sábado, 27 de julho de 2013

Dando a volta por cima



Anna Maxted
Tradução de
DAYSE BATISTA
2ª Edição
RIO DE JANEIRO - 2004
TÍTULO ORIGINAL
Getting Over It
Copyright © 2000 by Anna Maxted
Direitos de edição para língua portuguesa no Brasil reservados à
Editora Leganto - Comércio Direto de Livros
(21) 2493-4578 - Fax (21) 2493-9423
e-mail: editora@leganto.com.br
http://www.leganto.com.br
Proibida a reprodução
total ou parcial
Editorial: Daniela Dutra
Produção Editorial: Luis Antônio Scassa
Projeto gráfico e capa: Bruna Peixoto
Foto de capa: Adriana Pittigliani
Modelo da capa: Renata Brito Miranda Correa
Tradução: Dayse Batista
Copidesque: Bernardo Horta
CATALOGAÇÃO NA FONTE
DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
M464d
Maxted, Anna
Dando a volta por cima / Anna Maxted; tradução de Dayse
Batista. - Rio de Janeiro: Leganto, 2004.
516p.; 23 cm
ISBN: 85-88768-04-6
1. Literatura inglesa 2. Romance I. Batista, Dayse II.
Título
CDD: 820
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL
Para Leslie Maxted
AGRADECIMENTOS
Sou grata a muitas pessoas incríveis, por seu tempo, talento e apoio: Phil Robinson,
Andy Robinson, Mary Maxted, Leonie Maxted, Caren Gestetner, Richard Hermer,
Jonny Geller, Wendy Bristow, Laura Yorke, Lynne Drew, Andy McKillop, Emma
Dally, Jo Kessel, Dr. Michael Kessel, Dr. Maurice Cohen, Mark Curtis, Jeanette King,
Evelyn Smith, Daniel Silver, Laura Dubiner, Kathryn Mayor, Christabel Hilliard, Jason
P.Worsnip, Dr. Jeremy M. Pfeffer, Louise Bowtell, Margaret Carruthers, Sarah Vessel,
Heather Blackmore, Sybil Sipkin, Paul Bern, Paul 'TCB" Burke, Hudson e Gina Britton,
Sasha Slater, Anna Moore, Lisa Sussman, Grub Smith, Alicia Drake-Reece, Martin
Raymond, Lynne Randell, "Women in Need", Sam Leek e James Buchanan.
Os editores e profissionais da Editora Leganto agradecem a Ednéa Ferreira de Oliveira
(in memoriam), copidesque e revisora, pela seriedade, competência e dignidade que
demonstrou em sua atuação junto a nós.
CAPÍTULO 1
Eu não estava esperando, quando tudo aquilo aconteceu. Posso dizer que sentiame
tão preparada quanto para vencer o Concurso de Miss Mundo, viajar pelo planeta
inteiro e ter de visitar bandos de crianças gritonas. Então, reagi como Scooby-Doo
perseguindo um fantasma. Segui meu instinto, que no final das contas estava
completamente desorientado e era incompetente na leitura de mapas.
Talvez, estivesse confusa demais para fazer a coisa certa. Afinal de contas, a
coisa certa raramente é divertida e significa, sobretudo, optar pelo menos excitante —
como esperar que a pizza que você pôs no forno resfrie, o mais rápido possível, antes de
mordê-la. Ou decidir não comprar aquelas botas sexy, de saltos altíssimos, porque
apertarão seus dedos e lhe darão a postura de um neandertal — além do mais, uma vasta
quantia de seu salário mofará no fundo do guarda-roupas. Se fizéssemos sempre a
melhor escolha, jamais iríamos para a cama com alguém.
Dito isso, no dia em que tudo começou, cheguei bem perto de fazer uma escolha
bastante esperta. Aqui está, rabiscado com muita coragem em tinta preta, em minha
agenda azul da Letts:
Amanhã, dou o fora no Jasper.
Essas palavras me levam de volta a mais ou menos um ano, mas isso parece uma
eternidade. Dezesseis de julho continua marcado em minha mente como se fosse hoje.
Talvez seja hoje. E é assim que hoje começa:
Amanhã, dou o fora no Jasper.
Ele merece isso por chamar-se Jasper, para início de conversa. E, para terminar,
ele está a milhares de quilômetros de distância do que se pode considerar um namorado
aceitável.
O engraçado é que, aos cinco anos de idade, eu sabia o que era isso. Era
apaixonada por um garoto que morava do outro lado da rua e sempre tomava seu leite e
comia seus biscoitos antes de devorar os meus. Tive verdadeiros acessos de fúria até
conseguir que ele me desse seu cachorrinho de rodinhas da Fisher Price. E me recusava
a brincar em seu quarto, porque tinha cheiro de xixi. Depois cresci e comecei a aceitar
porcarias.
Infelizmente, Jasper é bonito. Ele é alto e isso me agrada. A única vez em que
tive que lidar com um homem baixinho foi quando minha amiga tirana, Michelle, armou
um encontro às cegas para mim. Ele tocou a campainha, abri a porta toda afoita e olhei
para baixo. Veja só: eu meço um metro e cinqüenta e cinco. Lá se foram dois nanicos
sacolejando pela rua. Michelle deu como desculpa o fato de que ele estava sentado
quando encontrou-o pela primeira vez. Nós duas nos conhecemos há vinte um anos e
jamais a ouvi pronunciando a palavra "desculpe". Assim, o um metro e oitenta e dois de
Jasper é uma delícia. Uso saltos de treze centímetros para que ele não perceba a grande
diferença. Além disso tem cabelos castanhos soltinhos, olhos de um azul tão celestial
que é incrível serem usados realmente para ver o mundo, e o que mais gosto: uma boa
estrutura óssea. Apesar de ser o homem mais egoísta que já conheci — o que já é uma
façanha —, é uma coisa de louco embaixo dos lençóis.
Estou a caminho, agora, prós lençóis. Para uma última vez. Só que estou presa
no trânsito na Park Road. Parece que está em obras, embora não veja ninguém
trabalhando. Estou presa em minha velha Toyota Corolla cinza, uma sucata de minha
mãe, que sentiu o maior prazer em se livrar do carro — por favor, não pense que
compraria um carro como este, mesmo que tivesse o dinheiro. Tento ficar calma. Nos
últimos vinte minutos, avancei um total de treze centímetros. Poderia ligar pro Jasper e
dizer que chegarei atrasada. A rua converge em aproximadamente cinqüenta conjuntos
de lanternas traseiras e todos estão forçando caminho — tanto quanto se pode forçar
caminho quando todos estão parados. São cinco para as três da tarde. Deveria encontrar
Jasper às três e meia. Ah, droga. Meu celular está sem bateria. Mordo meus lábios.
Certo. Tenho que ligar para ele.
Avalio o engarrafamento — está tudo parado mesmo —, salto do carro, corro até
a cabine telefônica no outro lado da rua e disco o número de Jasper. Brrrrt-brrt. Brrrrtbrrt.
Onde ele está? Não pode ter esquecido! Droga, os carros começaram a se mover.
Disco o número do celular — maravilha! Ele atende. "Jasper Sanderson." Nunca diz
"alô", como uma pessoa normal. É tão executivo! Detesto, mas adoro. Jasper parece
sem fôlego.
— Por que você está ofegante? — pergunto, com voz aguda.
— Quem é? — pergunta. Meu Deus!
— Sua namorada, Helen, lembra? Olhe, chegarei atrasada, estou presa em um
engarrafamento. Por que você está arfando?
— Estou jogando tênis. Nossa, esqueci que você iria lá em casa. Vou demorar
um pouco para chegar. A chave extra está debaixo do tapete.
Ele desliga. "Você é tão original", reclamo, azeda. Tento verificar se o trânsito
está livre e vejo uma multidão de motoristas buzinando furiosamente enquanto
contornam a Toyota.
Quarenta minutos depois chego ao apartamento de Jasper, em Fulham. Toco a
campainha para o caso de ele já ter chegado, mas há somente silêncio. Chuto o tapete
para espantar possíveis aranhas, ergo cuidadosamente um canto com dois dedos e pego
a chave. Que criativo, Jasper! O lugar é uma réplica da casa dos pais dele. Há, até
mesmo, uma foto de sua mãe quando menina, em uma moldura de prata, na mesinha do
corredor — ela parece uma mocinha bem vaidosa, também. Felizmente, nunca fomos
apresentadas. O crime de decoração mais atroz, porém, é um conjunto de pinturas
náuticas horríveis que domina as paredes claras. O negócio com Jasper é que
exatamente quando penso que não agüento mais, ele faz algo irresistível, como passar a
ferro o colarinho e punhos de sua camisa e sair para o trabalho escondendo o resto
amarrotado sob a jaqueta. Mexo rapidamente na correspondência, para ver se há algo de
outra mulher e percebo que a luz verde da secretária eletrônica exige atenção. Deve ser
Jasper ligando para anunciar mais um atraso. Pressiono para ouvir o recado.
Enquanto o aparelho volta a fita, a chave gira na fechadura. Jasper abre a porta,
entra e eu me viro, sorrindo, para recebê-lo. Ah, cara, ele é um gato! Vou dispensá-lo
semana que vem. Ele é como comer chocolate no café da manhã — faz com que me
sinta uma tremenda relaxada — sei que não deveria, que precisaria consumir
comidinhas integrais, mas muesli é deprimente mesmo quando contém passas. Jasper
não alimenta, mas é delicioso. Ele abre sua boca, incrivelmente beijável, para dizer
"Oiii, benzinho!", mas uma voz alta e metálica vem antes, ecoando como um gorjeio
pelo chão de cerâmica e quicando alegremente de uma para outra parede de cor pastel:
"Oiii, benzinho!", a voz gorjeante. "Sou eu! Me liga! Beijo, beijo!"
O sorriso paralisa-se em meu rosto. Jasper e eu olhamos para a secretária
eletrônica que, tendo despachado sua traição, agora nos dá seu silêncio completo. Já
sabendo a resposta, grasno, à la Quentin Tarantino:
— Mas que negócio é esse?
Jasper não parece estar se divertindo. Se fosse um filme de Hollywood, haveria
uma contração muscular em sua mandíbula, e seu rosto esculpido pelos deuses se
tornaria pálido sob o bronzeado cor de caramelo. Como isto é a vida real, ele baixa sua
sacola esportiva cuidadosamente até o chão e pousa sua raquete de tênis elegantemente
sobre ela. Uma onda de fúria sobe por meu peito. A vontade é de agarrar a raquete e lhe
dar uma surra. Pelo menos, ele estava jogando tênis, embora seja tão traiçoeiro, que eu
não ficaria surpresa se fosse uma desculpa elaborada para suas trapaças. Ele fixa seu
olhar em meu rosto vermelho e perturbado pelo medo, e diz suavemente:
— Minha ex. Ela gosta de manter contato.
— Quando vocês se viram pela última vez? — Pergunto, rangendo os dentes.
— Uma semana atrás. Trocamos umas palavras.
Ah, eu acredito... Sou como Fox Mulder, do arquivo X. Eu quero acreditar.
Jasper também quer que eu acredite. Ele conseguiu dar ao seu rosto um ar penitente.
Adorável, mas tudo que sei a seu respeito, além daquela frase de revirar o estômago
"Sou eu", induzem apenas ao ceticismo. "Sou eu" denuncia o senso de posse de um
doberman protegendo um biscoito de chocolate. Uma mulher não liga para um exnamorado
e diz "sou eu", porque deveria saber — e essa obviamente não sabe — que
agora há uma outra. Eu!
— Vocês foram para a cama?
Jasper parece magoado.
— Claro que não, Helen! — Louisa chama todo mundo de benzinho.
Nomes terminados em "a". Argh! Estreito meus olhos e faço a melhor tentativa
de lhe dar um olhar gelado. As grandes palavras corajosas "já chega!" estão prontinhas
para sair de minha boca, mas ficam presas, frágeis e relutantes, na garganta. Agora, digo
a mim mesma, não é o momento. Ora, se eu fizer isso ele pensará que estou apaixonada!
A única coisa decente a fazer é dar o fora.
— Vou para casa — digo, ofendida.
O covarde dá um passo agradecido para o lado. Minha intenção é sair com um
floreio como em E o vento levou. Tudo sai como planejado, mas tropeço ao chegar na
escada. Quase caio e não tenho certeza se o ruído meio sufocado que escuto é Jasper,
que nem tenta suprimir sua diversão, mas não olho para comprovar. Tensa, desço até a
entrada do prédio, lanço-me dentro do Toyota, dou uma guinada brusca, e consigo tirar
o carro em três tentativas desleixadas, durante as quais dou um amassão na porta de um
MG estacionado, e saio chacoalhando enquanto a tarde cai.
Seu sacana... Seu sacana! Tiro o celular da bolsa caso ele ligue, rebaixando-se.
Mas, lembro que está sem bateria. Porcaria de coisa inútil. Dirijo, enquanto meu humor
piora a cada segundo. Seu sacana. Não tenho a mínima intenção de me retirar
graciosamente para que "Loui-saaa" possa roubar a cena. Não consigo decidir se ele foi
para a cama com ela ou se a rejeitou. Jasper gosta de ser requisitado, mas gosta também
de uma vidinha pacata. Jasper — exceto por suas camisas amarrotadas — gosta que sua
vida e tudo que o cerca sejam bem certinhos. Dar um basta em sua ex-namorada seria
muito complicado, perturbaria sua pasmaceira. Mas ainda assim... seu sacana!
Ele já fez das suas antes. Mais ou menos um mês depois de iniciarmos nosso
relacionamento, que é como o chamo, Jasper ligou-me para dizer que não poderia ir ao
meu encontro e que passaria a noite na casa de seu amigo Daniel, em Notting Hill.
Ainda que muito surpresa por sua amizade com alguém que morava em Notting Hill,
não investiguei a história. Estávamos naquela fase de olhos arregalados e brilhantes, na
qual a gente se beija em público e causa desconforto em qualquer um que não esteja tão
apaixonado, de modo que acreditei nele. Na tarde seguinte, Jasper disse subitamente:
— Ontem à noite eu menti.
O quê?
— Eu... eu estava com a minha ex.
Bom, o caso foi que ele perdeu o último trem para casa (Jasper não dirige, este é
seu traço mais ridículo), então caminhou até Kensington e tocou a campainha da ex.
— Ela foi realmente gentil.
Gentil! Tenho certeza que foi gentilíssima! Algumas perguntas de minha parte
revelaram que ela serviu-lhe cereais com açúcar mascavo no café da manhã. Aquela
vaca espertinha tentou fisgá-lo pelo estômago! Felizmente, mostrou-se carente demais e,
assim, uma grande tigela de cereal foi desperdiçada. Mas, talvez a ex tenha se
recuperado. E, talvez, meu apelo esteja em baixa. Oops, lá vou eu mostrando meu lado
fraco...
As primeiras semanas foram sensacionais. Conheci Jasper no lançamento de um
livro — um manual de sexo. Eu fui direto do trabalho para lá, com Lizzy e Tina, em
parte porque Laetitia, nossa editora de artigos com nome mais que inadequado, não
queria ir e minha tarefa como escrava na revista GirlTime é cobrir sua preguiça, e
também porque Tina, a assistente de modas, e eu somos completamente loucas por
champagne, qualquer coisa pelo estouro gratuito de uma Krug (ou Asti, que seja).
Embora Lizzy seja assistente de saúde e beleza na vida profissional e pessoal, e sua
bebida preferida seja leite de soja — é tão queridinha, realmente faz o que aconselha —,
ela pode ser persuadida. Nós torcemos seu braço de músculos tonificados.
O lançamento ocorreu era uma ruazinha fedorenta do Soho. Eu estava vestida
para a ocasião: calças pretas, botas pretas (quinze centímetros — este é o mínimo para
mim, e não apenas em lojas de sapatos) e top preto. O visual das celebridades em
enterros. Também espalhei um pouco de glitter prata metálico acima das bochechas.
Parecia meio ao estilo Abba, mas naquela noite achei que não poderia ir ao lançamento
sem o glitter. Eu me sentiria desajeitada e incompleta. Quanto mais velha fico e mais
entediantemente responsável sou forçada a ser, mais recorro a esses lances infantis.
Agora sou a feliz proprietária de: uma bolsinha minúscula rosa-shocking com continhas
coloridas que dá ânsia de arrancar; um caleidoscópio; um exemplar de Ramona and her
mother, de Beverly Cleary; um alvo de parede e dardos (bem, eu não estou tentando ser
sofisticada!); e um gato balofo estragado por mimos chamado Gorducho.
Geralmente, não converso com estranhos em festas. Analiso a multidão de
melhores amigos glamourosos, tagarelando, rindo, todos pertencentes a tribos
impenetráveis, tenho vontade de correr de volta para casa. Sinto que minha maquiagem
está derretendo, meu rosto muda de uma expressão incerta para outra e eu sou
novamente a adolescente gorda de dez anos atrás: os óculos fundo de garrafa, a mochila
marrom, um casaco azul de lã que pinicava, com botões feios, e um capuz imenso.
Agora, claro, sou uma vítima da moda. Mas, a festa em que conheci Jasper foi diferente.
Eu era uma em um grupo de três garotas faiscantes, engoli direto duas taças de vinho
borbulhante nos primeiros vinte minutos e estava melecada com mais glitter que um
cartão de Natal. Eu faiscava! Assim, acho que foi natural Jasper aparecer na minha
frente e me oferecer o cigarro que fumava.
— Não fumo — disse, com cara de santa. — Sou uma moça direita.
Ele não perdeu a pose, respondendo:
— Pois, para mim, você parece bem safada...
Essa foi a melhor cantada que já recebi. O que eu poderia fazer, se não rolar com
ele na cama por pura gratidão?
Jasper estava "no negócio de publicações", o que significava que redigia
releases para uma empresinha chinfrim com matriz em Hounslow. Eu, uma valente
assistente na revista GirlTime, com matriz em Covent Garden, era, portanto, um
excelente contato. Não que nós nos interessemos por livros sobre saneamento na era
elisabetana ou pelos insetos naturais da Guatemala, mas no momento em que olhei para
seu rosto encantador e ele para o meu, faiscante, decidimos fazer negócios juntos. Por
algumas semanas, mantive minha imagem caprichosamente inventada. Exagerei a
importância de minha função. Tina aconselhou-me sobre o que vestir, isto é, usar cinza
ocasionalmente. Evitei levá-lo ao meu apartamento. Além disso, editei todos os traços
de caretice de minha conversa e inflei o fator "maluca completa, espírito livre",
existente em algum lugar de mim. Como Bjork, porém mais bem-vestida. É
vergonhoso, mas funciona. Naturalmente, depois de três dias percebi que não tínhamos
nenhuma vírgula em comum. Ele chamava suco de laranja de "SL" e estava juntando
dinheiro para educar seu filho na melhor escola da Inglaterra (o que era um pouquinho
prematuro, já que ele ainda não tinha filho algum). Como não suporto mesmice, para
mim estava ótimo.
Jasper gosta de se divertir, de modo que para ele também estava ótimo. Mas,
ultimamente, sinto que nossa bolha de sabão está prestes a estourar. Passamos uma tarde
no parque, no último sábado, e juro que não tínhamos nada a dizer um ao outro. Ele
levou-me até o carro e tive certeza de que iria terminar tudo. Assim, de um jeito bem
simples, eficiente, sem emoção, bem cool. "Helen, isso não está dando certo." Mas, ele
não fez isso. Deu-me um beijinho rápido de despedida, como se nada estivesse errado.
Pensei nisso enquanto ia para casa. Não gosto de silêncios. Tenho medo de seu
potencial. Prefiro enchê-lo com minha própria voz, que inevitavelmente fala pelos
cotovelos as maiores bobagens. Semana passada, respondi a uma vendedora que
oferecia ajuda em uma loja: "Não, obrigada, estou só vagabundeando por aqui." Disse à
recepcionista na academia de ginástica de Lizzy, que me perguntou como eu estava:
"Pronta para um surto de exercícios." E a Jasper, todo tesudo, uma vez depois de
comermos uma enorme pizza: "Acho que ainda estou digerindo." Mulherzinha sexy,
hein?
Assim, à medida que os silêncios aumentam, deixo cair lentamente minha capa
de ousadia. Ele não parece ter notado, mas vejo-me cada vez mais desconfortável.
Jasper não entende minhas piadas e me sinto errada. Não sou tão apropriada para Jasper
e ele não é tão apropriado para mim, mas ainda parece estar contente e tem um pênis de
tamanho passável. E difícil dispensá-lo. "Louis-aaa" não "facilit-aaa."
Chego em meu bairro e começo uma jornada de três horas por um lugar para
estacionar. Alguém poderia até pensar que as pessoas jamais saem de carro, por aqui.
Em algum momento do dia seguinte consigo espremer a Toyota entre um Saab e um
Mini, a uma hora de caminhada do meu prédio e começo a me arrastar pela rua. Ainda
estou pescando minhas chaves dentro da bolsa quando a porta abre-se de repente. Meu
companheiro de apartamento, Luke, parece — se isso é possível — ainda mais
molambento e seus olhos estão mais arregalados que o normal.
— Que foi? — cantarolo, diante de seu intenso silêncio. Ele me olha
estranhamente. — Jasper ligou?! — pergunto, sugerindo — Ganhei na loteria! Não a
merreca de uns trezentos mil, mas oito milhões! Você quer uma moto e uma casa?! Que
tal uma viagem a Bali?!...
A expressão de Luke faz com que eu queira continuar falando. Ele balança a
cabeça. Depois, estende a mão e agarra meu braço.
— Não, Helen — diz — sua mãe ligou. Seu pai... ele morreu.

CAPÍTULO 2
Aos quinze anos, quando ainda não havia sido beijada (eu estava falando sério,
sobre o casaco e tudo o mais), matava essa fome com uma dieta abundante de romances
pré-setentistas, tipo Sabrina. A inocência graciosa daquelas heroínas estava tão longe de
minha castidade rechonchuda quanto um diamante de um monte de carvão. Ainda
assim, elas enchiam-me de esperança de que um dia eu mesma desmaiaria à visão de —
digamos — um tiroteio e um empresário poderoso, experiente, com um belo nariz
aquilino, saltaria de seu carro imaculado, recolheria do chão minha figura flácida e me
levaria a uma vida de amor, felicidade e paixão intermináveis.
Infelizmente, o mais perto que cheguei deste cenário de tirar o fôlego foi quando
levantei-me em uma manhã de domingo, sentindo-me fraca e tonta ao descer as escadas
ainda de pijama, e desmaiei no corredor. O ruído alto de minha queda alertou meus pais.
Minha mãe agarrou meus braços, meu pai segurou-me pelos tornozelos e, bufando
juntos, levaram sua filha muito, muito pesada, até o sofá da sala. A parte menos
romântica disso foi que, enquanto me içavam, a calça do pijama desceu e,
semiconsciente, percebi claramente que parte de meus pêlos pubianos estava
crespamente visível a meu pai.
Ao ser informada sobre a morte dele, por Luke, pelo menos estou bem vestida,
como uma heroína da Harlequin. E, além disso, meu amigo segura-me o braço com
força, de modo que quando as palavras penetram em meu cérebro e giram loucamente
em minha mente, deixando-me tonta, oscilo levemente, mas permaneço de pé.
"Seu pai morreu." Tudo o que veio antes deste momento esbarra na verdade.
Papai está morto. Meu pai morreu. Mas ele não está morto! Não estava morto! Não
estava morto ontem, ou anteontem. Ele está vivo desde que nasci! Um minuto atrás ele
não estava morto. Agora está? Meus pais estão vivos. Assim é que são as coisas. Como
meu pai pode estar morto? Mortas estão pessoas mais velhas, como Frank Sinatra.
Isso não pode acontecer comigo, ou com meus pais. Morto... Luke, não seja louco!
— O q-quê? Quando?
Minha boca parece cheia de geléia, meus lábios tremem. O pobre do Luke não
sabe o que fazer. Dar más notícias para qualquer pessoa é o purgatório para ele. Quando
precisou contar-me que entrara escondido no quarto de nosso locador, para pegar
emprestada uma lâmina de barbear, e que o Gorducho havia feito uma grande poça de
xixi no meio do edredom branco, ele ficou roxo e completamente gago — até que nós
dois quase morremos de rir — ao pressentir as conseqüências.
Isto é diferente. As palavras derramam-se dele como uma enxurrada, frenéticas,
sem pausa:
— Ele simplesmente desabou ataque cardíaco sua mãe ligou ela está ligando
sem parar há uma hora o seu celular não atende eu não sabia onde você estava achei que
talvez com Jasper mas eu não encontrei o número olhei em seu quarto mas não sabia por
onde começar achei que podia percorrer a conta telefônica mas não sei onde o Marcus
guarda essas coisas eu não sei onde ele está para perguntar ela continua telefonando a
todo momento está no hospital realmente arrasada eu quero dizer arrasada mesmo você
precisa ligar para ela mas eles a mandam desligar o celular então se — Luke está muito
agitado e um filete grosso de saliva aterrissa em minha bochecha. Eu tento limpá-lo
disfarçadamente. Minha mão treme. E tarde demais. Tarde demais para decidir não
chegar em casa ainda e, em vez disso, procurar Tina para lamentar-me sobre Jasper, em
uma ignorância abençoada. Tarde demais para dirigir até Hamsptead e comprar um par
de sapatos que não preciso no Pied à Terre. Tarde demais. Luke já despejou as palavras.
Elas não podem mais ser engolidas. Dizê-las as torna reais. Luke insiste em levar-me até
o hospital.
Meu pai e minha mãe estão vivos. Não, eu falo sério! Meu pai está quase morto.
Luke, esse paspalho, entendeu tudo errado, embora — vendo como ele falou com minha
mãe — eu possa compreender como ocorreu o mal-entendido. Luke mal chega ao
estacionamento e corro alucinada até o setor de informações e começo a falar
rapidamente com a primeira pessoa uniformizada que vejo. Ela me leva até a sala de
espera próxima ao setor de ressuscitação. Ressuscitação. Merda. Ando por um corredor
e passo por um homem que recolhe lençóis de colchões manchados. Depois ouço a voz
de minha mãe e corro naquela direção. Ah! não, Nana Flo.
— Helen! — mamãe exclama, sufocada, e irrompe em lágrimas.
Nana Flo, que considera vulgar qualquer expressão emocional extrema e que
adoraria Jasper, observa-a com desaprovação. Minha mãe agarra-se a mim como se,
partindo-me em duas, pudesse desfazer o que aconteceu. Embora eu me esforce para
respirar, consigo dizer, sibilante:
— Q-quando ele morreu?
Então, minha mãe liberta-me como um dançarino de flamenco.
— Ele ainda não morreu! — diz, esganiçada, enquanto tento manter-me firme.
— Oh, Maurice! Meu pobre Maurice!
Meu erro. Enquanto falo, meu pai está sendo tratado por especialistas, depois de
um ataque cardíaco poderoso durante o almoço. Uma vez que seu almoço quase sempre
consiste em quatro ovos mexidos — e sei, por Lizzy, que o consumo recomendado é de
dois por semana —, isso não me surpreende muito. Além disso, ele fuma tanto que
parece as chaminés do distrito industrial de Manchester. Mamãe, que estava no andar de
cima refazendo sua maquiagem, encontrou-o gemendo, com a cara dentro do prato, os
ovos grudados no rosto. Sendo ela como é, primeiro limpou os ovos do rosto dele com
lencinhos de papel e — não estou brincando! — escovou os dentes de papai antes de
chamar uma ambulância. Não tenho certeza se a escovação de dentes precedeu sua
tentativa de ressuscitá-lo com respiração boca a boca, em pânico. Digo "em pânico"
porque ele ainda estava consciente. Graças a Deus, ele barbeara-se naquela manhã,
usava roupas íntimas limpas e uma camisa bonitinha. De outro modo, a ambulância só
teria sido chamada amanhã de manhã.
Não podemos fazer nada — de acordo com uma mulher muito ocupada que se
diz chefe das enfermeiras — até que os médicos terminem seu trabalho com meu pai.
Ela fala sobre medicação intravenosa, monitores, oxigênio, exames sangüíneos e então
lança a bomba de que ele "está muito mal". Assim, sentamo-nos na cafeteria deprimente
com suas paredes descascadas. O café, pelo menos, é fresco. Minha mãe continua com
seus ataques de choro, saltando para ligar para todos que conhece. Depois, decide que
não conseguirá lidar com a curiosidade dos que vierem, de modo que preciso ligar
novamente para tentar convencê-los de que não é necessário virem ao hospital.
Olho para Nana Flo. O choque deixou sua boca de lábios finos ainda mais
estreita, como o zíper de uma bolsa. Sua pele está tão pálida quanto seu vestido bege de
náilon e olhos, saltados como os de uma salamandra. Sinto um pouco de pena, mas é
melhor nem dizer nada. Como sempre, ela transforma toda a angustia em agressividade
e, hoje, Luke é o infeliz receptor. Nana presume que ele é meu namorado e o ataca sem
piedade. "Seus cabelos são muito compridos, faz com que você pareça uma menina" é
uma de suas observações mais gentis. Ela aperta as mãos inchadas uma contra a outra
no colo, mas não o suficiente para disfarçar seu tremor. Também não me olha uma
única vez e sei que faz isso porque não quer que eu presencie sua dor. Na verdade, se
alguém não buscar sinais denunciadores, jamais pensará que seu único filho está às
portas da morte.
Eu deixo Luke jogado ao desespero e ignoro seus olhares suplicantes em busca
de minha ajuda. Olho sem ver as paredes descascadas enquanto a voz grave de minha
avó, geralmente tão penetrante, flutua sem um corpo à minha volta. Um som vago,
dissonante e longínquo. Tudo parece irreal. Na verdade, tudo parece nada. Sinto-me
oca. O que estou fazendo aqui, sentada em uma cadeira cor de laranja desconfortável?
Eu deveria estar rolando na cama com Jasper. Meu pai deveria estar sentado em seu
estúdio, fumando um charuto e lendo o Sunday Times. E natural que os pais estejam
sempre ali, constantes, em segundo plano. Papel de parede. Paredes descascadas.
Morte iminente — o máximo do suspense. Uma desculpa para ligar para Jasper e
fazê-lo sentir-se culpado. Por ambas as razões, meu coração está a mais de cento e
quarenta batimentos por minuto. Pelo menos está batendo. Antes, contudo, pergunto a
Luke se ele poderia ser um docinho e ir para casa alimentar o Gorducho. Ele salta e diz,
todo alegre: "Eu adoraria!", antes de olhar com medo para Nana Flo e acrescentar,
sombrio:
— Faço qualquer coisa para ser útil.
Dou-lhe instruções detalhadas:
— Ração Whiskas para filhotes. Se ele não comer, tente o Hill’s Science Plan.
Se ainda assim não quiser, abra uma lata de atum e derrame o líquido em uma tigela,
não o óleo, ele detesta, tem que ser a água. Mas não o deixe comer o atum, porque ele
passa mal.
O Gorducho, embora esfomeado, tem um estômago delicado. Ele esnoba rações
felinas comuns e baratas. Apenas as rações realmente caras, que não são vendidas em
supermercados e exigem uma longa jornada até o Pet World, são aceitáveis. Nana Flo
levanta o nariz desdenhosamente e diz:
— Gatos! Bichos inúteis.
Sinto pena de Nana Flo. Isto é, sinto pena dela, em geral. Pouca coisa na vida
consegue fazê-la sorrir. Ela não é absolutamente o que você deseja de uma avó. Não
espere perninhas roliças e um coque, nem ganhar um dinheirinho como presente de
aniversário, nem doces ou pratos deliciosos. Muito menos poder tocar de qualquer
maneira em seu piano velho, sentar-se ao seu lado para ver álbuns de fotos amareladas
ou ganhar balas e confeitos quando seus pais dão as costas. Não. Ela é a "antiavó" e
suspeito que também não me faria grandes elogios. Meu pai — nas raras vezes em que
fala sobre ela — vira os olhos e diz que Nana teve uma vida dura. Ah, bom... Perdão,
mas a maioria das pessoas idosas que conheço teve uma vida dura, só que isso não
significa que tem de se comportar como pobres coitados. Michelle — aquela do
incidente com o nanico no encontro às cegas — tem uma avó que é o máximo e
trabalhou numa fábrica de salsichas durante vinte e seis anos. Pense em Barbara
Cartland, com mais maquiagem. A única coisa que minha vó faz é assistir televisão. Eu
a deixo com sua nuvem negra sobre a cabeça e corro para o telefone.
Minha conversa com Jasper é enfurecedora. Ele começa com um seco "ah, é
você" e eu extraio uma breve satisfação ao contar-lhe as novidades e tirá-lo de sua
indiferença. Não consigo nem acreditar que sou eu contando aquela verdade brutal, em
voz alta. Assim, talvez não devesse causar surpresa a recusa de Jasper em acreditar no
que digo! Ele repete incessantemente, como um robô estúpido:
— Tenho certeza que tudo dará certo.
Digo, com firmeza:
— Não Jasper, ele está muito doente, de verdade!
Isso não funciona. Sua última oferta é:
— Ligue-me amanhã e me diga como ele está.
Após a resposta desapontadora, não quero falar com mais ninguém.
Depois de mais de uma hora olhando para as paredes, voltamos à sala de espera
ao lado da ressuscitação. E um lugar entediante, fede a cigarro e me lembra muito
minha sala de aula da oitava série. Finalmente, um adolescente desleixado, de olhos
vermelhos, jeans pretos e uma camisa xadrez horrorosa, aproxima-se para informar-nos
que papai foi levado para a unidade de cuidados coronarianos e nos pede para
acompanhá-lo. Há um estetoscópio pendurado em seu pescoço, mas ainda assim Nana
Flo olha-o como se desejasse dar-lhe uma surra de cinto. O elevador sobe até o décimo
primeiro andar, no ritmo de uma lesma retardada, parando em cada piso. Começo a rir.
Não consigo evitar. Sou sacudida pelas risadas. Não consigo evitar nem quando minha
vó grita:
— Pare com isso!
Então, tenho a brilhante idéia de morder meu lábio com tanta força que chego a
sentir gosto de sangue. Dá certo. Alguns minutos depois, o interno, como ele próprio se
intitula, pára na frente de um velhinho arfante deitado imóvel sobre uma cama — levo
alguns segundos para reconhecê-lo.
Meu pai, sócio-fundador de sua empresa, que faz com que Boss Hogg pareça um
fracote. Meu pai, o rei silencioso mas respeitado de qualquer noitada do clube de golfe.
Meu pai, que veste apenas trajes feitos sob medida. Meu pai, que condena a
nudez como um ato de satanismo. Meu pai, que ainda na semana passada disse-me —
claro que por intermédio de minha mãe — que achava que era hora de eu ter meu
próprio apartamento e que, se precisasse, poderia aconselhar-me sobre o melhor bairro.
Esta criatura encolhida e indefesa, deitada imóvel, com o peito nu, ligado a uma
confusão de fios, exalando um cheiro adocicado de doença, pálido e com faces
afundadas, chiando, mal podendo ser visto em uma cama feia de metal — este é o meu
pai. Sua aparência é de assustar.
Enquanto estou muda de choque — embora não possa evitar o pensamento de
que poderei afastar-me de meu serviço por uma semana, pelo menos —, minha mãe está
audivelmente inconsolável. Nana Flo não diz nada, mas olha para seu filho, pouco mais
do que pele esticada sobre um crânio, e seus olhos contraídos brilham. Pouso minha
mão relutantemente sobre seu ombro ossudo. Para minha surpresa, minha avó dá-me um
tapinha carinhoso na mão. Então abraço minha mãe, murmuro palavras inúteis em seu
ouvido e assisto enquanto ela segura a mão inerte de meu pai e choraminga. Nana Flo
piscou para livrar-se das lágrimas e senta-se em silêncio ao lado de mamãe, como um
nervoso anjo da morte. O adolescente sugere, baixinho, que se formos à sala de espera
poderá explicar o que está acontecendo. Mas, como minha chefe Laetitia costuma
lembrar-me a todo momento — exigindo citações diretas da rainha, não de um mero
clone do Departamento de Imprensa do Palácio de Buckingham —, você deve falar com
quem dá corda no realejo, não com o macaco. Corro até ele, que já se retira.
— Desculpe-me! — falo, enquanto ele se vira para mim. — Eu... eu não quero
ser rude, mas será que poderíamos conversar com o especialista, para ver o que
podemos esperar? Quero dizer, quanto tempo...
O adolescente suspira e diz que chamará o residente. Cinco minutos depois,
retorna com um sujeito que deve ter no máximo vinte e dois anos. Este apresenta-se
como Simon e nos diz que papai está muito doente. Grande novidade. Depois explica,
como se falasse com pré-escolares, o que é um ataque cardíaco. Diz que estão fazendo
tudo o que é possível. Drogas muito poderosas. Uma grande porção de músculos
afetados. Pressão sangüínea inexistente. Colapso renal. Acúmulo de fluido nos pulmões.
Difícil fazer uma estimativa precisa. Ele não tem uma bola de cristal. Melhor vivermos
uma hora após a outra. Parafraseando, este ataque cardíaco foi dos grandes. A julgar
pelo olhar constrito de Simon, meu pai não viverá muito.
Nana, minha mãe e eu sentamo-nos impotentes ao lado da cama de papai até que
o céu torna-se negro e nos pedem para ir a uma outra sala de espera decadente. Não há
cortinas ali e, quando pressiono meu rosto contra a janela, posso ver Londres inteira
piscando adoravelmente sob o céu escuro. Passamos a noite sentadas, andando a esmo,
olhando umas para as outras, suspirando. Hilary, uma enfermeira especializada em
problemas cardíacos, vem várias vezes atualizar-nos sobre o estado de papai, falando
com voz macia. Hilary, na verdade, é ele, não ela, o que causa grande desprazer em
Nana Flo, que fica repetindo "Isto não está certo". Graças aos lamentos e choro
angustiantes de minha mãe, permitem que vejamos papai duas vezes, brevemente. Cada
vez que meu pai arfa, preciso contê-la para não apertar o botão vermelho de emergência.
Durante a vigília, Hilary pede que mamãe baixe a voz, já que outras pessoas na unidade
estão tentando dormir. Ela tem um acesso de raiva pela audácia do pedido e vai para o
corredor. Eu me curvo em um pedido delicado de desculpas bem inglês a Hilary e saio
atrás de mamãe. A noite é longa. Às cinco da manhã estou indecentemente faminta, de
modo que saio do hospital, vou até a esquina e compro batatas fritas Pringles Cheez
Ums. Minha mãe "não consegue comer nada". Nana Flo devora pelo menos metade de
minhas batatinhas. Ela estende o braço de tal maneira para pegar a batata, que fico
surpresa por não deslocar a articulação.
Logo depois de amanhecer, minha mãe vai "esticar as pernas" e Nana Flo vai ao
banheiro — o que, felizmente, tira-a de perto de mim por vinte minutos. Hilary aparece
na porta e pergunta:
— Você gostaria de vê-lo?
Digo que sim. Meu coração está acelerado. Um segundo depois estou sozinha
com meu pai. Uma sombra de barba grisalha cobre seu queixo e o choque atinge-me
como uma bofetada. Pouso minha mão suavemente sobre a sua. Eu deveria dizer
alguma coisa, mas sinto-me embaraçada. A coisa mais embaraçosa, o que meu pai
sentiria como seu maior embaraço, é a grande bolsa plástica quadrada e transparente de
urina, pendurada em uma mangueira, que, felizmente, desaparece sob as roupas de
cama. As bolsas de outros pacientes estão cheias de urina cor de laranja. A de meu pai
— eu percebo com alívio — está vazia.
Detesto soar como alguém que trabalha para uma revista feminina, mas acho que
deveriam inventar uma bolsa de urina menos feia e mais opaca. Estou cogitando sobre
essa possibilidade quando meu pai emite um ruído alto. Droga! Diga, diga agora, agora
diga! Mas estou perplexa. Agarro a mão dele e penso, meio tensa, "eu amo você". Pai,
ai te amo. Pai, eu nunca lhe disse isso. Papai, espero que você saiba. Pai, eu sei que
nós não fomos, não fizemos... Simplesmente diga! Mas não é possível. As palavras são
cola. Pensei em "tudo acabado entre nós", no entanto é um milhão de vezes mais difícil
de dizer.
As horas passam e eu ainda não disse o que deveria. Em vez disso, seguro sua
mão e pouso minha testa sobre ela. Esta é a mão que acenou para táxis, estalou os dedos
pedindo a conta, assinou cheques com um floreio, acariciou o rosto de minha mãe e me
deu tapas no traseiro. Esta mão enorme, quente e sólida, logo estará fria e morta, com a
carne apodrecendo descarnando sob o solo duro e frio. Jesus Cristo. Minha mãe entra
apressada com um exemplar do Daily Mail e marcha até Hilary, para perturbá-lo.
Assim, em vez de dizer "eu amo você, papai" e chorar minhas lágrimas filiais sobre seu
corpo frágil e moribundo, leio para ele algumas partes da seção financeira do Daily
Mail.
Nana Flo volta e me olha com suspeita.
— Ele não pode ouvi-la! — diz, alto, antes de sair novamente.
Levanto-me, vou até o corredor, chuto a parede e quase fraturo um dedo do pé.
Encosto-me e respiro profundamente. Então me arrasto para a ala, novamente —
ignorando os olhares espantados dos doentes e infelizes —, e continuo minha leitura
particular para meu pai. De repente, o murmúrio suave da ala transforma-se em um
caos, com gritos de "ele está em parada!", "dê alerta para parada!", e uma multidão
vestida de azul e branco corre em minha direção berrando, mexendo na cama, puxando
carrinhos e fechando cortinas. No meio da confusão, enquanto sou afastada dali, vejo
que a leitura laranja na tela negra do monitor cardíaco transformou-se em rabiscos
desordenados — e meu pai desmoronou ainda mais em seu travesseiro. Assim, estou
com ele em sua morte, mas cada um de nós dois está sozinho.
Vinte minutos depois, acompanhado do adolescente, um médico oferece
explicações a minha mãe, soluçante e trêmula, e a minha avó silenciosa e ainda imóvel.
Há uma breve confusão quando ele diz que meu pai sofreu uma parada cardíaca e que
agora "foi para outro lugar", mas o complemento apressado "quero dizer, ele está
morto" esclarece tudo.
Meu pai está morto. Ele morre às sete e quarenta e oito da noite. Ele morre durante
aquele momento dourado do dia — quando o sol poente derrama sobre o mundo uma
capa dourada e morna, de luz encantadora. Não há mais horas douradas para Maurice. E
um belo dia e meu pai está morto.
CAPÍTULO 3
Os sapatinhos da Cinderela não eram de vidro, mas sim de pele. Ocorre que,
quando os franceses interpretaram o texto original, traduziram "forrado de pele" como
verre. A voz de minha mãe se aquece enquanto me conta isto — e sei que ela vê
Cinderela como uma garota mais simples e caseira do que a madame ousada que
caminhava com sapatinhos duros de vidro, fazendo cloc-cloc pelo salão do baile real.
Ela adora coisas assim e é por isso que, como professora de criancinhas, minha mãe é
um sucesso.
Por isso e porque ela consegue gritar mais alto do que qualquer pessoa que
conheço. As crianças a adoram, bem mais do que minha mãe as aprecia. Seu lema é
"não pode haver envolvimento". Nem mesmo quando a mãezinha do Ahmed, de cinco
anos, liga para perguntar se ele pode passar a noite na escola, porque as pessoas brancas
estão quebrando suas vidraças, espancando o pai do menino e jogando cocô de cachorro
dentro de sua caixa de correspondência, há três anos, e Ahmed precisa dormir um
pouquinho. Minha mãe não costuma levar trabalho para casa.
Em casa, vive um conto de fadas todo seu. Ela é a princesa do nordeste de
Londres, com um príncipe atraente chamado Maurice, que veio ao mundo para cuidar
dela. Você jamais perceberia que minha mãe é uma mulher inteligente e educada. Ela se
apavora se precisa programar o videocassete e é famosa por não retornar telefonemas de
Nana Flo ou de qualquer outra pessoa que a aborreça. Além disso, segue a escola de
pensamento da ostra, que diz que se você ignorar seus amigos e parentes exigentes ou
aborrecidos, eles irão embora — em vez de ficarem zangados e ofendidos. Ela quer tudo
agradável e, se não for, bate o pé até fazer com que seja.
Por esta razão, a morte de meu pai — a morte de meu pai! — é um problema.
Ela não quer se envolver. Ela não queria ver o corpo dele (para ser justa, eu também
não), recusou-se a ver o capelão que cuida dos enlutados — "não diga esta palavra!" —
no hospital e não quis tomar parte nos arranjos do funeral. Assim, quem cuidou disso
fomos eu e Nana Flo que, surpreendentemente, tornou-se um furacão de eficiência.
No trabalho, tudo correu bem. Liguei para Laetitia na segunda-feira de manhã.
Ela mostrou-se solidária, mas pressionou-me e sugeriu que eu fosse trabalhar para
"afastar minha mente dessas coisas". Eu disse:
— E... acho que estou conseguindo fazer isso, mesmo sem trabalhar.
Ela também ofereceu-se a enviar-me algumas revistas "para ajudar a passar o
tempo". Aceitei, porque teria sido indelicado recusar. De qualquer modo, ganhei uma
semana de folga — licença paga, grande gentileza. Se eu ainda não for trabalhar semana
que vem, receberei metade do que teria direito. Sentindo-me irritada e meio tonta, ligo
para confirmar o que aconteceu com meu pai, na manhã de terça. Digo as palavras, mas
eu mesma não estou convencida. Imediatamente, a secretária da editora envia um
imenso buquê de flores de cor laranja para a casa de meus pais. Luke concordou em
tomar conta do Gorducho, pois minha mãe está em um estado lastimável, de modo que
lhe faço companhia. Uma coisa preciso dizer sobre as garotas da GirlTime, elas são um
time e tanto. Lizzy me liga, diz o quanto lamenta e pergunta baixinho se estou bem.
— Estou bem — digo rapidamente, antes de poder pensar sobre isso.
— Tem certeza?
Eu confirmo, fazendo uma pantomima breve com a voz:
— Estou bem, sim, estou ocupada, minha mãe está tendo um chilique porque
não consegue acreditar na "crueldade" das autoridades, que exigiram o passaporte de
meu pai de volta.
Lizzy deseja saber detalhes. Quando lhe conto que recolhi as roupas e o relógio
dele, coloquei seus pertences em uma sacola plástica e minha mãe não queria sair do
hospital, ela começa a chorar alto. Não é justo, mas isso me aborrece. Como ela ousa
chorar! Depois, tenta alegrar-me com histórias engraçadas do escritório, contando-me
que hoje o diretor administrativo levou o ex-refém Terry Waite — ela realmente diz
assim, "ex-refém" — para mostrar-lhe o escritório e sua visita passou em branco,
porque havia uma grande liquidação de produtos de beleza. Este é o dia em que o
departamento de beleza vende todos os cosméticos que acumulou por cinqüenta
centavos de libra a unidade e entrega o que arrecada a instituições de caridade. Todas
nós lutamos com unhas, dentes e empurrões, na determinação de agarrar aqueles
produtos de grife. Não dou a mínima para a história contada por Lizzy, mas ainda assim
consigo fazer um pequeno ruído de apreciação.
Depois, Lizzy diz algo que ninguém mais sonharia em dizer.
— Helen — ela fala, em tom solene — tenho certeza de que você foi uma filha
maravilhosa. Tenho certeza de que seu pai sentia muito orgulho de você.
Ah, Deus... Isso é horrível. Isso é uma coisa horrível para se dizer.
— Lizzy, por favor, não diga coisas assim — sussurro, e desligo
apressadamente.
Estou tremendo, minha cabeça parece cheia de chumbo e instável, como uma
rocha prestes a despencar por um penhasco. Aperto meus dentes com tanta força, que
meu rosto todo torna-se uma careta só. Respiro, rápido e superficialmente, até sentir
novamente o cobertor confortável do torpor. Sinto-me confiante apenas para falar.
— Esta casa está muito escura e gelada — olho atravessado para Nana Flo. —
Parece um necrotério — acrescento, maldosamente.
Marcho pela casa, ligando todos os aquecedores e acendendo lâmpadas. Ainda
estou gelada, porém sinto-me mais calma.
No quarto deles — correção, em seu quarto —, mamãe está sentada no chão e
cheira um peça de roupa de meu pai. Deixo ali uma xícara de chá descafeinado, penso
que cafeína pode levá-la a uma reação totalmente descontrolada. Tomei a providência
de esconder o Nurofen. Enquanto isso, Nana Flo e eu dividimos as obrigações
relacionadas à morte de meu pai, que chegam a aproximadamente um milhão:
advogados, avisos, certificados, formulários, testamento, estabelecimento da validade
do testamento, pensão, seguros e impostos. Jesus! Se eu pensar em tudo o que preciso
fazer, começarei a gritar e parecerei louca, de modo que tento não pensar. Tudo o que
digo é que detesto cuidar de alguém e organizar coisas. Logo, hoje não é um bom dia.
Idealmente, gostaria de me encolher na cama, fitar o espaço, mas meu coração ainda
bate forte, tornando-se impossível relaxar. Isso está fazendo maravilhas em meu
metabolismo e agora sei porque pessoas enlutadas emagrecem tanto. Michelle terá
inveja de mim. Além disso, jamais pensei que diria tal coisa, mas graças a Deus por
Nana Flo. Ela conseguiu tirar minha mãe de seu estupor o suficiente para mostrar-nos
onde papai guardava seus documentos. Também ligou para todos os parentes
desagradáveis e lhes pediu para não aparecerem ainda, além de insistir em buscar a
certidão de óbito — o que envolve uma ida cansativa até Camden.
Faço-a tomar um táxi. Ela começa a protestar, dizendo que pode tomar um
ônibus, então digo que é por minha conta. Peço ao motorista para esperá-la e trazê-la de
volta, quando pagarei. Ei, é apenas dinheiro, meu pai está morto, é bom vivermos um
pouco. Não sei se é delírio, mas estou começando a usar chavões ao falar. Quando ligo
para a casa funerária listada nas Páginas Amarelas — casa! Será que estão brincando?
—, digo:
— Estou ligando por meu pai.
Parece até que estou reservando um apartamento para ele em algum hotel!
Não tenho nem idéia do que faço e estou usando um folheto azul que ganhei de
uma mulher no hospital, com o título de "O que fazer depois de uma morte na
Inglaterra e no País de Gales", como um roteiro. O livreto azul é bem mais útil que
minhas amigas inúteis. Lizzy liga novamente para dizer-me que esteve conversando
com o diretor de saúde e beleza, que lhe contou sobre a existência de um organização
chamada O Centro da Morte Natural, que realiza funerais ecológicos e fabrica caixões
biodegradáveis. Depois, ela diz as palavras "casulo de ramos tramados de salgueiro" e
eu falo:
— Agora já chega!
Cerca de seis horas depois, Nana Flo volta, triunfante, com a certidão de óbito
— bufando de raiva porque custou-lhe seis libras e meia. Enfio esta quantia em sua
bolsa enquanto ela está no banheiro.
Apesar do horror, digno de risadas, da situação, o cara da funerária é bastante
gentil. Ele parece-se, como eu já esperava, com Uriah Heep — ou como imagino que
Uriah Heep se pareceria, jamais tendo passado da primeira página de qualquer romance
de Dickens, além de Great expectations, que nos forçaram garganta abaixo na escola.
Ele é alto, ossudo, com olhos azuis aguados e cabelos grisalhos naquele estágio crítico
de precisar ser escovado atravessado sobre a calva até o outro lado para cobri-la. Seu
aperto de mão dá arrepios, de tão mole. Preparo-me para enfrentar um parasita nojento,
mas ele revela-se muito educado. Leva-me a uma sala, cujo ponto focai é uma pintura
muito ruim de um veado numa floresta fechada, com um raio brilhante de sol apontando
diretamente para a cabeça do animal. Ele oferece-me café e apresenta as opções.
Folheamos uma brochura de caixões. Acho que Nicky Clarke surgirá a qualquer
momento. Uriah diz:
— Se um cliente opta pela cremação, recomendamos o que eu chamo de um
caixão simples, mas digno — ele acrescenta, com delicadeza. — E madeira de
qualidade inferior, mas você sabe o que acontece em uma cremação.
Eu sinalizo que sim com a cabeça, como se discutisse a cremação de meu pai
com freqüência. Uriah continua:
— Fica bonito e, durante a cerimônia, não dá para perceber a diferença.
Abençoada sensibilidade.
Ele também apresenta-me uma brochura sobre coroas, cheia de anjos grandes e
corados, almofadas, trombetas e tronos. Isso é esquisito — certamente a morte tem mais
a ver com estar deitado do que sentado. O custo da sepultura é inacreditável, e Uriah
mostra-se apropriadamente indignado com os preços de Londres.
— Um lote de terra que pode abrigar até três pessoas...
"Abrigar?"
— ... custaria mil libras.
Ele percebe meu ar chocado, embora esteja menos chocada com o alto custo do
que com a perspectiva de "abrigar três", e acrescenta:
— A terra em Londres é muito cara. Um lote no cemitério de Highgate pode
custar cinqüenta mil libras! Há pouco tempo, tive que enterrar minha mãe em Cornwall.
O lote custou cinco libras!
Com isso, levanto minhas sobrancelhas e digo que, apesar do custo, acho que
minha família deseja um enterro decente.
Enterro, sepultura, morte, corpo de meu pai — um novo vocabulário de palavras
feias, estranhas e asquerosas. É grotesco e não posso acreditar que estou aqui. Sento-me
paralisada em minha cadeira, com os pés bem juntos, e durante todo o tempo minha
cabeça gira como se estivesse no Big Dipper de um parque de diversões. Meu cérebro
está gritando "Isto é ridículo, não pode ser real" e desejo correr, correr, até que não seja
real. Nesse meio-tempo, Uriah salienta que pode trabalhar com o hospital, com o
pároco, oferecer o ataúde, os carros fúnebres, remover todos os incômodos de minha
cabecinha feminina. Ele garante que, até o funeral, "papai poderá ficar conosco". Eu
sorrio e assinto, embora não possa imaginar nada que desgostasse mais meu pai.
Ainda acrescenta:
— Vocês podem dar uma chegadinha e vê-lo sempre que quiserem.
Uriah sugere que eu vá para casa, discuta os detalhes menores com minha mãe e
ligue amanhã. Ele despede-se com outro aperto molengo de mão, dizendo:
— É um dia horrível, não?
Ele está certo. Está chovendo bastante e o céu cinzento combina tanto com um
funeral quanto seu terno também cinza.
— Obrigada — digo, e corro para a Toyota.
Entro em casa e não posso crer em meus olhos! Adoro esta frase, dita pelo
Mágico de Oz. Prefiro-a acima de minha outra favorita, "dá pra acreditar"! Quem eu
vejo, sentado à mesa da cozinha, fazendo minha vó babar de encantamento — logo ela,
que já tem idade suficiente para não cair nesse truque — e minha mãe — que aplicou
magicamente uma maquiagem completa e dramática de viúva arrematando-a com
vestido preto longo — senão Jasper!
— Jasper? — pergunto, num gritinho estridente.
— Helen! — minha mãe diz, toda suave e doce, levantando-se com rapidez da
cadeira e me amassando em um abraço longo e cheio de pesar. — Você ficou fora por
tanto^tempo! Eu estava morrendo de preocupação! Achei que você havia sofrido um
acidente! Ah, por favor! Até parece que ela costuma abraçar-me!
— Mãe, não seja tola. Eu estava cuidando do pap... — quer dizer, do funeral.
Conto tudo mais tarde.
Eu me livro de seus braços de aço e beijo o rosto de Jasper de modo cândido.
Tolamente, estupidamente, sinto a maior alegria por ele estar aqui. Nana Flo e minha
mãe não demonstram qualquer intenção de nos deixar a sós, de modo que sugiro a
Jasper que podemos conversar no andar de cima.
Vamos até o estúdio de papai, que na verdade é meu antigo quarto. Meus pais
transformaram-no em um estúdio no mesmo dia em que saí de casa.
Jasper tem algo a dizer. Seu rosto está muito sério.
— Helen — começa. — Sinto muito por sua perda. Pobrezinha! Pelo menos ele
não sofreu e teve uma boa morte. Tenho certeza de que o tempo curará o sofrimento.
Ele pára. Estou furiosa. Mas que bobalhão meloso e banal! E o que mais? Será
que devo tentar manter-me ocupada? Será que é bom desabafar? Tomar um banho de
espuma?
— Isto é muito reconfortante, Jasper — sem tentar esconder meu sarcasmo —,
embora eu preferisse que meu pai ainda estivesse vivo.
Isso perturba. No mundo de etiqueta vitoriana de Jasper, as mulheres não
respondem com ironias. Ele gagueja e depois acrescenta:
— Certo. Deve ser muito difícil para você. E deve ser pior ainda para sua mãe,
que o conhecia há mais tempo que você!
Mas meu bom Deus! Deve ser pior para todos nós, seu asno idiota!
— Olhe, Jasper. Sinto-me tão irritada que mal posso falar. Sinto meu corpo todo
sacudindo e, se você deseja os detalhes sórdidos, meu esfíncter pulsa em três espasmos
bruscos, provavelmente está completamente atônito por eu dizer o que penso. Meu pai
acabou de morrer, tenho muito o que fazer, e você dizendo coisas... Dizendo esse tipo
de coisas, simplesmente não ajuda em nada.
Pela primeira vez desde que este fiasco começou, estou quase chorando.
— Você tem mais alguma coisa para me dizer? — pergunto.
Ele olha para o chão. Depois, para minha surpresa, seu rosto enrubesce
lentamente.
— Domingo — anuncia —, eu menti. Eu vi Louisa semana passada e fomos
para a cama. Eu... Eu não pretendia. Simplesmente aconteceu.
Ele olha direto em meus olhos e eu enfrento seu olhar.
— Eu me senti muito mal — explica — e, já que seu pai faleceu, achei que lhe
devia a verdade.
Que cidadão elegante, corajoso e decente você é!
— Bem... que gentil. Pelo menos a morte de meu pai trouxe algo de bom!
Jasper não entende. Ele parece contente e diz:
— É...
— Jasper — começo, cerrando meus punhos. — Você é um canalha. Por favor,
vá embora. Está tudo acabado.
Sua cabeça vira-se rapidamente, pego de surpresa.
— Mas — ele diz, gaguejando — , mas benzinho, foi um erro! Um erro de
julgamento!
Meus olhos relampejam, ao fitá-lo.
— Certamente foi.
Consigo falar isso e nem mesmo sei se me importo mais, talvez esteja usando
essas palavras porque normalmente é o que se diz. Jasper passa a mão entre seus cabelos
e, em tom superprotetor, diz:
— Helen, você está...
Eu o interrompo. Em voz dura, falo:
— Jasper, acabei de lhe dar o fora.
Os olhos maravilhosamente azuis endurecem-se e ele encolhe os ombros. Depois
sai, fechando a porta devagar.
Jesus. O que fiz? A tontura volta. Lágrimas de raiva começam a cair,
rapidamente, descontroladamente. Furiosa, fungo com força e seco os olhos com as
mãos. Entro na cozinha em estado de confusão total. Sinto-me doente, com dor de
cabeça, exausta. Minha mãe ergue a cabeça.
— Helen, que moço mais agradável! Não posso acreditar que você nunca o
apresentou a nós! Ele me trouxe lírios.
Pausa. Ela vê meu rosto vermelho e acrescenta, suavemente:
— Querida. Você sabia que durante a guerra eles cultivavam vegetais no fosso
da Torre de Londres?
CAPÍTULO 4
Como presente pelo meu quarto aniversário, meu pai levou-me para ver O
Quebra-Nozes e eu o embaracei, berrando: "Eu também quero ser uma fadinha!"
De lá para cá, revisei esta ambição, pela triste razão de que as fadinhas usam
saias e vestidos. Eu não uso saias nem vestidos. Recuso-me a fazer isso. Não usei uma
saia por mais ou menos cinco anos, porque minhas pernas são curtas e troncudas e, se
uso uma saia, pareço com um buldogue com roupinha. Recentemente vi um vestido
tubinho, como aquele usado por Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo, na Miss
Selfridge, e rompi minha regra, impulsiva e irresponsavelmente. Usei-o para trabalhar e
pensei: Minhas pernas até que são bonitinhas! Depois, vi as pernas de outra garota e
pensei: Meu Deus, onde eu estava com a cabeça? No dia seguinte, dei o vestido para
Michelle — que aceitou-o com satisfação e disse que primeiro o levaria para lavar a
seco.
Incrivelmente, minha mãe recusa-se a aceitar minha regra de não usar saias.
— Não se pode usar calças compridas em um funeral! — esbraveja.
— Por que não? Papai não se importaria!
Quando digo isso, ela bate o pé. Ela tem cinqüenta e cinco anos!
— Sim, mas eu me importo! — exclama, exasperada. — Helen — sua voz
começa a falhar — simplesmente faça isso! Não discuta comigo, estou avisando! Não
vou suportar!
Mamãe poderia ensinar a Elton John algumas coisinhas sobre como ser a rainha
do dramalhão. Meu pai não se importaria se eu comparecesse ao seu enterro vestida de
bombeiro.
Será que já disse que meu pai condenava a nudez como um ato de satanismo?
Ele também condenava a religião como se fosse um ato de satanismo.
Conseqüentemente, seu funeral deve ser — como exigi de Uriah — leve, em termos
espirituais. Nada de cânticos, nada de igreja ou templo. E nada de amarelo, porque meu
pai detestava amarelo. Apenas uma cerimônia simples à beira do túmulo.
— Executada por quem? — Uriah perguntou.
— Por um pároco, é claro!
Isso intrigou Uriah, até explicar-lhe que não podia pensar em outro tipo de
pessoa para levar avante o ritual, embora o primo Stephen tenha se oferecido, de modo
que precisaria ser alguém ligado à religião. Mas ele terá que ser breve e, se possível,
evitar o amarelo e referências a Deus.
Minha mãe sabe muito bem disso, mas ainda assim leva este assunto da saia a
proporções intergalácticas. Subitamente, o pensamento de passar mais um minuto em
sua companhia chiliquenta e lacrimosa é insuportável.
— Muito bem — cuspo as palavras como se fossem sementes de uva, — Você
venceu. Eu usarei uma saia. Usarei uma saia, mas quem decidiu isso fui eu! — e decido
isso enquanto as palavras ainda estão sendo pronunciadas. — Quero ir dirigindo meu
próprio carro sozinha até o local do funeral. Não quero ir no cortejo fúnebre, naquela
fileira de carros. Acho mórbido.
Isso é o estopim para a terceira guerra mundial.
Não vou fazer isso de jeito nenhum. Sou louca. Quero matá-la. Jamais se ouviu
coisa assim. O que as pessoas pensarão? E blá-blá-blá. Felizmente, parte de minha
função na revista envolve telefonar para especialistas, com objetivo de obter
depoimentos extras e criar um atrativo em artigos chatos escritos por jornalistas
freelance entediados e muito bem-pagos. Assim, emprego uma artimanha roubada de
um dos muitos psicólogos que entrevistei na GirlTime — a técnica do disco arranhado.
Tudo o que minha mãe lançar em minha direção — acusações, ameaças, súplicas e a
seção amassada de educação do The Guardian —, todas as frases intensamente
irritantes, eu repetirei calmamente.
— Sim, eu percebo isso, mas decidi ir dirigindo meu próprio carro até o funeral.
Na quinta repetição, ela emite um uivo profundo e grita:
— Cale-se, cale-se, cale-se, não suporto isso!
E sobe correndo as escadas. Tomo isso como um sinal de rendição e volto para
meu apartamento, triunfante. Não me sinto culpada. Por que deveria?
Checa a manhã do funeral. Saio de meu sono comatoso e sinto o puxão
nauseante do medo, sem saber por quê. Depois, lembro. O céu está azul, mas faz um dia
frio, ventoso e ruim. O tipo do dia que arruína seus cabelos mesmo se você usou mousse
e o deixou completamente duro. Para piorar ainda mais as coisas, Tina esteve em Nova
Iorque fazendo fotos de moda até ontem, de modo que não está disponível para
consultas, e a única saia barata que consegui encontrar ao sair sozinha para fazer
compras foi algo longo, preto e de um tecido flexível, com um laço que não pode ser
retirado da cintura. Eu a visto e fico imediatamente parecida com a cantora Alison
Moyet.
O apartamento está silencioso, golpeio e bato portas para torná-lo menos
silencioso. Estou irritada com minha mãe, que não ligou. Sinto-me um pouco mais
alegre quando mudo a estação do rádio e escuto que um balão de ar quente contendo
dois nerds caiu no mar, destruindo assim sua tentativa de bater o recorde mundial
entediante de volta ao redor do mundo. Jesus! Este é o passatempo deles! Estou
procurando meus brincos e imaginando que tipo de agulha seria necessária para estourar
um balão de ar quente, quando olho para o relógio e percebo que já são dez e vinte e
cinco e o funeral começa às onze.
Seis minutos de correria doida pela estrada, estou entrando em Golders Green,
tentando aplicar batom, olhando-me no espelho retrovisor. Vinte e cinco Volvos, no
mínimo, estão estacionados em fila dupla no meio da estrada. Acho que deveria ter pego
uma via diferente, quando sinto um movimento familiar a distância. Concentro minha
atenção e vejo meu pai caminhando pela calçada. Meu estômago revira-se enquanto
observo suas passadas rápidas, seu andar confiante, seus ombros quadrados. Então, ele
olha rapidamente para trás, uma vez só, e não é meu pai. Ouço um estouro
incrivelmente alto, sinto um leve deslocamento enquanto sou sacudida, meu corpo é
jogado para frente e paro abruptamente, depois de desviar — lentamente, mas com
convicção — na direção de um Fusca laranja estacionado.
— Ah, nããããããoooo! — berro.
Minha primeira reação é ligar para papai. Eu poderia explodir em lágrimas, mas
meu rimei não é à prova d'água. Em vez de chorar, salto do carro e corro para
inspecionar o dano. Imediatamente, outros carros começam a buzinar. Uma mulher
bem-arrumada num Jeep Cherokee baixa seu vidro e comenta, simpática:
— Você estava indo rápido demais.
Depois, ouço o grito agudo de alguém.
— Você destruiu Nancy!
A voz pertence a uma mulher loira e miúda, que usa um lápis labial contrastando
com sua boca e um casaco branco. Seu rosto está tenso de raiva. Ela corre na minha
direção até ficarmos nariz a nariz. Posso sentir levemente seu hálito rançoso.
— N-a-n-Nancy? —gaguejo, horrorizada. Ah, meu Deus, matei alguém.
— Nancy é como chamo meu carro, sua besta!
Vem a onda de alívio, percebo que não irei para a prisão. Isso, mais o lento
processamento cerebral do fato de que uma estranha ridícula que batiza seu carro com
um nome está me chamando de besta fundem-se num surto de adrenalina, e eu urro:
— Ora, dane-se! Pare de berrar, é só uma droga de carro do tamanho de uma lata
de Coca-Cola!
Ela parece chocada — provavelmente não pensou que alguém usando uma saia
como esta diria isso. Ela abre sua boca excessivamente maquiada para devolver o
insulto, mas não estou no humor para tanto. Grito:
— Sinto muito! Mas estou a caminho do funeral de meu pai e...
Paro no meio da frase. Paro porque um homem alto, de cabelos escuros, também
usando um casaco branco, correu até nós e aparentemente espera ser incluído na
conversa.
— Sim? — pergunto, gélida.
Instantaneamente, a loira parece delicada e frágil.
— Tom! — sorri, afetadamente. Está praticamente fuçando o peito dele. O
desprezo que sinto deve ter transparecido em meu rosto, porque ela me lança um olhar
malvado.
— Tom, olhe só o que ela fez com Nancy!
Ambas olhamos para a lateral amassada de Nancy. Depois olhamos para Tom.
Ela olha-o com adoração. Eu tento esnobá-lo, dou uma segunda olhada para o homem à
minha frente e tento eliminar o sorriso de ironia. O resultado é uma contração brusca em
meu rosto. Tom é muito bonito! Ou, melhor dizendo, ele tem — e sei que isso não
parece uma cantada fantástica, mas considere meu comentário como um fetiche pessoal
— olhos de um cão husky, de um azul frio, pálido e penetrante. Aúúúúúú! E seus
dentes... dentes de lobo. Sei disto porque me dá um sorriso surpreso. Caninos pontudos
me atraem. O que posso dizer? Isso é esquisito, eu nem mesmo gosto de cães.
— Celine, é só o pára-choques. Pare de gritar.
Depois ele volta-se para mim, perguntando:
— Você está bem? Quer sentar-se?
Balanço minha cabeça.
— Estou atrasada. Estou atrasada para o funeral de meu pai e ainda me acontece
isso!
Minha voz é sufocada. Celine caiu em um silêncio rebelde.
— O quê? — Tom pergunta.
— E quanto a Nancy? — Celine pergunta, com mau humor.
— Eu cuido do carro — Tom diz. — Entre e depois conversamos.
Celine some. Tom contrai o rosto.
— Desculpe-me por ela. Você parece em choque. Será que consegue dirigir?
Encolho os ombros. Quero dizer que estou bem, mas o que sai é "estou tonta".
Dou uma olhada no relógio e percebo que o funeral começa em menos de quinze
minutos.
— Estou tão atrasada! E o Fusca!
Tom acena na direção do Fusca.
— O Fusca é uma lata velha. Esqueça. Podemos falar sobre isso depois. Você
parece um pouco confusa para dirigir. Será que posso chamar um táxi?
Balanço minha cabeça.
— Começa em dez minutos — sinto-me fraca e frágil, sem mencionar que estou
toda desarrumada. Para completar esta imagem cativante, meu nariz começa a escorrer.
Enxugo-o com minha manga.
— Eu levo você — Tom anuncia. — Estou com a van.
— A van? — pergunto, aparvalhada.
— A van da veterinária.
— Você é veterinário!
— Sim! — ele diz, com um grande sorriso.
— Isto explica o casaco branco.
Depois, decido calar-me. Fico ali abobalhada, enquanto Tom manobra a Toyota.
Percebo, alarmada, que ele dirige tão mal quanto eu. Três segundos depois, ele
reaparece na direção de uma van branca e empoeirada com a palavra "megavet" pintada
na lateral. Buzina e eu entro. Em virtude de minha saia colada ao corpo, que parece
saída de um baile estudantil, o movimento sai desajeitado.
— Você não tem um monte de animais à sua espera? — pergunto, confirmando
minha já enorme reputação de réplicas eloqüentes e esperteza vivaz.
— Não. Quartas-feiras são sempre calmas. Segundas e sextas são de matar.
Onde estamos indo?
É claro que não consigo lembrar, de modo que Tom remexe sob o banco e tira
dali um mapa bem-usado da cidade. Depois de sairmos de Golders Green, ele acelera,
sem vacilar ao ultrapassar carros de polícia. Sei que estamos com pressa, mas parece
que vamos decolar.
— Está tudo bem, comandante? — balbucio, nervosa.
Ele olha para mim.
— Não estou correndo! Você não quer chegar atrasada!
— Não, mas também não quero morrer.
Ele reduz.
— Sinto muito por seu pai.
— Tudo bem.
Depois desse alegre diálogo, silenciamos. Tom então diz:
— Como ele morreu?
Mordo os lábios.
— Ataque cardíaco.
Assusto-me quando a van canta pneus numa esquina. Tom, bem delicadamente,
mete a mão na buzina. Quero mudar de assunto. Preciso mudar de assunto. Vasculho
meu cérebro confuso em busca de informações que possam interessar a um veterinário
de boa aparência que acabei de conhecer, e produzo uma pérola:
— Eu tenho um gato chamado Gorducho.
Deeeus! Qual é o problema comigo?! Meu domínio da língua parece ter
desaparecido. Subitamente, possuo o vocabulário e a articulação de uma criança de três
anos e sou forçada a chupar minhas bochechas para evitar perguntar, ainda: "Qual é sua
cor favorita?"
Para minha sorte, Tom diz, educadamente:
— Ah, sim? Ele é de raça?
Aqui, pelo menos, tenho uma chance de provar que, apesar de todas as
evidências em contrário, realmente possuo um QI aceitável. O que digo?
— Ele é cor-de-laranja.
Estou considerando uma cirurgia de emergência para remover minhas cordas
vocais quando Tom diz, gentilmente:
— Laranja. Gatos de cor laranja são bons.
Isto leva-me ao silêncio. Olho para o meu colo e imagino meu pai morto em seu
caixão, começando a apodrecer.
Sete minutos excruciantes depois, paramos guinchando no portão do cemitério.
— Obrigada. Você foi muito gentil, obrigada — digo, desajeitadamente,
tentando injetar alguma gratidão alegre em minha voz monótona. — O que eu faço
sobre o Fusca?
Tom sacode a mão, desprezando a importância do assunto.
— É melhor correr. Procure Celine quando puder. Você pode falar sobre o
seguro e essas coisas com ela depois. Celine não se importará.
Esta é a mentira mais deslavada que já ouvi desde que minha mãe negou que era
fanática por Steve McQueen. E melhor deixar por isso mesmo.
— Obrigada — agradeço, novamente.
— Não tem de quê.
Tom acena na direção da massa de carros que entope a entrada do cemitério.
— Você ficará bem?
Eu assinto, tensa, aceno um "tchauzinho" e me viro. Meus olhos estão
lacrimejantes. Isso é ridículo. Eu até posso agüentar quando alguém grita comigo. Mas,
gentileza — poupe-me. Até mesmo a palavra faz com que eu ranja os dentes. Isso é
quase tão ruim quanto "ternura". Apesar de seus olhos azuis e dentinhos pontudos,
afasto-me depressa. Vejo Luke em um terno azul-marinho apertado demais, virando-se,
já entro do cemitério, na companhia de uma impecável Tina e uma Lizzy elegante, e
corro, agradecida, na direção deles. Tom se distancia em sua van branca e empoeirada e
eu nem mesmo viro para olhar.
CAPÍTULO 5
Luke é viciado em nicotina. Ele não apenas precisa de um cigarro antes e outro
depois de transar, precisa fumar um durante. Diz que este foi o motivo e ter sido
abandonado por sua última namorada. Ele atingiu-a em um ponto sensível. Diz que
poderia parar, se quisesse, mas recusa-se a mascar chicletes de nicotina, já que "isso dá
úlcera estomacal". Ele fuma na plataforma do metrô ("é proibido fumar nos vagões, não
na plataforma"), fuma durante o banho ("para mim, sendo homem, é o equivalente a
uma vela perfumada") e fuma enquanto come sua pizza com uma camada espessa de
lingüiça calabresa na frente de A Question of Sport ("É um programa estressante, você
não compreenderia"). Será que mencionei que, além de fumar como uma chaminé, Luke
sempre diz o que pensa, sem raciocinar antes de abrir a boca? Assim, não é de
surpreender que, quando entro no portão do cemitério, ele amassa agitadamente com o
pé uma das cinco baganas ainda fumegantes e grita:
— Helen! Você está mortinha, sua mãe está furiosa!
— O quê? — pergunto. Luke ruboriza.
— Quero dizer, sua mãe está pirando. Está uma fera. Todos estão esperando
dentro dos carros.
Olho para Tina e Lizzy. Tina mexe em suas unhas, olha para seus sapatos e
resmunga:
— Mas que bela porcaria...
Lizzy faz cara de tragédia e exclama:
— Pobre Helen!
Eu considero o desconforto delas como corroboração.
— Eles que esperem... — resmungo, enquanto forço caminho entre o que parece
um congestionamento encenado, evitando cuidadosamente o contato visual com as faces
azedas dentro dos carros. Sigo na direção do Jaguar preto, enorme e brilhante,
estacionado atrás do cortejo.
Quando me aproximo, os vidros do carro se abrem.
— Onde você estava? — minha mãe sibila, entre dentes, sob um imenso chapéu
preto.
Surpreendo-me com seus modos comedidos e corteses, depois percebo que o
motorista está ouvindo, irrequieto. Curvo-me, aceno culpada para Nana Flo — que está
agarrando um lencinho rendado com tanta força, que as juntas de seus dedos estão
brancas —, e digo que não consegui chegar antes.
— O que está acontecendo? — pergunto, para distrair a fúria de minha mãe.
— Eles estão no escritório do cemitério — minha mãe diz com uma voz alta e
histérica. — Estão lidando com os documentos e — ela funga. — Não podemos sair de
nossos carros até estar tudo em ordem. Ah, já basta! Eu vou sair do carro! Saia da minha
frente.
Salto para o lado enquanto minha mãe sai do carro. Imediatamente, várias portas
abrem-se nos carros e uma multidão de pessoas em roupas fúnebres começa a caminhar
penosamente em nossa direção. Eu enrijeço o corpo, temerosa. Sem ofensa à minha
família, a amigos e parentes, mas é como A noite dos mortos vivos.
Passo os dez minutos seguintes sufocando em uma nuvem de pós compactos,
cheiro de lavanda e beijos cheios de batom, abraços desajeitados com colisões de
narizes, murmúrios de hálito quente de "lamento tanto!" e "foi tão súbito!". Uma
asserção aguda de "você deve sentir-se grata por ele ter partido tão rapidamente" (ah,
sinto-me deliciada), uma exclamação aguda de "Helen! Mal a reconheço! Você perdeu
sua gordurinha de adolescente!" e "você está cuidando de sua mãe, não está?, foi um
choque tão grande para ela"!
Olho para minha mãe, que se envolveu nos abraços com a mesma volúpia do
Gorducho quando dá de cara com uma tigela de sorvete.
— Sim — digo, sombria. — Ela precisa de muitos cuidados.
Consigo enxergar Uriah — todo arrumadinho e empertigado — emergindo do
escritório do cemitério com o pároco. O pároco! Recordo, com uma fisgada de pânico,
que ele deixou duas mensagens em minha secretária eletrônica, que ignorei e depois
esqueci. Uriah, enquanto isso, parece claramente aborrecido com a multidão anárquica,
mas, enquanto me aproximo, seus lábios contorcem-se num sorriso cuidadoso.
— Senhorita Bradshaw! Como você está?
Eu respondo que estou bem, ele assente brevemente e depois diz:
— Estamos prontos para embarcar na última jornada de seu pai. Você deseja que
o arranjo permaneça no caixão ou devemos removê-lo?
Não tenho a mínima idéia.
— O que as pessoas geralmente fazem? — pergunto.
— A maioria das pessoas prefere tirá-lo. Elas geralmente gostam de doá-lo para
uma ala hospitalar apropriada, neste caso a unidade cardíaca
— acrescenta, prestativo.
Que encanto para os pacientes!
— Então faça isso, por favor.
Tomo consciência de uma diminuição no nível de ruído, durante a qual uma voz
feminina exclama:
— Espero que ele não seja enterrado lá do outro lado. Detesto a caminhada.
Viro-me e meu coração dá um salto enquanto vejo que o caixão draculesco e
negro foi retirado de seu apoio e seis homens em trajes escuros levam-no devagar até
seus ombros. Arregalo meus olhos, horrorizada. Este símbolo sólido, feio e cru da
morte. Deus! Meu pai está ali dentro. Morto. Frio. Rígido. Começando a apodrecer.
Quanto tempo levará até o rigor mortis ceder ao fedor da podridão e... — sou arrancada
de meus pensamentos mórbidos por minha mãe, que avança até Uriah e grita em seu
rosto:
— O primo de Morrie, Stephen, quer carregar o caixão!
É claro que não sozinho, digo a mim mesma. O primo Stephen tem mais ou
menos noventa e três anos e mede o mesmo que um gnomo.
— Mãe — começo, olhando nervosamente para Uriah —, nós deveríamos...
Uriah faz-me parar, tocando levemente em meu ombro.
— Isto não é problema — diz, magnânimo.
Depois de alguma agitação — e quando eu digo "gnomo", quero mesmo dizer
"gnomo" —, o primo Stephen é promovido a carregador de caixão. Uriah consegue
organizar todos em uma fila longa e desarrumada, ordena com um simples olhar que
Luke apague o cigarro e assuma seu lugar na frente do caixão, com o pároco.
Minha mãe, Nana Flo e eu ficamos atrás. Olho para Nana Flo para ver se ela
pode desmaiar, mas parece forte e zangada, como se estivesse preparando-se para uma
batalha. Minha mãe está tremendo e seu rosto está inchado de tanto chorar. Abraço-a e
quase caio, enquanto ela prontamente relaxa todo o seu peso sobre mim. Ela agarra-se
com um braço e usa o outro para evitar que o chapéu saia voando de sua cabeça e gire
pelo mar branco de sepulturas. Sinto-me como se fosse uma personagem de filme. Isto é
ridículo! Hoje é uma manhã de quarta-feira gelada e ventosa. Eu deveria estar sentada
em minha mesa no escritório superaquecido, tomando um expresso duplo e folheando o
Sun, com o pretexto de fazer pesquisas. Em vez disso, aqui estou, com uma grande trupe
de pessoas, neste fim de mundo, tropeçando na terra lodosa atrás de um caixão metido a
grande coisa contendo meu pai, rumo a uma cova aberta para ele bem fundo no chão...
Vou enterrar meu pai — que, semana passada, estava celebrando com alegria a queda de
seu handicap, com charutos gordos e uma rodada de brandies, com seus camaradas no
bar do Brookhill Golf Club. Imagino como os sapatos de cento e noventa e cinco libras
de Tina estão se dando, na lama.
Durante os primeiros cinco passos da marcha fúnebre, o caixão está instável e
meio caído para um lado — graças ao primo Stephen. Felizmente, os homens de Uriah
levantam-no e o tiram do ombro do primo Stephen, até que este fica, na verdade, sob o
caixão. Ele é forçado a contentar-se com a colocação simbólica de uma mão sobre a
superfície polida e nossa procissão bizarra arrasta-se à frente. Movimento-me como um
zumbi. Todos estão calados e o único som é o de um avião roncando sobre nós e do
vento agitando os ramos flexíveis e cheios dos teixos.
Sinto-me enjoada. Estou sonhando e alguém logo me acordará, dirá que isto é
um pesadelo louco, sem pé nem cabeça, e abrirei meus olhos, em minha cama quente e
macia. Esta situação irreal terá desaparecido. Desapareça. Termine.
— Parem! — mamãe ruge em uma voz que Deus poderia ter usado para abrir as
águas do Mar Morto.
Todos — incluindo, infelizmente, os carregadores — saltam assustados e param
bruscamente. Nana parece estupefata.
— Eu morro e não vejo tudo. — Falo, estupidamente. — O que foi, agora?
Minha mãe está soluçando alto e tremendo tanto que mal pode falar.
— OK — tento acalmá-la, dando tapinhas em suas costas. — Tudo bem,
acalme-se. Há algo errado?
Uriah vem até ela, cheio de preocupação profissional.
Minha mãe puxa o ar com força, engasga-se, mas finalmente consegue dizer,
ofegante, a palavra "aliança".
— Aliança? Aliança? — pergunto — O que tem sua aliança?
Isto leva-a a outro surto de desespero enérgico:
— Nããããaooooooooo! — A aliança dele! A aliança dele! Ainda está em seu dede-
deeee-doooo!
Minha mandíbula cai e me viro boquiaberta para Uriah. Ele me olha também de
boca aberta e pressiona dois dedos ossudos em sua têmpora pálida como se estivesse
com dor de cabeça. O que, na verdade, não deixa de ser o caso.
Inicialmente, tenta adulá-la:
— Mas, Sra. Bradshaw — Uriah diz, quase cantando —, se pensar bem, fizemos
tudo o que devíamos, preenchemos o formulário...
A cabeça de minha mãe, que estivera abaixada, ergue-se subitamente, como um
cachorrinho de mau gênio. Seu olhos brilham. Ela é a rainha da classe e Uriah é um tolo
ignorante que não fez seu dever de casa.
— Por mim tanto faz! — diz, furiosa. — Não quero ouvir suas desculpas! Estou
lhe pagando para isso! Quero a aliança de meu marido, agora! Pegue-a!
Sinto um torpor momentâneo, horrorizada e mortificada. Viro-me nervosamente
para Nana, que não diz nada, mas olha para minha mãe apenas uma vez, rapidamente,
um olhar de ódio declarado. Eu gaguejo:
— Mas você... você não pode...
Volto-me para Uriah, indefesa. Este é um homem que sabe quando foi derrotado.
Ele levanta uma mão fina e cansada.
— Podemos — ele suspira.
Assim, a notícia espalha-se pela multidão congelada e atônita até que todos ali
sabem que o caixão contendo meu pai morto precisará ser levado para trás de algumas
lápides convenientemente altas. Então, o tampo de mogno será aberto, a aliança de ouro
será retirada de qualquer jeito do dedo anular de meu pai, polida no fraque preto de
Uriah e apresentada à minha mãe azeda e desafiadora. Luke infiltra-se atrás deles para
espiar e depois vem dizer-me:
— Com toda a honestidade, Helen, ele nem parecia um cadáver!
Depois deste interlúdio fora do programa — durante o qual percebo que o
pároco olha para seu relógio de pulso —, conseguimos chegar à beira da cova. Tento
dirigir a atenção de minha mãe para os arranjos florais arrumados em torno da cova e
afastados do monte de terra fresca ao lado, bem como evitar que ela olhe para os dois
homens imundos, de pé, não suficientemente afastados, cada um deles encostado
casualmente numa pá enorme e suja.
Os carregadores e o primo Stephen, aliviado, baixam o caixão até o solo.
Ninguém tem bem certeza de onde ficar. Um convidado idoso, com pele de pergaminho
e cabelos como algodão-doce, observa em um sussurro alto demais:
— Eu esperava mais flores, mas acho que chegarão depois.
O pároco aproxima-se de nós e pergunta se há algo especial que deva dizer.
Minha mãe irrita-se. Alguém deu-lhe uma rosa vermelha para lançar sobre o caixão de
meu pai, mas ela picou-a em pedacinhos.
— Como o quê? — ela pergunta.
— Bem... algum tributo ao falecido — ele responde.
— Ninguém falou-me sobre tributos! — exclama, rudemente. — Helen, você
deveria ter-me dito! Eu teria escrito alguma coisa!
Mas que ingratidão...
— Eu?! — digo, alto. Já farta de seus chiliques. — Como eu poderia saber? Por
que você acha que sou a culpada?
Um verme de culpa insinua-se por minha consciência, porque recordo
vagamente, incerta, de que a mensagem do pároco poderia ter mencionado uma nota
breve para incluir em seu pronunciamento — mas desculpe-me, não posso ser
responsável por cada pequeníssimo detalhe!
— Ele foi um pai atento, amoroso — minto, lendo isso em uma lápide próxima
— e um marido maravilhoso e gentil — acrescento, com pressa de agradar minha mãe.
Ela assente, em aprovação.
— Ele era bom no golfe — fala. — Diga isso.
O pároco concorda, afasta-se, limpa sua garganta, oferece um serviço ínfimo e
os louvores mais rápidos, curtos e consoladores que jamais vi, exceto pelos
cumprimentos da diretora da escola em minha formatura.
O caixão é então baixado até a cova. Percebo que Uriah acena discretamente
para o quarto carregador do caixão, que agarra uma corda antes que o primo Stephen
possa pegá-la. Será que é minha imaginação ou os coveiros estão mais perto do que
estavam? Urubus. Nós jogamos um pouco de terra sobre o caixão — Luke consegue
arremessar um grande torrão de terra contendo uma pedra, a duzentos quilômetros por
hora, que faz pank!, enquanto atinge o caixão e o arranha levemente. Mantenho o braço
sobre os ombros de minha mãe, com o pretexto de lhe dar apoio carinhoso mas, na
verdade, para evitar que ela se lance sobre a sepultura. Duvido que faça isso, já que seu
vestido preto custou — de acordo com o palpite bem-informado de Tina — mais ou
menos umas duzentos e cinqüenta libras. Depois do episódio da aliança, porém, não
convém arriscar.
Nana Flo olha silenciosamente para o caixão, sacudindo a cabeça. Estou
contente porque sua irmã veio do Canadá para o enterro, embora sua aproximação seja
difícil, uma vez que sempre que ela dá um passo, um parente bloqueia seu caminho
exclamando:
— Tia-vó Molly! Quando foi a última vez que nos vimos?
Libero minha mãe por um minuto para confortar Nana Flo e, quando pisco,
minha mãe já aproximou-se do pároco, xingando-o:
— Nunca mais usaremos seus serviços! E não pense que lhe daremos gorjeta!
Até mesmo Luke parece chocado. Por um minuto, os assediadores da tia-vó
Molly param de perturbá-la.
O abençoado Uriah vem em auxílio.
— Sra. Bradshaw — diz, suavemente. —A senhora deve estar gelada! Deseja
que eu providencie algum agasalho?
A cabeça ansiosa por atenção de minha mãe gira e sou forçada a lembrar de um
desenho animado em que o herói distrai Godzilla, corajosamente, para que ele não
esmague uma criança, balançando e remexendo seu corpo apetitoso para atraí-lo.
— Sim, eu apreciaria — diz, graciosamente.
O pároco some. Uriah ordena que um serviçal vá buscar uma manta. Luke e o
resto da multidão voltam à vida e começam a tagarelar. Eu quase poderia crer que estão
enterrando um estranho e que meu pai decidiu ficar em casa, como Homer Simpson
evitando ir à igreja.
Depois vejo Nana Flo. Ela está de pé, tensa ao lado da cova, olhando sem ver o
caixão coberto de lama. Uriah aguarda decentemente por um momento, antes de se
esgueirar até onde estou e dizer:
— Quando você quiser, retiraremos os cartões das coroas para serem levados.
Peço-lhe para aguardar um segundo. Corro até Nana Flo, toco seu ombro
levemente e digo:
— O diretor do funeral perguntou se você deseja que ele retire os cartões das
coroas.
Minha avó parece voltar do lugar longínquo onde estivera. Sua cabeça vira-se
devagar como uma tartaruga. Ela diz, em um tom duro e vivo:
— Sim, obrigada, isso seria muito amável.
Eu assinto, retiro-me e mando Uriah ir em frente.
Os homens de Uriah começam a trabalhar e volto meu olhar desfocado para um
outro ponto. Permaneço em pé, fria, imóvel e inanimada como um mastro, enquanto um
torvelinho de faces indistintas gira, dança e tagarela à minha volta. Finalmente, uma
mão gentil em meu braço força-me a voltar àquele momento.
— Helen — Lizzy diz,, baixinho. — Todos estão voltando à casa de sua mãe.
Você quer que eu fique aqui um pouco mais?
Pisco e vejo que a maior parte dos convidados está voltando aos seus carros, os
cartões foram retirados das coroas e os coveiros estão junto à cova abandonada. Uriah, a
distância, ajuda Nana Flo a entrar na limusine preta. Outro avião troveja acima de nós e
fico furiosa com sua intromissão ruidosa.
— Vamos — chamo a Lizzy.
Ela toma meu braço e caminhamos em silêncio pela massa de vidas passadas até
os portões do cemitério, onde Luke e Tina nos aguardam. Minha mãe está acomodada
no carro principal e demonstra satisfação quando lhe digo que vou encontrá-la dali a
pouco. Aperto-me no banco traseiro do Ford Escort amarelo de Tina — um segredo
guardado com obsessão de suas amigas mais moderninhas — e nos vamos. Este é o fim
de meu pai.
— Viemos de tão longe para comer salsichas! — é um veredicto indiscreto, mas
bem verdadeiro, na recepção montada para os convidados, na casa de minha mãe.
Nossos parentes canadenses — já tendo garantido pão, café da manhã, almoço,
jantar, entretenimento, eletricidade, toalhas macias e água quente gratuitos de minha
mãe — retribuem a gentileza da anfitriã arrastando seus corpos preguiçosos até o
supermercado mais próximo e gastando mais ou menos três libras cada um em algumas
bisnagas de pão branco (economia), margarina de gosto horrível (economia), atum
enlatado em óleo (economia), quatro sacos de batatas fritas (economia) e três pacotes de
biscoitos amanteigados. Eu me recuso a comê-los desde que tinha dois anos de idade,
porque não havia cobertura cor-de-rosa ou um recheio de chocolate, para aliviar o
excesso farinhento do biscoito.
Minha mãe praticamente salva o dia, quebrando o cadeado do armário de
bebidas de meu pai. Todos caem sobre o álcool como um bando de alcoólatras. Mamãe
— que é famosa por embaraçar meu pai em festas, exigindo uma xícara de chá —
engole quatro doses duplas de Baileys em dez segundos, depois aproxima-se de mim e
confidencia, em um riso abafado:
— O primo Stephen está tão seco que, quando caminha, seu traseiro range!
Sinto-me secretamente impressionada com esta transformação notável de uma
viúva abatida pelo luto em uma boca-suja vulgar, mas sei que se revelar o menor sinal
de concordância divertida, ela se voltará, alardeando esta sua descoberta espertinha para
todos, incluindo o próprio primo Stephen. Assim, tiro a quinta dose de Baileys de sua
mão, que aperta o copo como um torno, substituo-a por um copo de água gelada e digo,
seca:
— Neste exato momento, mãe, você não está em posição para rir de ninguém.
Derramo o Baileys no ralo da pia. Gostaria que todos fossem embora. Não sinto
a mínima vontade de conversar, nem mesmo com meus amigos. Isto requer energia.
Não quero ouvir a tia-avó Molly contando o quanto divertiu-se conversando com meu
pai sobre o mercado de imóveis no Canadá ou que ele e o primo Stephen acampavam
juntos quando eram adolescentes. Não dou a mínima. Essas pessoas tentam colocar
todas as atenções sobre si neste encontro pesaroso; no entanto, mal podem ser chamadas
de parentes! Não quero ser sociável. Quero que meu pai entre na cozinha e diga: "Helen,
você me serviria uma xícara de café?"
A campainha toca e me curvo cansada, dramaticamente, como um adolescente
mal-humorado, conformando-me em atendê-la. A medida que me aproximo da porta,
consigo distinguir uma silhueta familiar através do vidro trabalhado. Maldição! Saio da
pose relaxada e amaldiçôo a mim mesma por não ter trocado esta saia ridícula, no
mesmo instante em que voltei à casa de minha mãe. Como se soubesse, Luke levanta-se
do sofá.
— Marcus disse que talvez viesse mais tarde! — fala, em tom alegre.
— Muito obrigada por avisar — digo, enquanto ajeito apressadamente meus
cabelos e abro a porta.
— Olá-á-á! — Marcus cumprimenta, em um tom camarada. — Meu amorzinho,
estou arrasado por perder o enterro de seu velho! Eu queria muito estar lá, mas uma gata
desta nova banda só de garotas, o Segunda Edição, queria que eu lhe mostrasse a
academia. Tentei livrar-me dela, mas não teve jeito.
Estreito meus olhos, em descrença, e aperto os lábios para não completar o
beicinho de menosprezo.
— Tenho certeza de que você estava desesperado para escapar da famosa
vocalista — ironizo.
— Ah, Hellie, não faça assim! — ele diz, dando um grande sorriso. — Eu
preferiria estar com você, sempre. Para ser honesto, ela era um dragão. Pernas como
troncos de árvores.
Faço um gesto de indignação feminista, para disfarçar meu sorriso afetado. Por
falar nisso, Marcus é a única pessoa no mundo que eu permito chamar-me de "Hellie".
Tenho sido vítima de uma paixonite crônica por Marcus há mais ou menos nove
anos, desde que o vi na fila da cantina da universidade. Tínhamos em Luke um amigo
comum, mas, como Marcus passava cada momento possível na academia, consegui
aproximar-me dele apenas três anos atrás — quando comprou seu apartamento no Swiss
Cottage e precisava alugar um quarto para alguém, preferencialmente mais confiável
que Luke. Felizmente, não havia ninguém, de modo que Luke sugeriu meu nome.
Marcus é inegavelmente vaidoso, excessivamente arrumado e galanteador
irrecuperável, mas ainda assim consegue ser sedutor. Seu emprego — assistente
administrativo e personal trainer em uma academia chique de Londres, desculpe-me,
spa — serve-lhe como uma luva e, com freqüência, também como ponte para a cama.
Ele sabe que o adoro, que estou humildemente resignada à sua indiferença romântica e
que meu tesão morre a seco. Assim, deduz, corretamente, que sinto o maior prazer em
ser sua amiga e inquilina, mesmo se ele cobra um pouco mais do que eu poderia pagar
com folga (há uma taxa extra pela sublocação do Gorducho). Além do mais, ele é muito
divertido. É um tremendo sacana que critica acidamente todos que conhece, mas, ainda
assim, é fantástico bancando o amigo doce e carinhoso. Marcus gosta de contar fofocas
picantes sobre seus clientes famosos e gosta ainda mais de despejá-las em mim e Luke.
Se parar para pensar — não que eu faça isso, é claro —, acho que posso dizer que
Marcus gosta bastante de mim. Temos um relacionamento de flerte brincalhão, que
ferve quando estou saindo com outro. Mas se ele está envolvido com alguém, a coisa
toda esfria. Quando nenhum de nós está com outra pessoa, tudo pode acontecer.
Mas hoje Marcus está todo meloso. Ele me beija nos dois lados do rosto de um
modo sincero, pousando levemente a mão atrás de meu pescoço. Um choque de desejo
corre por minhas costas, meu azedume desaparece e meu temperamento mais radiante é
magicamente restaurado.
— Você gostaria de beber algo? — ronrono.
— G&T cairiam bem, diet, se possível — responde, imediatamente.
Levo-o para onde Lizzy, Luke e Tina estão sentados, saindo obedientemente dali
para servi-lo.
— Que saia legal, Alison! — ele ainda diz, alto.
— Vá pro inferno! — grito, enquanto dou um encontrão em tia Molly. Ela olha
direto em meus olhos e explode em lágrimas.
Cerro meus dentes.
— Não foi você que mandei para o inferno, tia Molly.
— Ah, não, querida. Eu sei que não foi para mim. É que falar com Florence é
demais para mim — ela soluça. — Sei que é difícil para você também, mas perder um
filho — nenhum pai ou mãe deveria ter que enterrar seus filhinhos.
A tia-avó Molly prepara-se para um grande discurso emocionado, vindo do
fundo de seus enormes peitos, totalmente inconsciente de que me sinto fantasticamente
insultada e mal posso conter meu impulso de agredi-la.
— Ele estava com cinqüenta e nove anos. Ele não era um "filhinho".
Eu sei que esta realmente é uma declaração cruel, mas não há espaço em meu
coração para a tristeza insensível de outros. O pesar de minha mãe é tudo o que posso
suportar. Espremo-me para passar por ela, pego a garrafa de gim do primo Stephen
comatoso, preparo o drinque de Marcus (tônica normal, nada de diet) e volto correndo
para ele e os outros.
Luke e Tina estão envolvidos em uma conversa profunda sobre só Deus sabe o
quê e Marcus está interrogando Lizzy, cora modos doces, corteses e bem-educados,
acerca do motivo preciso pelo qual ela dispensou seu último namorado.
— Ele era ruim de cama?
— Não! Não, quer dizer, não que fosse. — Lizzy protesta.
Marcus rola seus olhos e assente, como quem sabe tudo, dizendo:
— Ele tinha um pinto fino como um palito de fósforo!
Lizzy quase derrama seu copo de Perrier.
— Ora! Ora, acho que você não...
Mas Marcus não dá trégua.
— Então o quê? Era grande? Um pé-de-mesa? Médio?
Lizzy olha para seu colo e diz, numa vozinha pequena e relutante:
— Médio.
Jogo o G&T sobre Marcus sem olhá-lo nos olhos, marcho para fora da sala, vou
ao andar de cima e entro no banheiro. Sento-me no chão do banheiro verde-abacate e
rio, rio e rio. Recuso-me a chorar.
CAPÍTULO 6
Quase todas as noites, desde que posso lembrar e até os meus treze anos, eu
sonhava um de três sonhos. Como a maior parte da população feminina, sonhava que ia
para a escola sem calcinhas — uma omissão que descobria ao fazermos fila para entrar.
Ou então voava por nossa casa com Peter Pan, saltitando despreocupadamente sobre os
corrimãos e flutuando como Sininho. Com mais freqüência, porém, caminhava sozinha
até uma floresta, com o conhecimento terrível de que uma família de lobos escondia-se
atrás dos arbustos. Começava a correr e eles me perseguiam. O sonho nunca variava,
exceto numa ocasião memorável em que consegui sair da floresta e saltei sobre uma fila
interminável de carros estacionados, para escapar da perseguição. Recentemente,
contudo, meus sonhos assumiram um tom mais urgente. Sonho que estou me
escondendo de um bando de bandidos inomináveis em uma imensa casa vazia. Sei que
eles me perseguem e o sonho sempre termina quando me arrancam de dentro de um
armário do sótão. Tento narrá-lo a Marcus, mas ele boceja alto, liga a TV e diz:
— Não há nada mais entediante do que os sonhos dos outros.
O panaca está certo, de modo que ligo para Lizzy e conto o sonho a ela. Lizzy
imediatamente consulta um livro que possui, com o título de Significados definitivos de
sonhos de pessoas que nunca conhecemos mas cujos inconscientes nos são familiares
— ou algo assim.
— Sua ambição a persegue e a empurra para o sucesso — ela declara.
— Você tem certeza?
Lizzy recomenda que hoje à noite, antes de dormir, eu imagine que estou
confrontando os bandidos e exigindo que digam o que desejam de mim.
— Hmmm, está bem — respondo, sabendo muito bem que não farei nada disso.
De qualquer maneira, eu sei o que o sonho significa: estou cansada de ser importunada
por parentes que desejo evitar, mas dos quais não consigo fugir.
Noite passada — depois que a cambada finalmente foi embora e os herdeiros
curaram-se da bebedeira — o advogado de nossa família, Sr. Alex Simpkinson, leu o
testamento de meu pai. Talvez eu tenha bebido mais do que pensei, porque tudo o que
recordo é de minha mãe soluçando, do primo Stephen lamentando-se e de Nana Flo
gritando: "Silêncio!" Não agüento mais nem olhá-los. Tenho ainda dois dias de licença
gentil e minha mãe insiste para que eu "me mexa", em outras palavras, que divida com
ela a carga do dever familiar. Eu tenho, graças a Deus, uma desculpa válida para cair
fora: meu carro está no veterinário.
— Você quer dizer, na garagem — ela diz.
— Sim — respondo, porque não vou me dar ao trabalho de explicar.
— Pegue um táxi, então.
Digo-lhe que estou dura e que, além disso, estou recebendo apenas metade do
meu pagamento nesta semana.
— Eu pago! — ela rosna.
Agradeço, mas estou com algumas coisas urgentes para fazer. O engraçado é que
isso não é mentira. Preciso localizar os detalhes do seguro do meu carro e não tenho a
mínima idéia de onde meti os papéis, qual é minha seguradora ou, na verdade, se tenho
algum seguro. Meu pai sempre dizia para guardar os documentos importantes em um só
lugar, mas isso é algo responsavelmente chato. E bem mais prático jogá-los na gaveta
mais próxima. Só que agora eles parecem ter desaparecido. Uma onda vermelha de
frustração me inunda e, antes de perceber o que faço, agarro meu prato de almoço —
um pedaço quadrado de torrada com marmelada — e o jogo na parede. O prato (de um
conjunto berrante que Marcus comprou numa liquidação da loja Habitat) parte-se
ruidosamente em um milhão de pedaços e ainda lasca a parede. A marmelada, é claro,
gruda-se de um modo nojento no papel de parede. Bom.
Luke descobre-me, trinta minutos depois, hiperventilando na cama. Conto a ele a
história horrível e desprezível dos documentos do seguro e ele dá uma olhada rápida
pelo quarto, onde parece ter caído uma bomba, afasta para o lado umas calcinhas cinzas
bem vagabundas com o dedo do pé e recolhe alguns papéis debaixo delas e diz:
— Não é isto o que você procura?
Sinto tanto alívio que nem consigo envergonhar-me. De qualquer modo, é só o
Luke.
— Obrigada!
— De nada. O que você vai fazer, agora?
Não tenho certeza, mas acho que ele está me perguntando menos por interesse
do que para garantir que não quebrarei mais nenhum dos preciosos pratos de Marcus.
— Vou botar um quilo de maquiagem, depois chamar um táxi e pegar meu carro
de volta. Luke assente, em aprovação.
— Diga "alô" ao Tom por mim.
Tom, como vim a saber, jogava futebol contra Luke, quando este — pronto para
a luta com apenas vinte cigarros por dia — era goleiro nas partidas de domingo. Sei
disso porque, enquanto levava-me para casa depois do funeral, Luke perguntou:
— Como você conheceu o Tom?
Não, como qualquer outra pessoa, "Como é que você chegou ao funeral de seu
pai em uma caminhonete de veterinário?". Mas este é o Luke. Eu presumo que Tina
nem percebeu e Lizzy é delicada demais para perguntar.
Uma hora depois, estou de pé na recepção com cheiro de remédio da Megavet,
tentando ser bem-educada com Celine — que, para a minha alegria, está de quatro,
secando uma poça amarela de xixi de cachorro labrador. Mas isso é impossível.
Desculpo-me, novamente, por amassar seu carro — recuso-me a chamá-lo pelo nome.
Sua resposta rude é:
— Sua negligência me causou uma grande inconveniência!
Minha resposta, também rude:
— Que palavras imensas! Você sabe o que elas significam?
Entramos em detalhes no mesmo tom que, como imagino, Batman e o Coringa
usariam após uma colisão no Batmóvel. Uso minha expressão mais zombeteira, esnobe
e pronta-para-assistentes-de-veterinárias o tempo todo, depois percebo que preciso
pedir-lhe um favor.
Decido ser insolente.
— Tom está aí? — pergunto, em um tom entediado.
Ela me olha com desprezo e fala lentamente, em tom igualmente entediado:
— Ele está ocupado.
Estou prestes a saltar sobre a mesa da recepção e esganá-la quando a porta da
sala de cirurgia abre-se, uma mulher enorme com cara de quem tem muito dinheiro,
carregando um minúsculo yorkshire terrier, sai e Tom aparece atrás dela. Mudo minha
expressão. Agora sou santa.
