sábado, 6 de julho de 2013

Ian Clarke - Conversa com Gomes ( bônus livro perdida)

1
Meus livros sempre são narrados por minhas heroínas, em primeira pessoa, o que limita um pouco a trama, por isso sempre que acho necessário crio arquivos extras, que não fazem parte do livro, mas que detalham cenas que minhas heroínas não viram. Essa é uma delas. Ela é a sequência do final do capítulo 25, página 285, depois de Sofia e Ian se enroscarem no corredor do casarão e serem flagrados pelo mordomo Gomes, sob o ponto de vista de Ian. Eu precisava saber o que ele estava pensando naquele momento, e o resultado é esse. Espero que gostem.
Beijos!
Carina Rissi
Perdida
Um Amor Que Ultrapassa As Barreiras Do Tempo
Ian Clarke
Conversa com Gomes na adega
Atravessei a cozinha com pressa. A cada passo dado a crescente urgência de voltar para perto de Sofia dominava meus sentidos. Afastar-me dela naquele momento era doloroso, sentia o protesto por todo o corpo, mas sabia que era o correto a ser feito. Nunca pretendi tratá-la daquela maneira, mas aquela jovem – e apenas ela – tinha o poder de minguar todas as minhas boas intenções. Eu
2
ainda sentia seu gosto em minha língua, seu cheiro, doce e inebriante, permanecia grudado em minhas roupas, a doçura de sua entrega vívida em minha mente. Obriguei meus pés a continuarem em frente. Ou isso ou eu causaria a ruína de Sofia.
– O senhor está bem, senhor Clarke? – a governanta perguntou quando atravessei a cozinha.
Bem? Oh, não, eu não estava bem. Estava louco! Completamente insano. Eu preferia acreditar nisso a pensar que me tornara um homem devasso que não se importava com nada além de satisfazer seus próprios desejos. Nisso e na forma como os seios redondos e macios se acomodaram com perfeição em minhas mãos instantes atrás. E na sensação de suas coxas travadas contra os meus quadris. E na suavidade e calor daquelas coxas sob meus dedos calejados...
Maldição! Eu me tornara um homem abominável.
– Perfeitamente bem, senhora Madalena.
– Suas faces estão muito coradas. Temo que esteja febril.
Ah, se ao menos ela soubesse o quanto estava certa.
– Estou bem. Não há razão para preocupar-se. Estarei na adega caso alguém me procure.
Desci os degraus da porta da cozinha, amaldiçoando minha falta de controle, e contornei a casa, me dirigindo até a portinhola estreita que levava a adega. Encontrei-a aberta. Um efêmero feixe de luz clareava o interior do cômodo obscuro e empoeirado.
Dezenas de caixas de madeira ainda estavam espalhadas no assoalho. Gomes se encontrava em meio a elas. A vela apoiada em um barril, a única fonte de luz ali, clareava o suficiente para que pudéssemos manusear as garrafas.
– Tudo em ordem, Gomes?
– Parece que sim, patrão. Estava a sua espera para poder guardá-las.
Concordei com a cabeça e me inclinei, alcançando uma garrafa de vinho, erguendo-a contra a luz. O líquido enegrecido sacolejou, mas foi a riqueza do vidro castanho que prendeu minha
3
atenção. A chama da vela transformara a garrafa em algo translúcido, de beleza rara e profunda. Como um topázio. Como os olhos cativantes de Sofia.
Soltei um suspiro exasperado. Ela finalmente admitira sentir algo além de amizade por mim. Se o que ardia dentro dela era parecido com o que queimava em mim, que Deus nos ajudasse, estávamos perdidos! Por muito pouco não a arruinara. Quanto tempo levaria até que eu perdesse o controle outra vez e a seduzisse, destruindo tudo aquilo em que eu acreditava, transformando-me num homem indigno de sua afeição?
– Senhor Clarke, o senhor está me ouvindo?
Abaixei o braço e encontrei os olhos astutos de Gomes me observando. O velho mordomo me conhecia desde sempre. Não havia sentindo em mentir para ele.
– Não, meu amigo. Creio que eu não estava ouvindo nada além de meus próprios pensamentos perturbados – me virei para acomodar a garrafa na prateleira. O contato de vidro contra vidro repicou no ar.
– Ela domina todos eles, não é?
Ela. Não era preciso que Gomes explicasse a quem se referia, era? Sofia era a única mulher que tocara meu coração. A primeira. E certamente seria a última. Ela entrara ali sorrateira, dominando cada pedacinho, até se apossar dele por completo de modo irreversível.
– Cada um deles, Gomes.
– Sente-se um pouco. Que tal se eu lhe servir um pouco de vinho?
– Vinho não irá ajudar – mas cedi e acomodei-me numa velha cadeira com o espaldar quebrado. Ela rangeu sob meu peso. Meu mordomo se dirigiu até o barril, pegou duas velhas canecas brancas de ágata deixadas sobre ele e as encheu. Em seguida, me entregou uma delas.
Levei a canela aos lábios e solvi um grande gole.
– Senhor Clarke, eu trabalho nesta a casa a três gerações. Seu avô foi um patrão muito bom, muito tolerante com um rapazote como eu era na época. O mesmo ocorreu com seu pai. E de novo
