terça-feira, 11 de junho de 2013

A garota do outro lado da rua

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a Garota do outro
lado da rua
Lycia Barros
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Sinopse: Enzo é um menino intelectual e aplicado nos estudos que não se importa em ser ridicularizado pela maioria dos colegas de turma. Ao lado de seu amigo Leandro, entra e sai do colégio com uma vida monótona e sem grandes emoções. Entretanto, há alguém que sempre balança a serenidade de Enzo: Rafaela, sua vizinha da frente, por quem é apaixonado desde a infância e é sua colega de turma. Porém, linda e popular entre os estudantes, Rafaela não se dá conta da sua existência até que um dia, em uma excursão do colégio, ambos se perdem juntos na mata. Rafaela e Enzo começarão a se conhecer melhor e perceberão o quanto estavam enganados a respeito um do outro. Mas será que esse conhecimento resultará em uma grande amizade? Será que o amor de Enzo sobreviverá além das aparências? Afinal, quem é verdadeiramente a garota do outro lado da rua?
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O mundo não se divide em pessoas boas e más.
Todos temos luz e trevas dentro de nós.
O que importa é o lado o qual decidimos seguir.
Isso é realmente o que somos.
SIRIUS BLACK (Harry Potter e a Ordem da Fênix)
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A BORBOLETA
Há momentos em que cruzamos linhas invisíveis que jamais poderíamos imaginar. Nunca imaginei que ele seria meu, ou que eu seria dele. Nunca imaginei que derrubaríamos os muros que nos separavam por nossas fraquezas. Mas fico feliz que tenha sido desse jeito. Ninguém me compreendia muito quando tudo aconteceu, eu também não conseguia explicar como me sentia. Na verdade, a maioria das pessoas não estava disposta a me dar o tempo que eu precisava para falar. Houve noites com lágrimas solitárias, houve dor, precisei esperar... Mas, quando enfim nos unimos eu e ele já estávamos preparados para seguirmos em uma viagem sem volta. Uma viagem rumo à felicidade, que só os puros de coração conseguirão alcançar. E nós dois felizmente conseguimos.
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ENZO
Eu sempre havia percebido algo especial naquela menina, mas não apenas por ela ser bonita. Contudo, não nos conhecíamos. Não havia intimidade entre nós dois, nem sequer cordialidade. Nunca havíamos trocado uma palavra sequer. Mas eu a observava frequentemente sair e entrar em casa com a mãe - morava só com ela, o que vim a descobrir mais a frente. Entretanto nunca nos cumprimentamos. Às vezes, eu ficava durante horas sentado na calçada com a minha caixa da coleção de insetos colocada entre os joelhos, pensando em chamá-la para brincar, mas nunca tive coragem. Talvez porque, assim como meu pai, nunca fui muito dado a interagir com os vizinhos. Ao contrário, meu pai estava sempre resmungando sobre os maus hábitos alheios: seus cachorros latiam alto demais, suas festas eram muito barulhentas, todos estavam sempre estacionando na calçada errada... Todavia, tenho dúvidas se ele teve culpa de ficar assim. Desde que minha mãe se foi, há quatro anos meu pai se despediu de qualquer alegria na vida. A única coisa que lhe restou foi o prazer de pescar. Houve ocasiões em que pensei que ele a
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esquecer-la, mas percebi que isso não era algo que ele quisesse fazer; muito menos que simplesmente lhe acontecesse. E, de fato, não lhe ocorreu. Ainda assim, ele sempre foi um bom pai para mim. Preocupava-se demais, confesso, e com muita frequência, com praticamente tudo. Mas sei que só tentava cumprir bem o seu papel.
Começamos a estudar juntos no quinto ano - eu e Rafaela. Talvez tenha sido esse o ano em que tudo começou. Nessa época, eu sentava atrás dela na classe. Ficava olhando para sua cabeça por trás e admirando seus cabelos, compridos, dourados e perfumados. Parecia uma sereia. Mas éramos incomunicáveis, como se vivêssemos em dois polos distantes. Ela era linda, desejada e popular, e eu era o quatro-olhos CDF da nossa turma. Na única vez em que se virou para trás para me passar uma prova, senti minha cara ficar vermelha e meus óculos escorregarem pelo nariz. Sua mão ficou ali, estendida, e Rafaela a me encarar. Acabou em cinco segundos. Quando olhei para a prova e a peguei, fitei as palavras, mas nada assimilei devido ao meu encantamento. Era como se aquela simples troca de olhares tivesse repentinamente nos tornado mais íntimo. Infelizmente, quando voltei a mim, dei-me conta do papel à minha frente. É impressionante como uma prova de matemática pode sugar até a última gota de felicidade da sua alma!