— Olll-á! — ele diz, quando me vê. Faz um sinal com a cabeça na direção da
porta da sala de cirurgia. — Entre aqui, estarei pronto em um segundo.
Então, Tom volta a atenção para a ficha de seu cliente, de modo que cruzo meus
olhos com Celine, sorrio de um modo desagradável e entro na sala de cirurgia. Sento-me
e sou tomada, subitamente, por um medo irracional de ter espinafre entre meus dentes, o
que é improvável, já que eu não como espinafre. Assim, remexo em minha bolsa,
extraio um espelho, ponho à mostra todos os dentes e os inspeciono. Quando Tom entra,
minha expressão é a mesma que de um macaco babuíno agressivo. Fecho
imediatamente a boca e guardo o espelho na velocidade da luz. Acho que ele não
percebeu.
— Como foi — ele pergunta —, se esta não for uma pergunta estúpida.
Olho para ele e minha expressão é vazia.
— Como foi o quê?
— O funeral.
— Ahhhh! Ah, isso. Foi horrível, para falar a verdade.
Ele quer saber por que, e eu conto, em detalhes. Depois imagino se realmente
desejava saber ou se estava sendo apenas educado. No passado, Jasper repreendeu-me
por prender seu chefe em uma longa discussão sobre minhas dores de cabeça freqüentes.
"Mesmo se está sob cuidados intensivos em uma máquina de apoio ávida, você não sai
contando isso para as pessoas!", ele dissera, irritado. Você diz: "Estou bem, muito
obrigada, e você?"
Lembro-me desta pérola de conselho depois de oferecer a Tom os contos da
cripta, por oito longos minutos.
— De qualquer modo — falo, rapidamente —, está tudo acabado agora. Eu vim
para pegar meu carro e agradecer novamente pela carona.
O rosto de Tom ilumina-se em um sorriso:
— Sempre que você precisar — como se falasse sério.
Seus dedos brincam com uma esferográfica. Há um curto silêncio. Depois, nós
dois falamos ao mesmo tempo.
— Acho que você conhece meu cole... — falo.
— Imagino se você — ele diz e pára rapidamente.
— Você fala — propõe.
Dou uma risadinha nervosa:
— Eu ia dizer que acho que você conhece meu colega de apartamento. Luke
Randall. Ele, pelo menos, lembra de você.
Tom torce o nariz.
— Luke, o Luke incapaz de boas maneiras?
— Siiiiiimmm! — exclamo, com um prazer desproporcional.
Tom ri. Ele então conta que, certa vez, um bando de camaradas estava em um
clube noturno mal-afamado, no East End, e o parafuso dos óculos de Luke soltou-se.
— Ele, então, vai até o barman e pergunta: "Você tem uma faca?"
Estamos rindo por trás de nossas mãos, alegres, quando batem forte na porta e
esta se abre. Celine, com uma voz de fim do mundo, declara:
— A Sra. Jackson e Natascha Tiddlums, a terceira, estão aguardando para vê-lo
há vinte minutos e, se você demorar mais um segundo, ela chegará atrasada ao almoço
de caridade.
Tom pergunta, sem fôlego:
— Quem, a Sra. Jackson ou Natascha Tiddlums?
Depois ele sorri para mim e diz:
— É melhor eu trabalhar.
Ele olha como se pretendesse acrescentar algo, de modo que eu hesito. Mas não
diz nada e eu, sem jeito, falo:
— OK, vejo você, então. Tchau.
Enquanto caminho para a porta, tenho certeza de que os olhos furiosos de Celine
fazem um buraco nas minhas costas como um raio laser. Assim, viro-me e canto, em um
tom sarcasticamente alegre:
— Byeee!
Vou para casa em minha Toyota amassada, sorrindo.
CAPÍTULO 7
Lizzy nunca fez isso porque "jamais me ocorreu". Tina nunca fez isso porque
"jamais conheci um homem que merecesse" e eu fiz isso uma vez, por Jasper que —
ingrato como ele só — não me respeitou, por minha delicadeza.
Refiro-me, é claro, a mandar flores para um homem. Laetitia recomendou a
florista que ela usa para acalmar freelancers importantes, depois de rasgar em
pedacinhos seus artigos.
— Quanto você gostaria de gastar? — a florista perguntou.
— Hum, quatorze ou quinze libras?
Houve um silêncio arrogante, depois uma pergunta gelada:
— Quatorze ou quarenta?
Eu não queria que Jasper ou a florista pensassem que sou mão-fechada ou pobre,
de modo que corrigi rapidamente:
— Quarenta, é claro!
Quarenta libras! Isto é praticamente uma viagem ao exterior! Mantive minha
amargura a distância, imaginando como Jasper se emocionaria e como ficaria prontinho
para transar, depois de receber o buquê. Estávamos juntos havia dois meses, um estágio
no qual a libido vence a frugalidade. As cinco e cinqüenta e seis da tarde, não agüentei
mais a expectativa e liguei para ele:
— Você recebeu? — perguntei, sem ar.
— Sim — ele respondeu, sem emoção. — Que surpresa. Ninguém me mandou
flores, antes. Certamente, não flores cor-de-rosa.
Disse isso de tal maneira que percebi imediatamente que mandar flores cor-derosa
para ele significava, aos seus colegas, além de qualquer dúvida razoável, que Jasper
era gay. Você, eu pensei, louca de raiva, com seus quadros náuticos e suas calças
verdes de veludo, deveria sentir-se lisonjeado! Mas tudo o que eu disse a ele foi:
— Muito bem. Pode devolvê-las, então.
Casualmente, enviei flores para Tom ontem, só que desta vez resolvi fazer
direito e informei à florista:
— Tem que ser um buquê bem masculino. Será que você poderia colocar muitos
ramos, galhos, essas coisas?
Discuti minha intenção com Tina e Lizzy primeiro, para o caso de esta ser uma
gafe imperdoável. Lizzy achou que Tom foi "angelical" e que merecia flores por levarme
ao funeral. Tina achou que ele parecia "bonzinho demais, provavelmente é casado",
mas concordou que ele merecia flores por ajudar-me a irritar Celine. Ainda assim, ele
não me ligou para agradecer. Ah, tanto faz. Até parece que me importo com isso. Estou
ocupada demais deitada em minha cama, olhando para o teto, para preocupar-me com
homens. Tirei a próxima semana de folga também. Inexplicavelmente, comecei a
acordar — com a cabeça zumbindo e o sangue fervendo — às cinco da manhã, logo eu
que tenho dificuldade para sair da cama às oito e quinze.
Lizzy sugeriu que isso poderia ter algo a ver com meu pai — ela insiste em ligar
tudo a meu pai, está obcecada com isso. Finalmente, lhe disse, de maneira fria:
— Eu nem penso no meu pai. Fiz isso no dia do funeral, mas agora não penso
mais. Não há por que pensar nele.
Isso nem é mentira. Estou entorpecida demais para pensar e não preciso fazer
isso. A morte de meu pai é uma constante, como tinido. Simplesmente está lá. Meu
nervosismo, provavelmente, é o pavor de voltar ao trabalho. Estou exausta e não me
sinto forte o suficiente para passar nove horas, cinco dias por semana, suando e me
esfalfando sob o polegar com boa manicure de Laetitia. Ou, ainda, talvez eu seja apenas
preguiçosa. O problema é que sei que a desculpa podre "meu pai acabou de morrer e
estou acabada" não resolve nada.
Então, Tina liga para informar que, de acordo com a diretora de moda, Laetitia
fez sexo pela primeira vez, em treze meses, com um conde e está com um humor
encantador. Assim, se eu quiser outra semana de folga, este é o momento de pedir. Devo
um drinque ao conde. Especialmente porque ele na verdade é — de acordo com Tina,
que ouviu isso da diretora de moda — um encanador que trabalha em Gordonstoune.
Graças a Tina e ao conde, consegui passar sexta, sábado, domingo, segunda e
terça-feira em meu quarto. Eu me preparei para isso. Sexta de manhã, fui ao Pet World e
fiz um estoque para o Gorducho. Esqueci de armazenar algumas coisas para mim
mesma, e, talvez por isso, quando liguei para o Taste of India ontem, pela quarta noite
seguida, o homem que anotou meu pedido convidou-me para um drinque, porque eu
"parecia solitária".
Também tenho vigiado meus telefonemas. Minha mãe ligou umas cinqüenta
vezes e eu deveria estar com ela neste momento de dor. Sei que é feio evitá-la, mas o
simples som de sua voz petulante já me sufoca, me confina, como se ela me
pressionasse para dentro de uma caixa pequena, escura e sem ar. Sinto vontade de berrar
para que ela vá embora, deixe-me sozinha, pare de querer minha presença. Não suporto
isso, não tenho nada para lhe dar.
Jasper e Tom, contudo, não ligaram nenhuma vez. Enquanto isso, Marcus —
como Luke me conta — tem dado à garota do Segunda Edição uma série de sessões
intensivas de condicionamento físico que, aparentemente, envolvem sua permanência na
casa dela, em Hampstead, cinco noites seguidas. Tudo o que posso dizer é que os
músculos internos das coxas da artista deviam estar extraordinariamente fora de forma.
Lizzy também tem ligado, mas não tenho resistência para enfrentar toda a potência de
suas boas intenções.
Finalmente, terça à noite, Tina quebrou este surto de letargia. Ela marchou ao
meu apartamento (abri a porta apenas porque pensei que fosse o entregador) e gritou:
— Sua relaxada! Olhe o seu estado! Você tem um dia — um dia! — para ficar
decente! Amanhã à noite pego você para irmos a uma festa! E então querida, vai cair na
farra!
Ela foi tão incisiva, que o Gorducho arrepiou todo o seu rabo, com medo, e
zuniu para o corredor.
— Se você está dizendo... — respondi, humildemente.
A festa é em um bar novo, que virou point, e Tina diz que me pegará às oito,
com a promessa de que, se chegarmos bem cedo, podemos pegar a melhor mesa — e os
melhores homens. Suspeito que quer apenas tirar-me de casa. Antes de sair, joga uma
sacola prateada de compras sobre meu peito. Abro-a e encontro um top rosa-shocking,
que ela surrupiou do armário do setor de moda. Babei por ele mês passado, quando
essas coisas ainda importavam.
Quarta-feira, na hora do almoço, estou sem fazer nada de útil no apartamento,
lixando as unhas e tirando as cutículas, quando o telefone toca. Preparo-me, mas não é
minha mãe. E um homem. Tom.
— Oi, aqui é o Tom, para Helen. Liguei para agradecer-lhe novamente as flores
maravilhosas. Liguei sexta-feira e falei com seu locador, ele disse que lhe passaria o
recado, mas...
Pego o telefone, ansiosa.
— Alô, Tom?!
— Helen?
— Espere um pouco, deixe-me desligar a secretária... Ah, porcaria, OK, oi! —
estou tonta de prazer e indignação. — Marcus não me disse que você havia ligado!
Tom diz:
— Sim, bem, ele parecia apressado, de modo que achei melhor ligar novamente,
para garantir. As flores eram incríveis! Muito obrigado, você não precisava fazer isso!
E... como é que você está em casa, por falar nisso?
Sou incapaz de pensar em uma desculpa válida, de modo que digo, em uma
tentativa de parecer atraentemente rebelde:
— Ah, você sabe, não consigo pensar em voltar ao trabalho.
Percebendo que ele pode pensar que sou negligente e frouxa, eu acrescento — e
Deus me perdoe:
— Além disso, estive cuidando de minha mãe.
Hummmm, isso parece coisa de solteirona.
— E vendo alguns amigos. Hoje à noite eu e minha amiga Tina vamos a um
novo bar.
Ah, mas eu tinha que dizer que sairei com uma amiga? Repreendo a mim
mesma, mas Tom diz, caloroso:
— Parece bom! Onde é?
Sou capturada por um ataque de irresponsabilidade.
— Perto de Piccadilly Circus, parece um lugar bem legal, onde as pessoas nem
falam, só ficam por ali, quer ir com a gente?
Para não parecer completamente desesperada, acrescento:
— Você pode levar alguém, se quiser.
Pausa. Tom diz:
— Ótimo! Vou nessa. Só que provavelmente vou sozinho. Estou de plantão à
noite, mas dou um jeito nisso.
Assim, combino com Tom para que encontre Tina e eu no bar, às nove da noite.
Ligo para Tina imediatamente, em pânico.
— Você está a fim dele? — ela pergunta.
— Não sei.
— Isso quer dizer que sim — ela responde, indicando o que devo vestir.
Nove e dez. Sofás de couro vermelho. Iluminação suave. Música retro. Mulheres
bonitas com cabelos presos para cima, naquele estilo descontraído e sexy — de quem
acabou de levantar da cama e talvez volte para lá — homens sarados em camisas justas
e calças escuras. Sinto-me à vontade. Acho que estou bem. Top colante. Calças pretas.
Botas de arrasar. Maquiagem leve. Jogada ali, mas, na verdade, minha cabeça está
longe. Papos bobos e risadas altas com Tina. Golinhos de champagne. Nove e meia.
Mais champagne. Goles maiores. Glup-glup. Tequila dourada e forte. Mas você nem
gosta de tequila. Dez e dez. Não me importa. Me dê um canudinho. E isso o que quero.
Me dê um cigarro. Mas você não fuma. E dai? Me dê um cigarro. Copo após copo bemservido
de Cuervo Gold tequila. Conversa estridente, arrastada e meio sem sentido com
Tina. Vinte para as onze. Vou oscilante, balançando, trocando as pernas, até o banheiro.
Maquiagem borrada e manchada, verificação assustada no espelho, cabelos amassados,
desajeitados, começando a ficar rebeldes, totalmente descompostos. Retorno meio de
lado e em zigue-zague, tonta e lacrimejante, até Tina. Onze e meia. Sinto-me enjoada.
Onde meteu-se o cara, aquele sacana que se dane mais tequila tem gosto horrível
cigarros me deixam tonta e daí quero mais Tina preciso mais tequila minha bolsa, o
quê, quem, ah me deixa em paz cansada quero deitar tom tom Tom Tom! Mas que
atraso seu filho da mãe seu...
Acordo. Sinto-me mais que desperta. Estou deitada em minha cama. O teto bem
em foco. Mas algo não está certo.
— Helen? — uma voz masculina me chama.
Emito um gemido involuntário e olho, aterrorizada, para Tom, que está sentado,
com jeito de quem não dormiu, todo vestido, em uma cadeira no meio dos escombros do
meu quarto. Tenho a impressão de que ele tenta reprimir um sorriso.
— Como você está? — pergunta, lentamente.
Percebo várias coisas ao mesmo tempo. Estou usando um camisetão e nada
mais. Não lembro o que aconteceu noite passada. Há uma curiosa ausência de dor em
minha cabeça. Mas acho que houve algo ruim. Muito ruim mesmo.
— O q-quê? Como?
Enquanto uso minha voz pela primeira vez, percebo que minha garganta parece
lixa e meu peito parece, pelo menos, um tamanho menor. Tom tosse. Suspeito que ele
quer ganhar tempo.
— Tina tirou suas roupas porque você... você vomitou na blusa. Ela está
dormindo na sala — ele pára.
— O que aconteceu? — sussurro.
Tom parece encabulado.
— Eu estava a caminho e houve uma emergência — o timbre de sua voz sobe,
como se ele fizesse uma pergunta. — Cirurgia de emergência. Foi um mau momento.
Liguei para cá para dizer que me atrasaria, mas vocês já tinham saído. Sinto tanto! Acho
que em parte foi minha culpa.
O que foi sua culpa? Ele está falando em código. Ele vê minha expressão de
medo e sorri novamente.
— Não a vi nua, se você está preocupada com isso. Eu e Luke ficamos no lado
de fora, enquanto Tina trocava sua roupa. Você estava num porre de dar gosto.
Eu assinto. Não ouso falar.
Tom levanta-se.
— Preciso ir trabalhar. Ligo mais tarde.
Ele dá um passo, beija-me uma vez, na testa, e depois sai, fechando a porta.
Espero, até ouvi-lo batendo a porta da frente, salto da cama, corro para o corredor,
lembro que estou sem calcinha, volto depressa ao quarto, reviro o monte de tralha,
procurando minha roupa de exercícios, enfio as calças, corro para a sala, sacudo Tina
até acordá-la e digo, em um tom de voz sem fôlego, doloroso, mas agradável para os
ouvidos:
— Droga, droga, o que aconteceu, conte, conte!
Tina senta-se, geme, aperta o topo de seu nariz entre os dedos e franze o rosto,
pedindo:
— Dê-me um Advil, está em minha bolsa.
Ela engole o comprimido a seco. Depois, conta-me tudo.
— Helen, sua estraga-prazeres! Você deu vexame. Ele chegou atrasado, mas não
teve culpa. Ele tentou ligar, só que não tinha o número de seu celular. Pode ser até que
tenha tentado ligar para o bar, mas eles são tão cheios de frescura, que não dão recados.
Ele veio direto depois da cirurgia. Acho que era um cachorro grande. Este cachorro
escapou do dono e correu para a estrada, e seu carro, acho que era uma BMW verde e
— o quê?, ah, está bom! Ele chegou lá pouco antes da meia-noite e estávamos no maior
fogo, mas você deu o maior espetáculo! Estava psicótica! Nunca a vi assim. Eu estava
tomando champagne, mas muito menos encharcada. Você nem gosta de tequila! Mas
não, tinha que ser tequila. Você estava uma vaca, bêbada! E ainda filou todos os meus
cigarros. Bom, tá. Então o Tom apareceu e, desculpe, mas ele é muito gostoso. Você
estava quase em coma. Foi realmente estúpida com ele e o chamou de canalha, mas o
que disse foi "toalha", de modo que acho que ele não percebeu. Você ficou falando
pelos cotovelos, dizendo que está cansada de homens covardes e que não agüenta mais
isso e que sempre lhe acontece a mesma coisa e que só queria um cara que não a
deixasse na mão e coisas assim, um fiasco. Tentei calá-la, mas não consegui. Depois
você tentou levantar-se, acho, deu uma bofetada nele e caiu. Ele amparou você e nessas
alturas o pessoal do bar deu um basta, e então a carregamos para fora. Você estava tão
mal que achamos que teríamos de levá-la a um hospital para lavarem seu estômago; no
entanto, nenhum motorista deixou-a entrar no táxi. Assim, eu usei a empresa que
trabalha para a GirlTime. Depois, você começou a chorar porque estava com náusea e
então realmente vomitou, o táxi veio e teve que parar para que vomitasse de novo.
Talvez seja por isso que você não está tão mal hoje, mas vai se sentir ainda, querida,
porque voltamos ao seu apartamento e tentamos encontrar suas chaves, então você —
quer dizer, nós tocamos a campainha e acordamos Luke e — o quê? Não, nada. Helen,
estou dizendo, é melhor você nem saber. Tudo bem, então. Você pediu. Você molhou as
calças. Pega leve, minha cabeça está me matando. Olhe, você pediu, o que posso fazer?
Sinto muito. Você me pressionou para contar. Eu não teria dito. Sim, é claro que ele viu.
O quê? Ele a botou nos ombros e entramos. Eu não sei se você o molhou de xixi! Estou
exausta! Por Deus, mulher, fale baixo, estou com dor! Olhe pelo melhor ângulo, o cara
trabalha com animais, está acostumado com xixi! O quê? Ahhh! Vá com calma, eu
estava tentando ajudar! Então, ele a colocou na cama e eu disse que tiraria suas roupas,
o que fiz mesmo. Você me deve essa, sua mijona. Depois, vesti uma camiseta em você,
mas como eu também não estava me sentindo muito alegre e saltitante, não consegui
encontrar outra coisa, e então ele ficou conversando com Luke. Eu disse que achava que
você ficaria bem, e, já que ele quis ficar ao seu lado para qualquer coisa, desabei no
sofá, Luke foi para a cama e sim, acho que foi isso.
Será que devo me matar agora ou mais tarde?
CAPÍTULO 8
Moro nesta quadra repleta de mansões de tijolos vermelhos há três anos e, a cada
primavera, tão logo as árvores ficam rosadas com seus botões e o ar torna-se mais
espesso com o calor, eles aparecem. Eles sentam-se juntos, ele e ela, na grama. Eles têm
um local favorito, a alguns metros do riacho que corre atrás do jardim do condomínio.
Durante o inverno, eu os esqueço. Mas, num belo dia, olho pela janela para ver os
narcisos amarelos e eles estão lá, contentes em ser um casalzinho. Ele é lindo,
exuberante, maravilhoso. Ela tem um peito protuberante, é mais simples,
entretanto possui uma beleza discreta. As vezes, a visão de seu amor constante faz-me
sorrir. Em outros momentos, jogo migalhas de pão sobre a grama e penso, Helen, você
tem vinte e seis anos e um relacionamento menos satisfatório do que o de um casal de
patos do pântano!
Além disso, hoje eu não tenho absolutamente nenhum relacionamento. Na
verdade, até mesmo a ousadia de comparar o estado de nossas vidas amorosas é
imensamente insultante para os patos. Cometo o erro de dizer isso a Tina, que fala:
— Pare, você está me deixando nervosa!
Tina está uma fera comigo e não apenas porque lhe coube a não-invejável tarefa
de trocar minhas fraldas na quarta-feira. Tina faz uma grande exibição de seu cinismo
para com os homens, querendo disfarçar o fato embaraçoso de que jamais perdeu no
jogo do amor. Sua primeira vez foi com seu namoradinho de infância, aos dezesseis
anos, e foi — engula isso, se puder — muito bom. Namoraram durante oito anos e
depois romperam amigavelmente. Desde então, ela teve dois encontros de uma noite só,
deixando cada um dos amantes desiludidos e com o coração partido. Houve também
uma ligação mais longa que durou sete meses — ela terminou e ainda são amigos — e
ela passou os últimos meses solteira e contente, evitando assediadores babões.
Abençoadamente intocada pelos "Jaspers" deste mundo, portanto, ela vê as
relações entre homens e mulheres em termos do branco e preto do pré-guerra. Sua
atitude é — embora ela tente esconder isso — se você gosta dele, você namora. Se ele
lhe dá problema, você não namora. Assim, ela não consegue entender por que não quero
falar com Tom e se torna agressiva quando tento explicar. Mesmo quando lhe digo que
o homem entrou sorrateiro em minha vida, causando a maior confusão (cirurgia no
grande cão ou não) e que, francamente, não gosto de bancar a maior idiota do mundo na
frente de pessoas que mal conheço.
— Você quer dizer, urinar nas calcinhas na frente de homens fabulosos — diz
Tina.
— Será que você pode parar de falar nisso? — grito. Tendo repassado aquela
cena da urina em minha mente um milhão de vergonhosas vezes, não preciso que
ninguém me lembre do que fiz. — De qualquer modo — eu acrescento, amarga —, você
está errada.
Tina não cai nessa.
— Então, qual é o seu problema? — pergunta, rude.
Encolho os ombros.
— É só... bem, foi um horror dizer as coisas que eu disse quando estava meio de
pileque.
Tina exclama:
— De pileque! Esta é nova! Estava totalmente dentro da garrafa! Embora — ela
admite — você realmente tenha tirado do baú algumas coisas cruéis e bem embaraçosas.
O que foi mesmo, ah, sim, "homens! Eles são todos iguais! Todos metem e se mandam!
Vou virar solteirona e viver cercada de gatos!" Sua idiota! Que monte de asneiras!
Ninguém a fez comprar um gato!
Estou prestes a discutir quando percebo que a "auto-suficiente", sem querer, me
deu a deixa para me defender.
— Exatamente! Coisas cruéis e embaraçosas! E por isso que, A, nunca mais vou
beber tequila na minha vida, e B, não quero ver ou falar com este homem nunca mais
ou, pelo menos, por um longo tempo!
Estranhamente, isto parece acalmá-la.
— Ah — ela diz, em um tom irritante de "eu sei algo que você não sabe" —,
tudo bem, querida, se é assim que você quer jogar.
Espero que ela mate a charada, mas tudo o que diz é:
— Ligue-nos, se quiser sair esta semana. Até!
Uma fração de segundo depois, o telefone toca novamente. Agarro-o e rosno:
— O que foi agora?
Há uma pausa curta, depois uma voz diz, incerta:
— Helen?
Não é Tina.
— Sim — respondo. — Quem é?
Na verdade, conheço muito bem a voz, meu ressentimento é como um
paralelepípedo na garganta.
— É Michelle, amigona!
Ah, digo para mim mesma. Será que esta é a mesma Michelle que se diz minha
melhor amiga, mas não aparece no funeral de meu pai, não explica sua ausência, nem se
incomoda em mandar suas condolências? Infelizmente, eu sou o Exterminador na teoria
e Stan Laurel na prática, tão patética na confrontação de amigos quanto sou ao depararme
com aranhas. Assim, eu digo apenas um "oi" desanimado.
Michelle nem percebe. Ela apressa-se em dizer:
— Preciso ser rápida. Estou ligando porque — acho que você esqueceu, mas não
tem importância — amanhã é meu aniversário e sairemos para tomar alguma coisa e
dançar no U-Bar, no Soho.
Jesus, ela tem coragem. Digo, como uma pedra de gelo:
— Infelizmente, meu pai morreu duas semanas atrás, como você deve recordar,
de modo que não tenho saído muito, ultimamente.
Michelle faz um som estranho, parece ter levado um susto.
— Sei disso! Por isso mesmo que eu não liguei, imaginei que você não queria
ser perturbada. Pensei que você queria ficar em paz! Por isso não quis tocar no assunto!
Sei. Acredito.
— Acho que eu dificilmente esqueceria disso, lembrada ou não — exclamo, em
voz aguda.
— Sei disso, mas acima de tudo, esta é uma tradição em nossa família. As
mulheres não comparecem a funerais.
Incrível, penso. Isso causará um dilema, quando uma delas bater as botas. Eu
rompo uma tradição toda minha e fico em silêncio profundo. Michelle, a rainha dos
jogos mentais, lança uma bomba em minha tentativa de envergonhá-la, acrescentando:
— Helen, estou pensando em você. Seria bom se você saísse ao invés de mofar
no apartamento. A vida continua. E — aqui, ela lamenta-se —, estou passando por um
período difícil com o Sammy. Preciso de seu apoio. Por favor, venha.
Hilariante. Ela precisa de meu apoio, porque o bobão de seu namorado inútil,
que não bebe nem um licorzinho de chocolate sem a permissão da mamãe, está
passando por um agravamento em sua bobice. Michelle deve ter pedido que ele trocasse
uma lâmpada ou fervesse água. Ela já está com Sammy há cinco anos e dois meses e ele
é um idiota delicadinho e chato, há cerca de 1.886 dias. O passatempo favorito de
Michelle é alugar qualquer amigo ingênuo demais, para cortar seus monólogos
estridentes de duas horas ao telefone, queixando-se de Sammy, porém ela sente-se
ultrajada com minhas sessões gratuitas de terapia e tentativas delicadas de oferecer
críticas construtivas ("Michelle, por que você não dá um pé na bunda do Sammy?").
— Você vem? — ela pergunta, exigindo resposta.
Eu cedo. E inútil fazer uma declaração de princípios, porque além de ser cascagrossa
como um rinoceronte velho, Michelle é viciada em arrumação de cabelos e
realmente acreditará se eu disser que passarei toda a noite de amanhã lavando meus
cabelos.
— OK — respondo, suspirando. — Estarei lá.
— Garota, você é o máximo! — diz Michelle, que leu Hollywood Wives, de
Jackie Collins, quatro vezes e adaptou seus padrões de discurso
e acordo com sua leitura favorita.
Desligo o telefone, amontôo-me no sofá, expiro ruidosamente pelo nariz e então
ligo para Tina, solicitando apoio. Ela está procurando uma razão para evitar ficar em
casa amanhã à noite, já que tenta liberar-se de seu vício de assistir Coronation Street
; por isso, sente o maior prazer em aceitar meu convite.
Achei que o U-Bend — perdão, o U-Bar — seria nojento, mas ele excede em
muito minhas expectativas. Para começo de conversa, há um pára-choque roxo de
Cadillac em tamanho real, grudado na parede. Recuso-me a sentar sob ele, por medo
que caia em minha cabeça. Michelle está resplandecente em um top de pele de leopardo
e jeans brancos muito justos. Seu cabelo parece uma imitação do penteado de Monica
Lewinsky.
Tina, enquanto isso, está hipnotizada pela pesada concentração de gente escrava
da moda, que se exibe com orgulho e exclama, repetidamente:
— Mas o quê ela está vestindo?
Estou usando calças pretas padrão-para-caçadas, e uma camisa prateada
amarrotada que resgatei das profundezas de meu cesto de roupas. Já estava lá havia três
meses, com o pretexto de que eu a levaria à lavanderia quando tivesse tempo, mas
nunca fiz isso e sei que não farei, então, para que preocupar-me em manter a farsa? De
qualquer modo, seda, seda amarrotada, quem sabe a diferença? Dito isto, quando Tina
viu minha blusa, perguntou em um tom cuidadosamente neutro:
— De onde você tirou isso?
Respondi, também em tom cuidadosamente neutro:
— Do cesto de roupas de passar.
Ela olhou-me com reprovação e murmurou:
— Não vou dizer mais nada.
Fuzilei-a com o olhar e falei:
— Bom.
Meu humor não melhora quando — depois de ignorar-nos por uma hora em
favor de um cara fortão e cheio de energia, cujas costas têm a forma de um triângulo —
Michelle vem para "um papinho rápido". Tina desculpa-se imediatamente e corre para o
toalete. Chacoalho o gelo em minha Coca. Michelle olha de modo penetrante para a
bebida.
— Jack Daniels e Coca diet?
— Não — respondo, sem entonação —, apenas Coca.
Já sei o que vem por aí.
— Você não está de dieta?
Bato com o copo de Coca na mesa e falo, alto e irritada:
— Não, não estou de dieta! E você, está?
Michelle ri e dá um tapinha em sua barriga plana.
— Queridinha, você está brincando! Nasci com sorte, eu acho!
Nasceu indo à academia sete dias por semana e fazendo apenas uma refeição por
dia, como um cão weimaraner, isso sim. Mas é seu aniversário. Sejamos caridosos.
— E daí, como está sua irmã?
Michelle infla as narinas.
— Pesadelo! Tudo o que ela faz é falar sem parar sobre aquele bebê chorão!
Parece até que ela é a primeira mulher no mundo que tem filho! Mas vou lhe contar, os
seios dela estão fantásticos! Normalmente, ela não tem nada lá, é como você! Agora, de
repente, ela é a Dolly Parton!
Estou muda de indignação, o que lhe dá tempo suficiente para chamar um
homem de cara oleosa com um peito côncavo, colocá-lo sentado espremido ao meu lado
e dizer:
— Helen, docinho, este é meu primo Alan, eu sei que vocês têm muito em
comum! E lá se vai ela.
Com o coração saltando, vasculho o bar em busca de Tina, mas, para meu
desgosto, vejo-a contra uma parede, praticamente roçando nariz com um homem loiro e
atraente, de roupa escura. Ela joga os cabelos para trás e pousa sua mão sobre a dele,
enquanto ele risca, galantemente, um fósforo para acender-lhe o cigarro. Aquela
descarada! Ela me paga por isso. Se eu não pagar meus pecados com Alan primeiro.
Mais um pouco de seu hálito de tumba, pode ser que eu caia dura.
Estou acuada. Ele pergunta algo sobre mim, como todos os livros de auto-ajuda
para refugos sociais recomendam, mas tão logo deixo escapar algumas palavras, ele —
como duvido muito que esses livros recomendem — richocheteia de volta ao assunto
glorioso: ele mesmo. Por exemplo, onde passei minhas últimas férias? Fui à Espanha.
Que coincidência! Ele foi à Espanha quando tinha três anos, sim, foi a Madri, viu uma
tourada e decidiu ser um toureiro, mas, ha ha ha, resolveu ser um advogado de
propriedade intelectual, viaja por toda a Europa e, ainda na semana passada, o sócio
principal da empresa comentou sobre sua dedicação singular à firma e que... tédio,
tédio!
Entrei em um transe do qual saio, quando seu braço vestido de suéter de lã
contorna o meu ombro como uma serpente. Tiro-o com um safanão e rosno:
— Eu tenho um namorado.
Embora isso seja mentira, ele parece insultado.
— Eu também tenho uma namorada! — e completa com duplo sentido. — Mas
presumo que ainda podemos ser amigos!
Disparo-lhe um olhar assassino, esperando que ele morra — ou pelo menos que
vá embora —, mas isso não acontece. Homens do tipo de Alan nunca somem. Ele fala
sobre si mesmo por aproximadamente a eternidade. Depois, graças ao bom Deus, um
gole de sua cerveja cai no buraco errado e ele pára de alardear suas qualidades para
sufocar durante um minuto. Aproveito a oportunidade caída do céu para levantar-me e
dizer:
— Tchau, estou indo.
Mas, mas!, ele agarra minha mão com sua mão suada, e grasna:
— Você pode me dar seu telefone?
O asno presunçoso e convencido.
— Achei que você tinha uma namorada.
— Tenho, mas se as coisas começarem a dar errado em nossos
relacionamentos...
Eu interrompo.
— Estou feliz com o meu.
Ele coca seu nariz oleoso.
— Eu também, mas, você sabe, digamos que daqui a um mês eu ligue para você.
A gente pode se ver.
Até parece.
— Para quê? — pergunto, seca.
Alan assume um tom anasalado e cantado de voz, como se falasse, digamos,
com sua secretária.
— Helen, quantos anos você tem?
Como uma idiota completa, respondo obediente:
— Vinte e seis.
Ele sorri, superior, e — antes que eu perceba o que faz — desliza a pata para a
minha nádega esquerda e a aperta.
— Quando pessoas da nossa idade se encontram, tenho certeza de que você sabe
o que fazem.
Ele olha-me malicioso enquanto, furiosa, dou um tapa em sua mão para afastála.
Que anta! E ainda acha que sou uma idiota também!
— Sinto muito — docemente má. — Acho que não vou lhe dar eu telefone. Mas
— em tom consolador —, obrigada por tentar.
Depois, me espremo entre os clientes fashion do U-Bar e saio dando cotoveladas
— só Deus sabe onde Tina se meteu.
Até mesmo a jornada de trem até minha casa me enfurece. Não me importo com
a multidão de gente rude, grossa, barulhenta e bêbada — afinal, em qualquer outra
sexta-feira, Tina e eu também somos assim. O que me incomoda é o casal de
aposentados que se acarinha de um modo nefasto, sentado diretamente à minha frente,
de mãos dadas e sorriso meloso. Eles me dão vontade de berrar, estrangulá-los e destruir
o trem com uma marreta.
Odeio-os. Isso é asqueroso, nessa idade. Por que vocês não morrem?, penso.
Vocês deveriam estar mortos. Meu pai está morto, por que vocês não podem? Quando o
trem chega à estação de Finchley Road, fervo com um ódio tão vivido, que me sinto
fisicamente mal. Marcho para casa, desafiando qualquer estuprador, assaltante ou
assassino a me atacar. Tente, meu chapa, você desejará nunca ter feito isso, porque não
me importo e, quando tiver terminado com você, seu maior desejo será jamais ter
nascido.
Chego em casa, ilesa, dez minutos depois. São apenas dez e cinqüenta da noite.
Tranco a porta devagar, inspiro lenta e profundamente, vou até a mesa da cozinha e, em
um movimento rígido e robótico, sento-me. Depois, seguro a cabeça entre as mãos e
penso, ajude-me, alguém, ajude-me, vezes sem conta. Minha vida está soçobrando,
desmoronando, saindo do controle. Estou ficando louca. Ah, Deus, por favor, ajude-me.
Acho que falei alto, porque, subitamente, Marcus está ao meu lado, acariciando meus
cabelos e dizendo baixinho:
— Ei, Hellie, minha garota favorita de todos os tempos, o que houve?
E eu digo novamente:
— Ah, Deus, alguém, por favor, ajude-me — e desabo chorando.
Dez minutos depois, estou começando a transar com Marcus.
CAPÍTULO 9
A última vez em que me depilei com cera foi depois de ler um artigo na Vogue
sobre as mulheres francesas. As francesas não sabem o que é usar calcinhas bem velhas
quando estão menstruadas, fazem as unhas das mãos e pés todas as semanas e não
limpam seus pratos depois que levantam da mesa. Eu liguei para Tina num impulso,
para saber o que ela achava disso.
— É bem escrito — disse —, muito convincente, mas acho que a autora está
brincando. Isso é engraçado, as francesas são assim, mas ela está exagerando.
Percebi, naquele momento, que Tina veste-se, age e come como uma francesinha
desvairada, mesmo sendo de Tooting, de modo que é natural ouvir isso dela. Eu
marquei um horário de emergência no cabeleireiro, na esteticista, corri vinte e quatro
horas sem parar, depois fui zunindo até o Waitrose e comprei uma alface, cinco
cenouras, uma caixa de tomates, duas bisnagas de queijo cottage, um pão integral, três
latas de atum em salmoura, quatro batatas e uma caixa de chá de hortelã. Tudo isso
apodreceu no refrigerador, é claro, mas pelo menos naquela semana, minhas pernas
ficaram lisinhas, não usei calcinhas desfiadas ou com elástico rebentado, não tive pontas
quebradas nos cabelos e minhas unhas ficaram tão perfeitinhas quanto Brad Pitt, em
Thelma e Louise.
Infelizmente, essa semana foi nove meses atrás, a pressão exercida pelas
francesas sobre minha feminilidade já desapareceu e voltei ao meu velho estilo inglês,
de lavadora de pratos desmazelada. Assim, enquanto Marcus lambe, ofega e murmura
palavras deliciosas em minha orelha, minha emoção principal não é a de doce desmaio e
moleza nas pernas, mas medo e nervosismo. Quando foi a última vez, por exemplo, em
que limpei completamente a minha orelha?
Viro casualmente minha cabeça, de modo que minha orelha fique fora de seu
alcance ofegante. Nossos lábios encontram-se em um choque nada atraente de dentes.
— Oops, desculpe — rio.
Não tenho certeza, exatamente, como isto aconteceu. Em um minuto, estou
berrando como um bebê arroxeado com gases; no segundo seguinte, sou levantada de
minha cadeira e estou em seus braços fortes (sim!), firmes (ah, meu Deus!), cheios de
músculos (ponto extra para ele!). Chorei e limpei meu nariz que escorria em sua camisa
de linho, deixando uma marca úmida e esverdeada que ele, felizmente, não percebeu.
Ele acariciou meus cabelos um pouco mais e sussurrou:
— Pobre Hellie, pobre gatinha, calma, não chore!
Ele começou a beijar minha cabeça. Marcus J. Bogush! Me beijando. Depois de
todos esses anos no osso!
Aposentados esquecidos, prendo minha boca a dele. Ele puxa minha cabeça para
trás, agarrando meus cabelos, o que dói, mas não ouso arruinar o momento dizendo
"Ai". O beijo é longo e esforçado, porém — horror dos horrores — seu estilo de beijo
não é nem um pouco tão delicioso quanto sua fama com as mulheres sugere. Para ser
horrivelmente honesta, estou desapontada. Sua língua rola molhada dentro de minha
boca como um de salmão morto em uma máquina de lavar. Depois, ele afasta-se um
ouço para dizer, alegre:
— Sente-se melhor agora?
O desejo volta. Ele me puxa para o sofá e, no calor da paixão (exceto e isto é
premeditado), também agarro seus cabelos. Ele pára de me agarrar por um segundo,
para separar-se de mim e dizer:
— Hellie, doçura, adoro você, mas está puxando meus cabelos!
— Desculpe — eu murmuro, e nos engajamos naquele beijo escorregadio
novamente. Este homem produz uma quantidade incomum de saliva, estou pensando,
ingrata, quando o telefone toca. A secretária eletrônica liga-se.
"Oi Helen, é Tom. Estou ligando para ver se você gostaria de tomar uma tequila
uma hora dessas..."
Congelo. O senso de oportunidade de Tom é realmente ruim. Marcus afasta-se
como se eu fosse radioativa, com a excitação desaparecendo de seu rosto bonitão,
parecendo ter tirado uma máscara.
— Tenho um rival — ele diz, em tom leve.
— Não tem, não — gaguejo.
— Tenho sim — Marcus, diz, agradavelmente. — Talvez eu deva deixá-la para
ele.
Fica de pé e raspa graciosamente a marca esquisita e esverdeada em sua camisa.
Eu falo:
— É só que ele foi... — paro enquanto olho para Marcus, que me devolve o
olhar sem piscar.
— A escolha é sua, Helen.
Eu pego o telefone, dizendo:
— Oi, Tom?
—Ah — ele diz. Selecionando suas chamadas. E eu consegui ser atendido!
Isto, apesar de todos os meus protestos com Tina, parece que será difícil.
Olho nervosamente para Marcus, que cruza os braços como um gladiador e
boceja. Eu digo, triste e hesitante:
— Tom.
Ele interrompe. Sua voz está mais fria.
— Acho que você não vai me dizer algo bom, não é?
Mordo meu lábio. Suspiro.
— Tom, eu gosto de você e tudo o mais, mas estou realmente muito ocupada
agora, no trabalho, essas coisas, mas eu... eu lhe ligo qualquer hora — olho novamente
para Marcus. Ele não parece impressionado. Assim, eu acrescento. — Mas... não se
prenda por isso.
Há uma curta pausa. Depois, em uma voz fria e rancorosa, Tom diz:
— Mensagem recebida e compreendida.
Ele desliga.
— Dá-lhe! — Marcus diz alto, enquanto remove gentilmente o aparelho de
minha mão e me vira para encará-lo. — Você mandou ver!
Ele dá um enorme sorriso e murmura:
— Você é o máximo, Hellie, sabe disso, não sabe?
Eu sorrio e assinto, embora não soubesse, não.
— Assim, ele continua — dando beijinhos em meu pescoço —, o que —
beijinho, beijinho em minha garganta — devemos — desabotoa, dá uma mordidinha —
fazer — desabotoa, beija? —, desabotoa e chupa minha pele, — agora?
Agarro-me aos ombros largos de Marcus e fecho os olhos em uma paródia de
desejo, mas por dentro sinto-me fraca e má, com a mesma paixão que um coelhinho
morto. Humilhei Tom, porém sinto-me humilhada. Aquelas palavras "Mensagem
recebida e compreedida" enchem minha cabeça e me envergonham demais.
Sou tirada de meus pensamentos não lúbricos pela percepção desagradável de
que Marcus está me dando um chupão. Parece estar tentando sugar todo o sangue de
meu corpo, pela pele. Desculpe-me, mas já superei este comportamento adolescente de
marcar o território pelo menos três meses atrás. Minha falta de entusiasmo talvez seja
óbvia, porque Marcus pára abruptamente sua sessão de chupa-chupa e diz, em tom
solene:
— Hellie, podemos parar agora mesmo ou podemos ir em frente.
Ei, espere! Este é Marcus, meu objeto de paixão durante nove anos, pelo amor
de Deus!
— Deixa rolar! — respondo, no que espero ser um gemido felino e sexy.
Ele sorri, triunfante, dizendo:
— Esta é a minha garota! — depois, pega-me no colo, gemendo levemente com
o esforço, e me leva até seu quarto.
— Sou meio pesada — murmuro, coquete, em uma expectativa convencida da
negação obrigatória. Incrédula, percebo que Marcus não percebeu a deixa. Em vez
disso, ele me joga desajeitadamente sobre a ama, e grunhe:
— Falou, benzinho!
Seis e meio minutos nada eróticos depois, Marcus e eu estamos deitados lado a
lado sob cobertas e tento pensar em algo para dizer.
— Foi legal — minto.
É incrível, considerando seu desempenho econômico, mas ele acredita em mim.
Ergue-se apoiado no cotovelo e brinca com um dedo — eu jamais notei antes o quanto
suas mãos são pequenas — em torno de meu seio direito. Olho para cima e, chocada,
percebo o que só pode ser descrito como uma expressão divertida em seu rosto.
Pergunto o que foi, cheia de suspeitas.
Marcus torce o nariz:
— Nada — dá um sorriso. — São bonitinhos.
Que cara-de-pau! Para fins de registro, meus seios são tamanho quarenta e,
novamente para fins de registro — vendo como estamos livres, confortáveis e críticos
quanto às partes corporais um do outro —, o pinto de Marcus parece ser do tamanho
AA, e estou falando de baterias de câmeras fotográficas. Apenas não dura tanto quanto
elas. Estou imensamente magoada, quando Marcus joga de lado o cobertor, anuncia que
vai para a ducha e salta da cama.
— Tudo bem, por mim — encolho-me, puxando o cobertor até o queixo.
— Então — continua, um pouco brusco —, você não vai tomar um banho?
Apóio-me em meus cotovelos e ronrono:
— Isto é um convite?
Marcus parece embaraçado. Ele coca atrás de seu calcanhar esquerdo com o pé
direito e diz:
— Hellie, tenho esta mania com relação a banhos. E bobagem, mas gosto de
tomar banho sozinho. Mas você pode ir e usar seu chuveiro, eu não me importo.
Não entendo imediatamente, de modo que pergunto:
— Se eu for e voltar, depois?
Marcus hesita e diz:
— Se você quiser, mas pode ser esquisito caso Luke perceba, só isso.
Ordeno que a mágoa não transpareça em meu rosto.
— Você está certo. Você poderia passar-me minha blusa?
Ele me alcança a blusa. Tento parecer despreocupada. Marcus gira minha
calcinha velha em torno de seu polegar curto e a atira em minha direção. Ela me atinge
no rosto e ele estoura em uma risada.
— Alegre-se, Hellie — diz, sorrindo. — As coisas vão melhorar.
Ele faz uma imitação dramática de minha expressão chateada. Tento manter-me
fria, mas não consigo. Mostro-lhe a língua.
Esta obviamente é a resposta correta, porque Marcus pisca e diz, seriamente:
— Sabe, Hellie, eu adoraria passar a noite com você, mas assim você poderá
dormir direito. Talvez outro dia, heim?
Ele envia-me esta frase batida, como se fosse a melhor piada do ano.
— Rá! — digo. Ele é Marcus. Marcus é Marcus. Com o corpo inteiro
inutilmente bombado, exceto por aquela parte crucial. Meu ressentimento desaparece.
— Vá tomar sua ducha — eu digo, em um tom gentil. — Eu o vejo amanhã.
Isto extrai dele um sorriso como um facho de luz.
— Boa-noite, durma bem — se despede.
Ele vira-se (nossa, ele é peludo atrás!) e caminha, nu em pêlo, para seu banheiro.
Sinto uma fisgada de emoção.
— Marcus! — eu chamo, rápida.
— Sim? — pergunta, apenas um pouquinho tenso.
Enquanto falo, vou enfiando as calcinhas mais maltrapilhas que já tive.
— Farei jantar para você amanhã, se quiser.
Não consigo decifrar sua expressão, mas ele responde, alegre.
— Legal, é, ótimo, vejo você, então. — desaparece no banheiro, fechando a
porta.
Saio da cama, junto minhas calças, meias e botas, caminho penosamente até meu
quarto, tiro a blusa, pego a tesoura em minha gaveta, corto em pedacinhos minhas
calcinhas antiquadas, vindas do inferno, jogo os trapos no cesto de lixo e caio na cama.
Não removi a maquiagem, não lavei o rosto, não escovei os dentes, nem usei fio dental.
— Um bumbum enorme, gorducho e peludo — eu digo, sarcasticamente, para o
teto. Depois, fico deitada, completamente desperta, até as quatro da madrugada.
Abro meus olhos e,,de acordo com meu despertador, raramente usado, b duas e
dezoito da tarde, então pela segunda vez nesta semana, penso — sem ainda saber por
que — Ah, não. Minha memória falha por meio segundo abençoado, mas depois tudo
me vem à mente. Ah, não!, praguejo. Fico remoendo os acontecimentos da noite
passada. O U-Bar. Alan. Os aposentados. Marcus. A salsicha-coquetel. O banho. A
oferta de jantar. A aceitação.
Bem, talvez nem seja tão "ah-não", afinal. Depois eu penso no que vou fazer
para o jantar e volto ao ah-não. Espio pela porta do meu quarto, porém apartamento está
silencioso e a porta de Marcus, toda aberta. Ele deve estar na academia. Luke,
provavelmente no pub. Ligo para a casa de Tina, mas não há resposta, de modo que
deixo um recado breve: "Oi, escória, onde anda você? Ligue no momento em que
voltar!"
Depois, marcho para o punhado intocado de livros de culinária, na prateleira
mais alta da cozinha de Marcus, e puxo alguns.
O de receitas italianas já não funciona no primeiro capítulo, porque não sei o que
é treviso. O livro de receitas inglesas dedica cem páginas a pratos principais indigestos e
mais de quatrocentas a sobremesas engordantes. Como Marcus preferiria ferver em óleo
do que comer qualquer coisa frita nele, preciso recorrer ao livro de culinária americana,
que relaciona receitas para purê de batatas (sei fazer isso!) com torta de galinha. Fácil!
Ah, droga. A receita pressupõe que você mesma fará a massa. Caia na real! Eu
abandono os livros e decido improvisar.
Farei purê de batatas e peixe. Lizzy ensinou-me a fazer um peixe delicioso. E,
mais importante, ele exige apenas quatro ingredientes, em vez de noventa. O chato,
porém, é que agora preciso ir ao supermercado. Verifico o refrigerador primeiro. Minha
seção (Marcus dividiu-o para evitar furtos) está vazia, exceto pela caixa de leite
solidificado, uma pedra amarela e rachada de queijo e um pedaço de manteiga com uma
crosta em cima. Eu poderia aproveitar a parte boa da manteiga, mas o queijo está em seu
leito de morte.
O que me faz lembrar de algo. Eu deveria ligar para minha mãe. Desde quartafeira
ela parou de me telefonar, o que me alegra, mas também provoca minha
curiosidade. Ligarei para ela amanhã. Tentarei apenas falar com Tina, antes de sair para
o supermercado.
Desta vez, ela responde.
— E por que você não me ligou? — pergunto, exigindo sua resposta.
Ela ignora minha questão e exclama:
— Ah, Helen! Minha nossa!
Sua voz respinga tons de maravilha pós-orgástica. Digo, acusadora:
— É aquele cara loiro?!
Ela suspira, plenamente feliz.
— Ah, Helen, ele mesmo!
Neste ponto, interrompo para dizer que isto é peculiar. Não normal. Geralmente,
quando Tina conhece um homem — com, digamos, a aparência de Matt Dillon, a
fortuna de Bill Gates e o cérebro de Jerry Seinfeld —, o máximo que se obtém dela é
um casual "foi bem legal!". Estou atônita.
— Conte-me. Agora mesmo!
Ela suspira pelo telefone.
— Bem, o nome dele é Adrian...
— Adrian! — Exclamo, em um gritinho.
— Sim, Adrian! O que há de errado com Adrian?
Engulo em seco.
— Nada, nada mesmo, é um nome adorável. Agora, despeje tudo.
Adrian, aparentemente, é perfeito. Sua perfeição bate todos os outros homens do
planeta. Ele é perfeito das pontas de seus dedos dos pés perfeitos até o alto de sua
cabeça perfeita e é particularmente perfeito em toda a área das virilhas.
Ele possui uma voz aveludada perfeita, conta anedotas perfeitamente engraçadas, tem
um emprego perfeito de arquiteto, possui um apartamento lindamente perfeito pertinho
de Maida Vale e, mais perfeito que tudo, ele acha que Tina é perfeita.
— O quê, mas já? — pergunto. — Você o conhece há apenas oito minutos!
Tina cacareja pelo telefone:
— Estou lhe dizendo, garota! Este é pra valer. Sinto isso em minhas... calcinhas.
Não estou absolutamente deliciada com isso. Confio no desencanto eterno de
Tina com os homens — apesar de saber que esse é falso — como um barômetro
romântico reconfortante. A perturbação abrupta do status quo cínico causa-me alarme.
Subitamente, estamos fazendo a dança das cadeiras e eu sobrei. Sua reação às minhas
novidades sobre Marcus não me fazem sentir melhor.
— Mas ele usa tanga! Não cuecas, mas tangas! — ela diz, em voz aguda.
Isto me deixa temporariamente muda por um segundo, de modo que tudo o que
digo é:
— E como você sabe?
— Dá para ver, através das calças de algodão! — ela grita.
Recupero rapidamente a compostura.
— E daí? — rebato. — Não podemos ser todos membros da Brigada da Moda!
Tina prefere ignorar esta provocação. Ela diz, em tom mais sério:
— Eu não quero ser estraga-prazeres. Sei que você é louca por ele há anos, mas
acho que podemos concordar que ele é ainda pior do que Jasper. Marcus é um panaca,
na verdade, o rei deles!
Quem fala...
— Quero dizer — ela continua, alegremente —, o que a gente pode pensar sobre
aquele vício dele por aspirina?
Receio que Tina esteja se referindo ao costume de Marcus sempre levar consigo
aspirina solúvel, em uma caixinha prateada especial para medicamentos, para o caso de
ter um ataque cardíaco. Continua:
— Ele não é o que podemos chamar de um cara cheio de vitalidade e energia.
Ele não vive no limite!
Agora ela pretende dar-me um sermão. E, embora, haja uma semente — ah, tudo
bem, uma imensa árvore — de verdade no que está dizendo, sua pregação no altar
sagrado do amor recém-descoberto realmente me tira do sério.
— Eu não diria que viver no limite do Maida Vale seja viver no limite no
sentido a que você se refere. O que acha?
Segue-se um silêncio gelado, que Tina rompe com uma pergunta bem-educada:
— E daí? Qual é o tamanho do pinto dele?
Admito que é um bonsai, nós rolamos de rir e as relações cordiais reiniciam-se.
— Então por que se incomodar? — ela acaba perguntando.
Eu sacudo meus ombros.
— Sei lá... é que... Não dá para explicar. Gosto de Marcus. Eu me sinto, e não
ria!, atraída por ele. Ele foi tão querido quando eu estava deprimida! E foi a primeira
vez. Talvez estivesse nervoso. Talvez estivesse frio no quarto...
— Talvez — Tina interrompe — ele tenha um pinto anãozinho!
Rimos um pouco mais — embora as risadas dela sejam mais espontâneas que as
minhas —, depois eu peço desculpas, mas tenho de ir ao supermercado.
Após cinco horas cansativas, o covil está preparado. Expulsei um Luke incrédulo
para o pub e limpei a cozinha. A batata está amassada, o peixe está assando, a mesa está
posta, as velas acesas, o vinho gelado, a manteiga teve sua crosta eliminada, comprei
um grande baguete para acompanhar o jantar, embora tivesse que dobrá-lo em dois para
caber no saco de papel e eu — codinome sobremesa — estou banhada, penteada,
vestida, no pico do cio. O único ingrediente que falta é Marcus.
Espero até as dez para as dez, como todo o peixe sozinha e o Gorducho
banqueteia-se com o purê.
CAPÍTULO 10
Em dias como hoje, eu desejaria ter inventado a sombrinha de coquetéis. Bilhões
por um minuto de origami básico. Depois de "levar bolo" de Marcus, dirigi até o pub,
encontrei Luke, pedi a maior e mais enfeitada piña colada da lista e — como tragédia
pouca é bobagem —, a sombrinha do coquetel quebrou-se, quando tentei abri-la. Assim
que reclamei, Luke percebeu que eu segurava as chaves de meu carro e confiscou minha
bebida.
Somente abordo o assunto esta manhã, dois dias depois.
— Você só tirou a bebida porque era eu. Se fosse um skinhead ou Arnold
Schwarzenegger, aposto que não teria coragem!
Ele parece magoado e prestes a discutir, depois percebe minha expressão raivosa
e fica quieto. Luke tem pisado em ovos comigo, desde que Marcus sumiu. Confesso que
na manhã de domingo ele chegou a exclamar, em uma voz de catacumba:
— Ele deve estar com aquela cantora do Segunda Edição!
Exceto por isso, ele tem sido um modelo de sensibilidade e sutileza. Eu, por
outro lado, tenho sido um modelo de azedume e mau-humor. Em parte por causa de
Marcus, em parte por causa de Tom, principalmente porque — graças à minha mente
nada inovadora — preciso voltar ao trabalho hoje.
Esgueiro-me pelo escritório, tentando não atrair a atenção. Há um sussurro
pouco perceptível enquanto entro, quase como se comentassem que estou usando um
par de tênis muito ultrapassado. O que é verdade. Tina rompe o silêncio, berrando:
— Bradshaw! Bem-vinda!
Lizzy vem correndo para dar-me um abraço apertado e três beijos (bochecha
esquerda, bochecha direita e depois, enquanto já me afasto, um outro beijo de surpresa
no lado esquerdo. Acho que isso é um hábito continental).
— Helen — ela começa, com ares de chefe. — Vá com calma hoje. Se for
demais para você, saia para uma caminhada. Aqui, tome isto. Você vai dormir melhor.
Ela pressiona um pequeno objeto em minha mão, antes de correr de volta para
sua mesa. É um vidro de óleo de aromaterapia. "Verde lavanda absoluto", está escrito
— e sob essas palavras, em letras menores para os usuários mais especializados,
"Lavandula officinalis". Estou emocionada, embora na última vez em que tive
problemas para dormir, ervas, raízes e botões de flores tiveram um efeito soporífero,
absolutamente nulo. Ainda assim, sou grata a Lizzy pelo presente, porque —
contrariamente ao mito — quando se é assistente de uma seção da GirlTime, pode-se
ganhar uma porcaria qualquer gratuita por ano, inevitavelmente algo que ninguém quer,
como uma frente de celular de cor laranja fluorescente.
Algumas colegas — depois da observação cautelosa de meu intercâmbio
aparentemente estável com Lizzy — vêm dizer o quanto lamentam por meu pai. Outras
enviam-me e-mails gentis e algumas parecem esquivas, tratando-me como se eu tivesse
ebola. Laetitia não sabe o que fazer. Nossa "tia agonia", maravilhosamente brusca,
enviou-me uma cartinha carinhosa (nada de cartão de condolências caprichado e com
desenhos de florzinhas, com ela) aconselhando-me a não me sentir mal pelos tempos
difíceis ou triste pelos bons momentos, dizendo também que meu pai estará sempre
comigo. O aborrecimento deixa-me corada — as pessoas parecem determinadas a me
aporrinhar com sentimentalismos.
Laetitia confunde meu desprazer com o aviso de que vou me desmanchar em
lágrimas e murmura:
— Segura o choro, segura o choro.
Depois, manda-me preparar seu desjejum, uma fatia de torrada integral com
manteiga de amendoim, nada de manteiga normal e um cappuccino com canela, nada de
chocolate. Compro um expresso duplo e um bolinho de blueberry para mim mesma, que
consumo cheia de culpa enquanto Lizzy está de costas. Bolinhos não enganam ninguém,
são bolos mesmo assim.
O dia não é tão ruim. Passo minhas horas transcrevendo cartas dos leitores e
outros materiais monótonos para o computador (nosso crítico octogenário de cinema
insiste em escrever seus artigos manualmente!). Ligo para escritores freelance para
lembrá-los da reunião que está por vir — os preguiçosos nunca enviam suas idéias, de
outro modo. Ligo para um médico para obter detalhes sobre os sintomas da clamídia.
"Praticamente nenhum. A menos que você tenha a sorte de apresentar corrimento, a
primeira pista de que foi infectada é sua infertilidade." Além disso, busco um trajezinho
de Laetitia na lavanderia. A vantagem de voltar ao trabalho é que tenho menos tempo
para remoer sobre minha situação com Marcus. Ou Jasper, que — percebo agora — não
me liga há mais de duas semanas e meia. A principal desvantagem de voltar ao trabalho
é que, quando Lizzy, Tina e eu saímos para almoçar, sou forçada a ouvir sobre o
maravilhoso Adrian, sessenta minutos. Nem Lizzy consegue conter um bocejo delicado.
Parece que esta será uma semana bem chata.
Quarta-feira. Noite. Entro em casa e bato a porta. Como espero, o apartamento
está vazio. Luke provavelmente está no pub — ele divide seu tempo entre trabalhar no
bar e matar tempo no bar, bem como a venda de espaço publicitário para uma revista
automotiva. O trabalho no bar eu posso entender, mas a venda de publicidade
desconcertou-me. Luke tentou explicar. Ele não se encontra com muitos clientes. Sentase
em uma sala abafada, num prédio caindo aos pedaços, cheio de homens grosseiros,
mulheres cansadas e telefones velhos. Ninguém desperdiça tempo dizendo "Alô". Eles
entram, sentam-se e folheiam outras revistas de carros contendo listas de carros de
segunda mão, à venda. Depois, ligam para os números de contato nas outras revistas e
persuadem quem tenta vender seu carro a gastar novamente, para anunciar nesta revista.
Como é freelance, Luke recebe apenas comissões.
Alguns meses atrás, tentei estabelecer como, com suas habilidades diplomáticas
infames, ele consegue ganhar algum dinheiro.
— Eu só ligo para pessoas de Wales — respondeu.
— O quê? — perguntei.
De acordo com Luke, essas são as pessoas mais amistosas e menos gritonas do
Reino Unido. Elas, com freqüência, sentem pena dele e anunciam na revista. Sorrio para
mim mesma enquanto recordo esta conversa, depois, escuto um barulho e paro de sorrir.
O ruído é uma risadinha sedutora e vem da sala. Maldigo a mim mesma por ter
batido a porta, e começo a esgueirar-me para o quarto. Tarde demais. Marcus — visto
pela última vez levando seu traseiro pelado para o banheiro — mostra apenas sua
cabeça na porta e diz, em tom alegre:
— Hellie, venha conhecer Catalina!
Uma mulher graciosa, com grandes trancas ruivas e imensos olhos verdes surge
no corredor. Interessantemente, ela usa um avental de camponesa e um chapéu de lã
com abas nas orelhas.
— Ei, Helen — ela diz.
— Olá, Catalina — suspeito que, embora ela pareça com uma refugiada da
Bósnia, na verdade é uma estrela da música. Ela é quimicamente amistosa, o que torna
isso ainda pior. Este deve ser o modo inimitável de Marcus dizer-me que não deseja um
relacionamento. Que covarde. Conserto isso com um olhar firme de desdém.
— Por que toda essa seriedade? — ele Indaga voltando-se para Catalina. —
Quando conheci a Hellie, ela era tão divertida! Agora está sempre rabugenta.
Catalina dispara uma risada de metralhadora e emite um ganido:
— Tá brincando? — como se lhe tivessem dito que seu álbum destinado às
profundezas do esquecimento chegou miraculosamente à posição noventa e quatro,
entre os mais vendidos.
— Meu pai morreu há pouco — comento, para efeito dramático e para fazer com
que Marcus pareça um idiota. — Isso tende a tornar-nos menos divertidos.
Dou a Marcus outro olhar de pedra e me tranco no meu quarto. Sinto pena de
mim mesma e, por incrível que pareça, de Catalina.
Quinta-feira de manhã, percebo que o Gorducho — pela primeira vez em sua
vida bem alimentada — não quer comer. Ele abre o triângulo rosado de sua boca e mia
alto, roça meus tornozelos, deixando uma camada fina de pêlos de cor laranja em
minhas calças pretas, salta sobre o balcão da cozinha — Marcus teria um ataque, mas
ainda está na cama com Catalina — e força sua cabeça contra meu braço com carinho.
Quando abro uma lata e esvazio o conteúdo em sua tigela azul de porcelana, ele levanta
seu rabo bem alto no ar, como um mastro, e se afasta. Depois começa a miar alto. Este é
um som realmente terrível. Inicia-se como um gemido profundo e termina em um
lamento agudo. Sinto que fracassei como mãe.
— O que foi? — pergunto, exasperada.
— M-uuaaaaaaa-w!
— Sinto muito — digo, mal-humorada —, eu não entendo.
Então ele — e esta é a pior parte — senta-se, como uma esfinge, no peitoril da
janela. E fica ali, com o nariz de frente para o jardim, bumbum voltado para mim.
Quando beijo sua cabeça, ele levanta-se, irritado, e senta-se mais afastado no peitoril.
Para ser honesta, ele não tem comido direito a semana inteira, mas achei que estava
simplesmente reagindo ao calor, que aumentou nos últimos dias. Provavelmente está
ressentido porque abandonei-o, ao voltar ao trabalho.
— Trabalho para poder mantê-lo com Whiskas, seu gordo preguiçoso —
reclamo, antes de perceber que estou atrasada e correr para a porta.
Passo a manhã de quinta-feira pensando em Marcus e no Gorducho. A tarde, ligo
para minha mãe. Não há resposta. Assim, começo a preocupar-me também com ela.
Desde o dia do funeral, não tenho lhe dado muita atenção. Isto é, não a vi nem falei com
ela. Eu deveria ter feito isso, mas não queria. Sinto-me tão terna e cheia de compaixão
quanto um bloco de gelo. Eu não teria feito bem nenhum, de qualquer modo. Não me
sentirei mal. Recuso-me. Por que não posso desligar-me por duas ou três semanas, sem
que isso se torne um enorme problema? Que se exploda! Ligo para seu celular. Está
desligado. "Por favor, ligue mais tarde." Onde ela está? Ligo para casa novamente e
deixo tocar até entrar a secretária eletrônica. Quase deixo cair o telefone, enquanto uma
voz diz: "Você ligou para a residência de Maurice e Cecelia Bradshaw. Não estamos
disponíveis no momento. Por favor, deixe sua mensagem após o bipe."
Meu coração está tão acelerado, que penso que explodirá em meu peito — a voz
de meu pai. Ligo novamente. Depois curvo-me sobre a mesa, fecho os olhos e recordo a
voz poderosa e profunda de meu pai. "Não estamos disponíveis..." Hipnotizada, vejo-o
sentado na poltrona favorita, em seu estúdio, ignorando calmamente o telefone, já que
detesta atendê-lo. Ele ainda poderia estar vivo. Escuto a mensagem mais uma vez.
Finalmente, deixo um recado. "Alô, mamãe, sou eu. Espero que você esteja bem.
Desculpe-me por não ter ligado. Estive trabalhando muito. Ligue para mim. OK.
Tchau." Talvez ela tenha saído para fazer compras com sua amiga Vivienne. Ou pode
ter ido nadar. Isso é o que digo a mim mesma, mas não acredito. Estou sentada em meu
lugar e Laetitia ordena que eu ligue para o crítico literário, para lembrá-lo que seu artigo
está uma semana atrasado, porém tudo o que consigo pensar é que minha mãe está
morta por culpa minha. Ela teve um infarto e está apodrecendo ao pé da escada. Ela
sofreu um acidente automobilístico, com várias lesões cranianas fatais (herdei dela meus
genes para a direção).
Estou chocada de horror e simplesmente sei que algo aconteceu. Recordo um
artigo que li por alto no Daily Telegraph sobre um homem, esfaqueado até a morte em
uma viagem de negócios à Suíça. Sua namorada, em Sussex, havia ligado para o celular,
sem obter resposta. "Eu sabia que ele estava morto", ela disse ao repórter. "Naquele
momento, soube sem nenhuma dúvida." Li esta história quando tanto meu pai quanto
minha mãe estavam vivos, saudáveis e me incomodavam, e minha reação foi "sim, ela
sabia, tá bom... De jeito nenhum!" Agora, aquela mulher sou eu. Mamãe está morta.
Preciso de ar.
— Desculpe-me — eu digo a uma Laetitia espantada e corro do escritório,
saindo para a rua. Olho em torno de mim, perturbada, sem uma pista sobre o que estou
fazendo ou para onde vou, atravesso a rua, jogo-me
um banco de madeira, onde há uma placa, na qual leio: —"Em memória de Anthony
Bayer, que adorava Londres." — Ah, meu Deus. Tento respirar. Sinto calor, frio,
náusea, tontura. Cinco segundos depois, Laetitia aparece.
— Helen, qual é o problema? Você brigou com aquele, qual é o nome dele
mesmo, Jason?
Percebo que as mãos de Laetitia estão afastadas, de modo que ela não corre o
risco de tocar em mim.
— Minha mãe está morta! — sussurro.
— Você quer dizer seu pai!
— Minha mãe. Eu sei.
Laetitia pigarreia.
— Hellen, sua mãe acabou de ligar. Pediu-me que lhe desse o recado.
Droga. Laetitia nunca anota recados. Nunca. Isso é extremamente embaraçoso.
Inspiro lenta e profundamente e me sento ereta.
— Obrigada, Laetitia, muito obrigada — eu digo, apressada.
Ela acrescenta, seca:
— Ela disse que se você estiver livre, pode visitá-la amanhã à noite.
Se eu estiver livre? Minha mãe, pensando em uma pessoa que não seja ela
mesma? Impressionante. Eu aceno em compreensão e — tomada de pânico — sigo
Laetitia, voltando ao escritório.
Quando chego em casa, preparo-me para Marcus brincando de médico com
Catalina. Minha surpresa é imensa quando ele abre a porta violentamente enquanto
enfio a chave na fechadura, com uma expressão feroz em seu rosto. Ainda pensando
naquele negócio de pai morto, espero.
— Seu animal revoltante — ele urra —, sujou toda a minha cama. De novo!
A impressão que tenho é que ele quer me espancar.
— Ah, não — exclamo, orgulhosa e deliciada com a manifestação bastante
pertinente de Gorducho. Marcus arrasta-me até as provas do crime. O Gorducho
evidentemente está com o que minha mãe chama de "intestino solto".
— Não se preocupe — sorrio. — Eu limpo isso.
Vou à cozinha pegar luvas de borracha e papel-toalha, imaginando como posso
recompensar o Gorducho. Suco de atum? A brincadeira com o casaco. Essa brincadeira
é a coisa mais chata do mundo, consiste em eu espetar um guarda-chuva, ou cabo de
alguma coisa, sob meu casaco e deixar que o Gorducho fique saltando sobre ele ad
infinitum, até que eu morra de tédio. Franzindo o nariz com o fedor, limpo a diarréia,
deixando manchas marrons no algodão branco. Espio, enquanto meu herói lambe sua
pata, na segurança de meu quarto. Estou levando as toalhas de papel cheias de cocô para
o vaso sanitário, quando o telefone toca. Marcus atende, depois segura o telefone para
mim, sem uma palavra.
Arranco as luvas.
— Alô?
Marcus marcha, afastando-se.
— Helen? — pergunta a voz, que reconheço com o coração pesado como sendo
a do oleoso Alan.
— Como você conseguiu meu número? — indago, friamente.
— Michelle — ele responde, alegre.
Quero matá-la.
— Presumo que este não é um telefonema platônico — comento, aborrecida.
Neste ponto, Marcus volta ruidosamente à cozinha, segurando seu cobertor
fedorento e todo embolado, com o braço esticado, e o enfia, furioso, dentro da máquina
de lavar. Ele pode ouvir cada palavra minha. Assim, quando Alan pergunta se eu
gostaria de encontrá-lo para "comer alguma coisa e depois ir a uma discoteca — "uma
discoteca!" —, embora eu preferisse raspar minhas sobrancelhas e comer um sanduíche
de rato, digo com um entusiasmo sonoro, que deve convencê-lo de que sou
esquizofrênica:
— Eu adoraria sair com você sábado à noite!
Tão logo Marcus fica fora de meu campo de visão, uso o recurso de ligar para o
número da última chamada, informo a Alan que mudei de idéia e que nosso encontro
consistirá de um cafezinho rápido. Depois ligo para Michelle e dou-lhe a maior, a mais
assustadora e paralisante bronca de toda a sua vidinha privilegiada de moradora do norte
de Londres. Começo gritando:
— Michelle, eu preferiria que você não desse meu número para homens que não
suporto...
E termino dizendo, sorrindo:
— Não, você tem razão. Obrigada. Sim, uma noite com Alan afastará meus
pensamentos de Marcus. E de Jasper, é verdade.
Vou lhe dizer: às vezes, eu realmente me odeio.
CAPÍTULO 11
Eu acho que, se você é homem e está na casa dos vinte anos, seus amigos
adorarão transformar sua vida num inferno. Eles lhe dirão que você é feio. Seu emprego
é um horror. O carro é uma lata velha. A namorada está prontinha para colocar-lhe um
par de chifres. Este é o modo que encontram de lhe dar apoio. Mas eu sou uma mulher.
Ser mulher e ter amigas pressupõe que — não importando se você parece, age ou se
comporta como uma asquerosa, estúpida e burra — elas estão biologicamente
programadas para dizer-lhe que você é maravilhosa, seus cabelos estão fabulosos e você
fez o que devia fazer. Para isso que servem!
Assim, quando conto a Tina sobre meu "encontro" com Alan, fico boquiaberta e
perplexa, porque ela tem a ousadia de não ser solidária.
— Se você não queria ir, deveria ter dito que não — ela diz, simplesmente.
Explico que isso foi um disfarce para provocar ciúme em Marcus.
— Mas, Helen, Marcus não dá a mínima!
Sinto-me ultrajada. Ela não tem nem a cortesia de me animar!
— Tina — rebato —, está cientificamente provado que os homens sempre
desejam o que não podem ter.
Ela responde suavemente:
— Bom, parece que isso também acontece com as mulheres.
Faço uma carranca:
— O que isso quer dizer?
Tina pigarreia:
— Você sabe. Marcus é uma piada, ainda não cresceu. Se você adora o Incrível
Hulk, Marcus é o cara certo. Mas ele também é um idiota, com um pinto que mais
parece uma minhoquinha. Você está assim, porque foi esnobada. E, por causa dele, está
prestes a desperdiçar uma noite de sua vida com um asqueroso. Isso é loucura.
Loucura? E incrível. E incrível, mas uma de minhas melhores amigas — em
quem realmente confio para dizer-me que sim, tomei a decisão certa ao cortar minhas
trancas em um ataque de tédio ou gastar duas semanas de salário em um par de sapatos
de saltos tão altos, que eu usei uma vez e tive dores intensas nas costas por cinco dias,
ou ainda dormir com Jasper na primeira noite, embora ele, então, tivesse perguntado
"Você sempre dorme com um homem na primeira noite?" — não concorda comigo!
Ignoro-a e nem me dou ao trabalho de consultar Lizzy para uma segunda
opinião, porque tenho a leve suspeita de que será tão masculina sobre isso quanto Tina.
Como um protesto silencioso, à uma da tarde, eu como um sanduíche de atum e o Dime
Bar, em minha mesa, enquanto folheio o Daily Mirror. Depois percebo que Tina está
fora, em uma sessão de fotografia de moda, Lizzy foi ao lançamento de um perfume e
eu perdi meu horário de almoço bancando a boba. Passo o resto da tarde tentando
suportar o fluxo interminável de coisas ridículas que Laetitia manda-me fazer e me
sentindo irritadamente consciente de que meu hálito cheira a atum. Saio do trabalho às
seis em ponto. Vou direto à casa de minha mãe.
Toco a campainha. Não há resposta. Toco novamente. Isto é esquisito. Mais uma
vez. Finalmente! Uma figura desliza lentamente pela escada, aproximando-se da porta
de vidro fosco. A porta é aberta lentamente, depois que ela solta as trancas de
segurança. Começo a perguntar por que ela se trancou toda dentro de casa, mas paro, ao
olhá-la, enquanto entro. Fico em choque, congelada. Ela parece um defunto.
Minha mãe sempre foi magra (eu puxei ao meu pai), mas nas três semanas em
que não a vi, emagreceu, pelo menos, seis quilos. Seus cabelos estão soltos e cheios de
nós, sujos e sem vida, seu rosto descorado, sem um pingo de maquiagem e sua pele está
seca e quebradiça. Esta é a mulher que devora as páginas de beleza da Cosmopolitan,
Marie Claire e Vogue todos os meses (ela não perde tempo com a GirlTime), sabe a
diferença entre Beijo de Cereja e Carmesim Cintilante sem pestanejar! Limpa, tonifica e
hidrata o rosto religiosamente, passa fio dental após cada refeição, incluindo o almoço
(ela mantém uma escova dental e outros equipamentos na sala dos professores, na
escola) e toma banho pela manhã e antes de dormir. O que ela está vestindo? Um suéter
tricotado de lã marrom, cinco números maior que o seu, e leggings pretos, frouxos em
seu corpo murcho. Ela parece uma estudante.
— Meu Deus! — exclamo, quando recupero a fala. — Ah, meu Deus, olhe para
você! Mamãe, você está horrível! Um esqueleto! E este suéter horroroso?! E verão!
Você parece um menino de rua!
Seus olhos estão parados, sem expressão.
Depois, ela diz:
— O suéter era de seu pai.
Começa a chorar, com soluços enormes, profundos, repetidos, de retorcer as
entranhas. Agarro-a em um meio-abraço desajeitado, levando-a até uma poltrona. Jesus!
Ela está mais leve que o Gorducho! O que, é claro, não significa muito, mas você
entendeu o que eu quis dizer. A visão de minha mãe, fraca e emaciada, é tão repelente,
que é difícil conter minhas próprias lágrimas.
— Ah, mãe — sussurro —, o que você fez a si mesma? Quando foi a última vez
que você comeu? Pelo amor de Deus! Olhe seu estado! Droga! Por que você não me
ligou?
Ela está chorando tanto, que as palavras são engolidas mesmo enquanto são
pronunciadas. Mas embora sejam indistintas, ouço-as e sua resposta é como uma lâmina
fatiando meu coração:
— Eu liguei!
Começa a chorar novamente. Agacho-me, balanço-a e acaricio seus cabelos
oleosos e sem vida. Os soluços tornam-se mais profundos e selvagens, até que ela está
uivando como um animal ferido.
— Ohhhh... Eu não consigo lembrar.
Engulo em seco.
— O que você não consegue lembrar, mãe?
Estou aterrorizada. Não quero saber.
— Não consigo lembrar dele — ela berra —, apenas do hospital. Quero lembrar
de seu pai vivo, mas não consigo! Não consigo! Por quê? — uiva novamente. — Só
consigo lembrar dele morrendo.
Fecho meus olhos. Sinto calafrios e um caroço duro e doloroso na garganta.
— Ah, mãe... — falo baixinho.
As lágrimas ardem em meus olhos, mas não por tristeza — por culpa. Vejo eu
mesma engolindo tequila, entrando e saindo de bares, rolando na cama com o "garoto
macaco" em vez de ligar para minha mãe, e a dor é aguda — estremeço e me retraio de
meus pensamentos como se fossem golpes.
Mesmo assim, sinto-me uma fraude. Intocada. A sensação é a de uma
experiência extracorpórea — como se estivesse observando minha mãe e eu mesma,
sem paixão, de um outro lugar. Os uivos continuam, até que ela esgota suas energias,
quando então transformam-se em lamentos. Continuo acariciando seus cabelos, sua
oleosidade é pegajosa em minhas mãos. Percebo, também, que ela está com mau cheiro.
Não tomou banho. Tem cheiro de gente suja. Minha mãe está fedendo. Agarro seus
ombros — ui, consigo sentir o osso pontudo por baixo da pele — e a sacudo um pouco.
— Mamãe! — eu digo em tom duro, como se ela fosse uma criança pequena. —
Escute! Vou preparar-lhe um banho e, se você quiser, ajudo-a a lavar seus cabelos.
Posso até lavar entre suas pernas, se você não conseguir. O que me diz?
Minha mãe enrijece-se de horror — como se sua própria filha tivesse acabado de
lhe oferecer uma massagem com nudez total.
— É claro que não! — ela gane em voz tão aguda e alta, que ensurdeceria um
morcego. — Como você pode sugerir algo assim? É nojento! Sou perfeitamente capaz
de tomar banho sozinha!
Acho que isso despertou-a. Mesmo assim, acompanho-a até o banheiro, ligo as
torneiras, derramo um pouco de espuma de banho e lhe digo onde está o xampu.
— Quero que você fique na banheira por meia hora e saia com seus cabelos
brilhando! — Também vou separar algumas roupas limpas para você trocar. Estarão
sobre a cama.
Minha mãe caminha incerta até o banheiro. Dou-lhe um abraço suave.
— Simplesmente relaxe nessa banheira quentinha e espumante — sugiro,
desconfortavelmente, consciente de que pareço Lizzy em seus piores dias de consultora
de saúde e beleza. — Vou providenciar uma toalha limpa. Aproveite o banho. Estarei lá
embaixo, se precisar de mim.
Deixo minha mãe despindo-se, tiro uma toalha do armário e vou até seu
roupeiro. Seleciono calcinhas brancas, sutiã também branco, uma blusa de algodão azulclara,
um cinto bege e calças compridas azul-marinho. Alegre, de bom gosto, mas não
excessivamente colorida, para alguém de luto. Estou estendendo esses itens sobre a
cama, quando vejo os lençóis.
Agora, não quero que você tenha a idéia errada, mas não sou excessivamente
exigente em termos de limpeza. Mantenho tantas xícaras esverdeadas, peludas e cheias
de mofo sob a cama quanto qualquer outra pessoa. Mas, quando os lençóis de alguém
cheiram a suor azedo e queijo rançoso, até eu reconheço que é hora (mais do que hora)
para uma ida a um supermercado. Tiro a colcha, o lençol e as fronhas — uma camisa de
pijama sai de dentro de uma delas, de modo que a recolho também, empurro tudo para
dentro da máquina de lavar, derramo uma quantidade generosa de sabão em pó e ligo o
botão da água quente. Depois, desço até a cozinha.
Minha prioridade é forçar minha mãe a comer. Abro o refrigerador — o
refrigerador que sempre assalto quando visito meus pais, sabendo perfeitamente que
sempre conterá: a) mousse de chocolate; b) salmão defumado; c) frutas exóticas; d)
queijos caros; e) lasanha de vegetais caseira; e f) suco puro de abacaxi. Em outras
palavras, tudo o que minha própria geladeira pobrezinha de terceiro mundo nunca
contém. Hoje, contudo, a geladeira bem-abastecida de meus pais está sem sua fartura
habitual. Seus conteúdos: a) um pote de iogurte de pêssego (com data de validade
vencida há uma semana); b) um tomate enrugado; c) uma microporção de queijo Edam;
d) uma barra pequena de chocolate branco; e) um pacote de flocos de milho; e f) um
exemplar de A firma, de John Grisham. Jesus! Quer dizer, Jesus não está lá dentro.
Quero dizer... putz!
Coloco os flocos de milho na despensa e A firma na estante. Não sei o que mais
posso fazer. Será que devo correr até uma loja de conveniências para comprar alguma
coisa? Passar o aspirador na sala? Raciocino: se minha mãe já está neste grau de
inanição, ela pode passar fome algumas horas mais. Primeiro, limparei o corredor e
prosseguirei pela casa toda. Para ser honesta, tenho medo do que posso encontrar. Meu
medo justifica-se.
Espio na sacola plástica esquecida perto do porta-sombrinha e descubro que está
cheia de envelopes. Envelopes marrons e brancos — todos fechados. Com o coração
afundando, retiro um dali. Está endereçado à Sra. C. Bradshaw. Atrás, em pequenas
letras verdes, está escrito: "Em caso de devolução, endereçar a John Lewis..." Abro-o. É
um extrato do cartão de crédito da minha mãe, datado de quinze dias atrás. Ela deve
quarenta e três libras por uma chaleira Philips.
Viro a sacola de cabeça para baixo, frenética, e derramo seu conteúdo no chão.
Contas de gás, telefone, cartões de crédito, eletricidade. Há também uma carta de nosso
advogado, Alex Simpkinson — com data de quinze dias atrás — declarando que os
bens, débitos e obrigações de meu pai precisam ser determinados, para que o testamento
possa ser validado, que minha mãe deve encaminhar-lhe quaisquer assuntos com os
quais não deseje lidar, que entrará em contato assim que estiver de posse dos detalhes
relevantes, mas nesse meio-tempo, se ela desejar qualquer conselho, não deve hesitar
em procurá-lo. Estou tremendo por — eu não sei o quê — estresse? Choque? Tristeza?
Mas ainda assim, abro metodicamente os envelopes e coloco cada comunicação em três
pilhas distintas, de acordo com a situação. Não tenho força para falar sobre isso com
minha mãe, agora. Neste momento, creio que ela também não tem estrutura para lidar
com isso.
O resto do piso térreo está razoavelmente arrumado, graças a Deus. É na sala
que faço minha próxima descoberta chocante: uma pilha de Financial Times ressecados
e aparentemente nunca abertos. Vinte e quatro exemplares, para ser precisa, incluindo o
de hoje, armazenados atrás da poltrona de meu pai. Seus óculos de leitura e uma caixa
de madeira pesada de charutos Cohiba estão na mesinha ao lado, seus chinelos de
veludo vermelho sob a mesinha. Sinto-me como Hercule Poirot e minha mãe
transformou-se em Miss Havisham. Esta suspeita sombria é confirmada por um grito
agudo e arrepiante, vindo do andar de cima.
Galopo até o quarto de casal, dois degraus por vez. O que é, agora? Minha mãe,
enrolada em uma toalha, cabelos pingando, grita:
— Sua garota estúpida, o que você fez?
Engulo uma resposta instintiva, que é "sua bruxa velha e ingrata", e digo,
tentando elegantemente manter minha voz em tom agradável:
— O que fiz?
O que fiz foi cometer o ato de vandalismo mais odioso e impensado da história
do mundo. Lavei as roupas de cama de minha mãe e o casaco do pijama de meu pai, em
uma máquina de lavar com abundância de sabão em pó, na temperatura extremamente
alta, de noventa e cinco graus, exterminando assim o odor remanescente e
imensuravelmente apreciado de Maurice Bradshaw para sempre.
Passo o resto da noite desculpando-me, limpando, adulando, consolando e
forçando minha mãe a alimentar-se. Faço uma visita de emergência ao supermercado,
compro sopa de espinafre, morangos, abacates, queijo, bananas, pão de aveia, manteiga,
macarrão fresco, molho de tomate pronto preparado com tomates frescos, salada pronta,
salmão fresco e um pacote de castanhas-do-pará. A maior parte disso foi comprada por
conselho de Lizzy — liguei para ela do meu celular, enquanto ultrapassava um
caminhão. Aparentemente, minha mãe precisa de muita vitamina B6 que, na opinião de
Lizzy, poderá "levantá-la um pouco" — o que eu duvido — e é encontrada em "carnes,
peixes, oleaginosos, bananas, abacates e grãos integrais".
Estou embaraçada demais para admitir que não tenho nem idéia do que é um
grão integral, de modo que compro tudo o mais. Eu também uso minha iniciativa e
compro Sugar Puffs e papel higiênico. Sinto-me menos que empolgada, quando minha
mãe consome apenas metade da sopa de espinafre, uma fatia de pão com manteiga e
anuncia que "está satisfeita".
Eu rosno:
— Pelo menos você comeu alguma coisa.
Prometo a mim mesma insistir com ela novamente amanhã. Faço-a engolir uma
pílula de vitamina, mando-a para a sua cama limpa e digo que voltarei para verificar
como ela está, de manhã bem cedo.
Quando finalmente chego ao apartamento, exausta, é quase meia-noite. Sufoco
um mal-humorado e esquivo Gorducho, com carinhos indesejados, depois marcho até o
telefone e ligo para o oleoso Alan.
— Alô? — sua voz está enrolada, como se estivesse acordando.
— Aqui é a amiga de Michelle, Helen — digo, em tom direto e assertivo.
— A que horas você... — ele pergunta, falando mole.
Eu interrompo.
— Estou ligando para dizer que não o encontrarei amanhã à noite ou em
qualquer outra noite. Não temos nada em comum, de modo que isso é inútil.
Estou quase baixando o telefone, quando ele fala novamente, parecendo muito
desperto e cuspindo de fúria.
— Você me liga totalmente fora de hora para anunciar que, em sua sabedoria
infinita, está me dispensando! E suponho que agora me dirá que o problema não é
comigo, é com você!
Anulo sua petulância, com um desdém assombroso e sonoro.
— Este não é um telefonema educado para pedir-lhe o favor de não me ligar
mais. Eu lhe pedi para não fazer isso no U-Bar, mas você, em sua infinita arrogância,
ligou. Não, Alan, o problema não é comigo, é com você.
Então, desligo e caio na cama. Estou tonta, meio sedada, confusa acerca de
minha mãe. Mas mesmo assim, depois de ligar para Alan, sinto-me um pouquinho
melhor.
CAPÍTULO 12
A matéria que eu mais detestava na escola era música. Eu a odiava ainda mais do
que matemática. Era analfabeta em música. Não importando quanto tempo e quão alto
gritassem comigo para grasnar "dóó ré miii fá sol lá si dóó", as notas continuavam
sendo uma coleção de rabiscos pretos e misteriosos na página. Para mim, uma oitava
nada significava. Mesmo assim, aos sete anos, ainda tentavam ensinar-me a tocar flauta
doce. Durante meu horário de almoço! Eu detestava aquelas lições mais do que o
caçador de criancinhas em O calhambeque mágico. Tudo o que recordo é de me
encolher em uma sala de música cheia de companheiros igualmente infelizes, enquanto
tocavam Frère Jacques e eu fazia de conta que também tocava.
Então, em um dia funesto, pediram-me para tocar sozinha e minha máscara caiu.
Eu fui apontada na frente de toda a turma como uma fraude completamente incapaz para
a música. Desejei desintegrar-me de vergonha. Na manhã seguinte, contudo, acordei
sentindo-me diferente — leve, excitada e maravilhosamente livre. Nada mais de lições
de flauta doce. Jamais. Quando recordo os maiores traumas de minha vida — lições de
flauta doce, a negativa ao pedido para furar minhas orelhas —, vejo que cada um teve
algo em comum. Ainda que parecessem destruir minha vida, no momento em que
ocorriam, pelo menos terminavam. O problema com a morte é que não há um fim para
ela.
Ela prolonga-se interminavelmente. As vezes, esqueço que aconteceu. Ou não
acredito. Mas depois, lembro. Eu posso não acreditar nela tanto quanto queira, mas ela
não vai embora. Minha mãe remexe em álbuns de fotografia, com obsessão. Como se —
porque a imagem de meu pai é evidente em glorioso tecnicolor Fuji — ele não pudesse
estar morto. Eu, enquanto isso, estou totalmente perdida. Não sei se minha mãe está
neste estado porque amava meu pai ou porque está sozinha.
Ela certamente demonstra alguma vivacidade, quando lhe conto que Jasper e eu
não estamos mais juntos. Até eu revelar que estou sozinha — que expressão ridícula!
Todas as pessoas no mundo estão sozinhas, até mesmo Tina, que tem sido quase que
uma exceção como alguém do tipo "meu-marido-e-eu" —, minha mãe demonstra puro
rancor por mim. Como se o "passamento" de meu pai, como ela diz, fosse minha culpa!
Bem, desculpe-me, mas eu não cozinhei a última refeição enriquecida cora colesterol
consumida por ele. Ela continua fazendo comentários irritantes como: "Ele era minha
alma gêmea. Para você não há problema, você tem sua rede de apoio." E que "rede de
apoio" seria esta? Luke, dizendo-me para ficar firme e não chorar? Michelle
repreendendo-me por ser "uma cadela" com Alan e perguntando se estou maluca?
Laetitia, que declara, quando explico que estou atrasada por causa de uma briga feia
com minha mãe, porque cancelei a assinatura de Financial Times: "Que vergonha. Mas,
você deveria ficar contente por ele ter partido de repente. Seria pior se ele tivesse
sofrido."
Mas quando minha mãe ataca, não revido. Não digo, por exemplo: "Ele era meu
único pai. Para você não há problema, você pode casar-se novamente." Em vez disso,
passo a semana inteira insistindo, esforçando-me para fazê-la comer mais. Compro o
Receitas para a boa dona de casa — um livro opressivo com mais de quinhentas
páginas de receitas — e decido que, a partir de agora, dedicarei todos os domingos,
além das segundas-feiras e as noites de quarta-feira, a engordar minha mãe e distraí-la
em sua viuvez. Infelizmente, este plano exige que eu anule minha vida social e aprenda
a cozinhar.
Também ligo para o corretor imobiliário que ligou para minha mãe nesta quartafeira
(consegui persuadi-la a começar a atender ao telefone terça-feira) e anunciou que
ouviu dizer que ela "estava pensando em mudar-se". Tradução: ele ouviu que seu
marido partiu desta para melhor, presumiu que a viúva teria que reduzir despesas e viver
em uma cabana e decidiu obter um lucro gordo e fácil, convencendo-a a vender a casa
através dele.
Tradicionalmente, recebo uma confrontação com o mesmo prazer que receberia
uma Testemunha de Jeová para jantar. Mas, estranhamente, gostei do telefonema. A
excitação de dar o fora no pomposo Alan deve ter um efeito aditivo. Ligo para Rodney
& Carter, tendo feito algumas anotações venenosas de antemão. Levanto-me (Lizzy jura
que isso aumenta a autoconfiança) e exijo que me passem para o Sr. Rodney. Depois,
assumo a voz de Linda Blair em O Exorcista e trovejo:
— Meu pai morreu trinta e seis dias atrás, minha mãe viúva está em pesado luto
mas, mesmo assim, você, seu urubu, liga para ela e tenta lucrar com sua infelicidade!
Espero que você esteja orgulhoso de seu comportamento! Você me enoja, seu ladrão de
túmulos! A julgar por sua tentativa servil de um pedido de desculpas, até mesmo
corretores imobiliários temem a possessão demoníaca.
Ligo também para algumas amigas de minha mãe. De acordo com mamãe, elas a
"abandonaram". Pelo que consegui perceber, isto não é bem verdade. Eu repasso as
muitas mensagens gravadas na secretária eletrônica e descubro que sua antiga
companheira, Vivienne, ligou nove vezes. Nana Flo ligou quatorze vezes. Cerro os
dentes enquanto escuto sua voz rachada e trêmula. Ela parece perdida: "Cecelia, você
está aí? Alô? Alô? Será que esta máquina está quebrada? Alô?"
Eu havia esquecido de Nana Flo. Ah, está bem, eu esqueci de minha vó como
costumamos esquecer uma consulta marcada com o dentista. Eu ligarei para Vivienne
primeiro. As suas primeiras mensagens são mais ou menos como: "Cessy, é a Viv.
Espero que você esteja suportando bem esta provação, dê-me um alô quando tiver um
tempinho. Você sabe que estou aqui se precisar de um ombro para chorar. Ligue a
qualquer hora do dia ou da noite." Suas últimas mensagens foram mais como: "Cecelia!
Vivienne aqui. Estou muito preocupada. Por que você não ligou? Será que fiz algo que a
ofendeu? Ligue! Estou morrendo de saudades, desesperada para vê-la. Deveríamos sair
para almoçar."
Ao questionar minha mãe, descubro que Vivienne chegou a visitá-la duas vezes,
três semanas atrás. Na primeira vez, ela apareceu e convidou minha mãe para "comer
qualquer coisa, almoço na segunda-feira" e para desconvidar minha mãe para um jantar
no sábado à noite, combinado cinco dias antes de meu pai empinar seus sapatos marrons
novinhos em folha, egoisticamente, e bagunçar todo o arranjo de lugares planejado por
Vivienne.
Em sua segunda visita, Vivienne lhe trouxe um bolo, um exemplar novinho da
revista OK e um ingresso complementar para uma produção teatral alternativa de
Hamlet, na qual seu filho Jeremy, com a pretensão de ser o próximo Rupert Everett, tem
um papel pequeno (seu personagem é Rosencrantz). As palavras exatas da amiga de
mamãe foram:
— Você não precisa mais de um ingresso, precisa?
Eu digo que, embora Vivienne tenha errado, suas intenções eram boas, e que
devemos sempre dar aos outros uma segunda chance. Enquanto isso, eu falo a Vivienne
— ligo para seu celular e ela atende enquanto está entre a Harley Street e o cabeleireiro
— que minha mãe não tem nenhuma intenção de sair caçando o marido das outras e
que, além disso, o Sainsbury's, agora, vende peitos de frango em porções para uma
pessoa. Assim, ela não terá o problema dever uma convidada sozinha em seu jantar e,
com base nisso, acho que seu convite para jantar foi reformulado, com um efeito
imediato.
Vivienne parece embaraçada e arrogante, ao dizer:
— Helen, ela é mais que bem-vinda, você sabe! Mas você precisa saber que,
antes de mais nada, eu estava pensando principalmente nela. Seremos cinco casais! Nós,
os Elworthy, os Williamse, os Schneck e os Struther! A última coisa que eu queria era
pôr mais sal na ferida!
Ignoro o fato óbvio de que pelo menos três desses convidados estão tendo casos
extraconjugais e explico que, embora certamente seja doloroso para minha mãe sentarse
entre esses protótipos brilhantes de felicidade conjugai, ela, sem dúvida, preferiria
isto, a sentar-se sozinha em casa, comendo um pedaço de queijo enquanto assiste
Casualty na televisão. O resultado? Minha mãe — vestida de preto, da cabeça obstinada
aos dedos dos pés desafiadores — vai ao jantar.
Eu, nesse meio-tempo, sento-me em casa comendo um pedaço de queijo na
frente da televisão, assistindo Casualty. E um prazer imenso. A única manchinha a
turvar minha felicidade é o Gorducho, que trata sua comida como uma menina de oitava
série, de dieta, depois segue até o corredor, onde uiva, mia e arranha furiosamente o
tapete bege de Marcus.
— Cale essa bocaaaaa! — vocifero do sofá. Não conheço muitos modos de
acalmar uma criança-problema.
Cinco minutos depois, vou até meu quarto para pegar um agasalho e vejo o
Gorducho escondendo-se em minha gaveta de calcinhas. Por uma fração de segundo,
fico confusa. Por quê? Um som de esguicho torna o enigma rápido e desagradavelmente
claro.
— Seu pestinha! — eu resmungo, enquanto percebo que — a menos que deseje
uma mancha abstrata de xixi por todo o chão de meu quarto — não posso fazer nada
exceto esperar que ele termine. Vou devagar até a gaveta e movo furtivamente minha
lingerie mais sexy, rendada e enfeitada para longe da área-alvo sob seu traseiro mijão.
Como uma responsável dona de um bichinho de estimação, estou consciente de
que os treinadores e especialistas em comportamento animal reprovam qualquer forma
de "técnica punitiva". Que pena. Enquanto o Gorducho salta triunfantemente da gaveta
ensopada de urina, dou-lhe um chute mediano. Ele acelera, encolhe-se como uma
Nêmesis peluda no canto extremo do corredor e fica em greve de fome durante todo o
domingo. Segunda-feira de manhã, ligo para o trabalho, explico a uma gélida Laetitia
que estou com "dor de dente" e levo meu gato ao veterinário. Megavet. Tremo de
expectativa e medo. Contraio-me, ao recordar meu diálogo recente e vergonhoso com
Tom. Talvez o veterinário de plantão seja outro. Ainda assim...
Tom manda-me entrar na sala de cirurgia sem uma piscada de reconhecimento
ou calor humano.
— Qual é o problema? — ele pergunta, enquanto retiro Gorducho de sua caixa
de viagem — o gato agarra-se freneticamente ao seu lado vertical, como um passageiro
do Titanic, afundando — e o deposito na mesa de cirurgia.
— Bem — digo, nervosa —, ele perdeu o apetite. Tem estado apático. Também
teve diarréia.
A expressão de Tom torna-se ainda mais desaprovadora.
— Há quanto tempo isso vem ocorrendo? — ele pergunta, distante e frio.
Isso não é uma frase de uma música?, eu penso, mas não ouso dizer. Estou
desesperada para pedir-lhe perdão, mas tenho certeza que serei rejeitada.
— Bem, não tenho muita certeza — respondo, cheia de culpa. Engulo em seco.
— Talvez uma ou duas semanas.
Tom levanta uma sobrancelha.
— Você tentou marcar uma consulta antes? — pergunta, em tom incrédulo.
— Não — começo a dizer —, porque achei que...
Tom interrompe. Ele parece ter-se transformado em uma versão ainda mais
malvada da diretora de minha escola primária.
— Ah, você não pensou! Alguma outra coisa? Vômitos? A diarréia é contínua?
Balanço minha cabeça, sentindo-me muito mal.
— Só uma vez, eu acho... Eu creio!...
Tom fuzila-me com o olhar. Depois, diz:
— Descreva.
Super-romântico.
— Bem — explico em tom levemente condescendente —, a diarréia foi marrom
e meio líquida. Bem parecida com diarréia, na verdade.
Meu Deus, o que ele deseja de mim? Tom parece repugnado e não tenho
nenhuma certeza se isto tem a ver com minha descrição poética do cocô líquido.
Ele rosna:
— Em um gato jovem, sintomas como esses podem ser os primeiros sinais de
leucemia, AIDS felina ou FIP — uma doença horrível que começa com diarréia,
seletividade com relação a alimentos terminando em problemas respiratórios. Não há
vacina contra isso.
Estou perplexa.
— Leucemia, AIDS ou FIP? — sussurro. Nem mesmo sabia da existência de FIP
até um segundo atrás, mas agora tenho certeza que o Gorducho tem isso, AIDS e
leucemia. E tudo culpa de meu egoísmo e negligência.
Tom assente, sombrio.
— Portanto, se não for muito trabalho, eu gostaria de saber se as fezes dele
contêm traços de sangue. Elas continham algo em forma de filamento? Ou eram como
bile? Ele tem bebido e urinado mais que o normal?
Sacudo minha cabeça na pergunta sobre as fezes e sussurro:
— Não tenho certeza sobre a urina.
Tom continua:
— Farei alguns exames sangüíneos. Um animal novo como este não deveria
apresentar problemas. Deveria estar comendo, bebendo, urinando e defecando
normalmente. Quando um gato tem diarréia, não se espera. Se ele chegar a quinze por
cento de desidratação, está morto.
Assusto-me.
— Ah, não! — e em uma voz pequena e cheia de lástima, eu acrescento — O
Goducho não vai... morrer, vai?
Estou quase chorando e denunciando a mim mesma à Sociedade Protetora dos
Animais. Tom franze um canto de seus lábios e diz:
— Amanhã teremos os resultados laboratoriais.
Estou fraca de remorso, vergonha e terror. Assisto em silêncio enquanto Tom
apalpa o abdômen gordo do Gorducho, abre a boca do gato, espia sua garganta e
empurra seu lábio para cima até mostrar todos os dentes (o lábio do Gorducho, é claro).
Depois, pressiona suavemente até que o Gorducho acocora-se, prende-o em um abraço
firme, e — para a indignação sibilante e alta de meu gato — desliza um termômetro
lubrificado para dentro de seu traseiro.
— Tudo bem, camarada — ele murmura, em tom baixo e suave.
Meu coração bate forte. Finalmente, Tom remove o termômetro e diz, em outro
tom de voz, mais agudo:
— Ele está com um pouco de febre.
Assinto, triste.
Depois, ele chama a horrível e bicuda Celine, raspa um pequeno quadrado do
pêlo de cada uma das pernas frontais do Gorducho, passa algodão em cada área raspada
e — enquanto Celine segura o Gorducho firmemente, eu desejo que ele a morda e, se
tiver AIDS, transmita para ela — retira um pouco de sangue de cada veia. Ele passa o
sangue para dois frascos transparentes, um com tampa rosa e outro com tampa laranja.
Considerando tanta agitação e manipulação, Gorducho não está tão indignado
quanto deveria. Ele emite um rosnado profundo, baixo e zangado, mas não tenta fugir.
O traidor deixa até mesmo que Tom o pese, enquanto eu, a proprietária negligente, tento
conter minhas lágrimas tardias de arrependimento. Tom inclina-se, acaricia a cabeça do
Gorducho e o recoloca em sua caixa de viagem.
Ele olha para mim, parece hesitar e, depois, diz em um tom firme, mas sem tanto
desprezo quanto eu esperaria:
— O gato está engordando como uma madame de vida boa, e estou certo de que
está bem. Provavelmente ele apenas comeu alguma coisa que não lhe fez bem, ou
passou por algum estresse ou aflição recente. Qualquer mudança no estilo de vida, até
mesmo a mudança na posição de um sofá pode deprimir um gato saudável. Isso,
geralmente, é demonstrado na forma de um aviso marrom e líquido. Quero que ele jejue
hoje. Vou lhe dar ração especial para três dias. Depois, se ele estiver bem, faremos uma
dieta para redução do peso. Avisarei quando tivermos os resultados do laboratório. Mas
se ele tiver diarréia ou vomitar, traga-o, imediatamente.
Balanço a cabeça em afirmação humilde e sussurro:
— Então há um fio de esperança para o Gorducho?
Tom vira-se — acho que para tossir — e diz, duro:
— Mais que um fio. Você quer saber qual é realmente o problema com seu gato?
Ele é um garoto estragado pela mamãe!
Com isto, ele me entrega a conta (exorbitante) e faz um gesto, mandando entrar
sua próxima cliente.
Diz "tchau", mas nem olha em meus olhos, apenas um pouco além de onde
estou. Vou para casa, acaricio o Gorducho e sinto vergonha de mim mesma.
Concedo-me uma licença pelo resto do dia e permaneço acordada toda a noite de
segunda-feira, rezando. Tom liga para mim no trabalho na terça-feira às onze e trinta e
nove da manhã, para informar-me — em tom prático e profissional — que Gorducho
está bem, exceto por um pequeno aumento em seus eritrócitos, o que indica a
possibilidade de vermes. Corro para a Megavet, direto do serviço. Tom aparece,
brevemente, para entregar-me um comprimido e um quarto (porque o Gorducho é muito
gordo) de vermífugo em um envelope azul e branco.
— Se ele vomitar dentro de meia hora, o comprimido não foi digerido — avisa,
parecendo tão gentil quanto um urso polar congelado.— Se ele vomitar depois, é porque
funcionou, só que o comprimido irritou seu estômago.
Levo quarenta minutos para conseguir empurrar a pílula pela garganta do gato.
Depois, passo mais vinte minutos enchendo meus braços de anti-séptico, porque fiquei
cheia de arranhões. Estou zangada e abatida. Ligo para Tina. Ela não está. Ligo para
Lizzy. Também não. Então ligo para Michelle, que está em grande dívida comigo, por
choramingar tanto sobre o Sammy. Assim, ela obriga-se a escutar meus lamentos.
Primeiro, desculpo-me quando ela vem mais uma vez em favor do oleoso Alan,
indignada.
— Michelle, para ser honesta, estou tão temperamental ultimamente, que achei
que não seria justo vê-lo somente para derramar meus desgostos, entende?
Acabada a sessão de desculpas podres, vou direto para meu verdadeiro interesse
— queixar-me sobre o estado de coisas com Tom. Não sei bem como quero que
Michelle reaja, mas ela dá uma mostra satisfatória de coleguismo feminino. "Cara, esse
Tom parece uma figura! Você não lhe deve nada! Mas que panaca! Mexendo com seus
sentimentos desse jeito! Deixe disso, Helen! Ele não vale a pena, é rancoroso demais!"
Estou inflamada e inspirada e resolvo consultá-la sobre um assunto que tem me
incomodado há algum tempo. Sinto falta de Jasper. Ainda penso muito nele. Tenho
vontade de ligar. Novamente, Michelle faz direitinho seu papel. Ele é um cara legal e eu
deveria procurá-lo. Incentivo e permissão! Assim, ligo para Jasper.
Para meu espanto e prazer, Jasper sente-se "arrepiado" por eu ter ligado. Seria
"dez", se pudéssemos sair uma hora dessas.
— E o que você acharia de marcarmos algo para amanhã à noite? — eu digo
(uma hora escutando Michelle, até mesmo Luke começaria a falar como uma esposa de
Hollywood).
— Estou em casa — Jasper diz, lentamente. — Por que não dá uma passada por
aqui?
Retorço-me de prazer coquete e ronrono no telefone:
— Posso fazer isso...
Desligo o telefone, com a cabeça girando. Jasper Sanderson e Helen Bradshaw.
O retorno! Para tomar emprestada uma expressão favorita de Jasper: Michelle, você
matou a pau! Vou toda contente até minha gaveta de roupas íntimas (sem calcinhas
esfrangalhadas) e começo a escolher o que usarei.
CAPITULO 13
Se Tina e eu queremos irritar Lizzy, o que fazemos com freqüência, nós a
chamamos de Garota Xanax. Isto é porque a pura e não adulterada Elizabeth morre de
pavor de voar e, antes de colocar seus dedinhos dos pés em um Boeing, precisa engolir
uma grande pílula química. E claro que ela já tentou primeiro hipnoterapia, acupuntura
e chá de hortelã, mas — para nossa secreta alegria — eles não fizeram a mínima
diferença e a moça integral e natural forçou-se a recorrer a drogas legalizadas. Nós,
porém, não chegamos a chamá-la de Garota Xanax. Passamos vinte cansativos minutos
no escritório, algum tempo atrás, tentando convencê-la de que Deus realmente queria
que os humanos voassem.
— Lizzy — disse Tina, em tom superior —, eu vôo com tanta freqüência, que
nem mesmo penso nisso. Um avião é como um ônibus, para mim.
Sentindo-me excluída, acrescento, para acalmá-la:
— Todas as estatísticas mostram que é mais fácil morrer em um acidente de
carro.
Chegamos mesmo a demonstrar — com um avião de emergência construído com
uma circular sobre o uso ilegal de táxis da empresa para fins sociais — como a pressão
do ar força a aeronave a permanecer a trinta e três mil pés de altura, ao em vez de cair lá
de cima como uma pedra de trezentos e sessenta mil quilos.
— A menos que a asa se solte — interrompeu Laetitia, que detesta quando
minha atenção desvia-se do trabalho. — Se isso acontece, ele mergulha para o chão
como uma grande salsicha.
Infelizmente, Lizzy está sempre descobrindo novos perigos.
— O que vocês acham da turbulência no ar? Objetos estranhos na pista?
Pássaros que entram nos motores?!
Assim que eliminamos esses temores, Lizzy como sempre, nos dá novamente
sua última cartada:
— Mas vocês não sabem? E claro que acontecem acidentes com aviões. Pode ser
conosco. Não há garantias.
Até há quatro meses, quando meu pai morreu, eu não conseguia compreender os
temores de Lizzy. Antes de meu pai morrer, eu era invencível. Se lia sobre um casal em
lua-de-mel, cujo avião irrompera em chamas sobre um mar turquesa; ou sobre uma
mulher esfaqueada enquanto voltava para casa depois do trabalho; sobre amigos que
morreram em uma explosão, enquanto bebiam num bar em uma noite quente de verão,
sobre um homem jovem atingido por uma bala perdida em uma parada de ônibus; sentia
pena e virava a página. Sabia que esse tipo de coisa acontecia com outras pessoas.
Agora, leio sobre outras pessoas e me ponho no lugar delas. Sinto-me sempre à
beira das lágrimas, zangada e obcecada. Imagino seus últimos minutos de
despreocupação antes do fim. Se compreenderam que o momento de sua morte
realmente chegara. Sinto dor pelas pobres famílias em frangalhos, pela mãe
desamparada que diz: "Por que ele? Por que os melhores sempre vão primeiro?" O
noivo, com sua face pálida, olhos vermelhos, sussurrando: "Ela era minha vida. Não
posso acreditar que isso aconteceu." Desejo confortá-los, mas minha ternura é
vampiresca. Banqueteio-me, desgraçadamente, com sua dor, com o autodesprezo e
compulsão monomaníaca de uma bulímica devorando bolo de chocolate.
Ultimamente, minha boca está sempre seca pelo medo. Levanto-me da cama de
manhã e penso, este pode ser o dia de minha morte. Sinto meu coração batendo e
lembro, isto pode parar a qualquer momento. E claro que raciocino, controle-se, sua
imbecil. Mas, então eu penso: a princesa Diana não se levantou da cama em 31 de
agosto de 1997 sabendo que este seria o dia de sua morte. As pessoas, simplesmente,
caem duras — mesmo as que consomem menos barras de chocolate do que eu, e se
exercitam mais de uma vez por mês. Não existem garantias. Ando nervosa. Tensa. A
menos que esteja engajada em uma tarefa específica, que me dê prazer — por exemplo,
assistir Xena, a princesa guerreira, ler livros policiais ou dormir —, sinto-me vazia e
distanciada do mundo, e na ausência de algo melhor, minha emoção básica é a de terror.
Aqui está um exemplo. No fim-de-semana passado, Tina foi até Lake District
para uma festinha privada na cama de seu protótipo de homem, Adrian — o qual
consegui evitar até agora, porque sinto-me incapaz de reunir a admiração pré-requisito
para nosso primeiro encontro — e seu Escort pifou na auto-estrada a cem quilômetros
por hora. Ela contou seu esbarrão com a morte violenta e precoce como se fosse um
conto de fadas! Algo do tipo:
— Estamos em alta velocidade e então ouvimos este estouro alto por baixo do
carro. Parecendo que algo tinha se soltado. Nós estamos à deriva dentro daquela maldita
lata! Sem aceleração, sem motor, sem câmbio. Adrian começou a gritar, mas consegui
parar no acostamento. Não batemos em nada, foi só aquele "bang, que inferno, o carro
está sem controle!" Os freios funcionavam. Depois, descobrimos que a correia do
distribuidor se soltara. Gastei uma nota para substituí-la.
E esta foi a sua última e despreocupada palavra sobre o assunto! Eu disse:
— Tina, prometa que você terá cuidado — e ela olhou-me esquisito,
respondendo:
— Tomei minha pílula.
Eu, enquanto isso, estou deitada na cama, seis dias depois, com a boca seca,
tremendo como uma velhinha caquética, repassando o acidente vezes sem conta em
minha mente, como uma musiquinha chata e repetitiva. Meu pulso está rápido e penso:
Tina, você poderia ter morrido! Você já poderia ter morrido por mil pequenos motivos.
Eu teria entrado no escritório segunda-feira e ouvido Laetitia dizer:
— Você soube o que aconteceu com Tina? Ela morreu! Morreu em um acidente
de carro no fim-de-semana.
A morte é aleatória.
Eu tremo, suo, respiro agitadamente... e se?
Enquanto estou afundada em uma fase psicótico-neurótica, minha mãe não
consegue superar a fase do "e se". Talvez o "e se" seja contagioso e fui contaminada por
ela, porque, na semana seguinte à minha descoberta da montanha de papéis e do
refrigerador literário, tornou-se obcecada. E se ela tivesse forçado meu pai a comer
menos ovos? A dar caminhadas rápidas após o jantar? Se tivesse comprado para ele uma
fita de vídeo que ensinasse a parar de fumar?
A tudo isso, minha única resposta mental foi 'E se meu pai fosse outra pessoa —
especificamente, que não viesse de uma família com propensão à doença cardíaca’?
Minha resposta, no entanto, foi:
— Mamãe, por favor, não se torture. Você fez tudo o que podia. Era para
acontecer, nada podia evitar. De qualquer maneira, você sabe que papai só fazia o que
queria.
Como se esses consolos superficiais fossem tão novos e surpreendentes quanto
uma modelo namorando um astro do rock — o que posso dizer que não seja batido? —,
minha mãe acelerou sua auto-flagelação verbal.
E se ela não estivesse fazendo as sobrancelhas e, em vez disso, estivesse
vigiando enquanto meu pai almoçava? Se tivesse preparado salada (sem molho, é claro)
para ele? Se a indigestão de papai depois da noite de quinta-feira na casa dos Harrise
não tivesse sido pela alta densidade do pudim de pão de Leila? Se isso já era um sinal de
alerta de um ataque iminente das coronárias?
— Mãe! — eu berrei. — Agora pare com isso! Caso você tivesse feito salada
para ele, papai teria jogado tudo no lixo e reservado uma mesa do Dorchester. Se você
fosse uma enfermeira especializada em problemas cardíacos, pelo amor de Deus?
Este meu último comentário pretendia ser irônico, mas — e eu deveria saber
disso — ela considerou-o seriamente dando início a um novo e superfértil rosário de
lamentações. Se ela tivesse optado pela carreira médica, em vez de ser professora? Aqui,
a resposta honesta seria: provavelmente, haveria pelo menos mais dez pessoas mortas
no mundo. Contudo, disse-lhe:
— Mãe, você foi uma companheira sensacional. Você o fez muito feliz. Não há
motivo para sentir-se culpada.
Isto fez com que ela chorasse e eu percebi, aborrecida, que havia expressado,
para minha mãe, praticamente os mesmos sentimentos banais que, não muito tempo
atrás, Lizzy expressara para mim.
Após três meses de paparicação, entretanto, minha mãe recuperou-se um pouco.
Ela parece estar — como Leila Harris diz — "lidando melhor". Vivienne comenta:
— Sua mãe tem sorte. Ela é jovem, pode encontrar outra pessoa. Se estivessem
casados há cinqüenta anos, seria diferente.
Bom para minha mãe, que está tirando um cochilo no andar de cima. Na
verdade, Vivienne faz esta observação perversa para mim. Por azar, ela diz isso quando
estou me sentindo — ah, peguemos um estado de ânimo ao acaso, dentro do chapéu das
oscilações de humor — bem à flor da pele.
— Você! — rosno, batendo com minha xícara de café na mesa e estreitando
meus olhos até transformá-los em fendas. — Este é um comentário completamente
retardado! Ela tem "sorte"! As pessoas não sentem o luto de acordo com uma... tabela
matemática! Não sentimos menos porque temos cinqüenta anos, não noventa! Não ouse
pretender que conhece a extensão da perda sofrida por mamãe! A vida dela jamais será
a mesma! E eu vou lhe dizer algo. Caso ela — neste ponto, para minha vergonha, meu
rosto enruga-se todo, quase roxo —, algum dia, como você diz, "encontre outra pessoa",
estará, apenas, conformada com a perda de meu pai. Porque, para mamãe, meu pai foi o
único. E se soubesse que ele voltaria daqui a trinta anos — agora estou aos prantos —,
esperaria!
Estou chocada e agitada com a violência de minha própria raiva. Sinto-me como
um coquetel molotov. Vivienne — que está igualmente abalada e agitada — salta para
trás como um gato assustado e murmura:
— Helen, Helen. Acalme-se. Desculpe-me, não quis, ah, como fui horrível,
magoei você, eu me sinto...
Aqui, eu interrompo meu choro para gritar:
— Não me magoou! Isso não tem a ver comigo! E sobre ela!
Usando o bom-senso, Vivienne cala-se, assente e não diz mais nada. Sinto-me
um pouquinho culpada porque, apesar de suas limitações, Vivienne tem ficado perto de
mamãe. Depois que o surto de condolências passou um pouco (mais ou menos três
meses, eu acho), Vivienne continuou visitando-a regularmente, enviando convites para
chás, passando adiante as fofocas e lhe trazendo bolos. Eu diria, até, que Viwy competiu
comigo para evitar que mamãe afundasse em seu pesar.
Mas, sou a vencedora, ainda assim. Tornei-me assistente social a tal ponto, que
me surpreendo constantemente por não estar usando um jaleco.
Comecei cozinhando. Fiz um risoto de vegetais com uma receita contida atrás do
pacote de arroz (na quinta tentativa, parei de achar que a caçarola não era necessária e
de queimar o arroz), fiz a receita de galinha com coentro de Tina (corte e frite a cebola e
o alho em azeite-de-oliva, pique e acrescente a galinha e depois o coentro, vinho branco
e creme fraîche semidesnatado, em deferência ao meu pai) e — porque isso é fácil —
batatas. Depois de nosso quarto jantar seguido com batatas fritas, minha mãe reclamou:
— Não agüento mais comer batatas fritas! Isso não é nutritivo! — e jogou seu
prato longe.
Neste ponto, eu teria ficado contente se pudesse deixá-la morrendo de inanição.
Em vez disso, falei com raiva:
— Tudo bem, espertinha. Você é tão sabida que me mostrará como fazer, então.
Esta frase defensiva e impulsiva prenunciou o começo da segunda fase — um
período desprazeroso durante o qual passei todas as noites de segundas e quartas-feiras
na cozinha de mamãe arruinando seus caldos de carne e ouvindo seus berros. Ela,
porém, divertiu-se para valer. Acho que sente falta de embuchar meu pai de comida.
Nossos encontros nas noites de segundas e quartas-feiras continuam — não vale a pena
irritá-la, dizendo que estou cheia disso —, mas consegui, gradualmente, acostumá-la
com porções de comida compradas para uma só pessoa.
Além disso, Lizzy tem sido um doce.
Durante uma extensa sessão sobre suflês, ela confidenciou-me (tentei dissuadila)
que uma das piores coisas da viuvez era a "falta de contato humano". Eu quis dizer:
"Ah, é? Isso eu conheço de cor!", mas falei apenas:
— Oh!
Quando contei para Lizzy, entretanto, ela quase engasgou-se com seu cozido de
feijão azuki.
— Acabei de receber minha harmonização! — ela exclamou, encantada. —
Tenho um plano perfeito!
Três dias depois, Lizzy começou a executar reiki em minha mãe.
— O que é "riki?" — mamãe perguntou, quando Lizzy chegou, transbordando
chi positivo.
— É uma arte milenar de enviar amor universal e energia para curar pessoas —
Lizzy respondeu.
— Preciso ficar nua para isso? — minha mãe perguntou, cheia de suspeitas.
— Ah, não! — Lizzy respondeu, alegre. — Você apenas deita aí e eu ajo como
um canal para a energia de força vital, que desbloqueará suas auras, chacras e o
equilíbrio dos hemisférios esquerdo e direito de seu cérebro permitindo uma liberação
emocional.
Minha mãe pareceu assustada, de modo que lhe expliquei:
— Você só deitará aí, com todas as suas roupas, Lizzy irá mimá-la um
pouquinho.
Após a primeira sessão, minha mãe salta e pergunta, alto:
— Estou desbloqueada agora?
Lizzy parece decepcionada, de modo que eu digo, apressadamente:
— Mãe, ela não é um encanador desentupindo esgotos!
Lizzy sorriu, tensa, e perguntou:
— A senhora sentiu como se flutuasse, ou alguma dormência?
Minha mãe sacudiu a cabeça e disse:
— Não senti coisa alguma!
Lizzy respondeu:
— Bem, pode ser que a senhora tenha diarréia e uma irritação cutânea...
Neste ponto, interrompi, dizendo:
— Lizzy, ela adorou, está apenas espantada, não, não, claro que você não terá
diarréia, mãe, Lizzy estava brincando, sim, você estava, diga obrigada agora, tudo bem,
Liz, muito obrigada, vejo você amanhã...
Os últimos quatro meses não têm sido fáceis. Talvez eu não devesse ter gritado
com Vivienne. Volto ao apartamento e me deito.
Com o benefício de um exame em retrospectiva, dois comprimidos de valium e
uma chuveirada fria, atribuo meu ataque de irritação ao fato de ontem — três meses
depois que renovei meu conhecimento bíblico com Jasper — ele ter sugerido que
"déssemos um tempo".
Fiquei perplexa.
— Por quê? — perguntei, mordendo a pele de meu lábio inferior. — Achei que
estávamos indo realmente bem.
Isto, embora pareça insanidade, não é mentira. Encontrávamo-nos apenas
ocasionalmente e, quando isso acontecia, mantínhamos conversas adequadas. Jasper
contou-me que estudou em uma escola interna e que sempre era comparado
desfavoravelmente com seu irmão mais velho, brilhante em tudo. Disse a ele que
sempre desejei estudar em um internato. Jasper contou-me sobre a mudança de seus pais
para Cingapura e me disse que os via apenas uma vez por ano. Contei-lhe que meus pais
viviam em Muswell Hill, que me viam uma vez a cada três meses. Achei que Jasper e
eu estávamos tendo bons momentos. Devo confessar que o sexo já não era tão fabuloso
quanto antes, mas isto deveu-se principalmente ao fato de me perguntar se meu pai não
estaria olhando.
— Estávamos indo bem — ele disse. — Estamos. Benzinho, eu realmente gosto
de você. Você é ótima, um dia será uma esposa maravilhosa para alguém. Não me leve
a mal, mas acho que você precisa de um tempo.
Ah, aqui vamos nós, pensei. Aquela mesma história de esposa, precedida pela
sineta de alarme de "eu realmente gosto de você" — ele não está me dando o fora
porque quer cair fora, mas para o meu próprio bem.
— Jass — respondi, azeda. — Não me venha com esta! Eu não preciso dar um
tempo! Se você quer, diga!
Levantei uma sobrancelha hostil.
— Será que isso é por causa de minha mãe?
Jasper hesitou. Eu disse, friamente:
— Você sabe que ela não tem mais ninguém. Você sempre pode sair conosco
aos domingos, ir ao zôo ou a Kew Gardens e ao maldito castelo de Leeds. E só dizer.
Silêncio.
— Bem? — perguntei.
— Bem — ele respondeu —, em parte é isso, esse negócio de você passar tanto
tempo com sua mãe, mas você lembra de minha ex-namorada, Louisa...
Isto não é uma pergunta.
— Siiiiimmm — eu respondi. — se é a mesma Louisa, da qual você fala há doze
semanas. O que tem ela?
A ficha caiu como um avião sem asas.
— Ah, meu Deus! — gritei. — Não, de novo.
Jasper levou um dedo aos lábios, para fazer-me falar baixo.
— Helen, calma, não é o que você está pensando.
Eu giro em torno de mim mesma, em um círculo patético de "eu-não-acreditonisso".
— O que é, então?
Jasper tossiu.
— Estou quebrado, o contrato de aluguel de meu apartamento venceu, Louisa
acabou de comprar um apartamento de dois dormitórios e precisa de um inquilino.
A isso, minha resposta inteligente foi:
— Fala sério, mentiroso.
Mas Jasper arregalou seus olhos de azul-paraíso e insistiu:
— Ela está saindo com alguém, não há nada entre nós, posso jurar com a mão no
coração.
Você não tem um, pensei. Depois, tive outra idéia:
— Assim, se você não está transando com Louisa por que devemos dar um
tempo?
Sua desculpa risível?
— Meu quarto é de solteiro.
Ele começou a falar sobre "tempo para refletir", mas levantei em protesto e ele
se calou.
O tiro de misericórdia:
— Na verdade, Jasper, se você tivesse perguntado, saberia que também estou
comprando um apartamento. E meu segundo dormitório também será de casal.
OK, não foi um tiro de misericórdia tão elegante assim, mas também não foi tão
ruim. Pelo menos, não até eu sair por sua porta com meu nariz empinado e tropeçar na
escada.
Hoje de manhã, antes de sair para o trabalho, eu conto tudo a Luke, em detalhes
abundantes. O desapontamento com sua resposta lembra-me de como me senti, aos
cinco anos, quando minha bola de sorvete caiu da casquinha, achatou-se na calçada e
foi, instantaneamente, devorada por um cão enorme. O primeiro comentário patético
dele:
— Mas vocês não tinham nada em comum!
Seu segundo comentário patético:
— Então, está mesmo comprando um apartamento?
Rolo meus olhos, em desespero. Alguns homens não têm mesmo a
mínima idéia sobre como falar com mulheres.
— Luke — explico, pacientemente —, não quero que você faça comentários que
não ajudem em nada e perguntas tolas. Prefiro que você diga "ah, querida!", "que
cretino", e acene um sim, muitas vezes.
Ele parece magoado, de modo que acrescento, rapidamente:
— Desculpe-me. Não quis ser grosseira. Mas não, não estou comprando um
apartamento. Eu e o Gorducho ficaremos aqui mesmo.
O que não contei a Luke é que, de dois dias para cá, eu poderia comprar um
apartamento. Isto é, seria possível dar a entrada para um apartamento modesto em um
bairro razoavelmente livre de criminalidade. A razão para isso é que, colocando em
termos claros, eu lucrei com a morte de meu pai. Para encurtar uma história chata, um
mês atrás nosso advogado, Alex Simpkinson, informou minha mãe — como executora e
principal beneficiária do testamento
— que os papéis estavam prontos para serem verificados e assinados.
Mamãe pôs-se à altura da ocasião. Ela progrediu muito. Depois do primeiro mês
sem ter qualquer notícia, o Sr. Simpkinson — desesperado — ofereceu-lhe a opção de
renunciar à sua responsabilidade legal, em favor de outro beneficiário, isto é, eu ou
Nana Flo. Ela examinou a idéia. Depois, como declarou a mim durante um jantar de
comida descongelada, brandindo seu garfo vazio para fins de ênfase: "Eu disse a mim
mesma: 'Cecelia, se isso era o que Maurice queria, que seja!'."
Acho que ela precisava de uma desculpa para renovar a assinatura do Financial
Times. E a atenção gentil de homens altos usando ternos nunca foi demais, é claro.
Outro elemento influente é que ela sofreu um leve susto financeiro, depois que os bens
de meu pai foram congelados (minha mãe conseguia manter seu estilo de vida apenas
porque meu pai abastecia sua conta bancária).
No entanto, mais importante que tudo, minha mãe percebe que Maurice
Bradshaw confiou os frutos de toda uma vida de trabalho à sua princesa especial e,
como membro da boa realeza, ela leva seus deveres a sério. Examina os preços das
ações todas as manhãs, sagradamente. Também tornou-se uma fã dedicada da seção
financeira do Sunday Times e perturba o corretor de meu pai todas as segundas-feiras,
para garantir que ele está investindo na ação "quente" do momento. Não estou dizendo
que Cecelia Bradshaw virou Gordon Gekko. Ela pode, porém, ter virado uma página de
sua vida. Seu retorno à escola semana passada — ela passou a primeira metade do
semestre em casa, de licença por "doença" e com pagamento integral — também ajudou
nessa transformação.
Acho que até mesmo ela sentiu-se impressionada com o prazer com que foi
recebida de volta pela diretora, a Sra. Armstrong. Mesmo que o prazer de sua chefe
tenha a ver com dinheiro. Conseqüentemente, quando o testamento foi finalmente
liberado quartoze dias atrás, minha mãe dividiu um táxi com Nana Flo até os escritórios
refrigerados dos Srs. "Pomp, Simpkinson & Circunstance" e, como contou-me
orgulhosamente, "Alex repassou tudo para nós e eu compreendi cada palavra."
Ela sugeriu que eu a encontrasse depois para um chá, mas sua oferta coincidiu
com uma reunião do meu setor. De qualquer maneira, não ousei perguntar a Laetitia se
poderia sair mais cedo do trabalho, porque acho que ela está aborrecida até a morte com
esta saga de luto e a aproximadamente um milímetro de me despedir.
— Mas isso era uma questão de vida e morte! — Lizzy disse, espantada.
Eu encolhi os ombros e citei, incorretamente:
— Mais vale um emprego na mão do que um caixão...
De qualquer maneira, isso não importa. Recebi o cheque pelo correio. Enquanto
abria o envelope, detalhes do testamento, sendo lidos em voz alta no dia do funeral de
meu pai, adquiriram foco, depois de meses de um esquecimento quase completo.
Refiro-me, especificamente, ao parágrafo curto, lido pelo Sr. Simpkinson, que
começava assim: "Concedo a soma de vinte mil libras a minha filha Helen Gayle" —
papai sabia que detesto meu segundo nome! — "que espero ver investida sabiamente,
por exemplo, em propriedades..."
Segurei o cheque em minha mão e fiz uma careta. Orientação paterna póstuma!
Em qualquer outra época, estaria indo direto para as lojas, mas neste exato momento eu
não tenho energia para gastar, gastar, gastar. Nem a força para fugir de corretores
imobiliários. Assim, apesar de minha demonstração com Jasper, quando conto a Luke
que ficarei por aqui mesmo, é a pura verdade. Sinto-me paralisada também pelo curto
veredicto de Nana Flo sobre o testamento: "Meu filho, reduzido a algumas folhas de
papel." Eu gostaria de não ter ouvido isso. Ajo contra todo o bom-senso e conto isso a
Luke. Ele diz: — Ah, querida, que velha safada! — depois acrescenta. — Suponho que
isso é mais um prego no caixão...

CAPÍTULO 14
O segredo para manter um relacionamento fantástico com a pessoa que você
ama é, de acordo com a tia agonia da GirlTime, aprender algo novo sobre compromisso
todos os dias. Imagine, assim, minha alegria ao descobrir que possuo uma habilidade
que não sabia que tinha. Descobri isso hoje, após o café da manhã.
Eu acabara de beijar o Gorducho e estava saindo correndo quando Marcus
interrompeu-me com um "Ei!" alto e raivoso. Parei por um segundo, fazendo charme,
virei-me em meus saltos e disse, em um tom ensolarado de quem renasceu:
— Bom-dia para você também, Marcus!
Sorri pacientemente, enquanto ele lutava para controlar sua irritação e
fracassava.
— Estou no limite com você — ele começou.
— Ah, sim! E exatamente assim que me sinto com você também.
Seu rosto tornou-se roxo, ao entender o insulto.
Ele aproximou-se um pouco mais e disse, entre dentes:
— Não force a barra, Helen.
Banquei a inocente:
— O que fiz?
Seus olhos fuzilaram-me.
— O que fez? Você não pagou o aluguel, não limpou nada, a panela do macarrão
que você encheu de água para depois lavar está na pia há duas semanas, você não...
Interrompi.
— Vá com calma, Marcus, não esquente a cabeça, que você perde os cabelos —
Marcus tem paranóia sobre calvície. — Hoje à noite, eu pago o aluguel e arrumo tudo.
Mas, acalme-se. Roxo não lhe cai bem.
Eu sorrio, audaciosa, desvio dele, sumo dali.
Depois, deixo que minha expressão volte ao vazio habitual. Enquanto me
arrasto, contudo, penso em Marcus e sinto agulhadas de ódio dentro de mim. Não sei
como cheguei a sentir tesão por ele um dia. E pensar que eu o achava engraçado! Ele é
tão engraçado quanto ser esmagada por um caminhão. E, não apenas isso, é tão
superficial quanto uma poça de chuva. E cheio de comentários espertinhos, mas não
possui a inteligência para ser educado, pelo menos. Moro no mesmo apartamento que
ele! A linha de seus cabelos está começando a recuar, como percebi, depois que estive
perto o bastante para verificar. Ele deveria transplantar parte dos pêlos de sua bunda à
sua cabeça. Meu ódio queima, se contorce dentro de mim e percebo que tenho um
talento. Sou um gênio! Tenho uma capacidade estonteante de alfinetar Marcus. O
restante de minha jornada é, no geral, mais emocionante ainda.
Lizzy, que acabou de ser promovida a editora de beleza, não se sente
impressionada, quando lhe conto sobre meu talento.
— Este não é um modo muito positivo de se viver! — ela diz.
— Mas me sinto enganada por Marcus! — defendendo-me fracamente.
— Como? — ela pergunta, em tom exigente.
Eu suspiro.
— Toda aquela onda de conquistador, para começo de conversa. Presumi que
isso queria dizer que ele era um garanhão quando, na verdade, refletia exatamente o
contrário.
Lizzy dá uma risadinha e diz, consolando-me:
— Bem, você não poderia adivinhar.
E acrescento:
— É um enorme fofoqueiro. Isso é muito divertido, quando ele faz fofocas sobre
outras pessoas, mas muito menos legal quando é sobre a gente que ele fala. Meus
peitinhos pequenos já devem estar na boca de todo o condomínio. Se já não estavam.
Envio um olhar dardejante a Lizzy, para que ela não ouse rir.
Lizzy faz uma expressão solidária e eu digo, azeda:
— E tem outras coisas.
— Ah, é? — pergunta educadamente.
— A mania de limpeza, por exemplo. Achei que isso era bonitinho, uma prova
de que ele não esperava que uma mulher faxinasse sua casa. Agora acho isso grotesco.
Lizzy está em silêncio. Depois, pergunta:
— Mas, Helen, o que tudo isso importa?
— Ah, Lizzy — explico, frustrada com sua natureza generosa e tentando soar
alegre, em vez de rancorosa. — Você é tão — eu desejaria dizer "Pollyanna", sempre
vendo o lado bom das coisas, mas sei que isso parecerá irônico e então termino, meio
sem graça —, tão sensível!
Pelo seu olhar, acho que percebe o que realmente sinto.
— Espero que não tenha ficado chateada acerca do meu novo cargo — ela diz,
suavemente. — Batalhei muito por ele.
Sinto-me pequena.
— Você merece sua promoção — apoio, com calor humano real. — Estou muito
contente por você. Sério! Desculpe eu ser tão resmungona. Na verdade estou com
inveja, mas não tenho direito de me sentir assim.
Lizzy dá tapinhas em meu braço.
— Tem sido difícil para você, Helen! Você tem tido muito em que pensar para...
para concentrar-se em sua carreira. Cuida de sua mãe praticamente o tempo todo! E,
bem, sou um ano mais velha que você. Acho que já era hora de eu crescer aqui!
Isto, como ambas sabemos, é bobagem. Lizzy foi promovida porque, sob sua
fachada suave e tímida, está uma mulher determinada e ambiciosa, excelente no que faz.
Faço uma anotação mental, para enviar-lhe um cartão de congratulações. Quando Lizzy
veio trabalhar na GirlTime, há quartoze meses, minha primeira impressão foi que ela era
tola e fraca. Ela não é nada disso, embora eu ainda ache que é ingênua, pois não entende
as pessoas que são desagradáveis por gostarem de ser assim, como Marcus. Ela não
espera esse tipo de desvio, porque seu próprio comportamento jamais seria cruel. Eu
costumava menosprezá-la por isso.
Então, certa noite, veio ajudar-me a tingir meus cabelos de ruivo e depois
ficamos conversando com Luke. Na manhã seguinte, ele disse:
— É legal. Gostei dela.
Fiquei incomodada como Gorducho, quando lhe ponho uma fita no pescoço:
— Ah, não! Luke acha Lizzy uma gracinha! Entre na fila!
Ele sacudiu a cabeça.
— Não — argumentou e, pelo tom que usou, acreditei —, ela é linda, mas tem
confiança demais para mim — ele deu um grande sorriso e acrescentou: "Gosto de
mulheres coitadinhas e inseguras."
Sorri de volta e perguntei, provocando-o:
— Quer dizer que precisa sentir-se necessário. Seu grande chauvinista!
Então, percebi realmente a extensão de seu veredicto sobre Lizzy.
— Você a considera autoconfiante? Mas ela é tão quieta!
Ele sacudiu os ombros.
— Se alguém se sente feliz por dentro, não precisa convencer outras pessoas.
A partir daquele dia, criei um respeito maior por Lizzy e por Luke, apesar de, ao
pressioná-lo para que elogiasse meus cachinhos ruivos, ele ter se remexido por uma
fração de segundo, antes de despejar:
— Está parecendo uma gata sarnenta e velha.
Assim, embora eu sinta um respeito intrínseco pelas opiniões de Lizzy, prometi
a mim mesma continuar com a cruzada contra Marcus. Afinal, na ausência de Jasper,
preciso concentrar minha atenção em alguém. Exceto por marchar para a casa de minha
mãe a cada capricho dela — estou começando a admirar meu pai por tê-la suportado —,
não tenho uma vida. Ocasionalmente, procuro apartamento com Lizzy, que está
determinada a comprar um, antes do Natal. Só isso que faço.
De qualquer maneira, é um prazer provocar tanto quanto possível um animal tão
traiçoeiro, sem ser realmente um gato. O que me faz lembrar de outra coisa. O
Gorducho deve retornar à Megavet para outra sessão de desverminação, esta semana.
Na verdade, não preciso que nada me lembre disso, porque tenho pensado o dia inteiro e
estou tentando, sem sucesso, imaginar o rosto de Tom (é claro que, se fosse o rosto do
oleoso Alan, eu poderia pintá-lo em detalhes perfeitos — desculpe-me, em detalhes
nojentamente imperfeitos).
As maneiras rudes de Tom, na última vez que o vi, ofenderam-me
profundamente, mas em retrospecto admito, ainda que relutantemente, que mereci.
Embora eu culpe Marcus parcialmente por isso. O que não consigo atribuir a Marcus,
mesmo que adorasse fazer isso, porém, é a recusa teimosa do Gorducho para emagrecer
um único quilo, apesar da dieta recomendada por Tom. Quando fui buscar o vermífugo,
Tom perguntou quantas vezes por dia eu dava comida ao Gorducho.
— Cinco — eu disse, tremendo ante a perspectiva de outra reprimenda. Ele
despediu-se de mim com um sermão depreciativo e um pouco de ração Puritan para meu
gato.
Agora, o Gorducho come duas e meia ou três vezes ao dia, mas em porções
maiores. Eu também suspeito que ele entra às escondidas pelas portinhas para gatos nos
apartamentos de outros moradores e rouba comida.
— Pobre anjinho! — sussurro depois, despejando uma grande garfada de carne
de ovelha e patê de coelho em sua tigela azul. — Você não tem culpa de ter ossos
grandes. Ele devora aquilo em vinte segundos e se estira, alongando seu torso e
empurrando suas pernas traseiras para trás. Ele parece um reflexo distorcido em um
espelho de um parque de diversões. Acaricio-o, orgulhosa. O Gorducho é, arriscandome
a parecer uma grande fracassada idiota, a parte mais alegre de minha existência. E,
quando a parte mais alegre de sua existência vomita um grande lago de purê marrom em
seu carpete enquanto você está caindo na cama, sua existência não parece muito alegre.
A consulta do Gorducho com o veterinário é no horário insano de nove e
quarenta e cinco da manha em .um sábado. Como não pretendo levantar-me um minuto
sequer antes das oito e quarenta e cinco — e mesmo isso já é cedo demais —, penso no
que vestirei, com antecedência. Botas pretas de saltos altíssimos, calças pretas, camiseta
branca lisa, com decote redondo e um casaquinho preto. Minimalista, clássico e
elegante. Especialmente, porque pretendo meter no rosto uma boa camada de dois
centímetros de maquiagem sutil e natural. Tina sentiria orgulho de mim. Se, é claro, ela
pudesse parar de babar e se derreter toda por Adrian o tempo suficiente para perceber.
Rezo para jamais, jamais ter agido assim. Mesmo com Jasper. Ela raramente nos vê fora
do trabalho e, quando Lizzy sugere uma saída à noite, parece desconfortável, com uma
desculpa podre, do tipo "Prometi a Adrian que faria jantar para ele esta noite".
Pensar que eu admirava o espírito indomável e livre de Tina! Invejava seu
enfoque imparcial com relação a romances! Desejava ter um pouquinho de sua
imunidade a paixões! Inicialmente, atribuí isso ao fato de ela ter crescido com três
irmãos. Ela atribuía isso a ter crescido com três irmãos. Jamais disse isso, é claro, como
se estivesse ocupada demais, disfarçando-se de Mae West. Mas algumas vezes — em
geral depois de tomar um porre de dar gosto —, deixava escapar alguns comentários.
Como, por exemplo, "homens não são uma outra espécie, pelo amor de Deus!" Tudo
isso sempre impressionou-me imensamente.
Entretanto, ao olhar para trás com tristeza, sou forçada a concluir que seus
irmãos não tiveram, absolutamente, nada a ver com sua invulnerabilidade corajosa. Não
que não a ajudassem a compreender os homens, relacionar-se com eles e a viver por sua
própria conta. Sem dúvida, fizeram isso. Mas ainda assim, acho que a verdade pura e
simples é que, até conhecer Adrian, ela jamais se apaixonara. Nem mesmo por um
doido segundo, por uma hora alucinada ou por um dia enlouquecedor. Assim, minha
admiração caiu por terra.
Acordo no sábado, às oito e quarenta e cinco da manhã, sentindo-me zonza de
sono. Será que não existe justiça neste mundo? Fui para a cama às dez da noite! Vou até
o espelho e meus piores temores confirmam-se. Estou com os olhos inchados. Minhas
pálpebras estão tão inchadas e gordas que parece até que as cinco barras de chocolate
que comi nesta semana — tão pequenas, não é possível que engordem tanto — foram
diretamente para este ponto de meu corpo. Agarro o telefone para ligar para Lizzy,
então recordo que estamos praticamente no meio da noite. Tenho certeza que ela já está
de pé, com seus cabelos brilhantes e seu rosto radiante, correndo no parque ou algo
assim, mas se ela estiver vivendo perigosamente e planejando ficar na cama até as nove
e meia, detestaria incomodá-la.
Assim, desisto do telefonema, vou até o refrigerador e furto duas fatias de
pepino do Marcus, colocando-o de volta em posição vertical, para dar-lhe um complexo
de inferioridade. Se eu fosse ele, só usaria aqueles brotos de milho doce. Depois deitome
na cama com fatias de pepino nos olhos, por cinco entediantes minutos. Quando não
agüento mais, salto da cama e corro até o espelho. Ainda muito inchada e minha pele
está toda rachada e seca. Mas, que porcaria. Passo o equivalente a vinte libras de
hidratante no rosto, uso um curvador de cílios para disfarçar o inchaço nos olhos e
depois gasto quinze minutos retorcendo e afofando os cabelos, em uma vã tentativa de
fazer com que pelo menos não fiquem achatados sobre minha cabeça. Termino
parecendo David Bowie no começo dos anos setenta. Esperemos que Tom seja um fã de
"Space Oddity".
Chego à Megavet — com o Gorducho lamentando-se alto e unhando o interior
de sua caixa de transporte — de mau humor. O que não melhora, quando vejo Celine.
Ela me ignora. Devolvo-lhe o cumprimento e assumo a expressão de alguém que acabou
de sentir cheiro de cadáver em decomposição. Finjo estar envolvida na leitura de Dogs
Today e estou tentando ler um artigo de três páginas, quando a porta abre-se, e uma voz
profunda e ressonante chama:
— O próximo!
Quase desmaio de tensão nervosa. Olho hesitante para aqueles olhos azuis.
— Oi — Tom diz, sem um sorriso. — Você gostaria de vir ao meu consultório?
— Com prazer — sussurro.
Passo um minuto inteiro convencendo o Gorducho a sair da caixa, mas só para
ter tempo de controlar minhas emoções. Depois, ergo o gato relutante até a mesa e digo,
em um tom que já impede comentários desagradáveis:
— Ele não perdeu muito peso, mas parece contente. Deve ser seu metabolismo.
Não quero que ele se sinta complexado.
Tom parece não acreditar nisso, pois declara:
— Preciso dizer-lhe que não acredito em droga nenhuma que você está
contando.
Mas, isso é dito em tom amistoso.
— Tom — eu despejo, antes de poder censurar-me. — Eu só queria dizer, quero
dizer, faz tempo que quero dizer isso, eu... — o Gorducho escolhe este momento
delicado para emitir um peido silencioso, mas repugnante. — Eu, ei, esse cheiro não foi
culpa minha, eu juro, ele sempre faz isso, quando está nervoso, bom, o importante é
que, bem, eu só queria pedir desculpas. Entende? Desculpe-me por ter sido tão grosseira
com você no telefone. Passo o tempo todo recriminando-me por isso.
Enquanto as palavras saem de mim sem lógica e sem ordem, percebo que
parecem arrogantes. Como se eu presumisse que Tom passou os últimos três meses
definhando por causa de meu telefonema infantil.
Assim, eu remendo:
— Não que, como tenho certeza, você tenha ligado muito, pensado muito sobre
isso ou qualquer coisa, mas... — estou prestes a explicar que eu estava sob estresse por
causa de Marcus, minha mãe, meu pai, do oleoso Alan, da Toyota, porém percebo que
todas essas desculpas são monstruosas, de modo que termino com: "mas eu tenho
pensado sobre isso". Meu Deus, estou fazendo um discurso! — Eu não queria que você
pensasse mal de mim.
Eu paro. Ah, Deus, isso parece tão egoísta! Acrescento, com pressa:
— Não queria magoá-lo — digo, parecendo presunçosa. — Quer dizer, não que
eu o tenha magoado, mas estou sinceramente arrependida. Ainda me sinto mal por isso.
Cravo minhas unhas com força nas palmas das mãos para evitar mais uma sílaba
completamente idiota. Por que Tom não fala, em vez de me olhar assim?
Finalmente, ele dá um sorriso amplo.
— Desculpas aceitas. Eu não penso mal de você. Não muito mal — ele sorri
novamente, para indicar que isto é uma piada. Gorducho solta outro peido horrível.
Acho que vou matá-lo, este Gremlin de cor laranja maligno.
Tom examina o peidorrento rapidamente, lê suas anotações sobre o paciente e
diz, em tom casual:
— Sinto muito se a assustei sobre a saúde do Gorducho. Exagerei um pouco.
Balanço minha cabeça, aproveitando a oportunidade para ser magnânima:
— Eu mereci.
Se o Gorducho tiver a sensibilidade e força intestinal para segurar qualquer outra
emissão fétida, farei a brincadeira do casaco todos os dias, por uma semana, penso,
fervorosamente.
— Ele está com boa cor.
Levo um segundo para perceber que Tom está se referindo às gengivas e olhos
do Gorducho, não ao seu pêlo.
— A pelagem está brilhante e macia. Ele está obeso, mas, fora isso, está tudo
bem. Vou dar-lhe apenas o vermífugo. Se você puder segurá-lo, enquanto eu abro a
boca. Tudo bem, camarada.
Grraowwwwww!
— É isso aí — ele diz. — Não foi tão ruim assim, foi?
Enquanto Tom acaricia um irritado Gorducho, eu penso:
Não. Não foi nada ruim. Estávamos tão próximos, que pude sentir o cheirinho
limpo de seus cabelos e isso está causando um efeito extraordinário em meus joelhos. E,
sem querer ser rude, em partes mais acima, também.
Forço-me a assumir uma expressão não-excitada.
— Obrigada — agradeço, colocando o Gorducho em sua caixa. Reluto em sair,
mas não quero ficar parada ali, como uma menina boba, apaixonada. Meus pensamentos
são atropelados pelas palavras, que saem sem permissão:
— Você provavelmente dirá que não, mas... — começo a dizer.
— Eu não sei se você... —Tom começa. Ambos paramos.
— Você primeiro — arrisco.
Ele corre a mão por seus cabelos.
— Você quer sair para beber alguma coisa, uma hora dessas? Talvez suco de
laranja?
Meu sorriso é tão amplo, quanto se pode sorrir sem causar uma lesão a um
músculo da face. Respondo, cheia de alegria:
— Adoraria.
Gorducho solta imediatamente outra onda podre, mas estou tão contente que,
francamente, meu bem, não estou nem aí.
CAPÍTULO 15
Pessoas que citam outras pessoas fazem isso porque são estúpidas demais para
pensar em algo esperto a dizer sem recorrer a este expediente. Isso é o que eu pensava.
Mais ou menos cinco minutos atrás, mudei de opinião, pois quero citar W C Fields, que
disse uma vez: "Se no começo você não tiver sucesso, tente, tente novamente. Depois
desista. Não há por que ser tolo várias vezes." Que homem sensível! Estou quase
empregando seu conselho com minha mãe.
Tentei com ela por mais de quatro meses inteiros e agora — embora isso não
pareça muito convincente — estou desistindo. Por quê? Porque estou cansada. Eu não a
compreendo. Não sei o quê ela quer ou como sua mente funciona, nada do que eu faço a
faz feliz. Se pelo menos papai estivesse aqui, ele saberia o que fazer. Acho que ele tinha
pavor de ser pai, mas foi um marido maravilhoso. Lidou muito bem com minha mãe e,
sob a luz terna da adoração meio brusca, ela brilhava. Ela gostava de vê-lo como o
chefe, pois sentia-se centrada assim. Sem ele, é chata e incompleta, como um livro no
qual faltam páginas. Não posso compensar o que ela perdeu, não consigo competir com
meu pai. Nunca consegui. Não que me importe com isso — amo mamãe, mas não gosto
particularmente dela. Ainda menos do papel de Mary Poppins que enceno com ela.
Ah, não me entenda mal. Ainda serei a "promotora de eventos", organizando
reiki, forçando meus amigos a visitá-la comigo para comerem sua comida e arrastando-a
para fora de casa em visitas ao zoológico (embora na última saída ela tenha ficado
abatida por ver tantos animais namorando). E só que, em minha mente, ainda tenho
dezoito anos, acostumada a cuidar de mim, apenas de mim mesma. Não estou
acostumada a dar uma de mãe, protegendo pessoas desamparadas. Não é como se minha
mãe fosse um exemplo incrível. Ela é o exemplo perfeito do egoísmo. Ainda assim,
espera que eu assuma seus cuidados do ponto onde meu pai parou — desse jeito, pura e
simplesmente! Como eu saberia o que preciso fazer? Não é de admirar que ela esteja
frustrada. Quanto mais faço por ela, menos ela faz por si mesma.
Irrita-se e se estressa com seu trabalho, embora eu tenha praticamente
sacrificado o meu próprio emprego para salvar o dela. Enquanto minha mãe lamentavase,
como se o mundo fosse acabar, liguei para a Sra. Armstrong, a diretora, no intuito de
informá-la da morte de meu pai, para que ela pudesse contratar uma professora
temporária até as últimas semanas do semestre. Quando minha mãe deu-se ao luxo de
entrar em greve mental, liguei novamente para a diretora — interrompendo suas férias
de verão em Umbria — querendo alertá-la que sua funcionária mais querida não estava
regulando bem e tinha um atestado médico comprovando isso.
Enquanto minha mãe embolava-se e se balançava, sem parar, na cama, expliquei
que o clínico geral concedera-lhe um atestado médico com validade até... bem, até sabese
lá Deus quando. Sim, é claro que compreendi que a Sra. Armstrong não estava sendo
insensível, ao perguntar se havia alguma indicação do tempo que levaria, até o retorno
de minha mãe ao trabalho. Absolutamente, eu a manterei informada. Foi o que fiz.
Minha mãe vagou pelo nada durante todo esse período, sem uma palavra de gratidão.
Então, em meados de outubro, quarenta minutos depois de um almoço desanimado no
banco com Alex Simpkinson, ela declarou-se abruptamente curada, bem e ansiosa por
voltar ao trabalho. Assim, bang, após o intervalo de férias, o reinado da professora
temporária terminou e a mãe pródiga reassumiu seu posto.
Ontem — apenas quatro semanas depois da "cura" —, liga-me para dizer que
acha que não tem mais força para "agüentar o tranco". Meu coração afunda e pergunto
se ela mencionou isso para a Sra. Armstrong. Mamãe responde:
— A Sra. Armstrong deixou bem claro que não quer saber.
Digo que a atitude da diretora é compreensível — afinal, foi forçada a estourar
seu orçamento para acomodar as necessidades de minha mãe, o que mais se pode
esperar? Faço este comentário razoável e inócuo e minha mãe quase me arranca a
cabeça. Será que acho que ela não percebe isso? Será que acho que ela não está
chateada por perturbar seus planos de aula? Será que acho que ela não sabe o
ressentimento que causou em suas colegas? Será que acho que ela não tem um pingo de
responsabilidade? Será que acho que ela não sofre por perturbar a rotina das crianças?
Será que acho que ela estaria se queixando se não estivesse completamente desesperada
por isso?
Ah, sim. Entretanto, desvio-me do ataque verbal e digo:
— Mãe, é difícil para mim aconselhá-la, porque não sei como o sistema escolar
funciona. Deve haver algum colega com quem você possa desabafar!
Sei que estou passando o problema para outra pessoa, mas também estou
desesperada. Achei que ela estava se recuperando!
Minha mãe responde, em voz plana de zumbi:
— Suponho que sim — e desliga o telefone.
Eu não agüento isso! Isso não é tarefa para mim! E para o meu pai! Estou furiosa
com ele, por ter nos abandonado. Como teve a coragem de morrer? Como ousou?
Minha mãe precisa dele. Não posso acreditar que não teve nenhum controle sobre a
morte e acho que estar morto não é desculpa para tê-la abandonado. Se estivesse vivo,
ele consideraria seu próprio comportamento, chocante. Como ele pôde ser tão
insensível? Sinto uma fisgada de angústia e — por falta de algo melhor com que me
preocupar — ligo para Vivienne. O que ela acha de tudo isso?
Vivienne, que reluta em compartilhar seus pensamentos desde o episódio do
coquetel molotov, diz, hesitantemente, que mamãe parece mesmo abatida, mas isso
provavelmente é porque percebeu que "a vida continua". Reprimo a onda de irritação
(será que algum dia aprenderei?) e garanto à Vivienne que sou grata por tudo o que ela
tem feito por minha mãe. Digo isso para adulá-la e levá-la a colaborar ainda mais, pois
pretendo fazer muito menos. Chame isso de egoísmo ou autopreservação. Sinto-me
arrasada demais para importar-me. Fico muito mal com isso, mas nada tenho para dar.
O esforço de evitar continuamente que mamãe se afogue, está me matando lentamente.
Assim, estou desistindo. Não há por que ser tola e tentar novamente.
Fantasio acerca de me envolver em uma colisão automobilística não-fatal, para
poder passar uma semana em um hospital assistindo programas de TV e sendo mimada,
quando o telefone toca. Sempre que Laetitia deseja evitar alguém, ordena que eu atenda
a chamada. Infelizmente, este é um negócio de mão única. Adoto uma voz fanha e me
comporto como uma telefonista dos anos cinqüenta, na esperança de que, se for minha
mãe, não me reconheça.
— Helen? — diz a pessoa, no outro lado — Você está bem? Sua voz está
esquisita.
Limpo minha garganta apressadamente e exclamo:
— Estou bem! Estou bem! Só que, bem, estou numa correria aqui, hoje. Como
vão as coisas?
Adivinhe: de um minuto para cá, tudo ficou bem. Tom ligou-me para
combinarmos uma saída. Não algo vago como "nos falamos semana que vem para
combinar algo", uma meia promessa, mas um encontro real, sólido, do tipo "anote isto
em sua agenda".
O encontro é daqui a treze dias, já que ele vai a Manchester amanhã, para um
congresso da associação de veterinários — ou, como ele diz, "encheção de saco com
festa no final". Mas está ansioso por nosso encontro.
Consigo evitar perguntas traiçoeiras como "Celine também vai ao congresso?" e me
recuso a considerar que Tom conhecerá uma linda e inteligente veterinária que dirige
um BMW Z3 e se especializou em salvar a vida de coelhinhos; em vez de encucar,
concentro-me nos fatos. O doutorzinho-gatão do meu gato convidou-me para sair — eu,
Helen Gayle Bradshaw, uma feiosa gorducha e sem-graça, que dirige uma Toyota e
mata aranhas, sem um pingo de remorso. Esta é minha chance de consertar as coisas!
Desligo o telefone sorrindo, paro apenas quando Laetitia diz, suavemente, mas
com uma voz que não permite discussão:
— Helen, o escritor que se infiltrou no bordel não quer posar para a foto, então
preciso que você vá junto para a sessão de fotos — eles têm as roupas, está tudo
arranjado. Se você sair agora, estará lá por volta das duas horas.
Suspiro e pego meu casaco. Como Marcus disse, no dia em que precisei ficar
parada na frente do Parlamento, disfarçada como um tampão gigante, em protesto contra
o imposto sobre proteção sanitária:
— Helen, você é uma sortuda. Seu emprego é tão interessante!
A segunda surpresa da semana é que Lizzy, finalmente, conseguiu fazer com que
Tina concorde em sair à noite.
— O que, sem Adrian? — pergunto, brincando.
— Ele também vai sair com amigos — ela acrescenta, seca.
— Ah, bom.
Na verdade, sinto-me magoada. Como se Lizzy e eu fôssemos um impedimento.
Mas forço-me a não levar as coisas pessoalmente (Michelle diz que "levo tudo para o
lado pessoal"). Eu não sou dona de Tina. É a vida dela. Ela não é obrigada a me ver.
Nem somos parentes. Depois disso, consigo empurrar o ressentimento para o lado e
digo:
— Bem, é muito legal vê-la fora do trabalho, sua vaca insossa!
Passada a recente virada em nosso relacionamento, essas palavras carinhosas
parecem falsas e desajeitadas. Por um segundo, tenho medo de tê-la insultado. Mas Tina
parece recuperar-se e responde, alegremente:
— Digo o mesmo, sua gorducha horrorosa.
A noite em questão é nesta quinta-feira. Na quarta-feira, Lizzy informa-nos:
— Tragam algumas roupas bem frouxas para amanhã à noite.
Ei, como é que é? Para nosso horror, Lizzy decidiu que cerveja, bares e piscadas
de olhos não estão no programa de amanhã. Reassumiu sua personalidade de boazinha e
pretende cortar nosso hábito gostoso de tomar um porre, varar a noite nos bares, encher
a barriga só com porcarias engordantes, curtir uma ressaca na manhã seguinte. Para
mim, ela diz em um tom firme:
— Estive prestando atenção, você não come nada que preste há semanas. Está
com olheiras. Parece um guaxinim. Precisa se cuidar.
Para Tina, ela diz, com ar de mistério:
— Isso vai acalmá-la.
Nós a olhamos com suspeita.
— O que é? — nós duas perguntamos, juntas (e eu ainda estou tentando
descobrir se guaxinins são criaturas magras. Quer dizer, ela poderia ter dito "panda").
Lizzy então diz, com uma voz tão agradável, generosa e autocrática quanto uma
bruxa boa:
— Nós vamos à minha academia fazer uma aula de tai chi. Está reservada e
paga. Depois, tomaremos um suco no bar. Ah, meu Deus! Estou atrasada para um
compromisso de almoço! Vejo vocês amanhã!
Mas que truque bem sujinho, baixo e traiçoeiro...
— Será que o bar vende suco de uva fermentado? — gritei para Lizzy, enquanto
ela saía. A covarde.
Tina e eu olhamo-nos, decepcionadas. Resmungo:
— Você, pelo menos, sabe o que é tai chi?
Tina faz uma careta.
— É uma arte marcial.
Tenho um sobressalto:
— Não é aeróbica?
— Não mesmo — ela diz, balançando a cabeça.
Faço uma pausa, recordo cada filme de James Bond que já assisti e um artigo
safado, apresentado em uma revista masculina, sobre uma apresentadora de televisão
bonita e loira que, nas horas vagas, pratica kickbox. Decido que as mulheres que fazem
artes marciais impressionam os homens e já é hora de eu me tornar parte desse grupo.
— Sinto-me ansiosa para que chegue logo amanhã — digo a Tina.
— Também — fala, sem entonação.
Estou perplexa. Vejo-me como a Chapeuzinho Vermelho, enganada por um lobo
vestido de vovozinha. Lizzy merece ser arrastada ao McDonald's e ser forçada a engolir
cinco Big Macs, em rápida sucessão. Deveria ter confiado em meus instintos e dado o
fora, no minuto em que meus olhos bateram em Brian, nosso instrutor de tai chi. Ele
tinha cabelos longos, usava calças roxas e sua primeira palavra foi "basicamente". Tina
e eu, matando tempo no fundo da academia, trocamos um olhar depreciativo. Para as
"recém-chegadas" — aqui, um sorriso demorado para Lizzy e um olhar significativo
para Tina e eu —, ele começou com uma breve introdução sobre o tai chi. Tai chi é uma
arte chinesa muito antiga, um padrão lento de movimentos construído há milhares de
anos, para promover a vitalidade e harmonia interna.
Acenei rapidamente, na esperança de apressá-lo a nos mostrar alguns golpes de
caratê. Para minha total descrença, ele prosseguiu por oito minutos mais — durante os
quais perdi a vontade de viver — e depois anunciou:
— Irei ensinar-lhes como caminhar.
Como aprendi a caminhar um quarto de século atrás, presumi que isso era uma
piada. Passamos oitenta e cinco minutos caminhando em câmera lenta. Flexione o
joelho de trás, erga o outro pé — você sabe, caminhando. Para minha delícia, Tina
parecia-se com uma funcionária júnior do Ministério das Caminhadas Imbecis, mas isso
não chegava a compensar a chatice. Eu desejava gritar de tédio. Tudo era
tããããããããooooooooooo leeeeeeeeeennntooooooo. Era como estar de castigo.
Contive quarenta bocejos, mas não ousei olhar para Tina, porque sabia que
ambas nos dobraríamos de rir. Depois, no bar dos sucos, Tina e eu — histéricas de
alívio porque o pesadelo acabara — transformamo-nos em um par de garotas de
quartoze anos que consideram tudo muito ridículo e/ou engraçado. Quando Lizzy
perguntou, educadamente, ao adolescente abatido atrás do balcão se "seu fazedor de
suco estava funcionando", nós demos gargalhadas e uivamos com um divertimento
insano. Quase urinamos em nossas roupas folgadas, quando Tina disse, com ar de
vingativa:
— Pode contar que um dia ultrapasso você nesta caminhada — mas vai levar
séculos!
Quando comecei a fazer gozações sobre o pé de Brian — "o modo como ele
apontava seu pé para as coisas! Seu leeeeeeenntooo pé dianteiro, apontando durante o
que pareciam ser diiiiiaaassss!", nós urramos e depois tentamos abafar o riso com as
mãos, até sentirmos dor na barriga. Depois, Lizzy fez uma coisa bastante atípica. Ela
disse um palavrão. Cortou-nos, áspera:
— Será que vocês podiam calar essas bocas de m...?
Nossas bocas calaram-se, surpresas. Aquele palavrão, vindo de uma mulher cujo
complemento preferido é "maldição!". Estou lhe dizendo, isso é o máximo de Lizzy, era
termos de boca suja.
— Por quê? — Tina perguntou-lhe, chocada.
— Estávamos só brincando! — acrescentei, reprimindo uma risadinha. Lizzy
tinha um olhar assassino. — Foi adorável você dar-se ao trabalho de marcar tudo, só
que não é bem nossa praia — emendei, apressadamente.
Lizzy grudou o olhar em mim:
— Apreciaria se você não ficasse tratando o Brian como um tolo!
"Tolo"? Isto não tem precedentes!
Chateada, porque ela estourara minha bolha rosada de risos, eu estava prestes a
dizer "mas o homem é um hippie velho e retardado!", quando uma célula cerebral
minúscula, mas abençoada, de bom-senso me impediu.
Aliás, devo dizer que Tina não teve nenhuma minúscula célula cerebral para
ajudá-la, ao grasnar:
— Ah, dá um tempo, Lizzy, vê se acorda! Brian é um bundão!
O rosto de Lizzy fechou-se. Ela pousou seu garfo delicadamente ao lado de sua
tigela de noz, abacate e salada de folhas, então disse, bruscamente:
— Ele também é meu namorado, desde a semana passada. Portanto — suas
palavras eram muito parecidas com as de uma Jane Austen, bem mais semelhantes à
Lizzy que conhecemos —, eu agradeceria se mantivessem suas opiniões horríveis para
vocês mesmas.
Oops.
CAPÍTULO 16
As duas palavras que mais detesto no mundo são "úmido" e "nesga". A terceira
palavra que mais detesto é "deveria". Como por exemplo: Helen, você deveria sorrir
mais. Helen, você deveria saber o resultado de oito vezes seis. Helen, estou confiscando
sua Cosmopolitan, porque você deveria estar trabalhando naquela revisão. Helen, você
deveria fazer exercícios para a barriga. Helen, você deveria pedir um aumento. Helen,
você deveria visitar sua mãe nos dias da semana que realmente importam, como sextasfeiras.
Helen, você deveria sair hoje à noite, embora preferisse cortar a própria cabeça,
pois talvez seja a chance de conhecer seu futuro marido ou mesmo a transa deste mês.
Todas essas imposições na forma de deveria foram impostas a mim por meus
pais, minhas amigas ou por mim mesma. Bloqueio as que posso, mas elas cravam-se em
minha consciência, causando-me vergonha e puxando-me para baixo. O deveria mais
recente: Helen, você deveria passar três horas alegrando-se com Lizzy e Brian no bar de
sucos, provando seu arrependimento por insinuar que o tai chi é menos que maravilhoso
e que Brian tem um pé dianteiro estúpido, que ele aponta para a frente, pelo que
parecem dias.
Obviamente, Tina não se sente tão pressionada pelos deveres quanto eu, já que,
logo após nosso festival de besteiras, desculpou-se, dizendo que precisava estar em casa
às dez, para encontrar Adrian. Assim, fiquei sozinha, tremendo de pavor, com a missão
gigantesca de convencer Lizzy a perdoar-me além de persuadi-la de que acho Brian um
cara realmente fabuloso.
Como Lizzy é incapaz de guardar rancor por mais de quinze segundos, a
primeira parte foi fácil. Quanto a persuadi-la de que eu simpatizava com Brian, tente o
termo excruciantemente difícil — não, não, nada disso. Impossível é a palavra. Ele era
tão repulsivamente, tão modernamente sincero. O modo como olhava para você,
enquanto você falava! Como o Gorducho secando um pombo. Confesso que esses são
pecados pequenos. Entretanto, apesar de seu jeito amistoso comigo e de sua adoração
evidente por Lizzy, não consegui sentir nenhum calor humano por ele. Ficava pensando:
ui, mas ele é velho o suficiente para ser pai dela. Ele me deu arrepios.
— Tem quarenta e cinco anos, no mínimo! — digo para Michelle, que dispensou
Sammy e não dá a mínima a quem outras pessoas namoram.
— Algumas mulheres gostam de homens mais velhos — ela diz, em voz branda,
para mudar de assunto, afim de voltar ao seu assunto preferido. — Sammy e eu
tínhamos a mesma idade — acrescenta, com melancolia (Sammy é dezesseis meses
mais velho que Michelle).
Faço sons de simpatia, desejando que a campainha toque, para poder ter uma
desculpa e desligar. Estamos na noite de sexta-feira e Luke pegou o vídeo de Duro de
Matar. Marcus e eu mal nos falamos, mas, como nenhum de nós deseja dar ao outro o
gostinho de se retirar para o quarto, estamos prestes a assistir juntos Bruce Willis
bancando o supermacho. De acordo com Luke, Catalina deixou Marcus algumas
semanas atrás, depois de se "apaixonar" por um produtor de música. Tipo "nossa, isso
deve ser um lance do destino"!
— Então, qual é a boa para hoje à noite? — Michelle pergunta, subitamente.
— Vou assistir a um vídeo com Luke e Marcus — digo, tentando fazer com que
minha companhia pareça tão chata quanto possível. De jeito nenhum vou dirigir até
Crouch End para entreter Michelle. Estou exausta e planejo beber até cair em coma.
— Parece ótimo! Estarei aí em trinta minutos!
Droga! Perplexa, espero que o telefone toque novamente e, vinte segundos
depois, ele toca.
— Certo, queridinha, me dê seu endereço novamente...
Estou impressionada. Parece que livrar-se de Sammy sinaliza o início de uma
nova era. Isso porque sinto-me embaraçada ao dizer que, durante todo o tempo em que
moro aqui, Michelle jamais brindou-me com sua presença. Bem, preciso admitir que até
oito meses atrás ela e Sammy residiam em Nova York (o pai de Sammy, que emigrou
após seu divórcio, é alguma coisa importante no ramo de pães e deseja que seu filho se
junte aos negócios da família). Michelle — vendo a mudança como um passo a mais
para perto de Hollywood — conseguiu convencer Sammy a aceitar a oferta,
acompanhou-o até lá e encontrou trabalho em um salão de beleza.
Os dois conseguiram ficar no Upper East Side por gloriosos vinte e seis meses,
antes de Sammy fugir de casa com o pretexto de realizar pesquisas cruciais sobre o
mercado inglês de pães (tradução: ele sentia saudades de sua mamãe). Suspeito que, ao
forçar o retorno de Michelle ao não-atraente norte de Londres, Sammy, sem querer,
assinou a sentença de morte de seu relacionamento. Hurra! O importante é que Michelle
teve dois terços de um ano para visitar minha humilde morada, porém não fez isso. Eu
diria que sua desculpa é que tem estado muito ocupada estabelecendo-se como uma
esteticista freelance e/ou prefere encontrar-me na cidade, mas ela nem mesmo chegou a
dar uma desculpa. Se eu sugiro que ela venha, Michelle subitamente está "morta de
cansaço" ou tem "um monte de coisas para fazer em casa". Apenas uma vez tive
coragem de escancarar:
— Você nunca viu onde eu moro!
Ela respondeu:
— Benzinho, posso imaginar!
Eu mesma imagino algumas coisas. Levo aproximadamente doze segundos para
perceber que Michelle está se dando ao trabalho de vir até o Swiss Cottage porque a
posição de namorado de Michelle, com expediente cansativo e sem gratificação, agora
está vazia e ela pretende preenchê-la. Marcho até o banheiro e dou uma olhada no
espelho. Quem será a vítima, Luke ou Marcus? Ela não conhece nenhum dos dois,
imagino quem poderá atraí-la mais.
Luke? Ele não é o meu tipo — gentil demais e facilmente intimidado —, mas
Michelle adora provocar homens assim. Se você não se acanha com os hábitos
detestáveis e fedorentos de toalete do Luke, ele é divertido. Cabelos loiros sempre
despenteados, olhos verdes, sorriso cativante, modos desajeitados. Um labrador
humano. O único problema que posso prever é sua tendência para falar a verdade nua e
crua. Por favor, Deus, fazei com que Michelle nunca pergunte a Luke o que este acha de
sua mudança para loiro oxigenado. Tento afastar de minha mente o pensamento de que
estou me concentrando no potencial de Luke, porque suspeito que Michelle e Marcus se
darão bem, em qualquer sentido.
Não quero que isso aconteça — sei que Marcus veria a situação como um triunfo
sobre mim — mas tenho o mau pressentimento sobre sua inevitabilidade. Uma pequena
pedra de medo nauseante no fundo de meu estômago. Correndo o risco de parecer
desleal, Michelle tem procurado revanche, desde o dia em que cometi o erro estúpido,
vinte e um anos atrás, de vencê-la na corrida do ovo e colher. Ela não é estúpida. Sabe
que minha campanha recente de ódio contra Marcus não nasceu da indiferença. Quanto
a Marcus, seja ele o que for, de seletivo não tem nada.
Conseqüentemente, quando Michelle chega agitada sob uma maquiagem tão
pesada que considero um milagre ela conseguir manter seus olhos abertos, preparo-me
para o pior. Vou bufando até a sala, onde Luke e Marcus estão estirados no sofá.
— Vocês dois, esta é Michelle — eu gemo, esperando que sua entrada passe
despercebida.
Os pescoços viram-se rapidamente, como bonecos de um ventríloquo. Michelle
agita seus dedos em um aceno gracioso, ela examina Luke de um modo apreciativo,
quando ele emite um arroto alto e involuntário.
— Desculpe-me — ele diz educadamente, mas já estragou tudo.
Praguejo mentalmente, enquanto ela transfere seu olhar predador para Marcus.
Este olha diretamente em seus olhos convidativos (e para tudo o mais que você puder
imaginar) e salta do sofá, cruzando a sala.
— Encantado — começa, tomando a mão de Michelle, puxando-a gentilmente
para beijar seu rosto.
— Também — ela fala, em voz de seda.
Inflo minhas narinas, desgostosa. Passou-se apenas um milésimo de segundo e
os dois comportam-se como um casal de babuínos mostrando seus traseiros. Exceto que
Marcus e Michelle fazem isso de um modo mais grosseiro. Mal consigo olhar.
O resto do filme é arruinado pelas tentativas de Michelle em fazer-se de
burrinha, querendo explicações sobre a trama — é Duro de Matar, pelo amor de Deus!
— e por pedir sussurrante que Marcus explique. E claro que o cabeça-de-vento sente-se
perfeitamente contente por atendê-la.
— Será que alguém se importaria se eu acendesse a luz? — pergunto, quando
vejo Marcus dando tapinhas no antebraço de Michelle, para salientar algo. — Assistir
TV no escuro me dá dor de cabeça.
Luke parece preocupado.
— Eu tenho Nurofen em algum lugar, caso precise.
— Esqueça — respondo, sentindo-me miserável. — Provavelmente é um tumor.
Vou até a cozinha e me sirvo de uma caneca de vinho tinto. Tinha certeza que
isso ia acontecer. Só não sabia que me sentiria tão mal. Tento sentir-me bem por juntar
Ken e Barbie. Michelle precisa de uma compensação, depois de dar o pé no traseiro de
Sammy. Embora ela seja insensível, não é como se estivesse roubando meu namorado.
Além disso, Marcus detesta-me, de modo que seria uma idiotice — e uma inutilidade —
tentar mantê-lo para mim. De qualquer maneira, ele é um asqueroso.
Acontece que não adianta disfarçar. Ainda sinto vontade de chorar.
As lágrimas ardem em meus olhos, quando Michelle diz, quase cantando:
— Você vai beber todo este vinho sozinha, amiguinha egoísta? Vai entornar toda
a garrafa ou será que a gente pode beber um pouco?
A autocomiseração é superada pela raiva intensa. Pouso casualmente a mão em
minhas costas e a transformo em uma garra. Isto alivia a tensão, permitindo-me
responder, em um tom carinhoso:
— Ah, Michelle! Esqueci, é preciso mais que um homem para mantê-la longe da
garrafa! Sirva-se!
O olhar venenoso que ela me lança é como o da enfermeira Ratched, no filme
Um estranho no ninho. Tremo por dentro, mantenho o sorriso era meu rosto e faço uma
anotação mental para evitar ficar sozinha com Michelle até o fim de meus dias.
O resto da noite é torturante. Faço o possível para esmagar o doce início de
romance, sem sucesso. Meu primeiro ataque na guerra psicológica é pedir quatro
grandes pizzas de peperoni, "por minha conta". Luke está excitadíssimo com o presente.
Marcus e Michelle estão, como planejado, lívidos. Michelle enfrenta um dilema. Ela
detesta comer na frente de homens — "isso é tão feio!" —, mas adora alardear que
devora chocolate e pizza todos os dias, como fazem todas as supermodelos que não
caem na onda de morrer de fome. Ha ha ha.
Marcus enfrenta um problema parecido. Pizza e todos os similares que
engordam — curry, kebabs, hambúrgueres — são o purgatório para ele. Ele vem de
uma família geneticamente obesa e tem medo de deixar que a natureza siga seu curso
balofo. Seus hábitos de alimentação são como os de um pardal anoréxico. Sua mãe e
suas duas irmãs mais velhas são imensas, em uma estimativa conservadora, pesando
cada uma uns cem quilos. Até agora, ele conseguiu fugir de seu destino, exercitando-se
como um maníaco e comendo de forma saudável, mas vive com medo de se tornar um
barril (se você quiser vê-lo furioso, diga: "Ei Marcus, deixa rolar!").
Ele está dolorosamente consciente da natureza nada masculina desta obsessão e,
como já vi diversas vezes, parte de sua rotina de sedução consiste em morrer de fome
por dois dias, para poder proclamar um ensaiado "Sou um cara normal", ao ver-se com
sua mais recente vítima. Infelizmente, como Michelle é um bônus-surpresa, ele está
lamentavelmente despreparado. Comerá sua pizza para não parecer um fresco, mas cada
mordida será um veneno (e um passeio extra de cinco minutos na esteira). Mastigo
ruidosamente minha pizza e observo o drama entre os dois pombinhos.
— Você foi realmente gentil, Helen — Luke diz, com a boca cheia.
— Foi um prazer — respondo, contente, despenteando ainda mais seus cabelos.
Michelle faz beicinho, depois de apenas duas fatias, dizendo-se satisfeita.
— Acho que não deveria ter comido aquele hambúrguer e as batatas fritas no
caminho para cá — ela diz, com um suspiro. -
Ah, tá bom... Seria melhor se ela costurasse sua boca.
Marcus parece um bobo, olhando longamente o decote de Michelle.
— Então, você não está com fome? — ele murmura, docemente.
Eu quase vomito minha pizza ali mesmo. Todas as tentativas de sabotagem
fracassam, depois disso.
Michelle está usando sandálias douradas e brilhantes, o que me dá a chance de
exclamar:
— Nunca havia notado! Você tem dedos muito longos e elegantes!
Para minha alegria, Luke vira o pescoço e diz alto:
— Vamos ver!
Marcus também olha, mas — droga, droga, droga — seu veredicto é:
— Que dedos maravilhosos!
Quando o filme está quase acabando, ela aproxima-se cada vez mais de Marcus,
até praticamente sentar-se em seu colo. A conversa entre os dois torna-se cada vez mais
sussurrante e secreta. A meia-noite, Luke anuncia que está morto de sono e se retira. O
desertor. Dou-lhe um boa-noite gelado e permaneço, tensa e teimosa, na poltrona. Sou
capaz de permanecer acordada até amanhecer, só para arruinar o plano dos dois.
À meia-noite e dez, Marcus e Michelle começam a transar bem na minha frente.
Admito a derrota e vou para a cama.
CAPÍTULO 17
Você tinha um apelido na infância? Quando perguntei isso aos meus amigos,
quase todos disseram que sim. Marcus negou, no início, depois admitiu que sua adorada
mãezinha chamava-o de "meu titico gorducho". Os pais desesperados de Luke
apelidaram-no de "encrenca". O nome não-oficial de Lizzy era "geleinha". Os pais
espertos de Michelle referiam-se à filha como "madame". A mãe de Tina rebatizou-a de
"gritona". Os pais de Laetitia — bem, nem precisa dizer — teimaram em chamá-la
apenas de Laetitia. E meu pai? Ele chamava-me de Grinch.
Uma vez que jamais fui chegada à leitura de livros nos quais ninguém morre,
esqueci as origens do apelido e, com freqüência, ia saltitando para a escolinha infantil,
grasnando uma canção caseira sofisticada sobre eu mesma:
— Sou o Grinch! Pequeno Grinch!
À medida que eu crescia, meu pai parou de me chamar de Grinch e começou a
chamar-me de Helen. Apenas ao escrever meu cartão anual de aniversário, voltava à
familiaridade carinhosa, chamando-me de "querida Grinch". Como demonstrações de
afeto eram raras em nossa casa, atribuí à expressão "querida Grinch" o mesmo grau de
simbolismo que a maioria dos cidadãos patrióticos reserva para a bandeira nacional. E,
então, descobri.
Estava no bar com Tina certa sexta-feira, alguns meses antes da morte de meu
pai, choramingando por causa de Jasper. Ele havia dito que o Divine Comedy (minha
banda favorita) era "porcaria" e me forçara a escutar — no rádio do meu carro, veja bem
— Daryl Hall e John Oates. Admirei, secretamente, sua ousadia, se bem que não tanto
seu gosto por música. Tina, a desagradável, exclamou:
— Ele é um grinch, aquele lá!
Eu perguntei:
— Um grinch? O que quer dizer com isso?
Ela olhou-me de um jeito esquisito.
— Você sabe! Ruim. Mesquinho! Estraga-prazeres!
Sorri fracamente e perguntei:
— É isso o que grinch significa?
Tina assoviou:
— Está brincando! Não tinha o Dr. Seuss no norte de Londres? O Gatola da
cartola? Como o Grinch roubou o Natal? Não?
Balancei a cabeça, murmurei "não, não" e corri até o bar, para pedir mais uma
rodada. No dia seguinte, fui à biblioteca e pedi que a bibliotecária me ajudasse a
encontrar um livro infantil. Ela sorriu, prestativa.
Descobri, assim, que um grinch não era — como eu imaginara — uma
criaturinha adorável, fofinha, toda queridinha e abraçável, mas um monstrengo
desprezível, de olhos vermelhos, que vivia em uma caverna com um coração "duas
vezes menor que o ideal". É claro, ele se torna adorável no fim. Mas, até a penúltima
página, o Grinch é uma porcaria nojenta e má, sem amigos.
Não queria que Tina risse de mim novamente, de modo que decidi contar a
Lizzy aquela descoberta que abalou minha vida. Depois de minha décima garrafa de
Beck's, despejei a história horrenda, em uma enxurrada incoerente e molhada. Ela riu de
mim!
— Helen! — ela falou, divertida. — Isto é um termo carinhoso! Tenho certeza
de que ele não teve nenhuma intenção ruim! É só uma palavrinha bonita, como...
abobrinha! Meu pai ainda chama minha irmã de "abobrinha", embora ela esteja com
trinta e um anos e seja magérrima!
Fui para a cama trôpega, com a maquiagem borrada de lágrimas e acordei
sentindo-me tola. Lizzy, a voz da razão, dissera tudo. Meu pai chamava-me de Grinch
porque era uma palavrinha diferente. Nada sinistro. Na verdade, eu deveria agradecer
aos céus — depois de um acidente infeliz, enquanto fazíamos fila na escola, Michelle
(na época, com quatro anos) passou o resto de sua vida de escola fundamental sob o
gracioso codinome de "calças borradas fedidas". Se quem a chamava assim eram os
professores, imagine o que as crianças diziam...
Já bloqueara minha mágoa quando, alguns dias depois, Lizzy aproximou-se de
mim. Ela esperava que eu não me importasse, mas estivera discutindo sobre grinches e
abobrinhas com um amigo psicólogo, o qual lhe disse:
— O significado desses apelidos é menos importante do que o modo como afeta
a pessoa.
Será que eu pensara em confrontar meu pai? Certamente. Como também pensara
em pintar-me de verde e correr pela Oxford Street, com a bunda de fora. Odeio
psicólogos e psiquiatras. Eles inventam problemas onde não existe nenhum. Joguei este
diálogo incômodo para o fundo de minha mente, onde permaneceu. Apenas
ocasionalmente ele vem à minha consciência.
Como esta manhã, quando acordo de um sono inquieto e relembro como banquei
a boba semana passada, tentando evitar que Marcus caísse em cima de Michelle. Em
momentos como esses, sou o Grinch. Malvada, mesquinha e estraga-prazeres. Meu pai
tinha razão. Só que agora não posso confrontá-lo! Nesse meio-tempo, não vi nem a pele
grossa bronzeada, nem os cabelos bem-penteados de Marcus ou Michelle. Presumo que
ele tem dormido na casa dela. Ele sempre desaparece, depois de marcar um novo gol.
Juro que faz isso para convencer suas conquistas de que está apaixonado. Um insight
sobre Marcus: sua falta completa de espontaneidade. Até mesmo Jasper tinha seus
momentos impulsivos, abençoado seja. Mas, cada movimento de Marcus é premeditado.
Desejo-lhes sorte. Digo isso, não porque tornei-me boazinha de repente, mas
porque tenho um encontro com Tom esta noite. Michelle é bem-vinda ao
microinstrumentinho de Marcus. Com toda a justiça, eles foram feitos um para o outro.
Longos dias sem comida, andando na esteira, sessões de sacanagem ardentes e
apaixonadas, horas de penteação de cabelos mútua, noites escaldantes em camas de
bronzear gêmeas... Estamos no meio da tarde e imagino se serei convidada para o
casamento, quando o telefone toca. Michelle!
Eu não digo "esquisito, estava pensando em você", porque nada a agradaria
mais.
— Como você está? — pergunta, em agudo entusiasmo, parecendo não falar
comigo há uma década.
— Bem, e você? — respondo, com cautela.
— Ótima, ótima. Querida, quero pedir um favor.
— Ah, sim?
Michelle faz uma pausa.
— Tenho boas e más notícias. Marcus convidou-me para sair. Mas não vou, se
você não quiser que eu vá. Não quero deixá-la mal.
Ela é profissional! Mantenho minha voz leve:
— Michelle, adorei a novidade! Estou muito contente por você. Não consigo
imaginar por que acha que eu me importaria. Marcus é — eu busco uma frase que arrase
— um pontinho pequeno em meu passado. Com "pequeno" recebendo ênfase!
Não posso acreditar em minha ousadia, pelo jeito nem Michelle. Ela rebate:
— Nossa, você é rancorosa! — bate o telefone.
Respiro profundamente, informo Laetitia que vou sair para tomar um expresso
duplo e que estarei de volta em cinco minutos.
— Traga-me uma fatia de bolo de amêndoa e uma água sem gás! — ela grita,
enquanto vou saindo. — Pago, depois que eu for ao banco.
Depois que eu for ao banco para você, penso. Rebobino este último pensamento
e fico remoendo-o.
Rancorosa? Claro que sou! Quem não se ressentiria, com a lista infinita de
tarefas humilhantes que Laetitia sempre tem, bem à mão? Sou uma jornalista, não um
contínuo! Na teoria. E por que raios sou amiga de Michelle? Porque dezessete anos
atrás compartilhamos um interesse por estojos japoneses de lápis e A Noviça Rebelde?
Ando rapidamente pela rua, latejando de raiva, meu rosto todo contraído de fúria. Devo
parecer-me com um cão-de-guarda. Tento respirar pelo nariz, suavizar minha expressão.
Os pedestres olham-me com cautela e se desviam de mim. Vejo-me como eles devem
estar me vendo, meu coração dói. Não quero ser esta... esta pessoa rancorosa.
Forço minha mente excitada a acalmar-se, a pensar em coisas mais agradáveis,
como Tom. Aqueles olhos. Sua boca. Meu coração dispara novamente, sorrio por
dentro. Patético! Mas, funcionou. Nosso encontro é hoje à noite fora da estação de
Covent Garden às oito da noite (minha mãe — relutantemente aplacada pela promessa
de um dia em um spa — cedeu uma segunda-feira à noite. Uma barganha difícil, já que
o acesso limitado a alimentos deixa-me em pânico e detesto que mexam em meu corpo).
Estou usando calças pretas, botas pretas e uma blusinha cinza com decote em "v" para
variar.
Compro a fatia de bolo de amêndoa, a água mineral e — em meu recémdescoberto
estado zen — um expresso duplo descafeinado. Seguro a porta aberta para
um homem idoso e sorridente. O tipo de homem que faz minhas entranhas contorceremse
de dor, porque ele não morreu de ataque cardíaco aos cinqüenta e nove anos.
Não é nada pessoal. Não é culpa dele. Não é pessoal. Engulo o ressentimento e
forço um sorriso. O homem pisca e diz, em um sotaque da classe alta:
— Você é muito gentil!
Amplio o sorriso e desvio os olhos rapidamente, pois estão cheios de lágrimas
idiotas. Sou gentil. Regozijo-me com o elogio de um desconhecido enquanto subo
bufando as escadas até a GirlTime. Talvez, se Tom pudesse ver-me agora, eu não o
decepcionasse.
Marcho de volta ao escritório e reconheço o som de meu telefone tocando.
Laetitia, é claro, está lendo o Daily Mail e ignorando o aparelho. Por favor, que não
seja Tom cancelando!
— Alô? — digo, com medo, agarrando com pressa o telefone.
— Helen! — diz uma voz trêmula. — E Vivienne! Sinto muito, lamento, mas
tenho que lhe dizer... ah, as notícias são péssimas!
Minha voz está rouca de terror.
— Fale de uma vez!
Vivienne consegue pronunciar cinco palavras, antes de explodir em lágrimas.
— Sua mãe cortou os pulsos.

CAPÍTULO 18
Uma vez, aos seis anos, recebi palmadas no traseiro e fui mandada para a cama
às cinco e meia da tarde, por dizer, na frente da mãe de Michelle:
— Papai, não é verdade que não podemos pagar nossa hipoteca?
A verdade é que eu não sabia realmente o que era uma hipoteca, mas havia
ouvido esta frase impressionante em algum lugar, estava desesperada para usá-la. Eu
também estava acostumada a ver minha mãe, que jamais foi boa ouvinte, concordando
automaticamente com tudo o que eu dissesse, mesmo se fosse uma enorme debiloidice.
Assim, os olhos da Sra. Arnold acenderam-se como um Belzebu e meu pai
culpou-me por aquilo que previu como sendo a ruína garantida de sua reputação
financeira. Enquanto eu me forçava a dormir, rezei para que meu pai e minha mãe —
que não haviam ousado subir pé ante pé até meu quarto, para consolar-me —
morressem em um furacão. Naquele momento, considerei a órfã Annie a criatura mais
glamourosa no mundo, desejei fervorosamente estar em seu lugar. A Srta. Hannigan era
um prazer, comparada com meus pais cruéis. Escovar o chão seria um privilégio! A
delícia de ter que dormir em uma caminha de armar! Eu aprenderia a cantar It's the
hard-knock life, com sotaque americano.
Vinte anos depois, entretanto, ser uma órfã realmente não me atrai tanto, porque
quando Vivienne diz que minha mãe cortou os pulsos, minhas pernas amolecem e
afundo até o chão, em um lamento que Lizzy depois chamou de, em um sussurro de
espanto, "selvagem, primitivo, como um animal contorcendo-se de dor".
Como o ruído mais selvagem jamais ouvido no escritório arejado e totalmente
sem divisórias da GirlTime é o ranger de dentes de Laetitia, porque o balconista da
Dunkin Donut colocou leite demais em seu chá, minha imitação de um tigre com dor de
ouvido captura a atenção. Lizzy e Laetitia saltam em minha direção, gritando:
— O que houve?
Seus rostos estão turvos, como se estivéssemos sob a água e fosse difícil
respirar. Digo arfante para aquelas manchas indistintas:
— Ah, por favor, não, minha mãe!
Minha cabeça gira e repito as palavras "ah, por favor, não, minha mãe" vezes
sem conta, até formarem um amontoado sem sentido, que me protege da realidade.
Enquanto isso, o telefone está pendurado, gritinhos agudos e fracos saem dele.
Lizzy agarra o telefone, enquanto Laetitia aproveita esta oportunidade — perfeita! —
para dar uma bofetada forte em meu rosto, fazendo-o arder. Quando chego a dizer
"aaaai" e olhar para ela, Lizzy está agachada, segurando minhas mãos trêmulas e
pegajosas.
— Helen — ela diz em voz firme, olhando direto em meus olhos confusos. —
Sua mãe está bem. Ela não está morta. OK? Você está ouvindo? Ela está bem!
Olho desamparada para Lizzy. Não compreendo. Sinto-me como uma criança de
cinco anos.
— Ela cortou os pulsos — eu digo, duvidando do que ela me disse.
— Foram apenas cortes superficiais — Lizzy insiste, no tom enfático e alto que
meu pai usava, quando falava com estrangeiros. — Apenas arranhões. Vivienne estava
ligando do hospital. Elas estão no atendimento de emergência, mas não é nada grave.
Sua mãe está bem, OK?
Eu assinto e digo “OK”
Sinto-me como um poodle velho em um banho frio. Não sei o que fazer.
Felizmente, Lizzy toma uma decisão executiva:
— Chamarei um táxi para que você possa ir agora mesmo ao hospital. Posso,
Laetitia? Laetitia, que sem dúvida aliviou parte de sua tensão há muito reprimida com a
bofetada, faz que sim com a cabeça e diz:
— Sem problema.
Lizzy ajuda-me a chegar até uma cadeira, me põe sentada. Ela corre para a
cozinha, volta com um saco de açúcar mascavo e derrama pelo menos metade no meu
expresso duplo descafeinado.
— Beba isso — ela ordena.
— Você não beberia algo assim — resmungo, mas obediente tomo um gole.
Felizmente o táxi chega em minutos, salvando-me do inferno do café turco.
Lizzy, que enfiou a agenda e outras coisas em minha bolsa, ajuda-me a chegar até o
táxi. Mas, primeiro, puxa-me contra seu corpo, em um abraço apertado e quente,
dizendo:
— Tudo vai ficar bem, eu sei. E — ela afasta-se um pouco, para poder olhar-me
—, ah, Helen, tenho sido uma amiga negligente. Eu...
Olho para ela, confusa.
— Lizzy, não seja boba! Você é uma ótima amiga. Todo aquele reiki
desperdiçado! Eu é que sou uma amiga má.
Estou pensando em tai chi e pés dianteiros, mas Lizzy está sacudindo sua
cabeça.
— Não, Helen. Eu deveria ter cuidado mais de você. Vi você com a alma
sangrando e deveria ter dito algo, mas não queria que...
"Com a alma sangrando?" E melhor continuar me chamando de guaxinim, que
tudo será perdoado.
— Lizzy. Estou bem, honestamente! Só tive um choque com a notícia sobre
minha mãe, mas como você diz, ela está bem, não se machucou. É melhor eu correr.
Lizzy parece relutar em me soltar.
— Você quer que eu vá junto? — ela pergunta. Aceno um "não". — Seja gentil
consigo mesma — ela diz, dando-me uma pequena sacudida.
Sento-me no táxi. Gentil. Esta palavra novamente. Gostaria de ser gentil. Ainda
assim, pretendo matar minha mãe, logo que bater os olhos nela. Como ousa fazer uma
encenação dessas, a vaca egoísta! Meu coração bate forte, aterrorizado. Encosto-me no
banco e agarro o assento. Jesus, o que deu naquela mulher?
Quando entro no hospital, é como um déjà vu, o Feitiço do tempo misturado
com Horror em Amityville, aquele redemoinho nauseante e surreal de morte iminente de
novo. O fato de o lugar cheirar a xixi não ajuda em nada. Tudo fede! Olho em volta,
agitada, então vejo — graças a Deus! — minha mãe e Vivienne encolhidas em um
canto. O casaco laranja brilhante de pele falsa de Vivienne (comprou-o depois de ser
atacada em Islington por usar seu mink) brilha no ambiente enfadonho, como um
luminoso de mau-gosto.
Vou até minha mãe. A raiva dissipa-se, quando vejo seu rosto cansado e pálido.
Ela está embrulhada em um cobertor cinza. Cinza, decido, é muito bom para passarelas,
como um disfarce para poucos recursos financeiros e falta de sofisticação, mas fica
péssimo em hospitais e funerárias, porque aqui é a coisa real — pobreza e desesperança
opaca.
— Helen! — minha mãe choraminga.
Seus pulsos estreitos estão enfaixados com curativos provisórios. Vivienne deixa
rapidamente a cadeira, para que eu possa sentar-me e ver melhor. Minha mãe soluça em
meus braços e eu a balanço como a um bebê.
— Ah, mamãe, prometa-me, jamais, terrível. O papai ficaria furioso, sabe que
estou aqui, o que eu faria? OK, cuidar de você.
Embora esta não seja, exatamente, uma frase coerente, faz sentido para minha
mãe, que meneia a cabeça, funga e enterra ainda mais o rosto em meu peito. Olho para
Vivienne. Posso jurar que ela está louca para acender um Marlboro Light. Aponto a
saída com um olhar, para ela.
— Encontro você em um minuto — pronuncio, mas sem voz.
Ela aperta o casaco laranja contra o corpo, sorri de um modo tenso e sai.
Meu coração retorce-se, enquanto minha mãe chora em silêncio, com seus dedos
escavando, fracamente, minhas costas. Espero, espero, abraço, abraço, até que o choro
vai parando, tento não pensar que podia ter evitado tudo isso se me encontrasse com
Tom, em uma quinta-feira. Então, digo coisas sensatas, como "há quanto tempo você
está aqui?" e "você quer beber algo quente?!" e "dói muito?". Ela responde,
respectivamente: "Uma eternidade." "Já bebi" e "Um pouco."
Quando suspeito que as lágrimas secaram, pergunto-lhe se ela se importaria,
caso eu fosse ver como Vivienne está.
— Deve ter sido um choque também para ela! — digo, gravemente.
Minha mãe assente, sem expressão, e olha para o chão.
— Volto já. Fique aqui e não se mexa. Promete, promete?
Mamãe reconhece a expressão que eu usava para adulá-la e ganhar doces,
quando tinha cinco anos e éramos uma família. Ela consegue dar um sorriso triste e
responde:
— Prometo.
Beijo-a na testa e corro ao encontro de Vivienne, que está sentada em um banco
de madeira, acendendo o que suspeito ser seu quadragésimo cigarro do dia. Ela inspira a
fumaça, lentamente, exalando de um modo satisfeito pelas narinas, antes de falar: — Ela
sabia que eu chegaria às quatro e meia da tarde, depois da escola e da minha aula de
italiano. Sairíamos para tomar um café. Ah, Deus, foi assustador. Achei que ela tinha
conseguido. A boca vermelha de Vivienne treme. Depois, ela continua:
—Toquei a campainha, mas ninguém respondeu. Toquei novamente. Nenhuma
resposta. Achei que ela havia ficado um pouco mais na escola. Eu estava quase indo
embora, quando abriu a porta. Parecia bastante fraca, branca, pálida como uma
escocesa! Vivienne está tão agitada, que minha pequena reação ao seu preconceito
indisfarçado passa despercebida, enquanto prossegue. Ela estendeu seus pulsos, disse
‘olhe o que eu fiz’, depois caiu no choro. Foi horrível. Usou uma lâmina de barbear já
bem usada. Empurrou para trás e para a frente mas, graças a Deus, não pressionou
muito, para baixo. Havia vários arranhões e um pouco de sangue. Fiquei chocada,
Helen, quase desmaiei ali mesmo. Ela parecia bem, calada, mas bem. De volta ao
trabalho, ocupada com as crianças, controlando as finanças de seu pai, imagine!
Cecelia! Eu... eu jamais pensaria, nem em um milhão de anos, que ela poderia fazer algo
assim. Já se passaram, o que... cinco, seis meses, achei que certamente ela já teria
superado... será que... que já não deveria ter superado?
Vivienne, que estava falando mais consigo mesma do que comigo, olha para
meu rosto e começa a hesitar, até parar de falar. Não grito com ela, apesar deste ser meu
desejo. Embora, neste exato momento, eu esteja desesperada por uma desculpa para
gritar com alguém. Se Johnny Depp passasse por mim e, acidentalmente, pisasse no
meu pé exatamente agora, eu o crucificaria — barbinha de três dias moderninha de
intelectual ou não, esmagaria aquele homem.
Mas, com Vivienne, mantenho minha voz firme e digo:
— Eu... você sabe, graças a Deus, você a encontrou. Você, não, eu, não, estou
pensando, cinco meses parece muito tempo, talvez, para você, mas para ela e, quer
dizer, para mim também, não é nada. Parece que foi ontem. Eu também, estúpida,
pensei que ela estava, sabe, melhorando, mas não. Não superou isso. Não sei quanto
tempo levará. Mais tempo. Eu... eu não sei nada sobre "superar". Acho que a gente
supera uma unha quebrada. — olho para as unhas fantasticamente cuidadas de Vivienne
e percebo que estou falando com a pessoa errada. — Talvez algum dia ela aprenda a
viver com isso. Mas, desculpe, estou só tagarelando, vá em frente.
Vivienne dá outra tragada em seu cigarro. Ela chupa-o com tanta força que me
admiro quando o cigarro não entra direto em sua garganta.
— Levei-a à cozinha, envolvi seus pulsos em toalhas úmidas e dirigi direto para
cá. Ela disse que havia feito aquilo no banheiro, que "perdera muito sangue", de modo
que corri até lá e não parecia tão sério — eu não consegui ver nenhum sangue, mas não
sou especialista nessas coisas, ela havia colocado toalhas no chão para, talvez, proteger
o carpete, entretanto também não havia sangue nelas, então desci as escadas correndo,
chamei uma ambulância e eles — isso é horrendo — disseram que eu é que deveria
trazê-la! Posso até escrever para as autoridades sobre este absurdo, se descobrir a quem
devo endereçar minha queixa! Eu a trouxe até aqui e a examinaram — Vivienne dá mais
uma tragada — talvez tentativa de suicídio, e, pelo que ela disse, eles falaram que o ato
foi, provavelmente, um pedido de ajuda, em vez de uma tentativa séria de, você sabe... e
fizeram um curativo provisório, mas o que me incomoda é que, quando perguntaram por
que ela fez isso, ela disse, ela disse...
Vivienne — que em minha opinião choraria apenas se um dia a loja da Gucci, na
Sloane Street, fosse varrida do mapa, por um desastre estranho da natureza — funga e
seca o canto de cada olho, com a ponta de seu polegar.
— O quê? — pergunto.
Vivienne faz força para controlar-se e acrescenta:
— Sua mãe disse: "E tudo inútil. Tudo inútil sem meu Morrie. O mundo
continua girando e não vejo motivo para isso." Oh, Helen, não percebi antes o quanto
ela o amava!
Dou tapinhas carinhosos em sua mão trêmula e suspeito, maldosamente, que a
perplexidade de Vivienne é porque se seu próprio marido morresse ela iria correndo
comprar roupas novas, dizendo que ele não desejaria vê-la enlutada e continuaria
flertando com homens jovens e impressionáveis, ainda com mais vontade do que já faz.
Mas, sacudo minha cabeça e suspiro.
— Nem eu imaginava isso. — secretamente, me pergunto até que ponto o drama
de hoje está ligado aos sentimentos de mamãe por meu pai, ou aos seus próprios
sentimentos sobre si mesma.
Entramos e vemos que mamãe adormeceu, em sua cadeira laranja de plástico.
Parece dez anos mais velha. Sentamo-nos e espero ser chamada, então, de repente, uma
luz acende-se em minha mente. Tom! Meu encontro com Tom! Não creio! Um grande
aviso proíbe o uso de celulares dentro do hospital, de modo que agarro o meu e corro
para fora novamente. São seis e trinta e sete da noite. Ligo para a Megavet e — uma
catástrofe em minha casa, ou o quê? — Celine atende. É hora do jantar, o prato do dia é
torta de humildade.
— Celine — digo, em meu tom encantador —, é Helen Bradshaw, aquela que...
— Sei quem você é — ela diz, em tom agudo.
— Tom está?
— Está ocupado — ela responde.
Recuso-me a ter um chilique, porque sei que isto é o que ela deseja. Decido ser
franca:
— Celine, eu deveria encontrar-me com Tom hoje à noite, mas não posso,
porque minha mãe precisou ser levada ao hospital de repente, é uma emergência, muito
grave, preciso ficar com ela. Eu seria muito grata se você desse este recado a ele.
Sua cadela nojenta, acrescento, mentalmente. Sinto surpresa e gratidão, quando
Celine reúne um fiapo de humanidade e diz, em tom sério:
— Lamento por você. E claro que direi a ele. Vá, cuide de sua mãe e não se
preocupe.
Meu queixo caiu.
— É muita gentileza sua, Celine.
— Foi um prazer — se despede.
Desligo. Uau! O que fiz para merecer isto? Talvez ela tenha encontrado um
namorado para Nancy — um Mercedes próspero chamado Charles, com rodas de liga
leve e estofamento de couro. Mas, provavelmente, está feliz, porque uma tragédia
familiar impediu meu encontro com seu amado chefe.
Corro de volta à enfermaria. Minha mãe acordou, queixando-se de que seus
"pulsos doem". Não diga. Mordo minha língua para não fazer piadinhas neste momento.
Mais ou menos três anos depois, o nome de minha mãe é chamado e ela,
Vivienne e eu somos levadas da decadente sala de espera para o que parece ser um
corredor separado em minúsculos cubículos semelhantes a vestiários.
— Você trouxe seu maio? — pergunto, tentando brincar com mamãe, mas ela
não ri.
O psiquiatra de plantão — que apresenta profundas olheiras roxas e parece saído
de uma briga feia — olha para mim como se dissesse "retardada". Assumo uma
expressão modesta e me calo. Não cabemos todos no cubículo. Vivienne oferece-se para
esperar lá fora.
Não a culpo. No caixote à nossa esquerda, um homem está berrando e, no
caixote à direita, uma mulher chora. Que tranqüilizador! Olho nervosamente para minha
mãe, em busca de sinais de instabilidade mental, mas ela senta-se calmamente na
cadeira do cubículo e permite que a enfermeira borrife um líquido transparente em seus
ferimentos. Acho que preciso de óculos novos, porque tenho que estreitar os olhos para
ver os cortes.
— Esta solução salina vai arder só um pouquinho — diz a enfermeira,
gentilmente.
Minha mãe assente. Ela está dócil como nunca, enquanto seus pulsos são
envolvidos em um gesso grudento, parecido com uma fita e com uma gaze fina e, até
mesmo, quando recebe uma injeção contra tétano "apenas por precaução", como diz a
enfermeira, alegremente. Sorrio para ela, agradecida. Tão logo sai, o policial enxerido
— ou Dr. Nathan Collins, de acordo com seu crachá — começa um interrogatório.
Tem dormido bem? Como está seu apetite? Será que tem pensado em unir-se ao
marido amado? Quanto a pensamentos sobre dormir e nunca mais acordar? Por que fez
isso? Já tentou algo parecido antes? Foi algo impulsivo? Chegou a escrever um bilhete
de despedida? Gostaria de estar morta? Queria ser descoberta? O que achou que
aconteceria? O que deseja? Já sentiu vontade de se matar, antes? Já tomou uma
superdose de alguma coisa, antes? Já tentou ferir-se, no passado? Tem visto coisas que
não existem realmente? Ou ouvido coisas? Possui um sistema de apoio?
Sinto-me ansiosa com essas perguntas tão íntimas. Tremo, por antecipação, a
cada resposta, meio que esperando que minha mãe tenha um treco e saia correndo do
cubículo. Mas ela não faz isso. As lágrimas quentes correm por seu rosto, enquanto
responde. Seguro sua mão e estudo meus pés. Ela diz ao Dr. Collins que tem dormido
muito, comido pouco — pouco!, eu penso, já fizemos todo o repertório de pratos de
Martha Stewart, duas vezes! — e acha difícil concentrar-se. Não tem pensado em
juntar-se ao marido amado, mas pensa em dormir para sempre e fez aquilo porque
Morrie morreu e ela sente tanta falta dele, que mal pode respirar. Ninguém compreende,
todos pensam que ela já deveria ter se recuperado da perda, só que isso ainda não
aconteceu, ela não consegue, é tudo demais para ela. Pensou que iria melhorar, mas está
piorando e sente que está ficando louca. Não, jamais fez isso antes. Sim, foi algo
impulsivo, apenas queria que todos "sentassem e me dessem alguma atenção". Não, não
escreveu um bilhete. Não desejava realmente morrer, apenas que Maurice estivesse
vivo. Sim, queria ser encontrada para fazer com que as pessoas compreendessem. Não.
Na verdade não, embora ela faça questão de falar com Maurice todas as noites, antes de
dormir. Somente um papinho, como ontem — foi lançado o novo livro de Tom Clancy e
sabia que Morrie teria detestado perder essa leitura, então contou-lhe que leria por ele.
Não o viu, mas sentiu uma presença. Foi só uma conversinha rápida, na verdade. De vez
em quando ela pensa que o viu na rua, entretanto a pessoa é sempre um estranho, não
Maurice.
(Você deve entender que este é um relato editado, já que ela fica falando sem
parar como um riacho murmurante, tornando cada resposta longa como a Bíblia, até ser
interrompida pelo Dr. Collins, que diz: "Quero uma resposta de sim ou não!") Ele
observa-a atentamente, depois constata:
— Sra. Bradshaw, sua perda foi terrível. A dor do luto é sempre bem pior do que
se pode imaginar. A Sra. está certa, as pessoas não compreendem. E difícil, para outros,
verem sua dor. Eles não compreendem que a dor é parte do processo de luto, que você
precisa passar por isso para curar-se. Cinco meses é muito pouco tempo! A aceitação da
morte de quem amamos pode levar vinte anos. Sua reação não é nem um pouco insana,
e sim normal. E comum a dor demorar um pouco para atingir seu ponto mais alto. Nos
primeiros estágios, você está em choque. Este é o modo como seu corpo cuida de você.
Não poderia lidar com toda a tristeza de uma só vez. Ainda tem a sensação, a
familiaridade da presença de seu marido para ajudá-la a sobreviver. Mas, só agora a
ficha caiu, porque há a certeza de que ele não voltará. Isto, Sra. Bradshaw, é o que acaba
com toda alegria de viver.
Minha mãe olha maravilhada para o Dr. Collins como se ele fosse o Oráculo,
depois joga seus braços magricelos em torno de minha cintura e soluça, de um modo de
dar pena, em meu suéter. O Dr. Collins acena para mim, como se dizendo: ela superará.
Estou atônita. Não sei se bato ou abraço o médico.
CAPÍTULO 19
Nunca reagi bem a censuras. Uma vez, após um jantar absurdamente farto,
Jasper repreendeu-me, porque sugeri que ele "desapertasse" seu cinto (aparentemente,
eu deveria ter dito "afrouxar"). Senti-me insultada e azeda, durante uma hora inteira.
Após cinco nervosos "O que houve?" "Nada", confessei o que incomodava. Jasper
explicou-me que estava apenas tentando fazer com que eu não parecesse "grossa".
Então eu o perdoei, embora relutantemente. Por dentro, o ressentimento continuou
ardendo. Acho que críticas, mesmo construtivas, ainda são críticas. Uma censura mal
disfarçada.
Por essa razão, quando o Dr. Collins afastou-se comigo e disse que minha mãe
fora "um pouco negligenciada recentemente", sugerindo, de forma educada, mas firme,
que "seria bom manter olhos e ouvidos bem abertos, até podermos organizar algum
apoio para ela", foi difícil não me sentir magoada. Protestei mentalmente, pois acho que
mantive olhos e ouvidos abertos para ela. Tanto quanto possível. Além de quase perder
meu emprego, minha casa — já abandonei minha vida social — e andar em sua cola
como um assaltante sorrateiro, o que mais eu deveria ter feito?
Tentei não levar muito a sério sua observação. Em meu coração, sabia que havia
ignorado as tentativas recentes de minha mãe para comunicar seu desespero —
nenhuma desculpa pode justificar isso —, de modo que o mínimo que eu deveria ter
feito seria bancar sua sombra. Quanto a ouvi-la, o Dr. Collins quis dizer que eu deveria
escutar os desabafos de mamãe. Mas, ai!, esconder facas, comprimidos de Advil e
espionar minha mãe, como uma pervertida, seria uma imensa alegria, comparada com
ouvi-la. Não disse isso ao Dr. Collins, mas odeio escutar minha mãe.
É vergonhoso vê-la despejar suas emoções como se fosse uma amiga, um
americano ou alguém de minha própria idade. Quando começa a cacarejar sobre as
coisas carinhosas que meu pai fazia por ela, como beijá-la de manhã ou preparar-lhe um
banho quente à noite, sinto-me como um voyeur. Um bem desajeitado, porque não sei
para onde olhar. Chame-me de pudica, mas acho isso altamente inapropriado. É como
— não que eu tenha feito isso, graças a Deus — ficar com o ouvido colado à porta,
enquanto meus pais faziam sexo. Se você quer saber, invejo-a. Ouvi-la falar, como o Dr.
Collins disse, é difícil. Sim, porque detesto testemunhar sua dor. Mas, também porque
isso faz com que eu fique imaginando o que há de errado comigo, que tipo de filha eu
sou, que minha dor é tão malditamente superficial, esporádica e inferior à dela.
Sim, falo ao Dr. Collins, é claro que cuidarei dela. Por tanto tempo quanto for
preciso.
Vivienne deixa-nos em casa. Agradeço, digo-lhe que foi maravilhosa e aceno um
tchauzinho. Ela parte a toda velocidade e não a culpo. Minha mãe está bem quieta, de
modo que continuo falando. O Dr. Collins deu-lhe dois antidepressivos, prescreveu
mais, providenciou uma consulta com outro médico, quinze dias, e um telefonema da
"EPC". Quando o Dr. Collins disse que os comprimidos eram de Prozac, minha mãe
recuou, visivelmente chocada. Ele precisou convencê-la de que o remédio não a tornaria
suicida. Ela também fez uma cena, quando ele mencionou que deveria consultar outro
médico.
— Para quê? — ela exigiu.
Dr. Collins respondeu:
— A Sra. está passando por um período muito difícil. Talvez precise de algum
apoio, o médico administrará e regulará sua medicação.
Mamãe estava tão hipnotizada pelas cápsulas azuis e brancas no pequeno frasco,
que se esqueceu de perguntar o que era um EPC. Assim, quando saiu para mostrar seus
comprimidos à Vivienne, perguntei.
— Uma enfermeira psiquiátrica comunitária — Dr. Collins respondeu.
Olhei-o aterrorizada e gritei:
— Ela não está louca!
Ele friccionou seus olhos vermelhos, cansados, e disse com uma vozinha suave e
assustadora:
— Minha prioridade é evitar o desastre.
Seria melhor dizer "evitar que uma paciente minha bata as botas".
— O Dr. Collins parece um homem gentil — digo, alegremente, enquanto
remexo em coisas, apenas para fazer algo, na cozinha. —Assim, você provavelmente
voltará ao hospital em algumas semanas. Quer que eu a leve? — acrescento, ainda
alegremente, esperando, contra a lógica, que ela diga não.
— Não — diz minha mãe, surpreendendo-me.
— Tem certeza? — pergunto, duvidando, imaginando se ela planeja
simplesmente não aparecer.
— Se quisesse dizer "sim", eu teria dito "sim" — retruca minha mãe.
Olho para seu rosto cansado e mudo de assunto. Começo a tremer subitamente,
sinto vontade de agarrar minha mãe com ambas as mãos e arrancar uma promessa dela.
Quero uma garantia por escrito de que continuará viva e saudável, por mais sessenta
anos. Isto é o que desejo, por favor. Porque de outro modo... não quero viver como uma
formiga, levando minha vidinha fútil, um dia igualzinho ao outro. Estou esmagada,
indiscriminadamente, sob o pé de botas pretas do destino. Sinto-me nauseada de
desgosto com a natureza aleatória da vida. Sua organização é bem parecida com a
minha gaveta de roupas íntimas.
— Mãe — digo apressadamente, agarrando seu pulso.
— Sim?
Quero dizer estou com tanto medo, sinto um medo tão grande, que isso está me
matando, mas não posso dizer isso. Digo:
— Gostaria que tivesse me ligado.
Minha mãe responde com poucas palavras:
— Você estava ocupada
Sinto-me perdida. Quero gritar. Desejo meu pai de volta. Ele traria alguma
lucidez a ela. Quero ter controle e detesto não ter nenhum. Será que eu deveria fazer
uma lista de tarefas? Faço isso:
Lista de tarefas
1. Cuidar de mamãe — indefinidamente —, talvez também às terças-feiras?
2. Ir para casa, pegar roupas e a escova de dentes.
3. Ligar para Laetitia.
4. Ligar para a Sra. Armstrong.
5. Pedir que Luke alimente o Gorducho.
6. Ligar para Tom e desculpar-me.
7. Ligar para Lizzy para obter apoio moral.
8. Escutar, enquanto mamãe desabafa.
Não ouso deixar mamãe sozinha, enquanto recolho minhas coisas no
apartamento, de modo que a convido para ir comigo. Estou apreensiva por dirigir seu
Peugeot 206 prateado — jamais dirigi um carro no qual não sinto vergonha, antes —
mas me recuso a gastar um centavo a mais em táxis.
— Acho que você gostará de ver Luke, mãe. O que você acha? — pergunto,
querendo animá-la, sem mencionar o Gorducho já que — sendo ambos perturbadores,
egoístas e famintos por atenção — não suportam um ao outro.
Antes de irmos, sugiro que minha mãe "refresque-se" — um código para "vista
algo com mangas longas, para que as pessoas não percebam que você acabou de tentar
chegar mais cedo ao céu". Escolho um suéter verde-escuro, que ela veste
obedientemente, e lá vamos nós. O primeiro ruído que escuto enquanto cruzamos a
porta não é o do Gorducho exigindo seu jantar ou Luke tocando guitarra em seu quarto.
O primeiro ruído que escuto vem do quarto de Marcus, e é "Uuuuh! Uuuuuh! Uuuuh!" e
"Oh! Oh! Oh! Meu! Deus!" Realmente, meu Deus! Convido minha mãe para vir ao meu
apartamento pela primeira vez em mais ou menos um ano — acho que isso a deprimiria
— e ela descobre que moro em um bordel, o que a atinge, dolorosamente, pois a faz
lembrar vividamente que seu querido está morto e todos estão dançando e pulando sobre
sua sepultura (por assim dizer). Amaldiçôo Marcus por escolher esse momento, para
trepar como um rinoceronte. Acho que eles quase nunca têm sexo! Marcus não tem o
equipamento necessário e Michelle detesta fricção. Por que outro motivo ela ficou com
Sammy por cinco anos?
Começo a falar alto e incessantemente, para abafar os gritinhos de Michelle
fingindo um orgasmo.
— Mãe, venha aqui, sente-se na sala e ligue a TV, pode ser que haja alguma
coisa boa, você gostaria de uma xícara de chá? Vou colocar água para ferver de
qualquer maneira ou você preferiria escutar rádio na cozinha, sim, venha até a cozinha e
vamos ligar o rádio, ah, olhe, aí está o Luke! Luke, você se lembra de mamãe, não é?
Sim, mãe, você se lembra do Luke, ele foi tão prestativo no hospital na última vez e
lembra que ele colocou um pão de queijo na bolsa de Lizzy só para que todos a
olhassem, porque achavam que o fedor vinha dela, naquela festa, lembra? Ah, Luke,
será que você se importaria muito se eu lhe pedisse para alimentar o Gorducho amanhã
de manhã, já que estarei com minha mãe hoje à noite e talvez pelo resto da semana?
Faço uma pausa para respirar. Luke e minha mãe olham-me, como se eu tivesse
enlouquecido.
— Você está bem? — Luke pergunta.
— Bem, bem — digo, apontando na direção do quarto de Marcus, fazendo uma
expressão de "Estou-com-nojo!".
— Ah, é — Luke diz, imediatamente. — Marcus e sua amiga estão no rala-rala.
Já estão assim, como coelhos há, sei lá, acho que uns dez minutos. Não consigo ouvir
nem meus próprios pensamentos.
Esse é Luke. Luke, o rei da gafe. Miro-o, furiosa, e digo:
— Desculpe, mamãe, Luke está apenas brincando! — e espero pelo estouro.
Em vez disso, ela começa a rir baixinho.
— Helen! Não seja tão moralista! Sei o que é sexo! Já passei por isso!
Mamãe diz isso com um tom jovial, e de quem sabe das coisas, com um
olharzinho malicioso para Luke, indicando que ela e ele são realmente adultos e eu, a
garotinha idiota que não consegue lidar com palavras como "bunda". Esqueci como
minha mãe pode transformar-se em um Judas coquete, na presença de qualquer homem
acima de doze anos.
— Bem, não vou me importar, se você não se importa — digo, ressentida,
enquanto Luke e minha mãe riem de mim. Traidores.
— Então, você alimentará o Gorducho? — pergunto a Luke, em uma tentativa
de recuperar alguma dignidade.
— Sem problemas. O Gorducho é meu camarada.
Sorrio e brinco:
— Não é de admirar, já que vocês dois têm hábitos semelhantes de higiene!
O Gorducho, diferentemente de outros gatos, não é muito chegado a banho. Ele
sempre fede — como Tina diz — "de um jeito esquisito", atrás das orelhas. Quanto a
Luke, ele vê banhos como um vampiro vê alho. Espero que Luke ria, mas isso não
acontece.
— Obrigado — ele diz, gelado.
— Isso foi uma brincadeira! — desculpo-me, atrapalhada.
— Bem, não foi muito gentil — diz minha mãe, que estrangularei, se ela der
mais uma opinião indesejada. Desisto.
— Desculpe-me, não quis ofendê-lo — acrescento, azeda. — Vou dar alguns
telefonemas — falo, enquanto marcho para a sala. Luke e minha mãe já estão
tagarelando e me ignoram. Isso é iiiincríííívell!
A secretária eletrônica está piscando. Será Tom? Pressiono play.
— Helen, é Laetitia. Estou ligando para saber se tudo está bem e para lembrá-la
da reunião sobre o suplemento de "Como Enriquecer Rapidamente" amanhã, às nove e
meia, em ponto. Preciso de muitas idéias e conto com você! Isto, vindo de Laetitia,
significa: "Não estou nem aí se cada membro de sua família bateu as botas, porque
estou lhe pagando (apenas) para ser minha serviçal. Assim, esteja lá ou vá para a fila do
salário-desemprego!"
Nem preciso dizer que não tenho idéias para o suplemento — sou a pessoa mais
pobre no escritório! A estagiária da revista ganha mais que eu! Ah, sim, Michelle diria
que estou sendo amarga. Acalme-se, Helen. Respiro, profundamente, e consulto minha
lista. Ligar para Tom. Folheio freneticamente minha agenda tentando encontrar seu
número de casa. Ligo e prendo o fôlego.
— Alô?
— Tom? — pergunto, em voz aguda. — É Helen! Desculpe-me!
Há uma pausa.
— Qual a desculpa, desta vez? — ele pergunta, friamente.
O quê? Estou horrorizada.
— Você quer dizer... — estou praticamente sem fala, tamanha minha
indignação. Aquela cadela espertinha com sua boca de palhaça delineada!
— Quer dizer que Celine não lhe deu meu recado?
Pausa.
— Então você se deu ao trabalho de deixar um.
Estou paranóica ou todos me detestam?
— Sim, deixei mesmo. Para dizer-lhe que minha mãe cortou os pulsos hoje cedo
e teve que ser levada às pressas para o hospital — agüente isso agora, seu malvado
indiferente! Sinto-me gratificada, porque minha estratégia de choque teve o efeito
desejado.
— Nossa, Helen, isso é horrível! Deus, sinto muito! Ela... como ela está? E
como você está?
Digo, em tom conciliatório, de quem agora está por cima e não lhe deve nada:
— Ela está bem — sinto vontade de acrescentar "ela esteve às portas da morte"
porque a) eu ouvi alguém usando essa expressão no hospital, e b) quero puni-lo por ser
tão desagradável.
Entretanto, contenho a língua. Em primeiro lugar, isso é mentira e, em segundo,
eu estaria nas mãos bem manicuradas de Celine.
— E como você está? — Tom pergunta, novamente.
Balanço a cabeça antes de sussurrar, com uma voz estrangulada:
— Bem.
Não posso dizer-lhe a verdade — que estou dura de medo e considerando,
seriamente, a idéia de manter minha mãe em um quarto acolchoado, para evitar outros
ferimentos. Em vez disso, conto a Tom uma versão resumida da história horrível e uma
versão alongada de meu telefonema à Megavet.
— É uma mentirosa! — exclamo, acrescentando, antes de poder controlar minha
língua. — Ela está a fim de você, você sabe!
No mesmo segundo em que digo isso, arrependo-me. Seria bem melhor dizer "eu
estou a fim de você, você sabe!". Dá tudo no mesmo.
— Ah, sim? — ele pergunta, cuidadoso. — E por que você acha isso?
Ô nojento!
— Digo isso — falo, em um tom insinuante, cantarolado e doce —, porque ela o
protege como uma hiena protege a carcaça de um antílope!
Hummm. Isso não saiu bem como eu queria.
Mas o bom-humor de Tom está de volta, porque ele diz, seco:
— Você está me lisonjeando.
Dou uma risadinha.
— Desculpe-me por ontem à noite — digo, e realmente lamento. Estou
preocupada, porque, sendo esta a segunda vez que lhe dei o cano, um terceiro convite
não será muito bem recebido. Será que ouso chamá-lo para sair? Não é como se eu
estivesse pedindo que ele me emprestasse dinheiro. Lizzy seria capaz de convidar um
homem para sair. Por que sou tão certinha?
— Será que você... será que você estará livre esta semana, ou talvez na próxima?
— pergunto, rapidamente, fazendo soar como se minha vida fosse um vazio e eu não
tivesse nenhuma amiga ou amigo.
— É claro que sim — Tom diz —, mas talvez seja melhor semana que vem. Até
lá, as coisas estarão mais calmas.
Acertamos para terça-feira.
Desligo o telefone e começo a analisar a conversa como um psicoterapeuta
incompetente. Ao sugerir que nos vejamos semana que vem, e não nesta semana, será
que ele pretendia dizer que sou egoísta? Que estou negligenciando os cuidados de
minha pobre mamãe? (Que, enquanto faço essas ponderações, está dando risadas na
cozinha.) Será que isso significa que ele não gosta mais de mim? Não que ele tenha dito
isso, não conscientemente. E terça-feira — isso é bem conveniente, ele dirá que precisa
levantar cedo no dia seguinte e, assim, terá uma boa desculpa para despedir-se de mim
às dez da noite. Será que isso significa que ele...?
Já chega. Já chega, sua panaca. No minuto em que eu começar a gostar dele,
ele deixará de gostar de mim. Sacudo a cabeça com força, para salientar esta cessação
de meu carinho por ele e ligo para Lizzy. Ela pega o telefone e, ao fundo, ouço o que se
parece muito com monges cantando. Assim, antes de informar minha amiga de que meu
único membro parental restante não está em risco imediato de morte, faço uma pergunta
mais urgente:
— O que você está ouvindo aí?
Ela ignora a pergunta e faz outra:
— Como está sua mãe?
Digo como mamãe está. Por fim, confessa que o nome do CD é Gregorian
Moods e que, se eu quiser, pode gravá-lo para mim.
— Não, obrigada.
— Bem, quem sabe para sua mãe, então?
Faço uma pausa. Para mim, já é uma questão de princípio desconsiderar
automaticamente todo o mérito esquisito, fanático por saúde, consumidor de feijão e de
brotinhos de plantas de Lizzy. Assim desejo ajudar mamãe de todos os modos que puder
e não a imagino tagarelando com um psiquiatra. Não consigo mesmo. Ela já escolheume
como sua terapeuta. Falará com a enfermeira uma vez só, para agradar ao Dr.
Collins, mas acho que parará por aí. Minha mãe não quer falar com um estranho. Nem
que alguém a escute porque é pago para isso. Deseja que as pessoas a escutem porque se
preocupam com ela. Isto é altamente inconveniente e preciso de toda ajuda que puder
recrutar.
— Pagarei a gravação da fita — digo a Lizzy. Não consigo mesmo pronunciar as
palavras "sim, eu adoraria ter uma cópia do Gregorian Moods" em voz alta.
— Mal posso esperar para contar a Tina — Lizzy afirma, contente.
— Uma palavra e a planta de feng shui vai levar a pior! — respondo, docemente.
Salvei Luke de minha mãe e estamos no corredor, na direção da porta da frente,
quando Marcus emerge de seu quarto usando uma toalha branca pequena, em volta de
sua cintura estreita. Seu rosto transmite todo o embaraço.
— Oi — ele diz, encabulado. — Eu acabei de... sair do chuveiro.
Minha mãe gruda os olhos nele. Tenho vergonha de dizer, mas ela parece um
passarinho olhando um verme gordo.
— Nós ouvimos — adianto, curta e grossa, enquanto empurro minha mãe
boquiaberta para fora do apartamento. — Um banho tão longo que você deve ter batido
um recorde!
A recordação de sua fúria muda faz com que eu continue sorrindo até chegarmos
ao Peugeot.
CAPÍTULO 20
No início de meu trabalho na GirlTime, eu sofria de uma aflição conhecida como
"medo de telefone". Sempre que precisava dar um telefonema, adiava e continuava
adiando até as seis da noite, quando a pessoa com quem precisava falar já fora embora.
Minha doença durou mais ou menos três dias, até que um espancamento verbal por
Laetitia espantou o medo de mim. O vírus, contudo, escondeu-se mas não morreu,
porque esta manhã liguei para a diretora da escola às sete horas da manhã para informála
sobre a nova recaída de minha mãe, fiquei das três e treze até as quatro e trinta e seis
da madrugada aperfeiçoando minhas falas, e levei mais quarenta e cinco minutos para
reunir a coragem para discar o número (comecei a levantar e baixar o fone às seis e
dezessete da manhã).
A primeira preocupação óbvia da Sra. Armstrong foi pela saúde de minha mãe.
"Notícia chocante... Repouso e recuperação... Meus desejos de uma rápida
recuperação... Retorno ao seu estado normal." Ainda assim, a corrente mais profunda de
paciência forçada e culpa nervosa logo emerge — suplicando por expiação.
Na semana passada, como descubro, a Sra. Armstrong manteve uma "palavrinha
amiga" com Cecelia sobre "organização". Não foi uma reprimenda, nem pense nisso,
apenas um lembrete de que o concerto de Natal aproximava-se rapidamente e o
programa, ensaios, trajes, scripts e horários já deveriam estar sendo elaborados. Ela
esperava que Cecelia não tivesse tomado essa sugestão como uma ofensa. Cecelia era
uma professora excelente, uma verdadeira profissional. Só que quando um membro da
equipe não dá tudo de si, isto coloca uma carga — não, palavra errada —, desculpe-me,
afeta todos os envolvidos.
Garanti à Sra. Armstrong que sua "palavrinha amiga" absolutamente não levara
minha mãe a cortar os pulsos, embora em particular eu achasse que levara sim senhora.
Disse a ela que, logo que possível, ligaria para informar a data de retorno de minha mãe
ao trabalho (novamente), depois de consultar o médico. Pela resposta cheia de
artimanha da Sra. Armstrong, contudo — "é mais fácil planejarmos se sabemos que
alguém estará ausente por algum tempo do que se contamos com sua presença em vão"
— suspeitei que ela preferiria empregar uma professora temporária pelo menos até o
Natal. Pelo bem de sua própria sanidade, se não do orçamento.
Às oito e meia — depois de um longo banho quente, no qual eu ficaria
alegremente pelo resto de minha vida acordo minha mãe com uma xícara de chá. Bem
que desejo, mas não faço isso, jogaria a xícara em sua cabeça. Ela esfrega os olhos, faz
cara de confusa ao ver seus pulsos enfaixados e, lentamente, hesitantemente, senta-se
ereta.
— Como você está se sentindo? — pergunto.
— Não sei — ela responde, sem entonação.
Droga!
— Mãe, preciso sair para o trabalho em três minutos, ou perderei meu emprego.
Mas falei com a Sra. Armstrong, ela lhe deseja uma boa recuperação e manda dizer para
você voltar apenas depois que estiver realmente bem. O que você fará hoje, então? Será
que eu deveria ligar para Vivienne e pedir que venha até aqui? Você gostaria de ir
almoçar comigo? O que prefere?
Minha mãe torce o nariz e diz:
— Vivienne tem aulas de batik às terças-feiras.
Intimamente, estou entrando em pânico. Ainda não posso deixá-la sozinha, solta
e sem rumo como uma folha ao vento! Mamãe tem um grande, monótono e cavernoso
dia estendendo-se interminavelmente à sua frente! Ela bem pode tentar de novo! Uma
idéia desagradável começa a formar-se em minha mente. Não quero colocá-la em
palavras. Preferiria ignorá-la e deixá-la sumir. Infelizmente, agora são oito e trinta e três
e tenho precisamente zero minuto para pensar em outro plano.
— Mãe — digo, apressada. — Sei que vocês não se vêem muito, mas e se eu
chamasse Nana Flo?
O simples som desse nome envia uma seta de remorso para a boca de meu
estômago. A verdade é que, desde o funeral, falei com Nana Flo duas vezes. Uma vez,
após descobrir que minha mãe agora agia como Miss Havisham, de Grandes
Esperanças. Ocorreu-me que, até onde sabia, minha avó transformara-se em Darth
Vader, e era meu dever investigar. Sua enxurrada de mensagens telefônicas aumentou
minha inquietação. Levei quatro dias para chegar perto do telefone. Quando expliquei
que minha mãe não havia retornado suas ligações porque estava — de acordo com seu
médico — "sofrendo com a perda, o que resultou em doença depressiva", Nana Flo
ficou em silêncio. Depois, disse:
— Ah, bem, a gente tem que ir em frente!
Eu estava pronta para discutir e lhe dizer que quando se tem uma síndrome
depressiva não há como ir em frente, mas percebi que estaria batendo minha cabeça
contra um muro de tijolos de setenta e oito anos de idade. Então percebi: se Nana Flo
era tão a favor de ir em frente, por que ligou para minha mãe de dois em dois dias
durante um mês inteiro, balindo como um cordeirinho perdido em uma montanha?
Assim, a espertinha aqui disse:
— Por falar nisso, como você está, Nana?
Ela respondeu:
— Vou levando.
Neste ponto, eu estava pronta para deixar por isso mesmo. Mas, impulsionada
pelo espectro vivo e real de minhas parentes mais próximas morrendo ou se tornando
zumbis uma a uma, despejei:
— Você tem ligado para mamãe e, bom...Tem ligado muito, ultimamente. Você
tem se sentido solitária?
Nana Flo deu-me um latido sem humor e respondeu em um tom áspero:
— "Solitária!", "Solitária!" Sua mãe sempre gostou de bancar a desamparada!
O que eu poderia dizer, depois disso? Após uma pausa perplexa, falei:
— Farei com que a mamãe ligue para você, quando o médico disser que ela já
está forte o bastante.
Na segunda vez em que conversei com Nana Flo foi quando realmente a vi — no
dia em que o testamento foi lido. Depois do trabalho, fui ver minha mãe e minha vó
estava sentada na cozinha lendo o TV Times através de uma lente de aumento que
distorcia seus olhos e a fazia parecer-se com o Corcunda de Notre Dame.
Mantivemos uma conversa curta e civilizada sobre sua pressão sangüínea ("não posso
me queixar") e aí terminou nosso contato. Desde então, não trocamos uma só palavra.
Sem querer dramatizar demais meus sentimentos sobre a situação, preferiria saltar do
alto do Empire State Building do que falar com ela agora.
Apesar de que, conhecendo minha mãe, suspeito que ela sentirá o mesmo e não
terei que fazer isso. Sinto-me incrédula quando mamãe diz:
— Vá trabalhar, eu ligo para ela.
Inicialmente, não acredito.
— Mesmo? — digo, em voz aguda e meio gritada. — Você nunca liga!
Minha mãe olha-me de lado e pergunta rudemente:
— Como você pode saber?
— Eu sei — respondo, ofendida — que você liga para Nana Flo com a .mesma
freqüência com que eu mesma ligo para ela.
Minha mãe olha-me muito espantada e responde:
— Então, você obviamente liga para ela pelo menos duas vezes por semana.
Será que estou ouvindo bem?
— Mãe, você está brincando.
Minha mãe parece tão orgulhosa quanto é possível parecer logo depois de ter
tentado decepar a própria mão com uma lâmina de barbear.
Ela diz:
— Vemos uma a outra todas as quintas-feiras. Ela não é tão ruim depois que a
conhecemos bem. Na verdade, é uma boa companhia — para uma velhinha
encarquilhada e nervosinha.
Sinto tanta alegria que beijo a perna de minha mãe, brincando, por cima das
roupas de cama. Apenas quando estou bufando pela Long Acre, rumo ao escritório, doume
conta de algo: tenho desperdiçado cerca de dezesseis horas por semana com minha
mãe nos últimos cinco meses. Por que diabos ela não me contou antes? Desnecessário
dizer, chego ao escritório dez minutos atrasada para a reunião do suplemento.
Quando consigo safar-me da reunião, exausta mas aliviada (sem ter abrido — ou
seria "aberto"? — a boca), há uma cópia pirata de Gregorian Moods sobre minha mesa
e um bilhete de Lizzy: "Almoço?" Ela é tão gentil, mas sei que espera um relato
detalhado sobre o progresso de minha mãe e hoje não estou muito a fim de
"compartilhar com o grupo". Minha cabeça gira. Por que mamãe não me contou sobre
ela e Nana Flo? Seu acobertamento é tão ofensivo quanto a recusa súbita e hipócrita de
Tina em divulgar detalhes íntimos e picantes de sua vida sexual com Adrian, comigo e
com Lizzy, que somos suas melhores amigas!
Desculpo-me com Lizzy, depois pego o telefone e ligo para minha mãe. Ela
atende e disparo mais ou menos umas cinqüenta perguntas:
— Como está? Como se sente? Nana está com você? O que estão fazendo?
Minha mãe, para meu alívio infinito, está calma. Ela está "cansada, mas sente-se
melhor do que ontem".
Deus do céu, mas isso é de se esperar, tomando todos aqueles antidepressivos!
Minha mãe diz também que Nana Flo apareceu, embora apenas às onze e meia, porque
pegou o ônibus. Nana Flo mostrou-lhe fotos de Morrie quando pequeno. Ele parecia
sério em todas elas.
Embora eu esteja impressionada com Nana Flo, que — pela primeira vez em sua
vida — está fazendo seu papel de pessoa idosa e folheando velhas fotografias
amareladas, tenho a impressão de que minha mãe esconde algo. Posso sentir isso em sua
voz. Faço uma pergunta estúpida:
— Mamãe, você está bem?
Ela chispa:
— Claro! Nana Flo vai morar aqui por uns tempos.
Não acredito, num primeiro instante. Eu acharia mais fácil acreditar que Papai
Noel está morando com a Fada dos Dentinhos.
— Está brincando!
Não é brincadeira.
— Mas, por quê?
— Porque o Dr. Collins acha que eu preciso de um sistema de apoio — retruca.
— Bem, isso é ótimo — digo lentamente. — Então você não precisa de mim.
Minha mãe responde alegremente:
— Não.
Esta notícia deveria fazer com que eu pulasse de alegria, mas fico chateada pelo
resto da tarde.
Quando chego em meu apartamento, sinto-me tão irritadiça quanto um tubarão
com um dente infeccionado. Bato a porta e sou prontamente assaltada por uma
cacofonia gutural: "Uuuuuh! Uuuuuh! Uuuuh!" e "Oh! Oh! Oh!" Por favor, de novo
não! Isso é obsceno. Eu dou-lhes um dedo médio esticado com energia na direção da
porta, estico a língua, fecho a boca e faço um longo e nojento "bbrrrrrrrrrrrr", para
demonstrar meu asco. Cachorro. Cachorro. Cachorro! A raiva pulsa. Cada gemido e
grunhido é uma afronta pessoal. Marcho para a cozinha, enfiando propositadamente
meus saltos no carpete e girando o pé para que deixem marcas (um refrão típico de
Marcus: "Será que você pode tirar os sapatos ao entrar em casa, por favor? Este carpete
custou vinte e cinco libras por metro quadrado!").
Eu arranco um baguete do freezer e desejo ser uma psicopata com diagnóstico
feito, para poder voar até o quarto de Marcus e espancá-lo na cabeça com o pão
congelado, sem ter que enfrentar uma pena na prisão. Ei, talvez eu possa convencer
mamãe a fazer isso. Jogo o baguete no forno, volto furiosa ao meu quarto e me jogo na
cama. Normalmente, colocaria os Beastie Boys para tocar, reforçando minha raiva, mas
este humor é sombrio e malévolo demais para músicas. Ele exige silêncio.
Abruptamente, vejo-me envolvida por uma onda de ódio tão vivida, que consigo sentir
seu gosto azedo e potente. Subitamente estou socando e golpeando meu travesseiro —
bam!bam!bam! —, meus punhos esmagam o rosto de Marcus até transformá-lo em
purê, eu grito, grito, grito. Sem palavras, apenas uma explosão aguda e longa, de som
ensurdecedor.
Paro apenas quando Luke, Marcus e Michelle vêm correndo ao meu quarto,
supondo que estou sendo assassinada. Luke pisca sem parar, ansioso, enquanto Marcus
e Michelle estão sem fôlego e corados, como eu. Michelle está embrulhada no roupão
de veludo vermelho de Marcus, e este usa cuecas samba-canção de seda preta.
— Tive um mau dia no trabalho — explico, forçando um sorriso.
Os olhos de Marcus fuzilam-me. Michelle finge preocupação e cantarola:
— Você estourou um vaso sangüíneo sob o olho, tem um monte de pontinhos
vermelhos esquisitos aí. Quer que eu pegue um pouco de gelo?
Sento-me sobre minhas mãos para evitar socar o rosto dela.
— Estou bem, obrigada — digo, embora minha voz agora esteja muito rouca. —
Podem me deixar sozinha, agora.
Marcus dirige-me um último olhar de desdém, antes de sair. Michele dobra os
dedos em um "tchauzinho" metido a elegante e o segue, fechando a porta. Luke
permanece, com seus braços pendendo nos lados do corpo desajeitadamente. Ele coca a
cabeça e pergunta:
— Você quer um abraço?
Não quero, mas pareceria grosseiro recusar, de modo que digo "sim, por favor".
Ele puxa-me de um modo inepto e meu nariz é achatado contra sua axila, o que torna
difícil — provavelmente insensato — inspirar. Vejo-me forçada, finalmente, a puxar o
ar com força. Luke obviamente toma isso como uma fungada, porque beija meus
cabelos, dá tapas em minhas costas (quase me tirando o ar novamente) e exclama:
— Não chore!
Consigo livrar-me de seu abraço e grasno:
— Não estou chorando! Mas obrigada por se preocupar.
Ele dá um grande sorriso e indaga:
— O que aconteceu no serviço?
Penso em contar-lhe a verdade, mas decido que esta não é uma boa idéia. Ele
transmitiria tudo a Marcus sem querer.
— Fui repreendida por chegar atrasada hoje de manhã. — sussurro.
— Talvez você devesse ajustar seu relógio para despertar mais cedo. — Ele
sugere, imediatamente.
— Humm — balbucio, tentando esconder minha irritação. Já lhe dei um sermão
sobre oferecer soluções quando não são desejadas. Há um silêncio que, de repente, é
cortado por um urro distante. Olhamos um para o outro, intrigados.
— Talvez Marcus também tenha tido um dia ruim no emprego — Luke diz.
Eu realmente espero que sim.
Pulamos e corremos até a cozinha, onde Marcus está dançando de um pé para
outro como um demônio, batendo freneticamente no forno com um pano de prato. A
cozinha está cheia de fumaça cinza. Espio por entre a nuvem espessa e vejo meu pão
sendo incinerado.
— Droga! Esqueci isso aí — digo com cuidado, evitando qualquer menção da
palavra "desculpe". Marcus corre até o outro lado da cozinha, segurando a bisnaga
enorme de pão — um cadáver enegrecido com entranhas de um vermelho-brilhante —,
com o braço estendido à sua frente. Ele a joga dentro da pia, liga a torneira e os
destroços torrados de meu jantar chiam e assobiam.
Michelle tosse discretamente. Luke observa, boquiaberto, hipnotizado pelo
espetáculo da cólera de Marcus. Sugo minhas próprias bochechas para evitar uma
gargalhada, mas meu sucesso é apenas parcial. Marcus arremessa o pano de prato para o
chão e grita:
— Você arruinou minha linda cozinha Poggenpohl! Estou farto de você e seus
modos relaxados, sua, sua, sua vagabunda!
Jamais fui tão insultada, nem mesmo por Jasper.
— Os semelhantes se reconhecem — respondo, depois fujo dali. Antes de correr
para o quarto, ainda grito do corredor. — Se fosse um imbecil com um Poggenpohl
como o seu, eu trataria de ficar bem quieta sobre isso!
Infantil, admito, mas é o melhor que posso fazer assim, de improviso.
CAPÍTULO 21
O clima britânico é famoso por sua instabilidade, mas nestes anos, durante todo
o mês de agosto, acabou por desgraçar-se completamente. Durante todos os meses eu
puxava as cortinas às oito e quinze da manhã e apreciava a visão tranqüilizadora de um
céu azul-bebê. Eu corria para o metrô de camiseta, calças compridas de tecido fino e
sandálias abertas, sentindo o sol aquecendo sedutoramente minha pele. Antes de
começar a trabalhar, andei muitos dias pelo escritório exclamando para as colegas: "Mas
que calorzinho, hein?" Então, às doze e quarenta e cinco, eu dava uma olhada pela
janela, imaginando se comeria lasanha ou batata assada no almoço (resposta: o que
fosse maior) e contemplava uma total inversão do clima.
O céu escurecia, tornava-se ameaçador, como se fosse o dia do juízo final, e
alguém inevitavelmente entrava correndo, sacudia as gotinhas frias dos cabelos, passava
as mãos pelo vestido fino de algodão e proclamava:
— Está congelante, lá fora.
Este horror climático persistia, até o dia em que eu levava comigo uma capa de
chuva e um suéter, odiando andar com aquela tralha. Então, tínhamos uma onda de calor
que durava vinte e quatro horas. O único consolo era que todas éramos pegas
desprevenidas. Exceto Lizzy.
— Você é adivinha ou algo assim? — resmunguei durante um almoço,
encolhendo-me sob sua sombrinha para proteger meus cabelos.
— Não. Eu assisto à previsão do tempo antes de ir para a cama.
Apesar da chuva, parei na rua.
— Mas, você é um gênio! Que idéia brilhante, incrível e inédita!
Embora eu admirasse seu estratagema, jamais teria a paciência para seguir o
exemplo.
Assim, sempre me molho. Sempre sou como o Gorducho, neste aspecto — acho
planejamento prévio um saco! O passatempo favorito do Gorducho é esconder-se sob o
cobertor recém-lavado de Marcus, enquanto seca no encosto de uma cadeira, embora ele
sempre se perca e se enrole sem saída nele. Ainda assim, prefere aventurar-se sobre o
cobertor agora e miar desesperadamente depois. Eu também raramente penso com
antecedência, e sofro as conseqüências disso.
Assim, jamais em um trilhão de anos ocorreu-me que minha mãe e Nana Flo
poderiam ser companheiras e que eu me sentiria rejeitada, tola e ciumenta quando isso
acontecesse. Lizzy, contudo, tem mais discernimento que eu e percebeu, em retrospecto,
que a amizade entre as duas era uma certeza.
Conto-lhe tudo durante o almoço na sexta-feira, já que só então sou capaz de
controlar minhas emoções. Ela assente sabiamente e toma um gole de sua água mineral.
— Suponho que elas têm seu pai em comum, no mínimo — diz.
— Sim, mas sempre tiveram meu pai em comum — acrescento, com minha boca
cheia de maionese de atum. — E isso não fez a mínima diferença.
Eu faço uma pausa, fascinada, enquanto Lizzy extrai elegantemente as alcaparras
de seu molho de oliva e as alinha no lado do prato.
— Por que elas não se davam bem?
Eu franzo a testa.
— Não franze o rosto assim! Você vai ficar com rugas!
— Desculpe — tento pensar sem formar rugas. — Tenho a impressão de que
Nana Flo desaprovava minha mãe.
Ela surpreende-se:
— Por quê? Sua mãe é adorável!
Eu encolho os ombros:
— Bem, embora Nana tenha se esforçado, a verdade é que não aprova mulheres
que trabalham fora. Não mulheres casadas.
Lizzy vira os olhos. Acrescento:
— Sobrava menos tempo para dedicar ao meu pai. Ela jamais foi uma grande
dona-de-casa.
Lizzy dá uma risadinha.
— Então, você tem a quem puxar.
— Tenho outros talentos — digo, sorrindo. — Por falar em sexo, como está
Brian?
(Ainda acho que o cara é um trolha, mas pelo bem de Lizzy eu finjo interesse.
De qualquer modo, estou interessada. De um jeito meio repugnado.)
Lizzy fica ruborizada.
— Está muito bem. Estamos nos dando maravilhosamente.
Arregalo os olhos e me inclino:
— Seja explícita.
Ela dá um enorme sorriso.
— Um dia desses estávamos conversando e eu mencionei, por acaso, que adoro
figos frescos, mas são muito caros. Na noite passada, ele veio à minha casa e trouxe
uma caixa enorme de figos! Era novembro!
Não costumo comer tanta fruta assim e, por isso, não sei como alguém deve
fazer para obter figos frescos em novembro. Não é uma questão de apenas entrar em um
mercado e comprar?
Lizzy interpreta mal a expressão séria em meu rosto e acrescenta, humildemente:
— Ele não é um romântico tradicional, como Adrian é com Tina — todos
aqueles buquês! —, mas eu nunca me preocupei muito com flores, de qualquer maneira.
Não que isso não seja lindo, é claro. Mas os figos! Eu fiquei muito emocionada. Foi um
gesto muito sensível.
Corrijo-a rapidamente.
— Ah, não, eu não pensei nada em contrário, foi realmente bem legal da parte
dele... Se o que deseja é uma namorada peidando a noite inteira, como uma trombeta.
Ela novamente ri.
Subitamente, pára de rir, dá um tapa na mesa como se para redirecionar nossa
atenção para o assunto em pauta, e diz:
— Então, como é que sua vó aprova sua mãe, agora?
— Não faço idéia. Nem mesmo sei se ela a aprova mesmo.
Lizzy responde:
— Mas é claro que sim, se começaram a se encontrar de repente!
Só Deus sabe.
— Ela é esquisita — digo. — Acho que nunca adorou minha mãe, mas sempre
tentou ser educada.
Lizzy assente.
— Ela fez isso por seu pai?
Eu assinto também.
— Suponho que sim.
Depois de alguns segundos, diz:
— Então talvez, agora que seu pai... faleceu, ela ainda esteja tentando ser legal
por ele.
Fico pensando nisso.
— Sim, talvez — concordo. — Talvez seja porque ele não está mais lá para
interferir entre as duas. Mas acho que tem a ver também com minha mãe. Ela nunca
precisou de Nana Flo e agora, talvez, precise.
Lizzy parece excitada.
— Talvez — ela exclama em um tom sussurrante de "adoro quando um plano dá
certo" —, já que Nana Flo perdeu um filho, ela precise de uma filha! Agora que penso
nisso, faz muito sentido!
Critique-me, mas não chegaria tão longe.
— Nana Flo é a mulher menos maternal que já conheci, além de minha mãe. Ela
não é o que chamaríamos de solidária. Ela não impediu que minha mãe cortasse os
pulsos, não é?
Lizzy aperta os lábios.
— Não, mas não é isso que estou dizendo. Como Nana Flo poderia evitar?
Ninguém poderia.
Eu digo:
— Exceto meu pai, se saltasse da tumba, vivo e saudável, não um fantasma,
gritando "booo, te peguei!".
Lizzy vira os cantos da boca para baixo, entristecida com minha irreverência.
— Ah, Helen. Ninguém pode substituir seu pai. Mas, mesmo que sua avó não
seja solidária, tenho certeza de que sente algum carinho.
Este é o problema com Lizzy: acha que todos são tão bons quanto ela. Até eu.
Suspiro e digo:
— Sim, suponho que Nana é melhor que nada.
Penso nos meus esforços para cuidar de minha mãe, e uma pequena voz
defensiva em meu íntimo diz: Mas, Helen, você não é um nada. Você é algo. Sua
culinária é terrível, mas você é alguma coisa. Em voz alta eu digo, com cautela:
— Esquisito minha mãe não ter me contado que estava vendo minha vó, você
não acha?
Lizzy inclina sua cabeça brilhante para o lado e pensa. Depois, comenta:
— Talvez ela tenha esquecido.
E talvez a Terra seja plana e a lua seja um grande pedaço de queijo. E hora de
mudar de assunto. A conversa está sentimental demais e, francamente, depois de
segunda-feira estou de sentimentalismo até os olhos.
— Sabe aquela coisa de esfregar o corpo, que você faz? — pergunto, astuta.
— Sim — Lizzy responde, prestando atenção.
— Eu sempre esqueço. Você passa as mãos na direção de suas mãos e pés, não
é?
Lizzy parece chocada:
— Deus do céu, não! Você passa as mãos na direção do coração! É essencial!
Então, ela dispara numa palestra de dez minutos sobre esfoliação, fricção e
massagem profunda que melhoram a microcirculação e removem toxinas e fluidos
excessivos — e Nana Flo é esquecida. Missão cumprida. Sinto-me aliviada porque, em
nosso próximo almoço, Tina digna-se a unir-se a nós e, portanto, conversas sérias estão
banidas. Na verdade, quase qualquer conversa é banida. Começo com o que presumo ser
um tópico seguro: Adrian.
Eu: (brincando) — Então, Tina, como está o namorado?
Tina: (friamente) — O que você quer dizer?
Lizzy: (diplomaticamente) — Ela, Helen, quer dizer que Adrian parece louco
por você. Imaginamos como ele está.
Tina: (rapidamente) — Bem, obrigada.
Eu: (ofendida): — Não entendo por que você fica nervosa com uma pergunta tão
simples. Não é como se eu estivesse perguntando o tamanho do pinto dele. (Pensando:
de qualquer maneira, algum tempo atrás, quando este relacionamento não era tão
sagrado, você me contou, de modo que até já sei.)
Tina: (nervosa) — Algumas coisas são particulares. Não somos dois
adolescentes!
Eu: (pê da vida) — O que há? Você está com TPM?
Lizzy: (apressadamente) — Tenho certeza que não, Helen, mas tenho um pouco
de flor da noite, se ela estiver. E fantástico, funciona mesmo. Juro!
Tina: (furiosa) — Eu não estou com TPM! Mas que inferno! Vocês não
perguntariam isso a um homem! E não me dêem essa droga de óleo de flor! Eu juro por
Deus, também. É droga pura!
Lizzy: (espantada) — Tina, desculpe. Eu não quis chateá-la.
Eu: (solene) — Nem eu.
Caímos em silêncio. Lizzy remexe nervosamente seus noodles ao vapor, eu finco
o garfo em minha batata assada e Tina faz uma carranca para seu feijão de forno sobre
torradas. Eu cantarolo:
— Feijões, feijões, bons para o coração, quanto mais se come mais se...
— Cale a boca! — Tina berra, batendo seu garfo.
Se você me perguntar, direi que ela anda assistindo muitas reprises do The
Sweeney.
Isto pode parecer loucura, mas quanto mais agressiva Tina se torna, mais sinto
vontade de perturbá-la. Assim, abandono piadas sobre flatulência e ataco com
brincadeiras pessoais. Tina tem herpes labial no ladinho da boca. Eu corto um pedaço de
pele marrom de batata e a grudo em meu lábio inferior.
— Quem é esta?
Lizzy sufoca uma risadinha. Eu percebo a expressão ferida de Tina e desmorono.
Estou sem ar de tanto rir com minha própria palhaçada quando ela salta, coloca-se de pé
arranhando o piso com a cadeira e sai rapidamente.
Congelo.
— Você acha que ela está bem? — Lizzy pergunta, confusa.
— Não sei. Suspiro e largo meu guardanapo. Minha batata está dura como
granito e tem o mesmo gosto.
— Espere aqui — digo. — E minha culpa. Termine seu macarrão.
Mas nós duas saímos correndo do restaurante, atrás de Tina.
— Tina! Pare! Sinto muito! — grito.
Mas ela continua correndo. Felizmente, seus sapatos Prada e sua saia justa não
permitem grandes fugas, e logo a alcançamos. São necessários quatro minutos de
rebaixamento cinco estrelas para que ela concorde em deixar que lhe paguemos um
café.
Desta vez, Lizzy e eu restringimos a conversa às nossas vidas amorosas. Ou, em
meu caso, à falta de uma.
Lizzy: (timidamente) — Eu adoraria se vocês duas pudessem conhecer Brian.
Alguma está livre amanhã à noite?
Tina: (friamente) — Obrigada pelo convite, mas acho que estarei ocupada.
Eu: (orgulhosamente) — Também.
Lizzy: (depois de pensar um pouco) — Ah. Que compromisso você tem, Helen?
Eu: (recatadamente) — Um encontro com Tom. Você sabe, o veterinário.
Lembra-se de Tom, Tina?
Tina: (mais tranqüila) — Claro que sim, Tequila Girl!
Eu: (subitamente, louca para mudar de assunto) — De qualquer modo, Lizzy,
daremos um jeito de conhecer Brian uma hora dessas.
Tina: (vingando-se) — Então, Tom está na roda de novo? Eu não sabia que ele
gostava de esportes aquáticos.
Eu: (com o sangue subindo à cabeça) — Cale-se, não seja nojenta!
Lizzy: (parecendo confusa) — O que foi? Não entendi!
Eu: (rapidamente) — Deixe para lá. Então, onde você vai com Brian amanhã?
Tina: (intrometendo-se) — Ei, Helen, conte-nos mais sobre Tom. Até onde
vocês já foram?
Eu: (fuzilando-a com o olhar) — Não é nada disso. De qualquer modo, "algumas
coisas são particulares".
Tina: (rancorosa) — Em outras palavras, vocês não chegaram a lugar nenhum.
Eu: (defensiva) — Quem disse que eu queria chegar a algum lugar?
Tina: (sarcástica) — Então é platônico? Ah, tá. Parece que acredito.
Eu: (irritada) —Acabei de romper com Jasper! Por que sempre tenho que estar
transando com alguém?
Tina: (implicante) — Que tal você mesma dizer?
Eu: (magoada) — Obrigada por esta.
Tina: (nem um pouco arrependida) — Sinto muito, Helen, mas você está sempre
rompendo com Jasper.
Lizzy: (tendo finalmente a chance de enfiar o bedelho) — Queremos apenas o
melhor para você. Só isso. E Jasper, bem, ele não é sempre muito inteligente.
Eu: (embaraçada) — Blá-blá-blá. Deixem Jasper fora disso.
Tina: (triunfante) — Fizemos isso, até que você mesma mencionou-o!
Lizzy: (desesperada) — Por que nós todas não saímos em algum dia desta
semana? Levarei Brian, e vocês duas podem levar quem quiserem, ou pode ser apenas
nós quatro. Que tal sexta-feira?
Eu: (vencida) — Tudo bem. Mas provavelmente irei sozinha.
Tina: (contente) — Verei se Adrian está livre.
Sinto-me aliviada por voltar ao trabalho e me ver livre delas. E me dano. Laetitia
manda-me prontamente de volta à rua para comprar-lhe um desodorante sem perfume.
— Como você quiser! — gorjeio e saio correndo.
Ao voltar, Laetitia pede que eu ligue para um especialista, obtenha uma citação
sobre "violência doméstica", e começo a dar telefonemas imediatamente. Geralmente
adio isso, remexendo nos pedaços de papel em minha mesa por pelo menos meia hora,
em preparação. Sei que Laetitia está impressionada por meu entusiasmo atípico esta
tarde, porque quando digo alto "acabei!", dez minutos depois ela responde:
— Bom.
Ela disse "bom" para mim apenas duas vezes antes: a primeira quando passei a
mensagem de que a astróloga da GirlTime estava ameaçando demissão, e a segunda
quando avisei-a de que alguém chamado Oliver Braithwaite ligara, "com relação ao fimde-
semana de caça". Sorrio e respondo:
— Foi um prazer.
Preciso de cada pequeno ponto que possa acumular. Estou tentando, também,
evitar pensar no fato de que, na quinta de manhã, minha mãe terá sua primeira consulta
com a enfermeira de doidos (a enfermeira virá até mamãe, já que esta recusa-se a ir até a
clínica).
Decido que de agora em diante serei ultra-eficiente, até forçar Laetitia a
promover-me a redatora júnior de artigos. Ela não desejará fazer isso, é claro, mas não
terá escolha. O pensamento sobre minha ascensão iminente à grandeza, e sobre a
riqueza e congratulações que isto trará, me alegra. Talvez confiem a mim a redação da
seção "Acontece" e eu conduza entrevistas com artistas secundários de novelas e
alguma pobre inocente me substitua, sem saber, como monitora de desodorante. É claro
que precisarei comprar roupas novas.
As cinco da tarde, fui promovida (em minha mente) à editora-chefe. Decido
levar minha mãe para jantar fora, já celebrando.
Brrrrg, brrrg! "Residência Bradshaw!", cacareja a rainha. Ou, para falar a
verdade, Nana Flo, em sua voz ao telefone. Recupero-me com rapidez suficiente para
dizer, em tom amistoso:
— Alô, Nana, é Helen. Como vai você?
— Não posso me queixar, Helen. O que posso fazer por você?
Helen?! Ela nunca me chama por meu nome! Será que isso é o início da
senilidade? Ou ela tem assistido It's a Wonderful Life, e a euforia ainda não se dissipou.
A seguir, começará a chamar-me de bombonzinho!
Divertida, peço para falar com mamãe.
— Como ela está? — pergunto rapidamente (é melhor prevenir-me).
— Não tão mal — diz Nana Flo rapidamente. — Temos nos ocupado.
Oh!...
— Com quê? — pergunto, intrigada.
— Limpando armários — ela responde com sarcasmo.
Aperto meu nariz com o polegar e o indicador, para suprimir uma risada. Que se
faça justiça!
— Na verdade, Nana... — falo, quando readquiro a compostura. — Eu, hum, não
preciso falar com mamãe, posso falar com você.
Há uma pausa.
— Sim? — ela late.
Limpo a garganta e digo:
— Gostaria de levar você e mamãe para jantar na quinta-feira, se ambas
estiverem livres (este último pedaço foi uma cortesia).
Quando Nana Flo responde, sua voz está dura como sempre:
— Será que você tem dinheiro suficiente?
Mas, que desaforada!
— Sim — digo (não é totalmente mentira, já que terei quando tirar o dinheiro
com meu cartão de crédito).
— Então — cantarola minha avó—, não vejo porque não.
Sorrio e exclamo:
— Feito!
— O quê? — Nana Flo pergunta.
CAPÍTULO 22
Passo por mais momentos embaraçosos do que a maioria das pessoas. Um dos
primeiros ocorreu quando eu tinha quatro anos — meus pais levaram-me para um
passeio pelo Regents Park, em um sábado de manhã, e estavam tão envolvidos um com
o outro que não perceberam que eu ficara para trás, hipnotizada pelo imenso peixe
alaranjado no lago ornamental. Quando olhei em volta, meus pais haviam sumido e o
parque estava cheio de pessoas assustadoras. Corri entre elas, em pânico, tropeçando e
arrastando meus sapatos de couro preto. Finalmente, localizei meu pai pelas costas e
enfiei minha mão na sua. Ele olhou para baixo e olhei para cima — vi o rosto confuso
de um estranho. Felizmente, por ser pequena e engraçadinha, o estranho achou aquilo
engraçado e me ajudou a localizar meu pai.
Meu último episódio embaraçoso ocorreu esta manhã e, uma vez que não sou
mais pequena nem engraçadinha, as testemunhas não demonstraram clemência. Eu
havia comido alguma coisa de desjejum e estava aperfeiçoando quem eu seria à noite,
no espelho do banheiro. Como não tinha certeza de como queria apresentar-me para
Tom, estava experimentando. Será que o melhor é um chilreante "oooiii!" e um beijinho
estalado no rosto? Ou o mais sofisticado "como vai?", acompanhado por um sorriso de
boca fechada? Ou, talvez, um sexy e estonteante "olá, Tom", seguido por uma contração
enigmática dos lábios?
Eu estava encenando arduamente essas possibilidades quando percebi aquilo que
os escritores de suspense chamam de "uma presença à espreita". Girei era meus
calcanhares e ali, na porta do banheiro — que, em meu entusiasmo, eu esquecera de
fechar —, estavam Luke e Marcus, com os punhos enfiados em suas bocas tentando
controlar as risadas.
— Fora daqui! —, berrei, enquanto os dois dobravam-se de rir e diziam
gracinhas, como "que tal borrar um pouco meu batom?". Bati a porta na cara deles,
guinchando. — Eu não disse isso! — Sentei no assento do vaso sanitário, com a cabeça
entre as mãos.
Minha vergonha reverbera durante a manhã inteira, perturbando minha nova
resolução de ser eficiente. Não consigo concentrar-me no trabalho. Finalmente, não
posso mais suportar e sou forçada a desabafar com Lizzy.
— Estou com síndrome de estresse pós-traumático — digo irritadamente,
enquanto ela tenta não rir.
— Helen, você não deve preocupar-se com esta noite! Seja apenas você mesma!
Rolo meus olhos e volto à minha mesa. O telefone toca e eu não atendo. Pode
ser Tom cancelando, mas como Laetitia tem um ataque se deixo tocar mais de duas
vezes, sou obrigada a ver quem é.
— Alô? — digo, cantarolante. — Redação! (esta é uma tentativa de me passar
por uma mulher com uma carreira em ascensão, em vez de uma ridícula lambe-pés).
Percebo, com tristeza, que meus esforços foram em vão, já que é minha mãe. Qual é a
bomba, agora?
— Oi, mãe. E aí?
Preparo-me. Pode ser que Nana Flo tenha esvaziado o armário de meu pai e
doado todas as suas roupas para um asilo. Ou então, ela está deixando minha mãe ainda
mais louca com seus "e se's...". Pode ser que Nana Flo esteja forçando mamãe a assistir
ao leilão de antiguidades na TV. Ou chamando-a de mão-fechada, porque minha mãe
não compra salsichas em lata.
— Estou exausta — ela diz, com petulância.
Descubro que, noite passada, minha mãe sentiu-se enjoada e desceu ao térreo às
duas da madrugada para procurar algum comprimido para sua náusea. Ela vasculhava a
caixa de primeiros socorros, quando a porta da cozinha foi aberta subitamente — "quase
morri de susto" — e o vidro de comprimidos foi arrancado de suas mãos por uma Nana
Flo triunfante. Aparentemente, minha vó disse-lhe que "enquanto eu estiver nesta casa,
você tratará de agir com juízo!". Suspeito que minha mãe está irritada, mas também
emocionada. Ela termina a conversa dizendo:
— Não sou levada para jantar fora desde meu aniversário de casamento. Onde
iremos?
Não tenho a mínima idéia, mas digo rapidamente:
— Há um restaurante tailandês perto de Islington que parece agradável. Eles
fazem chá de jasmim.
Minha mãe silencia por alguns segundos e depois diz:
— Parece bom. Acho que nunca provei culinária tailandesa.
Eu sussurro:
— Pegarei você e Nana às oito — e desligo o telefone.
Olho para minha mesa e a primeira página do Mirror turva-se. Pisco e tudo
readquire o foco. Acho que minha mãe jamais expressou — prazer é uma palavra forte
demais — positividade ante a perspectiva de minha companhia. Esta é a primeira vez
que a levo para jantar fora.
A tarde se arrasta. Laetitia estraga-a ainda mais, pedindo que eu organize o
arquivo de faturas. Embora eu esteja entediada ao ponto de berrar, tento manter minha
aura de eficiência. Finalmente, Laetitia espia sobre seu computador, olha-me com
suspeita e diz:
— Helen, eles aumentaram a dose de seu remédio?
Ela sacode-se, rindo.
— Ha, ha, ha... — digo, sem humor.
As piadas de Laetitia são tão raras quanto reduções nos impostos, tão engraçadas
quanto câncer. Imagino como poderei manter a fachada de ética profissional quando
pretendo sair às seis da noite em ponto (é essencial chegar em casa às seis e quarenta
para ter moderados oitenta minutos para embelezar-me).
Laetitia alivia meu dilema às cinco e meia da tarde, quando pega seu casaco e
vai embora. Nada de besteiras tipo "tchau, até amanhã". Laetitia é invejável — embora
pessoalmente eu não a suporte —, no sentido de que não faz o menor esforço para que
gostem dela. Não consigo agir com a mesma convicção. Por exemplo, odeio e desprezo
Marcus, mas não consigo sentir-me bem se ele me odeia e despreza. Quanto a Jasper,
sinto impulsos assassinos e carinho ao mesmo tempo. Ele me faz lembrar o príncipe
Philip. E um panaca, mas não consegue ser diferente. Embora, não saiba nada, sobre
Jasper, desde que foi morar com Louisa, preciso que ele me admire. Essas bobagens
pueris giram por minha mente até o momento em que entro em meu apartamento. Então,
proíbo todos os pensamentos sobre Jasper e Marcus, e volto minha atenção para a tarefa
fenomenal de lavar e pentear meus cabelos para deixá-los com uma aparência
socialmente aceitável.
Tom toca a campainha às oito e dez da noite. Suspeito de tanta pontualidade,
imagino se ele não chegou antes e esperou no carro. Sinto uma ponta de irritação —
nem cedo demais, nem tarde demais, perfeitamente dentro do horário. Como cachinhos
dourados e o mingau. Ela era uma pestinha meticulosa. Aposto que Tom é um daqueles
homens que pedem a conta rabiscando elegantemente com um dedo na palma da outra
mão. Como Marcus. Ah! Chega de Marcus! Jasper, pelo que me lembro, levanta a mão
lânguida e a garçonete vem correndo.
Ando até a porta e belisco meu braço, para exorcizar meus pensamentos bobos,
frívolos e desanimadores. Qual é o problema comigo? Espero que Tom não esteja
usando nada assustador, como um paletó. Abro a porta para enfrentar meu destino. Tom
sorri para mim e suspiro aliviada, sorrindo também. Ele usa jeans, uma camisa verde de
algodão aberta, com camiseta branca por baixo, e sapatos marrons confortáveis. Tempos
atrás, eu faria uma anotação mental de cada item e depois contaria para Tina, para saber
se ele está na moda ou não. Mas como Tina abandonou silenciosamente sua posição
como minha conselheira pessoal de moda, e Tom parece incrivelmente lindo, não me
importo.
— Você está linda — ele diz, beijando-me no rosto.
Penso duas coisas: a) Será que ele também praticou este cumprimento no
espelho?; e b) Bom, espero mesmo que sim, depois de uma hora e meia maquiando-me,
vestindo-me e fazendo as sobrancelhas. Isso eu devo a Lizzy. Esta manhã, depois de
dizer "seja apenas você mesma", ela contou-me que seria bom eu tirar um pouco das
sobrancelhas. Suas palavras exatas foram: "Sobrancelhas são muito importantes, são a
corda de roupas onde você pendura seu rosto. É um elemento básico da beleza."
Aproveitei a dica, folheei um exemplar de Glamour até encontrar um par de
sobrancelhas invejáveis e tentei copiá-las. Não sei se tive sucesso absoluto, mas Tom
diz que estou linda. Funcionou!
— Obrigada, você também.
(Lizzy comentou sobre a importância de aceitar cumprimentos: "Se você não
aceita bem, a pessoa que a elogiou sente-se insultada.")
De repente, descubro que estou sem palavras. Então falo:
— Então, e... Entre, humm, você quer um café — quase digo a frase imortal da
devoradora de homens, "algo mais forte", mas consigo evitar a tempo —, uma cerveja
ou algo assim?
Tom faz um sinal para a sacola plástica que trouxe, e diz:
— Um cliente me deu uma garrafa de vinho tinto esta manhã. Poderíamos abrila,
se você quiser.
Percebo que estou parada feito um poste ali, de modo que levo Tom até a
cozinha. Há uma leve confusão enquanto o Gorducho sai correndo para o corredor do
prédio por sua própria portinha, depois que fecho a porta. Tom segue-me com
obediência.
— Então, como está sua mãe? — ele pergunta, educadamente.
— Bem, obrigada — digo, decidindo que minha mãe não vai roubar minha
noite.
— Ah, é? — incentivando-me a continuar.
— Minha avó está cuidando dela — acrescento, tentando cortar o assunto,
enquanto tiro a rolha do vinho e derramo pelo menos metade em duas enormes taças.
Comprei-as para mim, já que as de Marcus são muito pequenas. Para combinar com o
resto dele, imagino. Depois, como sempre acontece comigo, rompo meu voto e conto a
Tom "a curiosa fábula dos encontros secretos de vovó".
— Eu via minha mãe três vezes por semana. Por que ela não me contou? —
pergunto, odiando-me por ainda me preocupar com isso.
Tom parece intrigado.
— É esquisito. Posso estar errado, mas isso parece manipulação. Algo ligado a
poder.
Fico em silêncio. Tomo um enorme gole do vinho. Chame-me de ingênua, mas
até este instante eu imaginava que sempre fizera quase tudo como eu bem desejava,
apesar de mamãe. Contudo, agora que Tom mencionou isso, percebo a possibilidade de
sempre ter feito as coisas como mamãe desejava — e, se não fiz, ela levou-me
rapidamente de volta ao caminho certo, talvez cortando os próprios pulsos para
conseguir isso.
Pergunto, lentamente:
— Você acha isso mesmo?
Tom examina minha expressão e diz rapidamente.
— Não conheço sua mãe. É apenas um palpite.
Depois de alguns segundos, digo, com voz insegura:
— Ela realmente adora ser o centro das atenções. Mas talvez simplesmente não
tenha lembrado de contar, ou achou que eu não me interessaria.
Então, percebo que Tom e eu estivemos sentados na cozinha discutindo minha
mãe adoradora de atenção por vinte e oito minutos inteiros. Que frustração!
— De qualquer modo, chega disso — falo, mais animada. — Conte-me sobre
seus pais.
Tom remexe-se em sua cadeira e diz, provocando-me:
— Acho que você não quer realmente saber.
Eu não queria, mas agora estou intrigada.
— Conte-me!
Assim, ele fala. Em cerca de três segundos. Seus pais divorciaram-se quando ele
tinha cinco anos. Sua mãe casou-se novamente, três anos depois, e ele considera seu
padrasto como se fosse seu pai verdadeiro. Sua mãe é "um diamante" e seu padrasto,
"um grande cara". Ele não vê "o primeiro marido da mamãe". Pelo modo como fala, sei
que não deseja entrar em detalhes.
— Por quê? — pergunto. Ele encolhe os ombros e me diz que nunca se deram
bem. — O quê? Nem quando você tinha quatro anos? O que há para não se gostar em
uma criança?
Percebo seu desconforto e acrescento, rapidamente:
— Você não precisa me dizer.
Ele ri e diz:
— Não, nada sinistro! Ele simplesmente não era muito chegado a crianças. Não
era só comigo. Agia assim também com meu irmão e irmã. Mamãe era, acho que
sempre foi, liberal. Você sabe, do tipo que não se importa se as filhas brincam com
tratores e os meninos choram, e seu marido era o oposto. As meninas deveriam usar corde-
rosa e se vestir como bonecas, e os meninos deveriam usar azul e usar roupas de
cowboys.
Sirvo-me de mais vinho. Tom mal tocou o seu, mas completo sua taça mesmo
assim, para que eu mesma pareça menos chegada a uma birita.
— Então — digo, desesperada para saber a resposta mas consciente de estar
pisando em terreno delicado —, você gostaria de... — enquanto as palavras formam-se,
lembro a mim mesma de que é crucial ter muita cautela — Será que devo usar cor-derosa?
Pisco ante minha própria estupidez.
Ele ri.
— E se eu usasse? — ele pergunta, levantando uma sobrancelha.
— Não teria importância. Nenhuma mesmo — falo, pensando, eu deveria saber.
Ele é gay.
Os melhores caras sempre são. Se não, são casados. Ou ambos. Eu sabia que
havia algo errado aí. Agora o ofendi. Estou preocupada com meu fluxo de pensamento
estreito e confundido pela bebida, e não escuto o próximo comentário de Tom. Preciso
pedir que repita. Então ele revela que, aos quatro anos, adorava pintar, até o dia em que
o primeiro marido de sua mãe agarrou-lhe o pincel e o partiu em dois, dando-lhe uma
bofetada em seguida. Então ele parou de pintar e desde então nunca mais tentou.
— Isso é horrível! — falo, com a tragédia gótica da situação intensificando-se
em proporção direta com meu consumo de álcool.
— Não muito — ele diz, sorrindo. — Minha mãe deu-lhe um chute no traseiro
dois dias depois e todos vivemos felizes desde então. Não está na hora de sairmos para
comer uma pizza?
Eu concordo e respondo, recatadamente:
— Podemos até esbanjar e comer duas.
Pegamos um táxi até o Pizza Express, porque Tom lembra que é impossível eu
andar com meus saltos tão altos. A conversa progride até a certeza de que Scooby-Doo
se sairia muito melhor sem seu parceiro Salsicha e que, mesmo se não podemos ter uma
impressão exata sobre Scooby-Doo — ou, na verdade, sobre qualquer personagem de
desenho animado —, o fato de termos dedicado um tempo precioso e esforço doloroso
para isso torna-nos dignos de respeito. Tom faz uma imitação soberba de Scooby-Doo,
que o faço repetir nove vezes. Ele admite que minha imitação de Marge Simpson é
fantástica. Meu talento torna-me a feliz ganhadora da última fatia de pizza.
Percebo que Tom não fala de boca cheia e que, quando chega o momento de
pegar a conta (os funcionários começam a empilhar cadeiras sobre as mesas), ele não
faz um floreio no ar. Nós tagarelamos alto até o apartamento, sei que esta será uma boa
noite.
CAPÍTULO 23
Nunca acreditei que tudo que vai acaba voltando. Assim, não considero a
vingança um capricho medieval. Eu mesma trato de implementá-la. Por esta razão,
recortei recentemente o número de um telefone de auxílio vinte e quatro horas da seção
de problemas do The News of the World e o afixei no mural de Marcus. Tão logo ele
emergiu de seu quarto domingo passado, refugiei-me na cozinha, puxei uma cadeira e
fingi concentração no The Spectator. Marcus deu uma olhada em meu material de
leitura e se tornou imediatamente suspeitoso. Cinqüenta segundos depois, ele viu o
recorte de "seu sexo é pequeno demais?", arrancou-o da parede e o enfiou na lata de
lixo.
Eu esperava um ataque de fúria, mas em vez disso, ele encostou-se pesadamente
contra a pia, cruzou seus braços musculosos e me olhou em um silêncio ameaçador.
Embora, eu soubesse que ele copiara esta técnica de intimidação de um filme de Robert
De Niro, ela funcionou. Eu começava a contorcer-me quando Michelle entrou, com a
cara inchada de sono e cabelos em pé, miando por um café preto. Iniciei minha retirada,
suspirando de alívio. Mas suspirei cedo demais, porque Marcus é do tipo para quem a
vingança é um prato que se serve frio. Ele escolheu a terça-feira para servi-lo a mim.
Tom e eu entramos alegres no apartamento, tagarelando sobre os méritos
relativos de duas marcas de chocolate, quando meus olhos bateram na visão menos
agradável que já tive desde o último vômito do Gorducho (que foi lançado do alto de
uma estante, por falar nisso). Marcus, sentado em sua mesa entalhada de carvalho,
folheando o último número de Musclebound e tomando um milkshake de banana. Parei
de repente, em estado de choque, com a excitação encolhendo. Tom parou também,
quase colidindo comigo.
Marcus sorriu como um tubarão.
— Bem, bem, bem...— disse, num tom aterrorizante. Então este é, Tom.
Eu cheguei a pensar que ele daria uma gargalhada e acrescentaria: "Olá,
belezinha."
Estava petrificada.
— Tom — falei, tentando parecer calma —, este é meu locador, Marcus.
Tom, o inocente, sorriu amplamente:
— Oi!
Eu, a culpada, retorci minhas mãos e disse:
— Marcus, é tarde para você estar acordado.
Marcus deu outro sorriso de tubarão-martelo.
— Não consegui dormir. Mas, ei —, ele abriu suas mãos com os braços
estendidos, em um gesto de desamparo —, tudo tem um propósito! Agora, eu posso
trocar umas idéias com vocês dois.
"Trocar umas idéias!" Francamente!...
Ele continuou:
— Já ouvi falar muito de você, Tom.
O quê? Mas é claro que não ouviu! Olhei para Marcus horrorizada.
— Acho que nem mencionei o nome dele para você.
O nervosismo em minha voz fez com que Tom me olhasse.
Marcus riu:
— Bancando a tímida. — Ele gargalhou, olhando para Tom. — Ela sempre faz
isso com seus homens! Todas as semanas!
Isto era sério. Falei, irritada:
— Marcus, deixe de brincadeiras. Por favor!
Tenho dificuldade em pedir favores, Marcus sabe disso. Ele olhou-me com
expressão vazia por um segundo, antes de acrescentar:
— Hoje de manhã, ainda, ela estava no banheiro, pratic...
Tom e eu o interrompemos ao mesmo tempo. Tom começou:
— Acho que não quero...
Mas falei mais alto:
— Marcus, embora eu realmente adorasse ficar e conversar sobre sua revista
Barrigas e Bundas, sinto-me exausta e preciso acordar em, ah, cinco horas e meia. Tom
está de partida, despeça-se dele.
Empurrei Tom para fora da cozinha. O que mais eu poderia fazer? Levá-lo para
meu quarto? Embora eu admita que Marcus fez com que eu parecesse uma vagabunda,
este era o plano. "Meus homens?!" Até parece. Enquanto levava Tom para o corredor,
murmurei:
— Desculpe-me por ele. Deve estar tendo alucinações por causa dos esteróides.
Ele os consome como se fossem balas.
Tanto quanto sei, isso é mentira, mas eu estava desesperada.
Tom respondeu solemente:
— Acho que é isso mesmo — fez uma pausa. — Ele é meio maluco, não?
Concordei vigorosamente:
— Completamente.
Houve uma outra pausa incômoda, durante a qual amaldiçoei Marcus a
apodrecer no inferno. Ele deve ter tomado aulas com Michelle. Não que precisasse, é
claro.
Sorri de um jeito tenso para Tom e falei:
— Bem, obrigada. Foi realmente bom vê-lo.
Tom sorriu-me também.
— Igualmente. Gostei — terceira pausa. — E melhor eu ir. Ligo para você uma
hora dessas.
Uma hora dessas? Isso significa "nunca".
— Ótimo — falei, fazendo uma mesura.
Tom inclinou-se e rapidamente me beijou o rosto. A quilômetros de minha boca
— praticamente em minha orelha. Beijei-o também, aproveitando ao máximo o
cheirinho de sua loção pós-barba, e o levei até a porta.
Depois, fui direto para a cama puxando o cobertor sobre minha cabeça para
bloquear o som de Marcus assoviando o tema de Pretty Woman.
Lizzy recusa-se a crer que algo está errado.
— Tenho certeza de que Marcus estava brincando — diz, fazendo com que eu
deseje estrangulá-la.
— Ele disse que levo um homem diferente para casa a cada semana! —
exclamo, agitada. — Isso não é uma brincadeira. E calúnia!
Laetitia, que está ouvindo, intromete-se:
— Difamação! A menos que seja verdade. Ha, ha, ha!
Eu sorrio docemente para ela e cerro os punhos sob minha mesa. Algum dia,
quando for rica e bem-sucedida, patrocinarei uma tarântula no zoológico de Londres e
lhe darei o nome de Laetitia Stokes. Confidencio esta ambição à Tina, que está com um
raro bom humor e diz, alegre:
— Aposto que custa muito pouco, você poderia fazer isso amanhã!
Isso me anima, de modo que, quando Laetitia sai para fumar na rua, ligo para o
zoológico de Londres e sou passada para o setor responsável pelas adoções. Para minha
decepção, "uma tarântula inteira" custa setenta libras, embora eu possa adquirir cotas de
uma, por trinta e cinco libras. Será mais econômico.
— E posso dar o nome à tarântula? — pergunto, astutamente.
— Temo que não — é a resposta delicada —, porque você estará adotando a
espécie, não o indivíduo. Assim, não aparece nenhum nome na placa. Mas você pode
dar um nome e chamá-la por ele em particular.
Qual é a vantagem disso? Agradeço pelo tempo que tomei do funcionário e
desligo.
O resto da quarta-feira vem e vai, e Tom não liga. Sinto-me tentada a ligar
quinta-feira, mas não posso, já que estou fora do escritório durante a maior parte do dia,
abordando mulheres na rua para uma matéria de oito páginas sob a responsabilidade de
Laetitia, intitulada "O fora mais feio que já dei em um homem." Sei exatamente por que
ela quis a matéria. Os condes estão escassos ultimamente e Laetitia tem saído com um
banqueiro. A família do homem comprou sua própria mobília e — embora a de Laetitia
tenha feito o mesmo — isso é decepcionante, de modo que ela está tentando puni-lo.
Pobre homem. Assim, meu castigo é fazer esta pesquisa. Volto ao escritório às cinco e
meia da tarde.
— Alguém ligou? — pergunto, esperançosa.
— Sua mãe — Laetitia responde, curta. — Como foi?
— Bem, foi bom, obtive uns depoimentos ótimos.
Laetitia ignora-me.
Caminho pesadamente até minha mesa e ligo para mamãe.
— Vi meu enfermeiro da clínica hoje — são suas primeiras palavras. Deus o
proteja!
— Como foi? — pergunto, já com medo, depois acrescento. — Na verdade, não
me conte agora, fale sobre isso depois. Reservei o restaurante para as oito e vinte da
noite. Você e Nana ainda estão a fim?
Minha mãe responde, em seu melhor tom de rainha ofendida:
— Bom, obrigada, mas se com "a fim" você quer dizer que ainda planejamos
jantar com você, a resposta é sim.
Eu rio e digo:
— Não seja pomposa, mãe. Não sou um de seus alunos. Vejo você mais tarde.
Estou quase desligando quando ela pergunta, depressa:
— O que devo vestir?
Eu penso um pouco e recordo que lhe disse que o restaurante era em Islington,
quando o correto seria ter-lhe dito que é em Holloway (uma diferença de apenas meio
quilômetro, mas o bairro é tão decadente e feio quanto Islington é chique e elegante).
— Vista algo casual — falo, saindo pela tangente. — Até lá!
Suspiro aliviada e ponho o gravador na minha frente.
Estou procurando uma desculpa para adiar a transcrição das entrevistas, quando
— aleluia! — o telefone toca.
— Alô! — atendo alegremente, rezando para que não seja mamãe outra vez.
— Helen? — diz Tom.
— Oooiii! — eu respondo. Quando ele pergunta como estou, posso dizer, por
sua voz, que Tom está sorrindo. Dentinhos de lobo. Rrrr!
— Bem... — respondo, imaginando se ligar para uma mulher dois dias depois de
um encontro é considerado boa ou má etiqueta para homens. — E você? Ele diz que
está bem, e que imaginou se eu estaria livre no fim-de-semana. Isto é meio vago. Será
que ele poderia ser mais específico? Quero dizer, se eu digo que estou livre no sábado à
noite e então ele diz que quis dizer no domingo, que tipo de bobalhona isso me torna?
Mas, ao mesmo tempo, ele está tão entusiasmado! Isso tira um pouco de seu charme.
Não consigo evitar, acho isso meio brochante. Sou atingida por uma idéia brilhante.
— Você está livre amanhã à noite? — pergunto. — A gente vai sair para beber
alguma coisa. Tina estará lá. Você lembra de Tina, não?
Posso ver um sorriso novamente, enquanto Tom responde:
— A noite da tequila. Como eu poderia esquecer?
Pela segunda vez, em cinco minutos, desligo o telefone com alívio. Mas estou
também desapontada. Por que ele não teve a decência de esperar mais alguns dias, de
bancar o difícil? Isto é altamente inquietante e me preocupo com o assunto, até perceber
que são seis e meia da noite e já passou muito do horário de ir embora. Tranco meu
gravador na gaveta.
— Começarei a transcrever logo que chegar, amanhã! — grito para Laetitia,
enquanto estou saindo. Ela me ignora.
Estaciono na frente da casa de mamãe às oito em ponto e vejo Nana Flo
espiando por trás da cortina. Eu buzino e aceno. Uns bons dez minutos depois, ela e
minha mãe saem. Nana está usando um casaco roxo desbotado que bem poderia ter sido
feito de cardo. Seus cabelos grisalhos estão presos no alto e parecem prestes a despencar
sob o lenço em sua cabeça. Minha mãe usa pó facial e batom, e carrega uma bolsa preta
brilhante. Imagino quando foi a última vez que minha avó comeu em um restaurante.
— Vocês duas estão muito bem! — digo, esperando estabelecer o humor da
noite.
Nana grunhe. Minha mãe fala:
— Estou bem, mesmo?
Digo-lhes que o lugar aonde vamos chama-se Nid Ting.
— Que tipo de nome é este? — Nana Flo pergunta.
— Um nome tailandês — respondo, imaginando por que ainda me importo.
Estaciono na esquina.
— Meio escuro aqui, não é? — minha mãe comenta, alto.
— Não seria muito chato se todos os lugares fossem como Muswell Hill? —
digo, alegre, rangendo os dentes.
Entramos e — para meu alívio — recebemos uma mesa confortável em um
cantinho. Nana Flo olha para o carpete com padrões vermelhos, as toalhas cor-de-rosa,
os budas nas janelas e estreita os lábios. Quando a garçonete oferece-se para tirar-lhe o
casaco, Nana agarra-se a ele e retruca:
— Não, obrigada!
Ela torce o nariz, desprezando a tigelinha com biscoitos de caranguejo.
— São biscoitos tailandeses, Nana — falo —, com sabor de caranguejo.
Minha mãe mastiga-os alegremente e diz:
— Sabe, acho que vou pedir uma taça de vinho!
Nana examina os outros comensais e demonstra desprezo, especialmente por um
homem magricelo usando um piercing no queixo e jeans baggy.
— Selvagem! — ela diz, sibilando. — Isto é uma desgraça! Vejam só as calças
dele. Nunca vi tamanho desperdício de tecido. Ele me faz lembrar aquele moleque que
apareceu esta manhã, Cecelia.
Embora seja emocionante escutar as opiniões radicais de Nana Flo, aproveito a
chance para calá-la:
— Que moleque? — pergunto, olhando para minha mãe.
— Meu enfermeiro! — ela responde.
— Ohhhh! — digo, e isso é todo o incentivo que ela precisa para ingressar em
um monólogo tão longo quanto a história do mundo. O enfermeiro de mamãe não é
absolutamente o que se esperaria. Na verdade, quando ele tocou a campainha ela
presumiu que fosse "um pedinte". Apenas depois de inspecionar suas credenciais e ligar
para a clínica, a fim de verificar sua autenticidade, deixou-o entrar (felizmente para ele,
Nana Flo estava em Asda, durante sua visita). Mas não se pode culpar mamãe. Um
cavanhaque e longas costeletas! Um brinco em uma das orelhas! Uma mochila! Calças
do exército! Como ela poderia saber?! Ela esperava uma senhora usando uniforme
branco. Seu nome era Cliff.
Surpreendentemente, Cliff era "charmoso". Extremamente desembaraçado,
muito preocupado. Lamentando, ouviu sobre o incidente da lâmina e, interessado, quis
saber o que aconteceu e como minha mãe sente-se agora, ao ver o ferimento e ao
inspecionar a caixa especial que ela comprou para guardar seus comprimidos. Ansioso
por ver as fotografias de Morrie, curioso acerca de como mamãe e papai conheceram-se
(Cliff conhece pessoas que também se encontraram pela primeira vez em um baile, em
uma casa de danças chamada Ministério). Também é compreensivo sobre os horrores da
manutenção de veículos. Ele não sabe nada sobre carros, prefere bicicleta, então deixa
que seu colega lide com esses assuntos, como se pode tratar desses assuntos quando a
pessoa responsável pela manutenção do carro morre? Cliff nem consegue imaginar
como é difícil para minha mãe enfrentar a vida sozinha. Ela contou-lhe como conseguiu
viver até conhecer papai? Ele encanta-se ao ouvir sobre o quartinho pequeno que ela
alugou depois de sair da casa dos pais e que pintou sem ajuda de ninguém — algo
bastante impressionante para a época, embora atualmente nada mais surpreenda. Ele
suspeita que mamãe está sendo modesta — ela parece tão auto-suficiente! Totalmente
impressionado ao ouvir sobre o talento recém-descoberto de mamãe para as finanças —
que grande feito! Mas, ainda assim, deve ser difícil não sentir rancor por alguém que
morreu — como ela se sente? Ele pede para ver a casa toda. Quando minha mãe diz que
Cliff pediu para ver a casa toda, Nana Flo — que esteve quieta, devorando seu peixe no
vapor e arroz branco depois de ter fingido desprezo — retruca:
— Fazendo um inventário do local!
Minha boca abre-se.
— Perdão?
— Florence assistiu Starsky e Hutch hoje à tarde pela TV a cabo — explica
minha mãe. — Você gostou, não é, Florence?
Nana Flo sacode os ombros e diz, mal-humorada:
— Não é mau, comparando com o lixo que se faz atualmente.
Com todo o lixo que a mantém com o traseiro colado no sofá, digo mentalmente.
Em voz alta, falo:
— Ele realmente parece um pouco intrometido, mãe. Tem certeza que é legal?
Minha mãe mostra-se muito defensiva. Cliff é um garoto adorável.
— Ele fumou droga dentro de casa! — vocifera Nana Flo.
Franzo a testa e olho para mamãe, que diz, tentando ter paciência:
— Florence, aquilo é um cigarro de palha. E apenas cigarro como outro
qualquer, mas feito em casa. E ele pediu minha permissão.
Minha mãe olha suplicantemente para minha avó, mas — para citar minha antiga
professora — a ausência de resposta é a mais dura resposta.
Assim, ouvimos mais sobre Cliff.
— Ele está muito interessado em ouvi-la, Helen. Disse que seria muito bom
conversar com você, de modo que lhe dei seu número. Não é apropriado como
namorado, embora pudesse ser, se fizesse a barba, removesse o brinco e passasse sua
camisa...
— O quê? — grito, alto o suficiente para atrair a atenção do casal em uma mesa
próxima. — Por que esse bom samaritano todo metido a moderninho desejaria me ligar?
Minha mãe parece desconfortável. Ela enrola seu macarrão no garfo e diz:
— Provavelmente para falar sobre mim.
Suspiro:
— Ah, está bem — embora, secretamente, eu não esteja convencida.
Ficamos em silêncio enquanto minha mãe limpa seu prato. Depois, diz:
— Ele disse que talvez uma razão para eu desejar permanecer bem é que você
depende de mim.
Eu quase cuspo um biscoito.
— Isso só pode ser brincadeira! — ele nem mesmo me conhece!...
Minha mãe responde, excitada:
— Exatamente! Foi isso que eu disse a ele! Falei que você é muito independente.
Concordo, satisfeita. Minha mãe toma um gole de água e limpa a garganta. Ela
seca cuidadosamente a boca com o guardanapo cor-de-rosa. Então, diz, delicadamente:
— Helen, se você precisar de dinheiro, sabe que pode contar comigo.
Duas horas depois, eu as deixo em casa e suspiro quando o casaco roxo de Nana
Flo desaparece dentro de casa. Nas palavras dela mesma, a noite "não foi tão ruim,
considerando tudo". Em determinado momento, eu desafiei o destino, observando:
— Acabei de notar que você comeu todo o seu peixe e arroz, Nana.
A isto, ela respondeu, seca:
— Não gosto de desperdiçar comida.
Seu olhar dizia: "Mesmo se for porcaria estrangeira" — mas apreciei o esforço
necessário para calar as palavras.
Meu pai foi mencionado uma vez. Minha mãe exclamou subitamente:
— Não seria lindo se Morrie estivesse aqui também? Então seríamos uma
família!
Eu não gostei de ter dito que, se papai também estivesse aqui, todos estaríamos
saindo na direção do Savoy Grill. Ou, mais provavelmente, nem estaríamos jantando
fora, em primeiro lugar. Assim, calei-me.
Nana Flo disse, brevemente:
— Ele está olhando por nós — o que me pareceu um comentário curiosamente
sentimental.
Ninguém mencionou-o novamente.
Estou tão surpresa por ter sentido prazer com o jantar — mesmo de um modo
masoquista — que, ao voltar para casa, bato a porta da frente e acordo Marcus. Sei
disso, porque enquanto estou no banheiro lavando camadas de minha maquiagem, ele
sai ruidosamente de seu quarto e caminha com raiva pelo corredor, para pegar um copo
de água (escuto o ruído furioso da torneira). O final perfeito para uma noite não tão
ruim, considerando tudo.

CAPÍTULO 24
Às vezes, parece que tenho cinqüenta anos. Estou constantemente cansada. Não
vou dançar há uma eternidade. Estou sem sexo há tanto tempo, que não me
surpreenderia se estivesse virgem de novo. Vejo sexta-feira como uma chance de
remediar todas essas queixas.
A noite começa quando Tina, Lizzy e eu deixamos o escritório e nos
amontoamos no banheiro para uma sessão de maquiagem, às seis e um da noite.
— Formalmente, fizemos meia hora extra — digo a Lizzy, que se sente culpada
por sair no horário. — Portanto, se eu fosse você estaria contente.
Tina olha-me com desdém:
— Então, a febre de ambição sumiu.
Respondo:
— Não é o que você faz, mas o que a vêem fazendo. E quando Laetitia saiu do
escritório, às cinco e quarenta e cinco da tarde, eu estava debruçada como uma escrava
sobre minha mesa.
Dou um sorriso afetado e tiro meu curvador de cílios da confusão que é minha
sacola de maquiagem — meus cílios são retos e, se não os curvo, pareço careca. Lizzy
abre um estojo de metal que parece capaz de conter uma arma, tira um pincel de
maquiagem de um de seus compartimentos e espalha uma nuvem de pó sobre o rosto.
Tina começa do zero, limpando cuidadosamente todos os resíduos do dia com bolas de
algodão e loção de limpeza. Um simples, retoque não é suficientemente bom para nosso
lorde e mestre, Adrian — penso, com azedume. Sei que é feio pensar assim, mas ela o
protege demais.— Estou ansiosa para conhecer Adrian — falo, em uma tentativa de
combater minha própria maldade.
— Que bom! — Tina diz. Ela acrescenta, em tom leve. — Não tente dizer nada
ofensivo.
Arregalo os olhos tanto quanto posso, e exclamo:
— Sua mocréia atrevida! É melhor você não tentar dizer nada ofensivo para
Tom. Nada de piadas sobre xixi, está bem?
Tina sorri e diz:
— Negócio fechado — e volta a olhar-se no espelho.
— Você gostará de Tom — digo a Lizzy. — Tenho certeza.
Lizzy dá um grande sorriso pelo espelho e diz, com sinceridade:
— Mal posso esperar para conhecê-lo, ele parece ser muito querido.
Sorrio com gratidão, termino meu trabalho de retoque e me sinto
mortalmente entediada.
— Como está o novo apartamento? — pergunto a Lizzy, que acabou de comprar
um apartamento espaçoso em Limehouse.
— Ah! — ela exclama. — Maravilhoso! A visão do Tâmisa! Eu poderia ficar
olhando para sempre. E tão lindo!
Eu tinha a impressão de que o Tâmisa era um rio marrom e fedorento, mas finjo
um sorriso e digo "ótimo". Talvez, a distância, ele pareça pitoresco. De qualquer modo,
quem sou eu para falar? Tudo o que vejo de meu quarto é a rua e o RAV4 azul-metálico
de Marcus. Imagino se há algum apartamento à venda em sua quadra.
— Você não tem medo da hipoteca? — pergunto.
Lizzy inclina sua cabeça para o lado e diz:
— Não muito. Mamãe é consultora financeira. Ajudou-me a planejar muito bem.
É claro que sim.
— Você comprou muitos móveis?
Não, ainda não. Lizzy quer fazer tudo devagar. Ela prefere comprar um número
pequeno de "peças assinadas" (seja o que for isso), em vez de encher sua casa de tralhas.
Ela conta-nos que, no fim-de-semana passado, viu uma incrível “line chaise”
(novamente, não tenho idéia do que seja) por seiscentos e cinqüenta libras, na Conran
Shop.
— Seiscentos e cinqüenta libras?! — Tina exclama, muito alto. — Você está
louca?
Lizzy sabe que o preço é um pouco exagerado, mas o móvel é tão "elegante"! E
ficaria sensacional fazendo contraste com o piso de tábuas de bordo.
Digo-lhe que se ela deseja uma line chaise, deve economizar em outras coisas —
na cama, por exemplo.
— E como são seus vizinhos? — pergunto.
Lizzy faz uma tara engraçada. Alguns dos vizinhos são simpáticos, ela nos diz.
Teve uma longa conversa com o do número 28 ontem. O 28 disse-lhe que o do número
26 é um "negociante". "Oh!", Lizzy exclamou, "Um negociante de antiguidades?"
Número 28 respondeu gentilmente: Não, negociante de drogas, traficante." Quando
chegamos ao pub, Tina e eu ainda estávamos tentando parar de rir.
Brian é o primeiro homem (se podemos dizer isso dele) a chegar. Ele beija Tina
e a mim, no rosto, e então volta-se para Lizzy. Olha-a como um amante das artes olharia
uma pintura rara e leva a mão dela aos lábios, beijando-a. Lizzy dá uma risadinha e
ajeita seus cabelos atrás da orelha. Não consigo deixar de sorrir, embora o galante
cavalheiro esteja usando um suéter tricotado e sapatos cinza. Tina também olha. Ela
obviamente arrepende-se de seu comentário de "Brian é um panaca!", porque salta e
pergunta:
— O que você quer tomar? Eu apanho para você!
Mas, Brian insiste em buscar suas bebidas. Vai até o bar para comprar uma água
mineral sem gás, uma Beck's e um suco de laranja ("Tina, você não está se sentindo
bem?").
Olho para Lizzy e ela parece visivelmente inchada de orgulho.
— Ai, que nojo! — diz Tina, acendendo seu quinto cigarro em dez minutos. —
Amorzinho de adolescentes!
Envio-lhe um olhar de aviso — Brian deve estar batendo na casa dos oitenta
anos! —, mas nem ela nem Lizzy percebem a gafe. Brian volta do bar e estou prontinha
para desprezá-lo por ser um fanático natureba, quando vejo que comprou para si mesmo
uma dose de algo com álcool. Olho para Lizzy, para ver se ela desaprova o
comportamento do namoradinho, mas não há nem sombra disso. Ela acaricia o braço de
Brian, com carinho.
— Vocês dois!... — Tina exclama. — Arrumem um quarto para fazerem isso!
Brian ri. Para minha surpresa, ele tem uma risadinha safada e profunda de
menino. Ele chega mais junto de Lizzy e fala para nós todas, em geral:
— Então, como vai o trabalho?
Felizmente, somos poupadas do inferno das conversas chatas pela chegada do
"Messias", aliás, Adrian. Tina salta da cadeira para recebê-lo tão rapidamente, que
derrama sua bebida.
— Que mico! — exclamo, maldosa. Ela me ignora.
— Todos vocês — anuncia formalmente, como se o apresentasse em uma
reunião dos Alcoólicos Anônimos —, este é meu namorado. Adrian. Ele é arquiteto.
Adrian abre um sorriso branco e brilhante, e aperta a mão de todos. A minha
começa a suar subitamente, de modo que a esfrego em minhas calças antes de chegar
minha vez.
— Olá — digo, pensando: Minha Nossa! Retiro tudo o que disse! Ele é o
Messias! Adrian é excepcionalmente bonito. Excepcionalmente! Usa um terno azulmarinho
feito sob medida, camisa em tom claro de lilás e gravata de um rosa profundo.
Seus cabelos louros dourados são tão encaracolados quanto os de um anjinho, seria de
se esperar que ele tivesse olhos azuis, mas os dele são castanhos com cílios longos e
quase femininos. Seu sorriso é brilhante e amplo, contra seu leve bronzeado.
— Ai, Tina! — falo, em tom de aprovação. — Agora entendo toda a
empolgação!
Adrian e Tina riem. Ela então apressa-se em providenciar um vinho tinto para
ele.
Lizzy aconchega-se em Brian e gorjeia:
— Ouvimos falar tanto de você!
Adrian sorri para ela e diz:
— Coisas boas, espero!
Lizzy dá uma risadinha e diz:
— A-há!
Tina volta depressa com o vinho tinto de Adrian e o pousa com adoração, na
frente dele. Nossa, é como O Rei e Eu.
— Então — Adrian brinca, dando um tapinha e sacudindo com carinho a coxa
vestida de Miu Miu de Tina —, o que vocês têm falado sobre mim?
Tina levanta os olhos, assustada, e diz:
— Nada! Por quê?
Adrian responde, provocando-a:
— Parece que você esteve contando todo o tipo de segredos às suas amigas. Eu
gostaria muito de saber quais foram.
Ele levanta a mão do colo de Tina e começa a massagear-lhe a parte de trás do
pescoço, enquanto ela treme de prazer. Não quero parecer a Madre Superiora, mas isso
é obsceno! Estão se exibindo! Será que não podem esperar? Decido cortar aquelas
preliminares em público. Em voz firme e alta, digo:
— Ela contou-nos que você é bonito, bem-sucedido, esperto e tudo o mais, mas
desapontou-nos imensamente e não revelou nadinha que pudesse ser considerado
íntimo. Você está seguro!
Espero que Tina se irrite por meu comportamento de grinch, mas ela me envia
um enorme sorriso. Adrian também. Ele recompensa Tina com um beijo e murmura:
— Toda verdade virá à luz!
Humm, ele tem cultura também... — isso chega a ser enjoativo.
— Tudo bem — falo —, chega disso!
Quando Tom aparece — logo depois das sete e meia da noite, como prometido
—, a conversa mudou para o hábito bizarro de consumo de biscoitos de Lizzy. Ela não
gosta de comer "calorias vazias", embora eu argumente razoavelmente que é possível
justificar o consumo de "calorias vazias" substituindo-as por "calorias chatas" —
simplesmente substitua sua salada verde por um chocolate Hobnob e muito complexo
multivitamínico. Ah, não, Lizzy jamais faria isso, mesmo que às vezes renda-se a uma
tentação ocasional, quando dá-se ao trabalho impressionante de "partir um biscoito
integral simples em oito pedaços e comer um pedaço por hora".
Estamos boquiabertos.
— O quê? Com horário controlado? — Tina pergunta, fascinada.
Irrompemos em um barulhento debate sobre nossos próprios hábitos de consumo
de biscoitos. Tina é imune. Se ela tem alguma fraqueza, é por salgadinhos de bacon
defumado, porque (inexplicavelmente) "eles são bons para a saúde". Eu posso devorar
quinze biscoitos em uma tacada só e ainda deixar espaço para pudim, embora deva
confessar, para ser justa, que isto depende do tipo de biscoito. E não me sinto culpada.
— Eu me sentiria culpada se matasse alguém — digo muito seriamente a Lizzy,
que abre a boca e treme como um peixe em terra firme e obviamente precisa ver o crime
colocado em perspectiva.
Adrian ri com isso e diz:
— Então, estamos discutindo o consumo de biscoitos em termos de uma questão
moral!
Brian — o bode velho e sincero — sai-se com:
— Você diz isso, mas muitas mulheres e até mesmo homens afirmam realmente
que se sentem "maus" por comerem um biscoito, até mesmo "horríveis". Sabem, o uso
de uma linguagem emocional tão altamente carregada é imensamente significativo em
termos de seu auto-julgamento e de conseqüências para a sua auto-estima...
Ele, certamente, teria continuado falando para todo o sempre se Tom não tivesse
escolhido este momento realmente perfeito para entrar no pub. Cumprimento-o, cheia
de alegria (porque além de qualquer coisa, ele está lindíssimo) e Brian é forçado a
terminar sua diatribe. Adrian, por seu lado, parece aliviado.
Apresento Tom a todos:
— Você deve lembrar-se de Tina, mas vamos deixar assim, está bem?
Ele sorri, dá beijinhos, aperta mãos e insiste em pagar a próxima rodada.
— Parece que você já conhece Tom — Adrian diz a Tina, rapidamente, antes
que Brian possa reiniciar sua palestra.
— Eu o vi apenas uma vez — Tina diz, nervosa, consciente de que estou
monitorando cada palavra e .disposta a afogá-la em cerveja se ousar arriscar uma piada
sobre urina. — Saímos com Helen para um drinque rápido.
Adrian está intrigado. Ele estreita seus olhos incríveis e diz:
— Então por que é preciso "deixar assim"?
Não tenho intenção de permitir que Tina conte a história hilária de minha
incontinência induzida por álcool, de modo que interrompo:
— Porque bebi demais e fiquei meio alterada.
Olho para Tina de um modo que pretende parecer benévolo para todos, mas
ameaçador para ela. Funciona. Em vez de me acusar de bêbada mentirosa, ela diz,
mansamente:
— Helen estava com vergonha. Ela não gosta de lembrar daquilo.
Sorrio para ela.
Adrian sugere: "Então não pode ter sido um drinque tão rápido assim", mas Tina
insiste — com tanta cara-de-pau quanto um guarda do Palácio de Buckingham:
— Helen é como eu, não bebe muito, de modo que sua tolerância é baixa.
Francamente, sinto surpresa por ver que seu nariz não cresce como um Concorde
e atravessa a janela do pub. Sinto uma risada crescendo em mim, de modo que sorrio
com os lábios fechados, grata à Tina, e peço licença para ir ao banheiro.
Quando volto, Tina e Adrian mantêm uma conversinha íntima, com direito a
toques e carícias, e Tom está entretido em uma conversa com Lizzy e Brian. Meu
coração palpita de medo: Por favor, Deus, não permita que Lizzy esteja falando sem
parar sobre fins-de-semana passados sob uma tenda ou psicanálise jungiana. Permita
que Tom goste dela e que ela goste de Tom. (Quanto a Brian, tanto faz.) Felizmente,
eles debatem sobre Cornwall. Brian nasceu em Morwenstow — bem na costa —
embora viva em Londres há vinte anos, sente falta da tranqüilidade.
— Será que o tai chi não compensa? — pergunto, maldosa.
Ele sorri e responde:
— Um pouco. Mas, acima de tudo, considero o tai chi extremamente útil se você
sofre da síndrome do pé dianteiro.
Ele estoura de rir, enquanto aquela traiçoeira boca grande — Lizzy — desliza
para o toalete feminino e eu tusso e me engasgo com minha bebida.
Em voz muito pequena, murmuro:
— Estou muito, muito arrependida. Desculpe-me.
Brian faz um gesto de quem não se importa e diz:
— Perdoado e esquecido, eu estava apenas brincando.
Sei que Tom está prestes a perguntar o motivo daquilo, de modo que digo
rapidamente:
— Você pratica algum tipo de esporte, Tom?
Sei que esta é uma pergunta boba, mas estou em uma situação de emergência.
— Eu corro e pratico boxe — ele responde, educadamente —, embora não seja
muito bom.
Eu exclamo, principalmente para levar a conversa para bem longe do episódio
do pé de Brian.
— Besteira, tenho certeza que você é ótimo!
— Oh! — ele diz, dando-me um sorriso luminoso. — Por que tem tanta certeza?
O olhar que ele me envia poderia derreter chocolate.
Eu troco meu pé de apoio, para ver se meu rubor some. Depois, devolvo-lhe o
olhar, aperto seu braço, brincando, e ronrono:
— Você parece bem forte... Ah, você é duro!
Para ser honesta, é inútil bancar a vamp. Sempre que tento, sou impedida por
uma pedra solta no calçamento, cães no cio e portas giratórias emperradas. Mas, esta
noite, não sinto vergonha. Mordo meu lábio sugestivamente (espero) e digo, num
suspiro:
— Humm, muito duro.
Rezo para que Tom não comece a rir de mim. Ele cola sua boca em meu ouvido
e murmura casualmente:
— Por que você não experimenta?
Meu coração salta — é como se houvesse um coelho correndo em meu peito.
Sustento seu olhar azul-metálico e meu rosto arde, enquanto murmuro:
— Tente impedir-me.
Neste ponto, Lizzy e Brian demonstram suficiente tato para falar entre si.
Chego mais perto de Tom, até encostar minha coxa na dele, e meu coração está
saindo pela boca. E tesão, mas não é tesão puro, há algo mais também, que não consigo
definir. Sentamo-nos no pub e flertamos deslavadamente até a hora de fechar, vamos até
uma dance house pequena no Soho, gritamos acima da música, tocamos nossas mãos e
eu ainda não consigo definir o que sinto. Tina e Adrian vão para casa porque estão
exaustos, e Adrian trabalha amanhã. Lizzy anuncia que precisa levantar cedo para fazer
suas compras de Natal (faltam apenas três semanas!) e eu ainda não consigo definir.
Tom e eu andamos pelas ruas de mãos dadas, comemos kebabs revoltantes e
meu coração ainda está acelerado — ainda não entendo o que há entre nós. Então, cuspo
meu kebab em uma lata de lixo, ele puxa-me contra seu corpo e nós nos beijamos,
beijamos e agarramos um ao outro e o coelho em meu peito está correndo a cem por
hora e nos beijamos e beijamos e estamos nos beijando e beijando e então eu percebo,
enquanto me afasto para sorver algum ar. E medo. Não sei por que, e não sei se Tom
sabe, mas ele não diz nada. Beija-me lentamente e acaricia meus cabelos. Então, ele
chama um táxi.
Depois disso, chama outro para ele mesmo.
CAPÍTULO 25
Durante a faculdade, quando eu ainda não conhecia a dura realidade, sofri
brevemente de um excesso de confiança. Isso teve muito a ver com estar longe do
controle de meus pais. Além disso, a maioria dos estudantes estava disposta a estender
sua própria educação sexual, de modo que, se você desejasse ação, geralmente poderia
tê-la. Até Jabba, o Hutt, teria algum sucesso. Na verdade, eu o beijei em várias ocasiões.
Assim, foi um choque quando saí com uma garota chamada Beatrice, reta como
uma tábua, e o cara em quem eu estava de olho pagou-nos dois drinques, mas convidou
Beatrice para dançar. Na manhã seguinte, Luke veio visitar-me e — plantando a
semente de minha paixão estéril — trouxe Marcus junto. Decidi resolver aquele enigma
em sua presença. E claro que esperava que tesão fosse algo contagioso.
— Você acha — perguntei, enquanto tirava manteiga de amendoim com uma
colher de dentro do pote — que ele estava se fazendo de difícil? Usando Beatrice para
causar-me ciúme?
Marcus seguiu o trajeto da colher até minha boca com repugnância fascinada e
declarou (as primeiras e últimas palavras que ele me disse em cinco anos):
— Queridinha, não há mistério nenhum — ele estava a fim de Beatrice! Se um
cara quer comê-la, ele vai e come você, não uma outra!
Recordo essas palavras poéticas às três da madrugada de sábado, enquanto pago
o motorista de táxi e ando até a porta da frente, sozinha. Sim, eu me afastei de Tom
primeiro. De qualquer modo, não estou bem certa sobre ele. Mas, por que ele precisava
seguir minha deixa como um cãozinho obediente? Será que não tem vontade própria?
Entro no apartamento aos trambolhões e estou prestes a abrir a porta de meu quarto com
um golpe de caratê, quando vejo um bilhete colado nela: "Reunião na sala, sábado às
dez da manhã. Comparecimento obrigatório." Penso: viver com Marcus é como viver
sob lei marcial. Amasso o bilhete e ajusto o alarme para as duas da tarde.
Durmo e tenho o sonho da casa vazia. Ainda estou sendo perseguida por
bandidos e me escondo em armários, mas, tendo feito isso umas quarenta vezes, agora
já me acostumei. Estou encolhida em um roupeiro e alguém, algo, está subindo
pesadamente as escadas. Thump! thump! Agora estão golpeando a porta do guardaroupas.
Bang! bang! Cada vez mais alto.
Acordo com um susto, suando, e escuto Bang! bang! Marcus está batendo forte
em minha porta e berrando:
— São nove e quarenta e cinco! Você precisa levantar!
Jogo uma bota na porta e puxo o travesseiro sobre minha cabeça. Marcus
continua batendo. Bang! bang!
— Está bem! — grito. — Eu vou à sua maldita reunião, me deixe em paz!
Arrasto-me para fora da cama, resmungando. Visto meu roupão, ando sonolenta
até a cozinha e faço um café. Não há leite em minha seção do refrigerador (não há nada,
aliás), de modo que roubo um pouco do leite de Marcus. Há duas caixas de leite na
seção dele e um recado grudado em uma delas dizendo: "Coloquei alvejante em uma
das caixas e só eu sei em qual delas." Vejo-me tentada a escrever um bilhete dizendo:
"O Gorducho mijou nas duas caixas..." — mas então percebo que uma das caixas está
fechada. Nojento.
Luke também foi tirado da cama para a reunião. Ele parece amarrotado e
cansado.
— Você quer café? — pergunto.
— Por favor! — ele diz.
— OK — respondo —, a caneca está no armário, o café está no pote e o leite
está na geladeira.
Ele parece decepcionado e diz:
— Ah...
Eu belisco suas bochechas, brincando, e exclamo:
— Estou brincando!
Faço café para ele. O Gorducho também já levantou, está estirando-se,
bocejando e pedindo comida. Estamos acostumados com as reuniões convocadas por
Marcus, que acontecem sempre que nosso relaxamento cresce, e sempre dizemos que
sentimos muito, que isso não se repetirá, mas continuamos exatamente como antes.
Assim, fico em choque quando Marcus diz que me quer fora do apartamento até
o fim da semana.
— Mas não tenho para onde ir! — exclamo, suplicante.
— Isso não é problema meu — ele diz, friamente.
Olho, vidrada, para um pêlo negro, que sai de uma de suas narinas — recuso-me
a chorar ou argumentar, já que nada o agradaria mais. Luke tenta apoiar-me, mas não
quero que ele também seja expulso, de modo que o calo.
— Marcus — minto —, você está me fazendo um grande favor. Tem um pêlo
preto saindo de seu nariz. E como um dente de hamster.
Saio ligeirinha da sala, entro em meu quarto e desabo na cama.
Não acredito. Não acredito, mas deveria. Claro que isso iria acontecer. Como
não. Marcus pode ser mão-fechada, malvado, mas também é orgulhoso como... bem,
como um homem com o traseiro peludo. Sei disso. Ainda assim, desde que ele me
recusou, só o tenho ferido onde dói mais — embora seja necessária uma mira muito
boa, com um alvo tão pequeno. Entende o que quero dizer? Será que eu esperava que
ele deixasse por isso mesmo? Suponho que me envolvi tanto em colocar em prática sua
punição eterna, que ignorei as possíveis conseqüências.
Ao pensar sobre isso, descubro que não poderia parar de provocá-lo, mesmo se
quisesse. Tenho este poço estagnado de ódio por ele, que aniquila a racionalidade, não
sei porque. Para ser honesta — algo no qual não sou muito boa —, o que ele fez
realmente de errado, além de experimentar meu tamanho e decidir que não combinava
com o seu (e vice-versa)? O ego frágil de Marcus seria derrubado um dia, e o dia
chegou. Deveria estar preparada, mas não estou. Sinto medo. Uma ratinha tímida.
Deveria regozijar-me por minha liberdade forçada, só que não consigo. Viver com
Marcus pode ser o purgatório, porém é mais seguro do que ficar sozinha. Viver com ele
é como estar presa num emprego que você detesta. Você sabe que deveria parar de se
queixar e pedir demissão, encontrar algo melhor, mas o terror do desconhecido o
impede. Agora, porém, Marcus tornou-me redundante, de modo que não tenho escolha.
Ligo para Tom.
Eu não pretendia fazer isso. Depois do encontro, penso sobre a noite passada e
decido que o medo que senti foi instintivo. Um alerta. Entenda, gosto de Tom. Senti-me
atraída por ele como um marinheiro por uma sereia sentada sobre uma rocha. Tom é
todo olhos de "vamos transar", seu canto cheio de promessas chama-me mais e mais.
Está tão claramente disponível para mim, como eu poderia resistir? O problema é que
não sei se o desprezaria mais se toda a sua disposição fosse real ou encenação. Pelo
menos, sei onde estou pisando, com tipos como Jasper. Não há disfarce. Homens que se
comportam com boa vontade e sem arte, como se lhe entregassem seus corações, são
um mito. Talvez deseje ser enganada. Mas, fiz uma pausa e Tom fugiu. Retraiu-se no
mar de Soho e desapareceu. Que tipo de entrega romântica é essa?
Penso em tudo isso, depois penso pro inferno e ligo para ele, apesar de tudo.
O cretino não está!
Então ligo para mamãe.
— Nana Flo quer dar uma palavrinha com você! — ela diz, antes que eu possa
pronunciar uma sílaba. Estou para perguntar por que, mas minha mãe passa o telefone
para minha avó no "por...".
— Alô? — ela diz, em sua voz gritada.
— Oi, Nana, como vai você? — pergunto.
— Bem, obrigada. Vi um programa de televisão muito interessante, ontem à
noite.
Humm... Aonde ela pretende chegar?
— Ah, sim? — digo, educadamente.
— Sobre congelamento de óvulos — Nana fala.
Entendo mal e acho esquisito. Ela nem sabe o que como, jamais deu algum sinal
de se preocupar com isso.
— Mas não é apenas o caso de comprá-los quando preciso...
Minha avó interrompe:
— Óvulos, não ovos! Congelar seus óvulos! Colocá-los no gelo! Você não está
namorando ninguém! Não tem um homem e não está rejuvenescendo. Seus óvulos estão
morrendo em seu corpo! Pareceu uma cirurgia bem simples, na televisão!
Agradeço Nana Flo por sua preocupação, digo-lhe que considerarei a idéia e
peço que ela me passe para minha mãe novamente. As primeiras palavras de mamãe
são:
— Não tenho nada a ver com isso!
Eu, porém, garanto que ela auxiliou e aprovou. Deixo isso de lado, já que há um
assunto mais urgente a tratar.
Minha condição iminente de sem-teto.
— Você pode vir morar conosco! — mamãe exclama.
Já posso até imaginar. Três bruxas e um gato de cor laranja. Passo do meio-dia
às cinco da tarde limpando, choramingando e escovando o Gorducho — que se mostra
desesperado para escapar e arranhar a porta —, esperando que uma fada-madrinha passe
por aqui e me salve de ser jogada na rua ou, pior, de ser forçada a coabitar com a
psicomãe e a mulher dos óvulos.
Às cinco e cinco da tarde, ouço um som alto, toot! toot! na entrada do prédio.
Espio pela janela e vejo Ivana Trump emergindo de um Volkswagen vermelho. Seus
cabelos são tão altos, que parecem um celeiro. Ela e Marcus devem estar indo a algum
lugar da moda, hoje à noite, como o Hard Rock Café. Como ele pôde? Como preferiu
ela, não a mim? Eu o detesto agora, e não iria para a cama com ele, nem para adquirir
prática, mas dói, mesmo assim. A traição de Michelle é pouco, em comparação.
Contenho uma lágrima e, por falta de algo melhor para fazer, olho-me de lado no
espelho. Estico a barriga para fora ao máximo — oito meses de gravidez, o parto de
uma virgem!
Acaricio-a, fascinada, e recordo que, antes de conhecê-lo bem, contei a Marcus
que não tinha certeza, mas achava meus pés mais gordos. Disse isso com um ar de
imenso espanto e ele retrucou:
— Quem come porcaria acaba com uma péssima aparência.
Recomponho meu roupão e me embolo na cama. Devo ter adormecido, porque a
próxima coisa que percebo é que Luke está me sacudindo, brandindo o telefone em
minha frente.
— Telefone! — ele anuncia, desnecessariamente.
— Quem? — pergunto, sem som.
— Tom! — ele grita.
Agarro o telefone de suas mãos.
— Obrigada, Luke!
Tom está amigável, mas não diz nada sobre a noite passada, exceto que se
divertiu muito. Bem, o que será que isso significa? Ele gostou de seu kebab? Ele
pergunta como estou. Começo a dizer algo, meio-aérea e desafiadora, mas a confusão,
inveja e autopiedade misturam-se e, para meu vexame absoluto, minha voz treme.
— Basicamente — fungo — em geral abomino a palavra "basicamente" por uma
questão de princípios —, eu e o Gorducho não temos para onde ir!
Tom fica em silêncio. Depois, diz:
— O que você e o Gorducho farão hoje à noite?
Penso por um segundo em contar alguma mentira glamurosa.
— Nada! — respondo.
— Você gostaria de vir até aqui?
Sei que deveria dizer que não para, no mínimo, demonstrar um pouco de
dignidade. Mas, como já mencionei antes, detesto a palavra deveria.
— Sim! — concordo.
— Não saia daí — ele diz. — Estarei com você, em duas horas.
Fico imóvel de surpresa, por uma fração de segundo, antes de saltar para a ação.
Minha primeira parada é junto ao refrigerador, onde um pepino saudável — no qual está
grudado um recadinho dizendo "isto pertence a Marcus" — me aguarda. Corto duas
fatias generosas, para colocar sobre meus olhos inchados e, como um gesto simbólico,
enfio o resto dele, bem fundo, na lata de lixo.
CAPÍTULO 26
Sempre achei o máximo ter talentos psíquicos — esqueça a bola de cristal, a saia
de cigana e verá que este é um talento glamouroso, se bem que um pouco sombrio. Eu
sempre poderia esconder o Gorducho em um armário e comprar um gato birmanês, de
olhos dourados para completar a atração mística. Entretanto, uma vez que já fracassei
diversas vezes, ao prever o clima ou os sapatos que Michelle estaria usando em
determinado dia, tive que superar minha fantasia de vidente com grandes brincos de
argola, e me resignar à banalidade mental. De qualquer modo, preferiria queimar na
fogueira do que trocar meu gato laranja por outro, de raça. Mas a esperança é a última
que morre, de modo que, quando o telefone toca, enquanto tento transformar meu quarto
de um pulgueiro em um boudoir, consigo prever: é Lizzy.
Pergunto-lhe como foram suas compras de Natal:
— Já consegui tudo!
— Você é incrível! O que comprou?
Lizzy menciona uma lista criativa de presentes perfeitos. Admiro-a, com toda a
sinceridade.
— Nunca consigo imaginar o que comprar para as pessoas! Pelo menos — e aí
faço uma careta para indicar que estou brincando —, não terei que me preocupar com o
presente de papai este ano. Que pesadelo! Mesmo quando lhe dei um livro sobre golfe,
ele nunca o abriu!
Lizzy responde:
— Tenho certeza de que você está enganada, mas realmente Natal e aniversário
são as piores datas. Como você se sente sobre tudo isso, Helen? Você nunca fala disso!
Emociono-me, porém sinto-me obrigada a corrigi-la.
— Lizzy, você é um doce, mas pare de perguntar! Estou bem. Mamãe adora a
fita de Gregorian Moods. Vivienne contou a todo mundo como conseguiu salvar minha
mãe, sozinha, de uma morte sangrenta e violenta, de modo que todas as suas amigas
detestáveis agora lhe dão uma atenção sufocante. Nana Flo mal consegue andar pela
casa, entre tantas pessoas enxeridas. E ótimo.
Lizzy faz uma pausa.
— Sim, mas, quanto a você? — ela insiste.
Franzo a testa:
— Esteve falando com seu amigo psicólogo novamente? — pergunto.
— Não! — ela diz, tão rapidamente, que está claro que mentiu.
— Liz, sei que é difícil compreender, mas eu e papai jamais fomos muito
íntimos. Sei que suas intenções são boas e, por favor, não me entenda mal, mas, para ser
honesta, não estou mais tão triste. Sinto-me desconfortável se você pergunta, a todo
momento, se estou bem. Entende?
Há silêncio no outro lado da linha, presumo que ela está concordando.
— Tudo bem — ela confirma, finalmente, com relutância —, mas, por favor,
converse comigo, se precisar!
Concordo com ela e mudo de assunto:
— Eu não chutaria Adrian de minha cama!
Lizzy dá uma risadinha e diz:
— Pessoalmente, prefiro Tom.
Respondo, deliciada:
— Mesmo?
— Sério, prefiro mesmo! Dá para ver que ele está bem apaixonado por você!
Santa Lizzy. Apenas ela ousaria usar a palavra "apaixonado", sem ironia. Eu,
realmente, adoro Lizzy, mas sinto-me sempre perplexa com seu jeito de andar pela vida,
imune à dura realidade e, mesmo assim, ter sucesso em tudo. É uma Jane Austen ao
avesso, realmente.
Conto a Lizzy o que aconteceu. Em parte, porque faz bem à alma ouvir sua visão
rósea e tranqüila do mundo, em vez de minha própria visão feia e cinzenta. Sua teoria é
que Tom queria esperar até saber que eu tinha certeza. Poupe-me.
— Mas, ele é um homem! — exclamo. — Se um homem quer você, ele trata de
agir!
— O quê?! — Lizzy pergunta, em voz alta. Ela parece muito agitada. — Você
realmente acredita que, sendo mulher, não tem escolha sobre esta questão? Acha que é
um objeto passivo? Que todos os homens são brutos? Ou deveriam ser?
Brutos! Espere aí um segundo, ela é a delicadinha de nós duas. Não chorei em
Sintonia de Amor.
— Não! — respondo, defensivamente. — Você está distorcendo o que digo!
Está sendo defensiva! (Este é um truque excelente para vencer discussões, extraído de
um e-mail que recebi de alguém do departamento de publicidade.)
É claro que, para minha total desolação, Lizzy não cai em meu truque. Ela diz,
calmamente:
— Você é alérgica a ser tratada com o respeito que merece.
Para provar que está errada, informo-lhe que Tom está vindo em
aproximadamente vinte minutos.
— Então, é melhor você parar de dizer absurdos e sair do telefone — ela
responde, espertamente, antes de se despedir.
Desligo o telefone, então penso "espere aí, quem ligou foi ela!" Sorrio. Ela está
aprendendo.
A campainha toca e congelo. Não pode ser ele, tão cedo. Isso é trapaça! Mordo
meu lábio, na esperança de ele inchar e ficar mais carnudo e atraente e, em um espírito
de kamikaze, abro a porta com um puxão.
— Surpresa! — exclama minha mãe, abrindo os braços como a jovem Shirley
Temple. Nana Flo espia atrás dela, com ar maroto.
— Não vai nos convidar para entrar? — minha mãe pergunta, sem perceber que
estou com a cara no chão.
— É claro! — digo, recordando minha promessa ao Dr. Collins e forçando um
sorriso. — Venham até a cozinha. Nana, gostaria de uma xícara de chá? (Em momentos
de dúvida, recorro a clichês. Isso me dá tempo para pensar, mas, quando busco
inspiração em meu cérebro, ele está cochilando e não permite ser perturbado.)
Acabei de servir chá preto para Nana, um chá de camomila para minha mãe e
trouxe meio pacote de biscoitos de meu quarto quando a campainha toca novamente.
— Quem será? — cantarola minha mãe, que muito obviamente ainda está
tomando seus calmantes.
— Acho que é um amigo meu, Tom.
Enquanto caminho na direção da porta, posso ouvir minha mãe grasnando:
— Tom! Tom? Será que conheço Tom?
Minha avó rosna:
— Tom, Tom, quem sabe, hoje em dia?
Aperto a ponta de meu nariz com as pontas dos dedos, colo um sorriso no rosto e
abro a porta.
Tom brande um buquê já meio murcho de cravinas, de um azul muito vivo, que
estão embrulhadas no que parece ser um guardanapo de cozinha.
— Flores de lojinha de posto de gasolina — ele declara. — As melhores de
todas.
Faço cara de espanto e as pego, exclamando:
— As raras e caríssimas cravinas turquesa! Não precisava!
Ele sorri e diz:
— Empenhei minha Ferrari.
Respondo, docemente:
— Seu pôster da Ferrari?
Ele concorda e diz:
— Não fique triste assim, o Porsche ainda está na parede!
Sinto uma onda inexplicável de alegria e — antes de ter tempo para reconsiderar
— dou um passo para a frente e o beijo na boca. Estou quase me afastando, mas ele
passa seus braços em volta do meu corpo e me beija, de modo que fecho meus olhos e o
beijo também, meu coração dança, delirante, sinto o calor firme de seu corpo
pressionado contra mim e...
— Oláááááá! Cadê vocês? — o tom seco de professora-megera mata
completamente o momento, Tom e eu nos separamos rapidamente, como se fôssemos
culpados de algo.
— Visita surpresa de minha mãe e avó — explico, apressadamente.
Tom inclina-se e suga gentil e, brevemente, meu lábio superior, fazendo com
que um raio percorra meu corpo e pare na virilha. Agarro seu ombro para manter o
equilíbrio e penso ah, meu Deus!, isso é o paraíso!
— O que você está esperando? — ele murmura. — Apresente-me!
Sedada, com a boca lá nas orelhas, sorrindo como uma idiota, levo Tom à
cozinha e o apresento.
— Você demorou — Nana diz, azeda.
— Que flores azuis adoráveis! — minha mãe fala. Rezo para que ela não diga
nada parecido com "este é seu namorado?".
— Este é seu namorado? — ela pergunta, de olhos arregalados.
— Tom e eu somos apenas bons amigos — digo, tentando não parecer em
pânico.
Tom ajuda-me:
— Sou o veterinário do Gorducho.
Minha mãe gruda os olhos nele e diz:
— Estou vendo.
Nana Flo retruca, precipitadamente:
— Não há necessidade disso! No meu tempo, um cachorro era um cachorro e
ponto final.
Tom diz, gentil:
— Entendo o que você quer dizer.
Murmuro:
— Estou contente por alguém entendê-la — e então, falo alto. — Tom, você
gostaria de um café com biscoitos?
Minha mãe, que continua olhando-o, diz alto, querendo salientar-se:
— Helen, você não tem nada mais substancial para oferecer a ele?
Sinto-me tentada a dizer: Meu corpo?, para calá-la, mas a questão é retórica.
Ela acrescenta:
— Você não espera que um homem jovem sobreviva com biscoitos!
Neste ponto, Nana Flo junta-se ao motim com:
— Um homem precisa de uma boa e sólida refeição!
Enquanto a mulher, presumo, pode sobreviver de doçura e luz. Uma suposição
plausível surge, lentamente, em meu cérebro. Embora meu maior desejo seja que as
duas desapareçam em uma nuvem de enxofre (pelo menos até amanhã), comento,
casualmente:
— Mamãe, Nana, se eu fosse até a esquina comprar alguma coisa boa para Tom
comer, vocês gostariam de se juntar, a nós, para o jantar?
Nana Flo fala tão rapidamente, que sua dentadura quase voa da boca:
— Se você insiste, mas não queremos dar trabalho!
Minha mãe diz:
— Não vejo por que não. Mas, sem cebolas ou pimentões vermelhos, porque me
dão enxaqueca.
Acho que o que lhe dá enxaqueca é sua própria tagarelice, penso, sem dizer.
Volto-me a Tom que, para seu crédito, não fugiu.
— Tom — pergunto, mal-ousando enfrentar seu olhar —, você gostaria de ir ao
supermercado comigo?
De jeito nenhum vou deixá-lo à mercê dessas fofoqueiras.
Tom — consigo perceber diversão em sua voz —, diz:
— Não, não, não, eu irei ao supermercado. Você fica aqui fazendo companhia
para a sua avó e sua mãe. Seria falta de educação deixá-las sozinhas.
Nana Flo baixa e levanta a cabeça, concordando, e exclama:
— Que correto!
— Levo você até a porta — rosno, ácida.
Tão logo chegamos ao corredor, tento dar-lhe um tapa, ele se desvia e, enquanto
fecha a porta atrás de si, sorri para mim zombeteiro, com todos os dentes à mostra,
como um macaco.
— Vem de um bom berço! — Nana Flo observa, quando volto, olhando-me
como se dissesse "diferente de você".
Por favor, Deus, digo mentalmente, não o afaste de mim.
— Onde está aquele garoto bonzinho, o Luke? — mamãe pergunta, excitada. Ela
é insaciável!
— Acho que foi trabalhar — arrisco.
— O quê, em um sábado à noite! — Ela responde.
— Ele trabalha em um bar. A boca de Nana Flo encolhe-se, em desaprovação.
— Luke trabalha muito! — acrescento, irritada.
— Aposto que sim — diz Nana.
— Gosto de Luke — ronrona minha mãe. — Ele é encantador.
Em seu estado carregado de hormônios, suspeito que ela acharia o monstro do
Dr. Frankenstein charmoso. Imagino se eu poderia convencer Luke a pintar seu rosto de
cinza e enfiar um parafuso em seu pescoço, para testar esta teoria, quando Marcus
aparece na cozinha.
Ele está vestindo calças bege-claro, de algodão, uma camisa amarelo-gema e
seus cabelos parecem tão cacheados e bufantes quanto um suflê muito bem-feito (deixeme
dizer-lhe, sei do que estou falando). Seu ar de soberano cai por terra e se transforma
em horror, quando vê minhas parentes.
— Olá — ele diz, sem jeito.
Nana Flo olha-o de cima a baixo.
— Esse é o sujeito? — pergunta, em voz alta.
A aflição em meu rosto reflete-se no de Marcus.
— Não, Luke é loiro — digo, desesperadamente.
Mas, Nana não se faz de tonta.
— Não! — ela grita. — Este é quem a está expulsando!
Falo, rapidamente:
— Não está me expulsando! Estou contente por ir embora!
Neste ponto, minha mãe parece confusa:
— Ah — ela diz —, mas, eu pensei que você...
Interrompo-a com a primeira besteira em que consigo pensar:
— Marcus está saindo com Michelle, mãe. Você conhece Michelle.
Minha mãe encolhe os ombros e diz, em voz sem tom:
— Vagamente. (Uma vez que ela conhece Michelle há quase duas décadas, isso
tem a intenção de demonstrar desprezo. Como não contei sobre a perfídia de
Michelle/Marcus à mamãe, sei que não é nada pessoal, é que o entusiasmo de Cecelia
por mulheres jovens é menor que seu entusiasmo por homens jovens.) Ela lança a
Marcus um olhar apressado mas, então, pára e fica olhando-o firmemente, como um
miserável olharia um pote de ouro.
Marcus passa a mão nervosa em seus cabelos e coca o calcanhar com a ponta de
seu mocassim.
— Bem, acho que é melhor... — ele começa, mas minha mãe o interrompe.
— Sente-se! — ela ordena.
Olho-a, furiosa, mas mamãe não percebe. Marcus senta-se, com expressão de
pedra. Ela puxa sua cadeira para junto dele e diz, subitamente:
— Florence, não lhe lembra Maurice?
— Totalmente diferente! — Nana exclama. Seus olhos grudam em Marcus. Ela
afasta o olhar, torna a fitá-lo e diz, baixinho — isso é absurdo.
Mas, seus olhos não se afastam de Marcus.
— Não fale bobagens! — Grita uma outra voz, que vem ser a minha. A
campainha toca novamente e eu corro para atendê-la.
Tom ergue uma sacola pesada de plástico e diz:
— Comprei alguns ovos. Estava pensando nos dentes de sua avó.
Sorrio, fracamente, e comento:
— Brilhante.
Ele franze a testa e pergunta, sem som, "o que está havendo?".
Agarro minha testa entre os dedos, rolo meus olhos e peço:
— Não pergunte.
Marchamos até a cozinha, onde Marcus e seus cabelos ainda estão encurralados.
Minha mãe agarra o pulso dele e exclama:
— A boca e os olhos são idênticos! Helen! E incrível!
Consigo controlar-me, com dificuldade.
— Não, não é incrível. — Minha voz está aguda, em pânico. Mamãe está louca.
Todos a fazem recordar meu pai. A seguir, será a vez do Gorducho ("eles têm
exatamente o mesmo apetite, embora — risinho de menina — seu pai não tivesse
rabo!").
Estou prestes a mandá-la largar Marcus, quando Ivana faz sua aparição.
— Markee! Ond?... Oh, oi, Sra. Bradshaw! Avó Bradshaw! — ela exclama.
— Olá — minha mãe responde, com azedume.
Nana chega a encolher-se.
— Quem é você? — ela pergunta, de um jeito bruto.
— Sou Michelle! Deve lembrar de mim!
Nana faz uma carranca e diz:
— Todas as mulheres jovens parecem iguais, a meu ver.
Michelle volta todo o facho de seu charme ensaiado para Tom.
— Acho que não nos conhecemos — sussurra, com os olhos baixos.
—Tom. — Ele diz brevemente, estendendo a mão. — Estou com Helen.
O sorriso morre nos lábios dela, para ser brevemente ressuscitado, ao ver as
cravinas azuis.
— Que delicadeza — ela diz, calmamente. — Então, as flores devem ter vindo
de você! Estou sempre dizendo a Marcus que um buquê, comprado em uma loja de
conveniências, já está bom para mim, mas o anjo insiste em comprar na floricultura
mais cara! — e no mesmo fôlego. — Markee, querido, um chá-preto antes de sairmos!
Tom olha para mim, divertido. Marcus levanta-se, grato.
— Certo — falo. — Mãe, Nana, vou fazer ovos mexidos. E isso ou nada.
Minha mãe faz beicinho.
— Não posso comer ovos mexidos! Você deveria saber disso! É doloroso
demais!
Digo, apressadamente:
— Desculpe-me, mamãe. Farei omelete, então. Será que assim está melhor?
Minha mãe concorda, com ar de realeza. Os olhos de Michelle saltam ante à
perspectiva de uma intriga.
— Por quê? — diz, sem ar.
— Ovos mexidos mataram meu pai — digo, em voz plana.
— Nossa! — ela diz. Seu cérebro tenta montar as peças do quebra-cabeças e
fracassa. — Como?
O amor pela atenção, de minha mãe, supera sua antipatia por Michelle e ela
ingressa em uma narrativa trágica. Começo a tirar panelas do armário e Tom diz:
— Por que você não se senta e me deixa fazer a omelete?
Marcus diz, elegantemente:
— Não para nós. Vamos comer no novo restaurante Conran.
Tom começa a quebrar os ovos em uma tigela. Ele já foi ao novo restaurante
Conran, o que irrita Marcus, que diz grosseiramente:
— Mas você é um veterinário!
Meu queixo cai. Tom engole uma risada e diz:
— Eu sei! Dá para acreditar nisso? Meu casaco era o mais velho naquele
restaurante!
Marcus franze a cara.
Desabo em uma cadeira.
— Para que horas você fez a reserva? Não seria melhor pôr-se a caminho? —
Pergunto para Michelle.
Ela dá uma olhada em seu relógio fino, de ouro.
— Não há pressa — ela me diz. E, voltando-se para minha mãe. — Sim,
continue! — Reprimo um suspiro. Meu pescoço está tão tenso, que dói. Quando Tom
começa a servir a omelete para minha mãe e Nana, a tensão já espalhou-se para meus
ombros e mandíbula.
Marcus fica próximo à mesa.
— Michelle — ele diz, sério —, precisamos ir.
Michelle estica seu lábio inferior e diz:
— Cinco segundos, amorzinho. A Sra. Bradshaw está em uma parte
interessante!
Marcus senta-se pesadamente na cadeira próxima de Tom. Posso ver Nana
fitando-o.
— Mesma altura — diz. — Ela tem razão, quanto à altura.
Marcus sorri, sem graça. Cerro os dentes. Tom pisca um olho para mim.
— Alguém quer ketchup? — ele pergunta.
— Eca! — minha mãe diz.
Nana balança a cabeça:
— Não para mim, querido.
Ei! Não quero ser chata, mas eu, sua neta, raramente recebo a cortesia de ser
chamada por meu próprio nome, enquanto Tom, um homem que ela nem sabia que
existia há uma hora, é "querido"?
— Helen — Tom diz —, quer ketchup?
Sacudo minha cabeça.
— Só eu, então — ele diz, alegre. Segura o frasco de cabeça para baixo e dá um
tapinha forte no fundo. Uma porção vermelha e grande lança-se pelo ar e aterrissa,
splat!, na camisa amarela de Marcus.
— Sinto muito. — Tom diz, contente, enquanto Marcus salta da cadeira, com
um gemido de sofrimento. — Não faço nada direito.
Cubro a boca com a mão e engulo um pouco da omelete mais rapidamente do
que pretendia. A boca de Michelle está um "o" perfeito, rubro de indignação e surpresa.
Minha mãe e avó olham, hipnotizadas, para Marcus, enquanto este grita para Tom:
— Seu idiota!
Michelle acompanha-o até o quarto para trocar-se.
— Chegaremos muito atrasados! — ela diz, com raiva, para Tom, enquanto sai.
Nana Flo dá um tapinha na mão de Tom. Não me diga que ela também está
interessada!
— Que coisa, tanta confusão por nada! — ela diz.
Sorrio, fracamente, para Tom. Embora seu truque com o ketchup faça com que
eu sinta vontade de abraçá-lo, sinto-me incapaz de levantar da cadeira. Porque, no
momento em que a boca e os olhos de Marcus estreitaram-se de raiva, um raio súbito e
enjoativo de percepção atingiu-me. Por que e como não percebi antes? E inegável. Não
tanto os traços ou o físico, mas a postura, o temperamento, a instabilidade. Meu pai, a
imagem perfeita.
Corro para o banheiro e vomito a omelete. Dei apenas duas mordidas, porém não
conseguiu cessar as contrações de meu estômago.
CAPÍTULO 27
Lizzy é preciosa em minha vida por várias razões; entretanto, a coisa mais gentil
que ela já fez (em minha opinião) foi cair no sono, no meio de uma noite romântica com
o namorado da época, antes de terem a chance de fazer algo que induzisse o sono. Ela
acabara de voltar de um feriado com a família na França e o pobre homem estava
desesperado para recepcioná-la, de "modo tradicional", como ele chamou.
— Ele ficou tão zangado, que aquilo serviu como a gota d'água no
relacionamento — ela diz.
O que me impressionou mais, porém, é que Lizzy estava tão tranqüila ante a
perspectiva de fazer sexo, que conseguiu adormecer antes de seu amado ter tempo de se
despir. Comigo, a excitação estraga tudo. Sou um martini humano — a qualquer hora,
em qualquer lugar. Ou será que isso é frase do chocolate Bounty?
De qualquer maneira, logo depois que devolvi minha omelete, Michelle e
Marcus saem a toda, no RAV4, para uma refeição de verdade; minha mãe e Nana Flo
partem no Peugeot, para assistirem a um filme de Clint Eastwood, na TV. Antes de sair,
mamãe diz:
— Você não precisa se preocupar em aparecer lá em casa amanhã. Sairei para
fazer compras com Vivvy!
Minha avó chama-me acenando com um dedinho e diz:
— Você está excitada demais! Precisa dormir cedo.
Concordo e falo:
— Tudo bem, mãe. Você tem razão Nana.
Depois que saem, encosto-me na porta e finjo ter um calafrio. Tom, o viracasaca,
diz:
— Nana Flo está certa.
O que é isto? Uma conspiração?
— Não há nada errado comigo — minto.
Preciso estar bem. Tenho certeza de que esta noite teremos alguma ação! Eu
deveria escovar os dentes e passar fio dental. Tom sugere que eu deite no sofá por
alguns minutos, enquanto ele põe a louça na lavadora.
— Tudo bem — digo —, mas apenas como um favor.
Jamais imaginei, em toda a minha vida, que a exaustão superaria minha libido.
Sinto-me drogada. Não consigo mexer nem uma perna.
— Fique — murmuro, sonolenta, enquanto Tom deita-me, na minha cama.
— Aqui? — ele sussurra.
— Sim... — falo, num sopro. Fico imóvel, morta de sono, enquanto Tom luta
para tirar minhas botas. Um medo diluído percorre meu corpo — se ele cheirá-las? —,
mas estou comatosa demais para me importar.
Ele inclina-se, para mim, e sussurra:
— Posso tirar suas roupas?
Respondo — e juro que não teria dito isso, se estivesse consciente — "pode
sim". Por este motivo, acordo domingo de manhã, às dez e vinte dois, sem minhas
roupas e, atravessada sobre o peito nu — direi isso novamente, n-u-z-i-n-h-o — de
Tom.
Meus olhos abrem-se de vez e o vejo dormindo. Seus cabelos estão ainda mais
despenteados do que o normal e seu rosto está corado. Ele respira, profundamente.
Ombros largos. Ergo o cobertor um pouco, para inspecionar seu tórax e, uau!, já vi
piores. Sem um exagero de músculos, mas definido, sólido. Mamilos bonitinhos. Não
assustadoramente peludo como Marcus. Imagino se ele está nu, também da cintura para
baixo. Penso, também, se seria possível esgueirar-me até o banheiro — o que envolveria
uma manobra para passar por cima dele, de calcinhas, exceto por isso, nua — e escovar
meus dentes. Corro a língua entre eles. Parecem camurça. Será que posso arriscar-me?
Olho rapidamente. para Tom, querendo ver se ele ainda está dormindo, ele
ronca, suavemente, pelas narinas, de modo que me acho segura. Estou levantando o
cobertor, tentando espiar mais para baixo, quando uma certa mão lança-se para fora e
agarra a minha, ele exclama:
— Peguei você!
Grito. Ele agarra minha outra mão, se debruça sobre meu corpo — neste ponto,
percebo que ele usa cuecas de perninhas — e me prende à cama.
— Então! — ele diz, com os olhos azuis penetrando nos meus. — Você achou
que poderia ter uma préviazinha, hein?
Estou me retorcendo e dando gritinhos — em parte por choque, em parte por
horror —, mesmo porque meu próprio peito está plenamente visível e nem mesmo
dormimos juntos, ainda. No sentido mais rude do verbo, quero dizer. Isto está errado!
Eu havia visualizado um strip-tease lento e provocante. Eu lhe daria, como prêmio, meu
sutiã de enchimento, cheio de rendinhas, e suas mãos acariciariam minha pele. Eu
desabotoaria sua camisa, para revelar seu torso lindamente tonificado, seus bíceps duros
e fortes, abriria lentamente a fivela de seu cinto, sentindo sua, é..., excitação crescendo
por baixo de suas cuecas Calvin Klein (preferencialmente cinza, de algodão, sem
complicações). Maldição, maldição dupla.
— Dá licença! — exclamo alto, tentando obscurecer meus seios com os ombros
(nem se dê ao trabalho de tentar, é fisicamente impossível). — Preciso escovar meus
dentes! Eles estão sujos!
Tom ri e murmura:
— Gosto de coisas sujas!
Ele inclina-se e roça meu mamilo esquerdo com os lábios e uma grande e
latejante pancada de desejo varre meu corpo. Arqueio as costas, ao encontro dele,
estamos nos beijando e eu digo: "Aiii..." para desculpar-me por meu hálito de cachorro.
Ele diz:
— Helen, você é muito bonita. Meu Deus, você é gostosa!
E eu penso: Quem, eu? Você está falando comigo? Não vejo mau ninguém por
aqui...
Sabe de uma coisa? Sinto-me realmente sexy, muito gostosa, a mulher mais
sexy, ali no quarto e, subitamente, agarro-o e o beijo, sugo, lambo, ele está me beijando,
sugando e lambendo — não me sinto tão delirante, desde que descobri que meu
chocolate preferido. era vendido também em minitabletes — e estou atacando Tom do
mesmo modo ansioso, apaixonado e sedento. Ele me agarra, esfomeado. Suas mãos e
boca estão por todos os lados e, quando puxo seus cabelos e mordo de leve seu pescoço,
ele geme, corre seus dedos por minhas costas, por meu estômago e, mais para baixo,
isso parece promissor.
— Tire isso! — ouço-me, dizendo, ele está arrancando minhas calcinhas pretas
e estou puxando sua cueca — azul-marinho, mas se fossem cuecões laranja até os
joelhos, não me importaria... Bem, talvez por um segundo, mas não — auuú!
Não vou me desculpar por nossa impressionante falta de originalidade. Exclamo
"ah, mas ele é grande!", ele abre a boca, surpreso, e diz:
— Ah, Helen! É tão bom tocar você...
É tudo maravilhoso, espero que meu pai não esteja escutando, Tom e eu estamos
tão desesperados que, enquanto penso nisso, falo ao mesmo tempo:
— Ponha em mim!
Seu pênis bate contra a parte interna de minha coxa, nós dois damos um risinho
abafado e ele exclama:
— Opa!
Eu rio e comento:
— Parece uma mola!
E então... ah, meu Deus. A sensação é, indescritivelmente deliciosa, desmanchome
em uis e ais. Ele cabe justinho, quase estourando, em mim, estamos nos beijando,
movendo juntos, tão colados, que não quero que isso termine, mesmo quando faço um
ruído alto e esquisito como se soltasse gases, sinto vergonha, ele sorri e exclama "eia!" e
me beija com mais vontade ainda. Penso em todas as minhas transas e em todas as
minhas sessões de prática solitária (até a morte de meu pai, posso dizer que eu era,
razoavelmente, aplicada). Jamais pensei que pudesse ser assim.
Então, é claro, estrago tudo. Gozo primeiro.
— Primeiro as damas! — ele brinca, antes de se juntar a mim, cinco segundos
depois, e o êxtase inacreditável traz consigo uma onda violenta e inexplicável de
tristeza. Mordo meu lábio para cessar os soluços. Tom sai de mim rapidamente, com um
braço passando sobre minha barriga e diz, queixoso:
— Podemos repetir?
Começo a rir e falo:
— É como se tivessem extraído todos os meus ossos! — Ele sorri e rola para o
lado, beijando o pedacinho mais próximo de meu corpo, o queixo. Então, diz:
— Bela Helen.
Ele olha em meus olhos e não é o desejo que me mata, é a — argh, detesto esta
palavra — ternura de nossa ligação. Isso é novo e me causa perplexidade. Faz com que
me encolha toda, em carne viva, exposta como um ferimento aberto. Depois, o choro
volta como uma vingança e as lágrimas começam a cair, até que rolam descontroladas e
eu, estúpida, estúpida, choramingando e berrando como um grande bebê pequeno. Tom
olha-me, horrorizado, e diz:
— Não foi tão ruim assim, não é?
Rio, mas ainda estou chorando. Choro tanto, que meus dentes batem uns nos
outros. Ele me abraça, me aconchega e diz:
— Conte-me, Helen, por favor, diga o que houve.
Tom não deveria ter perguntado. Realmente não deveria. Não tem nada a ver
com ele. Mas, ele pergunta e tudo derrama-se de uma vez. Coisas que eu nem sabia que
existiam dentro de mim. Tudo sai de mim, como um jorro sairia por um cano estourado.
Ele me deixa falar. Apenas escuta, enquanto despejo minhas mágoas.
— Ele foi embora e não voltará, ah, meu Deus, não posso acreditar nisso,
ninguém entende. Estou tão sozinha, não sei mais quem sou, quem sou no mundo e
porque é assim, nem sequer éramos íntimos, jamais o compreendi, ele mal me conhecia,
quem eu era e, agora, é tarde demais, tarde demais para consertar as coisas e nunca
falamos, nunca perguntei por que ele não se preocupava comigo, simplesmente não
podia e não sei por que me sinto assim, e ninguém entende, é tudo ela, tudo gira em
torno dela, de como ela está, ela nunca pensa em mim e eu pensei que já havia superado,
não chorei no funeral, estava entorpecida, não sentia nada, tudo tão estranho, até Lizzy
chorou e eu não conseguia, não merecia chorar, eu o decepcionei, não fui boa o bastante
e ele morreu e eu nunca disse que o amava e ele nunca disse que me amava, ele dizia
que eu era um grinch, ah, meu Deus, não suporto isso, preciso que ele volte, mas por
que ele não volta? Quero vê-lo novamente, eu o detesto, detesto como ele me faz sentir,
me sinto tão mal, à deriva, isto é o pior, é pior do que jamais imaginei, sou uma fraude,
estou tão zangada, a raiva não vai embora, como posso sentir-me assim, eu nem sei o
que deveria sentir, entretanto sinto medo, tenho tanto medo, e se mamãe morrer
também, e Nana está a caminho disso e Tina e Lizzy e Luke e o Gorducho e agora você,
tenho tanto medo que todos morram, no entanto, posso dizer, porque eles não
entenderão e, ah, Deus, não posso acreditar, ele é meu pai e isso não é justo, estou tão
cansada, não posso nem sonhar com ele, outras pessoas sonham com alguém que já
morreu e elas voltam, abraçam-nas, sorriem, dizem que estão bem e para serem felizes,
porque são amadas e estão em uma droga de um quarto branco e eu não posso nem fazer
isso, ele não aparecerá em nenhum sonho, ele nem mesmo me dirá como está, é tarde
demais para tudo, ele nunca esteve ao meu lado, nunca esteve comigo, então por que
sinto sua falta, ah, meu Deus, ajude-me, é tudo minha culpa...
Nenhum vexame poderia ser pior.
CAPÍTULO 28
Estou tão louca e confusa,. que só percebo o horror de tudo mais tarde. Quando
as palavras escapam de mim, Tom me balança e abraça. Ele não diz para acalmar-me,
somente fricciona minhas costas e escuta. Tudo o que ele diz é:
— Helen, você não acha que precisa... Bem... Entender melhor algumas coisas?
Sacudo minha cabeça porque não sei. Sinto vergonha.
— Por favor, passe minhas roupas — digo, seca.
Tom inclina-se até o chão, pega uma camisa e me ajuda a vesti-la. Sinto-me
enfraquecida.
— Desculpe-me — digo, com a voz grogue. — Não sei o que aconteceu.
Ele responde:
— Não importa. Mas, Helen, eu só, talvez... Lizzy, Tina, eu, não vamos morrer.
E você não tem de pensar que não é boa o bastante. Não sei o que dizer — você é ótima
e — neste ponto, sua voz torna-se mais vigorosa — seu pai deveria ter-lhe dito isso.
Isso é muito gentil, embora eu não tenha certeza se gosto quando ele fala assim
sobre meu pai. Sinto-me cansada, com vontade de chorar novamente e digo:
— Você se importaria se eu tirasse um cochilo?
Tom beija-me e então me enrosco para dormir. Sempre que penso no que falei,
meu coração salta no peito como uma gaivota em um mar revolto. Eu era nada com meu
pai e sou nada sem ele. Que sentido existe em minha vida? Não sou uma força positiva,
Qual é o sentido de qualquer coisa? Quero encolher e deixar de existir. Poderia chorar,
mas não existem lágrimas suficientes no mundo para extinguir esta dor. Faço com meu
corpo a menor bola possível e afundo em um sono, que mais parece a morte.
Quando desperto, são duas e vinte da tarde e estou morta de fome. Também
tenho uma dor de cabeça latejante. A loucura do dia volta à minha consciência, contraio
meus músculos; involuntariamente. Não consigo nem começar a pensar sobre o sexo
porque não posso parar de pensar no meu vexame. Prefiro manter meus instintos mais
básicos para mim mesma. Emoções profundas e negras sobre papai incluídas. São
pessoais, demasiadamente íntimas, infernais demais, para serem divididas com alguém.
Como pude deixar que Tom as arrancasse assim de mim? Sinto-me como se tivesse
vomitado minha alma.
Deixo-me ficar deitada, imóvel, por um longo tempo. O quarto está vazio,
exceto pelo Gorducho, empoleirado na janela. Ao perceber que me mexo, ele diz
"prrrrt!" e vem até mim. Deve estar querendo algo. Estou deitada de costas, acaricio o
Gorducho ~ penso: Ai, Jesus, o que foi que eu disse? Sinto-me tonta, como se tivesse
bebido muito vinho, e estranhamente vazia. Imagino se Tom já foi embora, quase espero
que sim. Mas não. Posso ouvir uma risada na sala. Vou pé ante pé até a porta, abro-a um
pouquinho e percebo que ele conversa com Luke. A conversa parece ser sobre qual
deles dirigiu mais tempo com os olhos fechados.
Tom conseguiu dirigir por três segundos antes de "abrir os olhos, apavorado".
Luke vangloria-se de ter dirigido por sete segundos. Pelo que posso perceber, ambos
eram adolescentes na época, mas mesmo assim! Visto uma calça folgada de ginástica,
entro devagarinho e comento:
— Como puderam fazer isso!
Ambos assustam-se e começam a dizer:
— Foi no meio da noite!
— Não havia ninguém na estrada!
Levanto a mão e digo, mal-humorada:
— Não quero ouvir. Vocês poderiam ter matado alguém!
Não suporto olhar Tom nos olhos. Desde hoje cedo, ele me conhece por dentro e
por fora, literalmente nua, é horrível demais saber disso. Assim, concentro-me em Luke.
Isto é um erro, porque ele me olha atentamente e diz:
— Por que seus olhos estão, assim, tão inchados?
Retruco:
— Por nada! — para evitar um interrogatório maior, falo. — Há algo para
comer?
Tom pula e diz:
— Vamos sair e comer alguma coisa!
Embaraçada, pergunto:
— O quê, vestida assim?
Ele levanta a mão, ergue meu queixo e diz:
— Mas, Srta. Bradshaw, você está linda! — então, em tom mais sério. — É
verdade, está sim.
Torço o nariz e peço:
— Espere um segundo, enquanto calço alguma coisa e ponho os óculos escuros.
Dez minutos depois (após um desvio até o banheiro, para tentar parecer algo
diferente de um gárgula), estou pronta.
— Posso ir junto? — Luke pergunta.
— Não — Tom fala, com ar de mau. — É uma coisa a dois.
Luke arregala os olhos:
— O quê! — ele diz. — Você e Helen!
Não tenho certeza se deveria impressionar-me ou sentir-me insultada por Tom
não ter contado que me levou para a cama. Assim, brinco:
— Por que você está tão surpreso, Luke? Será que Tom é bom demais para
mim?
Luke balança, freneticamente, a cabeça e diz:
— Não, cara — você é boa demais para ele.
Seu cumprimento delicioso é temperado com o apelativo "cara". Não quero
menosprezar o feminismo, mas preferiria ser chamada de "querida". Ainda assim, digo,
agradavelmente:
— Luke, você é um doce — embora esteja cansada, faminta e farta de
brincadeirinhas.
Tom repete, alegremente:
— Luke, você é um doce.
Luke mostra-lhe o dedo médio levantado. Sinto alívio, quando Tom pergunta:
— Pronta?
O dia está congelante, mas vamos até Golders Green, compramos quatro pães
com requeijão e salmão defumado e dirigimos até Heath Extension. Como meu primeiro
pãozinho no Honda Civic EX enferrujado de Tom.
— Você não deu um nome ao seu carro, deu? — digo, com suspeita.
— Mas é claro que não — ele responde. — Seria como dar um nome ao meu
pinto!
Rio. Discutimos sobre o carro ideal.
— Não sou realmente uma pessoa muito ligada em carros, mas se tivesse algum
dinheiro, acho que teria um Jaguar S-type. Um carro com personalidade. O único
problema é que eles parecem claustrofóbicos.
Tom diz:
— Então não é muito difícil agradá-la, nem nada?
Tom adora Jaguares, mas perdeu um pouco sua fascinação, quando seu primo de
trinta e dois anos comprou um XJ8.
— E daí? — pergunto.
Ele diz:
— Você sabe, este é o modelo grande, de luxo, com interior de madeira e tal.
Ele estava contando vantagens sobre a "suspensão dianteira" e minha irmã disse,
subitamente, em tom sonhador: "Jaguar é carrão de velhão..." Ela é hilária!
Simplesmente diz coisas assim. Adoro isso. Meu primo calou-se. Acho que ela arruinou
seu momento de glória.
Dou uma risadinha:
— Bom, mas o modelo grandão é mesmo para caras cinqüentões, não é?
Tom responde:
— Pode até ser, mas, mesmo assim, tem classe.
Caímos em silêncio, contemplando brevemente o inatingível.
— O que você acha pior? — pergunto — um Honda Civic ou uma Toyota
Corolla? Tom encolhe os ombros e diz:
— É tudo a mesma porcaria!
Estamos guinchando de tanto rir (embora eu acaricie o painel do Honda e diga
"pobre carrinho!") quando Tom dá a partida.
O Heath Extension é um amontoado de campos verdes no meio da parte elegante
do nordeste de Londres. Adoro o lugar, porque, em sua grande parte, é sujo e
descuidado e possui um toque menos comercial do que Hampstead Heath. Andamos até
um banco de madeira, levando nossos pães e discutindo sobre nossos carros dos sonhos.
O céu está de um azul pálido com agrupamentos de nuvens, nossos hálitos formam
vapor no ar seco. Há algumas poças congeladas por ali e afundo meus saltos nelas para
quebrar o gelo. Sentamo-nos em nosso banco e comemos nossos sanduíches enquanto
outras pessoas levam seus cães para passear — um cão marrom faz-nos rir, arrastando
seu traseiro pela grama enquanto seu dono grita "Brandy!", fingindo que não o conhece.
— Aqui é tão tranqüilo! — falo, suspirando.
— Hum... — Tom diz, com sua boca cheia de pão. — Dê-me um beijo.
Eu o beijo inocentemente no rosto e falo:
— Seu nariz ficou cor-de-rosa.
— Está tão frio, que nem o sinto.
Termino meu sanduíche e ele me abraça ao encontro do seu corpo. Apreciamos
o panorama. Céu pálido, árvores nuas, chão congelado, silêncio. Tudo parado. Suspiro.
Um momento perfeito de felicidade. Começo a pensar que talvez eu realmente
precisasse contar a alguém sobre meu pai e estou pensando em como é fácil conviver
com Tom, como é tranqüilo, sem tensão, e no milagre que é na cama, quando ele estraga
o momento, dizendo:
— Helen, sobre o que você me contou sobre seu pai. Sei que é difícil falar de sua
perda, mas você estava, está, tão triste e eu achei que talvez você estivesse punindo-se
por algo que nem é sua culpa e talvez fosse útil...
Não, não, não.
— Não, pare! — interrompo, em tom mais cortante do que pretendia. Tom pára.
Hesito. Depois completo. — É gentil de sua parte, mas...
Desta vez Tom é que me interrompe. Sua voz mostra-se aborrecida:
— Helen, não estou sendo caridoso, isto não é um exercício de bondade, para
fazer com que eu me sinta bem. Pode parecer estúpido e inacreditável, mas gosto de
você e queria vê-la bem; entretanto, acho que você só se sentirá mal, se continuar
negando o que sente sobre seu pai, como ele era e continuar andando com loucos como
Marcus, não há sentido nisso, por que ser uma mártir, p...
Salto do banco e grito:
— Pare com isso! Você não sabe!
Como é que ele pode saber sobre Marcus? Tom cala-se. Parece assustador como
uma tempestade prestes a desabar. Respiro, profundamente, sento-me novamente e dou
um tapinha em sua perna.
— Desculpe-me — então resmungo. — Como você soube sobre Marcus?
Tom responde, sem pestanejar:
— Precisaria ser estúpido para não perceber.
Mordo meu lábio. Depois digo:
— Foi há séculos e apenas uma vez. Um erro. Desculpe-me por ter gritado.
Perdoe-me. Estou bem, não sei o que me deu... Quero dizer, não sei por que fiquei tão
chateada esta manhã, ou melhor, eu sei sim — aqui eu abro meu coração por um
segundo e o mostro totalmente, para que ele perceba meu grau de sinceridade. — Fiquei
chateada porque meu pai morreu e isso é esquisito, mas foi principalmente porque, na
verdade, tenho certeza que... bem, estou sendo chutada, não tenho para onde ir. Este é
mais um estresse, além de todos os outros.
É um mau hábito que tenho, admito. Não afirmo o que desejo, pura e
simplesmente, como Laetitia. Apenas sugiro. Sugerir não é, eu sei, o modo mais
corajoso de pedir. Mas, pelo menos, se você sugere e é rejeitado, a rejeição pode ser
esquecida, em vez de deixar marcas. Porém, se você pede diretamente e é rejeitado, a
humilhação é tão aparente quanto as marcações em um campo de futebol. De qualquer
modo, a menos que Tom seja um imbecil, ele, certamente, entenderá a dica e, se gostar
de mim tanto quanto afirma, correrá em meu auxílio como um anjo da guarda e pedirá
que eu e o Gorducho nos mudemos para seu apartamento. Faço uma pausa. Tom não
fala nada. O que ele é, retardado? Então ele diz — e parece que detecto um fio de frieza:
— Sua mãe não lhe disse que você poderia morar com ela até encontrar outro
lugar?
Respondo com mau-humor:
— Sim, mas você a conheceu — ela é um pesadelo! E eu tenho vinte e seis
anos! Não posso viver corri minha mãe e minha avó, pelo amor de Deus!
Espero que Tom compreenda, mas se faz de bobo. Ele responde:
— É melhor do que morar embaixo da ponte. Você não consegue alugar um
quarto em algum outro lugar?-
Ao ouvir isso, perco a paciência.
— Leve-me de volta para casa! — berro.
— Tudo bem, se é assim que quer — rebate.
Marchamos de volta para o carro, em silêncio. Todos aqueles agrados e ele não
consegue nem me ajudar quando preciso! Ele sábia o que eu queria. Não nos falamos,
exceto por um momento em que ele diz:
— Se você quer saber, seria bom para você morar com sua mãe, poderia contarlhe
um pouco do que contou a mim.
Eu urro:
— Não pedi sua opinião!
Ele freia ruidosamente na frente do prédio de Marcus. Salto, cuspo um "Tchau!"
e bato a porta. Tom aperta as mandíbulas e sai com tanta pressa e arrogância quanto um
Honda Civic EX pode oferecer. Que, como observo, com prazer, não é muito.
Entro, tranco a porta e grito:
— Droga!
E vejo Marcus vindo como um raio em minha direção. Ele urra:
— Chega! Chega!
Olho sua aproximação tempestuosa, com distanciamento. Este, penso comigo
mesma, é um dia realmente digno de nota. Não sinto nenhuma emoção. Grito no
máximo de meus pulmões (e neste aspecto sou bem como minha mãe):
— O que é isso, seu grande e imenso bostinha miúda?
O rosto dele torna-se azul. Ele troveja:
— Você tem coragem de falar comigo assim, sua nojenta! Seu gato safado
trouxe um pombo para casa! Um grande, gordo, maldito pombo batendo asas em minha
cozinha, cagando por tudo!
Embora eu deteste os hábitos de caça do Gorducho, rujo:
— Você não sabe nada, seu grande idiota gordo, um pombo, vindo de um gato, é
um presente! Ele trouxe-lhe um presente!
Marcus grita tanto, que sua voz falha:
— Levei duas horas para pegá-la! Duas horas! Eu deveria estar na academia!
Digo, contente:
— Para quê? Para tornar seus peitorais maiores e seu pau ainda menor?
Isso parece-me extremamente engraçado e começo a rir.
Marcus brande um punho fechado em meu rosto e ameaça:
— Quero você fora daqui esta noite! Está ouvindo? Esta noite! Não esqueça
aquele gato gordo e preguiçoso, porque se eu o pegar, você sabe o que vou fazer? Vou
pisar bem em cima daquela cabeça laranja e amassá-la, até virar polpa!
Minha voz pinga sarcasmo:
— Ei, grande homem! — então, em voz normal. — Marcus. Adivinhe. Você não
me mete medo. Você e suas ameaças. Pode gritar quanto quiser. Não tem poder. Está
impotente.
É verdade, ele sabe disso. Não pode me atingir. Passo por ele, triunfante. Depois,
retiro o Gorducho do roupeiro de Luke — seu esconderijo favorito, pois está cheio de
roupas quentes, macias e sujas — e o levo para o meu quarto.
— Anjinho! — exclamo. Faça suas malas, estamos de mudança.
O Gorducho vê a si mesmo no espelho e sibila. Detesto dizer isso, mas ele pesa
tanto quanto um tijolo. Acho que é um aviso de que jamais devo atrever-me a ter filhos.
Ligo para minha mãe e pergunto se ela se importaria caso me mudasse esta
noite. Ela diz:
— Oh, tudo bem. Só que não sei onde você dormirá. Não há cama no estúdio e
Florence está no quarto de hóspedes.
Respondo:
— Posso dormir no sofá da sala.
Ela pensa por um segundo e depois diz:
— Mas Florence e eu estamos assistindo um filme.
Suspiro e falo:
— Bem, só irei dormir depois que o filme terminar, OK?
Pacificada, responde:
— Então, está bom.
Desligo o telefone. Descanso a cabeça em minhas mãos e penso que, se pelo
menos minha mãe tivesse possuído um gato, teríamos todos sido poupados de muitos
pesares.
CAPÍTULO 29
E se meu obituário declarar que eu tinha um talento para fracassar em tudo o que
fazia? Começo a encucar com isso, ao ler sobre um Sr. Cane, no Daily Express. "O
advogado afirmou que o Sr. Cane, que não fora dado como desaparecido, era uma
pessoa solitária, introvertida, tímida e que parecia ter um talento para fracassar em
quase tudo o que fazia." Sento-me no trem, mas não consigo tirar esta sentença da
mente. Um talento para fracassar em quase tudo. Que legado terrível. Isso realmente
preocupa-me, porque sinto que estou tomando o mesmo rumo.
Moro agora com minha mãe e minha avó, que preferem Robert Redford a mim.
Sou fraca demais para morar sozinha. Ainda sou a monitora do desodorante no trabalho.
Tom odeia-me. Não tenho um guarda-roupa atualizado. Nós destruímos a camada de
ozônio. Há um ponto comichando em minha barriga, que pode ser uma mordida de
pulga. Um incêndio florestal em algum lugar muito quente dizimou milhões de árvores.
O que anula o fato de eu ter reciclado todos os meus jornais, semana passada. Um
meteorito, provavelmente, pulverizará a Terra. Eu não suporto o que estou vestindo.
Alguém está envenenando golfinhos. Morro de pavor de agentes imobiliários, de modo
que estou condenada a viver com minha mãe para sempre. Meus cabelos estão sem vida,
como se eu os tivesse colado em meu coro cabeludo. Ninguém sequer percebeu que o
Sr. Cane havia sumido. Quando chego ao trabalho, sinto-me um pouco deprimida.
Assim, não reajo com nenhuma alegria quando, ao voltar do banheiro, Laetitia
anuncia em voz de Concorde levantando vôo:
— Helen, telefonema particular para você, é seu enfermeiro psiquiátrico
comunitário!
Sinto-me paralisada no mesmo momento e a olho, assim como todos no
escritório. Laetitia gorjeia docemente:
— Quer que transfira a ligação?
Olho-a, com a cara no chão, e respondo:
— Por favor.
Ela sorri com uma careta. Decido interceptar seu convite para o baile de Natal
das debutantes de Hasbeen e mudar o traje, de "black-tie" para "trajes de apicultor".
Agarro o telefone:
— Sim? — digo, chiando de raiva e protegendo o bocal com a mão, para que
não me escutem no escritório.
— Helen Bradshaw? — pergunta uma voz quente. — Perdão por incomodá-la
no trabalho. Cliff Meacham, o EPC de sua mãe. Espero que ela tenha avisado que eu
iria ligar.
Engulo em seco. Estou borbulhando de raiva por sua indiscrição, quando ele
acrescenta:
— Sua colega não queria passar a ligação, a menos que me identificasse. Mas
podemos marcar um telefonema para outro momento, se preferir.
Eu o desculpo, faço uma anotação mental para que, no convite de Laetitia,
conste também "favor trazer sua própria colméia". Suspiro e falo:
— Você poderia ligar-me na hora do almoço?
É claro que ele poderia, o desgraçado. Ele faz exatamente isso.
Graças a Deus Laetitia está almoçando com um "contato" no Ivy, de modo que o
escritório está deserto. Espero que Cliff salte as gentilezas e chegue logo ao ponto, mas
parece determinado a manter um longo bate-papo.
— Então você é jornalista! — ele começa — Que excitante! Você entrevista
muitas pessoas famosas?
— Ah, sim, demais até para o meu gosto. — Respondo, tentando não rir ali
mesmo.
Cliff está tão entusiasmado por sua visão glamourosa de minha profissão, que
invento três entrevistas exclusivas com celebridades para não desapontá-lo.
Seu interesse é sedutor, estou explicando por que Demi preferiu confidenciar a
mim suas dificuldades com o casamento antes de contar ao próprio Bruce, quando
percebo que estou indo fundo demais e devo bater em retirada agora.
— De qualquer maneira, chega disso. Ela é uma pessoa muito reservada. O que
posso fazer por você? — pergunto, educadamente.
Cliff força-se a voltar à realidade mundana e me conta sobre a importância de
compreender minha mãe, seu relacionamento com meu pai e como ela mudou desde o
falecimento.
— Mas achei que você já havia perguntado tudo isso a ela!
Ele me diz que é útil ouvir também minha impressão sobre os eventos. Digo, na
frase mais vazia do ano:
— Ela tem passado por altos e baixos.
Ele não responde, de modo que acrescento:
— Tenho tentado cuidar de mamãe, mas ela sente falta de meu pai.
Paro. Nada ainda.
Então Cliff diz, casualmente:
— Como você cuida de sua mãe?
Conto-lhe sobre nossas sessões na cozinha, sobre passeios a galerias de arte,
sobre o reiki e sobre o jantar. Digo que tento escutá-la e que forcei Vivienne a convidála
para uma festa. Cliff diz:
— Uau.
Estou cansada de falar, mas ele não percebe. Faz mais noventa perguntas sobre
minha mãe. Ele quer saber quem considero mais forte em nosso relacionamento. Quer
saber, também, quem é a pessoa, cujas necessidades são prioridade. Quer saber tudo o
que eu preferiria não lhe contar.
Depois, indaga:
— E o que acontece, quando precisa de alguém que cuide de você?
Vejo um grande branco na minha frente.
— Não estou entendendo — respondo.
— Bem, quando você precisa de uma mãe, o que acontece?
Esta pergunta teria sido mais apropriada, quando eu tinha quatro anos.
Respondo, bruscamente:
— Não é bem assim.
Escuto, enquanto Cliff dá uma longa tragada em seu cigarro de palha.
— Entendo — fala, em tom indefinível.
Ele tosse, desculpa-se e diz que amanhã minha mãe tem consulta marcada, na
clínica, e que, idealmente, gostaria que eu comparecesse a, pelo menos, uma sessão com
ela!
— Adoraria — minto —, mas acho que não poderei.
Cliff faz uma pausa.
— Trabalho — explico.
Ele sugere que eu pense nisso.
— Sim, claro! — digo, rapidamente. — Há mais alguma coisa que eu possa
fazer?
Pergunto, na esperança de dispensá-lo, mas ele, obviamente, ignora minha
intenção, explicando que é útil compreender a família "como um todo".
Estou balançando a cabeça e dizendo "hum...", imaginando o que Cliff faz nas
horas vagas, quando ele me pergunta de que maneira a vida mudou, desde a morte de
meu pai. Minha cabeça vira um lamaçal. Penso em meu surto pós-orgástico, minhas
entranhas reviram-se, em pânico. Os dedos coçam para bater-lhe o telefone na cara e
sumir dali. Depois de um minuto inteiro, Cliff diz:
— Penso que você está tendo dificuldade para falar sobre suas emoções.
Ele deve ter o Manual de psiquiatria para Leigos aberto, no colo na página sete.
Respondo sem humor:
— Não sinto nada. — Isso é quase verdade. Cliff silencia, descrente. Digo, ainda
— tenho estado muito ocupada no trabalho e cuidando de minha mãe — ele ainda
permanece em silêncio. É como falar com uma pedra. — Ela tem estado muito
deprimida desde... Bem, você sabe...
— O quê? — ele pergunta.
— Desde a morte de meu pai! — retruco. Do que ele acha que estou falando?!
Do rebaixamento do time de futebol preferido de mamãe?
— Ela cortou os próprios pulsos! — exclamo. Cliff parece esperar uma
elaboração, de modo que lhe conto o que aconteceu, embora tenha certeza de que
mamãe também já contou esta história, em detalhes enjoativos. Deixo claro que a noite
em que ela cortou os pulsos foi a única segunda-feira que deixei de ir à sua casa e,
naturalmente, depois disso, não faltei mais. Não quero ser acusada de negligência para
com minha mãe, uma segunda vez.
Mas, quando termino, Cliff diz:
— Você tem dedicado muito tempo a sua mãe.
Concordo e percebo que ele não pode me ver sacudindo a cabeça.
— Bem, ela precisa de mim agora — digo.
Ele cai em silêncio novamente. Mas, que coisa! Eu detestaria ser sua namorada.
Brinco:
— Dou as costas por um minuto e bam!, ela vai e corta os pulsos!
Não é uma de minhas melhores piadas, e Cliff não ri. Ele diz que tem a
impressão de que minha mãe tentou forçar-me a cuidá-la.
— Mas, eu estava cuidando! — protesto, exaltada. Eu sabia que esta conversa
daria nisso.
Depois, ele diz que pensa que ela estava tentando punir-me, por não estar lá.
— Bem, nisso você tem razão — digo, azeda.
— Mas, Helen — pergunta —, e quanto à sua vida?
Canso-me, rapidamente, desta conversa. É como um programa de perguntas
extremamente enfadonho, sem o incentivo do prêmio em dinheiro.
— O que tem minha vida? — indago, irritada.
— Você não pode viver totalmente para sua mãe!
— Não, mas — começo, mas então paro. — Não estou fazendo isso. Ela precisa
de mim. De qualquer modo, não tenho nada melhor para fazer. Ela não tem mais
ninguém — falo, de mau humor.
— Ela tem a si mesma — responde.
Estou pronta para dizer-lhe sobre a tolice de seu comentário, quando Cliff
acrescenta que não é normal uma mãe ser tão dependente de uma filha. Cliff diz que,
quanto mais alto eu pulo, sempre que ela me aperta, pior fica.
— Isso, simplesmente, não ajuda em nada — ele conclui.
— Ah, então é tudo minha culpa!
— Não, não é sua culpa — ele diz, tranqüilamente. — Não é responsável pelo
comportamento de sua mãe. Apenas por si mesma. O melhor que pode fazer por você
mesma e por sua mãe — nesta ordem — é deixá-la aprender a lidar com seu próprio
pesar.
É fácil para ele falar, sentado em sua clínica, fumando seu cigarro fedorento,
jamais tendo sentido na pele a ira de Cecelia Bradshaw por nada sair como a rainha
deseja.
— O que faço, então? Apenas ignoro-a, até saber que ela saltou de uma janela?
— pergunto, sarcástica.
Cliff— que está se revelando tão charmoso quanto mau hálito — admite que
resistir às exigências de minha mãe é um risco. Mas, diz, também, que se eu estiver
sempre disponível para tirá-la de confusões, nenhuma de nós "irá em frente". Não tenho
certeza da natureza demasiadamente abrangente desta última afirmação.
— O que quer dizer? — pergunto, arrogante.
Cliff tosse e fala:
— Se você não pode lidar com a dor, o mais fácil a fazer é engavetá-la
novamente. Se uma pessoa passa todo o tempo preocupando-se com a dor de outra, não
consegue sentir a sua própria dor.
Sinto-me desconfortável, de modo que digo, bastante áspera:
— Não sei do que está falando.
Cliff hesita, depois muda de assunto.
— Tá bom, deixa pra lá — diz. Aposto que ele não fala assim com suas clientes
mais velhas. — Helen, conte-me um pouco sobre seu relacionamento com seu pai —
diz, em um tom que pretende ser doce e carinhoso.
Digo, sem delicadeza:
— O quê, por exemplo?
Cliff espera, depois, sugere:
— Bem, por exemplo, o que vocês gostavam de fazer juntos?
— Não muita coisa — digo: Enfie esta análise em seu..., penso. Meus ombros
estão levantados, ao ponto de emparelharem com minhas orelhas. Olho para o relógio.
Cristo, estou no telefone com este cara há trinta minutos! Será que ele não tem mais
nada pra fazer? Limpo uma substância verde misteriosa enfiada sob meu polegar
esquerdo e digo:
— Olhe, preciso desligar. Preciso comer alguma coisa. De qualquer modo, este
telefonema deveria ter sido sobre minha mãe.
Cliff faz uma pausa e posso ouvi-lo acendendo o isqueiro. Suspeito que ele
pretende dizer algo de efeito e ele não me desaponta:
— Helen, quando alguém morre, abre-se uma porta para um espaço cheio de
dor. Pode haver outras portas. Se você tiver coragem, pode ver mais além. Algumas
pessoas trancam a porta novamente.
Ele então começa a viajar em torno do tema "fechar" e pergunta se há algo mais
que eu deseje dizer, porém não há nada.
Fito o espaço por dez minutos e começo a ligar para imobiliárias.
CAPÍTULO 30
Examino todas as minhas recordações favoritas esta manhã. Elas têm uma coisa
em comum — comida. Ser levada a uma festa de adultos e pedir salada de frutas à
anfitriã, "mas apenas as cerejas", e ganhá-las. A avó de Michelle comprando gibis para
nós e um Curly Wurly para cada uma. Um pêssego comido na Espanha, grande como
uma bola, minha pele com odor de bala de caramelo no sol. Delicioso.
Minhas recordações mais gostosas, contudo, envolvem o Natal. Ajudar minha
mãe a fazer bolo recheado de groselha para sua turma na escola e raspar a tigela. Assar
pães de gengibre cortados com molde no formato de homenzinhos. Empanturrar-me
com uma caixa de Godiva, até sentir-me enjoada. Pedir seis batatas assadas e deixar
três, quando papai estava alegre demais para rugir, dizendo "seus olhos são maiores que
seu estômago!".
Meu pai era divertido no Natal. Ele entrava sorrateiramente em meu quarto,
tarde da noite da véspera, e enfiava um chocolate Terrys em forma de laranja em minha
meia (eu preferia chocolate ao leite, ele não sabia). Íamos até uma floricultura e
comprávamos uma árvore. Eu inspirava o odor do pinheirinho fresco e ele dizia
"roubado na auto-estrada!" ou "que forma peculiar!" Ele comprava um charuto para si
mesmo e um pacote de cigarrinhos de chocolate para mim, que fumávamos no carro, a
caminho de casa. Naturalmente, esta tradição terminou quando fiz sete anos, mas penso
nela hoje e minha vontade é tirar meu pai da sua tumba.
Sem ele, tenho pavor do Natal. Minha mãe também.
Compreensivelmente, a bondade de Vivienne não vai ao ponto de convidar
Cecelia para o jantar de Natal. Especialmente agora que ela vai com a companhia
compulsória e indesejável de Nana Flo (que, em festas, é o que a mixomatose é para os
coelhos). Sei que minha mãe vê isso como uma desfeita, porque no café da manhã,
ouço-a declarar:
— Não vou festejar Natal este ano, vou ficar na cama. Assim, não espere
nenhum presente!
Faço uma pausa, enquanto dou ao Gorducho seu patê de peru e miúdos de
galinha, e exclamo:
— Mamãe, não podemos deixar de festejar o Natal! Até Michelle festeja!
Ela replica:
— O pai de Michelle ainda está vivo!
Estou prestes a responder "Olhe, sei como é difícil para você", quando penso em
Cliff, acendendo seu isqueiro. Digo, calmamente:
— Ainda estou viva. Nana ainda está viva. O que faremos com o bolo que
assamos juntas?
Minha mãe bate sua xícara no pires.
— Não me importo com essa besteira de bolo! — ela geme. — Não é o mesmo,
sem um homem em casa!
Realmente não é. Não há nenhum bilau escondido dentro de calças compridas.
— Ah, mãe — falo, com tristeza. — Sei que não. Mas por que não podemos ter
uma noite de Natal tranqüila, apenas nós três?
Ela estica seu lábio inferior. Deve ter aprendido isso com um de seus alunos. É
muito cômico — a expressão de uma criança de quatro anos em uma mulher de
cinqüenta e cinco —, preciso morder minha língua para parar de rir.
— Não ligo para isso — ela diz, desafiadora.
— Mãe, será que você se sente assim porque precisa ir à clínica hoje?
Ela faz um ar de desprezo e diz:
— Não. É porque não quero nada com Natal e me recuso a sair para comprar
presentes. Não quero saber dessas coisas.
— Muito bem, sua resmungona — digo, dura —, então Nana e eu precisaremos
celebrar sozinhas. Não é mesmo, Nana?
Nana Flo, que acabou de entrar, carregando uma garrafa com água quente,
sacode os ombros e resmunga:
— Não há nada para celebrar.
Sinto-me tola por pensar que Nana Flo poderia ajudar-me. Ela não mexe um
dedo para ajudar ninguém. Nem a si mesma. Lembro-me do último Natal, quando, em
um surto de bondade, comprei ingressos para vermos Les miserables (eu não tinha
certeza sobre o tema, mas parecia perfeito. Sentia-me culpada, porque fazia seis meses
que não a visitava). Naquele dia, estava no trabalho e liguei para ela, sugerindo que nos
encontrássemos no vestíbulo do teatro. Ela me ligou às cinco e quarenta e cinco da tarde
e anunciou que não poderia ir, já que "se você não tem tempo para vir pegar-me, para
que me dar ao trabalho?" Isto veio de uma mulher que tem andado de ônibus, desde que
esses foram inventados!
Olho para Nana Flo em seus sapatos pretos horríveis, suas meias bege e seu
vestido sem graça, com seu broche de opala pendurado no pescoço, coroando o maugosto.
Imagino se ela algum dia foi feliz. Não digo isso apenas por dizer. Penso
realmente se isso aconteceu.
— Nana — pergunto —, quando é que você foi, bem, quando acha que foi mais
feliz?
O rosto contraído de Nana Flo parece mais pálido do que habitualmente.
— No dia de meu casamento — ela responde.
— Claro — resmungo. — Bem, vou trabalhar agora, vejo vocês duas mais
tarde.
Saio apressada, maldizendo minha estupidez tagarela. Nana Flo casou-se com
vovô Gerald quando estava com dezoito anos, quinze dias antes de Hitler invadir a
Polônia. Uma semana depois, a guerra foi declarada, vovô Gerald foi recrutado. Dois
meses após disso, ele explodiu em frangalhos, atingido por uma bomba, durante um
treinamento.
Acho que Nana Flo incorporou o luto.
Ainda estou meditando sobre o fato de minha avó ter perdido seu amor, antes de
este ter tido chance de demonstrar bravura e combater o inimigo como um leão, quando
Michelle liga para informar-me que ela e Marcus noivaram. Suas palavras exatas são:
— Acho que você foi a última aventura dele!
Meu pensamento, que estava na explosão do vovô, muda de rumo. Retomo o
poder da fala e — em vez de dizer "você gostaria que eu recomendasse um médico
especialista em aumento peniano?" — digo que estou vibrando por ela e que desejo aos
dois muita felicidade. Minha voz está alta e aguda, mas não histérica. Michelle — que,
obviamente, estava preparada para ouvir meu desdém invejoso — parece decepcionada,
porque diz apenas:
— Oh!
Depois, acrescenta, em tom plano:
— Ah, claro! Obrigada. E... Espero que você seja feliz com aquele cara, mesmo
se ele é um idiota completo. Ele arruinou a camisa do meu noivo. Era uma Armani!
Antes de poder controlar-me, já estou dizendo:
— Michelle, conheço aquela camisa e foi um presente da mãe de Marcus, que a
comprou em uma liquidação. Tom não é um idiota e, por falar nisso, não estou com ele.
Bingo! Os ouvidos de Michelle tornam-se mais atentos.
— Oh? — pergunta. — Por quê?
Eu e minha boca grande. Digo, tentando ser breve:
— Não deu certo.
A carcaça de meu romance mal-sucedido não será revirada pelos dedos curiosos
de Ivana, a terrível.
— Não brinque! Por quê? — diz, exigindo uma resposta.
— Michelle! — grasno. — Não vou entrar neste assunto!
Ela fala, ofendida:
— OK, acalme-se! — faz uma pequena pausa, antes de perguntar, em um
sussurro. — Ele bateu em você?
— Bater em mim! Ficou louca? Ele é um veterinário!
Michelle está frustrada.
— O que aconteceu, então? — ela pergunta, em tom adulador.
Essa mulher é persistente mesmo! É como um sabujo cheirando uma virilha.
Exclamo, dura:
— Já disse, não quero falar sobre isso!
— É óbvio que você está escondendo alguma coisa! — Michelle retruca.
Faço uma careta e digo, maliciosa:
— Então, Marcus lhe deu um anel de noivado?
Ela responde, animada:
— Vou levá-lo, quero dizer, ele vai levar-me à Tiffany's, hoje à tarde!
Sorrio, enquanto imagino o golpe nas finanças de Marcus.
— Aah! — digo. — Que bom pra você!
Esta situação faz com que eu recorde a piada favorita de meu pai, aquela em que
uma Sra. Goldblatt está no avião e o homem ao seu lado admira o diamante enorme em
seu anel. Sim, é belo, diz a Sra. Goldblatt, mas infelizmente este lindo anel de diamante
vem com uma praga, o Sr. Goldblatt. Pessoalmente, nunca achei graça na piada, mas
agora faz muito sentido. Sei que Michelle entenderá mal, ainda assim pergunto:
— Michelle, está apaixonada por Marcus?
Silêncio. Depois, uma cascata de risada alegre e as palavras exultantes:
— Está com ciúme!
Falo, sem encenação:
— De jeito nenhum.
Michelle insiste e sinto-me indiferente demais, para discutir, de modo que deixo
por isso mesmo.
— Você bem que poderia voltar com Jason! — diz, maldosa.
— Jasper! — exclamo, sentindo que ela, finalmente, atingiu meu ponto fraco.
— Não vou entrar neste assunto mais uma vez. Dê-me algum crédito! De qualquer
modo, estou bem sozinha!
Michelle chama-me de mentirosa e acrescenta que o casamento será uma
"cerimônia seleta", de modo que se eu não receber um convite, não devo sentir-me
ofendida.
— Michelle — digo, antes de erradicar este câncer de minha vida para sempre
—, vamos acabar com isso.
Completo minha purgação, com um expresso duplo.
Nenhum dos quatro corretores imobiliários para quem liguei retomou meu
telefonema. Isso não me surpreende muito. Quando liguei para JI & Sons, em Kentish
Town, o bandido no outro lado da linha disse:
— Então, o que você está procurando?
Quando lhe falei, perguntou:
— Você já tentou nossa escritório de Surrey Quays?
A resposta da Wideboy Estares foi:
— O apartamento mais barato que temos no momento custa duzentas mil libras.
A Gitfinger Properties indagou:
— Isto é o que pretende pagar de aluguel por semana? Ah! Para comprar!
De longe, o mais gentil foi Snatchit & Co., que declarou:
— Deixe-me passá-la para meu colega, que trabalha com apartamentos. —
Trabalho apenas com propriedades que custam acima de trezentas mil.
Ele deixou-me esperando, até que a linha ficou muda.
Assim, quando Lizzy — que estava fotografando na rua o dia inteiro, ontem, e
está "explodindo de vontade de saber minhas 'novidades'" — sugere que almocemos
juntas, agarro esta desculpa, para adiar minha busca por apartamento. Apenas depois de
aceitar o convite, percebo que não sinto a mínima vontade de falar.
— Conte-me tudo! — Lizzy exige. — Não esconda nada!
Mordo meu lábio:
— Você ficará desapontada.
Ela perde o sorriso.
— Por quê? — Pergunta, demonstrando preocupação genuína.
Enrugo o nariz e explico:
— Tom e eu discutimos, gritei com ele. Gritei de verdade — encolho-me,
recordando o ataque de fúria.
Lizzy exclama:
— Ah, não! Por quê? Sobre o quê?
Conto-lhe. Ou melhor, só os pedacinhos que quero que ela saiba. Não lhe falo
sobre a gosma cheia de aflição que despejei como se fosse sangue de uma artéria
cortada. Prefiro não acreditar nisso, até esquecer tudo o que falei. Assim, crio coragem e
disseco a verdade, apresentando as sobras à Lizzy. Ela está arrasada. Em parte, porque é
incapaz de falar mal de qualquer pessoa, mas também porque trato de estilhaçar a
imagem de Tom em meu relatório.
Finalmente, ela diz, cheia de pesar:
— Que horrível. Ele parecia um cara legal. Talvez não tivesse intenção de
interferir. Embora devo dizer, não é nada gentil criticar os pais dos outros.
Especialmente porque o seu pai era um homem muito bom.
Minha consciência — que passa a maior parte de sua vida dormindo — cutucame
neste ponto, e eu resmungo:
— Não foi tudo culpa de Tom. Realmente queixei-me sobre meu pai. Não foi
muito leal de minha parte, não é?
Lizzy ignora meu abatimento dizendo, meio aérea:
— Não seja tão dura com você mesma! Todos queixam-se de seus pais de vez
em quando. — Sei que faço isso à tempo todo! (Lizzy fala sobre seus pais usando
sempre hipérboles gloriosas e resplandecentes.)
Suspiro.
— Você tem razão — digo. — Não se diz às pessoas o que elas devem fazer.
Isso é grosseiro.
Lizzy — tentando desesperadamente criar um final feliz — diz:
— Tem certeza de que ele não estava apenas sendo atencioso?
Recordo a censura de Tom sobre o assunto do apartamento e me sinto aflita
demais para contar isto a minha amiga mais querida.
— Absoluta! — exclamo.
Lizzy fica em silêncio, depois, pergunta:
— Tem certeza que não há como consertar as coisas?
Respondo:
— Isso não foi uma discussãozinha, sem importância, de namorados, Lizzy, foi
uma discussão muito feia!
Ela diz, desanimada:
— Talvez seja melhor deixar assim, por enquanto.
Concordo, disposta a mudar de assunto, antes que ela me ataque com mais
perguntas. Porém, todo assunto que escolho traz em si uma grande advertência de "não
entre". Reluto em falar sobre a vida. em Muswell Hill, porque pode levar a avôs
despedaçados ou enfermeiros psiquiátricos. Reluto em indagar sobre Brian, porque isso
pode levar a Tom novamente. Preferiria não mencionar Michelle, porque minha pele
arrepia-se, quando penso em Marcus e sobre a síndrome do pai-fantasma. Minha cabeça
é como uma enorme barreira na estrada. Pergunto, rapidamente:
— Lizzy, acha que sufoco minha mãe?
Em vez de responder, agarra meu braço — presumo que pra mostrar-me que
algo mais urgente adiou sua resposta — e exclama:
— Tina! Tina!
Sigo seu olhar, vejo Tina entrando em uma loja de sapatos.
— Vamos convidá-la para almoçar conosco! — Lizzy exclama, saltando atrás
dela.
Se a Terra do Nunca existisse realmente, penso, a doce Lizzy se sentiria em casa,
lá.
— Esperarei aqui fora — falo. Segundos depois, Lizzy emerge, com o braço
enfiado no de Tina.
— Meu Deus, o que aconteceu com seu nariz? — pergunto, espantada.
Lizzy responde por Tina:
— Ela estava pegando uma lata de feijão na parte de cima do armário, quando
esta caiu em seu rosto. Coitadinha!
Pergunto se dói.
Tina sacode a cabeça. Sinto que ela não está saltitante por almoçar conosco.
Lizzy também sente-se desconfortável, tenta melhorar o humor, fazendo graça:
— Bem, isso prova apenas que alimentos enlatados fazem realmente mal!
Ninguém ri. A partir deste ponto, já nada promissor, os ânimos entram em queda
livre. Tina parece ter feito um voto de silêncio e estou pronta para perguntar a Lizzy
como foi seu fim-de-semana, no caso de ela querer saber como foi o meu. Assim,
tolamente, roubo um pedacinho de beterraba do prato de Lizzy, grudo-o na parte alta de
meu nariz e pergunto:
— Quem é esta?
Lizzy permanece em silêncio. Tina olha para mim. Olho-a também e me sinto
chocada, ao ver revolta em seus olhos. Removo a beterraba de meu nariz e murmuro:
— Foi uma piada de mau gosto, desculpe.
Tina diz, friamente:
— Você sempre diz isso, mas nunca muda, não é? É como um maldito disco
quebrado.
Minha boca abre-se, involuntariamente.
— Droga! — digo, em voz aguda. — Não pretendia magoá-la, está bem? O que
há com você? Está tão agressiva! Não posso dizer mais nada, que está sempre pronta
para saltar em meu pescoço!
A expressão de Tina é de raiva explosiva, mas continuo:
— Desde que o maldito Adrian entrou em cena — Adrian! Adrian! —, nós já
não somos boas o suficiente para você!
Tina bate sua mão fechada em punho na mesa de metal, fazendo com que Lizzy
e os pratos pulem.
— Garota, você passou dos limites! — fala; asperamente. — Você é má! O que
foi, desta vez? Tom? Jasper? Marcus? Ah, desculpe, já não consigo lembrar, são tantos
nomes!
Meu rosto ferve de raiva e respondo, furiosa.
— Não, na verdade não tem nada a ver com um homem, tem a ver com meu pai
— pelo menos uma vez na vida estou dizendo a verdade absoluta.
Espero que isto a silencie, mas ela responde, ríspida:
— Era só o que me faltava! — então levanta-se em um pulo e sibila. — Não use
seu pai como uma bengala emocional, Helen. Nunca gostou dele, sempre deixou isso
bem claro! Demonstre algum respeito! Deixe que o coitado descanse em paz!
Esta é, sem dúvida nenhuma, a coisa mais horrível que alguém já me disse. Nem
Michelle, em seus mais loucos delírios, chegou perto. Marcus, chamando-me de
vagabunda é pinto, comparado a isso. A fúria é tão feroz, que sinto vontade de dar -lhe
um soco no rosto. Felizmente, para ela, antes que eu tenha tempo de fechar minha mão
para golpeá-la, Tina já saiu do bar. Estou tão espantada, que nem consigo olhar para
Lizzy. Fico sentada, tremendo. Amasso meu guardanapo, transformando-o em uma bola
pequena, imagino como as coisas chegaram a este ponto. Sorvo grandes haustos de ar,
mas não consigo fazer com que minha respiração volte ao normal. Finalmente, sinto um
toque suave em minhas costas e ouço Lizzy perguntando, gentilmente:
— Você está bem?
Faço que sim com a cabeça e sacudo o corpo, para que ela tire suas mãos de
minhas costas.
Ela murmura:
— Tina não pretendia ser grosseira.
Isto tira-me de meu estado de petrificação e retruco, muito irritada:
— Ela pretendia, sim! Acho bom Tina não pensar que vou correndo atrás dela,
desta vez, porque com certeza não vou! Agora, pegou pesado.
De repente, vem-me o pensamento indesejado de que estou jogando fora amigos
e conhecidos em uma média de quatro por semana — e ainda tenho quarta, quinta, sexta
e sábado, pela frente.
Lizzy respira, profundamente, depois diz:
— Creio que Tina não está feliz, apesar de Adrian. De outro modo, acho que não
diria essas coisas.
— Não dou a mínima — falo, encolhendo os ombros.
Lizzy insiste no assunto:
— Sobre o que ela falou a respeito de seu pai... Bem, em primeiro lugar, você
tem o direito de sentir o que sente. Mesmo se vocês não eram tão íntimos, o que não
acredito. Bem, em segundo lugar, talvez o reiki pudesse ser útil para você.
Fico imaginando: se um louco furioso desse uma machadada em minha perna e a
decepasse, será que Lizzy se ofereceria para curá-la com um beijinho?
Forço uma nota mais animada em minha voz e digo:
— Lizzy, sabe que eu não gosto de pessoas manuseando meu corpo.
Ela responde:
— Bem, não sei...
Ela faz com que eu recorde minhas tentativas de tirar o Gorducho detrás do
refrigerador, com uma tigela de suco de atum. Devo admitir, está funcionando. Sinto-me
um pouco mais calma.
Resmungo:
— Só falei no meu pai para que Tina se sentisse mal. Ela tem razão. Estou com
um humor de cão.
Lizzy suspira e diz:
— Por que isso? Se não é seu pai, o problema é Tom?
Sabia que este almoço era má idéia. Jogo meu guardanapo na mesa.
— Tom enfia seus dedos nos traseiros de cachorros e tem um carro pior que o
meu. Não, o problema não é com Tom.
Lizzy responde, irritada:
— Helen, você não dá a mínima para carros! E ele é pago para enfiar os dedos
nos traseiros de cachorros!
Respondo, indignada:
— O quê? Será que isso deveria fazer-me sentir melhor?
Lizzy aperta os lábios, depois diz:
— Talvez você precise ficar sozinha por algum tempo.
Sopro o ar com força e pergunto, aborrecida:
— Por quê?
Lizzy limpa a boca com o guardanapo (seu batom permanece perfeito) e, como
um arcebispo pronunciando as palavras finais em um sermão pela TV, declara:
— Precisamos ser felizes sozinhos, antes de podermos ser felizes com outra
pessoa.
Sento-me para trás, cruzo os braços, tento parecer agnóstica.
— Você leu isso na GirlTime?
— Pode ser — ela diz, distraída. — Por quê?
Respondo, seca:
— Porque fui eu quem escreveu esta matéria.
CAPÍTULO 31
Precisamos franzir a testa duzentas mil vezes para criar uma pequena ruga de
expressão. Observo as marcas fundas na testa de minha mãe e imagino quantas dessas
duzentas mil tristezas e espantos foram causados por mim. Faço o possível para ser
impassível, para não sentir pena — apenas curiosidade. Não consigo pensar em nada
mais estressante do que ser mãe de alguém. Deve ser ainda pior do que ter Laetitia
como chefe.
Ser responsável pela saúde e felicidade de uma pessoa viva. Assustador. Gastei
quarenta e cinco libras em livros sobre felinos e mais cinquenta em bugigangas, antes de
reunir coragem para comprar o órfãozinho laranja e ainda considero sua sobrevivência
obesa, um milagre. Todas as plantas que já comprei morreram em quinze dias, até o
cacto. Minha mãe é igual. Não há uma folhagem sequer em sua casa, nunca houve. Ela
compra flores para si mesma, mas isto é diferente — é natural esperar que morram em
uma semana. Assim, não sei como conseguiu lidar com um bebê fedorento e manhoso.
Na verdade, sei sim: contratando uma empregada doméstica em tempo integral.
Isabella tinha medo do aspirador de pó e usava saltos-agulha que deixavam
marcas no piso de madeira polida de minha mãe. Eu gostava muito dela. Uma vez, aos
cinco anos de idade, queixei-me com Isabella, reclamando que era gorda, porque ouvira
Vivienne dizendo isso a mamãe. Isabella levantou sua camiseta de cor laranja, para
revelar uma coleção de rolos de banha sob a pele marrom e declarou, alegre:
— Você não é gorda! Isso sim, é gordura!
Fiquei hipnotizada, e, a partir daquele dia, gordura não era mais algo a ser
temido. Graças a Deus, Isabella existiu em minha vida. Salvou-me. Sem ela e sua
exuberância desajeitada — "cuido da Helen, Sra. Bradshaw, a Sra. pode ir fazer
compras!" — Acho que minha mãe teria sofrido um colapso. Talvez eu também.
Do jeito como as coisas eram, trinta libras por semana, mais refeições (o que
provavelmente perfaziam cento e trinta libras, no total) liberavam minha mãe do
trabalho escravo de ser mãe, e ela fugia voando para longe dele. Assim, sua tentativa de
recuperar laços de família, vinte e seis anos depois, é divertida. É até válida, mas não
tem sentido. Chego cansada do trabalho e ela me rapta já no corredor de entrada. A
primeira coisa que diz é "Florence quer ir embora!", a segunda é "estou perdendo toda
minha família!" e a terceira, "fiz chá para você!".
Deixo que minha bolsa caia no chão e tento não parecer alarmada. Também
procuro responder razoavelmente a todas as suas perguntas.
— Nana está indo embora por minha causa?
Minha mãe sacode as mãos, como para livrar-se da idéia.
— Mais ou menos — diz.
Eu sabia. Exclamo:
— Eu não sabia! Meu Deus, onde ela está? Posso explicar!
Mamãe parece confusa. Ela diz:
— Não sei do que está falando! Foi o roubo da sardinha!
Pergunto, sem entender nada:
— Que roubo da sardinha?
Descubro que hoje pela manhã, Nana colocou seu almoço favorito — três
sardinhas em uma fatia de pão branco — no lado de fora da casa, "para arejar". Dez
minutos depois, descobriu o Gorducho, cujo lema é "achado não é roubado", agachado
peito do prato, mastigando sua terceira sardinha. Isto confirmou todos os seus
preconceitos sobre viver sob o mesmo teto com um "animal daninho" e, como resultado
direto, Nana está voltando para seu moquiço amanhã de manhã.
— Desculpe — murmuro —, tentarei impedir que ela vá, se desejar.
Minha mãe sacode a cabeça e diz, alegremente:
— Ela está no quarto fazendo as malas! Não se aborreça com isso! Você está
aqui agora! Fiz chá!
— Mas não bebo c... — começo, enquanto vou até a cozinha. Para minha
surpresa e consternação, a mesa está latada, latada de sanduíches e bolos pequenos.
Coisas que achei que nem existissem mais, como Wagon Wheels de chocolate e
Fondant Fancies rosas e amarelos. Há, até mesmo, um bolo Battenberg.
— Fiz para você! — ela repete, como uma criança de seis anos, que conseguiu
criar um pompom gigante, na escola, com papelão e lã, esperando que a mãe prenda-o
em seu chapéu mais bonito.
— Foi... muito gentil de sua parte — digo, enquanto afundo na cadeira que ela
puxou para mim.
Ela senta-se, excitada, e observa de olhos arregalados, enquanto pego um
sanduíche de Marmite*. Detesto Marmite. Dou uma mordida pequena e fico
imaginando qual é o babado, afinal.
— Como você está? — minha mãe pergunta.
— Bem — falo, tentando engolir o sanduíche, sem vomitar.
Ela suspira, audivelmente, como se esta fosse a resposta errada e retruca:
— Não, como está se sentindo?
Ouço isso e tudo torna-se claro. Aquele Cliff, que golpe baixo!
— Mamãe — rosno —, o que o Cliff tem dito a você?
Parece culpada e fala, amuada:
— Nada! Absolutamente nada!
Aponto um dedo.
— Você nunca perguntou sobre meus sentimentos! Ele deve ter dito algo! O que
vocês discutiram esta manhã?
Ela retorce-se em sua cadeira e diz:
— Que não gosto de ir à clínica, porque todos na sala de espera são loucos!
Permito-me entrar neste desvio de assunto e pergunto:
— Ah, é? Como é isso?
Minha mãe inclina-se para a frente e diz, com voz aguda:
* Sanduíche de pasta de levedura, cuja marca mais conhecida na Inglaterra é Marrnite.
— Aquilo é positivamente kafkiano, nunca vi nada assim na vida! Psicóticos,
todos eles! Não podia acreditar que estava ali! Tão enfadonho! Sujo! Era revoltante.
Pior que a escola! Esta mulher, esta mulher usando um saco plástico em sua cabeça,
resmungando para si mesma e gritando para o teto, sua sacola estava cheia de cenouras
e ela... ela... ela me pediu dinheiro!
Coitada da mulher, por ser doente mental o suficiente para pensar que minha
mãe — com seus cabelinhos arrumados e bolsa firmemente presa em seu colo — abriria
mão até mesmo de cinquenta centavos, sem receber, ao menos, um claro "obrigada".
— Provavelmente estava desesperada, mamãe. Espero que tenha lhe dado algo...
Minha mãe sacode a cabeça e diz:
— Disse-lhe para ir embora e me deixar em paz. O cheiro da mulher era
esquisito.
Suspiro. Pensar que a educação moral de trinta crianças influenciáveis está nas
mãos macias e, ainda assim, brutas, dessa mulher! Eles a consideram sua melhor
professora!
— O que mais conversou com Cliff? — pergunto.
— Ele não foi tão gentil desta vez — responde. — Não gostei muito dele.
Coloco meu sanduíche de Marmite no prato.
— Mãe, a clínica não é uma agência de encontros românticos. Não precisa
gostar dela. Então, o que ele disse?
Mas, minha mãe está determinada a não contar e se torna agitada.
— Não importa! — insiste. — Apenas diga-me como se sente. E não pare de
comer!
Agarro um Fondant Fancy, retiro sua cobertura rosada e lambo a bola de creme
que o recobre. Se minha mãe trata-me como uma criança, é melhor fazer meu papel
direito.
— Como me sinto sobre o quê? — pergunto, enquanto os nervos de meus dentes
revoltam-se contra o açúcar.
— Não sei! — ela exclama.— Tudo!
Tomo um gole da limonada (ela comprou isso, também) e tento pensar. O que
posso dizer, que não a magoe? Que não me preocupo com o Natal? Que os aditivos
nessas porcarias que estou comendo são deliciosos? Que ela não deveria preocupar-se
com Nana Fio? Que só sairei de sua casa quando ela desejar? Que estou contente,
porque em janeiro ela volta a dar aulas? Todos esses pensamentos são inócuos,
inofensivos e seguros. Sentimentos são traiçoeiros. Mas, sentimentos são o que ela
deseja. Se eu não lhe disser, jamais saberá. Ela não tem imaginação, e este chá prova
que também não possui bom senso. Bem, ela perguntou. Percebo que minha mãe olhame
no mesmo instante em que noto que estou me balançando para trás e para a frente na
minha cadeira, como uma velhinha caquética. Mas é difícil falar. Sinto pavor, ao pensar
que a dor que imagino como um ferimento em processo de cura seja diagnosticado
como uma gangrena.
Finalmente, despejo:
— Sinto saudade do papai.
Minha mãe une suas mãos e exclama, triunfantemente.
— Também me sinto assim!
Consigo esconder um sorriso. Minha mãe tem cinqüenta e cinco anos e nunca
mudará. Cliff chegou cinqüenta anos atrasado. Pretendia acrescentar "sim, mas você
tem e direito. Amavam-se um ao outro" e ver o que — no alto de sua nova onda de
empatia — ela faria com essa informação. Mas decido que é melhor elaborar a resposta
por mim mesma.
Quando o telefone toca e escuto a voz de Luke na outra extremidade,
praticamente deixo-o surdo, tamanha minha alegria, por ser afastada da sessão "Doces
Variados & Sentimentos".
— Parece contente por ouvir minha voz! — diz, deliciado.
— Estou! — digo, com um gritinho. — Como vai? Sinto sua falta!
Luke diz, timidamente:
— Sinto sua falta também. Não é a mesma coisa sem você.
Sugiro:
— Está muito mais limpo?
Ele ri:
— Muito mais!
Sorrio largamente.
— Então, como vão as coisas?
Luke faz uma pausa.
— Ouviu sobre Michelle e Marcus?
Respondo:
— Sim, nem sei por qual dos dois lamento mais!
Parecendo surpreso, ele pergunta:
— Então, não ficou chateada?
Guincho:
— Deus, é claro que não! — Pressiono a ponta de meu nariz, para impedi-lo de
crescer.
Posso ouvir o sorriso na voz de Luke.
— Ótimo! Então, bem, como vai o Tom?
É minha vez de fazer pausa.
— Não o vejo desde domingo.
— Mas, hoje é terça-feira! — Ele diz. — Dê uma chance ao homem!
Sinto-me obrigada a contar-lhe a verdade.
— Não estamos mais nos vendo. Acabamos.
Luke responde:
— Ah, bem, será que poderia me dar o número dele? Vou sair com os caras
sexta-feira, pensei em convidá-lo para ir conosco.
Sinto-me dividida entre a fascinação (Como é possível ser tão interessado por
futebol e tão desinteressado pelas relações humanas?) e a admiração (ele tem natureza
tão gentil e, ainda assim, é tão acentuadamente insensível, certamente o ápice da
autopreservação).
— Espere — digo, marchando para o corredor, esvaziando minha bolsa no chão
e garimpando entre minhas bugigangas. Finalmente encontro meu livrinho de telefones.
Leio o número de Tom e tento dissimular meu sofrimento.
— E então, o que você vai fazer no Natal? — Ele pergunta. Seu talento para
enfiar uma faca no coração da gente quando este já está em frangalhos é incrível.
— Não sei bem, ainda — respondo. — E você?
Ele responde:
— O de sempre. Vou à casa de meus pais, onde haverá muiro para beber e uma
briga familiar monstruosa.
— Que lindo! — Falo, com sinceridade.
Depois, volto à cozinha, onde minha mãe começa a olhar desconsoladamente
para o bolo.
— Esqueça, mamãe. Eu limpo tudo.
Ela responde, de mau-humor:
— Você nem chegou a comer nada direito! Vou lavar meus cabelos.
Grito, enquanto ela se afasta:
— Vou levar um pouco para Nana! Não é bom desperdiçar!
Ouvindo minha própria voz, sinto-me como se tivesse uns noventa anos. Quanto
antes Nana mudar-se, melhor.
Bato timidamente na porta.
— Quem está aí? — ela pergunta, irritada.
Sinto vontade de dizer "o Gorducho!", mas não faço isso.
— Helen! — grito.
Ela arrasta os pés até a porta e a abre.
— Sim?
Balanço o prato de bolo na altura do meu nariz:
— Trouxe um pouco de bolo para você.
Ela estende a mão e o pega.
— Obrigada — então, tenta fechar a porta!
Enfio meu pé no vão.
— Nana — falo, em voz firme. — Sei que você está ocupada, mas será que eu
poderia entrar um instantinho?
Ela encolhe os ombros e diz:
— Se é necessário mesmo...
Apesar disso, não abre a porta nem um centímetro mais. Encolho minha barriga
e me enfio no vão, para entrar. Suas poucas roupas estão cuidadosamente dobradas em
uma maleta dura e muito usada, aberta sobre a cama. Seu casaco roxo de lã espinhenta
está pendurado com capricho em uma cadeira. Nana senta-se e começa a devorar o bolo.
Percebo que seus dedos inchados estão secos e rachados nas articulações. Subitamente
sinto vontade de chorar.
— Nana — digo, apressadamente. — Sinto muito o roubo de suas sardinhas,
pelo meu gato e...
Ela interrompe:
— Eu disse à sua mãe que era anti-higiênico ter aquela criatura suja dentro de
casa, mas é claro que ela não me deu ouvidos.
Em particular, penso que deixar sardinhas "arejando" é um pouco mais antihigiênico
do que o Gorducho, mas — já que aceito que é desagradável ter o almoço
comido por um animal — mantenho minha opinião para mim mesma. Desculpo-me
novamente. Depois, acrescento:
— Nana, por favor, perdoe-me por trazer o vovô à sua lembrança, eu não
pretendia. Espero que você não esteja indo embora por causa disso.
Nana faz um ruído em sua garganta e, por um segundo de horror, acho que ela
está sufocando com o bolo. Quando percebo que isso é um grunhido de desdém, sinto
alívio. A morte de um casal por despedaçamento e por bolo seria bem cruel. Minha avó
diz:
— Não há um dia sequer em que eu não pense em Gerald.
Sinto-me grata, porque sou culpada de trazer-lhe recordações do falecido, mas
incerta de como reagir. Gostaria de lhe perguntar tudo sobre ele, porém temo magoá-la.
Assim, como se eu estivesse programada para isso, falo apenas:
— Desculpe.
Nana responde, com um pouco de gentileza na voz:
— É a vida, precisamos enfrentá-la. Tento fazer o melhor possível.
Ela acena na direção da porta. Tomo isso como um sinal de que devo deixá-la e
começo a retirar-me. Não ouso responder nada, mas fico pensando no que ela disse.
Será que você foz o melhor, mesmo?
Meu jeito de fazer o melhor possível é fugir das coisas. Não me importo com o
que as pessoas dizem — fico firme neste princípio, considero-o um direito humano
básico. Acordo na quarta-feira, tomo consciência da sensação desagradável de
afundamento em meu íntimo e lembro que Tom e eu não estamos transando, mas
gostaria que estivéssemos. Vou para o trabalho e confesso isso para Lizzy, que diz:
— Ligue para ele, então.
Tenho uma idéia melhor:
— Vamos encher a cara!
Lizzy faz beicinho.
— De suco de laranja! — Acrescento, sabendo que a possibilidade de fazer com
que Lizzy molhe seus lábios com álcool é remota. — Vamos tomar um porre de
vitamina C! Hurra! — Exclamo, para tentá-la e forçar-me a parar de ceder. Lizzy não
parece convencida, de modo que digo — Brian está em Hong Kong, na convenção de
tai chi, você foi à academia ontem, anteontem e provavelmente antes disso também.
Exercícios demais fazem mal! Acabará desgastando os ossos de seus quadris! Ui! Pense
na artrite!
Cruzo os braços e espero.
— Contei-lhe que Michelle e Marcus noivaram? — falo, em uma oferta
espertinha, em favor de minha causa.
— O quê?! Não! Quando! Ai-meu-Deus! — Lizzy diz, acrescentando, depois,
com relutância. — Tudo bem, mas não pense que não sei que você está fazendo
chantagem!
Digo:
— Você fez duas negativas na mesma sentença, mas está bom — assim,
começamos a planejar.
A perspectiva de convencer Lizzy a beber é tão animadora, que me sinto
inspirada a ligar para uma imobiliária. Para minha surpresa, Adam tem duas
propriedades que pode me mostrar. Ambas são em Kentish Town e dentro do que me
proponho a pagar. Ele descreve um dos apartamentos como "bem-localizado, em termos
de todas as necessidades diárias". O outro é "espaçoso e bem-posicionado". Digo-lhe
que estou ocupada à noite, mas que talvez amanhã. Então, ele tem um chilique:
— Tem muitas pessoas querendo ver os apartamentos! — grita. — Você quer ou
não quer? Decida-se! Não há nada mais disponível! Amanhã já era! — Escuto enquanto
ele faz um som de estralo, salientando o que disse. Suspeito que Adam é o que a avó de
Michelle chamaria de "sanguessuga", mas concordo em ver os apartamentos hoje à
noite mesmo.
Conto a novidade para Lizzy às seis da tarde, ela não se incomoda nem um
pouco.
— Será divertido! — diz.
Tomamos o metrô até o escritório de Adam e nos anunciamos. Adam está
ocupado falando ao telefone e faz um gesto para que nos sentemos. Quatro minutos
depois, ele levanta-se, sacode acintosamente um molho de chaves em nossas caras e
gruda os olhos em Lizzy. Tenho certeza de que ele está impressionado com ela, e nós
sentimo-nos nocauteadas por ele, também — ou, melhor dizendo, pela loção após barba,
com a qual ele parece ter tomado banho.
— É Joop!— Lizzy conta-me, quando Adam vai pegar seu Mondeo. — Só não é
certo usar tanto assim.
Enxugo meus olhos, que ardem, e murmuro:
— Nem precisa dizer...
Um segundo depois, uma sucata branca com uma porta amassada no lado do
passageiro pára na nossa frente. Saltamos para trás, com medo de perdermos os dedos
dos pés.
— Lizzy, você pode ir na frente — digo, com delicadeza, mas ela declina,
modestamente, de modo que ganho o assento ao lado de Adam que, com seu topete com
gel, seu anel de ouro com sinete e seu ego, torna-se rapidamente irresistível.
Isto é piada, claro.
Mexo meus pés e tento não perturbar o ecossistema delicado do automóvel, que
consiste de latas, caixas e exemplares da revista Maxim. Por falta de algo útil para dizer,
exclamo:
— Nossa, roubaram o som de seu carro!
Ele responde:
— É, que coisa, não é? — e acende um cigarro.
Embora estejamos no meio do inverno, ele abre a janela até o fim e pousa a mão
sobre o teto do carro, supostamente para impedir que este decole. Felizmente, para todos
os envolvidos, seu celular toca. Adam passa os dez minutos seguintes gritando coisas
como "Não! Donna! Legal! Sim! Ela é gostosa!", tremo dentro de meu casaco e digo a
Lizzy:
— Não consigo acreditar que estou fazendo isso.
Ela diz, em tom alegre:
— Por que não? É incrível viver por conta própria! Adoro! Imagine, não ter que
dividir o banheiro com ninguém!
Concordo e falo:
— Suponho que sim.
Então o carro pára de repente e Adam salta dele.
Cinqüenta e nove segundos depois, estamos todos no carro novamente. Olho
carrancuda, pesada, para seus sapatos pretos (cada um exibindo um adorno de metal em
forma de barra) e desabafo:
— Bem localizado para todas as necessidades diárias! É em cima de um depósito
de peixe!
Adam não vê qualquer problema nisso.
— Docinho, pelo que você está disposta a pagar, isso é o que se consegue por
aqui. Você nunca passará fome!
Pergunto, com suspeita:
— Isso significa que o outro é vizinho a um posto de gasolina aberto
à noite inteira?
Adam está impressionado:
— Como você sabe?
Lizzy fala, querendo confortar-me, enquanto Adam vai embora:
— East Finchley é legal. Talvez você pudesse procurar apartamento lá.
Franzo o nariz:
— Perto demais de minha mãe. Vamos a algum lugar onde possamos sentar.
Quinze minutos depois, estamos sentadas no pub, na frente de uma garrafa de
vinho tinto. Engulo o meu depressa, enquanto, Lizzy — tendo sido persuadida a tomar
"só unzinho" — toma seu vinho aos golinhos. Ela está ansiosa por ouvir a história
inevitável de Marcus e Michelle e exclama, em voz aguda "não!", sempre que tento
mudar de assunto. Esvaziamos a garrafa com rapidez extrema. Ou, como Lizzy diz —
depois de duas taças pequenas — bem depresha. Custa pouco embebedá-la, um cara não
teria muita despesa. Peço uma segunda garrafa e Lizzy soluça:
— Nunca faço issho durante a shemana! — Diz, acentuando o chiado de
bêbado. E dá uma risadinha.
— Você também nunca faz isso em fins-de-semana! — Brinco.
A conversa envereda para o Natal. Anuncio que vou mandar tudo às favas, então
Lizzy diz que irá ajudar como voluntária em um popão para os sobres.
Rolamos de rir.
— Uau — digo, quando nos acalmamos. — Mas, isso não a deprime?
— Não — ela diz. — É ótimo. Fasssh bem pro eshpírito. lsshto é o eshpírito de
Natal!
Sirvo outro drinque para nós.
— O quê?! Encher o saco dos sem-teto para que você se sinta grande coisa e
possa evitar sua família? — digo.
Lizzy parece perplexa, de modo que acrescento, rapidamente:
— Só estou brincando. Mas você não estará com Brian?
Isso leva a uma divagação de uma hora sobre Brian, durante a qual Lizzy pede
outra garrafa de vinho e eu penso, mas Brian é tão velho.
— Mas, Brian é tão velho!-. — declaro, e tapo a boca, com minha mão,
rapidamente.
Lizzy dá um tapa brincalhão em meu braço e grita:
— Ouvi o que você disse! Ele não é velho! Bem, é um pouco, masss, e daí!
Finjo um calafrio:
— É como sair com seu pai!
Felizmente, Lizzy prefere considerar isso engraçado, em vez de dar uma
bofetada em meu rosto. Ela dá um soco na mesa, rolando de rir, e diz:
— Ele não é nem paressshido com meu pai! Você é doida! Ele é mais velho,
masss e daí?
Talvez o volume do álcool rodando por minha entranhas tenha perturbado meu
cérebro, porque sinto-me incapaz de contestar esta afirmação.
— É, e daí? — repito.
Lizzy toma um enorme gole de vinho, afasta seus cabelos do rosto e dá uma
risadinha:
— Você é engrashada! Eshtá negando o que dissse! Isho é o que meu
pssshico... pischco... é o que meu amigo disssh!
Lizzy está tão ocupada lançando para trás seus cabelos brilhantes e tentando
pronunciar a palavra "psicólogo", que nem percebe minha expressão surpresa.
— Sobre o quê? — digo, com a risada morrendo em minha garganta.
— Não shei! — urra, remexendo-se em sua cadeira. — Tom, provavelmente...
Ela reprime o riso, reprimo também, gritando:
— Paspalhão!
Então, rimos com a palavra "paspalhão". Reluto em parar de rir, de modo que
digo, sem ar:
— Mas ele... ele...
Lizzy diz, mal podendo falar:
— Enfia seus dedos nos — nós duas rimos juntas — traseiros dos cachorros!
Então, sugiro algo que parece uma boa idéia, enquanto estou falando. Digo que
podemos ir até o bar favorito de Tom.
— Ele mora perto daqui! Logo ali! — digo.
— Sche é logo ali, vamosss!
Pagamos e saímos.
— Minhash pernash pareshem borracha! — Lizzy cantarola, enquanto
cambaleamos juntas, agarrando-nos uma à outra, para obtermos algum apoio.
— Você não precisa berrar! Estou bem ao seu lado! — grito.
Quando você se pega pensando sou chata quando estou irritada, quando está
irritada, não há dúvida de que você é muito chata quando está irritada..
— É aqui! — exclamo. — Vamos olhar nas janelas.
Lizzy já está dando pulinhos junto à janela. Ela parece um canguru de peruca.
— Não conshigo ver! — queixa-se. — Vamosh entrar!
Antes de qualquer coisa, ela já abre a porta com um pontapé de sua bota e me
puxa para dentro.
Minha vida despenca no penhasco em um segundo. Vemos Tom. Ele está
segurando a mão de uma mulher elegante. Lizzy grita:
— Aí eshtá ele! — e cai.
Todos no pub, incluindo Tom e a mulher, olham para nós. Torno-me
instantaneamente sóbria e puxo Lizzy, para levantá-la. Ela usa uma das mãos para poder
ficar estável, usa a outra para apontar e berra a plenos pulmões:
— Helen não goshta mais de voshê Tom, porque voshê enfia seush dedosh nos
traseirosh dosh cachorrosh!
Meu pequeno consolo é que, quando consigo sair com Lizzy do pub, todos no
bar favorito de Tom estão olhando para ele.
CAPÍTULO 32
Um de meus hábitos mais úteis é pôr a culpa em outra pessoa. Ter que encarar a
verdade é chato demais, tenho certeza que enfraquece seu sistema imunológico.
Infelizmente, porém, quando acordo babando no sofá chique e duro de Lizzy, às sete da
manhã, e repasso mentalmente a tragédia da noite passada, não há como negar que o
desastre do traseiro do cachorro é todinho minha culpa. Exceto pelo álcool e pela
demência, o que me deu? Qual é o problema para mim, se Lizzy prefere beber suco de
cranberry? Será que não sou grande, ruim e feia o bastante, para ficar bêbada sozinha?
O que eu pretendia, ao sugerir que fôssemos ao bar de Tom? O que ele não deve estar
pensando de mim? Por que fiz aquilo? Será que sou louca? Não tenho vergonha na
cara? Que estúpida! Estou pegando um resfriado.
Olho através da janela da sacada de Lizzy, observo o sol pálido de inverno
refletindo no Tâmisa, imagino há quanto tempo Tom tem se encontrado com aquela
mulher. Nem mesmo o fato de meus temores e cinismo serem justificados pode
consolar-me. Se eu fosse Tom, também me encontraria com aquela mulher. Ela parecia
inteligente, glamourosa, centrada. Opostamente à estúpida, idiota e desequilibrada.
Sinto dentro de mim uma bola pesada de dor, mas estou cansada demais para lutar
contra ela. A angústia inunda-me e deixo que ela fique. Estou derrotada. Contemplo a
emigração para a Nova Zelândia, depois, cerro meus dentes e sibilo, em desafio:
— E daí?
Posso agir como um homem agiria, com relação a isso. Quando Lizzy entra
arrastando-se na sala arejada, usando um robe atoalhado e com uma expressão pesarosa,
estou tirando meleca do nariz.
Consigo perceber que ela está se preparando para um longo pedido de perdão.
Levanto a mão.
— Não diga nada! Foi minha culpa. Você estava muito engraçada.
Lizzy não sorri. Parece prestes a chorar. Deixa escapar:
— Posso visitá-lo no trabalho e explicar! Eu vou até lá! Eu...
Interrompo.
— Não, não vai! Isso apenas vai piorar as coisas!
Lizzy faz uma pose de Madonna (não da material girl, mas sim da mãe de
Cristo) e leva o dorso da mão à sua testa lisa. E incrível. Até na ressaca, consegue
manter o charme.
— Não acredito no que fiz! — ela geme. — Não bebo! Não sou assim! Sintome
horrível! Vou ter que me desintoxicar!
Rio, nervosa — corrompi a Virgem Maria.
— Mas, Lizzy, você tomou apenas quatro taças, em toda a sua vida! Você vai a
um centro de desintoxicação quando chega ao ponto de beber vodca no café da manhã!
Lizzy senta seu traseiro pequeno em uma mesa grande de tampo de vidro e me
explica detalhadamente a diferença entre desintoxicar-se em uma clínica de reabilitação
e desintoxicar-se com uma dieta de sucos, por três dias. A clínica parece melhor e
prometo a mim mesma, silenciosamente, que, se algum dia estiver comendo couve-flor
crua no almoço e seis damascos secos como lanche, recorrerei ao álcool imediatamente,
para aumentar meu amor próprio.
Lizzy marcha vacilante até a cozinha, prepara um chá de hortelã para ela e um
expresso duplo para mim. Está inconsolável por ter saltado o café da manhã ("a refeição
mais importante do dia"), porque sente náusea, mas tenta ser corajosa. Recuso sua oferta
de um banho e/ou muesli com baixo teor de açúcar e me deixo desabar no sofá duro
como pedra, novamente, até que Lizzy sugere que devemos ir para o trabalho.
— Acho que você deveria faltar e alegar doença — digo, estudando seu rosto
charmosamente pálido.
— Não posso! — ela sussurra, como se sua lâmpada halógena de cromo tivesse
estragado.
Encolho os ombros, pego meu celular e ligo para minha mãe.
— Sim? — ela diz, em voz cansada.
— Mãe? É Helen! Fiquei na casa de Lizzy noite passada.
Parece confusa.
— E?..
Faço uma pausa e digo:
— Bem, não queria causar-lhe preocupações, achei que você poderia estar
imaginando onde eu estava.
Ela responde:
— Ah! Ah, não havia percebido. Deixei Florence em casa ontem. Estava muito
cansada, de modo que fui cedo para a cama. Estava dormindo. Você me acordou.
Neste ponto, perco a vontade de continuar a conversa.
— Mãe, é praticamente meio-dia! Quando você, finalmente, acordar, será que
pode alimentar o Gorducho?
Ela diz que sim e desliga.
— Ela está bem? — Lizzy pergunta.
— Uma preguiçosa, é o que ela é.
Lizzy não sabe como responder, de modo que muda de assunto.
— Imagino se Tina trabalhará hoje.
Fico em silêncio, então ela acrescenta:
— Você acha que ela está bem?
Rosno:
— Não sei e não me importo.
Lizzy suspira e diz:
— Sei que foi terrivelmente rude com você, mas tenho certeza de que ela não
estava bem, nem foi trabalhar ontem. Se não for hoje, ligarei para ela.
Concordo. Não sei bem o que pensar sobre Tina. O que sei é que não é sádica
como Michelle. Decido que, se ela se rebaixar, perdoarei. É enfadonha e chata, mas no
fim das contas é uma amiga de verdade, não quero perdê-la. Embora esteja magoada
pelo que ela disse, estou tentando racionalizar. Talvez seja uma tremenda hipócrita. Mas
não posso evitar o que sinto. Mesmo se isso não faz sentido e surpreende mais a mim
mesma do que a qualquer outra pessoa. Pelo menos Tina estava furiosa — eu teria
ficado mais zangada se ela dissesse o que disse quando estivesse calma. Talvez ligue
para ela mais tarde.
— Então, quando Brian volta de Hong Kong? — pergunto a Lizzy, que está
desesperada (posso perceber pela aparência de pureza devassada) para desculpar-se do
pecado da noite. passada indo perturbar Tom.
— Logo — ela responde, em tom de sofrimento. — Por favor, deixe-me explicar
ao Tom!Prendo minha testa entre os dedos e digo:
— Isso não importa! De qualquer maneira, é inútil. Você viu que ele estava com
alguém.
Lizzy geme:
— Mas, ela podia ser uma amiga! Irmã dele! Você não sabe!
Faço uma careta, como se falasse com uma criança muito tonta:
— Lizzy, ele estava segurando a mão dela.
Lizzy começa:
— Sim, mas segurar a mão de alguém pode sign...
Ela vê minha expressão trovejante e pára. À sua maneira, sendo tão inocente,
está desapontada comigo. Faz beicinho e retira um pequeno vidro de sua bolsa. Abre-o,
pressiona o alto da pipeta, deixando cair duas gotas de líquido em sua boca.
— O que é isso? — pergunto, inspirando.
— Remédio floral.
— Cheira a uísque — resmungo.
— Bem, é feito de ervas — resmunga, de volta,
— Ou capim, pelo jeito — murmuro.
— O quê?
— Nada — digo, docemente. — Apenas lembre-me de nunca mais deixá-la
embebedar-se.
— Você não terá que me lembrar — retruca.
Olho seu rosto mal-humorado. Ela está usando um casaco vermelho, luvas
marrons de camurça e se parece exatamente com uma bonequinha de porcelana
aborrecida. Faltam apenas os babadinhos.
— Ah! Você conhece a melhor cura para ressaca?
Lizzy olha-me, cheia de esperança.
— Qual é? — diz, num suspiro.
— Um café da manhã com muita fritura. — digo, suavemente.
Ela não responde, mas dá um beliscão pequeno, incrivelmente dolorido, em
minha mão.
— Cai fora! — falo, com um gritinho, e ambas rimos. Depois caímos em um
silêncio cansado, até chegarmos ao escritório.
Desabo em minha cadeira e decido ligar para Tina amanhã. Tenho trabalho
demais para fazer hoje. Imobiliárias para consultar, mães e, além disso, veterinários com
quem desculpar-me. Laetitia está em uma reunião, de modo que passo trinta minutos
extraindo informações sobre pulgueiros imundos de homens jovens com nomes como
Richard e Costas, que se sentem insultados com a ninharia que tenho para gastar e
relutam em desperdiçar seu tempo de caça aos tubarões com um peixinho pequeno
como eu.
Depois, ligo para minha mãe. Desta vez, está acordada.
— Alô? — cantarola.
— Mãe — eu digo. — Poderia fazer-me um favor?
Há uma pausa cheia de alarme, antes de ela dizer, relutantemente:
— O que é?
Vasculho minha mente, em busca de uma frase convincente e produzo:
— Preciso de apoio.
Espero para ver se um neurônio consegue ativar-se. Silêncio. Continuo:
— Preciso que leve o Gorducho ao veterinário.
Minha mãe pergunta:
— Tim, o veterinário?
Digo:
— Sim, Tom.
Ela diz, cheia de entusiasmo:
— Um homem tão encantador! Desajeitado, porém tão charmoso!
Imagino como posso fazer para que isso funcione e comento, finalmente:
— Mãe, o Gorducho não está bem. Ele tem dormido muito e estou preocupada,
porque ele pode estar com... com a doença do sono. Assim, ele precisa ir ao veterinário,
urgentemente, de preferência hoje ainda.
Minha mãe não está convencida. Ela declara:
— Mas gatos dormem de dezesseis a dezoito horas por dia, sessenta e seis a
setenta e cinco por cento de cada vinte e quatro horas! Têm períodos de sono leve, que
duram cerca de trinta minutos, depois, a menos que alguém puxe seus rabos, uma fase
de sono mais profunda, é uma função biológica essencial! Eles...
Corto sua palestra gritando:
— Mãe!
Ela pára no meio da sentença, então diz, ressentida:
— Fizemos um projeto sobre isso, na escola, ano passado.
Que sorte, a minha.
— Tenho certeza de que você tem razão — digo, tentando permanecer
civilizada. — Mas eu gostaria que Tom o examinasse, de qualquer maneira.
Minha mãe pergunta, rapidamente:
— Porque não quer levá-lo?
Pergunto, nervosa:
— O que quer dizer?
Ela responde:
— Não sou idiota, Helen! Posso estar a um passo disso, mas ainda não estou
totalmente senil!
Uma declaração injusta e altamente inconveniente. A mulher faz o papel de
Clouseau, durante sua vida inteira, mas escolhe este momento para ser Sherlock
Holmes! Esta característica — chamemo-la de inversão do QI — é apenas uma das
muitas que tornam minha mãe tão extraordinariamente irritante.
— Tudo bem — falo, com relutância —, mas prometa que não dirá nada para
embaraçar-me.
Ela diz, animada:
— Claro que não! Diga-me por que não quer falar com ele!
Não tenho escolha, conto a ela.
— Tom e eu tivemos um desentendimento — começo, com cautela. — Tom fez
com que me sentisse mal quando eu não havia feito nada errado! De qualquer
modo.Lizzy e eu saímos noite passada, acabamos encontrando Tom por acaso e, bem,
mãe, por favor, não repita nada disso, mas Lizzy insultou-o, porque ele estava com outra
mulher.
Minha mãe faz um pequeno som de surpresa, espero uma longa exposição irada
sobre a moral decadente da geração mais nova, porém ela exclama:
— O que há de errado nisso?
Tenho um ataque:
— O que há de errado? Mãe! Ele joga todo o seu charme para cima de mim e
logo depois descubro que está me traindo!
No mesmo instante, pergunta:
— Ele dormiu com você?
Sua falta de tato me joga no chão e, em uma tentativa para protegê-la da sórdida
verdade, eu minto:
— Não.
Minha mãe faz um som de desprezo em meu ouvido e diz, indignada:
— Não! Por que não? O que há de errado com ele? É gay?
Quase engulo minha língua e protesto:
— Não!
Mamãe mostra-se confusa, dizendo, rapidamente:
— Então, se ele não está dormindo com você, qual é o problema? Quando eu
tinha a sua idade, namorava três homens ao mesmo tempo e, ou aceitavam, ou caíam
fora! Tudo é válido no amor e na guerra, até que alguém a peça em casamento!
Interessante. Não discuto e digo, simplesmente:
— Só quero que você veja como Tom está se sentindo sobre mim e, se possível,
que descubra quem era a mulher — e acrescento, solenemente. — Estou contando com
você.
Minha mãe faz aquele som de surpresa novamente e diz, com orgulho:
— Tudo depende de mim! Dê-me o endereço! Sinto-me como uma detetive!
Rolo meus olhos e falo, em tom de brincadeira:
— Ótimo, só não se esqueça do Gorducho!
Há uma pausa e eu me preparo para dar risada. Mas ela diz:
— O Gord...? Ah, sim, é claro!
Baixo o telefone e imagino o que de pior pode acontecer.
Minha atenção é desviada por dois minutos, porque Richard liga dizendo que
quer mostrar-me uma "propriedade joinha".
— O que há de errado com ela? — pergunto.
— Nada! — diz, insultado.
— Deve haver algo.
Ele confessa que a propriedade "precisa de uma pequena reforma". Mas, não fica
sobre um depósito de peixe, de modo que concordo em vê-la, hoje à noite. Enquanto
reponho o telefone no gancho, escuto-o exclamando: "Yessss!'. Depois mordo meu lábio
e rezo para que minha mãe não faça nada tolo, na veterinária. Quer dizer, será que não
acabei de dar uma arma carregada a um chimpanzé? Espero, espero e espero. Passo uma
hora percorrendo supermercados em busca de um vegetal chamado "beldroega", para o
jantar de Laetitia (quando volto, frustrada e de mãos vazias, ela grita: "Será que você
não presta para nada! É um vegetal étnico!"). Espero, espero e espero. Recebo um trote
de um pervertido que pede que eu leia as manchetes da capa da GirlTime para ele (este
mês, uma das matérias anunciadas contém a palavra "orgástico"). Espero e espero.
Digiro um artigo sobre a celulite em celebridades ("ele contém dicas que você poderá
usar!", diz Laetitia, enquanto joga o artigo de três mil palavras na minha frente). Espero,
espero e espero. Quando não consigo mais suportar, ligo para minha mãe. Ao ouvir sua
voz, pergunto:
— Mãe! Por que não me ligou?
Ela diz, melindrada:
— Acabei de entrar em casa! Sentei naquela sala de espera por horas! A
inconveniência! Levei séculos para encontrar o gato! Ele estava caçando, em algum
lugar. Fiquei chamando-o na porta de casa por uns vinte minutos! O carteiro deu-me um
olhar esquisito.
Suspeito que isso é porque ela recusa-se a chamar o Gorducho por seu nome,
insistindo em chamá-lo de "bola de pêlos". Mas, não digo isso a ela, porque estou
desesperada para saber de Tom.
— Então, você viu Tom? — pergunto.
— Ih! — minha mãe exclama, saboreando o poder, ao ponto de ser capaz de
servir como uma incrível vilã, em filmes de James Bond. — O gato pesa uma tonelada!
Deixe-me recuperar o fôlego! Não, ele não estava lá. Outra pessoa atendeu o gato. Ele
não tem nenhuma doença do sono, mas está cheio de pulgas. Tom está de férias com a
namorada.
CAPÍTULO 33
Como as pessoas que nunca passaram por alguma coisa muito ruim costumam
dizer, sempre podemos tirar algo bom de tudo. Assim, quando dirijo até a locadora de
vídeo sábado à noite, vejo um homem cruzando a rua com um exemplar do Sun e um
pacote de quatro rolos de papel higiênico, debaixo do braço, sorrio de orelha a orelha,
porque lembro-me de Luke e do quanto nos aproximamos nos seis dias, desde que
Marcus expulsou-me. Seis dias desde que vi Tom! Parece uma eternidade. De qualquer
maneira, Luke é muito mais divertido agora que não moramos mais juntos. Pela
primeira vez em anos, nós dois passamos três horas juntos sem trocarmos insultos.
Vivienne convidou mamãe para um chá no sábado — "um chá que pretende ser
uma compensação", disse mamãe, "por não me convidar para o Natal, mas não
compensa, não compensa mesmo" —, assim, liguei para Luke e sugeri que ele
aparecesse em minha casa. Minha desculpa foi que o Gorducho estava exigindo que
Luke exercesse seus direitos de visita (uma mentira, já que o afeto do Gorducho por
qualquer pessoa evapora-se, no segundo em que ele devora o último pedacinho de patê).
A verdade é que, embora eu não desejasse ver Luke, estava impaciente para
saber se ele havia visto Tom, na noite anterior, naquela saída "dos rapazes". Simples
curiosidade. Mas Luke parece tão contente por ser convidado — "será que devo levar
uma lata de atum em salmoura ou arenque com molho de tomate?" —, que me sinto
envergonhada de minhas segundas intenções.
— Só quero que traga você mesmo! — exclamo, e corro para comprar dois tubos
de Pringles de queijo e cebola (o lema de Luke é: "Batatinhas, batatinhas! Alimento dos
deuses!").
Quando ele chega, trazendo arenque e atum, abraço-o com força e me sinto mais
alegre pela primeira vez, em dias. Faço café, apresento as batatinhas e retiro o Gorducho
de seu novo local de cochilo (o capô azul-metálico do Volvo do vizinho). Olho Luke
observar o Gorducho, que engole rapidamente o suco do arenque, dá um bocejo com sua
boca rosada e sai de mansinho, para deitar-se em uma réstia de sol. Depois, eu pergunto,
casualmente:
— Então, como foi a noite passada?
Luke coça sua orelha profundamente e limpa seu dedo em sua camisa azul
amassada, deixando ali uma mancha amarelada. Então, abre um enorme sorriso.
— Ah, é! Foi legal! Nos divertimos muito.
Ele começa a contar uma longa história que começa com cinco litros por cabeça,
em um boteco, sem nenhuma sofisticação, continua com uma refeição tumultuada, em
um restaurante indiano, onde o amigo de Luke, Gobbo (que parece um doce, embora eu
jamais tenha tido o prazer de conhecê-lo), recosta-se na cadeira e diz ao cara da mesa
vizinha: "Cale sua boca, seu esnobe, ou enfiarei a mesa no seu traseiro!", continua
depois, com Gobbo dando um soco no rim de Luke e Luke prestes a sair, até que o outro
amigo, Parky, diz: "Você vai deixar por isso mesmo?" Então, Luke, dando aquele golpe
que aprendeu em um filme de Jackie Chan, virando bruscamente a cabeça de Gobbo e o
jogando ao chão, de costas, como uma tartaruga, e Parky matando-se de rir e Gobbo,
com o rosto todo vermelho dizendo que foi pura sorte Luke acertá-lo, já que não sabe
"NVN — nada vezes nada!", de luta nenhuma. A história prossegue com Parky rindo e
Gobbo pensando que Parky está rindo porque Gobbo acabou de dizer algo inteligente,
quando, na verdade, a risada é porque Gobbo pensa que disse algo esperto e...
— Tom estava lá? — pergunto, depois de vinte minutos disso.
Luke pára no meio da frase.
— Não — ele parece surpreso com a pergunta.
Tento parecer tranqüila, mas minha cabeça salta para a frente involuntariamente
e as palavras deslizam de minha boca, em voz aguda:
— Mas, achei que você iria convidá-lo para sair.
A resposta de Luke é enfiar sete Pringles na boca. Segue-se uma batalha entre as
articulações de sua mandíbula e a massa de batatinhas, até que ele readquire o controle e
suas bochechas voltam ao tamanho normal. Sou forçada a esperar.
Luke engole e responde:
— Falei com ele, mas estava indo embora.
Ele me olha com nervosismo.
— Ah, é? — digo. — Ele mencionou quando? — Luke balança a cabeça em um
“não”. — Ou com quem?
Luke sacode a cabeça novamente, afunda os dedos no tubo de Pringles com tanta
força que, por alguns instantes tensos, sua mão fica trancada. Quando ele retira-a com
dificuldade, abandono toda a aparência de dignidade e pergunto:
— Quer dizer que Tom está saindo com alguém? Fora eu — acrescento
rapidamente, vendo sua expressão confusa. — Ele não está saindo comigo, lembra?
Luke despeja:
— Ele não está mais a fim de você?
Digo, com esforço:
— Não.
Luke mastiga ruidosamente, percebe o "crunch-chunch" ensurdecedor ecoando
pela cozinha e tenta mastigar sem tanto barulho. Depois tosse, cuspindo um jato fino de
Pringles sobre a mesa.
— Você me dá um copo d'água? — diz, sufocado.
Luke bebe a água de um só gole, depois diz, lentamente:
— Pode ser que esteja saindo com alguém, não sei.
Grasno:
— Pode ser! O que significa?
Luke derrama uma pilha de batatinhas sobre a mesa e começa a devorá-la,
agitadamente.
— Luke! — exclamo, sem jeito. — Eu gosto dele. Acho que estraguei tudo.
Conto-lhe sobre a noite do traseiro do cachorro, na esperança de que esta
informação acenda uma fagulha, na escuridão de seu cérebro.
Luke quase enfia o dedo no nariz, muda de idéia e se senta sobre suas mãos,
dizendo, com tristeza:
— Ele não disse. Falamos sobre futebol.
Sinto-me como um pardal bicando o concreto, na esperança de encontrar uma
minhoca. Passo o dedo sobre uma mancha imaginária na mesa e pergunto:
— Ele não mencionou meu nome, mencionou?
Luke tenta desesperadamente dizer sim, porque seu coração é mole como
sorvete de morango. Assim, ao dizer "não", tenta amortecer o golpe, oferecendo-me
uma batatinha.
Sorrio e digo:
— Não tem importância — acrescento, animada. — Como a mãe de alguém
diria, há mais peixinhos no mar.
Luke sorri e diz:
— É, mas quem quer transar com um peixe?
Depois deste diálogo filosófico, decido jamais mencionar Tom, novamente,
sentamo-nos no carpete da sala e Luke brinca de "dedos imitando cobra versus as garras
do gatão", com o Gorducho — que pode se parecer com um lutador de sumô, mas, a
julgar pelo estado de miséria em que deixa a mão de Luke, tem talento para o kung fu.
Faço Luke lavar seus ferimentos sob a torneira, explico que o Gorducho não agiu por
maldade, que foi apenas seu espírito de competição — "ele é uma versão felina de seu
amigo Gobbo", acrescento, em um surto de inspiração — depois disso, Luke alegra-se
um pouco e conversamos sobre o Natal.
Ele não tinha a mínima idéia sobre o que comprar para seus pais, de modo que
ligou para seu pai para perguntar se este sabia o que mamãe queria de presente e papai
revelou que mamãe andara falando de seu desejo de ter um banheiro de madeira. Assim,
ele comprou um assento sanitário de madeira e, se Luke quisesse comprar a maçaneta
de madeira para a porta do banheiro, seria muito bom. O papai disse que "madeira vai
matar a pau!"
Ronco de surpresa e começo a rir, até que percebo a confusão no rosto de Luke.
— O quê? — diz, meio sorrindo, de um modo tipo "não estou entendendo".
— O que quer dizer com "o quê?! — berro. — Ele está brincando, não está?
Luke balança a cabeça, enfia quatro Pringles na boca, em pânico, acende um
cigarro, ao mesmo tempo, e diz (embora suas palavras saiam abafadas):
— Você acha que ela não vai gostar?
Dou um tapa no tampo da mesa e falo, alto:
— Luke! Juro, por minha vida, que ela não gostará! Meu Deus, agora sei a quem
você puxou!
Estou explicando a ele as regras de ouro de comprar presentes femininos, (um
guia rápido: presentinhos baratos, funcionais e simbólicos equivalem a "vá se danar, seu
porcalhão sovina"; coisas cuidadosamente pensadas, grandes, frívolas e caras são iguais
a "excelente, você é um homem maravilhoso!"), quando o telefone toca.
É Lizzy. Será que ela pode dar um pulo aqui?
— Claro! — digo, contente. — Luke está aqui também!
Lizzy sorri pelo telefone:
— Que legal! Daqui a pouquinho, estou aí.
Reponho o telefone no gancho, sorrindo.
— Lizzy comprou todos os presentes meses atrás — comento com Luke, cuja
mente permanece perturbada pela bomba do assento sanitário de madeira. — Ela lhe
dirá como se deve fazer compras.
Na verdade, Lizzy não diz a Luke como comprar bons presentes. Mostra a ele.
Ela ainda está fazendo autopenitência pela noite do traseiro de cachorro — embora eu
tenha perdoado o crime mais ou menos trinta vezes — e está disposta a "fazer algo para
compensar", como diz.
— Não é preciso compensar nada, sua idiota! — digo, enquanto ela me estende
um grande pacote. — Isto é totalmente desnecessário — acrescento, já que é preciso
dizer isso, quando alguém lhe dá um presente e você já tem mais de vinte e cinco anos
—, mas é muita gentileza de sua parte.
Lizzy une suas mãos e sussurra:
— Espero realmente que você goste! Pedi que Brian trouxesse isso de Hong
Kong! Ele encontrou na Staunton Street, a parte antiga do centro.
Lizzy e Luke observam, sem fôlego, enquanto levanto, um pouco, o papel de
presente delicado e uma onda pesada de incenso flutua, assumindo o controle sobre. o
cheiro de cenouras podres da cozinha de minha mãe.
Lizzy agarra meu braço:
— Bem, eu pensei que seria, bem, é mais um presente para seu pai do que para
você! Mas achei que seria legal para vocês dois — ela diz, encolhendo os ombros.
Paro de desembrulhar.
— O que quer dizer? — pergunto, vacilante.
Lizzy aperta meu braço ainda mais e diz:
— Espero ter feito a coisa certa! Abra e explicarei.
Jogo o embrulho para um lado, ergo o item mais pesado.
É um pacote de doces embrulhado em celofane — "chocolate ao leite cremoso
em barra Hichiload, com vários sabores", diz a embalagem. O pacote é leve como ar e
afirma conter pequenas caixas de goma de mascar e biscoitos, além do chocolate. Sorrio
debilmente, não sei o que dizer. Será que Lizzy está maluca? Suas brincadeiras,
geralmente, são de excelente gosto. O que ela espera que eu faça — que espalhe
migalhas na pedra fria da sepultura de meu pai?
Luke pega um maço do que parece ser dinheiro de brinquedo, também dentro do
celofane.
— Notas de um milhão de dólares! — comenta, alegre. — O Banco Inferno S.A.
promete pagar ao portador, em seu escritório, um milhão de dólares! — olho para cima
e ele mexe no dinheiro, dizendo defensivamente. — Isso é o que diz aqui!
Volto-me para Lizzy, que fala, rapidamente:
— É um costume budista chinês!
Ela agarra um outro saco plástico e me dá. Parece um conjunto de coisinhas de
brinquedo — um par de óculos dourados, um relógio dourado e prateado com "Rolex"
impresso em seu mostrador, um bracelete prateado, uma cigarreira dourada, uma caneta
e um conjunto de anel e gargantilha dourados, ambos com pedrinhas verdes incrustadas
—, todos feitos de papelão e montados contra um fundo de papel vermelho-vivo.
— Isso é para queimar! — exclama. — É um conjunto de presentes para um
homem! Um anel de jade! O dinheiro, veja! Olhe, uma caixa de cigarros de papel com
um isqueiro também de papel, e, veja! Uma Mercedes de papel! Não sabia que carro seu
pai dirigia, de modo que pedi a Brian para comprar um bem bonito. Você coloca tudo
em um saco e dedica ao seu pai, veja, olhe, aqui está o saco.
— Ela remexe na pilha e me mostra um saco cinza de papel, impresso com
caracteres chineses e varetas de incenso.
— Você coloca tudo no saco e o sela com esta fita adesiva, isto é um selo do
correio celestial, o espírito saberá que é seu pacote, quando for buscá-lo e — neste
ponto, ela me olha nos olhos e vacila. — Você pode colar a fita com cola em bastão
também, não tem problema. Aí, você escreve a data em que queimou tudo em um
papelzinho auto-adesivo, que também vai grudado no saco e, bem, achei que seria algo
reconfortante para fazer. Especialmente no Natal. Você não se importa, não é?
Ela aponta para as notas do Banco do Inferno e diz, apressadamente: "Sei que
diz Inferno e acho que isso não significa que ele está no inferno, todos os pacotes dizem
isso, todo o dinheiro que você queima diz isso, suponho que... as pessoas estão em
lugares diferentes no pós-vida e os fabricantes, hummm, querem cobrir todas as
possibilidades.
Ela espia meu rosto, com atenção.
— Você está bem?
Faço que "sim" com a cabeça, a ponho entre as mãos e digo, em prantos:
— Isso foi tão maravilhoso, tão bonito, Liz, tão carinhoso de sua parte! Ah, que
coisa incrível!
Neste ponto, alguém bate em minha coluna com tanta força, que vôo para a
frente e quase furo meu olho em uma vela.
— Obrigada, Luke — eu digo. — Você não precisa mais me dar tapa nas costas,
já estou bem.
Lizzy corre para um lado da cozinha, destaca um quadrado de toalha de papel e o
estende para mim. Enxugo meus olhos, tento não pensar no quanto estou emocionada,
porque não quero começar a choramingar, novamente. Seco meu nariz, amasso a toalha
de papel e digo, com o nariz entupido:
— Uma vela em um candelabro de madeira..
Lizzy exclama:
— Ah, sim! A vela vermelha simboliza alimentos!
Luke toca em um pacote longo de plástico e diz, surpreso:
— Varetas de incenso! Isso me lembra meus tempos de estudante!
Digo, fracamente:
— Lembra-lhe semana passada, então — ele dá um grande sorriso, aliviado por
eu ter parado de chorar.
Lizzy sorri e diz:
— Você queima os incensos primeiro, três deles, isso chama a atenção de seu
pai.
Brinco:
— Será que não posso apenas fingir que estou indo fazer uma tatuagem?
Ela dá uma risadinha e fala:
— Bem, sim, se você desejar ter certeza absoluta.
Balanço a mão na frente de seu rosto, indicando que me calarei e gesticulo para
que ela continue. Depois, percebo outra coisa no pacote.
— O que é isso? É bonito! Olhe, Luke, maços de folhas prateadas e douradas,
sobre um papel fino e esquisito!
Olho para Lizzy, confusa, da suspira, como santa, e explica:
— É dinheiro tradicional da China, você queima também. Primeiro, você o
dobra na forma de um tael de ouro, a medida de peso chinesa para um lingote de ouro.
Olhe, é assim, na forma de um biscoito da sorte. Isso mesmo! Embora eu ache que é
bonito demais para queimar, também é legal pensar que você está enviando algo tão
lindo ao seu pai.
Concordo. Parece vergonhoso dizer que meu pai jamais percebeu coisas belas,
quando era vivo — sua antipatia por amarelo barrava girassóis, milharais e narcisos —,
de modo que não digo nada. Talvez a morte o tenha tornado mais sentimental.
— Onde se queima isso? — pergunto.
Lizzy faz uma pausa.
— Bem — ela diz —, em qualquer lugar.' na verdade. Em Hong Kong, você
pode queimar na escada de seu edifício, se quiser. Não precisa ser no túmulo. Pode fazer
isso na estrada, embora na Inglaterra talvez seja melhor fazê-lo no jardim. Achei que os
cigarros seriam legais para o seu pai — você disse que ele fumava muito.
Exclamo:
— Você odeia cigarros!
Lizzy sacode os ombros e diz, sem jeito:
— Sim, mas se ele está realmente morto, acho que isso não o fará mal.
Olho para Luke, que concorda solenemente, e exclamo:
— Você ainda está vivo, esta regra não se aplica ao seu caso!
Ele me mostra sua língua e sorri. Lizzy continua:
— Você também pode preparar a refeição ou lanche favorito de seu pai. Não
queimará isso, mas poderá comê-lo depois. Não seria melhor, se eu anotasse tudo?
— Sim, por favor — passo um dedo pela folha dourado brilhante. Fico olhando
por uns três minutos enquanto Lizzy anota freneticamente em um pedaço de papel.
Depois, estende-o para mim, leio e sorrio. Ela escreveu:
Ritual
1. Acenda três varetas de incenso, para chamar o pai.
Concentre-se em seu nome. Deixe os incensos queimando por
cinco minutos (pode ser no Ano Novo Chinês, mas não é essencial).
2. Acenda as velas vermelhas. Diga algumas palavras — conte
ao espírito o que acontecerá.
3. Coloque os itens no saco, escreva a data nele e queime em
recipiente de metal ou, se for mais fácil, queime uma coisa de
cada vez. Não use água para apagar o fogo. Ele precisa apagarse
sozinho (a água impede que as boas intenções sejam
transmitidas).
4. Arranje os alimentos no chão (por exemplo amendoins), se
desejar. (Coma depois.)
Suspiro enquanto digo:
— Isso é tão bonito, Lizzy.
Ela concorda, mas sua expressão parece a de quem quer falar algo.
— O que é? — pergunto.
Franze a testa e alerta:
— Precisa ter cuidado quando queimar as coisas. Esta é uma causa importante
de incêndios em Hong Kong!
Rio, depois olho-a com o canto dos olhos e pergunto:
— Era isso o que queria dizer?
Ela morde seu lábio. Depois, fala:
— Não tenho certeza se eu deveria dizer isso...
— Levanto minhas sobrancelhas.
— OK, bem, as pessoas fazem isso principalmente para demonstrar carinho pela
pessoa falecida, mas é também um pouco por egoísmo, é para obter favores com o
espírito. Assim, ele cuidará de você e trará sorte. Também queima itens para manter
afastados os espíritos ruins, o que, suponho, parece suborno, obviamente não neste caso.
Só pensei que deveria lhe dizer, para que você saiba o que está fazendo. Eu sempre acho
que é melhor ter consciência do que fazemos.
Aperto a mão de Lizzy. Não quero responder, porque minha voz pode falhar.
Pego o pacote de incensos e inspiro seu aroma rico: depois faço um café descafeinado
para Lizzy. Não digo isso a ela, mas já tenho consciência de que, se chegar a queimar
dinheiro do Banco do Inferno, para enviar a meu pai, este será um ato egoísta. Egoísta,
porque não diz respeito a meu pai. Ele não dá a mínima. Está morto. Isso diz respeito a
mim. A não desejar que ele esteja morto. A enviar-lhe um Rolex de papel, porque não
quero acreditar que a morte é o fim. Quero que ele ainda esteja consciente. Que ele
fique feliz, por receber um presente pelo correio, como eu.
O que me lembra, incidentalmente, esta manhã, quando peguei o carteiro
praguejando e tentando forçar um pacote de tamanho mediano pela caixa pequena de
correio de minha mãe, de modo que abri a porta e disse:
— Poderia ter tocado a campainha!
Assim, para o bem de meu pai, espero que os carteiros do além sejam um pouco
mais pacientes. Você poderia causar muitos danos tentando forçar um Mercedes por
uma fenda de caixa de correio.
Quando Luke e Lizzy saem, junto todo o meu kit da morte e, provavelmente pela
primeira vez em minha vida, sinto um surto imaturo de gratidão por meus amigos. Vou
até o telefone e ligo para Tina. Ela responde, imediatamente, em uma vozinha pequena.
— Tina! — digo num sussurro, baixando o tom para combinar com o dela. —
Como vai? — Estou tão contente por falar com ela, que esqueço de meus
ressentimentos. — O que você vai fazer hoje à noite?
— Nada — diz.
— Vou até aí! — exclamo.
— Ah, não, por favor não venha! — diz, rapidamente. Algo em seu tom faz
meu coração doer e digo:
— Tina, desculpe-me por ter dito aquilo sobre Adrian, foi idiotice de minha
parte, sou como um disco quebrado, às vezes, mas eu estou, bem, no processo de ser
consertada.
Aqui, devo interromper por um segundo minha narrativa, para dizer que esta é,
talvez, a mentira mais nobre que já contei — mas sinto-me tão aquecida pela gentileza
de Lizzy e Luke, que desejo ser também uma santa e perdoar. Tina diz algo bem
parecido com "huf" e acrescenta rapidamente:
— Não precisa desculpar-se, Helen.
Aguardo para ver se ela dirá mais alguma coisa, só que não vem mais nada, de
modo que indago:
— Se eu levasse uns vídeos de Seinfeld e salgadinhos de bacon?
Mais rapidamente que a velocidade do som, ela está dizendo não.
— Ah, não, não hoje à noite, acho que não, um outro dia eu...
Meu desejo de perdoar supera o desejo de Tina, em ficar sozinha, o que suponho
ser mais uma demonstração de meu egoísmo, mas, o que não é egoísta? Ninguém
consegue sentir a dor de outra pessoa, só a sua própria dor. Concluo em velocidade
recorde:
— Estarei aí em quarenta minutos, OK, tchau.
Baixo o telefone. Ela liga de volta, imediatamente, eu a ignoro. Deixo um bilhete
para minha mãe e corro para a locadora de vídeo.
Quarenta e oito minutos depois — o tráfego está absurdo — estou tocando a
campainha de Tina. Sei que ela está, logo toco, toco novamente e, quando não responde,
sento-me na escada e espero. Depois de doze minutos, ela abre lentamente a porta.
— Qual é o problema com você, sua maluc... — começo, mas não há
necessidade de terminar a pergunta. a problema com Tina é tão claro quanto seu lábio
cortado e a marca roxa e feia em seu queixo. Meus olhos ardem e, mesmo enquanto
nego a realidade, conheço a verdade. Digo:
— Meu Deus, não. Diga-me que teve um acidente. Por que não me contou?
Tina, Tina, pobre Tina, vou quebrar o pescoço dele, o filho da mãe, ah, meu Deus.
O ódio transborda, tenho medo de tocá-la, esta casca frágil e quebrada, de minha
amiga inteligente e elegante. Estendo meus braços, ela cai neles e chora em meu ombro.
Escuto minha própria voz lamuriosa, cheia de pena e raiva, enquanto ela geme:
— Mas, ele me ama de verdade.
CAPÍTULO 34
Alguns anos atrás, eu estava andando pela Heath Extension com Lizzy — que
tem o hábito desagradável de forçar as pessoas a saírem em caminhadas — e vimos uma
mulher correndo com seus três cães. Um dos cachorros viu-nos no outro lado do campo,
atravessou-o correndo, aproximou-se de nós e se esfregou em minhas pernas.
Lisonjeada com esta demonstração inexplicável de confiança, inclinei-me e o acariciei.
Lizzy sentiu-se encantada.
— É como se ele soubesse que você o protegeria! — exclamou. Embora minha
preferência seja muito mais por gatos, meu ego foi cativado pelo romance agridoce do
momento. Convenci-me de que os animais têm um instinto para pessoas do bem.
Depois, comprei o Gorducho, cuja aversão óbvia a qualquer pessoa boa
transformou em pó minha singular suposição. Mas, eu adorava minha teoria e detestaria
abandoná-la. Permaneci fixada no incidente com o cachorro magnético cama um sinal.
Preferivelmente, um sinal de que eu era especial. Talvez eu tivesse uma sensualidade
bruta que os animais detectavam ("Agora entendi! Você fede!", Marcus exclamou.). Eu
apostava em uma idéia que me agradava. Se estivesse espiritualmente afinada com
almas vulneráveis e o cão tivesse sentido isso? Afinal, percebi que minha mãe era mais
carente do que qualquer outra pessoa no planeta, aos seis anos de idade. É isso! Fui
abençoada com uma percepção única! Realmente fui.
Eu recorria esporadicamente a esta bobagem, até o dia em que olhei para o rosto
de Tina e vi que seu querubim rosa e branco — que presumi ser uma delícia de pessoa
em razão de sua boa aparência e profissão charmosa — queria transformá-la em purê.
Isso varreu o sorriso de meu rosto, com certeza. As palavras ridículas "mas Adrian não é
do tipo que faz isso!" saltaram, dançaram e giraram em torno de minha cabeça em
círculos.
— Quero que você jure que não contará a ninguém — Tina pediu. Apenas
depois de eu jurar "pela vida de sua mãe" — não, pela vida do Gorducho, ela falaria.
Sentou-se rigidamente na borda de seu sofá amarelo e seus olhos zanzaram à sua
volta. Ela me lembrou uma lagartixa presa dentro de um pote. Escutei em silêncio. Já
achei bastante difícil conciliar minha impressão luminosa de Adrian com o homem que
ela descrevia. Considerei quase impossível conciliar minha amiga chique e bemsucedida
com esta figura lastimável e em frangalhos, embolada no sofá à minha frente.
Ela falou em um sussurro e dirigiu suas palavras para o chão. Tive que fazer força para
ouvir o que ela dizia.
— Não sei se isso conta, porque foi só uma briga. Todos brigam. Ele ficou tão
chateado, que chegou a chorar, eu sou um monstro quando estou irritada. Não posso
culpá-lo. Foi por causa do carro. Eu deveria levá-lo à revisão, mas estava sem um
penny. Tentando economizar dinheiro. Fomos à casa do chefe de Adrian para um jantar,
tirei uma ervilha do meu prato e comi. Acontece que tirei com os dedos, e antes que os
outros se servissem. Adrian sentiu-se embaraçado. Como se estivesse saindo com uma
mulher vulgar.
— De qualquer modo, quando saímos de lá, Adrian parecia distante, frio. Eu não
sabia o que tinha feito. Podia ser que tudo terminasse aí, se o carro tivesse ligado, mas
não ligou. Achei que a bateria estava descarregada. Não havíamos trazido nossos
celulares. Adrian não queria ir até a casa do chefe para ligar e chamar um táxi. Arruinei
tudo. Ele começou a gritar comigo e a chutar o carro. Gritei com ele também e, assim,
puxou meus cabelos para acalmar-me. Sei que não pretendia, mas doeu — ele arrancou
um tufo de meus cabelos — e meus olhos lacrimejaram. Disse que aquilo foi só um
puxão de brincadeira.
— Estava tão arrependido, que chorou. Fez aquilo apenas porque detestou me
ver fazendo papel de boba em público. Ele estava realmente chateado. Deu um soco no
painel do carro, o motor pegou e ele me perdoou. No dia seguinte, trouxe-me flores e
café da manhã na cama. Ele é um doce, você sabe. Realmente se preocupa comigo!
Estava triste por termos discutido, de modo que tentei confortá-la e fazê-la sentir-se
melhor sobre isso. Quase nunca me bate. Não é algo contínuo. Certamente não mais do
que uma vez a cada, hummm, seis semanas. Na maior parte do tempo é ótimo, sabe — é
engraçado. Ele me diverte, é tão inteligente.
— Nunca conheci alguém como ele. Adrian está sob muita pressão no trabalho.
É difícil. É crucial causar a impressão certa e eu coloquei isso em risco. Assim, você
pode entender. Depois disso ficamos bem. Muito bem. Até que... até que fiz essa coisa
estúpida. Eu deveria ter percebido. Fomos ao pub Dog and Duck, aqui perto de casa.
Viemos para casa irritados e eu esqueci onde havia colocado a chave da porta. Adrian
estava exausto. Tinha uma reunião com um cliente no dia seguinte e simplesmente
precisava dormir à mesma hora de sempre. Estraguei tudo. Ele chamou-me de bruxa
imbecil, chutou-me e bateu minha cabeça contra a porta. Desmaiei e acordei na cama.
Ele havia encontrado a chave em seu bolso. Ficou muito chateado e foi tão gentil!
Cuidou de mim e colocou gelo e gaze no corte. Disse que eu não precisaria levar pontos,
era apenas um arranhão. E ainda providenciou um comprimido para minha dor de
cabeça e mais gaze, chamando a farmácia por telefone. Não conseguiu dormir,
preocupado comigo. Trouxe-me flores e chocolate a semana inteira. Gastou uma
fortuna. Consertou a porta. Adrian é tão generoso!
Continuou:
— Ainda tenho dores de cabeça, mas isso foi uma exceção. Ele faz isso apenas
porque eu o provoco. No resto do tempo, é muito gentil. É difícil compreender, se você
não o conhece. Não consigo explicar. Sei que as coisas vão melhorar. Tudo ficará bem,
desde que eu beba menos. E aprenda um pouco mais sobre como comportar-me em
público. Assim, desculpe-me se não tenho visto você e Lizzy muito, ultimamente. É que
estava tentando fazer as coisas darem certo com Adrian, ainda estou tentando. Sei que
tenho andado nervosa. Quero melhorar. Você não precisa contar isso a mais ninguém. É
assunto meu, nem é um grande problema. Eu o deixo frustrado e ele perde a cabeça.
Tenho pena, pobrezinho, tendo que me suportar e tentar ser bonzinho comigo o tempo
todo...
Ela disse outras coisas, mas você já deve ter alguma idéia geral da situação. Os
ferimentos deste mês foram causados quando Adrian atingiu-a em cheio no rosto com o
telefone. Ela havia colocado leite no chá de jasmim dele (ele jogou a xícara nela; mas
errou). Ela deve ter feito algo horrível, porque normalmente ele jamais sonharia em
tocar seu rosto. Muito gentil da parte dele, acho, porque é muito vulgar a amiga da gente
andar por aí com um nariz quebrado para que todos vejam e inventem fofocas — é
muito mais refinado manter todos os espancamentos sangrentos limitados aos braços,
pernas e tronco, onde as marcas denunciadoras podem ser encobertas com um blusão
bonito de cashmere e calças elegantes de lã.
Olho para o rosto determinadamente impassível de Tina e sugiro, gentilmente,
que Adrian é um homem violento e mau, que deveria ser denunciado à polícia; que ela
não fez nada de errado e, além disso, não há nada que possa fazer que a faça merecer ser
espancada. Jamais. Não há desculpa para isso; Nenhuma. Pedidos de perdão e flores não
melhoram as coisas, e nada melhorará. Se tolerar isso, ele continuará batendo. Será que
ela não consegue perceber? Digo isso de um modo tranqüilo e casual, porque tenho
medo que ela bloqueie seus ouvidos e me mande embora. Tina é prisioneira do culto a
Adrian e minhas palavras parecem blasfêmia. Ela diz que se sente culpada por contarme,
que é desleal. Cruza seus braços de um modo meio descoordenado e resmunga que
não consegue mais pensar, que está confusa, não sabe o que sente e fica repetindo "vai
ficar tudo bem", como se fosse um mantra.
Quando tento enunciar os fatos de um jeito claro e lúcido para que ela não possa
negá-los, ela nega-os. É como se não compreendesse a língua que falo. Chocada,
percebo que está delirante. Como se visse o mundo através dos olhos de Adrian. Sua
realidade está alterada. Mal posso acreditar que estou falando com Tina. Ela é como
uma alma perdida incorporada. Sinto-me enlutada.
A mulher que passou três meses viajando de carona sozinha na África; que
convocou um grandalhão do Hell's Angels a levantar-se do banco do trem onde estava
sentado, para dar assento a uma mulher idosa; que perseguiu um ladrão por um beco e o
forçou a devolver sua bolsa; que liderou um grupo de trinta e tantos turistas americanos
em uma excursão a Roma sem jamais antes ter pisado na cidade (leu três guias turísticos
nas semanas anteriores), acredita que não presta para nada. Mas, considerando que ela
crê que um homem pode manter a cabeça de sua namorada sob a água da banheira por
dois minutos inteiro, enquanto ela agita-se e luta para respirar "só por brincadeira",
suponho que seu sistema de crenças está meio descarrilado.
Ela não me deixa ajudá-la. Pergunto-lhe se não se sente irritada com Adrian pelo
que fez, hesita e diz que talvez, mas agora está irritada apenas consigo mesma. Meu
pulso lateja e pergunto, em voz aguda, se Adrian sabe que ela tem três irmãos e, mais
diretamente, será que seus três irmãos sabem sobre Adrian? Depois, sinto-me muito
mal, porque ela tem medo, chora e o som congela-me. Ela me diz que preciso prometer
novamente não dizer uma palavra porque... porque... sua voz some e minhas entranhas
apertam-se e eu não entendo como Tina pode agir assim, mas continuo escutando-a.:
Ela conta-me que ficará ausente do trabalho até o Ano-Novo, mas que não devo
ligar. Ela está bem, realmente está, só um pouco esgotada. Quer repousar e ficar
sozinha. Quando seu rosto estiver melhor, irá visitar seus pais. Adrian está esquiando
em Val d'Isere com amigos. É claro que ele a convidou, mas avisou-a várias vezes que
não iria gostar, que não era seu tipo de lugar, de modo que recusou o convite. Minha
diplomacia vai para o espaço e exclamo:
— Tina! Ouça o que você está dizendo! Não consigo acreditar que se deixa
abusar deste jeito!
Arrependo-me de meu impulso instantaneamente, até porque Tina responde
irritada:
— Com licença! E quanto a Jasper? E Marcus? Acho que você não está em
condições de passar sermão, não é Helen?
Não consigo imaginar o que ela quer dizer, mas vou dirigindo rapidamente para
casa às três da madrugada, pensando droga, droga, droga! Estou perplexa. É como se
Adrian fosse meu namorado e a espancada fosse eu. Vou direto ao computador de
minha mãe, entro na Internet e percorro uma longa lista de livros sobre abuso, que inclui
o formidável Violência doméstica para iniciantes.
Faço pedido para quatro títulos. Tina não gostará, mas acabei de lhe comprar seu
presente de Natal. Meu coração bate acelerado enquanto anuncio para o silêncio escuro:
"Tina, você ainda não sabe, mas vai deixar esse filho-da-puta sádico, nem que isso seja
a última coisa que farei na vida.
Domingo de manhã eu ligo para a polícia e pergunto o que podem fazer se uma
mulher está sendo espancada por seu parceiro. A resposta fria é que, se a própria vítima
não der queixa, nada. Ligo para Tina domingo, segunda e terça, porque estou
determinada a fazê-la enxergar a realidade e abandonar Adrian esta semana, mas ela não
responde e não quero deixar uma mensagem. Então, é Natal.
Na manhã de vinte e quatro de dezembro, minha mãe e eu recebemos um convite
de último minuto para almoçar com Vivienne. Rejeito o convite porque não sinto
vontade de me misturar com uma verdadeira família. Minha mãe também, depois muda
de idéia porque de outro modo ela apenas ficará sentada em casa; sentindo-se
terrivelmente mal". Isso nem precisaria ser dito, porque até mesmo Grinch entraria por
nossa porta e começaria a ansiar por luzinhas piscantes de Natal. Minha mãe está
querendo mostrar algo a Deus. Ela nem mesmo pôs à vista os cartões que recebeu —
estão em uma pilha desleixada na mesa da cozinha. Arranjo os cartões em uma fileira
organizada, antes de ir trabalhar, e sugiro que podemos acender velas de Hanukkah,
quaisquer velas — francamente, eu acenderia a mim mesma se achasse que isso poderia
tornar a casa menos lúgubre —, mas ela não aceita nenhuma sugestão. Encontra o valepresente
de produtos de beleza que lhe comprei escondido na gaveta de guardanapos,
zanga-se e diz que o comprei apenas para fazê-la sentir-se mal. Neste ponto, minha
paciência acaba e respondo, furiosa, que a única pessoa que faz Cecelia sentir-se mal é
Cecelia. Tenho razão. Ela interditou a alegria. Assim, ontem eu comprei um peru
pequeno, um saco de batatas fritas e um pote de molho de cranberry (estava quase
pegando um saco de ervilhas congeladas, quando uma onda de apatia varreu-me e
pensei danem-se as ervilhas) e as escondi no fundo do refrigerador.
Às duas da tarde, na véspera de Natal, vejo minhas colegas dançando pelo
escritório em uma mistura de cordões dourados, vinho quente, boa-vontade, e me sinto
distante de tudo. Imagino o que Tom está fazendo agora e se ainda o verei algum dia.
Penso em nós dois juntos e confirmo o que sempre pensei, que não duraria. Estou com o
olhar fixo no espaço, quando algo passa na frente de meus olhos e produz um ruído alto.
Pulo de susto e vejo que o "Sr. Resmungão", o porteiro, acabou de deixar um enorme
buquê de rosas em minha mesa. Flores! Nunca recebo flores!... Sou uma zona livre de
flores.
— Para Laetitia? — pergunto, descrente.
O Sr. Resmungão faz uma careta e diz:
— Você é Helen ou não? — e dá as costas, afastando-se.
O sangue ferve em minha cabeça e eu penso: Tom? Tom! Flores de Tom para
dizer que gosta de mim novamente! Olho longamente para a escada de incêndio, no
caso de ele tê-la escalado à la Richard Gere, esperando com a intenção de me raptar
romanticamente. Ele não fez isso. Mas enviou rosas — o símbolo do amor romântico!
Procuro o cartão e abro o envelope. Minhas mãos estão suando e tremendo, enquanto
leio a mensagem.
Querida Helen.
Faz tempo que não nos vemos.
Com amor, beijos,
Jasper.
Minha esperança é frustrada e me sinto como o personagem de uma historinha
que li, James e o pêssego gigante, que deixou cair uma sacola mágica de vermes que lhe
dariam vida eterna e esses retorcem-se e desaparecem dentro da terra. Coisas
maravilhosas poderiam ter acontecido comigo, mas fiz besteira e agora não tenho nada.
Olho fixamente a mensagem e imagino o que Jasper pode estar querendo. Deixo escapar
um sopro irado de ar pelo nariz. Ele tem coragem. Ainda assim, as flores são bonitas.
Sorrio com relutância. O verme é cara-de-pau. Suponho que ele não é tão ruim assim.
Não é nem parecido com Adrian. Apenas um malandro. Pelo menos, não fica me
perturbando sobre o lugar em que moro. Cheiro as rosas. Acho que não faria mal
encontrá-lo para beber alguma coisa. Toco a pétala suave e cor-de-rosa de uma das
flores. Rosas rosadas. Será que isso significa que sou gay?
Estou inspirando o perfume de minhas rosas como outras pessoas inspiram
oxigênio, quando minha mãe liga para dizer-me com uma voz irritada que sente muito
por ter ficado irritada. Diz que, se eu não quiser que ela vá à casa de Vivienne amanhã,
ela não irá. Não quer que eu passe o Natal em uma casa vazia, tem certeza de que
Morrie não gostaria disso (para um descrente, ele era surpreendentemente chegado a
Natais). Quando diz isso, sinto-me como a maioria das mães normais sentem-se quando
seus filhos dão o primeiro passo.
— Mãe — digo, suavemente —, isso é delicado, mas você se sentiria mal se eu a
impedisse de ir à casa de Vivienne. Quero que você vá.
A isto, ela responde:
— Ah, que bom! — e desliga o telefone.
Estou imaginando se é possível alguém beliscar-se e acordar em uma outra
dimensão, quando Lizzy aparece e pergunta se quero ajudar Brian e ela na decoração de
sua árvore de Natal. O plano é comer tortas de legumes integrais, arrumar os enfeites e
comparecer à missa da meia-noite. Embora eu adorasse, sinto que ela convidou-me por
pena, de modo que finjo estar ocupada.
— Mas, posso ajudá-la na sopa dos pobres, amanhã! — digo, apressada, antes
de poder conter-me.
A mão de Lizzy voa até sua garganta e ela exclama:
— Oh, Helen! Não dá! Dei uns telefonemas e já obtive mais voluntários do que
preciso!
Fico vermelha e murmuro:
— Não tem importância. Acho que eu deixaria os sem-teto deprimidos, de
qualquer maneira.
Lizzy faz uma pausa, depois retira-se e eu vejo um cartoon em minha mente,
onde sou um peru humano comendo peru sozinha. Com o coração pesado ligo para
minha avó, para ver se ela deseja unir-se a mim no que eu prevejo confiantemente como
aquilo que será a refeição festiva mais deprimente de minha vida.
Para meu alívio, Nana passará o dia com sua amiga Nora. Obrigada, elas já
escolheram o que assistirão na TV e jogarão bingo à noite com pessoas do Clube da
Terceira Idade. Como Nana diz, não há nada para celebrar, você não a verá soltando
fogos, não este ano. Ela estará em casa dia vinte e seis, se eu quiser visitá-la, mas não
devo ir entre as duas e três e meia da tarde, porque estará assistindo a um filme de Cary
Grant. Se — como Cecelia mencionou — comprei para ela um enfeite de porcelana na
forma da cabeça da princesa Diana, ela não quer, porque já tem cinco desses e o espaço
sobre sua lareira está lotado.
Quando chega a meia-noite, sinto-me no espírito de um legítimo Grinch e penso
em assar o peru, enfiá-lo na Toyota, ir até o cemitério e jogá-lo sobre o túmulo do meu
pai.
Bem, se toda essa porcaria de Natal não é culpa dele, de quem é, então?
CAPÍTULO 35
Sendo uma "boca grande" com déficit de atenção, lembro pouco do que aprendi
na escola, o que não me deixa muita coisa. Mas, de uma coisa, eu recordo. Uma história
que foi traduzida em nossa aula de francês, que, como dizem nos contos de fadas, partiu
meu coração. Era sobre um operário tão pobre que não podia comprar uma árvore de
Natal para sua filhinha. Assim, adiou o Natal. Quando todas as famílias ricas jogaram
fora suas árvores, no Ano-Novo, ele escalou o monte de lixo e pegou uma. Deste modo,
sua filhinha teve sua árvore e os dois viveram o Natal mais feliz de suas vidas.
Não tenho muito em comum com aquela menininha, exceto que este ano meu
Natal também chegou mais tarde. O dia em si mesmo também não é ruim.
Surpreendentemente tranqüilo. Ajo como consultora de moda para minha mãe, que está
desesperada para deslumbrar e superar Vivienne.
— Tem certeza que não quer vir também? — pergunta, em uma onda de
excitação. — Haverá pessoas de sua idade — alguns primos, eu acho, Jeremy e seu
amigo Simon.
Dou um suspiro:
— Jeremy e seu namorado Simon. Vivienne não quer enxergar a verdade.
Considero brevemente a possibilidade de ir — o filho de Vivienne, Jeremy, é
carinhoso, gentil e irreprimivelmente alegre. Depois decido que preciso ficar sozinha.
Dou à mamãe o vale-presente e ela me dá pijamas de seda de um vermelho cor de
sangue.
— Você não deveria dormir com essa camiseta surrada — explica, com
suavidade —, os homens não gostam disso.
Nenhuma de nós menciona meu pai. Contornamos com cuidado sua ausência,
que polui o ar como um nevoeiro pesado. O esforço é cansativo e sinto alívio quando
dou adeusinho para minha mãe exageradamente vestida. Depois, embrulho-me em meu
cobertor e leio o presente que comprei para mim mesma — Dália Negra, de James
Ellroy —, com a TV ligada, mas sem som.
Não me dou ao trabalho de assar o peru, de modo que faço batatas fritas e as
mergulho em molho de cranberry. Intercalo a leitura e a comilança com cochilos.
Imagino o que Tina está fazendo. Rezo para que Adrian dê com a cara em uma árvore,
ao esquiar. Tento e fracasso em prender o interesse do Gorducho por seu novo ratinho
de corda (ele senta-se perto, levanta sua pata bem alto como uma bailarina e começa a
lamber o que Luke chama de "estojo" do seu pênis).
O dia vinte e seis também passa tranqüilamente. Nana Flo liga para declinar
nosso convite, já que está com "desarranjo estomacal". Isso não chega a ser surpresa,
pois ela sempre tem "desarranjo estomacal" um dia depois do Natal, porque trata o
almoço do dia vinte e cinco como se fosse a Última Ceia. Assim, desafio minha mãe a
um jogo de Banco Imobiliário, o que é um erro, porque ela escapa da prisão, frauda o
banco e fica rancorosa pois comprei terrenos valiosos. A paz é restaurada apenas
quando eu perco. Depois, leio meu livro e minha mãe abre a porta porque acha que está
nevando e vê que o Gorducho trouxe-nos um presente, um doce pardalzinho morto. A
paz vem em pedacinhos, até eu perceber que uma reprise de Only Fools and Horses está
para começar na BBC1. E este é o fim do Natal.
A excitação real começa dez dias depois.
Minha mãe volta a trabalhar. Eu encontro um apartamento. Michelle força
Marcus a depilar suas costas com cera. É muita coisa em tão pouco tempo — por onde
devo começar? Na verdade, esta é uma pergunta de retórica, porque se eu mantiver a
descoberta de Marcus sobre o significado da dor para mim mesma, por mais um
momento, minha cabeça explodirá por reprimir minha excitação maligna. Ouço a
história toda de Lizzy, que a ouviu de Brian, que soube por Sara, a esteticista da
academia. Penso glória, aleluia, Deus existe.
A noiva de Marcus ordenou que ele depilasse suas costas com cera e Sara levou
quarenta e cinco minutos fazendo isso! Ela sentiu-se aflita demais, porque ele estava
berrando! Berrando! Ele berrava "cadela" e "caramba" alto demais, e pessoas nas outras
salas estavam fazendo suas sessões de massagem! Ela passou cera nele e Marcus gritou
que a cera estava escaldante, quando mal estava aquecida! Sara disse:
— Agora você sabe o que as mulheres precisam suportar!
Ele disse que não dava para comparar a depilação de pêlos excessivos nas
virilhas para usar biquíni com isto, porque no primeiro caso eram necessárias "apenas
duas fitas!". Então, Sara deixou de lamentar por ele e falou:
— Eu lhe garanto que não são apenas duas fitas!
Ele era tão peludo, que depois parecia que estivera usando uma camiseta sem mangas.
Ela não sabia se devia continuar e pelar também seus braços! Então, descobriu
que ele trabalhava em outra academia, mas sentia vergonha de fazer isso lá! Apenas fez
porque foi obrigado pela noiva!
Lizzy raramente fofoca, mas abandona seus princípios baseada no fato de que
isso não é boato, mas reportagem. Suspeito, secretamente, que ela jamais perdoou
Marcus por forçá-la a admitir em público que o pênis de seu ex-namorado era "médio".
Esta visão privilegiada de um pouquinho da nova vida de Marcus, sob as ordens de sua
comandante, quase incita minha simpatia, mas consigo esmagá-la e tremo com a
recordação de meu único e breve encontro com o traseiro de gorila e imagino o que me
deu — além do desespero — para transar com ele, quando o telefone toca.
É minha mãe. Está ligando da sala de professores. Todos foram tão amáveis!
Todos sentiram sua falta. Seus alunos fizeram-lhe uma faixa enorme de "bem-vinda de
volta" com toalhas de papel coloridas. Todos apresentam o melhor comportamento
possível. Ela acha que a Sra. Armstrong teve uma palavrinha com as crianças,
antecipando seu retorno. Está muito contente por estar de volta. A Sra. Armstrong fez
com que prometesse que, se em qualquer momento ela chegar a sentir que não tem
condições, deve comunicar o fato imediatamente e a Sra. Armstrong fará o que for
necessário para ajudá-la. Mamãe tem muito a fazer, seus horários estão uma loucura,
mas isso nem importa. De qualquer maneira, vai desligar agora, porque precisa dar uma
aula de Matemática.
Enquanto minha mãe bate o telefone, fico pensando, maravilhada. Algo está
fazendo bem a ela — talvez o Prozac, talvez Cliff, ou hoje é um dia de sorte. Marcus
teve o que merecia e tive a sorte de ouvir como foi. Todos os trinta aluninhos de quatro
anos da turma de Cecelia Bradshaw conseguem não vomitar em suas camisetas, urinar
em suas calças ou fazer cocô perna abaixo. Deve ser destino. Consulto meu horóscopo
para saber se ele concorda com minha visão das coisas. Acredito em meu horóscopo,
desde que as notícias sejam boas — no momento em que ele diz coisas desagradáveis,
acho que é tudo uma palhaçada. Parece que júpiter, "o planeta do crescimento e
oportunidade", está influenciando meu signo, de modo que devo esperar
"acontecimentos excitantes".
Debruço-me sobre a página, concordando. A verdade é que, quando você vive
com seus pais, tem um emprego medíocre e não tem amor ou vida social, a tortura de
uma paixão do passado e a satisfação passageira com uma mãe problemática assumem
proporções emocionantes. Mordo o lábio e penso se deveria dar mais uma chegada no
apartamento de Tina hoje à tardinha. Ela conseguiu evitar a mim e aos meus livros de
auto-ajuda durante quinze dias, mas seu horóscopo diz que Júpiter demonstra sua
influência na porção de seu mapa astral que "acentua a estrutura" de sua existência e
"tende a trazer mudanças". Perfeito. Ligarei para ela depois do almoço.
São meio-dia e dois. Estou prestes a começar meu trabalho quando Adam, o
corretor imobiliário encharcado de joop! liga-me para dizer que encontrou o imóvel
perfeito para mim. É bem perto de minha rua, preciso vê-lo imediatamente. O imóvel é
barato, sem enganos, fez bom uso do espaço, não é em local muito procurado, é
acessível para quem usa transporte público, mas pode ser melhorado, centenas de
pessoas estão interessadas, se eu não correr perderei o negócio e não encontrarei mais
nada condizente... Agora que já conheço o estilo de livre interpretação da lei de
propaganda enganosa de Adam, sei que não posso acreditar em uma palavra do que diz.
Mas, ao ver que Júpiter está bafejando em meu pescoço, decido que preciso deste
apartamento que (pelo que pude perceber) deve ser uma caixa de fósforos caindo aos
pedaços do início do século XX, situado sob trilhos de trem.
— Muito bem — digo. — Que tal hoje, às seis e quarenta e cinco da noite?
— Sim! — diz Adam, que sem dúvida esperava que eu começasse a discutir. —
Maravilha! Temos um encontro, então!
— Não, não temos, temos um compromisso profissional — respondo.
Lizzy e eu encontramo-nos em seu escritório às seis e trinta e dois da noite.
Adam ignora-me e olha com malícia para Lizzy, que está usando uma saia curta. Não
me importo, em parte porque já fui rejeitada por homens muito mais desejáveis que
Adam e porque, se fosse homem, também preferiria a elegância alta e bronzeada de
Lizzy à minha brancura nanica.
Minha indiferença, porém, deriva-se principalmente da preocupação de contar
ou não sobre Tina à Lizzy. Sei que prometi manter segredo e que a vida corpulenta do
Gorducho depende disso. Mas, estou convencida de que, se contar à Lizzy sobre Tina,
pelo menos uma vez isso poderá ser considerado como divulgação de informações
confidenciais por motivos nobres. Quando liguei para Tina esta tarde, ela concordou,
hesitantemente, em encontrar-me amanhã em minha casa, sob a condição de eu "não ir à
sua". Assim, imagino como posso fazer uma tentativa com Tina sem que ela perceba e,
como Lizzy é a rainha da diplomacia e eu sou miserável em diplomacia, preciso de seus
conselhos. Ainda assim, não importando minhas justificativas, as palavras afiadas e
cruas "mas você prometeu" mordiscam meu cérebro. Finalmente — bem na hora em
que Adam localiza um espaço para estacionar e manobra com violência — consigo
encontrar uma solução para meu dilema.
Pergunto, em voz baixa:
— Lizzy, você conhece Adrian, o namorado de Tina? Bem, o que diria se eu
dissesse que falei com uma mulher que saiu com ele, algum tempo atrás, e disse que ele,
é..., costumava ser meio violento com ela?
Confesso que esta é uma adaptação bem pobre da verdade e estou consciente de
que qualquer outra pessoa veria a falsidade de minha afirmação em um décimo de
segundo. A intolerância de Lizzy com relação à maldade — ela é o extremo oposto do
Gorducho, neste sentido — faz dela um anjo da guarda que evita vôos indesejáveis da
imaginação. Jamais ocorreria a ela que eu estava falando sobre Tina.
Assim, faz cara de perplexa e diz rapidamente:
— Não consigo acreditar! Adrian é tão legal! Não pode ser verdade!
Surpresa por sua veemência, digo com suavidade:
— Bem, foi isso que ela disse.
Lizzy responde, no tom incrédulo de uma criança ao ouvir que os bebês não são
trazidos por cegonhas:
— Ela tem certeza?
Para ser honesta, estou sem ação. Esperava choque, horror e ouvidos
hiperatentos. Não obstinação. Afirmo:
— Acho que ela não inventou, Lizzy, acho honestamente que não.
Mas ela diz, com firmeza:
— Adrian é uma graça! Educado! Ela deve ter imaginado isso. Na verdade, acho
que uma pessoa boa não lhe contaria coisas ruins como esta.
Assim, Lizzy destrava a porta, desliza para fora do carro e bate a porta. Sinto-me
como se tivesse tentado vender areia no deserto.
Completamente desanimada, olho em volta. Estamos de pé na frente de uma
fileira bonitinha de casinhas com alpendres, que parecem saídas de um bolo de
casamento. São todas brancas, com lindas janelas grandes e portas pintadas com cores
brilhantes. Adam abre o portão de fachada granitada. A casa à venda é realmente a
ovelha-negra daquele conjunto de casinhas de sonho.
— Talvez você possa fazer com que alguém reforme a fachada — Lizzy sussurra
— e também tire essa geladeira enferrujada do gramado da frente.
Eu concordo e sorrio. Não confio em minha voz para falar-lhe, ainda. Portanto,
digo suavemente a Adam:
— Não tenho certeza do motivo para virmos até aqui, a menos que isso seja uma
piada, mas será que daria para você tocar a campainha desta vez, para não pegar o dono
relaxado dessa imundície de cuecas na sala?
Adam tosse, depois responde:
— O dono não mora mais aqui.
Ele abre a porta escangalhada e compreendo por quê. O proprietário
provavelmente olhou para a decoração, certo dia, e caiu duro de pavor. Os degraus da
escada estão soltos, rangem e não possuem carpete. As paredes são cobertas pelo que
posso descrever apenas como uma caricatura espalhafatosa de papel de parede, assim
como, inexplicavelmente, também o teto. Apesar do choque causado por turbilhões de
laranja e marrom, o efeito é o de monotonia total. Lizzy murmura:
— Mas que coisa... diferente!
Inspiro profundamente para evitar a sensação de sufocamento.
— Tem muito potencial — Adam diz, animado.
Eu suspiro e o sigo para o que pretende passar-se por uma cozinha,
— Está claro que o dono tinha um fetiche por marrom — digo com um olhar
mal-humorado para o piso de linóleo manchado, cor de lama. — E fobia à limpeza —
acrescento, olhando para o balcão encardido.
— Mas, todo o charme desta casa está clamando para que você imprima nela
sua própria personalidade! — Adam responde. — Sob este balcão está um piso de
madeira dos bons!
Olho para ele e digo, esperançosamente:
— É mesmo?
Ele concorda:
— Sim! Bem... há madeira em qualquer piso, não é?
Ao mesmo tempo, Lizzy exclama:
— Helen! Acho que este pode ser um fogão original New World Gas Range!
Sim, olhe, tem duas portas! Ah,meu Deus! Eu morreria por um fogão como este! Não
dá para acreditar! Deve ter pelo menos cinqüenta anos! Adam, isto fica com a casa?
Ele olha Lizzy por um longo tempo, cheio de tesão, depois comenta:
— Sim. Incrível, não?
Eu tenho um acesso de raiva e exclamo:
— É uma droga de um ferro velho!
Mas, Lizzy insiste que é "uma antiguidade", Depois, descobre que a fórmica —
por baixo de uma camada de sujeira — é dourada.
— Isso é inacreditável! — diz, com um gritinho. — É um tesouro! Não mudou
desde a guerra!
Resmungo:
— É, a Guerra dos Cem Anos!
Adam leva-nos ao banheiro, que é tão pequeno que somente dois de nós podem
entrar ao mesmo tempo. Lizzy espera no lado de fora.
— Azulejos originais! — exclama, encantada. — Helen, você precisa comprar
esta casa!
Arregalo meus olhos e respondo:
— Isto é um pardieiro!
Então eu vejo o quarto e, embora o gesso esteja se desfazendo no teto, o carpete
esteja puído e as janelas sujas e rachadas, algo dentro de mim amolece.
Imagino-me arrancando o carpete e encerando a madeira do chão, repintando as
paredes de amarelo e limpando as grandes janelas, para que os raios de sol possam
atravessar os vidros.
— Vejamos a sala. — digo.
— Lareira original — Adam diz, enquanto entramos na pequena sala cheia de
teias de aranha. — E está tudo liberado. Depois que você reformar o que achar
necessário, pode mudar-se!
— Não seja ridículo, isto está inabitável! — mas eu não falo isso com muita
convicção. Meu coração está batendo rapidamente e sinto calor pela trepidação. Não sei
por que, mas quero esta casa.
Na manhã seguinte, faço uma oferta pela casa. Adam diz, friamente:
— Ligarei de volta.
Lizzy tenta acalmar-me, dizendo que ele está bancando o difícil, e me dá o nome
de seu advogado. Tina liga-me no meio de uma sessão de fotos para dizer que sente
muito, mas "aconteceu algo" e não poderá encontrar-se comigo hoje à noite. Começo a
perguntar-lhe como estão as coisas, mas ela desliga.
Quase imediatamente, o telefone toca novamente e o agarro.
— Tina? — pergunto, nervosa.
— Quem está falando? A adorável Helen? — diz uma voz arrastada.
Minha pele arrepia-se.
— Jasper? — pergunto, com um sussurro.
— Oi, docinho! — ele fala. — Você não me ligou para agradecer as flores. Isso
significa que está tudo acabado?
Dou uma risadinha.
— O que pode estar acabado? Não há nada, para ter acabado.
Jasper inspira ruidosamente, como se estivesse magoado por meu comentário.
— Isso dói — ele diz.
— Jasper, você é tão casca-grossa quanto o cotovelo de um hipopótamo, de
modo que não precisa fingir-se de delicado — falo, em tom duro.
Ele ri.
— Helen, meu doce anjo, sinto sua falta! Como está sua vida? O que você me
diria de colocarmos os assuntos em dia? E quanto à possibilidade de jantarmos juntos?
Penso eu diria sim, desde que você me prometesse que falará como uma pessoa
normal em vez de um cavaleiro medieval.
— Beeeeeemmm...
Ele interrompe-me:
— Hoje à noite! Posso raptá-la às sete, depois do trabalho! Estarei esperando
com um táxi!
Estou prestes a lançar um recatado protesto, quando ele desliga. Assim, penso,
que possível objeção eu poderia apresentar para trocar uma noite de macarrão
instantâneo na frente da TV assistindo Melrose Place com um gato cor-de-laranja
soltando gases ao meu lado por um suntuoso jantar à luz de velas na frente de Jasper
Sanderson com seu pé delgado tocando-me e acariciando meu tornozelo, sedento de
amor?
Não é como se eu fosse namorá-lo, ou algo parecido.
CAPÍTULO 36
Às vezes, o Gorducho esquece de ser ele mesmo e demonstra alguma afeição.
Esses lapsos ocorrem de acordo com suas próprias conveniências e, inevitavelmente,
quando estou ocupada. Especialmente quando estou lendo jornal. Ele salta sobre a mesa
e se espalha languidamente sobre as manchetes, obscurecendo cada palavra. Se o tiro
dali e o ponho no chão, salta novamente, se põe sobre o mesmíssimo artigo e se estira
todo outra vez. O único meio-termo que ele aceita é sentar-se no meu colo. Pula sobre
minhas pernas, afunda suas garras, ronrona como uma hélice e começa a cavoucar.
Imagino a sensação como sendo idêntica a de ser picada com dez agulhas ao mesmo
tempo, muitas vezes, no mesmo local cada vez mais sensível. A ação tem o efeito de
puxar fios e arruinar minhas calças, simultaneamente. Mas, suporto a dor e dou a calça
por perdida, porque demonstrações de afeto do Gorducho são extremamente raras —
por isso mesmo, mais preciosas.
Suponho que concordei em ver Jasper por motivos semelhantes. Apesar de tudo,
é agradável vê-la. O perfume que está usando chama-se — não ria! — Egoiste, o que
faz com que eu sinta vontade de mordê-la.
— Seu perfume é bom — digo, sem querer.
— Eu sei — ele diz, com um sorriso enorme.
Percebo alguma coisa grudenta e branca entre seus dentes. Corro minha língua
sobre meus próprios dentes e chupo, embora os tenha escovado antes de sair de casa.
Subitamente, sinto-me desajeitada e a arrogância despreocupada do "eu sei" ressoa
duramente em meu ouvido. Jasper está lindo como sempre, mas também está feliz da
vida consigo mesmo. Decido tornar as coisas difíceis para ele — ou, pelo menos, mais
difíceis do que ele espera. Enquanto caminhamos pela Long Acre, ele pousa a mão sobre
meu ombro. Penso em encolher os ombros para retirá-la, mas não quero ser hostil
demais. Assim, ela fica ali, pesada e desconfortável, até entrarmos no táxi.
— Então, onde você pretende levar-me? — pergunto, quando andamos
lentamente pelo tráfego de Londres.
— É surpresa! Como você está? Tanto tempo sem vê-la!
— Estou bem. — tento não me irritar pela frase "tanto tempo sem vê-la". —
Como você está? — pergunto. — Como está Louisa?
Jasper franze seu nariz e diz, com emoção:
— Estou bem, ela é uma estúpida.
Estranhamente — ou não —, isso não me surpreende.
— É? Por quê? — pergunto, gélida. Sinto-me inexplicavelmente aborrecida, por
Louisa.
Jasper infla suas narinas, faz um ruído alto e rola seus olhos. A imagem de um
cavalo em pânico.
— Ah, ela me enche o saco! Não suporto aquela mulher! Ela...
Por seu tom de voz, espero um longo e cansativo relato, mas ele hesita e então
termina dizendo:
— Ela, ah, ela é legal. É uma boa garota. Ela está, hummm, bem, eu..., detesto
seu gosto por música.
Levanto minhas sobrancelhas:
— Jasper, você detesta o gosto musical de todo mundo! Por quê? O que ela
gosta que lhe parece tão ofensivo?
Ele estremece e cospe o nome como se fosse leite azedo:
— Madonna.
Eu dou um gritinho:
— Madonna! O que você tem contra Madonna? Ela é ótima! Adoro!
Jasper retruca:
— Ela é uma devoradora de homens!
Aperto meus lábios, afetadamente:
— Entendo. Você acha que isso afeta a música que ela canta...
Jasper — como todos os bons políticos — ignora a questão e responde:
— Sua música é uma abominação!
Acho que ele espera comentários adicionais, mas estou em silêncio.
Finalmente resmunga:
— Não suporto mulheres assim.
Eu sabia. Um tremor de pura raiva percorre meu corpo, enquanto retruco:
— Eu não suporto homens com esse tipo de opinião.
Depois disso, ficamos em um silêncio gelado por cinco minutos inteiros, até que
ele se rende.
— Ei, docinho — diz, suavemente. — Eu não quis magoá-la. Será que falei que
você está ótima? Muito bem mesmo.
Em meu vocabulário, "muito bem mesmo" é um modo educado de dizer "você
parece realmente gorda". Assim, desprezo seu comentário.
Jasper insiste:
— Sério! Você emagreceu, ou algo assim?
Preferiria permanecer amuada, mas sorrio involuntariamente:
— Eu não sei e não me importo — falo, em um resmungo. — Faz anos que não
subo em uma balança.
Jasper, sentindo que o- gelo começa a derreter, diz alegremente:
— Você pode pesar-se no apartamento, se quiser.
Arregalo os olhos como em um desenho animado de Walt Disney:
— Que apartamento? — grasno. — Achei que iríamos jantar fora!
— Pensei em fazer um jantarzinho especial para você em meu apartamento —
ele diz.
Eu urro:
— No apartamento de Louisa, você quer dizer. Ela estará lá?
Jasper responde suavemente:
— Louisa está em Chicago, a negócios. Teremos a cozinha só para nós.
Decido testá-lo:
— O que você pretende cozinhar?
Jasper tosse em sua mão fechada.
— Frittata di cheddar e erbe d'estiva. — diz, sorrindo.
— Uau! — exclamo, contente por seu esforço. — Isso parece fantástico! Você
teve muito trabalho para encontrar isso pronto?
Ele ri.
— Um pouco — diz.
Jasper fez algum esforço por mim. Estou boba de satisfação. Durante o resto de
nossa jornada, conversamos sobre seu emprego e ele me conta que está para ser
promovido. Conto-lhe que estou para ser rebaixada e ele me diz que preciso aprender
"as regras do jogo" — o que quer que isso signifique. O táxi estaciona em uma ruazinha
bonita em Kensington.
— Nossa! — digo, em um surto de admiração relutante por minha rival. — Isso
é lindo! Louisa tem se saído bem!
— É. Talvez alguém se dê bem.
Talvez você se dê bem, eu penso. Minha opinião não muda ao ver o apartamento.
Louisa adora vermelho. As paredes são de um vermelho profundo, imensos tapetes de lã
pesados e vermelhos cobrem o chão, as janelas são adornadas com cortinas pesadas e
vermelhas de veludo. A sala está lotada de candelabros adornados, mesas e cadeiras
antigas, um sofá lilás bem usado, uma estante transbordando de livros — adoraria
detestar tudo isso, mas o efeito é quente, aconchegante e inegavelmente atraente.
— Isso é impressionante! — digo, prendendo o fôlego.
— É como viver dentro de um útero — Jasper grita da cozinha. — Você quer
um cherry?
Eu grito de volta:
— Desculpe-me, será que pareço uma tia de cem anos de idade?
Há uma pausa, depois ele diz, rapidamente:
— Como queira. Tomarei um.
Enfio meu nariz na porta da cozinha:
— Você não tem uma cerveja?
Jasper faz que "não" com a cabeça.
— Vinho?
Ele faz que "não" novamente.
— Então, quero um copo de água, por favor,
— Terá que ser da torneira — ele responde. — Tintim! Agora me conte como
você está em seu novo cantinho.
Tomo um gole de água e digo:
— Que novo cantinho?
Ele parece confuso:
— Achei que você estava comprando um apartamento.
— Estou sim, é... mudando-me em mais ou menos, deixe ver... hummm, cinco
semanas.
Isso não chega a ser uma mentira das grandes, porque antes de sair do trabalho
hoje Adam ligou-me para dizer que minha oferta fora rejeitada, mas, aqui entre nós, se
eu a aumentasse em mais seis mil a casa 55B "estaria no papo".
— Ah sim, é uma titica tão pequena, que aposto que caberia num saco mesmo —
resmunguei, depois de baixar o fone.
Jasper indica seu interesse por minha especulação imobiliária, levantando uma
sobrancelha, de modo que lhe conto tudo sobre a casa (deixando de fora o fato de eu não
a ter comprado ainda), enquanto ele cozinha o que parece ser omelete de queijo. Por que
será que, nesses tempos pós-modernos, todos os homens que conheço fazem omelete?
— Achei que você cozinharia .algo complicado — digo, franzindo os lábios.
— Isto é complicado, docinho... — ele responde, e pisca.
Comemos nossas omeletes sentados no sofá e Jasper é muito atencioso. Ele tenta
dar-me omelete na boca com seu garfo — eu o deixo brincar, embora seja perfeitamente
capaz de me alimentar sozinha há quase vinte e cinco anos — e remexe no portarevistas
de Louisa para encontrar um exemplar recente de Home &Interiors. Damos
uma olhada juntos e, embora não haja absolutamente nada ali que eu goste ou possa
comprar, sinto-me comovida por seu interesse. Tudo está indo bem, até que o relógio
bate dez horas e Jasper tenta beijar-me.
— Sinto sua falta, amorzinho — murmura em meu pescoço. — Sinto saudade.
Ele empurra-me gentil mas firmemente no sofá lilás, mas eu tiro suas mãos
errantes de meu blusão. Jasper beija todo o meu rosto, fazendo ruídos altos de
esmagamento. Meu estômago revira-se com nojo e evito seu rosto. Deveria sentir
vontade de lhe dar uns amassos e beijá-lo, mas não sinto nada. Talvez o omelete não
tenha caído bem.
— Tão tímida — ele murmura, girando meu rosto para que fique novamente ao
alcance de seus beijos. — Nem parece você.
Sento-me rapidamente e me afasto dele.
— O que você quer dizer com isso? — pergunto, gélida.
Jasper corre uma das mãos por seus cabelos e diz:
— Vá com calma, meu anjo, foi uma brincadeira.
Arregalo os olhos e digo:
— Bem, adivinhe, eu não entendi.
Jasper aperta meu nariz e levanta-se.
— Como está o Gordinho?
— Gordinho?! — exclamo, vibrando de desgosto. — O nome dele é Gorducho,
e está vivo e gordo, obrigada!
Jasper ri, em voz baixa e melosa diz:
— Você é sexy quando está zangada.
Eu balanço minha cabeça.
— Não me venha com isso. Essa frase tem mais ou menos cinqüenta mil anos.
Os dinossauros já a usavam uns com os outros.
Jasper fricciona sua testa e me dá um sorriso imenso. Eu dou uma risadinha e
falo:
— Ah, pare com isso! Sob circunstâncias normais, eu saltaria sobre você, mas
estou com um pouquinho de dor-de-cabeça hoje.
Ele olha para mim e, sem muita empatia, diz:
— Aaaahhh...
Depois, acrescenta:
— Ei, docinho, comprei um presente para você.
Começa a revirar o interior de sua pasta de trabalho e joga em minha direção um
livro de bolso com capa de cores vivas. Tudo Sobre Gatos. Sei, imediatamente, que ele
passou a mão no livro de alguém em seu escritório.
— Sabe, tenho outros interesses — digo, melindrada.
Ele pega Tudo Sobre Gatos, joga-se sobre o sofá, deita sua cabeça em meu colo
e começa a ler segmentos do livro. Como sei que sua simpatia por gatos é igual à de
Nana Flo pelos felinos, reconheço o sacrifício.
— Toda vida deveria ter sete gatos — ele declara, como se realmente acreditasse
nisso, e minha expressão dura suaviza-se. Sinto que meu corpo começa a aquecer-se.
Estou curtindo o calor de nossa intimidade quando ele larga o livro, agarra minha mão e
diz: "Helen, sinto sua falta. Por favor, volte para mim."
Não sei o que dizer. Assim, falo:
— Oh! — Vou pensar nisso...
Então, vou para casa.
Estou começando a pensar que o planeta Júpiter estava errado e que meu Natal
atrasado não virá, que fui feita de otária por idiotas e levada a anunciar um falso
recomeço quando minha oferta pela casa 55B é aceita. Adam transmite-me as boas
novas como um lixeiro que joga um saco pesado de porcarias em seu caminhão. Depois,
pergunta se quero sair para comemorar e levar comigo aquela gostosa com quem
sempre estou. Digo-lhe que os únicos corretores imobiliários com quem Lizzy sai são
aqueles que negociam propriedades de mais de trezentas mil libras. Depois, dou as
notícias sobre meu imóvel a Lizzy, que salta de alegria ali mesmo e sugere que eu entre
em contato com um especialista em feng shui.
— Odeio isso — resmungo, enquanto baixo o telefone depois de falar com o
agente hipotecário mais astuto do planeta. — Estão me tirando o couro!
Lizzy faz o possível para parecer solidária e diz:
— Mas, pense como valerá a pena, no final!
— É. Serei a orgulhosa proprietária de um saldo devedor imenso — mordo meu
lábio e resmungo para mim mesma. — Bem, pelo menos Tom terá alguma satisfação, o
paspalho metido a santo.
Tom é como um jingle de rádio — exasperador e inesquecível. Desde que vi
Jasper — e provavelmente antes —, tenho pensado em Tom. Comparo os dois homens
obsessivamente. Olhos, piadas, tórax, vozes, humor, inteligência, habilidade como
"omeleteiros", pênis, temperamentos, preferências, rapidez mental, estilos ao chamarem
os garçons, empregos... Comparo a maioria das coisas e o resultado final é que não
telefono para Jasper.
Mas desejo ardentemente ver Tom. Preciso confessar que estou desesperada para
encontrar uma distração do inferno que é financiar minha casa e de todos os
sanguessugas que isso envolve. A razão principal, porém, é que Tom e eu ainda temos
assuntos em aberto. Embora uma bela transa pudesse ser um acréscimo agradável, não
estou falando sobre sexo. Para que eu siga em frente com minha vida — uma expressão
que não suporto, como se a vida fosse uma longa viagem na classe econômica que
devemos suportar, mas para a qual abro uma exceção desta vez —, preciso falar com
Tom.
Não quero, mas preciso. Fico o tempo todo lembrando de sua expressão de
perplexidade na Noite do Traseiro do Cachorro. Meu lado mais fraco deseja lançar-se
aos seus pés e explicar, mas o restante radical de mim deseja xingá-lo até que ele se
lance aos meus pés. Como ousa pregar sobre meus erros quando já tinha outra ao transar
comigo? Como ele pôde dizer as coisas que disse, se não eram verdade?
Como pude ser tão ingênua e pensar que apenas por terem sido ditas, eram
verdade? O que ele achou que estava fazendo, sendo tão gentil? Por que não foi
honesto? Será que não percebe que posso lidar com qualquer coisa, desde que não se
disfarce como sinceridade? Essas questões que vão e voltam enterram-se e se retorcem
em mim, evitando que cuide como deveria da confusão caótica da gaveta de faturas de
Laetitia. Assim, agarro o telefone, ligo para a Megavet, anuncio que o Gorducho não
está comendo e marco uma consulta urgente para hoje, às seis e quarenta e cinco da
noite.
Minha mãe está azeda porque ainda não lhe mostrei minha casa nova — a
razão: não dou a mínima —, de modo que consigo tirar o Gorducho de cima do carro
do vizinho, enfiá-lo numa caixa de transporte e voar até a veterinária sem ser
incomodada. Enquanto a Toyota afoga e se sacode até parar na Golders Green Road,
rezo para que Tom ainda esteja de férias. Inspiro profundamente, verifico meus cabelos
no retrovisor (como pensei, estão horríveis), tiro o Gorducho do banco traseiro e marcho
rumo à porta da Megavet. Empurro o peso de meu corpo contra ela, faço força com a
bota e entro desajeitadamente na recepção. Esta não é uma forma muito digna de entrar.
Assim, sinto-me contente ao ver que não há qualquer animal e pessoas à espera, e que
Celine não está atrás do balcão da recepção. Infelizmente, Tom está.
Ele anota algo no que presumo ser o livro de consultas, parece cansado e
desalinhado. Ele olha para mim, como se não pudesse acreditar no que o gato lhe
trouxe, e faz um aceno curto com a cabeça. Meu pescoço fica tenso, olho-o e repito seu
gesto com a cabeça. O Gorducho lamenta-se e arranha a caixa.
— Então — digo, de mau-humor —, encontramo-nos novamente.
Tom larga sua caneta, fecha com força o livro de consultas e diz, sem entonação:
— Você é a próxima, pode entrar.
Largo o Gorducho na mesa de cirurgia e Tom tranca a porta atrás de nós. Sinto
medo. Medo do que ele pode dizer, de modo que falo antes, em falso tom doce:
— Suas férias foram boas?
Parece surpreso por esta civilidade e diz:
— Sim...
Interrompo-o com um berro:
— ... com sua namorada!
Raiva e choque lutam por supremacia em seu rosto descomposto e ele sibila:
— O quê?!
Sou como o Gorducho, no sentido de que ouvir vozes raivosas e sibilantes não é
o que mais gosto no mundo. A fúria e o ressentimento fundem-se e me inflamo como
um fósforo aceso.
— O quê?! — eu digo, em fúria. —" O quê?! Não me venha com essa de "o
quê?!", como se não soubesse do que estou falando! Você sabe, sua namorada, aquela
com quem você saiu de férias! Aquela com quem você transava enquanto estava
transando comigo!
Tom cerra os dentes e esbraveja:
— Não sei do que você está falando! Que namorada?
Neste ponto, agarro meus cabelos para evitar que minhas mãos o sacudam e
grito:
— Não minta para mim! Estou farta de mentiras! A namorada com quem você
estava no pub, seu retardado!
A boca de Tom se abre.
— "O quê?!" — pergunto, zangada.
Os olhos dele fuzilam-me e ele grita:
— Sua garota estúpida, aquela era minha irmã!
Isso é absolutamente impossível e estou prestes a dizer-lhe, mas então lembro do
comentário adulador de Lizzy, feito logo depois do incidente no pub, algo como "ela
poderia ser irmã dele!". Depois lembro, também, de Tom contando-me sobre sua irmã.
E subitamente, a idéia de que a mulher no pub poderia ser sua irmã é menos impossível
do que pareceu inicialmente. Se isto for verdade, então minha posição é insustentável.
Mas, não desistirei sem espernear.
— Disseram à minha mãe que você estava em férias com sua namorada. — eu
falo, rapidamente.
Tom sacode a cabeça, sem acreditar.
— Não entendo. Por que sua mãe estaria discutindo meus arranjos de férias?
Explico depressa:
— Porque eu estava ocupada no trabalho, o Gorducho estava doente e ela o
trouxe ao veterinário.
Ele diz, gélido:
— Ah, entendo. E daí?
Encolho os ombros.
— Então que ela conhece você, de modo que perguntou onde estava! Eu
suponho... Acho que Celine foi quem lhe disse.
Enquanto digo a palavra nojenta "Celine", uma teoria de arrepiar os cabelos, mas
ainda assim plausível, forma-se em minha mente. O mesmo ocorre com Tom.
— Oh! — ele diz, acidamente. — Celine disse à sua mãe que eu estava de férias
com minha namorada.
Faz uma pausa de um segundo, depois berra:
— Por que é tão egoísta?! Por que não dá uma chance a ninguém? Não há como
agradá-la, não é? Você não podia perguntar a mim mesmo, como uma adulta! Ah, não,
isso seria fácil demais! Você...
Eu bato meu pé com tanta força, que quase o quebro. Minha voz está trêmula de
fúria.
— Não grite comigo, seu imbecil cheio de pompa. Eu não aceito isto!
Secretamente, sinto-me mortificada até a alma sobre o erro da namorada, mas de
jeito nenhum posso permitir que Tom saiba disso. Grito:
— Não posso acreditar que deixei você me dar conselhos, logo você, que se acha
tão superior!
Bato o pé novamente — com menos força desta vez — e digo, furiosa:
— Não finja que você não sabe! Pregando-me sermões sobre o que eu deveria
estar fazendo ou dizendo à minha mãe, sobre o que eu deveria sentir acerca de meu pai!
Onde eu deveria morar! Você...
Agora Tom bate sua mão espalmada na mesa e me faz saltar. Ele ruge:
— Não preguei sermões sobre nada, sua cretina! Dei uma sugestão porque você
jamais pensaria nisso sozinha! Tentei ajudá-la, mas você não deixou! Você é quem
foge! Eu estava bem lá, não ia a lugar nenhum! Assim, não ponha a culpa em mim,
queridinha! Você é como um maldito io-iô! Estou tentando entender o que fiz de errado
e quando! Será que você é incapaz de crescer?
Sinto-me tão pasma com a intensidade de sua raiva, que mal ouço o que diz.
Sinto vontade de bater nele, e não é a primeira vez. Assim, agarro-me a "tentei ajudá-la"
e digo, em um grasnado agudo:
— Não, você não tentou ajudar! Você sabe que eu precisava de um lugar para
ficar! Você jamais ofereceu! Não se importou!
Tom bate em sua própria testa com a palma da mão. Isso pega-me de surpresa e
eu pergunto:
— Po-por que v-você fez isso?
Ele suspira e diz:
— Porque você me faz sentir vontade de chorar.
Pergunto, zangada:
— Por quê?
Ele diz, em voz lenta, pesada e cansada:
— Eu não lhe ofereci minha casa, Helen, porque realmente me importo com
você. Ou me importava. Não sou um maldito serviço de emergência. Agora, será que
posso fazer algo por seu gato irresponsavelmente superalimentado ou você o trouxe até
aqui em uma caixa como uma desculpa para poder gritar comigo?
Como a maioria dos criminosos sem talento, cujo álibi é descoberto, estou em
silêncio, de olhos arregalados e fixos.
— Foi o que pensei — diz, com frieza em seus olhos azuis. Ele abre a porta com
raiva, eu saio.
— Seu gaaa-to! — grita às minhas costas, em um tom cantarolado e irritante. Eu
volto, agarro a caixa do Gorducho e saio novamente. Giro para dizer-lhe algo horrível,
mas Tom bate a porta na minha cara. Olho na direção da recepção e vejo um Jack
Russell e seu dono olhando-me em uma fascinação carrancuda, de modo que empurro
meu traseiro contra a porta frontal e vôo para a rua.
A cereja podre sobre a cobertura mal-feita do bolo estragado é um telefonema de
Tina para meu celular. Todas as vezes em que a abordei no trabalho, ela disse, agitada,
"agora não, lindinha, estou ocupada!" e me mandou embora. Todos os meus e-mails
cuidadosamente redigidos foram ignorados. Ela escolhe esta noite para fazer contato. O
tom de mensagem na caixa postal soa enquanto ergo o Gorducho pela porta da frente.
Ligo para o serviço de mensagens e estremeço pelo tom agudo de alegria de Tina:
— Oi, Helen! Achei que você gostaria de saber que Adrian prometeu-me
solenemente que mudará e que tudo foi resolvido. As coisas estão ótimas, então você
pode parar de se preocupar! Nem precisa ligar! Tchau!
Chuto a porta, fechando-a, libero o Gorducho de sua prisão portátil e digo,
amargamente:
— Jesus, você consegue ser ainda mais burra que eu!
Não consigo nem sorrir quando minha mãe grita, da cozinha:
— Querida! Você está falando comigo?
CAPÍTULO 37
Nana diz que só conhecemos os verdadeiros amigos quando algo ruim acontece.
Lizzy fala que quando coisas boas acontecem é que sabemos quem são nossos amigos.
Assim, não tenho a mínima idéia de quem são meus amigos. Jasper ainda persegue-me
como uma raposa perseguiria uma galinha; Tina oscila entre razoável e distante e não
consigo decidir o que aconteceu.
A única novidade é que depois de quatro semanas exaustivas, atarefadas e
desesperadoras, minha advogada liga para dizer-me que posso assinar o contrato para a
casa 55B. Digo a Lizzy que, em menos de um mês, serei uma proprietária e desabo em
minha mesa. Ela não consegue entender meu estado de espírito.
— Você não está contente? Qual é o problema? Ah, meu Deus, isso é tão
excitante! Teremos que escolher as tintas para as paredes!
Não tenho certeza sobre o que é mais deprimente — o fato de eu ficar feliz com
a perspectiva de sair para comprar tintas ou de agora precisar morar sozinha em uma
caixa de fósforos com terraço, parcialmente em ruínas, localizada em uma parte sem
nenhum charme de Kentish Town. Pelo menos, a Toyota se sentirá em casa. Além disso,
o purgatório de negociar com bancos e agentes financeiros, de desperdiçar dinheiro em
pesquisas, buscas e avaliações, ser esnobada por pessoas mais ricas do que eu e ser
tratada com menosprezo e provocações está praticamente no fim.
Mas, penso no pardieiro que é a casa 55B e meu estômago revira-se como uma
panqueca. Quando minha mãe a viu, quase desmanchou-se. em lágrimas.
— Por que você não pode continuar morando comigo? — perguntou-me,
alarmada. — Isso é revoltante! É como um prédio invadido, depredado e abandonado!
Senti-me tentada a ser rude, mas achei melhor calar-me. Adam ficou pálido e
tentou sugerir que o prédio tinha um aspecto devastado, mas calou-se quando minha
mãe exclamou em um grito:
— O quê?'
Desta vez, sinto que minha mãe pode ter razão. O que estou fazendo, afinal de
contas?
— Sim, está bem — ouço-me dizendo ao advogado. — Amanhã às onze da
manhã, seu escritório. Ótimo, vejo-o lá, então. Até amanhã.
Durante o último mês estive dando duro, como uma escrava egípcia, para
esquecer Tom e as coisas cruéis que me disse, de modo que Laetitia fez a gentileza de
me conceder uma manhã livre. Seu único comentário é:
— Kentish Town? Não foi lá que encontraram alguém morto a facadas há alguns
dias?
Minha reação a isso foi uma risadinha nervosa.
Nesse meio-tempo, Lizzy está sendo um doce — já me deu o número de seus
empreiteiros "sensacionais", de seu eletricista "soberbo" e de um bombeiro hidráulico
que é "um anjo" — é fácil esquecer que estou chateada com ela. Não posso evitar.
Sinto-me amarga porque Lizzy é confiante demais — para seu próprio bem e pelo de
qualquer outra pessoa. Seu jeito de fazer as coisas é o único certo. Ela pode ser gentil,
mas tem uma visão alarmantemente curta. Pode ter razão ao dizer que gengibre é bom
para a circulação, e provavelmente está certa ao afirmar que hortelã elimina vermes.
Mas, está terrivelmente errada sobre Adrian, e sua complacência de queridinha da
professora está me deixando fula.
Assim, escapo do trabalho sem me despedir e, quando ela liga para minha casa, à
noite, peço à minha mãe, em um sussurro, para dizer que não estou.
— Ela disse que não está — minha mãe diz, forçando-me a arrancar o aparelho
de sua mão e ser civilizada, quando não quero isso.
— Desculpe-me — falo, com alegria falsa. — Ela passou o dia todo gritando
com seus alunos. Ficou surda de vez.
Lizzy não está muito convencida disso.
— Há algum problema? Você parece diferente.
Uma vez que eu preferiria enfrentar um caminhão vindo em minha direção em
alta velocidade do que a piedade aflita de Lizzy, digo em tom tranqüilo:
— Absolutamente nada. Estou um pouco preocupada sobre amanhã, você sabe,
o grande compromisso, essas coisas.
Como eu esperava, Lizzy menospreza isso e cantarola:
— Não se preocupe!... É tão simples! Tudo dará certo!
A verdade é que ela está enganada. Novamente.
O dia da assinatura do contrato começa mal, quando. minha mãe sai
apressadíssima para o trabalho e não se despede de mim. Sei que isso é apenas porque
deseja que vivamos juntas para sempre como um estranho par — a princesa e a batata
podre. "A madame precisa parar de se comportar como uma peste e crescer um pouco",
reclamo. Assim que falo, percebo que soa familiar. Foi o Tom que me disse isso. "Sai
dessa!", resmungo, mudando o canal na TV e me jogando no sofá. "Por mim, ele pode ir
para o inferno. Gritando comigo daquele jeito!", falo, em voz alta, em uma tentativa de
fazer com que sua perda doa menos, mas não funciona. Minha mente masoquista
continua trazendo-me boas recordações: aquele sorriso com dentinhos de lobo, o buquê
improvisado de flores azuis. Nós dois dissecando Stephen King enquanto comíamos
pizza, a piada do elefante. Ele cuidando de mim na noite da tequila. Levantando os
pêlos do Gorducho para fazê-lo parecer um punk, tirando, com um beijo, aquela
migalha de queijo no canto de minha boca. Adorável...
Não são tanto as coisas pequenas, mas a soma das partes. Não posso negar.
Tento invocar rancor contra ele, mas não consigo. Quero desprezá-lo por gostar de mim,
mas não posso. Desejo acreditar que tudo o que me disse foi por maldade, mas não
posso mais fingir. Você não passa a eternidade descascando uma laranja, a menos que
pretenda comê-la. Lembro seu sofrimento em nosso último encontro e isso me machuca.
Magoei-o. Isso prova que estou certa. Amar é perder. Sou ruim como perdedora. Como
punição, assisto ao canal de compras por noventa minutos para lembrar-me de que
existem pessoas lá fora em situação muito pior que a minha. Depois levanto-me
depressa, entro na Toyota e vou ao escritório firmar o contrato.
A advogada de Lizzy chama-se Dorothy Spence e é elogiada por minha amiga,
por ser "muito detalhista". É mesmo. Passamos uma hora inteira na leitura desta e
daquela cláusulas. Ela pergunta-me se entendo o que esta condição do contrato
significa, se entendo a importância desta cláusula específica. Pergunta isto e aquilo, mas
todas as suas questões agora foram respondidas. A última é se tenho alguma dúvida e,
se não, então é hora de eu fazer o depósito de nove mil libras.
Quase caio da cadeira giratória onde estou sentada.
— O quê? Agora?! — balbucio.
— Sim, por favor — ela diz, rapidamente.
— Mas eu... Eu não sabia... — digo, emendo. — Pensei que era... Pouco antes
do fechamento do negócio... Entendi mal, nunca fiz isso antes, então pensei...
Dorothy dardeja-me com um olhar, e eu vacilo até emudecer. Algumas vezes
tenho tão pouca fé em minha capacidade, que acabo causando meu próprio fracasso.
Este é um desses momentos. Cometi um erro tolo. Em minha ignorância e
confusão, presumi que o depósito de dez por cento deveria ser feito na conclusão do
negócio. Confesso que Dorothy enviou-me uma carta uma semana atrás detalhando as
exigências, mas — como recordo agora — dei uma rápida olhada, enfiei-a em minha
bolsa para ler depois e a esqueci completamente. Dorothy nem mesmo mandou-me um
lembrete. Como resultado, o dinheiro está depositado em uma poupança préprogramada
e não posso retirar coisa alguma sem comunicar com antecedência. Sou
uma fraude, uma incompetente em uma imitação de adulta responsável, e o pior
aconteceu.
Fui desmascarada.
— Posso dar um telefonema? — pergunto em voz miúda. Ela olha seu relógio
cromado, concorda rispidamente e se reclina em sua cadeira confortável de couro. Ligo
para o celular de minha mãe e rezo para que atenda. Ela não atende. Então ligo para a
escola e peço para ser transferida para a sala dos professores.
— Cecelia Bradshaw está? — pergunto, ofegante. — É a filha dela.
Uma voz distante responde:
— Um momento.
Quarenta momentos depois, ainda estou esperando e Dorothy Spence está
batendo o salto de um de seus sapatos repetidamente no chão.
Depois, a linha fica muda. Mordo meu lábio, dou um sorriso débil para Dorothy
e ligo novamente.
— Liguei um minuto atrás e a ligação foi cortada — falo, endurecendo minha
voz e levantando seu volume, para mantê-la firme. Trinta segundos depois, minha mãe
está na linha:. Chego a sentir fraqueza, com o alívio. Aperto meu nariz entre dois dedos,
para impedir o choro, e explico meu problema. A humilhação chega a latejar em meu
corpo, em ondas de choque. Quando termino minha declaração, minha mãe faz silêncio.
Depois ela diz, em tom de quem sabe das coisas:
— Isso não é problema, querida. Ligarei para o banco agora e farei uma
transferência para a conta apropriada. Deixe-me falar com a advogada.
Afundo em um transe cheio de gratidão e estendo o telefone para Dorothy.
Quinze torturantes minutos depois, estou indo para casa na Toyota. Como
qualquer forma de reflexão é dolorosa, vou dizendo "lá lá lá..." em tom monótono e alto
durante todo o caminho, para afastar qualquer pensamento.
Entro esgueirando-me no escritório às duas e meia da tarde e começo a digitar as
cartas de rejeição de Laetitia a todas as idéias para artigos, enviadas conforme suas
próprias especificações, sem fazer cera por duas horas antes de assumir a tarefa. Para
meu alívio, Lizzy não está no escritório — e como Laetitia nem sonharia em perguntar
como foi minha manhã, não mais do que sonharia em comprar sapatos em uma loja
popular, trabalho sem ser perturbada até as seis e trinta e seis da noite.
Depois, saio sem falar com ninguém. Durante minha viagem de metrô, sinto-me
nua. Estou convencida de que todos espiam-me, falam de mim, fazem zombarias a meu
respeito. Sinto-me claustrofóbica e tenho vontade de berrar.
Quando chego em casa, estou com taquicardia, nervosa e trêmula. Pretendo
encolher-me na cama e dormir, mas, enquanto subo as escadas, pé ante pé, minha mãe
aparece como um gênio tremeluzente no corredor e exclama:
— Helen! Venha até aqui conversar comigo!
Sem palavras, viro-me e desço a escada. Sinto-me encurvada e má como uma
tarântula. Minha mãe, enquanto isso, está radiante, animada e energética como uma
miss juvenil. A única diferença é que não usa faixa. Dá-me um grande sorriso, ajeita
seus cabelos e ergue as mãos, dizendo em tom alegre:
— E então?
Paro na sua frente e meu lábio inferior começa a tremer. Faço um olhar zangado
para o carpete estampado e prendo meus braços em minhas costas.
— Se papai estivesse aqui, ele teria sabido o que fazer — comento, aborrecida.
Enterro as unhas nas palmas de minhas mãos e espero. Não sei o quê. Gritos,
desaprovação, mas não risos.
Minha mãe, porém, dá uma risadinha e diz:
— Sim, mas eu até que me saí bem, não?
Assinto e sussurro:
— Sinto saudade do papai.— Sussurro.
Minha mãe silencia, olha para meu rosto como se fosse a primeira vez e diz,
suavemente:
— Sei que você sente, querida, e tenho certeza que ele também sente sua falta.
Subitamente, ela dá um passo à frente e me abraça apertado. Sinto-me perdida e,
ao mesmo tempo, salva em uma onda de Chanel. Os efeitos sonoros que tenho
disponíveis Gomo ser humano, parecem inadequados. Gostaria de ser um lobo para
poder levantar a cabeça e uivar, uuuhhh, uuuhhh, abandonando corpo e alma à vibração
de meu pesar.
Em vez disso, fecho os olhos e lamento em silêncio, absorvo o calor do suéter
roxo de mamãe e sinto seus braços finos firmes em volta de meu corpo.
CAPÍTULO 38
Agarro-me à minha mãe como, imagino, um montanhista se agarraria a um sãobernardo
ao ser salvo. Ah, meu Deus, lamento em meu íntimo, por que é tão ruim, por
quê? Ninguém me disse que seria assim. Sou uma pele vazia recheada de lâminas que
retalham meu corpo de dentro para fora, até que sufoco em meu próprio sangue. Agarrome
à minha mãe tão fortemente, que seus joelhos vacilam e desabamos devagar até o
chão, onde ela acaricia meus cabelos e emite sons tranqüilizadores.
— Não sei o que devo fazer — soluço. — Não sei o que fazer!
Mesmo enquanto balbucio essas palavras, sinto-me horrorizada por este colapso
patético na frente da única pessoa que precisa que eu seja invencível.
Mas, minha mãe balança-me e diz:
— É tudo tão difícil, querida. Sei que não tenho ajudado muito, mas você tem
sido muito corajosa.
Subitamente, tenho cinco anos de idade novamente e estou sendo consolada
depois de cair e cortar o joelho. Sorrio fracamente e seco meus olhos.
— Chore, se quiser — minha mãe ordena, rapidamente. — As crianças vivem
chorando e sempre digo que é melhor deixar sair, do que engolir.
As lágrimas caem quentes e rápidas, e eu sacudo minha cabeça sem palavras.
Esta fortaleza inesperada é como descobrir uma noz marrom brilhante entre a matéria
orgânica em decomposição no outono.
Minha mãe sorri de minha estupefação e diz, com suavidade:
— Venha, querida. Vou preparar-lhe algo quente para beber.
Cedo humildemente e permito que ela me ajude a levantar. Então irrompe,
zangada:
— Essa idiotice de bebidas quentes! Seu pai está morto e tudo o que podemos
fazer é tomar uma bebida quente!
Choro e rio ao mesmo tempo, dizendo:
— É uma droga isso, não é?
Mamãe faz uma careta e enche a chaleira. Sentamo-nos em silêncio, bebendo
chocolate quente e contemplando o fato de que a morte é uma afronta monstruosa aos
vivos e não deveria ser permitida. Depois de muito tempo, minha mãe dá um tapinha em
minha mão e diz suavemente:
— Lembre-se, filha. O papai pode ter ido embora, mas sempre estará com você.
Olho-a enquanto os cantos de minha boca tremem, vejo que ela também está
chorando e percebo que, mesmo entre os escombros de nossas vidas, conseguimos
salvar algo.
Acho que minha mãe também percebe isso, porque nas semanas que se seguem a
esse meu surto, nosso relacionamento muda de tenso para plácido, como o silêncio
atordoante após uma tempestade de trovões. Quando ela conta-me um pequeno sucesso
no trabalho e lhe digo "que bom!", percebo com surpresa o rubor em seu rosto. É como
se estivéssemos em lua-de-mel após um romance ultra-rápido — inclinados à
intimidade depois que o turbilhão rosado da paixão acalmou-se — e ela se sentisse
subitamente tímida porque eu me preocupo com seus assuntos. Subo correndo a escada,
sorrindo para mim mesma, e considero o inconcebível: que quando me mudar para
minha casa, amanhã, sentirei sua falta.
É estranho. Depois que fechei o negócio da casa, esperei que minha mãe me
evitasse por pelo menos quinze dias, mas, em vez disso, ofereceu-se para ajudar-me a
entrevistar empreiteiros para obter orçamentos. Pensei que fazia isso apenas para ver
bíceps desenvolvidos, mas ela revelou-se uma aliada cautelosa e eficiente. Seu
entusiasmo não desapareceu, como geralmente ocorre. Ela ignorou a recomendação de
Lizzy (o homem queria dinheiro adiantado) e ligou para a empresa empregada por
Vivienne na reforma de sua cozinha e construção de uma estufa para plantas.
— Vivienne não conseguiu encontrar defeitos no serviço deles! — explicou.
Naturalmente, presumi que eles devem ser excelentes — já que a maioria das
pessoas empregadas por Vivienne são processadas e ela lhes tira até o último centavo —
e para meu alívio eles eram excelentes.
Ano passado, Laetitia mudou-se para Barnes e seus empreiteiros estenderam um
serviço que deveria durar dois meses para cinco: Apareciam quando bem entendiam,
bebiam seu peso em chá doce (Laetitia precisava comprar açúcar especialmente para
eles), depois urinavam em todo o piso de ladrilhos turquesa do banheiro. Racharam sua
banheira nova caríssima de ferro fundido com tampa de correr, lascaram seu espelho de
parede, uma antigüidade toda dourada, remendaram grosseiramente os painéis de
madeira de uma parede, instalaram seu boiler de tal modo que este lançava gás
venenoso dentro da cozinha, arranharam seu armário provençal, esqueceram de apertar
os parafusos que ligavam dois canos de água, transformando assim o apartamento
debaixo, em uma grande piscina. Como se não bastasse, bloquearam o acesso às chaves
de gás, instalaram um dimmer no quarto, que diminuía a iluminação também na sala e
no estúdio, lhe deram um custo estimativo de três mil e quinhentas libras, mas lhe
cobraram dezenove mil. Laetitia chegava ao escritório, na maioria dos dias, sacudindo
pó branco de seus cabelos e resmungando que era como "estar em uma guerra".
Assim, estou feliz com minha sorte de principiante.
Depois de seis semanas de trabalho brutal, meus empreiteiros puseram um novo
reboco, refizeram o encanamento e a fiação e ressuscitaram minha casinha. Eles foram
supervisionados por Terry que, em suas próprias palavras, "é capitão de um navio no
qual não se admitem falhas". Nesse meio-tempo, minha mãe e eu passamos pelo menos
trinta horas percorrendo Londres e seus arredores em busca de — diz ela — "móveis
práticos".
Mamãe tem sido incrível, encarando a reforma da casa como se fosse um projeto
escolar. Comprou uma pilha de revistas de decoração de interiores e me mandou folheálas
e fazer anotações. Sempre que via algo que gostava, ela enchia o Peugeot de
gasolina e me forçava a planejar um itinerário. Equipada com uma fita métrica e uma
planta baixa com dimensões da cozinha e do banheiro, voava até a loja e barganhava
com os vendedores.
Mamãe possui o escrúpulo para negócios de um traficante de rins e, se uma loja
não lhe oferecesse um desconto abaixo do preço de custo, ela simplesmente marchava
porta afora. Eu, nessas alturas, já estava na rua, morta de vergonha. Pessoalmente, não
questionaria o preço de algumas contas em um mercado de pulgas marroquino e teria
pago uma fortuna por pisos de granito para meu banheiro sem um "ai" sequer. Minha
mãe, contudo, teria gritado até mesmo com Deus pelo preço de uma auréola e o faria
sentir-se envergonhado a ponto de lhe dar um desconto.
Não direi que não foi estressante. Especialmente porque Lizzy presumiu que o
papel de assistente de mestre-de-obras seria seu. Aquietei-a com uma viagem à loja de
tintas e ela aceitou o envolvimento superior de minha mãe como uma compensação por
sua viuvez. Esta desculpa que dei a Lizzy era verdadeira, em parte.
Após o falecimento de meu pai, minha mãe guarda em si muitas emoções
desencontradas, que precisa colocar em algum lugar. Até recentemente, não conseguia
fazer isso. No último mês, contudo, parecia procurar um local onde enfiar esta chave de
suas emoções, e parece que finalmente encontrou. A transferência eletrônica de dinheiro
e seu resultado tumultuado ajudaram minha mãe a perceber, vagamente, que se
continuasse afastando-me, eu acabaria indo para sempre. É claro, portanto, que seu
interesse por minha casa serve aos seus próprios fins. Mas, seria mais verdadeiro dizer
que ela compreende que preciso realmente de sua ajuda.
Conseqüentemente, pela primeira vez em vinte e seis anos — uma estimativa
grosseira —, ela tem me alegrado. Quando joguei a revista Elle Decoration no chão e
anunciei que estava farta de mulheres usando Prada, mostrando suas casas maravilhosas
e vazias, dando sorrisinhos sentadas em suas cadeiras sólidas de carvalho que elas
compraram "por apenas duas libras cada, em uma loja baratinha", minha mãe encarou o
desafio. Três dias e vinte libras depois — ela deu-me o recibo —, eu era a feliz
proprietária de duas sólidas cadeiras de carvalho (Ela não comprou mais porque não há
espaço em minha casa: "Não sou esperta?").
Quando decidi que precisava ter armários de cozinha caríssimos de aço, ou me
sentiria embaraçada demais para convidar pessoas para me visitarem, ela consultou
Living Etc., e sugeriu uma visita à London Metal Center.
— Olhe, querida! Eles vendem folhas de aço a partir de cinco libras por metro
quadrado! Você cola sobre coisas de madeira e faz exatamente o mesmo efeito!
Peguei Terry dando uma risadinha divertida, mas acho que no fundo ele sentiuse
impressionado.
Sou grata, também, porque mamãe transborda energia. Estou determinada a não
pensar por quanto tempo isto durará. Na maior parte do tempo, consigo. Assim, talvez
eu também tenha mudado. Sinto-me mais calma. É como se tivesse pressionado meu
nariz contra uma pintura, lutando, arfando e me esforçando para ter uma visão mais
clara. Mas, apenas agora, quando dou um passo à trás, consigo apreciar o quadro. Esta é
uma revelação inesperada e, quando recordo a visão incongruente de minha mãe em
uma animada conversa com Terry acerca de fornecedores, sinto uma onda de prazer.
Esperava que o ingresso em minha casa nova fosse semelhante a uma cerimônia,
mas, embora eu cruze a porta levando o Gorducho no colo, não tem nada de mais.
Talvez, porque possuo apenas sete coisas grandes: duas cadeiras, uma mesa, um
televisor, uma cama, um alvo de dardos e uma arara de roupas, de modo que Luke e eu
levamos cerca de sete minutos para trazer meus pertences pelos degraus que gemem, e
arrumá-los, Agora, os operários foram embora e a casa parece nua, assim como a cabeça
de um alfinete.
— Helen — Luke diz —, isso é tão arrumadinho para você!
Depois que ele vai embora, caminho de um cômodo para outro (levo exatos nove
segundos fazendo isso), tocando as paredes amarelas, sentindo o cheiro de novo,
acariciando meus armários de cozinha astuciosamente recobertos por lâminas de aço.
Depois, fervo água em minha chaleira novinha em folha — cortesia de mamãe, que
conseguiu arrancá-la da loja Woolworths como compensação por uma tomada com
defeito —, faço um café, sento-me na cadeira e olho para o chão de madeira polida.
Silêncio.
Após três horas de trabalho intensivo arrumando meu cobertor, transferindo
quatro canecos e três pratos de uma prateleira alta para outra mais baixa, no armário,
jogando garfos em uma gaveta, organizando minha coleção de livros de mistério em
uma fileira, no chão do quarto, com pilhas de tijolos como suporte de livros, escovando
o banheiro, limpando o vaso sanitário, varrendo o chão, colocando minha escova de
dentes azul perto da pia e fazendo uma lista de itens que preciso comprar, mas não
posso, sem um novo cartão de crédito, canso-me de ser dona-de-casa e ligo para Lizzy.
Já superei meu desapontamento com ela, que sentiu meu distanciamento e se
mostrou visivelmente magoada. Uma semana atrás, ela disse — com uma voz tensa e
ensaiada, que me fez suspeitar que ela havia passado muito tempo pensando nisso:
— Helen, espero realmente que você não pense que não pode mais me ligar,
apenas porque estou saindo com Brian. Não somos uma pessoa só. Não fazemos tudo
juntos.
Dei uma risadinha culpada e disse:
— Lizzy, é claro que não penso isso. Só tenho andado como louca, ocupada com
minha casa, só isso.
O espírito deste diálogo permaneceu comigo e comecei a imaginar se havia sido
dura demais. Afinal, não apresentei os fatos nus e crus a ela, de modo que, talvez, não
seja justo condená-la. É claro que ela desejaria ajudar Tina, se conhecesse a verdade.
Considerações sobre nobreza maior ou menor de espírito à parte, senti saudade de
Lizzy. Senti sua falta, pela mesma razão que senti rancor. Desejei ter novamente a
senhorita "Dedinhos Delicados" aspergindo seu pozinho encantado em minha vida.
No dia seguinte, aproximei-me dela no trabalho e perguntei se queria o fogão
New World Gas Range, porque estava todo enferrujado e eu estava prestes a jogá-lo no
lixo. Ela atirou seus braços em volta do meu corpo com o entusiasmo que demonstraria
se eu lhe tivesse oferecido a vida eterna e o recolheu em minha casa na mesma noite.
Amém.
Lizzy está excitada com meu telefonema e fica saltitando, segurando um buquê
de narcisos e um vaso elegante de vidro. O vaso é muito bonito
— de um tom laranja quente e escuro, como um raio de sol capturado.
— É lindo! — exclamo. — Vai dar vida à sala!
Ela abre um sorriso imenso.
— O prazer é todo meu! Agora, mostre-me tudo! — exclama. — Mal posso
acreditar que é a mesma casa. Está tão ajeitadinho!
Para minha vergonha, nós passamos as duas horas seguintes discutindo,
acaloradamente, sobre tintas fosforescentes, pastas abrasivas e lixadeiras. Descubro-me
tagarelando, desesperadamente, incessantemente
— como se, construindo um muro de palavras, eu pudesse evitar que ela fosse embora.
Mas, às 18h, Lizzy retira-se (a tia de Brian está dando uma festa no barco que lhe serve
como casa) e o Gorducho e eu ficamos sozinhos. A noite estende-se à minha frente
como um túnel escuro.
Ligo a TV, sou confrontada por Songs of Praise, desligo o aparelho, calculo se
minha casa é muito maior do que uma casinha de brinquedo que as meninas têm nos
quintais, jogo-me na cama, olho para o teto, vejo uma teia de aranha no canto, corro até
a cozinha, para pegar a vassoura e tirá-la, percebo que não tenho uma, corro até o quarto
novamente, não vejo a aranha, sei que está andando pelo quarto, suspeito que está
grávida, depositando seus ovos, começo a entrar em pânico. Estou prestes a ligar para
minha mãe, quando lembro-me que Vivienne levou-a a um spa que oferece alimentos
orgânicos e que mamãe estará fora durante todo o fim-de-semana. Jogo-me novamente
na cama e me sinto a última das criaturas. Quando o telefone toca, quase desmaio de
gratidão.
— Alô? — sussurro, achando que talvez seja engano.
— Docinho? — diz uma voz animada.
— Jasper! — exclamo, com um gritinho. — Como vai?!
Sei muito bem que pareço alegre demais. Ele não sabe, mas meu prazer não é
nada pessoal, já que eu teria cumprimentado um atendente de telemarketing da
companhia telefônica, com o mesmo grau de excitação. Sendo como é, Jasper toma isso
como algo pessoal.
— Ei, não fique tão animada, doçura!
Como acredito que qualquer homem que diga as palavras "ei, não fique tão
animada, doçura!", sem ironia, deveria matar-se instantaneamente, para eliminar a
vergonha, sinto-me sufocada e faço uma pausa antes de responder:
— Ei você, seu convencido! Quer vir conhecer minha casa nova?
Há silêncio no outro lado, e imagino se ele desligará — pois, uma vez, isso já
aconteceu. Já o vejo dizendo ao telefone: "Que horror, meu docinho! Eu adoraria, mas
acontece que não posso!..." A essa altura, levantaria a voz, em tom de afirmação, mas
como quem pergunta. "Estou servindo de acompanhante para Monique, a supermodelo!
Aquela com doutorado em Harvard, que escreve livros sobre a teoria de Jung... Até,
hmmmm, Paris?!" — ele pronunciaria Parrrrrí. "Eu e Monique vamos passar uma noite
de paixão no hotel Georges Cinq. Que pena!!!"
Em vez disso, ele responde:
— É claro que sim, benzinho! Onde você está? Pego um táxi, chego aí daqui a
pouquinho.
Uma hora depois, Jasper e eu estamos sentados à mesa, em minhas cadeiras de
carvalho, remexendo nos restos da comida chinesa embalada para viagem. Jasper usa
um boné de beisebol azul e branco e não consigo perceber a razão para isso. Ainda
assim, parece estonteante. Estou explicando que a colocação de ladrilhos em diagonal
dá uma sensação de maior espaço, quando vejo-o contendo um bocejo. Falo, indignada:
— Estou sendo entediante?
Seus olhos arregalam-se e ele diz, lentamente:
— Benzinho, eu poderia ouvi-la para sempre.
Chamo-o de mentiroso e ele suspira.
— O quê? — pergunto, surpresa por ter causado algum impacto.
— Ah, nada, querida, rien — sacode sua cabeça, pesaroso.
Digo, irritada:
— Se você está recorrendo ao francês, é óbvio que há algo. O que é?
Jasper apóia-se no cotovelo e se inclina em minha direção, dizendo devagar:
— É melhor eu não falar.
Naturalmente, estou ansiosa.
— Jasper! — exclamo. — Você precisa dizer-me!
Vasculho meu cérebro em busca das palavras, para dizer isso em francês, mas há
um grande espaço vazio onde o conhecimento deveria estar.
Ele remexe-se na cadeira e resmunga:
— Não é justo.
Agarro as laterais da mesa, para evitar agarrá-lo e arrancar o segredo de sua
boca, manualmente.
— É algo em seu emprego?
— Não! — ele diz, alto. — Meu Deus, claro que não! O serviço é uma
maravilha!
Faço nova tentativa:
— Será que é porque... bem, porque você não sabe dirigir?
Ele parece ofendido e reclama:
— Helen, acha que me preocuparia- com algo tão mundano assim?
Uma vez que já andei mexendo na gaveta de seu criado-mudo e sei que ele
fracassou pelo menos seis vezes ao tentar tirar sua carteira de habilitação (é por isso que
está constantemente sem dinheiro), decido não responder e digo:
— Humm... é com... Louisa?
Ele corre a mão entre os cabelos e se recosta na cadeira. Prendo meu fôlego.
— Em uma palavra, sim — ele diz.
Neste ponto percebo que minha boca está cheia de saliva e que, se eu não a
engolir, imediatamente, vou babar como um cachorro basset. Engulo e pergunto,
nervosa:
— O que aconteceu?
Jasper estica seus lábios em uma careta e os tendões de seu pescoço parecem
cordas tensas. Depois, ele diz:
— Ela, bem, queria voltar comigo.
Minha boca abre-se.
— Não! — digo. — O que... o que você respondeu?
Ele suspira novamente e diz:
— Eu disse que se pudesse, voltaria. Mas, não seria justo com ela — ele pára.
Depois, acrescenta. — Porque estou ligado em — suspira — outra pessoa.
Olho-o e ele cora. Imediatamente, sei que Jasper está curtindo uma paixão
atrasada, por mim. Meus olhos parecem querer saltar das órbitas.
Tento manter minha voz baixa:
— Ah, não! — digo, em tom meio agudo. — O que ela respondeu?
Ele parece desconfortável.
— Bem? — exijo.
Diz, baixinho:
— Ah, é melhor não dizer.
Dou um soco na mesa.
— Ah, por favor! — grito. — Você não pode deixar de me dizer!
Forço-o a contar os detalhes. Embora ele não mencione meu nome, não é
necessário fazê-lo. Observo sua boca enquanto ele fala. Quando ouço sua narrativa
pesarosa sobre o amor não-correspondido de sua ex-namorada, descubro-me louca de
vontade de beijá-lo.
Sinto a mesma coisa com suéteres. Estava parada junto a um suéter preto de gola
em "v", na Warehouse, sentindo em meus dedos o material e imaginando se causava
comichões na pele, quando uma mulher alta e bronzeada aproximou-se com afetação e o
retirou da prateleira. Imediatamente, senti um desejo irresistível de ter o blusão, como
um viciado em nicotina anseia por um cigarro em um vôo no qual é proibido fumar.
Segui a mulher do decote em "v", por toda a loja, entrando e saindo de vestiários,
quando ela deu-me um olhar muito irritado e jogou o suéter sobre uma arara, agarrei-o
e, tremendo de excitação, levei-o direto ao caixa. Sou a materialista crédula, o sonho
dos anunciantes. Sou indiferente a uma pessoa ou produto, até ver que outra pessoa
também o quer. Então, imediatamente começo a desejá-lo mais.
Assim, quando Jasper conta-me que, uma semana antes do Natal, Louisa deu-lhe
três meses para sair de casa, porque não podia suportar a agonia de ver seu rosto e não
poder beijá-lo, exclamo:
— Jass! jass! Tive uma idéia brilhante! Até você encontrar um lugar para morar,
por que não fica aqui em casa por alguns dias?
Jasper olha-me como se o Gorducho tivesse falado.
— Está mesmo falando sério? — diz, espantado.
Digo que sim, vigorosamente. Qualquer coisa é melhor que viver em isolamento
maçante. Seu rosto perfeito rompe-se em um sorriso de covinhas, ele agarra minha mão
e beija.
— Doçura — ele murmura —, você é uma estrela na minha vida. Ei! Já sei! Por
que não vamos até Kensington e pegamos minhas coisas agora? Será divertido!
Embora eu não consiga entender como servir de motorista para Jasper,
atravessar Londres inteira e puxar suas pinturas lúgubres de navios escada acima para
dentro de minha casa possa ser divertido, não consigo recusar. Uma vez que não existe
absolutamente nenhum lugar para estacionar em Kensington, espero na Toyota
enquanto Jasper enche-a com seus pertences. Roupas. Pinturas. Som. Duas poltronas
horrorosas de vime com mesa de café, do mesmo material. Eu desabafo:
— Achei que esses móveis vagabundos pertencessem ao seu locatário!
Jasper ri e diz:
— Doçura, essas são peças coloniais originais! De qualquer modo, não sei do
que se queixa. Ficarão incríveis em sua sala!
Não tenho certeza disso e minha suspeita é confirmada, quando as poltronas são
colocadas em seu lugar. Elas curvam-se no chão, cada uma como um louva-a-deus, e
seu vime feio e espetado domina a sala. Embora seja ótimo ter companhia, meu humor
torna-se péssimo.
Sinto-me pior ainda, quando Jasper vem por trás, agarra meus quadris e sussurra:
— Ei, amorzinho, e se a gente batizasse a casa?
Prendo com força suas mãos nas minhas e digo, com doçura forçada:
— Boa idéia, Jass. Só que devo preveni-lo que estou com uma menstruação
realmente forte, este mês. Nossa, é sangue que não acaba mais! Honestamente, é como
se meu útero estivesse sendo arrancado de mim, de modo que acho bom alertá-lo que
vai dar muita sujeira. Mas, estou vendo que trouxe seu cobertor egípcio, de modo que
podemos estendê-lo na cama como um absorvente, para chupar o excesso...
Jasper dorme no chão da sala e não me assedia de novo.
CAPÍTULO 39
Eu tinha mais ou menos quatorze anos e caminhava pela estrada, quando um
homem de meia-idade, calvo e barrigudo, parou-me e disse:
— Não querendo ofendê-la, essa roupa não cai bem em você.
Espantada, exclamei:
— Oh! Bem, obrigada por dizer!
Corri para casa, olhei no espelho minha imagem de ombros redondos em meu
suéter de listras vermelhas e brancas, e pensei, ai, é mesmo, olha só para você.
Isso aconteceu uns bons anos antes de me ocorrer que um adulto que pára uma
adolescente rechonchuda na rua para criticar sua roupa deve ser um lunático. A verdade
é que isso fez com que eu me perguntasse: que imbecilidade foi aquela de usar um
agasalho com listras vermelhas e brancas? Será que eu trabalhava como ajudante de
barbeiro? Será- que eu era uma coitada que se achava uma Lolita, que poderia usar
roupas de boneca e considerar isso como um kitsch rebelde? Não. Será que eu não tinha
um pingo de autocrítica? Não, não tinha.
Quando vejo meu banheiro branco imaculado corrompido pelos pêlos de barba
de Jasper, meu piso novinho em folha transformado em piscina de pingüim, meu grande
espelho quadrado cheio de vapor como uma porta de microondas e percebo que não
haverá água quente pela quarta vez esta semana, estando apenas na quinta-feira, faço
uma carranca e penso se cheguei a aprender algo nos últimos doze anos. Obviamente,
não.
Embora os últimos quatro dias tenham sido interessantes, minha noção
romântica de vida à deux, como Jasper diria, caiu por terra em minutos. Nos tolos
segundos antecedendo meu convite apressado, fantasiei sobre um leque de coisinhas
gostosas. Trocar a mensagem em minha secretária eletrônica nova para "Helen e Jasper
não estão em casa no momento". Encher meu carrinho de supermercado com itens
jasperianos, como carne de veado defumada e suco de laranja fresquinho, bem como
barras de chocolate Dime Bars e areia higiênica para gatos. Ficar abraçadinha com ele
no chão assistindo Máquina Mortífera. O aroma comestível do perfume Egoiste dando
um clima de masculinidade à minha casinha de solteirona.
Onde eu estava com a cabeça? No momento em que vi aquelas cadeiras imundas
de vime poluindo meu território, compreendi que havia cometido um erro. Gostava de
ter a secretária eletrônica apenas para mim. Não queria um bambi morto, em meu
refrigerador. Preferiria assistir Máquina mortífera sozinha, em especial porque,
diferentemente de algumas pessoas, eu jamais exclamaria em voz alta, em um ponto
crucial, "isso é uma merda irracional e burra, vamos assistir a um filme decente como
Cidadão Kane": Se eu estivesse desesperada por um cheiro masculino, poderia dar ao
Gorducho uma grande porção de patê de peru e miúdos, e aguardar o fedor insuportável.
O que há de errado comigo?
— Não posso mandá-la embora! — lamento-me para Lizzy durante o almoço. —
Ele não tem para onde ir.
Lizzy, que está inspecionando cuidadosamente sua salada verde, em busca de
lesmas, diz:
— Olha, Helen, não sei por que você convidou-o, em primeiro lugar. Ele é um
homem egoísta que, se me permite, tem limitações emocionais e não tem sido nada legal
com você.
Perfuro minha lasanha com o garfo e penso nas adoráveis duas caras de Lizzy.
Se bem recordo, não muito tempo atrás, quando ela dividia o apartamento com seu
amigo psicólogo, sempre convidava as pessoas para dormirem lá!
Tiro isso de minha mente e tento responder sua pergunta. Por que convidei
Jasper?
— Eu me senti solitária, depois que você zarpou para a sua festa no barco —
digo, amargamente. — Chovia e eu estava sozinha em uma casa vazia.
Lizzy sacode seus cachinhos e diz:
— Isso é o que mais gosto! Estar em uma casinha confortável, assistindo à
chuva! E era a sua primeira noite em casa sozinha. Não estava contente?
Suspiro. Depois falo, azeda:
— Senti pena dele.
Lizzy aperta os lábios.
— Por quê? — pergunta.
Sinto calor e irritação. Respondo, rapidamente:
— Porque Louisa mandou-o embora!
Lizzy retruca:
— Ela o avisou. Será que ele não poderia ter alugado um apartamento?
Encolho os ombros e respondo:
— Acho que está sem grana.
Lizzy não se convence, dizendo:
— Bem, ele tem sorte por ter a quem recorrer. Você é muito gentil, Helen, mas
acho realmente que é seu direito mandá-lo embora, caso mude de idéia.
Algo no que ela disse provoca minha ira. Respondo, alterada:
— Gostamos um do outro. Sinto pena, porque sei como é viver com alguém com
quem estivemos envolvidos e, de repente, tudo azedar.
Lizzy emite um som muito feminino de desprezo, e responde:
— Bem, Helen, você certamente deve saber o que faz.
Decido ignorá-la.
Lizzy está com um humor horrível, porque amanhã completará vime e oito anos.
Normalmente, isso não importaria muito, mas ela reservou uma mesa em um restaurante
para celebrar com amigos e, ontem à tarde, Tina passou-lhe um e-mail dizendo que não
poderá comparecer. Ela não ofereceu uma razão. Isso chocou Lizzy, que ligou para a
casa de Tina à noite e perguntou o motivo da ausência. Adrian atendeu o telefone. Posso
presumir apenas que Lizzy encantou o nojento, porque ele e Tina mudaram de idéia e
comparecerão.
Ainda assim, ela não está bem. Considera Tina como uma de suas dez melhores
amigas e já deu infinitas desculpas para o fato de Tina agir, ultimamente, com tanto
carinho quanto um guarda de trânsito com reumatismo. De acordo com Lizzy, Tina tem
estado sob uma "pressão impressionante", porque a editora-chefe de moda aceitou um
emprego na Cosmopolitan e ainda não foi substituída, de modo que Tina está "sufocada
pela carga intensa de trabalho". Além disso, Tina está "louca por Adrian", mas "ambos
trabalham demais" e, assim, "Tina quer passar cada precioso minuto com ele."
Não é muito difícil para Lizzy crer em suas próprias fantasias, já que é uma
daquelas pessoas repulsivamente populares que não têm senso de posse sobre suas
amigas (elas vêm em pencas e sempre a procuram). Embora seja uma amiga liberal, é
uma fascista no que se refere a aniversários. Isso porque sua família sempre considerou
aniversários como datas especialíssimas — contratando salões de festas, mágicos, bolos
decorados, balões em formatos de bonecos, vestidinhos maravilhosos, presentes com
fitas coloridas, saquinhos de lembrancinhas cheios de doces — e Lizzy continua vendo
aniversários como sacrossantos. Assim, a tentativa de Tina em livrar-se do jantar de
aniversário de Lizzy é um pecado imperdoável. Além disso, o fato de Tina agora ter
sido forçada a comparecer não apaga a anotação no caderninho preto de Lizzy. Abro a
boca para perguntar quantas pessoas ela convidou, mas Lizzy fala, antes de mim:
— Helen, você se importaria muito se eu não convidasse Jasper?
Estou perplexa. Lizzy enrubesce e acrescenta, apressadamente:
— Só acho que ele não vai gostar muito. Ah, espero que não esteja ofendida, é
só que...
Supero minha surpresa e respondo:
— Liz, honestamente, tudo bem. Na verdade, ele não poderá ir, porque marcou
uma saída com os caras de sua equipe de cricket da faculdade amanhã à noite. Assim,
não se preocupe.
Mesmo enquanto essas palavras saem volúveis de meus lábios, mais um milhão
de outras coisas rolam em minha mente. Será que estou ouvindo bem? Quer dizer que
Jasper não tem vez; entretanto, a fera espancadora de esposas é um convidado especial!
Isto é heresia! É equivalente a Deus dizer a Adão que Eva não está convidada para a
festa no paraíso, mas a serpente sim.
Sorrio e tento não parecer ofendida. Não quero que Jasper vá à festa de Lizzy —
ele apenas reclamaria da comida, dos convidados, da música e do local —, mas, Lizzy
não desejar sua presença, são outros quinhentos. É meu direito demonstrar
discriminação contra Jasper, já que é meu ex-namorado. Porém, Lizzy não tem um título
de ex-dona, para menosprezá-lo, de modo que sou forçada a declarar que isso é uma
injustiça (em minha mente, é claro, já que nem sonharia em dizer isso em voz alta).
— Ah, convidei Luke! — ela diz. — Sei que você o adora e ele, realmente, é um
doce.
Sinto-me atônita pela segunda vez em dois minutos.
— Oh! exclamo.
Não tenho certeza se gosto da notícia (pelo menos, Luke não falará sobre
astrologia cósmica durante toda a noite) ou não (Lizzy tem um milhão de amigos, por
que precisa apropriar-se de um dos meus?). Digo que está tudo bem, mas que agora
preciso dar um telefonema. Depois, volto ao escritório e fico remoendo minhas mágoas.
Meu humor não melhora, mesmo quando chego em casa, porque vejo que Jasper fez um
sanduíche de queijo e tomate na cozinha e o comeu na sala — a gaveta dos talheres está
aberta, um prato com migalhas incrustadas sobre a pia, uma ponta de tomate parecida
com uma aranha no chão e os restos de um pedaço de queijo cheddar (desembrulhado)
apodrece em outro canto.
— Ele tem coragem! — digo ao Gorducho, que está mordendo suas patas e não
me dá atenção. Imagino se Jasper deixou-me um bilhete, comunicando seu paradeiro.
Depois de uma busca de três segundos, na qual vasculho a casa, descubro que não. Lavo
o prato e a faca, fecho a gaveta, recolho o tomate e o queijo e os jogo na lixeira,
resmungando o tempo todo comigo mesma sobre os companheiros de apartamento
relaxados e preguiçosos que arrastam seu peso pela casa como Henrique VIII, esperam
que outras pessoas limpem sua sujeita, deixam seus saquinhos de chá sobre a pia de aço
inoxidável e a mancham. Fico limpando e tirando o pó por cerca de quarenta minutos,
entedio-me e ligo para Tina.
Sei que não deveria. Na última vez em que liguei para ela e indaguei sobre sua
saúde, contou-me, friamente, que eu estava tentando estragar seu relacionamento com
Adrian e que, além disso, sabia que era por ciúme do "amor incrível" que ambos sentem
um pelo outro, o qual não era capaz de compreender. De acordo com Tina, estou
consumida pela amargura, porque os homens que conheço são todos inúteis e não dão a
mínima para mim (só que suas palavras não foram tão gentis).
Ainda que magoada, lembrei-me que ela estava hipnotizada pelo mago do mal e
disse, simplesmente:
— É claro que quero acabar com seu romance! Adoraria afastá-la de Adrian. Ele
é um...
Entretanto, ela desligou o telefone na minha cara. Desde então, tem me ignorado
e os livros de auto-ajuda estão mofando no chão de meu quarto. Detesto isto, mas estou
com medo de ligar e lhe causar mais problemas. Penso que posso fingir estar ligando
para ver o que ela pretende comprar à Lizzy. Uma vez só não fará mal.
O celular de Tina não está funcionando, de modo que ligo para sua casa.
— Alô? — ela sussurra
—Tina? — pergunto, nervosa. — Sou eu, Helen. Sabe que seu celular não está
funcionando?
Ela tosse e diz:
— Não tenho mais celular.
Uma vez que Tina costuma, ou costumava, ser famosa por sua conta de celular
(mais ou menos trezentas libras por mês), fico chocada.
— Mas... — gaguejo — como você está se saindo sem ele?
Ela tosse, novamente. Parece estar com a garganta irritada.
— Fazem mal à saúde. Dão câncer no cérebro.
Respondo:
— O celular não é essencial para seu emprego?
Ela não responde. Sinto uma punhalada de raiva e digo, muito irritada:
— É ele, não é? Está tentando separá-la de nós! Por que...
Ela interrompe. Seu tom é zangado.
— Não, não está! É só porque se preocupa comigo e vocês não suportam isso!
Por que não pára de se meter e me deixa em paz? Por favor! Ele chegará logo, tem uma
chave, e, se me pegar, exigirá que eu diga com quem eu falei, por quanto tempo, o que
dissemos e...
Sua voz falha.
Faço uma careta e tento compreender. Digo-lhe que sou sua amiga e lhe desejo o
melhor, que ela precisa confiar em mim. Digo-lhe (aqui, cruzo os dedos) que respeito
seu relacionamento com Adrian, mas que um romance deveria fazê-la feliz e acho que
ela não está. Pergunto-lhe se ele a espancou recentemente e ela me diz que faz tempo
que isso não acontece. Algo em sua voz coloca-me em alerta, então pergunto se ele fez
alguma coisa que não faria se, por exemplo, eu estivesse junto.
É então que descubro que ontem à noite, depois do telefonema de Lizzy, Adrian
pegou uma -espátula de plástico na gaveta da cozinha de Tina, um saco plástico debaixo
da pia, trancou Tina em sua própria casa (dizendo que ele poderia ligar a qualquer
momento, de modo que, se ela ligasse para alguém, ele saberia), foi até a praça ali perto,
colocou três cocôs frescos de cachorro no saco, retornou ao apartamento, vestiu um par
de luvas amarelas de borracha, depois lambuzou todo o rosto e a boca de Tina com o
cocô e lhe disse, furioso:
— É o que você é.
Exceto por isso, tem sido um perfeito cavalheiro.
CAPÍTULO 40
Fui criada para acreditar que o bem vence o mal. As irmãs feias de Cinderela,
Cruella De Vil, as vendedoras malvadas da butique em Uma Linda Mulher — todas
receberam o que mereciam, pelo único motivo: merecerem. Assim, quando ouço sobre a
atrocidade mais recente de Adrian, espero justiça. Desejo que um herói de história em
quadrinhos resgate, salve a boazinha e puna o malvado. Ainda assim, quando peço que
Tina me deixe chamar a polícia, ela hesita, depois diz "não". Ela diz que, na vida real,
não é bem assim, que não sei como é Adrian, que ele é mais esperto que a lei. Ao
escutar isso, sinto-me impotente, fraca e nauseada. Sinto-me roubada de minha fala e de
duas décadas de complacência.
Não durmo bem na quinta-feira e acordo sexta-feira sentindo-me zonza. Arrastome
para o trabalho e tento despertar, mas não consigo. Bebo dois expressos duplos, o
que agita meu corpo, mas não tem nenhum efeito sobre a sonolência. Vejo Tina
chegando, esgueirando-se com a cabeça abaixada. Meu coração espreme-se e decido
-que ela não precisa evitar contato visual, porque hoje vou ignorá-la. Sei que isso é
infantil, mas estou tão zangada e frustrada, que, se falar com ela, será difícil não sacudila.
Preste atenção, sou tão má quanto Adrian. Forço um sorriso enquanto Lizzy aparece
e cantarola:
— Não está louca para que chegue a noite? O que irá vestir?
Meu sorriso dissipa-se:
— Bem, isso mesmo que estou usando agora.
Lizzy observa meu blusão solto, cinza e desbotado, e franze a testa:
— Você não pode usar isso em meu aniversário! É meu aniversário!
Vê se cresce, desejo dizer, porém não faço isso.
— Não tenho outra roupa — respondo apenas, de mau-humor.
Lizzy espia sob minha mesa e reclamo.
— Só queria ver que calçados você está usando — explica. — Preciso dizer que
essas botas de salto não são minhas favoritas. Para ser franca, botas com saltos altos e
grossos não são favoritas de ninguém.
Pouco tempo atrás, quando Tina ainda era ela mesma, um dia deu uma olhada e
disse que minhas botas eram feias. Mas, gosto delas.
— Já sei! — diz, em voz cantada. — Pedirei que Tina lhe empreste alguma coisa
fabulosa do armário do setor de moda. Tenho certeza que concordará quando... enfim,
tenho certeza que concordará.
Ela sai, consulta Tina e quatro minutos depois reaparece em minha mesa
brandindo um par de sandálias de tiras pretas e saltos agulha e uma blusa de amarrar
amarela com rendinhas lilás nos debruns.
— Ai, caramba — resmungo, azeda.
— Não seja tola! — ela retruca. — Isso ficará sensacional com suas calças
pretas.
Respondo:
— Sim, mas e quanto a mim nessas roupas?
Lizzy ignora meu mau-humor e me força a experimentar tudo. Olho com
antipatia para meu reflexo no banheiro feminino enquanto ela saltita à minha volta,
como uma demente, puxando, apalpando e passando a mão pela blusa. Depois, diz:
— Helen, você está divina! Espere aqui!
Ela escapole e dois segundos depois volta com Tina.
— O que acha? — pergunta com satisfação, quase gritando e abrindo bem os
braços, como uma cantora de cabaré.
— Ótimo — Tina diz, sorrindo fracamente e dirigindo as palavras para meu
ouvido esquerdo.
— Bom! — Lizzy diz. — É isso; então.
Ela permite que eu use meu blusão cinza, durante o resto do dia, mas confisca
minhas botas "porque não confio em você". Ela dança porta afora, deixando Tina e eu
sozinhas.
Sinto-me tão desajeitada quanto me senti quando a avó de Michelle preparou-me
um encontro às escuras com o rapaz encarregado de levar os cachorros para passear —
ele era russo ("da Rrrrrrrrússia com amorrrr!", ele ameaçou, pelo telefone) e usava uma
muleta.
— Oi — falo.
Tina finge estar interessada em uma de suas unhas e diz, rapidamente:
— Helen, por favor, não diga nada ruim a mim ou a Adrian hoje à noite, ele
ficará cheio de suspeitas e...
Sinto-me instantaneamente cruel e envergonhada, de modo que toco a parte
superior de seu braço, deslizo meu dedo por ele gentilmente e aperto sua mão. Seus
olhos enchem-se de lágrimas enquanto ela vira-se e se afasta dali.
Como não desejo desapontar Lizzy — já que, ao vê-la indo embora, procurei
freneticamente em sua mesa, buscando minhas botas, mas não as encontrei —, entro no
restaurante pontualmente às sete e meia da noite usando calça preta, blusinha
carnavalesca e sandálias de tiras. A primeira pessoa que vejo é Tom. Ele está de pé, no
canto mais distante, conversando com Brian, que usa um macacão muito desbotado.
Estou tão perplexa (não com o macacão desbotado, já que complementam perfeitamente
a camiseta fosforescente), que olho novamente para confirmar o que vi, quase deixando
cair o presente de Lizzy no chão. A menininha aniversariante surge de repente na minha
frente.
— Surpresa! — grita em meu ouvido.
Meu rosto está quente e vermelho.
— Ah, meu Deus, sua maníaca! — resmungo, tentando manter o sorriso sem
graça em meu rosto sob controle. Lizzy gruda a mão sobre sua boca, para conter uma
risada alta. Luke aparece ao meu lado, afunda um cotovelo em minhas costelas e pisca.
— Foi muito sutil — digo.
— Tom veio com Luke, então não ponha a culpa em mim! — Lizzy diz, alegre.
Luke acrescenta:
— Foi um trabalhão trazê-lo, por isso não estrague tudo, desta vez.
Olho para minhas sandálias e murmuro, deliciada:
— Vocês são duas crianças intrometidas.
Luke dá um suspiro de aprovação e exclama:
— Vou trazê-lo aqui, o que acha?
Consigo impedi-lo de fazer isso arenas agarrando sua camisa, puxando-o para
trás pela nuca e sibilando:
— Não!
Então, Tom cruza a sala, olha-me por um segundo e diz, alto:
— Olá, você.
Sei que precisou reunir coragem para isso, porque, ao falar, seu rosto torna-se
rubro e. sua voz treme um pouco. Abro minha boca e percebo que está seca como
torrada velha, de modo que meu "olá, Tom" emerge em um ganido fraco.
Ele fica vermelho novamente — ainda mais, porque Luke e Lizzy olham-nos
como Muppets — e começa a dizer "eu, bem, você está li...", quando é interrompido.
Luke dá um tapa em suas costas e exclama:
— Então, não vai beijá-la?
Congelo, enquanto as palavras zunem em torno de nossos ouvidos como um
bumerangue em um funeral. Lizzy — que, em minha opinião, não entendeu muito bem
com quem estava lidando, ao fazer seu conluio com Luke — parece abismada. A
expressão de horror de Tom rompe-se, ele urra "arrrrrgh!" e finge estrangular Luke.
— Venha comigo, neste instante! — Lizzy ordena abruptamente, como uma
babá que observa rinocerontes com uma criança de cinco anos e os animais começam a
acasalar.
Tom e eu somos deixados por nossa própria conta, olhando um para o outro.
Minhas mãos pendem sem jeito, ao longo do corpo, não sei o que fazer com das. O pé
de coelho está correndo loucamente em meu peito, olho para seu rosto e tudo o que
posso pensar em dizer é:
— Como vai?
Ele inclina um pouco sua cabeça:
— Muito bem, obrigado, e você?
— Bem, obrigada, muito bem. — Respondo.
Muito bem! Quem penso que sou? Mordo o lábio, recuo um pouco e, uma vez
que começo a entrar em pânico, despejo rapidamente:
— Luke diz coisas engraçadas, você não acha?
Ele concorda, com ar de sofrimento e diz:
— Sim.
Subitamente, tenho a impressão que ele vai chorar, minhas entranhas contorcemse.
Inspiro profundamente e digo:
— Mas, às vezes ele diz coisas que penso, porém não tenho coragem de dizer.
Digo isso, não posso acreditar que disse, olho para o chão e penso: Tola, burra!
Idiota! Quando ouso olhá-la novamente, ele está me fitando como se morresse de fome
e eu fosse um kebab imenso, damos um passo à frente ao mesmo tempo e nos beijamos.
Nosso beijo é suave e quente como veludo sobre veludo. Fecho meus olhos e me sinto
sufocando de alegria, e, quando os abro para uma espiada rápida, os seus estão
fechados. Assim, olho à minha volta para ver se alguém nos observa — vinte pessoas
estão de olhos grudados em nós —, de modo que os fecho novamente e afundo ainda
mais no beijo.
— Todos estão olhando — murmure.
— E daí? — ele sussurra, aperta-me mais e eu o abraço com força, olho em seus
olhos azuis, sinto uma tontura intensa, penso que parece loucura termos nos afastado.
Foi loucura e estupidez, não deve acontecer novamente. Então, um calor aquece-me
como sol depois da chuva. Eu amo você.
Não é nada como antes. O que veio antes dele é muito agradável, mas é nada.
Tom é tudo. Olho-o e penso naquela frase antiquada: "Amo você de todo coração" — se
bem recordo, é o que o príncipe falante diz à princesa loira — e também o que sinto. Ele
beija meu rosto, meus cabelos e diz, ainda com os lábios neles:
— Desculpe-me por ter sido um asno.
Eu me afasto tão rapidamente, que quase o faço bater com os dentes em meu
crânio.
— Você está se desculpando! — digo, com um gritinho. — Não precisa! Tinha
razão em tudo o que disse! Eu é que sinto muito.
Ele sacode a cabeça. Depois, sorri:
— Quando você caiu no pub aquela vez com Lizzy, apesar do que você disse —
neste ponto, concordo vigorosamente, para incentivá-lo a acabar de uma vez com o
assunto —, tive vontade de correr atrás e beijá-la até morrer.
Pergunto, feliz:
— Sentiu mesmo?
Ele diz que sim e bate com o pé no chão, como uma criança pequena, falando
rudemente:
— Foi uma droga sem você. Detestei!
Mal posso acreditar que ele está dizendo essas coisas — não um cara qualquer,
com mau hálito, o tipo que geralmente conheço em bares, mas Tom. Tom, por quem
morro de paixão. Tom, que diz as coisas do jeito que lhe vêm à mente. Tom, que está a
fim de mim, Helen, embora meus cabelos sejam realmente sem vida e eu dirija uma
Toyota. Ah, Deus, permita que isso seja real.
Ouso dizer que ele está pensando algo semelhante, porque sentamos um perto do
outro durante o jantar e ele continua sorrindo amplamente, beijando-me e apertando
minha mão, mal comendo. Em uma cena sem precedentes, também não consigo comer.
Apenas falamos.
Deseja saber tudo o que fiz no Natal, se pensei um pouquinho nele, como está
meu emprego, como o Gorducho está indo, se Nana e minha mãe estão bem, como estão
as coisas entre mim e ela — embora eu não precise contar-lhe, se não quiser —, como
encontrei minha casinha e como a mobiliei e se senti sua falta. Ele continua olhando
para mim como se eu fosse uma beleza inimaginável e eu quero saber tudo o que ele
anda fazendo, se Celine ainda trabalha na Megavet (não, ela foi demitida por
incompetência, depois de deixar cair um hamster e esmagá-lo ao pisar sobre ele), se sua
irmã está bem, se ele ainda pratica boxe, como sua família está e se superou seu medo
de pintar (gentileza de minha parte lembrar disso), se foi para a cama com alguém
depois de mim (claro que não, e será que ele pode perguntar o mesmo sobre mim?), e
será que podemos ir à Heath Extension novamente no Honda e comer bagels?
Quando pergunto-lhe sobre irmos à Heath Extension, ele olha-me e diz:
— Faço qualquer coisa por você, Helen. Sério.
Eu não contra-ataco com "Ah, mas você não me deixou ficar em seu
apartamento!", porque agora compreendo. Engulo em seco e murmuro:
— E eu por você.
Não sou tão liberada quanto Tom, porque a sentença inteira "Eu também faria
qualquer coisa por você" é muito séria e, embora deseje dizer as palavras, elas parecem
mais fáceis em minha mente. De qualquer maneira, ele parece contente com a
abreviação.
Continuo olhando-o e sorrindo, pensando que ele gosta de mim e que diabos eu
estava fazendo, quando o rejeitei como um gato rejeitando leite. Sorrimos um para o
outro até sentirmos dor nos músculos. Até surpreender o olhar de Luke no outro lado da
mesa e ele abrir imediatamente sua boca grande (sem se importar em engolir o bife já
meio mastigado dentro dela), enfiando um dedo dentro daquela nojeira, para comunicar
sua repulsa pelo fato de sua amiga mais íntima e um dos caras com quem sai terem se
transformado de pessoas normais em um casal nauseante de pombinhos arrulhando.
Tom vê Luke e o provoca, colocando uma batatinha em minha boca com sua
própria boca. Luke segura sua cabeça com a duas mãos, como se sentisse grande
tristeza. Tom suspira e diz:
— Sabe que ele irá me chantagear para sempre?
Concordo e pergunto:
— Então, será que podemos transar daqui a pouco?
Ele sorri. Levanto-me rapidamente, passando a mão por meus cabelos. Tom
olha-me, ergue uma sobrancelha e deixa a cadeira. O garçom traz um imenso bolo de
aniversário cor-de-rosa e todos precisamos cantar "Feliz Aniversário" para a querida
Lizzy. Tom e eu cantamos alto, gritando, com prazer. Estamos trocando olhares
sorrateiros de "será que agora podemos ir?", quando olho para o outro lado da mesa e
vejo Tina.
Minha felicidade some. Ela parece aterrorizada. Assustada, servil, como um cão
morto de fome. Ela bebe água em pequenos goles, sua mão está tremendo. Seus olhos
não se levantam.. O convidado à sua esquerda desistiu de tentar engajá-la em uma
conversa. A culpa disso é a pessoa à sua direita. Adrian está todo elegante em uma
camisa verde-claro e um terno cinza-escuro de corte perfeito. Seus dentes são mais
brancos do que o branco mais puro e seus cabelos loiros têm corte também perfeito.
Conversa animadamente com a mulher à sua direita. Ele toca a mão dela, levemente,
para salientar algo, a mulher lança sua cabeça para trás e dá uma risada gostosa. Sinto
vontade de esfaqueá-la.
— Qual o problema? — Tom pergunta, seguindo minha linha de visão.
— Ah, humm, nada — digo. — Acho que Lizzy está nos vigiando. É melhor
nós... esperarmos um pouco mais aqui.
Ele olha-me e diz:
— Há algo errado.
Sacudo minha cabeça e digo:
— Preciso dar uma palavrinha com Lizzy por um segundo. Você ficará bem,
não é?
Neste ponto, Luke aparece atrás de Tom e tenta enfiar uma vagem em seu
ouvido. Tom grita, rindo, agarra seu pulso e o gira, de modo que Luke é forçado a
ajoelhar-se.
Capturo a oportunidade, corro até Tina. Digo "oi" e ela parece apavorada,
respondendo debilmente:
— Vejo que você e Tom voltaram.
Sorrio e respondo "é!" e "por que você não vem conversar um pouco?!
Ela olha-me enquanto Adrian volta-se com uni sorriso insinuante em seu rosto e
exclama, sedutor:
— Helen! Que ótimo vê-la! Está muito bem! Adorei sua blusa, combina com
você.
Embora eu deseje cuspir em seu olho, posso ver Tina tremendo, de modo que
forço os cantos de minha boca a voltarem-se para cima:
— Sim, é uma blusa legal.
Faço uma pausa e falo:
— Não quero interromper — estava apenas pensando em levar Tina um pouco,
para que ela cumprimente Tom e Luke.
O sorriso de Adrian permanece firme, enquanto responde:
— Adoraríamos, mas — ele olha fixamente para seu relógio Tag Heuer — a
chefe aqui esteve queixando-se a noite inteira de cansaço, de modo que estou pronto
para levá-la e colocá-la no berço. Levante-se, querida, o táxi está esperando lá fora.
Ela levanta-se como um robô e diz, em voz tensa:
— Boa-noite, Helen.
Eles beijam e abraçam Lizzy, depois saem. Não consigo relaxar. Lizzy vem a
mim, dizendo que ela, Brian e alguns outros irão dançar depois do jantar e me convida.
Acrescenta rapidamente que não se sentirá ofendida se eu não quiser acompanhá-los.
Começo a desculpar-me, mas ela aperta meu ombro, faz um sinal na direção de Tom e
sussurra:
— Seja feliz.
Tom vê que as pessoas começam a ir embora, volta-se para mim e diz,
recatadamente:
— Gostaria de dividir o táxi comigo?
Respondo:
— É claro!
Luke enfia sua cabeça entre nós dois e exclama:
— Que bom! Vou aproveitar a carona!
Tom e eu olhamos furiosos para ele, Luke sorri, pergunta "o quê?" então diz:
— Não se preocupem, podem deixar-me antes!
Tom geme:
— É isso mesmo o que faremos.
Saímos à rua e Tom chama o táxi. Luke põe os pés sobre o encosto do assento da
frente, acende um cigarro e Tom acaricia minha mão, dizendo:
— Você está quieta demais.
Faço um "sim" com a cabeça. Não consigo falar. Não há nada na Terra que eu
deseje mais do que tapar a boca de Luke com fita gomada e despejá-lo no Swiss
Cottage, depois correr para casa com Tom, arrancar suas roupas e fazer amor,
apaixonada e loucamente, no chão do corredor, depois novamente na mesa de café.
Preciso disso. Preciso fazer amor com Tom, sentir esta conexão, corno preciso de ar.
Mas como posso fazer isso, sabendo que Tina foi para casa com Adrian?
Se este é um recomeço do zero, quero que seja perfeito. Penso no terror de
minha amiga, o pensamento impede a libido. O que ele fará com ela? Sinto dor ao
pensar nisso. Não há opção. Dou um tapinha na perna de Tom e lhe conto a verdade
sobre Tina e Adrian.
Depois, desvio o táxi para Tooting e rezo para chegarmos lá a tempo.
CAPÍTULO 41
Embora fique esquisita usando biquíni e vire inevitavelmente um camarão, sob o
sol, adoro praia. Gosto de observar o mar e pensar coisas simples como nossa, toda essa
água!, ou Deus, o mar é realmente grande! Gosto de ver as ondas espumando e chiando
na praia. Enterrar meus pés na areia quente, sentindo os grãos entre meus dedos. Adoro
procurar conchas — aquelas enrascadas como pequenos cornos de unicórnio — e
pedrinhas cinzentas redondas com veios aparentes em sua superfície. Adoro fechar
meus olhos, ouvir as ondas quebrando e as risadas das pessoas. Cheirar o ar salgado,
prová-la em meus lábios. O que mais gosto de fazer é nadar devagar na água
transparente, em busca de ouro. Vejo um pontinho brilhante, tento arrancá-la e levá-lo à
superfície. Claro que nunca é ouro, apenas um outro grão de areia que brilha pelo efeito
de sol e água. Mas, isso não me abala, porque a alegria toda está em procurar.
Não é assim que me sinto, porém, quando perco Tom. Depois de toda a busca,
tropeço em ouro e o deixo escorregar por entre meus dedos como areia.
Ainda assim, enquanto corremos em defesa de Tina como um esquadrão de
cavaleiros negros, nada indica que terminará como terminou. Despejo a história
lamentável, Tom diz "Que droga!" e me faz mil perguntas. Luke intromete-se, dizendo
que não entende isso. Eles mostram-se indignados, lamentando dizendo "pobre, pobre
Tina" e falando que Adrian terá o que merece.
— Isso não é um joguinho de ação para garotos — falo, gélida, apavorada por
ter começado isso.
Tom diz:
— Helen, a única coisa que pretendemos fazer é verificar se ela está bem. Tem
razão em se preocupar. Não faremos nenhuma besteira.
Ele aperta minha mão.
Luke acrescenta, com sinceridade:
— Você fez a coisa certa.
Não tenho certeza se fiz, mesmo.
Mudo logo de idéia. Quando o táxi pára na frente do prédio de Tina — "Adrian
tem um carrão desses? Mas que filho da mãe!" —, já consigo ouvir os gritos de Tina, ao
saltarmos, o que é um milagre indesejado, pois meu coração bate alto o suficiente para
deixar-me surda. Sinto vontade de chutar a porta e derrubá-la, mas Tom quer pegar
Adrian desprevenido. Entramos sorrateiramente pela porta principal, com a ajuda de
uma mulher, que mora no andar térreo. Curiosamente — ou, ao contrário, não
curiosamente, — ela não pergunta quem somos. Mas, claro, sua vizinha está gritando
como uma porca que acabou de ver seu primo servido no jantar, isso não a incomoda, de
modo que talvez eu não devesse sentir surpresa.
Escalamos a escada e Tom toca a campainha. Um protesto, ruídos abafados,
depois o silêncio. Ele toca novamente, colocado de costas para a porta, para que Adrian,
ao espiar pelo olho mágico, não possa saber quem está ali.
— Quem é? — uma voz tensa grita lá de dentro.
Tom grita também:
— Você é o proprietário do Z3 com pneus cortados, lá na rua?
Ouvimos uma exclamação alta e um "clac-clac" de ferrolhos sendo abertos.
Adrian abre a porta subitamente, ao mesmo tempo em que Tom dá nesta um pontapé
vigoroso. Adrian pula para trás. Tom e eu corremos para Tina, que está encolhida no
canto. Luke joga-se sobre Adrian, no que presumo ser um golpe aprendido em algum
livro — ou talvez ele apenas tenha tropeçado no tapete — e, antes que eu possa dizer
"bate mais!", está montado sobre o corpo de Adrian, sacudindo-o com tanta força, que a
cabeça deste faz um som agradável de "bonk-bonk-bonk" no chão.
Ao ver o estado de Tina, o rosto de Tom perde a cor. Adrian pergunta que diabos
está acontecendo e diz, nervoso, que entendemos tudo errado, que Tina e ele estavam
apenas discutindo e "aaaaaiiii!", a historinha de Adrian termina rapidamente, enquanto
Tom aperta um ponto aparentemente sensível em seu pescoço.
— Cale a boca! — Tom diz, asperamente.
Adrian se cala.
Ligo para a polícia de meu celular, já que o telefone foi arrancado da parede,
Tom apressa-se em providenciar gelo e toalha para Tina. Adrian está tentando respirar
sob o peso de Luke; assim, descubro que o esforço árduo que meu amigo colocou em
ganhar corpo à base de pizza calabresa, comida indiana e salgadinhos de queijo com
cebola durante a última década está compensando muito bem.
— Tina! — Luke berra a plenos pulmões, de sua posição elevada. — Você está
bem?
Ela tem sete queimaduras recentes de cigarro em sua barriga e está longe de
"bem". O ferimento da sua cabeça reabriu. Tom afasta os cabelos do rosto dela e limpa
gentilmente o sangue que escorre por sua testa. Ele diz:
— Meu Deus, Tina, isso é terrível. Você não precisa agüentar esse tipo de coisa.
Em voz trêmula, ela brinca, dizendo que não usará miniblusa este verão, depois
começa a chorar e se agarra a mim e a Tom.
— Tina — falo, tentando não chorar também. — Precisei fazer isso, não podia
mais ignorar, desculpe-me.
Quando a polícia chega, Tina pára de chorar, parece paralisada. O policial deseja
ouvir o que aconteceu na versão de todos, mas especialmente dela.
— Por favor, conte — digo incentivando-a. — Tenha coragem. Estamos todos
aqui.
Ela treme e olha rapidamente para Adrian, que olha à sua frente como se achasse
que é o exterminador.
Silêncio. Tina não diz nada e prendo a respiração. Luke dá um passo a frente,
Tina salta, mas ele deseja apenas oferecer-lhe um pedaço amassado de papel higiênico,
para que assoe o nariz.
— Usei o papel apenas uma vez — ele explica, suavemente.
A gentileza de Luke parece dar-lhe ânimo. Depois de assoar muito o nariz e
engolir em seco, Tina aponta para seu namorado e diz: .
— Ele... Ele disse que cigarros fazem mal à saúde, isso é verdade. Ele...
acendeu-os e os apagou em minha barriga.
O policial, cuja expressão dura é uma compensação por um rosto coberto de
sardas, anota isto em seu bloco. Depois, Tina cai em silêncio, de modo que a policial
que acompanha o sardento, uma mulher com cabelos de um amarelo brilhante e uma
aura de aço, leva-a para outro cômodo. O sardento volta-se para Adrian. Este começa a
dizer, em uma voz mais amistosa e simpática, que Tina tem problemas com bebida. Para
minha grande alegria, o sardento corta-o com:
— Não quero saber de suas explicações ainda.
Tenho vontade de dizer ao sardento que Tina bebe apenas suco de laranja, desde
que Adrian quase afogou-a por "flertar" com um cara no pub (como se Tina algum dia
pudesse sentir-se atraída por um homem vestindo macacão). No entanto, não quero ser
repreendida na frente de Adrian, guardo isso para mais tarde. Assim, aponto para o
cinzeiro cheio de pontas de cigarro que, presumo, estão cheias de impressões digitais de
Adrian, embora ele não fume. O sardento guarda-as diligentemente em um saco plástico
e eu sussurro para Tom, excitada:
— Vi isso em um filme. Mesmo se não for válido em um tribunal, é prova
circunstancial!
Depois, vou à cozinha, porque Tina deseja minha companhia. Sento-me junto à
mesa, enquanto a loira tira fotografias da barriga e da cabeça dela com uma câmera
Polaroid. Ela parece compreender que Tina está perplexa por sua presença e suas
implicações e diz, com firmeza:
— Está fazendo a coisa certa, querida. Não fez nada errado. Isso não é o que
acontece em um relacionamento normal.
Não tenho certeza se posso falar, então balanço a cabeça em apoio, por trás da
loira, e tento não vomitar à visão dos ferimentos de Tina. A loira diz que Tina precisa
ser levada ao hospital. Ligo pedindo um táxi. Depois penso, dane-se, estou explodindo
de vontade de dar meu depoimento, é isso que farei. Não tenho tido tanta vontade de
falar sem parar, desde que escutei Laetitia falando baixo ao telefone, durante a hora do
almoço, algum tempo atrás, indagando sobre lipoaspiração.
A loira dá-me uma oportunidade, falo até vê-la levantar a mão como se estivesse
com cãibra. Sinto-me frustrada, porque sou forçada a admitir que jamais vi realmente
Adrian encostar um dedo em minha amiga, "mas vi as conseqüências", digo, com vigor
e, depois, "você não vai tomar o depoimento de Tina?". A policial diz que fará isso
amanhã de manhã. Tina, que está quieta como um ratinho com pantufas de feltro,
concorda. Tom e Luke também dão curtas declarações. Quando o táxi chega, a loira
marcha degraus abaixo, para entrevistar a vizinha de Tina (o que me deixa sadicamente
satisfeita) e o sardento diz a Adrian:
— Você está sendo detido por agressão física com lesões corporais — ele
algema-o.
— Tenha cuidado com minhas abotoaduras! — Adrian exclama, porém vejo,
deliciada, que isso não cai muito bem com o policial, que então toma menos cuidado
ainda com as benditas abotoaduras.
Adrian envia-me um olhar furioso e lhe dou um "tchauzinho" com um aceno de
dedos curvados. Espero levá-lo a dizer algo incriminador como "com toda a
honestidade, senhor policial, eu nem a toquei!", mas Adrian não é tão burro. Não diz
urna palavra. "Eu também esperava uma ordem autoritária a ele, do tipo "deite-se no
chão!", mas a visão reconfortante de Adrian algemado já serve. Ele e seu terno Savile
Rou. precisarão passar a noite em uma cela e amanhã de manhã ele será entrevistado.
Depois, enfrentará a Justiça.
Se me permitem tomar emprestada uma expressão de Nana Flo, já era hora.
Tom embrulha Tina em um cobertor porque ela treme, e a leva até o táxi.
Durante o percurso até o hospital, nós lhe dizemos que fez bem, é corajosa e agora
Adrian vai pagar pelo que lhe fez. Tina parece não ouvir. Ela geme, cobrindo o rosto
com as mãos:
— Estou com tanta vergonha!
Tom, Luke e eu dizemos, em coro:
— Não precisa!
Tina sorri, pelo fato de parecermos idiotas, depois encolhe-se, porque sua
barriga dói.
No pronto-socorro, o médico com cara de criança diz, como se não pudesse
acreditar no que vê:
— Seu namorado fez isso?
Tina responde, como se isso explicasse tudo:
— Eu fumo.
O médico, que tem olhos verdes penetrantes e poderia ter sido tirado de ER, se
pelo menos fosse mais corado, olha Luke, com suspeita. Este julga-se o guarda-costas
de Tina: está parado de pé, ao lado dela, com expressão de buldogue e braços cruzados.
— Não fui eu! — exclama. — Sou Luke, estou cuidando dela!
Tina sorri para ele em meio às lágrimas, Tom sorri para mim. Olho para meu
relógio e descubro que são três e vinte três, o que significa que esperamos no inferno de
Dante — perdão, pronto-socorro — por três horas. Paredes descascadas. Sinto uma
onda de exaustão. Resmungo que vou sair um pouco.
Arrasto-me até a porta. O odor doce e enjoativo do pronto-socorro está tendo um
efeito sobre minha capacidade para respirar. As portas de vai-e-vem do hospital, com
suas janelas retangulares de vidro, luzes brilhantes, crianças gritonas, bêbados berrões,
pessoas idosas arrastando-se por corredores cinzentos e a equipe apressada vestindo
branco e azul, com sapatos de solado de borracha — tudo converge e gira em minha
cabeça como um pequeno furacão, estou vendo meu pai morrer novamente. O monitor
fazendo seu "bipe" e as cortinas estão sendo puxadas. Carrinhos são empurrados, sou
afastada, ouço gritos de "ele está em parada!", minha mãe está uivando, e meu pai
morreu. Sento-me lá, sabendo que perdi esse momento e nunca lhe disse que o amava,
porque não conseguia pronunciar as palavras. O sangue foge de minha cabeça, sinto
náusea e tontura. Preciso sentar-me ou vomitar, não tenho certeza do que tenho de fazer,
exatamente, de modo que desabo em um banco — próximo a um homem esfarrapado,
que bebe em grandes goles algo em uma garrafa —, depois digo "urgh" e vomito no
piso. Compreensivelmente, o homem muda de banco.
Agarro a lateral do banco enquanto o mundo oscila. Quando percebo, Tom está
afastando os cabelos de meu rosto e friccionando minhas costas enquanto eu vomito e
cuspo. Continuo vomitando, com sons altos.
— Que romântico isso — digo, gemendo, com o último "burp" ressoando em
meus ouvidos enquanto olho a poça amarelada e nojenta no chão.
— Não — responde, alegremente. — Isso é nostálgico, para mim. Faz com que
recorde nosso primeiro encontro.
Eu poderia olhá-lo e rir, mas meu queixo está melecado. Limpo-o na manga
ridícula da blusa carnavalesca.
— Como está Tina? — pergunto.
— Ainda em choque, acho — ele responde — Ela disse que se sente mal por
Adrian. Mas o médico não caiu nessa, e lhe disse que homens como Adrian não mudam.
Foi gentil, mas bem franco. Espero que Tina tenha lhe dado ouvidos. Ah, Luke está
apaixonado, quer ficar para poder protegê-la..
Meus olhos arregalam-se.
— Luke está apaixonado! — digo, em voz aguda.
Tom dá um sorriso enorme e faz que sim, com a cabeça.
— Muito apaixonado — diz. Meu cérebro está girando, em uma tentativa de
absorver isso, quando Tom acrescenta. — Tina tem algum parente? Não acha que
alguém deveria ligar para seus pais?
Brinco:
— Para quê? Para alertá-los sobre Luke? — depois, acrescento. — Acho que
sim. Ela precisa de todo apoio que puder conseguir. Quero que seus irmãos saibam.
Ainda assim, deveríamos perguntar-lhe.
Tom concorda e eu completo:
— Tom, tenho medo, por Tina.
Tenho medo, porque quero que isso seja o fim e talvez não seja. Tenho medo,
porque algumas semanas atrás liguei para um abrigo de mulheres espancadas e
perguntei à encarregada o que eu poderia fazer para ajudar uma amiga nesta situação, a
qual contou-me sobre mulheres como Tina. Uma das histórias ficou em minha mente,
sobre uma mulher que se casou com um homem que a jogava de escadas e urinava em
seus ferimentos. Ele também amarrou o cão da família em uma árvore do quintal,
deixando-o morrer de fome durante três semanas. Ela e os dois filhos, de quatro e seis
anos, foram obrigados a assistir. Uma ou duas vezes por semana, conseguiam burlar a
vigilância e davam restos ao cachorro, mas isso apenas prolongou a agonia. Essa mulher
denunciou o marido apenas quando começou a temer pela vida dos filhos.
Depois, retirou a denúncia. Mesmo assim, o processo foi em frente, só que o
marido foi liberado e voltou para casa. Ele manteve o emprego, porque era "peça
fundamental" em sua empresa e estava negociando um importante contrato que o patrão
(do sexo masculino) temia perder: O juiz (do sexo masculino) decidiu não mandá-lo
para a prisão já que, como disse, não tinha o hábito de arruinar a vida profissional das
pessoas. Desejava "reabilitar" os delinqüentes. Ao final, a esposa fugiu para o abrigo,
mas ele conseguiu encontrá-la e...
Isso está me envenenando, de modo que conto a Tom.
— Aposto que Adrian tem um bom advogado — digo, sentindo-me péssima.
Ele responde:
— Sim, aposto que sim. Mas, pelo menos todos sabemos sobre ele agora. Não
poderá mais isolá-la. Sei que isso soa esquisito, mas Adrian parece-me alguém que
preza muito sua reputação. Além disso, você não conhece o chefe dele. Tina tem três
irmãos. Três. Acho que Adrian deu-se mal. Olhe, se alguém fizesse isso com minha
irmã... — Tom balança sua cabeça. Encolho-me. Sinto-me tão desanimada, que não
confio em mais ninguém para fazer o que é certo.
— Ouça Helen — diz —, são quatro da manhã. Luke está grudado em Tina
como uma sanguessuga apaixonada. Eles não vão interná-la e Luke permanecerá com
ela. Pode visitá-la em casa, assim que quiser. Pode ficar aqui, mas você também não
está bem. Por que não me deixa levá-la para casa? Posso dormir no chão.
Concordo, com relutância. Corro para ver se Tina importa-se, depois volto para
Tom. Uma pequena bênção em um mundo cruel: vejo que Tom conseguiu encontrar um
táxi preto. Ele abre a porta e espalho-me como uma boneca de pano do assento traseiro.
— Droga — digo.
— O quê? — ele pergunta.
— Detesto isso — desabafo. — Detesto o que aconteceu com Tina. Deveria ter
interferido antes.
Tom balança sua cabeça.
— Helen — diz —, apenas Tina pode livrar-se dele. Não podia forçá-la. Mas
você impediu que ela se machucasse mais seriamente hoje. Fez uma coisa boa, orgulhese
disso. Você é uma boa amiga.
Não reajo a este elogio, porque sinto-me indigna e suja. Não há ganho pessoal
que advenha da dor de Tina. Não quero isso. Tom sente meu sofrimento, porque diz:
— Ajudaremos Tina.
Depois, inexplicavelmente, ele agarra minha mão e a beija. Fecho os olhos. Um
pensamento vago e fugidio ronda meu cérebro, não quero mais preocupar-me e o mando
embora.Desperte-me quando chegarmos lá — sussurro, depois caio no sono.
Acordo quando entramos em minha rua.
— Qual é a sua casa? — Tom pergunta.
— Hummm, está escuro demais para dizer — falo, esfregando os olhos, e, mais
alto. — Pode parar aqui, por favor, está bom.
Saltamos, procuro a fachada granitada e percebo que minha casa é a próxima.
Estou prestes a abrir o portão quando Tom fica tenso, eu paro, instintivamente. Espio
nas sombras e vejo uma figura embolada nas escadas. Apenas quando a figura estica-se
e se levanta, que meu pensamento vago entra em foco e golpeia forte, rápido e
profundamente meu cérebro ainda confuso.
Jasper.
Fico ali de pé, tão congelada quanto um pilar de sal particularmente burro,
enquanto Jasper pisca para mim. Depois, pisca para Tom e troveja:
— Quem diabos é você?
Tom responde, friamente:
— Não, quem é você?
Jasper diz:
— Sou o namorado que mora com ela, seu imbecil.
Tom solta minha mão, que prendia na sua como uma coisa morta. Para Jasper,
ele diz, em voz gélida:
— Cometi um engano.
Para mim, não diz nada. Ele assovia para o táxi, que já ia embora — porém freia
bruscamente — e entra nele.
Olho-o enquanto se afasta na noite, sei que me deixou para sempre.
CAPÍTULO 42
Sendo a adolescente menos atraente de minha sala de aula (como você deve
imaginar), óculos nunca foram uma opção. Passei dois anos estreitando os olhos, antes
de meu professor de Matemática — um homem desprezível, o campeão de todos —
puxar minha mãe para um lado durante uma reunião com os pais e lhe dizer que eu era
cega como um morcego aposentado e um lixo em Matemática. No dia seguinte, ela
arrastou-me até um oftalmologista, que me pediu para ler em voz alta "as letras" em um
quadro branco que não continha nada escrito, depois declarou misteriosamente que
minha visão era "menos cinco e meio".
Quando, logo depois, fui presenteada com a monstruosidade de um par de óculos
de armação grossa, quase chorei. Mas, ao colocá-los, senti-me como Dorothy na terra de
Oz. Estava enxergando! O mundo tinha definição! Possuía bordas nítidas! As árvores
não eram coisas indistintas! Eram precisas! Tinham milhões de folhas individuais! As
placas dos carros! Elas tinham números! A transformação foi radical e miraculosa.
Depois de viver durante tanto tempo com a visão de uma câmera barata sob a água, aqui
estava eu, subitamente abençoada com a maravilha poderosa da visão perfeita.
Enquanto Tom sai de minha vida, revivo aquele momento crucial, no qual tudo
entra em foco. Tudo que está turvo torna-se claro. Mas, desta vez é doloroso como se eu
tivesse friccionado vidro moído em meus olhos. Nesse meio-tempo, Jasper grita sem
parar, mas suas palavras passam sobre meu corpo e me deixam intocada.
— Quem era aquele panaca, afinal? Estou esperando aqui desde uma da
madrugada! Disse-lhe que havia perdido a chave. Estou congelando meu traseiro aqui
fora, onde você estava até esta hora? Como teve coragem de me deixar aqui a noite
inteira, isso é inaceitável, não vou aturar esse tipo de coisa. Preciso trocar de roupa!
Estava vindo para casa a pé, da estação de metrô, e uns retardados metidos a besta
passaram por mim em um Escort e jogaram ovos em mim! Esta zona em que você mora
é como uma maldita Cohab! Quem era aquele ridículo; como teve coragem de perguntar
quem eu era, quem é ele, quero uma resposta, não vou...
Mal o escuto. Olho o táxi que encolhe e desaparece, levando nele todos os meus
amanhãs. Isso não pode ser real. Não pode ser. Não é o que mereço. Olho fixamente o
horizonte, na esperança de que Tom volte correndo novamente, como nos filmes, mas
ele não faz isso. Droga. Como isso pode acontecer? Deixo Jasper ficar, por gentileza
(principalmente), e o miserável retribui arruinando minha vida. Perder Tom uma vez
doeu. Perdê-lo uma segunda vez — isso não é descuido, mas sim, obscenidade.
Como pude esquecer que estava dividindo meu banheiro com o pior inquilino
desde mim mesma? Como meu cérebro inútil conseguiu peneirar e recontar todos os
fatos relevantes, porém esqueceu de mencionar Jasper? Ele? Como foi capaz? Torna-se
dolorosamente óbvio que Jasper está a fim de viver sem pagar aluguel, que não esteve a
fim de mim durante a maior parte de um ano inteiro. Descrever a si mesmo como o
namorado que mora comigo não apenas é uma contravenção deliberada da lei da
propaganda enganosa, também é uma mentira grande, deslavada e catastrófica.
Enquanto meu futuro desmorona, fico ali, paralisada. Como se um movimento
súbito pudesse tirar à força minhas emoções de seus esconderijos e criar o caos, feito
mil continhas jogadas sobre um piso de mármore.
Minha tristeza indizível precisará aguardar, enquanto lido com seu catalisador.
Assim, caminho devagar até a porta da frente — cada passo é como
movimentar-me no meio de cola —, abro-a com minha chave e olho direto para Jasper.
— Desculpe-me — digo, calmamente. — Houve uma emergência. Espere aqui.
Tenho uma surpresa para você.
Jasper abre sua grande boca para objetar, enquanto bato a porta em sua cara.
Subo as escadas — pensando "como pude namorar um homem com mandíbulas como a
de um velociraptor?— e entro na sala, onde suas cadeiras de vime esperam-me. Vou até
minha pilha de CDs buscar uma trilha sonora apropriada. Ah, sim. Depois, abro a
janela. Jasper dá um passo para trás, tropeça em um pedaço solto de arame sobre a
grama e grita irado:
— Que diabo está acontecendo?
É como se alguém tivesse pressionado um botão em minhas costas, marcado
como "insanidade", uma fusão de choque pelas queimaduras de cigarro em Tina, pela
partida de Tom. Cantarolo:
— Uma surpresa! Descobrirá em um segundinho!
Inspeciono a devastação que é minha nova sala de estar. As roupas de Jasper
estão espalhadas pelo chão, Pressiono "play", recolho um par de cuecas brancas e as
lanço pela janela. Surpreendentemente — fui reserva da equipe C de basquete —, elas
atingem Jasper bem no rosto. Ele parece tão chocado quanto na primeira vez que me viu
estacionando a Toyota (colocando em termos simples sou um gênio).
Inclino-me para fora da janela para ver o que ele faz. Como um exercício de
antropologia, isso vale a pena. Jasper arranca a cueca de seu rosto e grita:
— Por que fez isso?! Você...
Faz uma pausa, sem acreditar, enquanto volto para dentro de casa. Depois berra:
— Deixe-me entrar, pelo amor de Deus! O que está fazendo agora?
Ele logo descobre. Vou com dificuldade até a janela, com sua valise, posicionome
contra a borda para ficar estável e a deixo cair na grama. Ela aterrissa em uma
grande poça. Jasper salta agilmente para o lado, evitando ter sua cabeça esmagada.
— Pare com isso! — berra. — Diga alguma coisa! Por que está fazendo isso?!
Ele corre freneticamente pelo jardim, tentando enfiar sapatos, meias, calças,
camisas, camisetas e calções de volta na valise, eu rio e cantarolo:
— Jas-peeeeeerrr! Pronto ou não, aí vai!
Ele olha para cima e grita "nãããããooo!", enquanto lanço a primeira de suas
pinturas náuticas na estrada como se fosse um frisbee. Ouço um barulhinho agradável,
enquanto o vidro quebra-se.
Levanto o volume de Heart of Glass, tão alto quanto possível e — de um modo
louco e sem-vergonha — berro:
— Adoro o som de vidro quebrando!
Jasper deixa cair seu lenço da universidade — que vem de uma faculdade à qual
ele nunca compareceu — e corre pela rua falando coisas incoerentes. Abraça ternamente
pedaços de moldura dourada, e eu quase sinto pena. .Deixo cair as duas outras pinturas
de navios, de modo a aterrissarem no canteiro de flores. Depois, volto ao aparelho de
som, rezo para que os vizinhos me perdoem e mudo o CD. De preferência, algo
animado para incentivar-me a parar de jogar as coisas de Jasper pela janela. Depois de
um minuto — em que posso ouvir gritinhos de raiva emanando do jardim da frente —,
descubro o que estou procurando. A música tem o mesmo efeito sobre Jasper do que a
luz solar tem sobre os vampiros. Ah, som, música country.
Suas cadeiras de vime saltam para a morte, ao som de Let your Love Flow. Ele
pede e suplica lá da rua, mas não estou fazendo acordos hoje. Canto junto (embora saiba
que isso não tem charme nenhum) e, quando encontro outra cueca perdida, giro-a em
meu dedo e a lanço na atmosfera, enquanto grito as palavras de "Roda de Fogo". O
Gorducho, que está se lavando sobre a mesa, deixa de se lamber com a pata parada no ar
e olha fixamente para mim. Atinjo uma nota aguda, suas orelhas achatam-se de medo.
La la la. A mesinha de vime de Jasper decola, no ápice de Stand by Your Man.
— Pare com isso! — ele soluça, segurando, com carinho, um pedaço solto de
vime. — Desligue isso! Desculpe! Por favor!
Relutantemente, desligo a música.
— Graças a Deus — diz, aliviado (todos de minha rua também devem estar
dizendo).
Inclino-me para fora da janela, sorrio. Sou a rainha do gelo, estou adorando.
Jasper brande uma perna de vime quebrada e grita:
— Olhe o que fez! Sua... sua... assassina de vime!
Rio de um modo asqueroso, o que o faz bater o pé.
Ele berra o mais alto que pode:
— Cale-se! Ah, que horror, olhe para as minhas coisas! Helen! Pare com isso!
Está agindo como maluca! Por favor! Não tenho para onde ir! Seja razoável!
Desapareço da janela para buscar o cobertor egípcio dele, que está ensopado,
dentro de minha máquina de lavar. Carrego-o até a janela e o deixo cair sobre Jasper.
— Sua vaca! — ele grita. — O que está fazendo?
Respondo:
— O que lhe parece, seu traste?
Vejo o boné de beisebol azul e branco sobre uma cadeira, agarro-o e urro:
— Pegue!
Jasper salta no ar, mas o boné aterrissa sobre um poste.
Ele segura sua cabeça, desesperado, e grita:
— OK, OK! Desculpe-me! Por favor! Deixe-me entrar! Não tenho como levar
minhas coisas! Apenas até amanhã!
Estico minha cabeça e cantarolo:
— Aprenda a dirigir! Já tem suas porcarias de móveis e seu boné idiota, agora
dê o fora!
Ele faz uma pose que lembra Hugh Grant em suas cenas mais comoventes.
— Para onde? — geme, abrindo seus braços.
Grito:
— Não me importa! Adeus, Jasper!
Depois, fecho a janela com um estrondo e puxo as cortinas. Sinto uma excitação
breve — como se o albatroz voando em torno de meu pescoço tivesse comido a migalha
em meu ombro e finalmente partido —, ponho para tocar Sea of Heatbreak. Estou livre.
Agarro o Gorducho e giro com ele por minha sala desvimada, em uma dança de desafio;
no entanto, ele luta, reclama, unha-me no peito, corre, afastando-se. Esta é a história da
minha triste vida.
Desligo o som e vou até meu quarto, em silêncio. Depois, sento-me na cama e
penso em Tom. Tom foi embora. O que eu fiz? O que fiz? Sou capturada pelo medo —
medo de ter cometido o erro mais terrível de minha vida. Tenho apenas uma vida e
acabei de daná-la. Minha mente gira com a ironia de mim e Tom em um táxi, afastandose
rapidamente da tragédia de Tina e vindo na direção da minha. Tudo o que posso
pensar é que eu estava, de pé, no começo do resto de minha vida e tropecei na linha de
partida. As lágrimas caem, grito até machucar minha garganta (a pessoa na porta ao lado
bate na parede). Depois, olho sem interesse para minhas paredes amarelo-claro e penso
qual é o sentido disso? Imagino se o sentimento de luto é assim. Sentir que a verdade é
inaceitável.
Sento-me na cama, até o nascer do sol, sentindo dor em meu coração. Digo a
mim mesma que a dor de Tina é pior, mas a minha lateja como nunca antes. Puxo as
cortinas, encolho-me sob o cobertor, tento perder a consciência. Quando o sono vem, é
um alívio. Não que eu não possa seguir vivendo. Que não possa viver sem Tom. As
pessoas morrem, porém, aquelas pessoas que as amam continuam vivendo. Tom não
está morto. Apenas morto pala mim. Assim, se eu dissesse que não posso viver sem ele,
estaria mentindo. Claro que posso viver sem Tom.
Só não será muito divertido.
CAPÍTULO 43
Se eu tivesse um eletrodo grudado em meu dedo do pé, que tocasse um alarme
sempre que eu fizesse algo idiota, talvez aprendesse mais com meus erros. Do jeito
como as coisas são, cometo os mesmos erros estúpidos vezes sem conta, até sentir-me
tão cansada das conseqüências, que tento mudar meus hábitos. Por exemplo, se me
levanto à noite para ir ao banheiro e machuco meu pé em um calçado de salto agulha
virado para cima, preciso fincar o salto uma dúzia de vezes até pegar o sapato e enfiá-lo
dentro do roupeiro. Se coloco o despertador para às sete e meia da manhã com a
intenção de sair para correr um pouco, preciso adormecer novamente às sete e trinta e
um e me atrasar para o trabalho pelo menos nove vezes antes de deixar de fingir que
posso enfrentar qualquer outra coisa, exceto um travesseiro antes das oito da manhã. O
alerta verbal de Laetitia também ajudou.
Mas, o encontro inesperado entre Tom e Jasper deixou-me impotente. Não
preciso de uma próxima vez. Meus planos para as próximas seis décadas foram
frustrados, o que me perturbou o suficiente para começar a traçar resoluções. Nunca
mais seria pega em um erro como este. Nunca mais gerenciaria mal minha própria vida.
O Gorducho comeria às oito e quinze da manhã e novamente às sete e meia da noite,
com um lanche aprovado pelo veterinário antes de dormir. A partir de agora, fazer
lanchinhos a todo momento seria proibido (para os dois habitantes da casa). Compraria
no supermercado todas as semanas, em vez de pagar mais todos os dias, no mercadinho
da esquina. Viveria de acordo com meu, argh, orçamento. Beberia oito copos de água
por dia e ficaria hidratada. Beberia álcool apenas ocasionalmente. Daria mais para
caridade, particularmente, para causas sem grande repercussão na mídia. Visitaria
museus e Nana Fio. Aprenderia italiano com a ajuda de um gravador e uma fita cassete.
Pararia de morder o lábio e aprenderia a consertar pequenos problemas em meu carro.
A lista era longa e difícil, mas naquela semana cheguei pontualmente ao serviço
todos os dias e forcei a barra para ser gentil com Laetitia. Minha casa ficou limpa, a
ponto de eu não ter mais o que fazer. Parei de discutir os relacionamentos de outras
pessoas, exceto por contar sobre Tina à Lizzy (com a permissão da heroína). Ouvi a
previsão do tempo na Estação Quatro todas as noites e me preparei adequadamente para
o clima. Devo confessar, porém, que se pudesse me vestir de acordo com meu estado de
espírito, teria usado roupas de saco de aniagem. Nem mesmo uma visita para ver Nos
Tempos da Brilhantina, com minha mãe, conseguiu alegrar-me um pouco. Ou quando
ela comprou a trilha sonora e disse:
— Querida, acha que estou velha demais para usar rabo-de-cavalo?
Nem mesmo quando saímos para comer pizza, contei-lhe sobre Tina e ela
exclamou:
— Pensar que você era tão egoísta!
Como Jeremy, o filho de Vivienne, gosta de dizer, "isso, cai de pau nela!"
Cheguei a ir com Lizzy à academia, e passei trinta e cinco minutos atando e
desatando meus cadarços e escutando duas mulheres pálidas grasnando uma para a
outra: "Sou imensa, você é magrinha!... Não, você é magra!... Não, sou imensa!... Não,
não é, você é magra!" etc. etc. Meu coração imaginou se haveria uma pequena chance
de Tom escutar-me, caso eu ligasse para explicar, mas meu cérebro esmagou esta
esperança em um golpe só. Do nada, recordei uma regra do beisebol — três strikes e
você está fora! Bem, estraguei tudo. Sexta-feira, eu me sentia miserável como o pecado
e tola como a piedade. Rasguei minha lista e a joguei no lixo. Mas, ainda me sentia
morta por dentro.
Sábado, porém, alegrei-me. Não muito — sinto que jamais conhecerei a
felicidade novamente e o melhor que posso esperar é tornar-me uma reclusa que junta
lixo dentro de casa —, mas um pouquinho, pelo menos. Vou da ameaça de suicídio (o
que não chega a ser verdade, já que ninguém parece preocupar-se o bastante para que eu
chegue a ameaçar para valer) à depressão. A razão para a mudança de humor é que vejo
Luke.
Desde sábado passado Luke não arredou o pé do lado de Tina, enquanto não a vi
desde aquele dia no hospital. Desejava visitá-la domingo passado, mas Luke informoume
que ela estava descansando. Quando liguei depois, Luke disse-me que um policial, à
paisana, fora até lá, mas Tina decidira não prestar depoimento.
— Por quê? — perguntei, surpresa.
— Não quer — ele respondeu.
— Mas precisa!.— eu exclamei.
— Não podemos forçá-la — ele disse.
— Suponho que não — falei, triste. Depois perguntei. — Posso falar com ela?
Luke disse:
— Ela não está a fim de provocações, então pode, mas só se prometer não ser
chata.
Prometi e fui passada para Tina, embora me sentisse um pouco magoada (Luke
acha que sou chata quando nunca chegamos sequer a namorar? Minha reputação corre à
minha frente.) Tina informou-me que se sentia melhor, que a polícia provavelmente
daria andamento ao processo, com ou sem seu depoimento, que ela contara à sua família
e seus pais estavam a caminho para vê-la. Ah, também ela estava quase certa de que não
queria mais ver Adrian.
De preferência, gostaria que Tina levasse Adrian ao tribunal, a imprensa
nacional divulgasse amplamente o caso e o levasse bem longe, com manchetes gritantes
e fotografias nas capas dos jornais. Que ele fosse expulso, ao som de tambores, de
Maida Vale, que fosse desprezado em estabelecimentos como a Aquascutum, que
perdesse seu emprego, não porque seria publicidade ruim para a empresa, mas porque
seu chefe — como diria fervorosamente aos repórteres zumbindo à sua volta — preferia
perder dinheiro a manter como empregado um criminoso violento. Gostaria que Adrian
perdesse seu emprego de qualquer maneira, porque não se pode trabalhar como
arquiteto quando se está passando os próximos quarenta anos em uma prisão fedorenta.
Acho, porém, que compreendo por que Tina não deseja prosseguir com isso. O
que não compreendo é por que Adrian declarou-se inocente e foi liberado
instantaneamente, como se seu crime tivesse sido o de esquecer de pagar uma multa de
trânsito.
— Isso é inacreditável! — eu disse, agitada, quando Luke contou-me este
escândalo. — Ela nunca estará segura! Ele, provavelmente, aparecerá hoje à noite e
explodirá o prédio! Meu Deus! Não ouse deixá-la dirigir o Escort sem verificar os
freios!
Embora este último alerta fosse aplicável com ou sem a interferência de Adrian,
Luke objetou ao meu pessimismo. Uma das condições para a liberação de Adrian foi
não entrar em contato com Tina. Talvez, quando o caso for a julgamento, em três ou
quatro meses, ela tenha decidido testemunhar. Se eu, Helen, puder testemunhar, talvez a
justiça seja feita.
— Pelo menos é o que espero — digo, amargamente.
Nesse meio-tempo, Luke cuidou de Tina.
— Luke — comentei, com mais maldade do que precisava —, como tenho
certeza que você sabe, Tina acabou de sair de um relacionamento seriamente abusivo
com um tirano dominador. A última coisa que ela precisa é ser levada a outro
relacionamento assim.
Claro que Luke sentiu-se chateado com meu comentário.
— Shhh! — ele disse. — Ela pode ouvir! Não é assim! Ela não me vê assim!
Tina é frágil, Helen, está nervosa, não quer ficar sozinha. Tem medo. Sou bom para ela!
Ajudo-a a ficar longe de Adrian. Estou protegendo-a, juro! Ela ainda gosta daquele filho
da mãe! Estou tentando distraí-la, é a pura verdade! Tina está confusa, mas confia em
mim. Nós conversamos. Temos muito em comum.
Senti-me tentada a retrucar "não me faça rir, seu acessório preferido é uma
sacola esportiva, e você pronuncia Gucci como "Gu-ki".
Entretanto, bem de acordo com minha nova personalidade noventa e oito por
cento livre de ironias e maldade, contive-me. Afinal de contas, se Luke está enrijecendo
o coração de Tina contra o crápula, ele não é um palhaço rude e estabanado, mas um
assistente social miraculoso que deveria ser deixado em paz, para completar o processo
de conversão. Esta percepção não evitou que me sentisse um pouco tensa e ciumenta
pela mudança abrupta de Luke, de meu amigo platônico e querido, em amigo íntimo de
Tina.
Exceto por este telefonema de emergência, não sei mais nada dele. Não ligo para
Tina, já que — de acordo com seu novo intérprete — "ela está exausta e não sente
vontade de conversar. Mas, quando você vir Lizzy, será que pode agradecer-lhe pelas
frutas, pela, bem, erva-de-são-joão e pelo óleo de tea tree?" .
Faço o que me mandam, sento-me controladamente e passo adiante a mensagem.
Quando digo isso a Lizzy, ela fala:
— Ah, sinto-me horrível, horrível! Adrian era tão sorridente! Todas aquelas
flores! Os telefonemas! Quem poderia pensar? Acha que eu deveria enviar óleo de
calêndula também?
Digo que tal idéia é gentil, mas acho que Tina dirá, se precisar de algo. Ela não
precisa. Assim, quando Luke liga-me no sábado, estou louca por informações. Meu
Deus, como há novidades! Escuto, embora Luke esteja tão excitado e tagarela, que
preciso de toda a minha concentração para entendê-lo.
— OK, os irmãos de Tina, Máximo, Sean e Andrew, cuspiram sangue, quando
ouviram sobre Adrian. Ficaram doidos. Máximo, especialmente, ele é o mais novo, diz
que vai andar por aí e encontrar o canalha. Sean disse que não, que precisavam ser
espertos sobre isso, porque Adrian parecia o tipo que mete processos em cima de quem
o aborrece, de modo que, Tina não sabe, Sean liga para seu colega, Tony, que conhece
outro cara, o Ray. Ray é um brutamontes selvagem; então, Tony dá uma palavrinha com
Ray, que tem uma empresa de segurança, fornecedora de leões-de-chácara para boates e
essa coisa toda, foi do Exército, fisioculturista, é um cara grandalhão, tipo cem quilos,
muito ameaçador e você pode pagá-lo para dar avisos a pessoas que fazem burradas, e
ele enviará alguém. Sean conta a Ray sobre Adrian e Ray odeia espancadores de
esposas, é a pior coisa, ele chama a si mesmo de o equalizador, e dois de seus homens
aparecem na porta de Adrian às duas da madrugada. Eles invadem e prendem as mãos
de Adrian com um cinto, e Adrian grita que chamará a polícia. Ray diz, com suavidade,
que Adrian não falará, a menos que Ray mande, Ray é a pessoa que decide quem deve
falar ali, ele está se danando para a polícia e, além disso, a polícia não dá a mínima para
ele e fica claro que Ray sabe onde Adrian vive e Adrian saberá quando ele estiver
vindo. De qualquer forma, há mais uns dez deles pelas ruas, e então Adrian fica no mais
completo silêncio e eles destróem o carpete de sua sala e metem um lenço em sua boca.
Então, o tiram de casa, OK, e o levam no quatro-por-quatro preto de Ray que tem
assentos de couro. Sim, as pessoas se cagam lá dentro e Adrian se borra todo! E o troço
fede! Eles levam Adrian a este lugar parecido com um calabouço, como uma cela, mas
pior, e eles o alertam, Sean disse para não o machucarem, apenas alertarem e Ray, Ray
pode levantar um homem pelo pescoço com uma mão, tem mãos como pedações de
carne — como um grande bife, em vez de um ossinho da sorte de galinha ou talvez o
músculo de seu polegar seja um treco realmente gigantesco, eu não sei. Bom, mas não
importa, só que Adrian ficou com eles por três horas e depois eles o jogaram nu na
estrada, na frente de seu escritório e Ray falou com Tony que falou com Sean ontem e
disse que Ray achava que Adrian não teria coragem de sair contando isso para ninguém.
Ou de aborrecer a irmã de Sean novamente.
Minha nossa senhora... Adrian teria feito melhor se tivesse atendido aos pedidos
gentis de Tina.
Sem nenhuma surpresa, penso em Tina pelo resto da tarde. Peço, mentalmente,
que ela saia bem de tudo isso. Talvez um dia ela olhe para trás e imagine como isso
pôde acontecer. Imagine. Ser tão cega sobre a verdadeira natureza de uma pessoa.
Menosprezar seus crimes como atos involuntários, como se fossem ataques epilépticos!
Ser tão otimista que, enquanto está sendo assassinada, sorri ao mesmo tempo em que lhe
enfiam a faca. Sento-me e fico pensando na extensão da loucura de Tina. Então percebo.
Estamos ambas lamentando relacionamentos que desejávamos, mas não podemos ter.
Não consigo entender por que Tina amou Adrian, entretanto ela o amou.
Quanto a mim, amo e sempre amarei Tom. Porém, no momento, meus
pensamentos não dizem respeito a ele. Estou pensando no outro homem de minha vida.
Penso a mesma coisa, vezes sem conta, como uma ladainha. Lembro que nunca fui a
queridinha do papai e que agora jamais.. serei.
CAPÍTULO 44
Quando um relacionamento termina, as pessoas sempre declaram "não são as
grandes coisa que importam, e sim as pequenas". Se o relacionamento em questão fosse
o de Marcus e Michelle, eu não hesitaria em concordar. Mas, no meu caso, as coisas
pequenas estavam ótimas. O relacionamento com Tom rompeu-se por causa de algo
grande — minha infinita estupidez. No entanto, agora, são as pequenas coisas que
acabam comigo.
Por exemplo, abro o Observer, leio a primeira linha de um relatório escrito por
um jornalista que viajou ao Ártico, com um navio do Greenpeace, dou uma olhada na
fotografia que acompanha a matéria, vejo a legenda "um urso polar, morto de fome,
pede comida ao pessoal do navio" e irrompo em lágrimas. Compro um grande pacote de
batatas fritas no supermercado, enfio logo seis na minha boca e penso, "hmm, não estão
muito crocantes", enfio mais três apenas para ter certeza, penso "essas batatas estão
com um gosto esquisito", espio no saco e vejo o que parece uma enorme barata
esmagada, mas, provavelmente, é uma massa de batata podre e preta. Tenho flashback
com isso o dia inteiro e não consigo comer meu chocolate Dime.
Quando visito mamãe, percebo um cartão dobrado na mesinha lateral. Parece um
convite para uma boate dos anos setenta, abro e vejo uma foto desbotada, de um homem
bronzeado e de uma mulher bonita sorrindo, dando espaguete um ao outro, na boca —
meus pais, vinte e cinco anos atrás) comendo em um restaurante brega, em Portugal. A
dor aumenta, quando percebo que ela deve ter procurado muito por isso, em um
momento — uma hora? um dia? uma semana? — de solidão. Tenho a imagem de minha
mãe remexendo desesperadamente em caixas no sótão, em busca dessa recordação e,
embora tente evitar, esse pensamento não me abandona.
Faz muito tempo que não falamos sobre meu pai. É como se, após meses lutando
com isso, ela tenha se retirado em sua dor. Sei que a tristeza cresce dentro dela, como
um cisto, mas tenho medo de tocá-lo, porque pode estourar em uma onda histérica e sou
incapaz de terminar o que comecei.
— Talvez você devesse fazer outro jantar com os amigos — Lizzy sugere.-. —
Isso poderia alegrá-la.
Suspiro, lembrando daquele primeiro jantar — feito em favor de mamãe, durante
minha fase de assistente social e à qual compareceram, sob agonia, Lizzy, Tina e Luke.
Tudo ia bem, até que Luke decidiu esconder o cheesecake de Lizzy na bolsa desta, "de
brincadeira".
— Lizzy, minha mãe ficará alegre por cinco minutos, depois irá para casa e se
sentirá ainda pior. Além disso, não tenho outros amigos além de você. Tenho apenas
duas cadeiras.
Ela responde:
— As pessoas podem sentar-se no chão, em almofadas!
Digo, rapidamente:
— Isso não daria certo. Tenho só uma almofada em casa.
Ela insiste:
— Você e eu, Tina e Luke e, bem, sua mãe. Seria muito legal.
— Seria horrível — falo. — Funcionou naquela vez, porque todos sabiam que
não teriam que fazer isso novamente. Seria como, ah, não sei, como tentar recriar os
Beatles. Lizzy não vê ligação e insiste. Ignoro-a e pergunto — Então, será que Brian
seria forçado a comparecer à esta noite de tortura ou teria um atestado médico provando
que não pode ir?
— Não estamos mais juntos — ela diz, em tom leve. — Terminei.
— O quê? — eu grito. — Por quê? Por que não me contou? Como ousou! Não
me contar, quero dizer!
Ela explica que terminou ontem e iria me contar, mas que estivéramos falando
sobre eu e Tom, Tina e Luke.
Eu e Tom. Até chegar à mesma frase em que ele faz meu sangue correr rápido.
Isso é triste, muito triste. Suspiro e exijo uma explicação.
— Foi algo que ele fez? — pergunto.
— Mais ou menos — ela diz.
— Algo ofensivo? — sugiro.
— Mais ou menos — ela repete.
— Que a ofendeu pessoalmente? — eu investigo.
— Sim — ela confirma.
— Repugnante? — indago.
— Uma coisa horrível — responde.
— Algo do qual sua própria mãe se envergonharia? — pergunto, retorcendo-me
com uma repulsa agradável.
— Definitivamente — ela diz.
— Jesus! — minha mente é inundada por cenas selvagens de orgias de tai chi e
uma briga na loja pelo último macacão. — O que ele fez, afinal?
Lizzy faz uma pausa.
— Você achará que eu exagerei — ela diz, hesitante.
— Não, não acharei — asseguro.
— Sim, achará.
— Elisabeth! — grasno. — Olhe para mim! Estou agoniada por não saber!
Termine com isso! Fale!
Sinto gotas de suor sobre meu lábio superior. Detesto quando as pessoas dão a
entender que revelarão algo e então se fazem de desentendidas, dizendo que, se falarem,
serão julgadas.
— Tudo bem — ela diz, com relutância —, mas apenas se você...
— Prometo! — digo, em voz aguda. Uno minhas mãos como se rezasse e faço
uma expressão inocente. Lizzy cai na minha e revela que deu o fora em Brian — o
gentil, generoso, querido Brian, que lhe compra figos e beija sua mão — porque irritouse
com o som que ele fazia ao comer. E eu, que me achava superficial...
Houve um tempo em que me sentiria reconfortada por esta revelação, pensando
algo como: "Viverei solitária e morrerei sozinha, mas, vejam só, pelo menos não sou a
única infeliz". As notícias, porém, não causam nem uma ondinha no meu poço de
sofrimento. Para falar a verdade, sinto pena de Brian. A punição parece-me
desproporcional ao crime cometido.
— Será que não adiantaria pedir-lhe para mastigar em silêncio? — pergunto.
— Ah, mas não é só isso!
Não resisto:
— O que mais, então?
Ela bufa e diz, irritada:
— Seu jeito de engolir era horrível.
Mais tarde, em casa, tento descobrir o funcionamento peculiar da mente de
Lizzy.
— Olhe só, Helen — digo, em voz alta, para a sala silenciosa — ela não se
importaria com a solidão. Na verdade adoraria. Lizzy ama sua própria companhia.
Apenas depois que digo as palavras, percebo. Também não me importo. Depois
de escutar a racionalização, maluca ofertada por Lizzy, o silêncio de minha própria
companhia é um alívio.
Coloco para tocar um CD da KD Lang e passo o resto da noite apagando cada
traço de Jasper da minha casa (pequenas manchas de espuma de barbear no espelho do
banheiro, dois exemplares de Country Life sobre o vaso sanitário, três pedaços amarelos
de unha cortada no chão da sala e — no armário da cozinha — uma caneca da
Universidade de Oxford, comprada em uma loja de presentes na Leicester Square). Às
onze da noite, sinto-me melhor. Percebo que se não posso ter Tom, não quero ninguém,
apenas eu mesma. Por um segundo, considero a idéia de desligar o telefone, como
símbolo de minha nova independência. Depois penso "não seja louca". Vou cedo para a
cama e leio C de Cadáver.
No dia seguinte, ligo para minha mãe e a convido para um café em minha casa.
— Você não precisa de mim agora que sua casa está pronta — são suas
primeiras palavras.
— Mãe, sabe que isso não é verdade — eu digo, dura. — Se fosse assim, por que
a convidaria?
Há um silêncio solene, antes de ela responder:
— Não sei. Precisa de mais cadeiras?
Sua obstinação deveria frustrar-me, mas isso não acontece, porque acho que ela
agora precisa disso. Nossa lua-de-mel precisava acabar um dia. Não que eu planeje um
retorno à disfuncionalidade. Digo, em tom falsamente animado:
— Na verdade, convidei-a só pelo prazer de sua companhia, mas detestaria se
você se sentisse na obrigação de vir.
— Estarei aí às cinco — diz, rapidamente.
Ela aparece, pronta para a batalha. Eu sabia que a paz era temporária. Ofereçolhe
café ("apenas se não contiver cafeína" — mas meu café tem cafeína), ofereço-lhe
chá ("apenas se for Earl Grey" — não é), ofereço-lhe água ("apenas se for mineral" —
mas não, é da torneira mesmo). Então, lembro que a água da torneira contém minerais,
de modo que exclamo "tudo bem!", e lhe sirvo um copo. Quando apresento a água, ela
cheira, com suspeita, e a empurra para longe.
— Não vai me oferecer nada para comer? — ela pergunta.
— É claro — falo, em tom ofendido, tentando recordar se comi minha barra de
chocolate ou se ainda está na bolsa. —. Espere um segundo.
Corro até o quarto, derramo o conteúdo da bolsa no chão e agarro o chocolate da
pilha de entulho. Desembrulho-o (parece mais elegante), coloco-o no centro de meu
melhor prato (o melhor dos dois) e o apresento a mamãe, com um floreio. Ela
inspeciona-o a distância, curvando levemente seu pescoço, mas sem mover nenhum
outro músculo — exatamente como o Gorducho inspeciona ração felina vagabunda.
Digo, rapidamente:
— Isto é algo muito refinado, de qualidade superior...
Ela interrompe-me com:
— É uma barra de chocolate Dime!
Minha expressão decepcionada faz com que ela sorria pela primeira vez e
acrescente, rudemente:
— Bernadette Dickenson sempre come uma na hora do almoço e tem doze
cáries.
Considero esta pequena informação como uma oferta de paz e digo:
— Não parece muito feliz, mamãe.
Ela reage, como se eu tivesse dito um palavrão.
— Feliz! — ela diz, cuspindo a palavra. — Feliz! Não, não estou feliz! Estou
extremamente in-feliz! Meu marido está morto! Como posso estar feliz? Sou uma
viúva! Toda a minha vida está destruída!
Lamento, com um arrepio:
— Desculpe-me, escolhi mal a palavra.
Minha mãe arregala os olhos. Depois diz, agitada:
— Seu pai fez aniversário e você nem me ligou!
Pergunto:
— Por que não me ligou, então?
Sinto que estou ficando tensa.
Ela cruza os braços e vocifera:
— Não pode me criticar, estou deprimida demais!
Ranjo os dentes:
— Tentei vê-la duas vezes e você estava ocupada! Achei que, se quisesse falar
comigo, ligaria! Sabe, como as pessoas adultas fazem!
Minha mãe reage com um pequeno susto indignado, como se eu a tivesse
esbofeteado. Sinto-me mal imediatamente. Lamento gentilmente:
— Desculpe, mãe. Não queria chateá-la mais do que já está. Sei que datas
especiais e fins-de-semana são difíceis!
Ela responde, cansada:
— Não são as datas especiais e fins-de-semana. São todos os dias.
— Ah, mãe — digo, triste. Inclino-me e toco seu braço. Ela cobre os olhos com
as mãos, chorando. Faço uma careta e espero. Depois de mais ou menos seis minutos
(uma eternidade, em termos de choro), ela pára. Diz que passou três horas na Internet
espiando uma sala de bate-papo para enlutados.
— Oh — eu digo, preocupada. — Isso não a fez sentir-se melhor?
Minha mãe sacode a cabeça como um cachorro saindo de um lago.
— Foi terrível! — ela exclama. — Todo mundo foi baleado! Todos tinham
mortes piores que a minha! — novamente exclama. — Muito, muito piores! Senti-me
uma fraude! Então, uma cristã disse para nos voltarmos a Deus e todos começaram a
brigar com ela!
Acho aconselhável mudar de assunto rapidinho.
— Mãe — falo, buscando em mim um grão de sabedoria e, na pressa,
encontrando só as palavras banais —, o luto é algo particular e interno. Ninguém pode
dizer que sente dor pior que a sua, porque eles não sabem. Assim, talvez não seja bom
comparar. Talvez seja melhor falar com pessoas que a conhecem. Você pode sempre
falar comigo.
Ela aperta minha mão em silêncio, funga. Depois, ri, entre as lágrimas, e diz:
— A única pessoa de quem eu gostava era Emma, do Kansas. Sua filha
adolescente morreu em um acidente na fazenda, velaram-na com o caixão aberto e um
dos amigos da garota olhou-a e disse "apesar de morta, ela está bonita...!", Foi -corno
quando a mãe de Harold Reel contou-me que eu deveria estar aliviada, porque o
divórcio era pior.
Rio, chocada, e exclamo:
— Pelo amor de Deus!
Depois, rimos juntas pela insensatez de algumas pessoas.
Começamos a falar sobre papai. Minha mãe conta-me sobre seu primeiro
encontro. Ele levou-a a um restaurante francês, onde comeram escargôs e tiveram
intoxicação alimentar.
— Fiquei com diarréia por uma semana! Estava morando em meu primeiro
apartamento minúsculo e minha mãe insistiu que eu voltasse para casa. Seu pai teve que
me levar a mais três bons restaurantes, para compensar aquele primeiro!
Ela chora, emocionada com a recordação.
— É claro que minha mãe não acreditou que fosse a comida! Pensou que eu
estava com enjôo de grávida. Minha própria mãe achou que eu estava sendo
avançadinha! Não disse isso a mim, é claro, mas fiquei espiando do alto da escada e a
ouvi murmurando isso para meu pai. Morrie costumava dizer que minha mãe tinha um
sussurro que poderia estourar tímpanos! Ah, ele me fazia rir. Apesar disso — ela franze
a testa, quase para si mesma, e posso jurar que está imersa em seu mundinho —, jamais
consegui fazê-lo colocar sua xícara na pia. Nunca! Nem pensar em falar com ele quando
havia uma partida de golfe na televisão! Eu, então, dizia "mas golfe não tem nada para
ouvir!".
Minha mãe ri e digo:
— Mãe, ele não falava conosco quando qualquer coisa estava passando na tevê.
Ele era pior que Nana! Lembra-se quando ele ficou em casa para assistir ao torneio de
Wimbledon e entrei correndo na sala, para mostrar-lhe uma caneca que havia feito na
aula de cerâmica — quantos anos eu tinha? Oito? Corri para a frente da TV; ele perdeu
um match point, então franziu a cara e disse "isso está tudo torto! Tem a forma de uma
pinha! Como é que se pode beber numa caneca dessas?" Joguei a caneca no chão e com
para meu quarto.
Minha mãe inclina sua cabeça.
— Não lembro disso — diz.
Ela acaricia minha mão e diz, suavemente:
— Não tome isso pessoalmente, querida. Ele podia ser muito rude, às vezes. Eu
o repreendia por isso. Como quando ele disse a Vivienne que o casaco de mink dela
fedia — ela suspira. — Ah, Helen, sinto saudade dele. A dor está sempre lá. Você
entende? Em determinados dias, dá um alívio, mas logo vejo os óculos dele em uma
gaveta e ela volta, como uma vingança.
Concordo em silêncio. O que mais posso fazer?
Minha mãe suspira novamente.
— Ah, bem — diz, dando uma grande mordida na barra de chocolate —, este é
o preço que se paga por amar.
Penso sobre o que ela disse, muito depois de sua partida. (Vivienne deve ir a sua
casa para aconselhá-la sobre o que usar para a premiére mais recente de seu filho
Jeremy. "Não sei para quê", minha mãe resmunga "se são todos vermelhos e com
lantejoulas!")
Sinto que estou pagando o preço do amor, apesar de ele voltar voando para a loja
muito antes de eu poder usá-lo.
CAPÍTULO 45
Mamãe não foi ruim em seus cuidados maternos porque quis. Ela apenas não
sabia como ser melhor. Seu apoio tem sido errático, para dizer o mínimo. Quando eu
tinha onze anos, ela achou que estava fazendo grande coisa, ao faltar ao emprego uma
tarde para me ver competindo em uma prova de natação na escola. Ela foi e eu fiquei
em terceiro lugar. Éramos apenas quatro nadadoras.
— Tinha certeza de que venceria — ela disse, enquanto eu me atirava,
encharcada e derrotada, no carro, ao voltarmos para casa.
Alegrei-me um pouquinho com esta mostra de fé, mas, então, ela acrescentou:
— As outras pareciam tão esqueléticas! É uma vergonha ter se saído tão mal.
Cautelosa, após mais de duas décadas, ainda hesito em lhe contar sobre Tom.
Sou delicada demais para lidar com seus consolos traiçoeiros. Entretanto, quando cedoe
confesso, minha mãe é surpreendentemente otimista:
— Ele voltará rastejando! — diz. — Todos acabam fazendo isso!
Sugere que eu saia com ela para fazermos compras.
— Seria bom você usar roupas mais coloridas — sugere. — Não me admira que
pareça um pano de chão.
Embora estejamos mais íntimas, sua capacidade para ricochetear de confortadora
para aniquiladora ainda me deixa perplexa.
Quando não estou sendo insultada por meus parentes, curto minha amargura
dentro de casa. Acrescentei um abajur à sala, ímãs sem graça à geladeira, então minha
casa parece mais aconchegante e mais minha a cada dia. Gosto de estar dentro dela.
Aproveito cada chance de ficar em casa, porque não me sinto no clima para festas. Se
chego a ver meus amigos, faço isso durante o dia (eles também não estão muito em
clima de festa).
Por falar nisso, ontem vi Tina. Voltou ao trabalho e, embora parecesse frágil e
nervosa, a primeira coisa que disse, quando me viu na sua frente, foi:
— Tudo bem, cara de pastel?
Dei um sorriso imenso e respondi, alegre:
— E aí, sua vadia horrorosa?
Depois, abraçamo-nos, emocionadas.
Mais tarde, saímos para tomar um café e ela disse que se sentia mais forte.
— Então, devo depreender que Luke ainda está cozinhando para você — disse,
brincando, olhando para seu rosto magro.
Para minha surpresa, Tina falou, com fervor:
— Aquele homem é uma preciosidade. Todos têm sido ótimos, especialmente
você. Os policiais foram gentis. Eles me deram uns materiais impressos. Nunca
esquecerei o que você fez, Helen. Só Deus sabe que eu precisava dessa força. Eu... não
consigo nem falar sobre isso. Não posso. É horrível demais. Talvez daqui a algum
tempo.
Ela continua:
— Luke. Não sei o que teria feito sem ele. É alguém com quem se pode contar,
porque não tem sido fácil. É assustador sair para o mundo novamente. Parece loucura,
mas eu me sentia segura com Adrian. Eu... não sei o que ele tem feito, mas sinto medo.
Estou quase resignada. Às vezes, penso que se sobrevivi a tantos espancamentos,
poderia sobreviver a mais um. Mas, Luke diz que não verei Adrian de novo. Ele tem
confiança nisso. Chego a acreditar nisso. Deveria sentir-me feliz, entretanto não tenho
certeza de meus sentimentos. É como se houvesse um vazio, onde deveria estar a
emoção. Não sei se poderia ter suportado sem Luke. Não dá nem para dizer. Qualquer
mulher merece um Luke em sua vida.
Afirmo, humilde:
— Não, Tina, você merece um Luke.
Sem querer parecer melosa, acrescentei:
— Um Luke com boa higiene e algum vestígio de bom senso, ao vestir-se.
Mas ela disse-me, pensativa:
— Ele é legal.
Senti-me malvada, instantaneamente. Tentando parecer brincalhona, porém
desejando obter informações sérias — perguntei:
— Ah, então é assim, é?
Embora Tina insistisse que "não era assim" e que planejava permanecer solteira
por um longo tempo, soube que era apenas uma questão de tempo até ser isso. Hoje pela
manhã, enquanto estou concentrada em minha torrada com marmelada, penso: "Por que
não pode ser assim comigo?" Diria que sou sempre a dama de honra, não a noiva, mas
jamais fui, realmente, uma dama de honra. Como as damas de honra ousam queixar-se!
Elas não sabem a sorte que têm, em seus vestidos fofos de cores suaves!
Enquanto penso na ingratidão de algumas pessoas, ouço o som de algo
deslizando por baixo da porta. Acho que é mais uma conta de arrepiar os cabelos.
Marcho escadas abaixo para sofrer outro prejuízo financeiro e vejo um grande envelope
branco no chão. Eu o rasgo, abro e inspeciono seu conteúdo. Um bilhete rabiscado:
"Querida, olhe o que encontrei!" Um cartão de aniversário com cara de antigo. A
ilustração é de um filhote de pingüim usando um gorro de lã, lenço no pescoço e
segurando uma flor (como sempre fazem os pingüins). Na mensagem, as palavras, Para
você, Papai, em seu Aniversário. Abro o cartão e meus olhos ardem. "Para o querido
Papai", uma menina pequena escreveu em sua caligrafia mais caprichada. "Com muito
amor e beijinhos e abraços e os melhores desejos, muito amor da Helen."
Espero até as nove e trinta e dois da manhã, depois ligo para Laetitia.
— Alô — sussurro, forçando uma leve tosse. — Laetitia, é Helen. Estou com
uma dor de cabeça de rachar e — pareço sufocada —, sinto-me bem doente — fungo.
— Terei que — bufo — me arrastar até o médico. Sinto-me horrível.
Espero, temerosa, que ela exclame: "Não minta para mim, sua relaxada! Esteja
aqui em um minuto ou está no olho da rua!" Mas ela diz apenas:
— Não venha trabalhar, até que saiba oficialmente que não é nada contagioso.
Concordo, desligo e exulto:
— O oscar de melhor atriz vai para senhorita Helen Bradshaw, por um
desempenho brilhante! Ta nããã!!!....
Depois, recolho o que preciso, agarro meu cesto de lixo de metal do banheiro,
entro na Toyota e vou veloz para o cemitério.
Havia esquecido como é silencioso ali. Silencioso, exceto pelo ronco insolente
de um avião a cada cinco minutos. Venta menos do que no dia do funeral de meu pai,
mas o céu está cinza, não azul. Faço um levantamento da paisagem desolada de lápides
brancas e suspiro. Quem imaginaria. Espero que ninguém me veja carregando o cesto de
lixo. Nem usando esse terninho ridículo. Olho em volta, depois agacho-me e leio a
inscrição em uma lápide de aparência muito antiga: "assim Deus quis". Suponho que se
pode dizer que isso é que é resignar-se ao destino de outra pessoa.
Ando um pouco, abraçando o cesto de lixo e espiando os túmulos de
desconhecidos. Enrugo a testa em "não se foi para sempre, apenas antes de nós".
Malditos otimistas. Decido que "vigiai, pois não sabeis quando virá o senhor" é
desprezivelmente alarmista. Sinto dor, ao ler a inscrição para Joey Steadman, que partiu
aos vinte e dois anos: "Para o mundo, era apenas mais um. Para nós ele era o mundo."
Depois de muito tempo, chego ao túmulo de meu pai.
Finalmente, fico de pé e olho para o nome. Maurice Bradshaw, gravado em
granito. Meu primeiro pensamento é mas que raios o nome do meu pai está fazendo
neste túmulo? Olho para Maurice Bradshaw por um longo tempo e franzo a testa.
Lentamente, estendo a mão, toco a pedra fria. Corro meu dedo ao longo de cada letra
solene. Maurice Bradshaw. Sua fileira está quase cheia, com pessoas que morreram
depois dele. Mas o túmulo, em si mesmo, parece nu. Olho um pouco mais e vejo um
dente-de-leão lutando para sobreviver no solo. "Ele odeia amarelo", murmuro. Algo
sobre estar ali imobiliza-me. Sinto que poderia ficar olhando, até escurecer.
Olho e olho. Depois, ajoelho-me no chão perto do túmulo de meu pai, remexo na
bolsa, em busca do bloco de anotações e da caneta, então começo a rabiscar. Os
pedregulhos machucam meus joelhos através das calças, não me importo. Gosto de
sentir suas pontas. Depois de terminar, minhas calças estão úmidas de lama e meus
joelhos dóem. Limpo a roupa o melhor que posso — acabo por espalhar a lama — e leio
o que escrevi.
Querido papai,
Espero que você esteja bem.
Eu não estou. Sinto sua falta e tudo tem sido horrível. Gostaria
que tivesse sido diferente. É claro que a família não tem ajudado
muito. Detesto o primo Stephen, Ele desgraçou a si mesmo.
Estava tão ganancioso na leitura do testamento que Nana
precisou mandá-lo calar a boca. Ele tinha maionese no canto
da boca, foi nojento. Ninguém conseguia olhar além de si e ter
o mínimo de compaixão e decência. Nana Flo não ouve falar
sobre a tia-vó Molly há muito tempo. Mas, estamos tentando
com Nana e acho que ela está um pouco melhor. É uma mulher
forte. Mamãe é um pouco menos forte, porém acho que você
sentiria orgulho dela (exceto pelo negócio do pulso cortado).
Ela foi genial, quando mudei para minha casa. Você gostaria
de saber que moro em um local bom.
Perdi a confiança quando você morreu. De repente, eu não sabia
mais quem eu era. O que fazer. E, se você quer saber, não me sinto
bem no momento. Talvez sua morte... sua morte sua morte você está
morto você morto não posso acreditar por que você não volta por
que por que por que quase um ano e ainda não melhorei. A maioria
das pessoas não entende. Decidem como me sinto, deveria sentirme,
poderia sentir-me, em relação ao modo como mamãe sentese...
Sou vinte e nove anos mais jovem que ela, portanto subtraia
luto à potência de dois, acrescente um para... Não quero queixarme.
As pessoas têm boas intenções. É inútil tentar convencê-las de
que não é como elas pensam. Como tentar convencer Nana que
pessoas gays não fazem isso para maltratarem seus pais. Mas mamãe
e eu estamos nos dando melhor, o que já é bom.
Gostaria que tivéssemos nos dado melhor, pai. Eu magoei-me
por você me chamar de Grinch. Tentei tudo o que podia com
você, papai. Eu amei você. Queria que você também me amasse.
Se você não se importa que eu diga, era como tentar forçar a
Toyota em uma subida íngreme. Eu queria dizer no hospital,
que adoro você e estava dizendo, mas por dentro. Espero que
morrer não tenha sido ruim demais, deixando-nos e afundando
sozinho no escuro. Espero que você jogue golfe com o vovô e o
conheça. Deve ser bom vocês encontrarem-se, finalmente.
Tenho imaginado o que fiz para que você não se importasse
muito comigo, mas agora vejo que você se preocupou, à sua
maneira. Mamãe diz que você era rude em geral, de modo que
é bom saber que não era só comigo. Sem ofensa, ainda bem
que nem todos os homens são como você. Alguns esforçam-se
mais. O que me faz sentir mais otimismo.
De qualquer modo, espero que você não se importe por eu
dizer isso, mas já era hora. Ainda amo você. Sinto-me melhor
agora. Com muito amor, beijos, abraços e melhores desejos
muito amor da Helen.
(Lembra-se?)
Suspiro profundamente e dobro a carta. Depois, volto minha atenção para o kit
da morte. Abro o saco cinza de papel e coloco a carta dentro. Ponho ali o Mercedes
(para levar papai até um clube de golfe no céu), o relógio de ouro e prata com "Rolex"
impresso em seu mostrador (ele gosta de ser pontual), a folha dourada chinesa e as notas
do Banco do Inferno (para pagar um drinque no bar). As cinco páginas finais que tirei
do livro Single & Single, de John le Carré (ele não conseguiu terminar a leitura). Enfio
ali os óculos, a caneta e o cigarros. Então, escrevo o nome de meu pai no saco, anoto a
data em uma folhinha de Post-it e também ponho isso no saco. Depois o fecho.
Olho em volta para ver se alguém está observando, mas o lugar está deserto.
Furtivamente, acendo as três varetas de incenso — agacho-me atrás da lápide para
abrigar-me do vento — e penso "pai, pai, pai". Depois percebo que — merda —
poderia estar chamando o pai de qualquer pessoa, de modo que corrijo rapidamente para
Maurice Bradshaw, pai de Helen, Maurice Bradshaw, pai de Helen. Depois de cinco
cheirosos minutos, enfio as varetas no chão e acendo a vela vermelha.
— OK, pai — sussurro, sentindo-me apenas um pouquinho tola. — Estou lhe
mandando dinheiro, cigarros e uma Mercedes, porque sei que apreciará, mesmo se não
são muito zen. Também lhe enviei páginas do John le Carré, mas por favor, leia minha
carta antes. Muito bem, agora estou enviando.
Firmo a vela na terra, bem atrás da lápide para que não se apague. Depois,
imagino: "Será que ateia- fogo em tudo como uma piromaníaca ou banco a controlada e
queimo uma coisa de cada vez? Bem, poderia ser um pouco mais organizada. Devo isso
àquela lista estúpida. Derramo tudo no chão. Depois ateio fogo no saco, primeiro, para
que tudo o que eu envie tenha transporte. Dobro o dinheiro chinês como Lizzy mostroume,
jogo-o no balde de metal e acendo um fósforo.
O dinheiro queima e se curva todo, com brasas de cor laranja rastejando-se sobre
ele, como insetos, devorando o papel até transformá-lo em pó. Olho, enfeitiçada. O odor
é doce, poderoso, quase enjoativo. Estou nervosa pela possibilidade de a fumaça alertar
os coveiros (ou seja qual for o nome que tenham os profissionais que cuidam do
cemitério) e continuo espiando sobre a lápide para ver se alguém marcha em minha
direção brandindo seus punhos fechados. Não há ninguém. Depois acendo as notas do
Banco do Inferno". Observo e aguardo até que viram cinza antes de acender os cigarros
(espero que não se tornem apenas pontas ao chegar lá). Então, acendo a caneta, o
relógio, os óculos, já que não quero um incêndio descontrolado. Meu pai morreria de
vergonha. Depois é a vez da Mercedes, que consome cerca de três horas — não é o que
esperaria de um carro veloz. Depois John le Carré. Por fim, minha carta.
— Agora, posso fechar a porta do carro fúnebre, que finalmente vai partir —
digo, ao vento.
Meus olhos estão úmidos pela fumaça e outras coisas e os enxugo com o dorso
de minha mão antes de perceber que está suja. Depois, olho para baixo e vejo que o
resto de mim também está imundo. Pareço uma batata queimada. Meu rosto está quente
e coça, por ter ficado debruçada sobre a cesta de metal, minha garganta arde e meus
joelhos estão úmidos e gelados. Mas não me importo.
Meu coração corre, enquanto vejo as cinzas voando.
CAPÍTULO 46
Dirijo até minha casa em transe, com chamas saltitando na frente de meus olhos,
minhas mãos pretas de fuligem. Dirijo rapidamente, invencível. Não tenho pensamentos
tangíveis em minha mente, apenas uma imagem de cinzas dançando no ar como mil
borboletas brancas libertadas. Corro até o espelho para ver se pareço diferente, e um
moleque imundo olha para mim. Quando respiro fundo parece-me que estou presa em
um colete de aço. Levo lentamente minhas mãos ao peito e sinto meu coração batendo
freneticamente. Fico imóvel. A dor da perda, vivendo em meu íntimo como um
demônio, cutucando minha alma, parece mais leve.
Depois, quando afundo no sono, não há perseguidores subindo as escadas para
me pegar.
Mas, o destino compensa a ausência de pesadelos. Abro meus olhos de manhã e
sinto, gemendo, que não estou bem. Meu primeiro pensamento é que peguei algo do
túmulo. Todos aqueles germes subindo da terra. Meu segundo pensamento é que estou
sendo punida por mentir a Laetitia, em cujo caso Deus não tem senso de justiça e seu
gosto para mulheres é terrível. Meu terceiro pensamento é que acabei de dar um grande
passo em termos de exorcizar fantasmas — no mínimo, sacrifiquei uma Mercedes — e
deveria sentir-me mais leve, cheia de energia e vida.
Em vez disso, sinto-me tão saltitante quanto um canguru morto. Sento-me na
cama e tento um delicado "hhhuhhh". Suspeita confirmada. Minha garganta está
inflamada, minha cabeça dói e meus olhos foram lavados com amônia.
Deixo-me cair no travesseiro e fito o teto. Maravilha. No dia seguinte à visita ao
túmulo de meu pai, sou assombrada pela moral entediante da história do menino que
gritava lobo! Estou velha demais para isto, penso, enquanto mudo de posição com
dificuldade, sentindo dor. Aprendi todas as lições que precisava com os contos de fada
(graças a Chapeuzinho vermelho cresci com medo de passear em bosques).
— Estou fraca como um filhotinha de gato — digo com pena de mim mesma,
enquanto o Gorducho aterrissa em minha cama com a força de um prédio pequeno.
Vou vacilante à cozinha e sinto ânsia de vômito, enquanto abro uma lata de
ração. Depois, ligo para meu trabalho e deixo uma mensagem rouca. Ligo também para
o médico e exijo uma consulta de emergência.
— Ele está de férias — gorjeia a recepcionista idosa. — Você terá que se
consultar com o médico de plantão, Dr, Sands. Pode ser às onze e dez da manhã?
Apóio-me pesadamente no balcão da recepção, por um minuto inteiro, antes de
uma das três mulheres atrás dela parar de tagarelar e se dignar a voltar os olhos para
mim. Estou prestes a dizer, docemente, "Sra. Cerberus, sinto incomodá-la, mas estou
prestes a falecer aqui mesmo", quando toda a vida sai de sua voz e ela me pergunta:
— Posso ajudá-la?
Anuncio quem sou e me despacham para a área de espera. Sento-me tão longe de
todos os doentes quanto possível. Há uma revista Hello na mesa, mas o simples
pensamento de lê-la exige muito de meu intelecto. Engulo com cuidado — parece que
estou engolindo uma bola de golfe — e fecho meus olhos.
Depois de uma eternidade, uma voz áspera chama:
— Helen Bradshaw!
Pulo e entro rapidamente no consultório. O médico de plantão e eu olhamos um
para o outro, e meu coração encolhe-se. O Dr. Sands tem uns noventa e três anos, tufos
de cabelos loiros e brancos, costas encurvadas e modos desdenhosos. Começo a
descrever meus sintomas e ele me interrompe, como se eu fosse simplesmente burra e
tola demais para ser ouvida. Examina minha garganta e resmunga:
— Nada aí.
Tenho vontade de exclamar:
— O quê? Não tenho esôfago?
Mas não tenho força. Seu menosprezo tira meu fôlego.
Controlo-me e digo com firmeza:
— Meu pai morreu recentemente, tenho estado tensa e triste, e acho...
O médico interrompe:
— Quando?
Cerro meus punhos e digo:
— Em julho — e acrescento — estou cansada demais e não tive tempo para
pensar, e talvez se eu pudesse tirar uma semana de folga...
O Dr. Sands corta-me novamente e diz, em tom de zombaria:
— Uma semana não adianta nada! Posso prescrever-lhe antidepressivos.
Agora é minha vez de interrompê-la.
— Não quero antidepressivos — rosno. — Quero lidar com isso, não amortecer
minhas emoções!
Olho sua face encovada e vejo o tédio agudo. Sei que estou perdendo meu
tempo.
— Ah, eu dou um jeito — falo, e saio.
Sinto-me explodindo de raiva a caminho da Toyota, depois vou para casa na
velocidade do som. Tenho pensamentos nada caridosos em relação ao Dr. Sands — por
exemplo, que ele será atropelado e morrerá em um futuro próximo. Bode velho
desprezível.
— Já está com um pé na cova — digo, maldosa, para o volante de meu carro —
Quer que todo mundo vá junto.
Quando chego em casa, consegui aliviar um pouco minha agressividade. Atirome
na cama e adormeço.
Acordo às três da tarde, sentindo-me sedada. Engulo para testar minha garganta.
Não está tão ruim. Se pelo menos minha cabeça não parecesse cheia de algodão... Não
posso voltar ao trabalho, simplesmente não posso. Não consigo nem pensar em ir. Não
posso encarar a realidade de levar roupas de Laetitia à lavanderia. Só preciso descansar.
Deito-me novamente e vejo as chamas das notas do Inferno queimando. Parece que
imaginei tudo. Cato a blusa que usei ontem do chão e a cheiro. Está cheia de terra e
exala incenso e fumaça. Imagino se papai recebeu seu pacote. Não posso evitar um
sorriso ao imaginá-lo abrindo o pacote. Talvez devesse ter mandado algo também ao
vovô Gérald. Não. Papai pode dividir o que recebeu com ele. Não posso entusiasmar-me
demais. É como alimentar os pombos na praça. Alimente um e você é um inglês gentil.
Alimente dois e isso inicia o caos — antes que você perceba, sua cabeça está cheia de
cocô de pássaros.
Mais tarde, ligo para meu trabalho. Escolho as palavras com cuidado. Não
aumento a verdade. Simplesmente distorço-a um pouco.
— Laetitia — declaro solenemente —, fui ao médico e ele falou em me receitar
antidepressivos. O negócio é que, mesmo assim, eu teria que me afastar do serviço e não
quero deixá-la na mão. Especialmente porque você está com poucos funcionários. Mas,
tenho certeza de que, se tirar esta semana para repousar, estarei bem. Será que está bom
assim, para você?
Laetitia concede-me esta semana e a próxima, sem um gemido de reclamação.
Lizzy é a primeira a quem ligo.
— Helen! — ela diz, em voz de trovão. — Como você está?
Alarmada com seu tom — que sugere que minha morte é iminente —, respondo:
— Estou bem, por quê?
Ela diz, rapidamente:
— Laetitia disse ao gerente administrativo, que contou à diretora de beleza, que
me falou que você está instável e precisa ficar afastada para não contaminar o escritório!
Como eu já havia previsto isso, digo alegremente:
— Laetitia é uma vaca gorda e ridícula que deveria manter sua maldita boca
fechada!Silêncio. Lizzy sussurra:
— Então é verdade?
Exclamo:
— Não, não é! Estou bem. Só estou cansada. Queimei seu kit da morte ontem.
Me fez bem.
Lizzy quase explode no outro lado, de tanta alegria.
— Isso é maravilhoso! — diz, com um gritinho. — Não foi sensacional?
Espiritual? Intenso? Uma liberação?
Lizzy — entre uma gama de outros talentos — é mestre dos superlativos e me
arrependo imediatamente de o ritual não ter sido tão extremo, em termos emocionais,
quanto especificado.
— Foi bem intenso, mas eu estava nervosa, com medo de ser pega pelo zelador
do cemitério — sei que Lizzy está prestes a perguntar um "o quê?", e não agüento
pensar em iniciar este tipo de conversa, de modo que acrescento rapidamente:
— Foi bom. Sinto-me muito melhor por dentro, mas também enferma, se você
me entende. Estou com a garganta inflamada, provavelmente por causa da fumaça. É
por isso que estou em casa.
O gene dos Blytons entra em ação e Lizzy suspira.
— Ah, bom para você! A dor provavelmente é psicossomática. Tenho certeza de
que você tirou toneladas de seu peito.
Ocorre que detesto esta expressão. ide modo que exclamo:
— Espero que não — com os peitinhos que tenho não posso me dar a este luxo.
Lizzy ignora-me e recomeça:
— Apenas relaxe e consolide o que você conquistou.
Isto faz com que me imagine como uma galinha poedeira. Bocejo e digo:
— Planejo dormir.
Lizzy, que está mais evangélica que o normal, diz:
— Está bem, mas não deve dormir mais que nove horas. Se chegar a dormir e
ainda estiver letárgica, pode estar com deficiência de ferro. E você sabe alguma coisa de
Tom?
Respondo, seca:
— Não — e pergunto. — Você... sabe por onde anda Brian?
— Ah, não! — diz Lizzy, que não tem o hábito de se prender ao passado.
Nos dias seguintes, recebo telefonemas de minha mãe ("ar puro, querida, e beba
leite"), de Tina ("vou lhe enviar uns salgadinhos"), de Luke ("vi Tom uma noite dessas e
ele não mencionou seu nome. Tina mencionou o meu?") e de Nana Flo.
— Cecelia me contou que você está mal — ela diz. — Será que tem a ver com
sua menstruação?
Se não estivesse já deitada quando respondi ao telefonema, teria desmaiado de
choque. Já que estou deitada, sinto vontade de me enterrar no chão como um verme.
— Não — respondo, fazendo uma careta. — Estou com a garganta inflamada,
mas agora estou bem, Nana. Tirei uma folga do trabalho.
Mas não de meus parentes — penso, em silêncio.
Há uma longa pausa, de modo que digo:
— Gostaria de lhe fazer uma visita. Talvez, quando eu melhorar.
Nana responde, curta:
— Estarei aqui.
Depois de falar com Nana, fico em minha própria companhia por dez dias.
Deixo de esperar que Tom ligue, o que significa parar de levantar o gancho do telefone
para ver se está funcionando. Durmo dez horas por noite e ainda tiro uma soneca à tarde
(principalmente porque Lizzy disse que eu não deveria fazer isso) e, pela primeira vez
na vida, arrumo minhas unhas. Isso é uma chatice sem fim.
Também passo muito tempo na Heath Extension. Levo A Taste for Death e um
cobertor, um pãozinho, um tubo de spray para cabelos, como arma contra bandidos, e
me sento em um banco de madeira para comer, ler e observar as pessoas passeando com
seus cachorros. Olho muito para o céu. A noite, pratico com meus dardos na sala —
comprei os pregos para pendurar o alvo — ao som de Sandpipers. Surpreendentemente,
a música Guantanamera faz com que pense em meu pai — só posso imaginar que ele
gostava dela. Inicialmente, isso me faz sentir vontade de chorar, mas toco-a vinte vezes
seguidas e me torno imune (escutar a letra também ajuda). Dois dias antes de meu
retorno ao trabalho, me canso de gritar "cento e oiteeentaa!" e decido ser mais ativa.
Ligo para Tina e pergunto se quer patinar no gelo.
— Patinar no gelo? — ela pergunta, em um tom que me faz imaginar se eu disse,
por engano, "moldar jarros de barro". Eu lhe digo que vi isso na TV, que será charmoso
e divertido. Ela rende-se, mas "apenas porque você tem estado reclusa nos últimos
dias". Duas horas depois, nós duas estamos deslizando pelo Queens Ice Rink incertas e
ineptas, e sendo cortadas por crianças de oito anos.
— Estou pegando o jeito agora — Tina diz, com os braços sacudindo como um
moinho.
— Estou pegando o jeito, com calor e quase desmaiando de cansaço — digo,
sem fôlego, depois de nove minutos de movimentos incertos. — Preciso de um bolo de
menta. Acho que vendem ali no bar!
Nós rodamos até a borda, o que me leva a uma descoberta excitante:
— Olhe! Consigo patinar de costas! — grito, agarrando as barras laterais e
andando para trás.
— Quero fazer aquilo lá! — ela declara, apontando para uma madame
adolescente em uma saia brilhante, de botas brancas, que foi para o centro da pista e gira
como um pião.
— Vá, então.
— Vá você. — Ela retruca.
— Mas — falo, humilde — ela usa botas brancas e estou com essas coisas azuis
sem graça! Ela está no pedaço mais liso do gelo. O meu tem ondulações. E estou usando
uma jaqueta fofa e calças acolchoadas. Estou incapacitada.
Tina diz:
— Estar vestida como uma rosquinha não tem nada a ver com isso. Não dê
desculpas.
— Ah, é? — exclamo. — Muito bem! Você me provocou! Olhe só!
Mais ou menos três segundos depois estou caminhando meio cambaleante até o
vestiário com um ego ferido e traseiro úmido e frio. Tina vem atrás de mim, zombando
corno um monstrinho:
— Suas, hahaha, pernas literalmente, hahaha, voaram para longe de, hahaha,
você! — exclama, rolando de rir. — Parecia uma palhaça!
Em minha voz mais melindrada, respondo que não sou um pingüim e, portanto,
vou para casa vestir roupas civilizadas, beber um chocolate quente e andar como um ser
humano normal — e, se ela não tem nada de agradável para dizer, sugiro que não diga
nada.
Mas, a verdade é que me diverti bastante.
CAPÍTULO 47
Ontem eu voltei à GirlTime; paguei minha conta de luz; liguei para Nana Flo
para ver se ainda estava viva; levei a estagiária para tomar um café depois que Laetitia a
fez chorar; pedi ao banco para aumentar meu cheque especial (meu pedido foi
recusado); comprei alvejante e sacos plásticos; corri por três lojas em uma procura
malsucedida por um fone de ouvido para o celular; marquei uma consulta com o
oftalmologista (os números nas placas dos carros estão borrados novamente); compareci
à reunião de pauta (sugeri quinze idéias para mostrar serviço à Laetitia); reservei hora
para uma revisão na Toyota — e pensei: agora entendo porque o papai sempre dizia
que os anos que passamos na escola são os mais felizes de nossas vidas.
Fico pensando como é cansativo ser adulta e recordo meu tempo de escola.
Lembro-me de ler em voz alta Henry IV, e ser motivo de risos de toda a classe de inglês,
por pronunciar a palavra "discretion" como discrichum. E de detestar basquete. Depois
penso: me dê minhas dívidas e um carro quebrado todos os dias. Pelo menos, devo e
dirijo como quero. E jamais terei que me sentar para outro exame. Na escola secundária,
a professora dizia "quando você pegar a folha do teste, quero que olhe à sua volta e
sorria de um modo confiante para você mesma. Isso ajudará a superar a oposição!".
Segui este conselho e tenho certeza de que a oposição teria sido eliminada, se todos os
meus colegas também não estivessem sofrendo e sorrindo, para si mesmos, como quem
sabe tudo. Isto derrotou-me e tirei nota 2,2. Nunca mais. Graças a Deus ignorei meu pai
e não tentei ser advogada (a reputação desses profissionais já é suficientemente ruim).
Tomo um grande gole de meu café expresso e me sinto calma. Como se tivesse
libertado algo. Laetitia está concentrada lendo Tatler, de modo que começo a fazer uma
lista das pessoas de quem recebo ordens desde os dez anos de idade: minha mãe, meu
pai, Nana Flo, nove professores, Michelle... A soma dá treze. E de quem recebo ordens
aos vinte e sete anos: o Gorducho, a Laetitia, o banco, a garagem e Lizzy,
ocasionalmente. Isso dá quatro e meio, mas parece com oitenta e quatro e meio. O que
significa que, tecnicamente, sou quase dois terços menos comandada do que era
dezessete anos atrás. Tenho praticamente o dobro de controle. Não, três vezes mais
controle! Sempre fui uma porcaria com frações, outro ponto em favor do presente. Devo
ir mais ao cinema.
Jogo a lista na gaveta, depois volto a preocupar-me com o primeiro artigo do
qual Laetitia já me encarregou, sob coerção. Ela relutou muito e me fez lembrar de um
cocker spaniel que vi, uma vez, sendo arrastado para a sala de cirurgia de Tom, com o
traseiro grudado no chão. Tina viu-nos sair da reunião e me enviou um e-mail,
comentando que Morticia parecia vermelha de raiva e pronta para um assassinato. Será
que isso era por ter perdido sua injeção contra a raiva? Respondi: "Antídoto para a raiva
foi inútil, devido à potência do veneno da fera. Morticia está irada porque após anos de
humilde submissão, eu, a monitora de desodorantes, estou começando a lutar."
Tina mandou-me um e-mail, respondendo: "Gosto disso, mas animais enjaulados
podem escapar; portanto, tenha cuidado. O número de apoio às vítimas está aqui, se
necessário." Em um surto de exuberância, retruquei: "Guarde para Morticia. Sua
vassoura quebrou! Seus planos foram por água abaixo!" Esse foi um pensamento tão
excitante (embora não verdadeiro), que golpeei a tecla "enter" com um pank alto, e
Laetitia levantou seus olhos.
— O que você está fazendo? — perguntou, irritada.
— Pesquisas para meu artigo sobre homens agressivos — respondi, contente.
Laetitia inflou-se como uma serpente com TPM, mas voltou a Tatler sem
nenhuma palavra mais.
Tina e eu tomamos um drinque depois do trabalho para, como ela diz, celebrar.
Não tenho certeza. Laetitia preferiria publicar um artigo escrito por um macaco-aranha
do que qualquer coisa redigida por mim, de modo que ainda estou longe de merecer
uma comemoração.
— Mas desde quando você se importa se ela lhe dá crédito ou não?
— Desde que enchi o saco de me vestir como um tampão — digo.
Ela assente com ar de sábia e diz:
— Faz sentido.
Eu acrescento, sombria:
— Preciso de um aumento. Estou farta de não ser capaz de manter meu estilo de
vida.
Tina retruca:
— Bem, um artigo não faz milagres!
— Tina! — exclamo, indignada. — Estou sendo positiva em face da desgraça.
Você não está ajudando em nada.
Ela responde:
— Desculpe-me. O que eu quis dizer é que você deve ir em frente. Persista e
talvez em um ano você consiga um aumento que lhe permita mudar a marca de seu
desodorante.
Faço uma careta e digo:
— Nunca se sabe. Talvez tenha um artigo impresso na revista, e outras revistas
queiram me contratar.
— Isso seria legal — mas seu tom é de "isso seria impossível".
Encurvo meus ombros, banquinhos de bar são feitos para corcundas.
— Como você se sente sobre Adrian, agora? — começo, mas ela sacode a
cabeça e morde com força um cubo de gelo.
— Não quero pensar nisso — diz.
Vejo tensão em sua mandíbula e falo, apressadamente:
— Você tem notícias de Luke?
Isso traz um leve sorriso ao seu rosto:
— Estou resistindo. Ele é uma gracinha, mas preciso de um tempo.
Suspiro e comento:
— Mas, ainda assim, deve ser ótimo ter alguém interessado.
Depois penso no que acabei de dizer e remendo:
— Quero dizer, se ele for um cara legal.
Tina dá-me uma cutucada brincalhona — com seu sapato Prada de ponta de
metal —, que parece tão brincalhão quanto um chute nos joelhos.
— Ai!
Ela exclama:
— Você tinha um cara legal interessado. Não entendo por que vocês não estão
juntos. E parece tão tranqüila sobre isso. Você deixou de sentir tesão por ele?
Penso em Tom e sinto uma fisgada de dor.
— Não! Não deixei de sentir tesão por ele! Estou definhando! Não percebeu
que não como mais minhas barras de chocolate? Mal consigo comer para ter energia e
cuidar de minha casa! A única razão para não estar choramingando por aí é que cansei
de fazer isso.
— Não me diga! Eu não havia percebido! Por que você não disse?
Minha falsa coragem dissolve-se e falo, tristemente:
— Não há o que dizer. O olhar que ele me deu quando Jasper disse que era meu
namorado e morava comigo!... Você não desejaria esse olhar para ninguém, nem para
Laetitia. Foi tão ruim como comer uma uva plástica na bandeja de frutas de Vivienne.
Tina parece irritada e diz:
— Mas Jasper estava apenas dormindo no chão! Você ligou para Tom, para
explicar?
Suspiro e digo:
— Pensei em ligar para ele um milhão de vezes. Mas, não há explicação
plausível.
Tina bate sua garrafa de cerveja no balcão com tanta força, que urna bolha
pequena sai voando do gargalo.
— Sim, claro que há! — exclama.
— Não há. Não está em questão se transava ou não com Jasper. O negócio é que
o convidei, e tudo o mais.
Tina franze a testa:
— Mas por quê?
— Tem a ver com o fato de eu precisar ver Jasper lá. Foi uma tolice.
Ela diz, alto:
— Pelo amor de Deus! Tom é um cara legal, perdoará um...
Interrompo, dizendo:
— Não, não é assim. Não é. Eu cometi muitos erros. Sei que ele é... legal, mas
não é isso. Tem a ver com... — eu faço uma pausa, em busca da palavra correta —
confiança.
Tina cai em silêncio. Sentindo-me um pouco palhaça e desejando usar algo mais
apropriado, talvez um chapéu colorido com pompom, digo:
— Não tem tanto a ver com ele não ser capaz de confiar em mim, mas sobre eu
não ser capaz de confiar em mim mesma.
Tina parece nauseada e diz:
— Pare com isso, você está me deixando emocionada.
Mas, diz isso com gentileza.
Depois, faz o possível para alegrar-me, tagarelando — o que me faz sentir como
se fosse uma criancinha resmungona sendo balançada no joelho. Tina assistiu Homens
de Preto em vídeo na noite passada e, não conte a Luke, trocou Rob Lowe por Will
Smith, que definitivamente é o protótipo do homem. Isto, como ambas sabemos, é a
deixa para que eu diga o que tenho dito durante a última década: descobri o potencial de
Will Smith quando ele atuava em Fresh Prince of Bel-Air, e se alguém tem o direito à
sua perfeição, sou eu e apenas eu.
— Eu lhe disse um milhão de vezes e, de qualquer modo, Rob é como o Escort.
Seria uma desgraça abandoná-lo depois de todos esses anos, apenas porque você teve o
gostinho de um Porsche Boxster
— Apenas conferindo — Tina diz, com um sorriso.
Depois que ela sai, fico sentada no banco do bar e imagino se devo ligar para
Tom. Como fantasia, isso é fantástico. Imagino um encontro lacrimejante, eu correndo
em sua direção em um grande campo florido, meus cabelos — loiros, para a ocasião —
balançando-se atrás de mim com a brisa leve, o sol brilhando dourado sobre nós, Tom
apaixonado, sorridente e alto, eu pisando em superfícies planas, não em trilhas de bois, e
sem vagabundos naquele campo. Mas se tornasse isso realidade, o sonho se desfaria.
Campos floridos e ventos suaves à pane, não quero anunciar-me e ser esnobada. Mas,
garotas que desmaiam jamais conquistaram os príncipes loiros. Bem, na verdade, elas
sempre conquistam os príncipes loiros, mas atualmente os cavaleiros estão mais
preguiçosos e as damas, mais assertivas. Pelo menos, se ligasse, saberia. Talvez seja
melhor saber e definhar com convicção. Ligarei para ele.
Daqui a pouquinho.
Se for para casa agora, será uma questão de honra ligar para Tom. Assim, farei
outra coisa. O quê? Uma caminhada? Melhor não, eu poderia torcer meu tornozelo. O
cinema... Ah, droga, a esta hora todas as sessões já começaram. Ir à casa de Nana?
Existem limites para o masoquismo. Depois de cinco minutos, durante os quais percebo
que não tenho imaginação, decido por algo que jamais fiz antes. Jantarei em um
restaurante, sozinha. Diferentemente daqueles homens sem amigos, que inevitavelmente
pedem paellas e depois sujam seus ternos cinzentos com elas, eu não pedirei nada
desconhecido, para proteger-me de olhares horrorizados de pessoas acompanhadas.
O lugar não pode ser Spud U Like. Precisa ser algo adequado. Preferivelmente,
um lugar da moda. Minha solidão precisa ser alardeada. Irei a pé até o Garfunkels,
entrarei com a cabeça levantada e exigirei a mesa central! Não — ainda melhor —, uma
cadeira na janela! Deixe que eles tentem empurrar-me para um cantinho escuro e os
processarei por discriminação. O poder de Alex Simpkinson cairá sobre eles como uma
tonelada de intimações — e comerei três pratos do cardápio! Prolongarei minha
permanência lá, mastigando cada bocada cinqüenta vezes! Rirei alto de meus próprios
pensamentos, se considerá-los divertidos! Helen Bradshaw levará a bandeira das
mulheres que jantam sozinhas!
Então um homem parrudo esbarra em mim, ao passar, e percebo que estou
sentada em um banquinho altamente desconfortável, em um bar, com minhas bochechas
vermelhas (todas as quatro, imagino) e as palmas das mãos suadas. Acho que tive um
jantar virtual! É como se tivesse feito isso! Até poderia ir para casa, agora.
Forço-me a entrar no primeiro lugar que vejo, que por acaso é o Noodle Bar.
Entro com energia, com olhar fixo, tremendo, e jogo-me zangada em uma mesa junto à
janela como uma grande boneca rosada. Peço macarrão simples ao garçom,
extremamente educado, ignoro todos, olho fixamente para meu celular até que a comida
chega. Engulo os noodles em um minuto, enquanto finjo excitação com o cardápio, e
me sinto como a maior panaca no universo inteiro. Pago em dinheiro e saio voando.
Triunfo!, penso, bufando com o esforço de me afastar do Noodle Bar mais
rapidamente do que jamais corri de qualquer lugar em toda a minha vida. Agora posso
ligar para Tom.
Luto para acalmar minha respiração. Inclino minha cabeça de um lado para o
outro até sentir meu pescoço como se fosse concreto. Canto "Ia Ia!" para garantir que
minha voz está funcionando. Ai, estou fedendo a alho. Com calor, com mau hálito e
dedos trêmulos, procuro o número de Tom em meu livrinho de endereços.
— Acalme-se! — digo para mim mesma. — Você acabou de comer sozinha em
um restaurante! O resto é moleza!
Coloco o caderninho no sofá, e sento em seu braço. Depois, aperto os números.
Brrrrt-brrrrt! Brrrrrt-brrrrtl Brrrrt-brrrt!
Encolho-me de medo.
— Alô?
O telefone parece subitamente escorregadio em minhas mãos.
— Alô, Tom?
— Quem é? — Pergunta ele.
Engulo em seco e fecho os olhos. Nunca saltei de pára-quedas, mas acho que
deve ser assim.
— Você não lembra? — brinco, debilmente. — Sou eu, Helen.
Silêncio.
— Tom? — sussurro.
— Sim? — sua voz é gelada.
— Bem... sobre Jasper, não foi o que você pensou — começo. Posso ouvir o
desespero repulsivo em minha própria voz.
— Eu estou... — ele diz ao mesmo tempo.
— Por favor, escute! — suplico. Suplicar sempre funciona.
— Helen... — Tom diz.
— Jasper e eu não estávamos... — digo. Ele disse meu nome. Isso é um começo.
— Helen! — Tom diz novamente.
— Sim? — inspiro, esperançosa.
— Não.
— Não, o quê? — digo, em voz pequena.
— Me desculpe — ele diz.
— Por quê? — falo, rapidamente. Acho que não entende. Deveria ser mais
específica.
— Eu... — ele começa a dizer..
— Eu gostaria de convidá-lo para sair! — exclamo.
Silêncio.
— Tom? — pergunto, em um sussurro.
— Obrigado — ele diz —, mas você chegou tarde demais.
E desliga.
CAPÍTULO 48
Desde que servi de babá de emergência para os vizinhos, e o filho deles mordeume,
acredito firmemente que não há bem que não seja punido. A verdade sádica
confirma-se vezes sem conta. Ultimamente, percebi que o Gorducho está interessado na
pequena vira-latas cinzenta da casa ao lado. Infelizmente, sua barrigona laranja apavora
a gatinha. Assim, esta manhã tentei dar um banho em meu gato para melhorar suas
chances, ele uivou, se retorceu e saiu correndo.
— Sou sua dona! — gritei, correndo atrás de seu traseiro fujão. — Não aceitarei
ser tratada como mera conhecida!
Esta tarde sofro a retaliação por ter sido civilizada com Vivienne. Minha mãe
liga para mim em meu trabalho, enquanto estou polindo meu artigo "Como derrotar um
espancador (quando você tem vinte e quatro anos)": No momento, ele tem 8.236
palavras, de modo que precisa de uma ligeira edição. Laetitia já está resmungando sobre
a falta de espaço no próximo número.
— Querida? — diz minha mãe, em uma voz que reconheço como aduladora.
— Sim?
— Querida, preciso pedir-lhe um favor. Mas é um favor divertido.
Minha descrença não desaparece assim tão fácil, mas digo:
— É mesmo?
Minha mãe lança-se do que é obviamente uma introdução bem-preparada:
— Domingo que vem, Vivienne oferecerá um chá à tarde.
As palavras "chá à tarde" explicam o tom de minha mãe. Os chás da tarde de
Vivienne são lendários. Ela adora oferecer chás vespertinos. Eles lhe dão a desculpa
para estrear um novo vestido vermelho com lantejoulas. Seu marido adormece em sua
poltrona de couro cor de salmão, presumivelmente esgotado pelo custo da festinha.
Vivienne flerta com seu acompanhante bonitão atual, dando a cada convidado, assim,
fofocas suficientes para a semana inteira — e peneira a multidão em busca de uma
mulher jovem para ser a esposa de seu filho.
É aí que eu entro no chá da tarde. Não que Vivienne chegue a cogitar, em seu
pior pesadelo, em unir Jeremy e eu — minha mãe, certa vez, ouviu de uma amiga
comum que Vivienne considera-me inapropriada para o casamento, porque sou
"volúvel" demais. Isto ofendeu minha mãe, mas por mim está tudo bem, já que
considero Jeremy inapropriado para o casamento por ser "gay" demais. Mas, a mãe de
Jeremy recusa-se a admitir isso para si mesma. Então, eu e o chá da tarde estamos
ligados um ao outro porque até as pessoas volúveis têm amigas.
"Tem serviço de bufê" — minha mãe acrescenta, como se precisasse.
— Mãe, a comida sempre vem de fora. A última vez que Vivienne assou algo
foi quando dormiu na mesa de bronzeamento. Vá em frente.
Pausa. Depois, minha mãe diz:
— Um bufê quente e frio.
Suspiro.
— Muito bom. Qual é a pegadinha desta vez?
Vivienne sempre insiste em um elemento supérfluo. Ano passado foi Morris
dançando, e todos abaixo da idade de aposentadoria saíram cedo. No ano anterior, foi
um grupo de amigos atores de Jeremy fazendo improvisação. Lembro que meu pai disse
a um homem usando apenas uma malha colante para sumir da sua frente.
Minha mãe diz, indignada:
— Não é nenhuma pegadinha! É pintura com os dedos. Eu sugeri!
Estou pensando em como essa idéia é docemente típica e terrível, quando minha
mãe tagarela:
— Ela adoraria se você e todos os seus amigos e amigas viessem, porque ama
estar cercada de pessoas jovens!
Essa é uma mentira tão deslavada que emito um grito de protesto, antes de poder
conter-me.
— Mãe, você sabe que isso não é verdade! Vivienne detesta pessoas jovens,
porque a fazem sentir-se velha! A menos que essas pessoas sejam homens e durmam
com ela. A única razão pela qual somos convidadas é porque quer desencalhar Jeremy
— embora ele esteja perfeitamente feliz, agora que saiu do armário!
— Querida — minha mãe diz. — Vivvy não acredita nessas coisas. Está
decidida a casá-lo. Ela foi muito útil quando você estava procurando empreiteiros, não
foi? E eu fui imprescindível, você mesma disse!
É verdade que disse, e mais tarde percebi que meu elogio serviria para
chantagens até o fim dos tempos.
— Vivvy foi muito gentil comigo, de modo que isso é o mínimo que podemos
fazer. Será bom ir a uma festa, não quero ir sozinha com todas aquelas pessoas casadas
dizendo "você ainda não encontrou alguém?". Não vejo Luke e Lizzy há séculos e não
quero ficar com Nana Flo grudada em mim o tempo todo. Quero ir com um bando! E,
então, você vai?
Respondo:
— Sim, vou. Será legal ver Jeremy. Terei que ver se os outros estão disponíveis.
Ligo para você depois.
Minha mãe diz:
— Está bem, eu ligo para você.
Quando diz isso, sei que ela quer muito mesmo que todos nós compareçamos ao
chá da tarde de Vivienne.
— Pintura com dedos! — diz Lizzy, excitada. — Que criativo! Parece uma
delícia! Eu tinha uma consulta longa com meu osteopata craniano, mas posso remarcar.
Tina diz:
— Uuh, festa de velhos! Eu sei que não vou gostar.
Depois Tina e eu damos uma risadinha silenciosa, quando vemos a expressão
nada divertida de Lizzy.
— Por favor, venha... — peço. — Não serei perdoada se você não vier.
Lizzy exclama:
— Eu vou! Adoro esse tipo de coisa!
Respondo, em minha mente "acho que você não vai adorar nada", mas em voz
alta digo:
— Lizzy, será ótimo. Tina? — Esta enruga seu nariz, lembra-se que Lizzy está
presente e o desenruga, antes de ser repreendida.
— É boca-livre — digo, sem vergonha.
— Não sou uma estudante sem um centavo! — Tina responde, irritada.
— Desculpe — digo depressa, e depois. — Você fará isso por mim? Ah, por
favor? Por favoooorr! Por favorzinho?
— Ah, mas que droga, tudo bem, eu vou! — ela grita.
— Yesss! — exclamo alto, e tento bater minha mão contra a mão de Lizzy em
um gesto de vitória, que não sabe o que fazer e estraga tudo, fazendo com que nós duas
pareçamos estúpidas.
— Não, é assim sua tonta! — digo, agarrando seu braço e lhe mostrando o que
fazer.
Tina cobre os olhos e pede:
— Parem com isso! Nem posso acreditar que vocês são minhas amigas. São tão
infantis!
Isso é uma afronta!
— Não sou infantil! — digo, indignada. — É ela! Eu sei como fazer o gesto...
Tina olha para mim sob seus cílios longos:
— Querida, o simples fato de você querer fazer isso é embaraçoso. É tão vulgar!
Pare de forçar a barra.
Tina e Lizzy concordaram em ir ao chá. Assim, faço-lhes a gentileza de parar de
forçar a barra.
Tudo o que me resta fazer é convidar Luke. Aqui está minha previsão da
conversa que teremos:
Eu: "Oi, estou ligando para convidá-lo para um chá vespertino domingo que
vem, oferecido por uma amiga de minha mãe."
Luke: "Você está brincando?"
Eu: "Tina irá."
Luke: "Dê-me o endereço.”
Quando chego a ligar para Luke, a conversa evolui como eu esperava. O que me
deixa ainda mais arrasada, porque não previ que Tom teria uma nova namorada, antes
de comer uma refeição ingrata em uma pocilga e ligar para ele.
Tina e Lizzy não demonstraram tanto apoio a mim, e tanto desprezo por Tom,
quanto eu esperava. Lizzy sentiu-se "desapontada" com ele, mas talvez estivesse saindo
com outra pessoa "para passar o tempo". Tina foi ainda mais lerda em suas críticas a ele.
Acho que se lembra como Tom foi gentil depois de abrir a porta de seu apartamento a
pontapés. Disse:
— Você o desiludiu, Helen. — Eu estava prestes a brigar, quando ela
acrescentou, apressada. — Mas ainda assim, ele é um asno.
O moral da história é que estou oficialmente enlutada. Isto tem uma vantagem:
dá-me o direito de receber tratamento especial. Não sou tão estúpida assim. Se não fosse
por Tom, elas não teriam aceito o convite para o chá de Vivienne nem em um milhão de
anos. Nem mesmo se Will Smith e uma trupe melodiosa de monges gregorianos fossem
convidados.
Domingo chega e Tina liga-me para cancelar. Não pode passar um quarto de seu
fim-de-semana com um bando de coroas catatônicos, isso não é muito animador.
— O chá conta apenas como um oitavo de seu fim-de-semana, se você contar as
noites! — argumento. — Luke ficará arrasado... e eu também.
Tina fica em silêncio, de modo que digo, com minha voz começando a zumbir
como um mosquito em um quarto escuro de hotel:
— Ficaremos por vinte minutos, depois iremos ao pub.
Tudo o que Tina diz é:
— Bradshaw, sua mãe não gosta de você. E neste exato momento, nem eu.
Lizzy é a primeira a chegar, chique em uma roupa preta de algodão.
— É lavável, para o caso de me sujar com tinta — ela diz, feliz da vida. — Será
tinta solúvel em água, não é?
Respondo:
— Não sei e não me importo.
Tina aparece às três e meia da tarde, reclamando que a região norte de Londres é
"confusa". Às dezesseis horas, ligo para o celular de Luke. Ele parece agitado e posso
ouvir vozes dando gritinhos ao fundo.
— Não pude sair antes! Logo estarei aí!
— Quem está com você? — pergunto.
A voz de Luke berra orgulhosamente, como uma águia em pleno vôo:
— Marcus e Michelle — cantarola. — Michelle queria vê-la, disse que você
gostaria. Achei que seria uma surpresa agrad... Droga!
Eu grasno:
— Uma surpresa agradável?! O quê? Ver o locatário que me chutou e minha examiga?
Luke faz uma pausa e depois diz:
— Não tenho nada de ruim a dizer sobre, eles estão aqui comigo.
Com isso, as vozes tornam-se mais altas. Eu grito:
— Que bom para você!
E desligo o telefone. Tina e Lizzy me consolam:
— Será que não seria melhor usar saltos mais altos e mais maquiagem?
— Repita para você mesma uma frase auto-afirmadora!
— Quando ela perguntar sobre Tom, diga que você acabou com ele!
— Ou diga "eu suponho que, estando noiva, você acha que as mulheres solteiras
são uma ameaça, porque temos um poder inato...".
O Fiesta de Luke pára neste momento em minha porta.
Michelle sai do carro, toda fofa e desdenhosa, como uma nuvem de algodãodoce.
— Helen, docinho, não a vejo há séculos! — exclama, com seus cabelos e seios
saltando ao mesmo tempo. — Olha só, você parece mais saudável! Engordou um
pouquinho?
Estou tentando desencavar uma resposta mais esperta do que "talvez", quando,
rápida como uma bala de revólver mal-educada, Lizzy retruca:
— Sua grosseira. Helen emagreceu, isso sim!
Tina exclama:
— Mas, Michelle, você é que parece ter engordado! Comendo um pouquinho de
tudo o que gosta, e toda aquela conversa...
O casaco fofo e cor-de-rosa de Michelle treme como se estivesse prestes a
explodir, e ela diz, ríspida:
— Eu nem mesmo toco as coisas que gosto!
Tina olha para o noivo de Michelle, que está parado de pé atrás de sua futura
esposa tão humildemente quanto um cordeirinho pesadamente sedado, e exclama:
— Pobre Marcus!
Para a segurança de todos os envolvidos, vamos à casa de Vivienne em dois
carros.
— Ah, essa não! — digo, irritada com o carro da frente, que passeia pela estrada
a sessenta por hora. — Até parece que ele está dirigindo um carro fúnebre'
— Mas, está tudo bem, não está? — Tina pergunta.
Respondo, nervosa:
— Eu disse a mamãe que a pegaria na frente de casa, às quatro! Ela ficará
furiosa!
Dito e feito. Quando chegamos a Arcadia, vejo um duende irado fazendo uma
dança de guerra na calçada. Quando nos aproximamos, o duende transforma-se em
minha mãe, em um suéter verde escuro e calçados combinando. Nana Flo está sentada
no Peugeot e parece uma vaca ruminando, mas provavelmente o que faz é mastigar uma
goma de menta. Aceno e saio rapidamente da Toyota, cantarolando:
— A culpa foi de Luke!
— Apressem-se! — minha mãe urra, com o rosto vermelho sob uma camada
grossa de base facial. — Todas as iscas para a pescaria já devem ter acabado! Ah! Oi
Luke! Tina! Lizzy! Vocês dois! Meu bom Deus, todos estão aqui! Onde está Tom?
Meu rosto e meu coração viram pedra e Michelle volta toda sua atenção para
mim.
— Ele está cuidando do gato de Helen — Tina diz.
— Está meditando — Lizzy fala.
— Dei o fora nele — digo.
— Pensei que ele a havia dispensado! — Luke diz.
— Ele deu o fora em você? — Michelle diz. — Nossa, deve estar arrasada!
— Você deve estar arrasada — Marcus murmura, ressuscitado como um eco
distante. A única resposta digna de que sou capaz é rir e dizer, em voz de segredo:
— Ele tinha pênis pequeno.
Depois, faço um gesto na direção de Arcadia, prendo meu nariz entre os dedos e
exclamo, anasalada:
— Cubram a retaguarda, estou entrando.
Assustamo-nos todos quando Vivienne abre a porta, feito uma salsicha em um
vestido vermelho justo.
— Nossa, esse vestido parece apertado! — Luke diz, assombrado.
Tina dá um pisão no pé dele.
— Esse seu vestido é de matar! — Michelle diz, maravilhada.
Vivienne reconhece um espírito semelhante e sorri amplamente.
— Vivvy, você tem batom nos dentes — minha mãe diz.
— É Versace — Tina murmura.— Custa no mínimo seis mil.
Nana Flo troca os pés e diz:
— Vamos ficar aqui o dia todo? Minhas pernas estão me matando!
— Ah, por favor desculpe-me, Sra. Bradshaw — Vivienne exclama, com sua
mão cheia de jóias indo até a garganta. — Entrem!
Ela nos leva a uma saleta de mármore, onde somos abordados por uma garçonete
de avental carregando uma bandeja com champanhe.
— Venham para o jardim, queridos. Aqui! — gesticula para uma criatura
bronzeada com dentes fluorescentes. — Zak pegará seus casacos, não é Zak?
Minha mãe parece incomodada e faz um gesto de quem está bebendo muito, por
trás de Vivienne.
— Você tem suco de cranberry? — Lizzy pergunta, educadamente.
— Jamais — Vivienne responde, com frieza.
— Vivienne pretende ser a Raquel Welch das sogras — eu explico, enquanto
vamos para o jardim —, de modo que você acabou de ser excluída como uma esposa
potencial para Jeremy. Você é pitoresca demais.
Aponto para Jeremy, que está conversando com um garçom.
— Nossa, Jeremy é lindo! — Lizzy diz, admirada.
— E legal também — digo, sombria. Lizzy e eu nos retiramos para um canto
mais afastado e observamos o espetáculo.
Vivienne tira uma concorrente que estava pendurada no braço bronzeado de Zak.
A outra retira-se com raiva, fazendo ruído com seus saltos altos, e vai consolar-se
tomando vodca. Michelle e Marcus discutem baixinho, mas acaloradamente, junto à
mesa armada no jardim. Minha mãe flerta vigorosamente com Luke, que se agarra à
manga de Tina como uma lêndea gruda-se a cabelos limpos. Nana Flo come um pedaço
enorme de merengue de limão, depois avança para o bolo de frutas.
— Será que podemos fazer pinturas com os dedos? — Lizzy pergunta, rindo,
depois de observar ao redor por vinte minutos.
— Por que não? — digo com um suspiro e a sigo até a grande lona preta,
colocada de pé contra o muro do jardim, em uma distância segura da estufa de plantas.
O organizador da festa de Vivienne forneceu uma infinidade de tintas de todas as
cores, em vasilhas plásticas, e as colocou em uma fileira bem-feita sobre a grama. Há
também um balde de água com sabão e toalhas de papel.
— Você acha que podemos? — Lizzy sussurra.
— Vivienne ficará feliz da vida! — exclamo. — Mamãe diz que ela quer que
cada convidado contribua com uma impressão de sua mão e faça uma colagem. Depois,
ela emoldurará ou venderá para a Tate.
Lizzy mergulha um dedo vigorosamente na tinta vermelha e, bem no meio da
tela, desenha um coração.
— Que divertido! — diz, alegre. — Vá em frente, Helen, não posso
ser a única!
Olho para o coração de Lizzy e digo:
— Tom pintava.
Lizzy sorri solidária. Eu suspiro profundamente, mergulho um dedo no azul e
acrescento uma flecha do coração.
— Ah, Helen! — Lizzy exclama, de mau-humor. — Não estrague minha arte!
Faço uma carranca e digo:
— Pensei que ser criativo era expressar os sentimentos.
Lizzy mergulha as mãos no roxo e faz uma borboleta de aparência esquisita,
acima do coração.
— Vocês duas não sabem fazer nada! — diz uma voz alegre. — Vou lhes
mostrar como se faz!
Viro meus olhos para Luke, que está excitadíssimo com o alívio de ter escapado
de minha mãe, e digo:
— Afastem-se para que Da Vinci pinte!
Luke mergulha sua mão direita na vasilha de preto e, em grandes letras pretas
desparelhas, que cobrem pelo menos metade da tela, escreve "Luke e Tina para
sempre".
Olho para Tina, que cobre sua boca com embaraço simulado.
— Luke — ela diz —, aqui não é o jardim-de-infância.
Mas, tem o sorriso luminoso de uma mulher que sabe que é adorada. Minha
garganta aperta-se e o pensamento rápido vem à mente: "Luke gostava de mim. " Olho
para ele, que girou e se colocou de frente para nós para receber aplausos. Sua testa está
manchada com um grande borrão de tinta preta. Sua camisa está amarrotada e há uma
mancha de aparência misteriosa junto ao zíper de seu jeans. Olho para meu labrador
humano favorito, mas ele não me vê porque está piscando timidamente para Tina. A
verdade afoga-me em uma onda gelada: eu amo Luke.
CAPÍTULO 49
Se bem me lembro, e provavelmente não lembro direito mesmo, "um cão na
manjedoura" é alguém que não pode usar algo, mas não quer que ninguém mais tenha
aquilo. Acho que expliquei isso a Jasper, depois que ele recusou-se a emprestar-me suas
luvas de dirigir.
— Mas você não sabe dirigir! — eu disse, indignada. — E eu quero ver como é
dirigir usando as luvas corretas!
Jasper insistiu que elas eram grandes demais para mim.
— E daí? Quero só dar uma volta na quadra!
Jasper sugeriu que eu comprasse um par para mim.
— Não seja maluco! — retruquei. — Apenas imbecis chegam realmente a
comprar essas luvas!
Os olhos de Jasper fuzilaram-me e ele disse:
— Não vou emprestar, então não me peça novamente.
Assim, chamei-o de cão numa manjedoura, e ele disse:
— Mas que droga é essa?
Eu disse que achava que tinha a ver com José e Maria procurando uma
manjedoura, na qual Jesus pudesse nascer, e um cão recusando-se a deixá-los ficar em
sua manjedoura.
Jasper insinuou que eu não sabia o que estava dizendo e deu-me um sermão,
dizendo que isso provavelmente era uma alegoria — com Jesus sendo um cordeirinho
etc. No final, eu estava quase gritando de frustração e falei:
— Jasper, não me importo, eles conseguiram a manjedoura no fim, agora será
que você me empresta suas luvas?
Lembro desta briga, em particular, com uma falta total de carinho. Lembro-me
dela porque estou imaginando se sou um cão numa manjedoura. Talvez seja o maior cão
(não literalmente, é claro) na maior manjedoura, no mundo inteiro. Por exemplo, será
que eu quis Tom apenas porque gosto de atenção e egoisticamente não queria que mais
ninguém o tivesse? Será que foi simplesmente paixão? Será que estive obcecada por
Tom, quando o tempo todo amava Luke em meu inconsciente?
Faz sentido. Muitas mulheres apaixonam-se por seus melhores amigos. Em
parte, porque isso significa que vocês realmente se darão bem e, em parte, porque a
liberdade para peidar à vontade realmente atrai. Com um namorado normal, você
precisa conter-se para não fazer isso durante seis meses, no mínimo.
Mantendo meu segredo culpado e o Dayly Mail em meu peito, vou desanimada
para o trabalho na segunda-feira, esperando evitar Tina. Não estou preparada para
respirar o mesmo ar que ela. Felizmente, dizem que estará fora do escritório hoje e que
Lizzy está em uma sessão de fotos. Sento-me em minha mesa como uma funcionáriapadrão
e, na hora do almoço, já reduzi meu artigo sobre homens violentos para míseras
mil e duzentas palavras. Este tipo de coisa é mais fácil quando você se detesta (semana
passada, quando ainda não havia percebido que desejava o homem de Tina, tirei vinte e
três palavras, com dor na alma, mas Laetitia devolveu-me e ameaçou cortar o artigo, a
menos que eu o reduzisse para um «tamanho decente").
Deposito uma cópia em papel em sua mesa e digo, de forma neutra:
— Começarei meu artigo sobre "Como progredir quando sua chefe a detesta"
nesta tarde. Você quer alguma coisa da rua?
Laetitia dá-me um olhar fuzilante e diz:
— Eu mesma posso fazer o que preciso na rua, não sou uma droga de uma
inválida.Olho, sem graça, para a editora cujo filho de oito anos tem esclerose múltipla.
Laetitia segue meu olhar, vê a editora parada junto à fotocopiadora, de braços cruzados,
e empalidece. Hasta ia vista, baby, penso. Aceno para Laetitia e saio dali. Ela não diz
uma palavra; pois sua gafe já disse o bastante. Retiro-me do prédio abafado para o ar
frio.
Ando por Covent Garden como uma alma perdida mas, realisticamente, como
uma turista perdida. Depois de dez minutos caminhando sem rumo, não consigo mais
suportar meu próprio desânimo e tiro Luke de minha mente. Caminho rapidamente até a
Broadwick Street, no Soho. Entro na primeira loja de artigos de pintura que vejo e.
começo a perambular por ali. Azul cor do mar, violeta profundo e preto marfim — os
nomes das tintas são ricamente sedutores, mas sei menos que nada sobre arte e não
consigo escolher. Aquarelas melancólicas ou óleos passionais? Uma tela imensa ou um
pequeno livro de desenho? Um pincel enorme ou um lápis? Verifico o preço de uma tela
grande e — esqueça desmaios porque o que sinto é vontade de morrer.
Menos é mais, digo duramente a mim mesma — apesar de acreditar
fervorosamente que mais é mais —, e pego uma palheta pequena de tintas e uma tela
quadrada. Depois, corro de volta para o trabalho. Laetitia não está em sua mesa e não
reaparece a tarde inteira, de modo que não.. preciso fazer os serviços de rua e ponho
meu trabalho interno em dia. Em uma estimativa conservadora "Como avançar quando
sua chefe a detesta" parece que consumirá nove mil palavras. São seis e dois da tarde, e
estou imaginando se não deveria fazer hora extra, até as seis e dez, talvez, para trabalhar
nele, quando o telefone toca.
— Sim? — digo, sem entusiasmo.
— Helen? — diz uma voz masculina — Você está bem? Sua voz parece a de
uma velhinha.
Sinto-me feliz, preocupada e todinha transformada em uma grande bola tonta.
— Luke! — exclamo. — Como você está?
Ele me diz que está bem, mas. parece tão agitado quanto uma formiga sobre um
bolo.
— O que foi? — pergunto.
— Preciso ver você. Com urgência. Será que podemos nos ver?
O sangue faz ruído em meus ouvidos e exclamo:
— Sim, claro, hoje à noite?
Ele diz:
— Eu a espero na saída do escritório em quinze minutos.
Digo que está bem e então faço três minutos de trabalho extra. Urgentemente. O
que isso quer dizer? Será que Luke percebeu que sou a mulher de sua vida e quer
confessar seu amor eterno? Quer que eu lhe empreste cinco libras? Se sua afeição
voltou-se para mim, ele deve sentir-se horrível em relação à Tina.
Subitamente, lembro-me que meu rosto está oleoso e não tirei minhas
sobrancelhas, de modo que passo nove minutos realizando cirurgia estética de
emergência. Às seis e dezessete da noite dou um passo para trás, para examinar os
resultados, e vejo que pareço exatamente a mesma, exceto que meu rosto não brilha
mais. Galopo para a rua praguejando e colido com força em Luke.
— Nossa! — ele exclama. — Acho que você vai ter que retocar seu blush!
Deveria buzinar ao sair apressada assim!
Então ele ri (sozinho) de sua piada hilariante.
— É melhor irmos ao Punch and Judy! — continua.
"Ha ha, será que estou realmente apaixonada por este homem?", penso,
confusa.Tom não seria tão grosso. Não que seja ruim ser grosso. Tom não tem a
capacidade para ser grosso. O truque do ketchup não foi exatamente sofisticado, mas a
grossura de Tom me faz rir e desejar beijá-lo, enquanto isso não acontece com Luke.
Provavelmente, porque Tom conhece-me o suficiente para compreender que perdôo
graciosamente crimes de grossura contra outros, mas não perdôo, de jeito nenhum,
grossuras dirigidas a mim.
Luke e eu descemos para o caldeirão fervilhante do Punch and Judy, no Covent
Garden, e não consigo falar, tamanha minha confusão. Luke dá um sorriso malicioso e
diz:
— Tenho novidades que você vai gostar!
Ah, meu Deus. Ele levanta-se para pagar-me um drinque e tenho uma sensação
desagradável em minha garganta.
Observo Luke enquanto ele vai aos empurrões até o bar e puxa o traseiro de suas
calças (acho que suas cuecas entraram e ele tenta ajeitá-las). Penso: não, não posso fazer
isso com Tina. Nem agora, nem nunca. Existem algumas regras que não se pode violar,
e não estou falando de usar calças leggings em público. É claro que estou ansiosa para
ouvir a declaração de Luke, já que sou uma mulher que nunca recebe declarações de
amor, nem mesmo por engano. Nenhum homem jamais disse que me ama, e posso
contar o número de cartões de Dia dos Namorados que já recebi com o polegar de uma
das mãos (foi da minha mãe, no ano em que fiz dezesseis anos e decidi que naquele mês
iria fazer o que outras garotas faziam — só que eu mesma tive que comprá-lo, selá-lo e
endereçá-lo). Ainda assim, sobrevivi todo este tempo sem um "eu te amo", e acho que
seria capaz de continuar assim. Não deixarei que Luke faça papel de tolo, seria
gratificante, mas injusto.
Luke acena com uma cerveja na frente do meu nariz e se senta, ainda com um
grande sorriso, parecendo um maníaco. Ninguém sorri em Londres! Enquanto senta-se,
salto como um salmão cujo traseiro acabou de ser mordido por uma truta, e tagarelo:
— Luke, sei o que você vai dizer, mas acho que é melhor eu não ouvir isso. O
que você fez por Tina na festa de Vivienne foi muito carinhoso, se bem que exagerado,
e se fosse você agüentaria, porque ela está a fim, e apenas precisa de tempo. Tudo bem,
OK, então tchau.
Enquanto fujo da multidão, dou uma olhada par trás uma vez, e vejo Luke, que
ainda agarra as duas garrafas de cerveja. A expressão em seu rosto é de extrema
incompreensão. Mas, curiosamente, não há nenhum traço de devastação. Desabo em um
táxi, ainda agarrando a caixa de tintas que comprei hoje. Seguro a sacola da loja de
materiais com força e penso, Nada de Bud para mim, obrigada — apenas um "bloody
mártir" com gelo. Eu bem que poderia queimar-me na fogueira. Ei, talvez se me
incinerar em um saco, meu pai consiga pegar-me na outra ponta.
— Sr. Bradshaw, um pacote para você. Tivemos que abri-lo para verificar o
conteúdo. Está rotulado "sua filha", mas parece um monte inútil de cinzas. Será que
devemos enviar de volta ao remetente?
Imagino a raiva do meu pai, por ser incomodado em seu golfe celestial, e afundo
em meu banco. Ah, eu e papai estamos bem, mas ainda me sinto rejeitada. Rejeitei os
avanços de Luke com a elegância de uma bailarina com botas Wellington. Estive a um
triz de trair uma de minhas melhores amigas. Bem, pelo menos todo mundo terá uma
vida legal. Sinto um desejo malévolo de aumentar meu sofrimento, de modo que faço o
motorista mudar de rumo.
— Isso é uma surpresa! — Nana Flo diz em voz insegura, abrindo a corrente
pesada de sua porta frágil. — O que posso fazer por você?
Uma questão retórica.
— Não tive muita chance de falar com você na casa de Vivienne, ontem —
grito, para superar o som da televisão —, de modo que resolvi visitá-la.
Nana Flo olha ansiosamente para a tela e diz que vai deixar gravando em vídeo.
— Posso fazer-lhe um chá? — pergunto, esperando que ela diga "não".
Minha voz soa estranha porque estou respirando pela boca. Nana não acredita
em arejar a casa e seu cantinho fede, até pelos parâmetros de Luke.
A chaleira está ao lado, na pia — ela diz.
Seus tornozelos estalam enquanto ela agarra a revista de programação da TV e
se ajoelha dolorosamente no carpete.
— Será que posso ajudá-la, Nana? — digo ansiosamente, mas ela me manda de
volta à cozinha.
Cinco minutos depois, Nana está de volta à sua cadeira reclinável e estou
sentada como um papagaio empalhado, na beira de seu sofá.
Mas sei por que estou aqui. Quero falar com Nana sobre o vovô e mal posso
esperar.
Talvez, eu seja uma parasita que deseja aliviar a própria dor, sugando a dor de
minha vó. Talvez, se entender uma fração de sua perda, a minha possa diminuir. Ou
talvez deseje apenas falar com minha vó porque estou cansada do silêncio em nossa
família.
Compreensivelmente, ela está surpresa por meu interesse. Quer saber "por que"
quero saber. Conto-lhe uma história vaga, mas picante, sobre ter perdido o amor de
minha vida (a história é vaga porque não tenho certeza se o amor de minha vida é Tom
ou Luke, mas o clichê cobre bem qualquer possibilidade). Suspeito que Nana não
acredite em mim, seus bufos repetidos são um sinal disso, mas, pelo menos, ela começa
a falar.
Florence e Gerald conheceram-se em um ponto de ônibus. Ele lhe disse que era
um solteirão convicto e, três dias depois, olhou nos olhos azuis e imensos de minha vó e
a pediu em casamento. Foram noivos durante dez meses, já que o pai de Florence não
permitiria que casassem antes — e viajaram para Torquay, na costa sudeste da
Inglaterra, em lua-de-mel.
— Havia arame farpado por toda parte, mas eu atravessei e cheguei à água.
Estava tão apaixonada, que chegava à caminhar aos pulinhos — Nana diz, tomando
goles pequenos de seu chá.
Esta imagem é tão diferente do que ela é agora, que olho fixamente para seu
rosto pelancudo e murcho, tentando imaginar minha vó como uma mulher jovem tão
apaixonada que caminhava dando pulinhos. Depois que Gerald morreu, ela soube que
jamais casaria novamente. Engulo em seco.
— Por que não, Nana? — pergunto, fungando.
— Ele foi um marido tão maravilhoso, no curto tempo em que eu o tive... —
responde.
Então, de olhos secos, ela olha direto para mim, que choro em seu sofá, e diz
suavemente:
— Eu não poderia substituí-lo.
Nana é mais esperta do que eu penso. Sabe que parte de minhas lágrimas é por
mim mesma.
— Então, qual é o seu problema? — ela pergunta, voltando a ser bruscamente a
Nana Flo que conheço.
Sentindo-me envergonhada na presença de uma mulher que possui a coragem
que não tenho, conto-lhe sobre Tom e sobre Luke.
— Luke? — ela pergunta, surpresa, com sua voz rachada tão alta e incrédula,
que minha xícara de porcelana treme no pires.
— Isto é absurdo! Aquele tolo de cabelos compridos! Ele não é para você! O que
você está sentindo é só ciúme! Ah, claro, ele é agradável, mas conheço inúteis quando
os vejo!
Enquanto um táxi leva-me para casa, fico pensando por que — mesmo com
novas lentes que me custaram cento e vinte libras — sempre sou a última a ver o óbvio.
Honestamente. Há alguém mais burra do que eu?
CAPÍTULO 50
Há um momento na vida em que precisamos parar de olhar para trás e começar a
olhar à frente, porque de outro modo estaremos andando pela rua um dia e colidiremos
com um poste. Mas não é fácil. Quando meu pai morreu, senti-me como se o tapete liso
de minha existência tivesse sido posicionado cuidadosamente sobre um grande buraco.
Até então, conseguira saltar sobre ele sem problemas, cega à sua presença certa.
Em um belo dia, porém, pisei sobre ele, caí — desci, desci e desci como Alice
em um inclemente País das Maravilhas, agarrando-me precariamente em qualquer coisa
que houvesse no caminho. Tudo transformado em caos, encontrões, colisões e quedas.
Fui consumida pela loucura, pelo turbilhão irracional de emoções vindo do nada. Fui
arrancada da segurança ilusória de minha casinha de papel, engolfada por uma onda
monstruosa que avançou sem aviso em um mar vitrificado, arruinando tudo em que eu
acreditava e me forçando a recomeçar do zero. Como poderia compreender minha sina,
se não olhasse para trás?
Quando olhei, percebi que o luto é uma poça escura e sem fundo e que, ao
chafurdar-me nela por um ano, mal conseguira penetrar sua superfície. Tinha medo de
me afogar. Aprendi a nadar lentamente e ainda estou aprendendo. Agora percebo que, às
vezes, é possível seguir em frente apenas se você olha para trás. Mas, não para sempre.
Conversando com Nana Flo, percebo como uma pessoa pode ser paralisada por seu
próprio passado e permanecer amargurada por cem anos. Assim, na noite seguinte à
minha conversa com ela, decido dar uma última olhada para trás antes de saltar à frente,
como um burrico — para não dizer "como um grande jumento".
Vou para casa sentindo-me elétrica. Laetitia ainda está vivendo seu inferno astral
e falando de boca cheia sobre as muitas oportunidades de trabalho em outras revistas —
subitamente, o escritório não me parece mais um campo de concentração. Além do
mais, hoje à noite tenho um encontro com Tom. Devo confessar que ele não sabe disso,
mas como não quero que me lance um balde de escárnio sobre a cabeça, é melhor que
não saiba mesmo. Planejo aparecer e desaparecer, como uma fadinha. Desejo-lhe
felicidade e preciso que saiba disso. Mas, não consigo ser nobre o suficiente para
desejar-lhe felicidade com sua namorada. Tento ser elegante na derrota, mas continuo
desejando que ela fique careca. Talvez deseje felicidade a Tom sob a condição de que
ele viva como um monge trapista. (Embora possa manter seu apartamento e eu permita
o uso de roupas civis.) Não é razoável esperar mais de mim — na verdade, ele deveria
considerar-se alguém com muita sorte. Ora, outras mulheres estariam costurando
bonequinhos de vodu com sua cara! Esta opção não me serve, porque não sei costurar.
Espero até anoitecer. Depois, prendo meus cabelos para trás, curvo meus cílios
(ele não vai me ver, mas já cometi o erro de "não vou transar hoje à noite, então usarei
minhas velhas calcinhas cinza" com demasiada freqüência) e me visto de preto. Depois,
entro rapidamente no carro, carregando os materiais de desenho. Como esta é uma
missão secreta, considero brevemente o uso de óculos escuros e desejo que a Toyota
não se pareça tanto com um lotação clandestino. Mas não vou de óculos escuros e a
Toyota não tem jeito mesmo. Dirijo em velocidade assustadora até a rua de Tom.
Enquanto me aproximo, tiro o pé do acelerador e começo a arrastar-me, desligando os
faróis (isso é tão excitante que decido que, se não for promovida na GirlTime na
primavera da demissão inevitável de Laetitia, serei detetive particular. Já li livros
suficientes).
Certifico-me de que a rua está deserta, depois deslizo para fora do carro, fecho a
porta suavemente e vou pé ante pé até o apartamento de Tom, no térreo. Uma luz
amarela e aconchegante derrama-se de suas janelas, embora as cortinas estejam bem
fechadas. Prendendo o fôlego, abro um pouquinho o portão de metal. Espremo-me e
entro no pequeno jardim na frente do prédio. Meu coração bate depressa no peito e não
sei se a umidade em meu rosto é chuvisco ou suor.
Largo devagarzinho a sacola, contendo a caixa de aquarelas e a tela, contra a
lateral da porta verde. Dentro da sacola há um envelope endereçado a ele. Será que devo
tocar sua campainha e sair correndo? Deixar a sacola, para que a encontre por acaso, é
arriscado — e se o nome do carteiro for Tom? Tenho que tomar a decisão certa.
Primeiro, preciso avaliar a localização do sujeito e o tempo que terei para fugir. Olho
para cima, para a fresta no alto das cortinas, e me irrito porque Tom tem cortinas. Será
que ele pensa que é tão fascinante assim para o mundo lá fora? Será que é paranóico e
acha que outros querem espiá-la?
Neste ponto, fico pensando se não deveria ter calçado sapatos de solas de
borracha. Descarto o pensamento instantaneamente, já que sapatos de borracha
equivalem a pochetes, em termos de sem-gracice. Eles fazem com que a gente pareça
madura e calma. Sou calma o suficiente sem precisar de publicidade. Sapatos de
borracha são úteis se e quando você decidir subir em uma lata de lixo de metal, para
espiar por cima das cortinas de seu ex-amor, Garanto que o balde está estável e subo,
usando a moldura da janela como apoio. Agacho-me na superfície escorregadia e,
vacilando como gelatina sobre uma prancha de surfe, tento ficar em pé.
A tampa cai instantaneamente — eu e a lata vamos ao chão em um estrondo
cacofônico, que ressoa por Kentish Town, suficientemente alto para causar processos
por perturbação da ordem.
Fico deitada em estado de choque sobre a grama, com uma carcaça de galinha
sobre meu estômago e uma casca fedorenta de ovo em meus cabelos, por três tontos
segundos, antes de a porta abrir-se e Tom correr para fora. Não sei qual é o protocolo,
quando somos descobertos invadindo a propriedade alheia, espionando, e revestida por
lixo — de modo que digo:
— Oi.
Tom olha para mim como se eu estivesse nua, e estou prestes a lhe dizer que é
feio olhar fixo para alguém, quando ele exclama:
— O que você está fazendo?
— Um projeto com uma lata de lixo, o que você acha? — falo, azeda,
movimentando meu tornozelo para ver se está quebrado.
— Você está bem? — 'ele pergunta, inclinando-se.
Há uma expressão esquisita em seu rosto e não sei se está sorrindo. Digo que
sim. Tom remove a carcaça de galinha de minha barriga e a lança longe. Ela deixou uma
trilha de gordura e pedaços de pele velha em minha blusa preta. Bem, graças a Deus
estou com meus cílios curvados.
— Por que você não me chamou? — Tom pergunta, agachando-se.
— Eu liguei! — protesto, indignada. — Você só faltou me mandar pro inferno!
Tom parece embaraçado, olha para seus pés e diz, hesitante:
— Não, eu quis dizer, por que você não tocou a campainha agora?
Minha confusão deve ser aparente, porque ele diz, surpreso:
— Luke não lhe contou?
— Contou o quê? — pergunto, tentando limpar a chuva em meus óculos, sem
manchar meus olhos com gema de ovos. Esperava que ele notasse a sacola da loja de
desenho, mas passou por ela sem vê-la. O que significa que, em vez de descobri-la de
uma forma romântica e explodir em lágrimas de nostalgia, terei que apontá-la
desajeitadamente, e será tão sem graça quanto fazer sexo em uma banheira. Sua barriga
projeta-se para cima na água e a estética é arruinada.
— Contou o quê? — repito, já que Tom parece ter perdido o poder da fala.
Ele recupera-o abruptamente e começa a matraquear:
— Eu queria dizer-lhe, ia dizer-lhe, mas não sabia como você reagiria. Então,
ontem, perguntei a Luke e ele disse para eu não me arriscar, que lhe diria antes, mas o
traste desaparece e eu não sabia se ele havia contado e não consegui encontrá-lo, eu
mesmo queria dizer-lhe e...
— Dizer-me o quê? — grito, retorcendo meu rosto e tentando recordar as
palavras exatas de Luke.
Tom tira um feijão cozido de meu ombro e diz:
— Mas, se você não sabe, por que está aqui?
Lá vamos nós.
— Comprei uma coisa para você — resmungo. — Está encostada na porta.
Tom parece assustado, como se eu o tivesse golpeado na cabeça com um pão de
farinha integral. Ele pula, vê a sacola e abre o envelope contendo o bilhete. Lê em voz
alta: ''Já é hora de você começar a pintar novamente. Com amor, Helen." Para meu
espanto — embora soubesse que isso iria acontecer e maldiga o dia em que Tom
comprou um balde de lixo da pior qualidade —, sua boca treme e ele pisca
furiosamente. Isso faz com que eu sinta vontade de chorar.
— Seu nariz está escorrendo — digo rispidamente, tentando suavizar o clima. —
Você quer secá-lo em minha manga?
Meus modos ao pé da lata de lixo obviamente poderiam ser mais gentis, porque
Tom cobre seus olhos com as duas mãos e sacode a cabeça. Olho ansiosamente para
seus ombros quadrados e seus cabelos desgrenhados, mas decido que é melhor esperar.
Sentindo-me como um gorila, recolho pedaços de galinha de minha blusa e cascas de
ovos de meus cabelos. Depois, toco suavemente o braço de Tom e falo:
— Eu não queria magoá-lo.
Ele olha-me e sorri de um modo que me arrepia. Diz baixinho:
— Você foi gentil.
Embora o resto de mim esteja tão ensopado quanto um feriado bancário
britânico, minha garganta está subitamente seca. Meu Deus! Uma pessoa não limpa um
feijão cozido do ombro de alguém que detesta nem sorri de um jeito excitante (a menos
que planeje passar por cima de seu carrinho com uma Ferrari nova). Será que, após
passar meses banida do reino do amor, estou sendo levada de volta a seus portais
gloriosos? Engulo em seco e olho para ele, desafiando-o a falar.
— Helen, eu gostaria de falar com você sobre minha namorada.
“Fim.”
O sorriso ensopado que tomava forma em meu rosto desaparece como um
ratinho numa avalanche. Consigo levantar-me, furiosa:
— Obrigada — sibilo —, mas não quero saber.
Tom diz:
— Não, espere, Helen!
Ele tenta agarrar meu braço, mas o sacudo e cambaleio até o portão, correndo na
direção da Toyota.
— Helen, por favor! — grita, enquanto tento enfiar a chave para abrir meu
carro.
Mas, por que ainda me dou ao trabalho? Quero mesmo é que alguém roube este
carro — se alguém quiser fazer-me este favor. Sinto-me arrasada.
— Ah, entra, droga! — urro para a chave.
Tom me alcança quando consigo abrir a porta, que o atinge no joelho. Bem feito.
Bato a porta.
— Helen! — diz, bufando, enquanto ligo a ignição. — Eu inventei!
Baixo o vidro.
— O quê? — pergunto, incrédula.
Tom assume a expressão de um cachorrinho que acabou de fazer xixi no sofá e
murmura:
— Eu ia dizer-lhe, mas senti vergonha.
— Também sentiria — falo, ríspida.
Ele suspira e acrescenta:
— Fui um imbecil.
— Foi mesmo! — grito.
— Luke não lhe contou, então?
— Claro que não.
Tom aperta os lábios e parece triste.
— Eu estava com ciúme — ele diz, com os olhos baixos e ar de penitência.
— Não diga... — falo, afetadamente.
— De Jasper — revela, estremecendo.
— Jasper... — repito.
— Agora já sei — ele afirma.
Desligo a ignição.
— Obrigado — agradece Tom. — Eu estava sendo asfixiado, aqui fora.
Sorrio.
— Desculpe, Helen.
Faço que sim com a cabeça, com nobreza.
— Você me perdoa? — ele pergunta.
Levanto uma sobrancelha (bem, tento, já que nunca dominei esta arte, e manter a
outra sobrancelha abaixada à força tira todo o encanto do gesto).
— Depende...
Tom abaixa-se, de modo que seu tosto fica no mesmo nível que o meu.
— Do quê? — sussurra.
— De quantas mentiras mais você contou — digo, seca.
— É a única! — ele geme. — Sou uma pessoa muito honesta!
— Tem certeza? Isto é importante.
Tom faz uma pausa, depois diz:
— Quando tinha vinte anos, eu... Costumava dizer às mulheres que era
mergulhador da Marinha. Será que isso conta?
— Eu que pergunto: será que devo ficar ou ir embora?
Ele pousa o braço na abertura da janela da Toyota, inclina-se mais, abraça-me e
me puxa para fora, pela janela!
— O primo preguiçoso de Os gatões... — falo, agarrando-me a ele.
— Você está fedendo a ovo velho — diz, apertando o abraço.
— Isso é honesto demais — reclamo, livrando-me de seu abraço.
No silêncio que se segue, aperto minhas mãos, transformando-as em punhos
fechados, para criar coragem.
— Tom — falo, lentamente. — Eu nunca lhe disse.
— O quê? — ele pergunta, suavemente.
— Sobre meu pai. Você me ajudou. Realmente ajudou.
Sorrio, tensa, e concordo, mais para mim mesma do que para ele.
Tom parece perplexo.
— O que eu fiz? Você ajudou a si mesma.
Mordo meu lábio.
— Ainda assim, você falou coisas que ajudaram.
Tom diz, em um sussurro que mal posso ouvir:
— Eu não sabia o que fazer.
Confesso, tremendo:
— Também não.
Ele acrescenta:
— Queria melhorar um pouco as coisas. Eu sabia que não podia — a voz falha
—, mas queria muito ajudá-la.
Por um segundo, vejo-me incapaz de responder.
— Você não tentou... Distrair-me.
Ele engole em seco.
— Havia muita dor a ser liberada.
Estremeço.
— Melhor ser liberada do que engolida — murmuro.
— Helen, você é mais forte do que pensa.
Sacudo minha cabeça.
— Eu não conseguia enfrentar a situação — falo, vacilante. — Foi difícil, por
muito tempo. Não tive coragem nenhuma.
Tom olha direto em meus olhos e responde:
— Eu disse "forte". "Coragem" não é necessário, ser forte já é o suficiente.
Ele levanta uma das mãos e acaricia meu rosto. Depois, faz um gesto para a
porta de sua casa.
— Helen, você quer entrar? — pergunta, finalmente. — Eu posso fazer um café
para nós...
— Sim. Sim, por favor — falo.
— Como está sua perna?
— Não muito bem.
— Como médico — Tom diz, subitamente —, acho que você não deveria
dirigir, com este tornozelo machucado.
— Ei, você está me achando com cara de porquinho-da-índia?
E sorrio, ao dizer isso.
*** FIM ***
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