4
acontece com você. Eu o vi nascer, crescer, se tornar um homem e tenho muito orgulho de ser seu criado.
– Empregado, Gomes. Sofia me fez entender que criado é uma descrição um tanto repulsiva. – fiz uma careta.
– Não muda nada para mim. Sei que tenho sua amizade e seu respeito.
– Você e Madalena são parte da família. Sabem disso.
– Sim, eu sei, e me sinto honrado. Mas também me sinto obrigado a lhe falar sobre... certos assuntos.
Eu gemi, esticando as pernas e encostando-me à cadeira, que oscilou um pouco.
– Se é sobre o que acabou de ver no corredor poupe seu tempo, meu amigo. Sei que me comportei como um calhorda.
– Oh, não. Não creio que seu comportamento seja assim tão vil. Mas ficou claro que sua estima pela senhorita Sofia está além de um amor platônico. Você a deseja como mulher e parece um tanto confuso.
– Estou além da confusão. Eu... eu não sei o que fazer, Gomes. Eu não quero fazer as coisas que ando fazendo a ela.
A lembrança do beijo, das carícias, da loucura que me dominara gritou em protesto em minha mente. Sacudi a cabeça, me levantando.
– Não, isso não está certo. Eu quero, sim, fazer as coisas que fiz, é claro que quero. Mas eu não devia querer. Já imaginou se alguém nos visse daquele jeito? Consegue imaginar o que pensariam da senhorita Sofia? A reputação dela estaria arruinada. E a culpa seria toda minha.
– Não se martirize, Ian. Você não é o primeiro homem a perder a cabeça por ter se apaixonado. No entanto, eu sou obrigado a concordar que a situação é preocupante. Estimo muito a senhorita Sofia para querer algum mal a ela. A menina está sozinha, acho que devia pensar nisso.
5
– Eu penso! É só no que eu penso! Ao menos agora ela admitiu que gosta de mim. Não sei exatamente o quanto, mas ela gosta. Isso é bom, não é?
– Muito bom – ele sorriu. – Devia tomar uma atitude, agora que sabe que ela retribui seus sentimentos.
– Como, se ela nem ao menos aceita os meus sentimentos? Ela é diferente das mulheres que conhecemos, Gomes. Ela tem ideias mais... não sei... liberais. Isso me confunde tanto...
– Ela é diferente, meu caro, qualquer um com apenas um olho pode ver isso. Mas, se me permite, atrevo-me a afirmar que mesmo com toda essa disparidade, ela ainda é uma mulher.
– É claro que ela é uma mulher. – retruquei impaciente, indo de um lado a outro no espaço apertado. Sofia era mulher. Uma bela mulher de olhar inocente e sorriso encantador, com um cérebro genial, um corpo que fazia qualquer homem perder a razão e a teimosia de uma mula.
Era perfeita.
– E como toda mulher respeitável – Gomes prosseguiu inalterado – não aceitará nada menos que um nome. Está disposto a dar isso a ela?
Detive-me. Imagens de Sofia adentrando a pequena capela na vila surgiram em minha mente. Tão linda e delicada como um anjo em seu vestido bordado. Os grandes olhos castanhos brilhando para mim, o sorriso, que demolira todas as minhas defesas há tempos, iluminando tudo ao seu redor. Minha mão trêmula deslizando um anel em seu dedo. As juras de amor eterno sendo proferidas. Nada mais poderia nos separar...
– Eu quero dar o mundo a ela, Gomes. Quero fazê-la feliz, cobrir-lhe de joias da cabeça aos pés, mostrar a ela os lugares mais bonitos do mundo, dar a ela tudo o que tenho, incluindo meu coração e minha sanidade.
– Então faça isso.
– Ela não me aceitaria.
6
– Como pode estar certo disso? Pelo que vi, ela está muito mais que disposta a lhe entregar o coração. Se é que já não o fez. Amar é arriscar-se, Ian. Está disposto a se arriscar por ela?
– Estou disposto a tudo. Estou disposto a começar uma guerra se isso fizer com que Sofia fique comigo para sempre.
– Então, meu rapaz, o que ainda está fazendo aqui falando com esse velho mordomo nessa adega úmida? Você sabe o que deve fazer agora, não sabe?
Ah, sim, eu sabia. E precisaria de um anel. O anel mais bonito que alguém já vira. Uma joia que pudesse mostrar a Sofia o quanto eu a amava. Uma joia que a deixasse tão inebriada, fascinada, assim como ela me deixava, que tornaria uma recusa impossível.
E que a tornaria minha!
Tomado de esperança, endireitei o casaco, alcancei o relógio no bolso da calça e conferi as horas.
– Vou me ausentar no jantar. Vou até a cidade. Devo chegar tarde. Cuide de tudo na minha ausência.
– Sim, senhor.
Eu já estava na porta quando me virei, a expectativa de que tudo poderia finalmente terminar bem me deixara um pouco zonzo.
– Você é um amigo valioso, Gomes.
O homem franzino assentiu, orgulho borbulhando em suas feições queridas e desgastadas.
– Cuidarei dela enquanto estiver fora, Ian.
Concordei com a cabeça, satisfeito, e parti em busca do futuro que eu tanto ansiava.

Um comentário: