perguntava: — Você vai ficar bem? Foi a única vez que chorei, no banco de trás do táxi daquele estranho, quando percebi que o taxista estava mais preocupado comigo do que Justin. Engraçado pensar que Nancy me mandou para o colégio interno pensando que ia me endireitar, que eu encontraria as pessoas certas e começaria a dar valor a tudo o que tenho. E, no final, o que me endireitou e me deu esperança e vida novamente foi ir para casa.
Trinta e Seis Acho que fiquei jogada na cama, em coma, por horas. Perdi a noção do tempo tentando afastar as lembranças dolorosas, tentando não pensar em nada. Finalmente adormeci por volta das oito da noite e quando acordei às oito do dia seguinte, das minhas doze horas de sono, não me senti totalmente descansada. Eu havia me revirado a noite toda. Frank entrou no meu quarto e perguntou: — Está bem, menina? — Passou o telefone para mim com a mão no bocal. Sussurrou, "sua mãe". Acho que estava tentando ser o Senhor Bacanão, me dando a opção de balançar a cabeça caso eu quisesse que ele dissesse a ela que eu ainda estava dormindo. Entretanto, de alguma forma, a idéia de falar com Nancy não era perturbadora; era quase confortante. Peguei o telefone e, sonolenta disse "oi". Achei que ela também estaria sonolenta — eram cinco da manhã na Califórnia. Mas não, ela estava toda animadinha: — Adivinhe uma coisa? Eu não fui grossa, só disse "hum?", o que já era bom demais para nosso "trato". — Estou em Nova York! Chegamos ontem à noite. Estamos no Hotel Plaza. Papai veio a negócios por alguns dias e pensei em vir também. Talvez pudéssemos sair juntas e comprar roupas para a volta às aulas! Acho que nós duas sabíamos que as compras eram uma desculpa esfarrapada: ela simplesmente era incapaz de me dar três semanas sozinha, mas achei curioso que, depois dos acontecimentos da véspera, eu estivesse meio feliz por ouvir a voz animada da Nancy. O engraçado era que, depois de lidar com a história de Justin em companhia de pessoas que, apesar de serem sangue do meu sangue mais pareciam estranhos, meio que senti saudades dela. Ela disse que mandaria um carro me pegar em uma hora se eu estivesse pronta. Eu disse que pegaria o metrô e a encontraria em duas horas.
Quando cheguei lá, ela veio abrir a porta e se atirou em cima do meu corpo rijo me dando um abraço de urso. — Oi, querida! — gritou ela. Não sei como ela consegue ligar e desligar as coisas desse jeito. Tem uma capacidade impressionante de esquecer todas as brigas de uma hora pra outra, como se o castigo em Alcatraz e me proibir de ver Siri pudessem ser desfeitos assim; como se, depois de duas semanas e meia em Nova York e um abraço gigante, estivéssemos zeradas, tudo estivesse perfeito e nunca tivesse acontecido nada errado para que chegássemos a esse ponto. Ainda assim, admito, eu estava feliz por vê-la. E ela estava vestida de acordo. Estava usando calças capri brancas justas, com uma blusa de seda sem mangas e sandálias abertas brancas, mostrando as unhas do pé pintadas de cor clara. Estava linda e parecia feliz de mostrar seu corpo magro e malhado numa roupa de verão de bom gosto e fresquinha, coisa que não dá para fazer no frio de São Francisco. — Onde está o papai? — perguntei. Ash e Josh ficaram em São Francisco com Leila e Fernando, o que significa que eles provavelmente iriam se comportar por alguns dias, comeriam comida normal c iriam para cama na hora certa. — Ele está lá embaixo no saguão numa reunião de negócios. Vai voltar logo para nos levar para almoçar. Mal pode esperar para encontrá-la. Sentamos no sofá de babados. — Então — disse ela. — O que você achou do Frank? Dei de ombros. — Ele é legal. — Se Nancy sentiu um momento de triunfo, seu rosto não revelou nada. — Quando eu falei com ele esta manhã, ele disse que sua filha lhe contou que vocês encontraram o Justin ontem. Meu coração acelerou. Assenti, mas não disse nada. — Ele disse que ela achou que você ficou bem chateada depois disso. Senti meu corpo completamente frio e duro. Era a única forma de evitar que ele se partisse em pedacinhos. Nancy insistiu mais um pouco, como só uma mãe pode fazer. — Quer falar sobre isso?
Se ela não tivesse se inclinado para mexer no meu cabelo, eu poderia não ter desmontado como fiz. Mas de alguma forma o toque suave e terno da única pessoa no mundo que pode fazer você se sentir segura e amada, apesar das divergências, me fez começar a chorar. Não fiquei soluçando e tudo o mais; não, foi pior que isso: as lágrimas simplesmente escorriam pelo meu rosto, sem que eu pudesse controlá-las. Nancy me puxou para si, surpresa. — Querida! Não sabia que era tão sério. — Pôs minha cabeça no seu ombro e mexeu no meu cabelo. — Conte, Cyd Charisse, me conte o que aconteceu. O que há de errado? Não consegui segurar. — Ele me deixou ir lá sozinha. — Lá onde? Minha boca foi mais rápida que meu cérebro: — Na clínica. Pronto, eu disse. Se ela iria me punir ou me torturar com outra sentença de encarceramento em Alcatraz, que fosse assim. Em vez disso, ela me afastou um pouco para poder me olhar bem nos olhos. Seu rosto estava pálido como o meu. — É o que eu estou pensando? — perguntou ela. Assenti. Agora eram seus olhos que estavam cheios de lágrimas. Recuei um pouco, pensando que ela ia começar uma daquelas cenas de gritaria, mas em vez disso ela me abraçou de novo e meio que ficou me embalando. Estávamos as duas chorando. — Aquele bostinha — sussurrou ela. Depois que nossas lágrimas secaram, nos sentamos juntas em silêncio por alguns minutos, assimilando aquele momento, nos perguntando sobre as conseqüências do meu segredinho ter sido revelado. Quando nos separamos, estávamos ambas calmas. Tínhamos chorado o suficiente. Pode acreditar, me senti melhor do que nunca, aliviada, mais leve, mesmo sabendo que ela estava prestes a descontar em mim. Nancy sentou no divã, diante do sofá, para me olhar. Nossos joelhos se tocavam e ela pegou minhas mãos nas suas. — Devia ter me contado. Eu podia ter ajudado você. — Podia mesmo? — perguntei, sem acreditar.
— Sabe, Cyd Charisse, temos nossos problemas. É normal entre mães e filhas, especialmente na sua idade. Mas aconteça o que acontecer, você é minha filha e estou aqui para ajudá-la, para protegê-la. — Não está brava? — Claro que estou, não se engane! — Estava mesmo. Seu rosto pálido estava vermelho e inchado por causa das lágrimas e da raiva e sua maquiagem perfeita agora estava borrada. — Vamos cuidar disso quando você voltar para casa. Vamos ao ginecologista e a um terapeuta familiar falar sobre esses assuntos. Mas o que está feito está feito. Não posso desfazer. Mas uma coisa eu lhe garanto: para começar estou horrorizada por você ter passado por essa situação, mas quero que entenda que quando o assunto diz respeito a sua saúde e seu corpo, você não pode nunca ter medo de pedir minha ajuda. É importante demais. Sempre vou ajudá-la e apoiá-la. Essa era a última reação que eu esperava da Nancy. Mesmo a idéia de ir à terapia com ela não invalidava o fato de ela estar sendo bacana e compreensiva com essa coisa toda. De repente, deu o estalo. — Você não teve ajuda nenhuma quando ficou grávida de mim, teve? — perguntei. — E por isso que quase nunca vemos seus pais em Minnesota ou falamos com eles? — É — disse ela. — Tem muito a ver com isso. — Você pensou em fazer um aborto quando descobriu que estava grávida de mim? — perguntei. O que admiro em Nancy é que ela sempre é direta. — Pensei. Até cheguei a ir a uma clínica. Duas vezes. — Frank foi com você? — Foi. — E por que não fez? — Na hora h, eu simplesmente não consegui. Sabia que seu pai nunca se casaria comigo, sabia que estava fazendo falsas promessas, sabia que me ajudaria financeiramente, mas às escondidas. Eu sabia que não podia fazer nada a esse respeito. Mas não consegui. Acredite, sofri muito. — O que a fez mudar de idéia? — Talvez você fique chocada, mas decidi que ia dar você para
adoção. Isso era um choque. Mesmo eu não sendo o membro mais feliz da nossa família, não conseguia me imaginar fazendo parte de outra. — E por que não fez isso? O que a fez mudar de idéia? — Querida, já se perguntou por que tem o nome de uma estrela de cinema? — Na verdade não — disse eu. — E apenas meu nome. Achei que fosse porque você era fã dela. — E era. Mas há outra razão. Já estava tudo pronto para a adoção. Os papéis haviam sido assinados, os pais escolhidos. Mas insisti em escolher seu nome. Escolhi Cyd Charisse porque queria poder encontrar você mais tarde, e queria que tivesse um nome tão diferente que não pudesse haver engano quando a encontrasse. Mas então, depois do parto, puseram você no meu colo, e não consegui largá-la. Apenas não conseguia. Sabia que por mais que me custasse, arrumaria uma forma de ficarmos juntas, de sermos uma família. Quando achei que minhas lágrimas haviam acabado, senti um novo suprimento rolando pelo meu rosto. — Mãe, nem sempre nos damos bem, mas estou feliz que seja minha mãe — disse eu. — Não queria nenhuma outra mãe. Ela pegou minha mão e a esfregou no seu rosto. — Isso significa mais para mim do que qualquer coisa que você pudesse dizer — murmurou ela Mais tarde, quando papai Sid voltou ao quarto do hotel, me encontrou deitada no sofá, com a cabeça no colo da Nancy. Ela estava me fazendo cafuné enquanto eu descansava. Papai Sid nos viu e checou o número do quarto para se certificar de que estava no lugar certo. — Nossa, vocês são uma visão e tanto para meus olhos cansados! — exclamou ele. — Você é que é?! — disse eu, pulando para abraçá-lo. — Pequeno rebelde — acrescentei. Nancy foi para o banheiro, acho que para chorar sozinha. Me sentei com papai Sid e perguntei: — Como eu era quando pequena? — Engraçada, doce, brava e terrível — respondeu ele.
— Como Ash e Josh? — perguntei. — É — disse ele. — Só que não tão barulhenta. Quando Nancy disse que sabia que faria o que fosse necessário para sermos uma família, percebi que ela estava se referindo a papai Sid. — Eu devia precisar mesmo de um pai — disse a ele. Papai Sid me deu um daqueles olhares como nos comerciais onde o pai manda a filha para a universidade e o momento é de orgulho e de tristeza ao mesmo tempo. — Sabe — disse ele —, eu também precisava muito de uma filha.
Trinta e Sete Na minha última noite em Nova York, depois que Sid e Nancy voltaram para São Francisco, o clã todo da família biológica do Frank se juntou para jantar num restaurante bem chique. Consegui usar meu vestido novo-velho especial que pertenceu a Molly, avó de lisBETH e Danny (e minha também, acho), e que ficou certinho em mim. Fomos ver como nos saímos como uma família de verdade. Entediante é a primeira palavra que me vem à cabeça. Montes de — Então, Cyd, qual é a primeira coisa que você vai fazer quando voltar para São Francisco? — E — Está ansiosa para voltar às aulas? — Você sabe, o de sempre: perguntas idiotas porque as pessoas não têm nada a dizer umas às outras, mas também não têm nada contra as outras, o que já é alguma coisa, pelo menos para essa família. Vendo lisBETH tentar não lançar olhares para Aaron foi hilário, e observar Frank tentando ser discreto observando todas as mulheres em belos vestidos e Danny dando chutinhos em mim por debaixo da mesa, bem, foi tudo bonitinho e bom, mas minha cabeça estava em outro lugar: cerca de cinco mil quilômetros distante, na cidade onde as pessoas deixam seus corações. Eu estava ocupada pensando no meu encontro com Sid e Nancy, quando passamos o dia inteiro juntos sem brigar, mas falamos do futuro. Sid não ficou bravo quando eu disse que não estava interessada em faculdade e o que eu queria era ser barista, pelo menos por um tempo, talvez ter meu próprio café algum dia, como Java e Danny. Disse a eles que não me importava de abandonar a escola no último ano e arrumar um trabalho. Papai Sid disse "sem chances", mas fizemos um acordo. Vou para a escola meio-período para poder trabalhar sem parar de estudar; e vou passar três tardes por semana no escritório da cafeteria da sua empresa, aprendendo sobre estoques e orçamentos, e nas outras duas tardes serei voluntária na casa de repouso da Pão-Doce. Todos concordamos que se eu fosse para um curso técnico não seria nenhuma tragédia para as partes envolvidas, mas voltaríamos ao assunto depois do Natal. Nancy concordou
em me deixar andar de ônibus e não ter um motorista, mas os dois disseram que não posso provocar Fernando por causa da Pão-Doce. Boa ajuda é difícil de arrumar, dizem eles. Além do mais, eles o consideram um amigo. Eu disse que eu também, mas por favor não contem isso a ele, porque não quero que ele fique muito convencido. A parte mais interessante do nosso dia foi quando me falaram de Siri. Disseram que ele apareceu lá em casa logo depois que vim para Nova York. Disseram que ele soube por Pão-Doce que eu estava em Nova York e veio acertar as coisas com Sid e Nancy. Pediu desculpas, assumiu toda a responsabilidade pelo que tinha acontecido e disse que esperava que eles não se aproveitassem do fato de sermos jovens e idiotas. Nancy tentou não rir quando relatou essa última parte, e chamou ele de "Siri" e, não de aquele garoto. Perguntei se isso queria dizer que eu estava livre da condicional, e Nancy disse "Vamos ver", mas por trás dela papai Sid fez que sim com a cabeça. No táxi, voltando do jantar com minha família biológica, perguntei ao Frank se a gente podia parar na Grande Casa de Comidas da Senhorita Loretta. Ele não pareceu se importa e disse "claro, por que não". Quando chegamos lá, corri para dentro e encontrei a senhorita Loretta. Ela apontou para a prateleira vazia. — Você e a Pão-de-Mel estão prontas para se separar? — perguntou ela. Balancei a cabeça. — Não, Pão-de-Mel não é só uma boneca de infância. Ela é parte de mim como meus braços, minhas pernas, meu coração. Só queríamos nos despedir. Valeu mesmo, por tudo. Senhorita Loretta sorriu. — Entendo — disse ela. Acho que entendeu mesmo. É por isso que Pão-de-Mel e eu achamos ela o máximo. Pão-de-Mel e eu prometemos a todos que faríamos uma nova visita no próximo verão. Danny foi quem ficou mais triste e disse: — Sempre vai ter emprego aqui pra você. Frank disse: — Sempre haverá um lugar para você em Nova York conosco,
quando quiser. Eu disse "obrigada, gente boa", e lisBETH disse: — Ela tem mesmo boas maneiras, sabem? Mas a essa altura, mentalmente, Pão-de-Mel e eu já estávamos a caminho de casa.
Trinta e Oito Pensei nisso na viagem de avião de volta para São Francisco: minha nova ultrafantástica comunidade vai ser um tributo a todas as coisas de mel. Pensem nisso. Sustento garantido cuidando das abelhas, vai ser fácil. Viveremos de geléia real, própolis e pratos feitos com mel; vamos tomar coisas doces e a nossa sobremesa favorita vai ser, é claro, pão de mel. Ash e Josh vão ficar hiperfelizes, porque vamos fazê-los construir casas de pão de mel. Não vamos nos importar se eles comerem a cobertura ou as balinhas de decoração, desde que tomem cuidado para não engasgar. Sid e Nancy vão curtir a coisa toda, porque vamos servir chá adoçado com mel, e só o trabalho de pensar em todas as cores das casas de pão de mel já vai manter a Nancy ocupada, combinando biscoitos de menta com janelas de LifeSaver, e vamos manter papai Sid na dele, se preocupando com os custos e as leis trabalhistas. A família biológica vai ser convidada em feriados especiais, como o Dia do Trabalho e o Dia do Descobrimento, esses feriados que não são ocasiões familiares, mas dias para fazer churrasco com mel. Danny e Aaron vão ter passes especiais perfumados com mel para virem sempre que quiserem, mas será segredo nosso. Nossa severa Pão-de-Mel vai dizer para Leila RELAXAR! Pão-de-Mel vai cuidar de tudo. Vai decidir onde Mel Gibson, Mel C. e Me! Brooks vão se sentar para jantar, e vai fazer todos esses meles ajudarem a cozinhar e a limpar. Quando Pão-de-Mel estiver cansada de todas essas excentricidades dos astros mel, Pão-Doce vai assumir o comando. Fernando vai derreter todas as moças com os biscoitos de mel que vai fazer especialmente para elas. Uma vez por ano, vamos patrocinar uma maratona de corrida mel-java da ponte Golden Gate até Ocean Beach. Os corredores vão começar sob os místicos pilares vermelhos da ponte, com a neblina envolvendo seus corpos, e vão terminar na linha de chegada no Java the Hut, onde receberão de prêmio café com biscoitinhos de mel e mais neblina.
No final do arco-íris da Terra do Mel de Cyd Charisse, sempre vai haver um Siri. Fim
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
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