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Nesse tempo, comecei a sonhar acordado com Rafaela. Costumava imaginar-nos juntos e sentados em seu jardim, conversando sobre a natureza, e ela admirada com todo o meu conhecimento. Sempre tive certeza de que, se ela me conhecesse melhor, se compreendesse as minhas qualidades, certamente gostaria de mim, mas nunca imaginei o que sucederia mais tarde. No pôr do sol finalmente nos beijaríamos, mas nunca imaginava nada indecente com ela. Pelo menos, não naquela época.
Quando estávamos de férias, não costumávamos nos ver muito, ou melhor, ela não me via mesmo a minha casa sendo bem em frente à dela. Rafaela só saía e entrava, rapidamente, geralmente acompanhada de suas espevitadas amigas, dando gargalhadinhas, ou então com algum playboyzinho barulhento e espalhafatoso. O que, evidentemente, acabava me deixando verde de inveja e emburrado pelo resto do dia.
Somente uma vez nas últimas férias, pela janela do meu quarto no segundo andar, tive o privilégio de observá-la sentada no jardim e jogando um disco de frisbee para o seu yorkshire pegar. Foi uma das raras vezes em que não a vi maquiada. Ficou ali por cerca de meia hora. Provavelmente, ela havia acabado de sair da piscina, pois estava de biquíni e com uma canga enrolada no quadril. O sol de fim de tarde reluzia em seus cabelos e sua pele era tão dourada quanto o sol. Em certo momento, Rafaela deitou-se na grama e fechou os olhos para descansar. E ficou tão
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linda que me extraiu a respiração. Eu sabia que minha câmera estava ali na escrivaninha, bem perto da minha mão, mas não me atrevi a usá-la para bater uma foto. Sabia que não conseguiria capturar a beleza daquele momento, por isso preferi memorizá-lo.
No oitavo ano, comecei a reparar que ela não parava de conversar com um garoto encorpado e com o cabelo espetado com gel: Mateus. Um dos meninos mais esnobes da nossa classe. Apesar de andarem sempre cercados de estudantes, eles frequentemente davam um jeito de conversar mais afastados dos outros alunos. Eu sempre ficava de longe, observando-os, mas não me atrevia a examiná-los muitas vezes, pois tinha medo que Rafaela reparasse.
Mateus sempre foi o tipo de cara grosseiro e vulgar, e o linguajar que circulava entre seus amigos faria qualquer detento de Bangu I sentir-se ultrajado. Apesar de não nos falarmos, vira e mexe ele entrava na sala e me dava uma coronhada na nuca no estilo "e aí, meu amigo?", mas eu sabia que era só para me humilhar. Porém, eu nunca fui esse tipo de idiota-agressivo que fazia de tudo para aparecer. Na verdade, sempre tive aspirações mais elevadas. Talvez por isso não conseguisse me enturmar com facilidade. Mas Mateus sempre "se achava" na frente dos outros alunos: era o mais forte, o mais esportista, o com a melhor aparência... Sempre achei que todos aqueles músculos lhe davam um ar imbecil.
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Estava na cara que ele andava tomando bomba. O tipo de sujeito que só posta fotos sem camisa no Facebook, pois é o atributo que lhe resta. O problema era que, atém disso, ele possuía todos os bens duráveis conhecidos pelo homem, antes mesmo que chegassem ao Brasil. Por isso, vivia cercado de almofadinhas bajuladores.
Quando pela primeira vez vi os dois se beijarem, me senti agoniado. Esmaguei meu celular com tanta força que por pouco o coitado não tocou de desespero. Achei Mateus muito afobado. Se ele sentisse uma fração mínima do que eu sentia por Rafaela, jamais se atreveria a tocá-la daquela maneira. Eu juro que tentei esquecê-la, desarquivá-la da memória, mas simplesmente não consegui. Comecei a acreditar que, assim como meu pai, eu não seria um homem de pular de galho em galho. Amaria minha escolhida para sempre. Que furada...
É claro que, com dezesseis anos eu já havia beijado outras garotas na vida. Na verdade, duas. Uma era minha prima Patrícia. Bem, ela não era minha prima de sangue, pois era adotada. Nosso beijo, entretanto, foi mais uma espécie de caridade que fiz quando ela confessou que era apaixonada por mim. Achei que como éramos parecidos, como tínhamos os mesmos interesses e éramos ambos negligenciados pela sociedade, aquilo poderia dar certo. Mas não consegui corresponder aos seus sentimentos e acabei por perder a sua amizade. E ela ainda espalhou
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boatos maldosos na minha família - e que fique bem claro, não verdadeiros - sobre o meu hálito. Por isso meus primos me batizaram de "boca de esgoto". A outra que beijei foi à irmã mais velha do meu melhor amigo Leandro. Nesse caso a caridade foi invertida. Mas acho que brincar de salada mista não conta muito.
Sucedeu então que teríamos uma excursão ecológica no colégio. Acordei angustiado naquela manhã. Em qualquer outra ocasião, eu amaria aquele passeio. Já era um assíduo praticante de trekking¹, pois, assim como minha mãe, eu adorava a natureza,
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¹trekking -esporte constituído de provas onde se deve percorrer trilhas pré-estabelecidas em planilhas.
e já havia feito trilha centenas de vezes, apesar de nenhuma delas ser na Floresta da Tijuca. Contudo, passar um dia completo vendo aqueles dois se agarrando seria demais para mim. Pensei em não ir, mas sabia que a visita valia cinquenta por cento da avaliação de ciências e, para o meu embaraço, e deleite do resto da classe, eu era o queridinho da professora - que não era burra, e percebia o meu interesse pela matéria. Por isso, a título de punição, eu era oficialmente a única pessoa a quem Eva se dirigia na classe.
Desci a escada com a mochila preparada nas costas e não avistei meu pai por ali. Lembrei-me que era sábado, dia em que ele
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religiosamente pescava com seu irmão. Certamente, Mauro já passara para pegá-lo e miraculosamente não acordei com o barulho do bugre. Minha avó, como boa madrugadora que era já estava sentada na sala, olhando para a televisão desligada. Fazia isso muitas vezes. Com o passar do tempo, deixei de me perguntar o porquê. Sua acompanhante, Doralice, estava passando um café na cozinha e cantarolando uma espécie de hino de igreja. Por causa da idade, minha avó andava muito esquecida - para não dizer esclerosada - e contava as mesmas histórias dezenas de vezes. Narrava os mesmos detalhes e se emocionava nas mesmas pausas quando me contava sobre sua imigração para o Brasil. Jurava que era estrangeira e sobrevivente do Titanic, e não uma paraibana arretada. Certas vezes ela parava no meio da história e entrava numa espécie de transe esquisito, e eu ficava ali, parado, imaginando se ainda havia alguma coisa por vir. Confesso que por puro constrangimento às vezes eu a evitava por causa disso. Mas isso foi antes de tudo aquilo acontecer, ao que vou lhe narrar mais à frente. Talvez, pensava eu se ela visse a televisão quando estivesse ligada, tivesse novas histórias para contar. Poderia ser a rainha Elizabeth ou alguma personagem anciã da novela das oito. Tinha ocasiões em que se lembrava de mim, mas percebi que aquele não seria um daqueles dias.
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— Quem é você e como entrou na minha casa? — assustou-se a velha Rose, assim que me viu, apontando-me o controle da tevê como se fosse uma faca.
Aproximei-me cautelosamente e sentei no braço do sofá. Ela ainda me apontava o objeto.
— Sou eu vovó, Enzo, seu neto. O papai já saiu?
— Ainda não vi meu pai hoje — disparou ela, parecendo dar-se conta disso naquele momento.
Eu ri e passei o braço nos ombros dela.
— Não o seu pai, vovó, mas o meu pai, seu filho, Gustavo. Ele já saiu?
— Não conheço seu filho — disse-me ela, em tom de desculpas.
Eu suspirei, desejando que ela pudesse mesmo me trocar de canal.
— Doralice! — berrei eu, já me levantando. — Já estou indo. Diga para o meu pai que volto antes do almoço.
Interrompendo a cantoria, a acompanhante apareceu na porta da cozinha.
— Enzo, querido, não vai tomar seu café?
— Como algo pelo caminho.
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— Nada disso — ralhou ela, — seu pai mandou que eu preparasse um lanchinho reforçado pra você. Disse que faria uma caminhada. Só um minuto.
Ao que parecia, a definição de lanchinho de Doralice acabaria com os problemas de fome na Somália. Ela havia separado dois sanduíches gigantes, uma barra de cereal, uma maçã, duas bananas e uma garrafa de isotônico de uva. Como se não bastasse, jogou um pacote de biscoitos recheados dentro do saco. Fiquei olhando para ela, me sentindo desnutrido. Devido ao estirão da adolescência, eu sabia que ficara magro, mas aquilo era ligeiramente ofensivo. Porém, antes que eu dissesse alguma coisa, ela virou-me bruscamente de costas e enfiou todo o lanche na minha mochila. Fiquei me perguntando se não tombaria para trás ou arrumaria uma lordose por causa do peso. Vovó ainda me apontava o controle remoto, de modo que resolvi não contestar nada. Só queria dar o fora dali antes que ela começasse com a história do cruzeiro.
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Quando cheguei ao colégio, Rafaela já estava lá, linda de morrer, junto com a galera e esperando pelo ônibus. Vestia uma legging preta, uma regata roxa e usava um rabo de cavalo no alto da cabeça. Tinha um
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casaco amarrado na cintura. Maquiada como sempre. Fiquei um pouco preocupado quando olhei para os seus pés: All Star não era bem a melhor escolha para se fazer uma trilha. Mas eu a entendi, pois a cor roxa do tênis combinava com sua blusa. Rafaela era muito ligada em moda.
O dia estava perfeito. O céu de um azul firme e intenso. Mas, apesar do dia ensolarado, o ar estava um pouco frio naquelas últimas semanas. Era abril, e a maioria dos alunos, assim como eu, havia trazido um casaco. Os alunos que vinham chegando se embotavam numa confusa troca de abraços, socos no peito e tapas nas costas. Eu ainda estava olhando Rafaela quando Mateus apareceu, agarrou-a pela cintura e plantou-lhe um beijo na boca. Um ressentimento agudo quase me sufocou. Fumegando de raiva, olhei para o relógio. Eram sete e quinze e o ônibus já estava atrasado. Naquele momento, eu não conseguia pensar em nada melhor para mim atém de tentar ignorar aqueles dois. Ignorar Rafaela - pensei desanimado. Como eu gostaria de obter êxito! Se pudesse fazer um único pedido naquele momento, seria uma lavagem cerebral, para poder esquecê-la. Perdendo as forças, volteia olhar para os dois. À nossa volta, alguns pais espiavam os filhos mais afastados e o ônibus já estava estacionando. Suspirei.
— Não sabia que você também vinha... — Uma voz animada me assustou.
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Olhei para o lado e avistei Alana. Ela era da minha classe, aliás, a única garota da turma que falava comigo. Ou, pelo menos, a única que era educada. Falava, não. Tagarelava sem parar. Como sabia que eu era um amante de biologia, ela sempre me procurava para discutir cada novo microorganismo que descobria pela esfera terrestre. Ela sorria alegremente, me olhando com seu rosto cheio de sardas e arregalados olhos azuis. Seu cabelo liso estava eternamente preso em um rabo de cavalo desarrumado e com alguns fios soltos caídos por cima dos óculos de hastes vermelhas. Como sempre, parecendo não fazer absolutamente questão de se destacar das outras meninas, vestia uma blusa bege sem graça e uma bermuda de mesmo tom, que descia até os joelhos. Agarrava o livro de biologia como se fosse uma bíblia e me olhava como se fosse anunciar à salvação. Por que será que eu atraio esse tipo de gente?
— Resolvi vir de última hora — eu disse — mas pelo visto já me arrependi. — Olhei para a bagunça dos alunos perto do ônibus.
O sorriso de Alana abriu-se ainda mais quando olhou para os alunos, inexplicavelmente feliz.
— É sempre assim, a espécie humana fica muito animada quando tem novidades. Logo, logo eles vão se acalmar — Ela virou-se novamente para mim. — Escuta Enzo, estou com um trabalho sobre genética pra
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fazer e vi na aula que você sabia tudo sobre esse negócio de "azinho" e "azão". Será que podia me dar uma ajuda?
— Claro — falei, forçando o sorriso. — É só a gente combinar de estudar.
— Maravilha! — Era fácil ver o cérebro de Alana se animar ao ouvir a palavra "estudo". — Também podemos nos sentar juntos no ônibus hoje, o que acha? Assim, na volta, poderemos ficar comentando sobre a flora que vislumbraremos por lá.
Claro, pensei, já com pena dos meus ouvidos, não há nada que eu deseje mais neste mundo!
Sem saber como recusar, olhei para a galera e, pela cara vermelha, vi que Leandro também já estava por ali, ao lado da mãe e jogando M&M's para dentro da boca. Senti-me aliviado. Ele acenou para mim vigorosamente e sorriu, sobressaltando suas bochechas permanentemente vermelhas. Era único aluno cuja mãe estava perto e limpando a sua blusa. Um perfeito suicídio social.
— Sinto muito, Alana, mas eu e Leandro já combinamos de sentarmos juntos. Nos vemos quando chegarmos lá na trilha, ok? — Despedi-me dela e fui caminhando em direção aos estudantes.
A porta do ônibus abriu e todos começaram a entrar. Ainda agonizando por causa da minha musa, aproximei-me do grupo. Estou
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agindo como um idiota, eu dizia a mim mesmo ao caminhar para o ônibus. Afinal, eu não tenho nada com ela. Basta ignorá-los, resmunguei ao chegar perto da porta. Não será tão difícil, acrescentei para mim mesmo ao subir as escadas. Será simplesmente impossível concluí, vendo os se agarrando num banco no fundo.
Rangendo os dentes, procurei uma cadeira vazia no meio do ônibus. Leandro se sentou ao meu lado.
— Dia ruim? — foi o que perguntou.
Meti a mão no saco de M&M's, sem ser convidado.
— Mais ou menos — respondi. — A meu ver, sábados deveriam ser vinte e quatro horas mágicas sem nenhuma preocupação com o colégio.
Erguendo uma sobrancelha, Leandro girou o corpo para mim.
— Não estou te reconhecendo. Desde quando você não gosta de fazer trilha?
— Desde que estou sendo torturado. — Olhei para trás, Leandro me acompanhou.
— Cara, você é doente... — ele resmungou e sacudiu a cabeça. — Sabe quando terá uma chance com a Rafaela? Nunca! Você não é o tipo de cara com quem ela sai.
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— Não entendi — retruquei. — O objetivo foi me elogiar ou me insultar?
— Nenhum dos dois. — ele riu. — Olha — Leandro respirou fundo, parecendo evitar falar de supetão algo que julgava melhor, ser abordado com delicadeza, — A Rafaela nem ao menos te cumprimenta. E olha que vocês são vizinhos há anos! Se você tivesse aproveitado enquanto eram pequenos... As meninas são mais vulneráveis quando são crianças. Mas agora suas chances de ela notar sua existência são de uma em um milhão. Ainda que você se torne um cientista famoso, ela nunca vai saber, pois não deve ler esse tipo de revista. Já o jornal de esportes... — Ele olhou para trás, em um tom sugestivo.
Lancei-lhe um olhar gelado. Graças a Deus, meu mau humor raramente transbordava. Para suavizar a bofetada, Leandro me ofereceu o M&M's novamente. Deixei escapar um suspiro desconsolado e enfiei a mão no saco. Em seguida, foquei os olhos na visão através da janela. Partimos, buzinando, em meio a uma grande quantidade de pais e um cachorro que nos seguiu por cerca de dois quilômetros. Um pandemônio absoluto se instaurou. Como era de se prever, o trajeto até o nosso destino foi uma aporrinhação. Barulhento, caótico e torturante. Um dos meninos botou funk alto no celular e tive vontade de me atirar pela janela. Ou melhor, de atirá-lo pela janela. O motorista não tirava os olhos da rua, as
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mãos apertadas no volante. Parecia tão irritado quanto eu, que saquei meu mangá do Naruto para ler no mesmo instante em que uma cabeça apareceu por cima da cadeira da frente. Era Alana. Fechei a revista.
— Você sabia que milhões de árvores no mundo são plantadas acidentalmente por esquilos que enterram nozes e não lembram onde as esconderam? — ela perguntou.
E lá vamos nós de novo, pensei comigo mesmo.
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Depois de quarenta minutos de puro suplício, finalmente chegamos. Como masoquistas adoradores de filas que somos, levantamos todos ao mesmo tempo para sair do ônibus juntos. Pablo, um aluno sentado mais à frente, que era amigo de Mateus, tentou fazer Leandro tropeçar na minha frente enquanto passava. Mas antevi o que ele ia fazer e acabei empurrando Leandro e atropelando o pé do garoto, esmagando seu calcanhar. O infeliz uivou alto. Olhei para ele e pedi desculpas, com uma mistura de raiva e vontade de rir. Ele disse que iria trocar uma palavrinha comigo depois. Fingi que não ouvi e continuei caminhando. Como disse antes, nunca fui violento, mas Pablo era muito mais baixo e tão magro quanto eu. O tipo de cara que só se garante quando está em
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grupinho. Mas, na boa: bastaria pegá-lo sozinho para tirar aquele sorrisinho marrento da sua cara.
Depois do que me pareceu uma eternidade, conseguimos descer do veículo. A professora insistiu para que todos se juntassem na entrada da floresta para bater uma foto. Isso feito, Eva imediatamente me chamou para ficar ao seu lado, ao que Leandro me seguiu, debaixo de assovios maliciosos. Eva devia ter no máximo trinta anos. E sabendo que meu amigo resolvera fazer dela a personagem principal de seus sonhos eróticos, eu sabia que nada o deixaria mais feliz.
Começamos pela trilha dos bancos. Chama-se assim, pois é margeada por bancos de pedra do período imperial. Disfarçadamente, olhei para trás e vi que os dois pombinhos nos seguiam abraçados: Mateus e a minha sereia. Decidindo que era melhor me concentrar em outra coisa, verei para frente. Por sorte, a floresta sempre me fascinava. Minha mãe - uma apaixonada por botânica, como eu - já havia me ensinado a identificar algumas árvores, flores e frutos. Penetramos a suave caridade verde e as sombras aconchegantes da mata fechada, enquanto Eva nos contava que estávamos na maior floresta urbanizada do mundo. Fora restaurada por volta de 1800 com o objetivo de proteger os mananciais. A área havia sido devastada para o plantio de café e cana de açúcar, mas fora reflorestada depois por ter prejudicado o abastecimento de água no
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Rio de Janeiro. Contudo, obviamente, jamais recuperaria suas características originais. Era o homem brincando de Deus. Eva disse-nos que a não ser que essa área não sofresse mais intervenções humanas, sobretudo nas áreas mais preservadas, dentro de algumas décadas poderia voltar a assumir, paulatinamente, as características dos ecossistemas intactos e, quem sabe, voltar a cumprir plenamente sua função ecológica.
Mas ainda assim a floresta era encantadora. O verde cobria o cenário de tonalidades e texturas diferentes. Havia chovido no dia anterior, então levantei bem o rosto para sentir ao máximo o cheiro de terra úmida. Vi que alguns esparsos raios de sol se infiltravam pelas copas das árvores acima de nós e sua luz era tão suave que quase se podia senti-la na pele. O aroma de mata molhada, troncos apodrecidos e variedades de flores era tão flagrante que podia deixar uma pessoa inebriada. E havia os sons... Nada era mais agradável do que os sons dos nossos pés pisando nos cascalhos e folhas. Os movimentos de pequenos animais que corriam de um lado para o outro o canto dos passarinhos, o murmúrio de água correndo nas redondezas... Tudo se fundia de maneira extraordinária. A única coisa que estragava o cenário, a meu ver, éramos nós mesmos. As pessoas acabavam com a magia. Com seus barulhos de sacos plásticos não recicláveis, risadas espalhafatosas e toques de celulares. Aquilo não combinava com aquele ambiente, que precisava ser sentido, precisava ser
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memorizado. Havia algumas placas de madeira indicando a direção das grutas pelo caminho. Quando ouvimos o som de uma cachoeira perto dali, Rafaela saiu correndo como uma bala, os cabelos loiros esvoaçando livres ao vento. Enterneci-me com sua cara desapontada quando soube que não poderia mergulhar. A cascata era realmente convidativa, somente pela beleza. Fazia-nos desejar sermos parte daquele cenário. Seria realmente ótimo nadar um pouco, mesmo não sendo temporada de calor. Mas as águas daquela floresta abasteciam boa parte do Rio de Janeiro, portanto, não eram liberadas para banho.
Prosseguimos no passeio visitando tudo: a capela Mayrink, o centro de visitantes, o locai separado para rituais de luto, onde se jogava as cinzas das pessoas já falecidas. No chão, uma artista tinha esculpido a epígrafe: "O tempo não passa". Em seguida, visitamos o Lago das Fadas, a Vista do Almirante... Demorou um pouco mais do que eu imaginava, com certeza eu não chegaria na hora do almoço. Passei uma mensagem para o meu pai para que ele não se preocupasse comigo. Em certo trecho do passeio, Eva nos mostrou uma planta em especial, para nos falar das suas propriedades. Mateus como o imbecil sem salvação possível que era, perguntou se a planta era afrodisíaca e ameaçou colocar na boca de Rafaela.
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— É medicinal? — indaguei para Eva, ignorando o seu gracejo idiota.
—É sim. — Ela sorriu para mim e começou a pormenorizar os seus benefícios.
Continuamos na empreitada a caminho das grutas. A primeira a que chegamos foi à gruta Luiz Fernandes, que à primeira vista parecia mais ser um buraco. Precisamos amarrar uma corda num tronco próximo para as meninas se sentirem seguras para descer. Fiquei atento quando Rafaela desceu com medo que se machucasse, visto que Mateus estava entretido em fazer baderna com seus amigos. Mas, tudo correu bem. Ela era pequena, porém era safa. Em seguida, visitamos a gruta dos morcegos, completamente escura apesar de ter uma fenda no alto. O ambiente era frio e úmido. Sua passagem era extremamente estreita, o que espantou alguns claustrofóbicos. Quando saímos, nos deparamos com uma família de quatis. Os animais nos olhavam com um misto de amizade e apreensão. Não resisti e saquei uma banana. Aos poucos, fui jogando pedacinhos e eles foram se aproximando de mim. Logo eu estava cercado por vários deles. Com os olhos brilhando, Rafaela se aproximou e me pediu um pedaço para dar para eles também. Devo ter parado com um ar bestificado. Rafaela estava falando comigo! Sorri para ela, satisfeitíssimo, e lhe entreguei a outra banana completa. Estava completamente encantado.
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Durante a vida inteira não havíamos trocado nem cinco palavras somadas, mas naquele momento, ficamos comentando sobre os quatis. De repente, para o meu desgosto, Alana apareceu com um sapo na mão e nos presenteou com o seguinte comentário:
— Recentemente, foi descoberto numa missão espacial que os sapos conseguem vomitar, sabia primeiro, eles vomitam o estômago inteiro. Depois, usam os braços para remover todo o conteúdo do estômago e voltam a engoli-lo. Interessante, não?
— Que máximo! — empolgou-se Leandro, aproximando-se de Alana e mostrando o sapo para mim, acabando com as minhas esperanças de fingir que eu não conhecia aquela gente esquisita.
Como era de se esperar, Rafaela torceu a cara com ar de nojo e votou para perto de Mateus. Onde fui amarrar o meu burro?
Quando seguimos caminho, enquanto contornávamos alguns troncos caídos e cobertos de musgos em direção à próxima gruta, esgueirando-nos entre as árvores, fomos subitamente surpreendidos por uma voz:
— Todo mundo parado aí! Mãos pra cima, mãos pra cima...
Alarmado, percebi três sujeitos encapuzados cercando nosso grupo. Estávamos numa turma de cerca de vinte pessoas, o que seria vantagem, se todos eles não estivessem armados.
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— Fiquem calmos, por favor — pediu Eva, com a voz trêmula. — Ninguém vai reagir, podem levar o que quiserem...
— Se me obedecerem, tudo vai ficar bem — garantiu o aparente líder do bando. — Meu comparsa vai passar por vocês pra recolher os bagulhos. Queremos só as carteiras e os eletrônicos. Pode ir passando tudo: essas câmeras, celular, os bagulhos de música e tudo isso...
Coloquei as mãos na cabeça e olhei para Rafaela, apavorado. Ela tentava se aninhar atrás de Mateus, que desviava o ombro das mãos dela, com a cara tão branca quanto uma vela. Empurrando as pessoas com o cotovelo, um dos meliantes organizou uma roda para começar a recolher os objetos. Sem que ninguém percebesse, postei-me ao lado de Rafaela no círculo. Eles começaram com cinco pessoas à minha direita. Reparei que os braços de Rafaela tremiam e seus olhos estavam cheios de lágrimas. Mesmo não estando certo disso, inclinei-me sorrateiramente para o seu lado e sussurrei:
— Fique tranquila, vai acabar tudo bem.
Com certa surpresa, ela me olhou de relance. Em seguida mordeu o lábio inferior e acenou minimamente com a cabeça. Eu queria poder abraçá-la ou colocá-la atrás de mim, mas sabia que qualquer movimento poderia desencadear violência por parte deles. Um dos bandidos andava pelo círculo, encarando e intimidando as pessoas, muito inquieto. Fiquei
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me perguntando se ele estaria drogado, pois parecia estar jorrando adrenalina. Todos despejavam seus objetos numa mochila preta, sem retaliar. Quando passou por Eva, que estava à minha frente no círculo, o mascarado eletrizado parou, olhou para o seu pescoço e arrancou com toda força um cordão de ouro que ela usava. Eva deu um grunhido de dor. Leandro, ao lado dela, não resistiu e passou a mão pelo seu pescoço. O meliante bateu com a mão da arma de baixo para cima no antebraço dele, exigindo que voltasse para a posição.
Chegou à vez de Mateus, que agora não estava mais branco, mas parecia vermelho de raiva. Ele pegou o celular no bolso da bermuda junto com a carteira e enfiou o braço dentro da mochila do ladrão. Quando recuou o braço, num movimento rápido colocou as mãos diretamente atrás da cabeça. O bandido deu um passo para a direita e parou em frente à Rafaela. Meu coração disparou. Calmamente, apesar de nervosa, ela pegou um iPod rosa, sua carteira e os despejou na mochila. Em seguida, puxou a câmera que havia trazido e também deu a ele. Chegou minha vez. Joguei meu celular na mochila e metia mão no bolso de trás da calça para entregar a carteira. Nesse momento, um dos celulares tocou. Alguns soltaram a respiração, presa por causa do clima tenso, o que causou um burburinho. O líder do bando colocou o cano da arma diante da boca e sibilou um sonoro "shhhhhhhh". Todos olhamos uns para os outros,
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procurando ver de quem era o aparelho. O barulho não estava abafado, por isso em poucos segundos ficou claro que o celular estava do lado de fora da bolsa. O líder do bando seguiu o barulho e parou diante de Mateus, tombando a cabeça lentamente de lado e em seguida estalando a língua em reprovação. Meu rival estava visivelmente suado e tinha os olhos arregalados. Num movimento brusco, o infrator puxou o pulso de Mateus de trás da cabeça e abriu sua mão, avistando o aparelho escondido.
Não houve tempo para pensar nos movimentos seguintes. O mascarado agoniado tirou o comparsa da frente e deu uma coronhada na cabeça de Mateus, fazendo-o cair no chão, desmaiado. Houve gritos e muitos alunos saíram correndo. O possível drogado virou-se de costas e deu um tiro na direção dos que fugiam. Eva ficou apavorada. Não consegui pensar e agi por impulso. Puxei o braço de Rafaela, que já ia se agachando para socorrer Mateus, e corri com ela em direção à mata fechada. Houve outro tiro, o que fez com que Rafaela corresse ainda mais rápido junto comigo. Tropeçamos em alguns galhos e troncos pelo caminho, mas não chegamos a cair. Tentei me orientar pelo barulho da água para não sair muito do caminho da trilha. Ouvimos uma voz gritando: “Atrás deles!” isso fez com que Rafaela parasse e se jogasse no chão de joelhos, enfiando o rosto nas mãos. Mesmo tão apavorado quanto
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ela, animei-a a levantar-se, dizendo que eles deviam ter ido em outra direção.
Continuamos correndo, depois caminhando ofegantes, por cerca de vinte minutos. Em certo momento, o zumbido sereno da mata começou a dominar o ambiente. Achamos uma árvore com um tronco bem largo e nos sentamos ali, em silêncio, atrás dela, sem nos importarmos com a terra úmida abaixo de nós. A minha respiração ofegante embaçava as lentes dos meus óculos, de modo que os tirei para limpar na ponta da minha camisa. Creio que o coração dela estava tão disparado quanto o meu, pois ficamos ali parados, à espreita, retomando o fôlego e tentando ouvir os barulhos para saber se alguém vinha atrás de nós. Contudo, só ouvimos o barulho dos micos. Um passarinho soltou um pio alto e saiu voando. Coloquei os óculos e percebi que a poucos metros de nós havia um formigueiro no chão. Depois de alguns segundos, levantei-me vagarosamente. Olhei por detrás da árvore e nada vi atém da mata fechada. Rafaela continuou ali, a limpar o nariz, me olhando com aquele olhar enigmático. Com pestanas compridas e sobrancelhas enviesadas, seguiu-se um longo silêncio entre nós.
— Por que você me puxou? — ela perguntou de repente.
Evidentemente, fiquei vermelho.
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— Porque você estava mais perto de mim — menti descaradamente — e você parecia abalada. Depois houve os tiros... Se você tivesse ficado lá com Mateus, só Deus sabe o que poderia acontecer.
Inesperadamente, os lábios dela se contraíram numa linha fina.
— Pois devia ter me deixado lá com ele. Mateus agora pode estar morto!
Como é que é? Pensei em silêncio, com um sorriso arrasado. Ela preferia ter morrido com aquele panaca? Devo ter ficado com um ar estúpido, zangado com a asneira que ela acabara de me dizer, mas incapaz de manifestar minha zanga por achá-la tão bonita irritada. Mesmo assim, falei:
— Mateus não morreu, no máximo desmaiou. Quem mandou ser tão idiota num assalto, querendo bancar o sabichão? Isso é bem a cara dele.
— Ele deve ter feito isso para nos ajudar! — disse ela, revoltada, as lágrimas descendo novamente peto seu rosto. — Assim que os ladrões nos deixassem, ele chamaria a polícia e todos recuperariam seus bens. Foi um ato de coragem.
A raiva subiu pela minha garganta, queimando-a.
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— Um dos atos mais idiotas — não pude deixar de dizer. — Ele não merece suas lágrimas, não fez nada para te proteger.
— E o que você queria? Aqueles bandidos estavam todos armados!
— Ele deveria ter entregado tudo, como todo mundo. Agora, estaríamos a salvo. Mas, não... Mateus quis aparecer, como sempre. Alguém pode ter morrido por causa do suposto ato heróico daquele imbecil. Não sabemos para onde foram os tiros. E quem se importa com nossos bens?
Parecendo furiosa, Rafaela não respondeu, só esfregou o rosto com as mãos. Como um idiota, aproximei-me para ajudá-la a se levantar.
— Vem, vamos achar o caminho de volta. Os bandidos já devem ter fugido.
Ignorando minha mão, Rafaela se levantou e bateu na parte de trás da calça, olhando em volta.
— Sabe voltar? — perguntou friamente.
— Vamos retornar por onde viemos.
— Então, vá na frente.
— Tudo bem — eu disse. Em seguida comecei a procurar algo no chão.
— O que está fazendo? Perdeu alguma coisa?
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— Precisamos de um galho grande — falei. — quando se anda na mata, precisamos ir tateando o caminho. Muitos bichos podem se esconder por debaixo das folhas.
— Bichos? — Ela deu um passo até mim. — Que tipo de bichos?
— Cascavéis, por exemplo. — Tentei não sorrir quando seus olhos se arregalaram. Com certeza, agora ela andaria perto de mim. Coração mole, tentei acalmá-la. — Mas não se preocupe as cobras não vão deliberadamente atrás das pessoas. Sua dieta consiste de pequenos roedores, aves, sapos e até mesmo insetos. — Por Deus! Eu estou parecendo a Alana! Pensei em silêncio. — Mas o instinto primordial de uma cobra é a autodefesa. Na verdade, cobra é um bicho meio indefeso, sem pernas, sem bons ouvidos ou tamanho grande. Por isso, o veneno é que assume o papel-chave em seu mecanismo de defesa.
— Ai, Deus! Acho que agora eu preferia os bandidos...
Eu ri.
— Para a nossa sorte — continuei, enfatizando as palavras — e azar da natureza essa área já foi devastada um dia, e por isso não apresenta mais todas as espécies de animais característicos da região.
— Ainda bem, né? — Olhei-a com reprovação. Ela se tocou. — Quer dizer, para a gente. E o que devemos fazer se encontramos uma cobra?
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— Saia do caminho — falei, finalmente achando no chão um galho que servia. Peguei-o e franzi o cenho testando sua envergadura. — Se não entrar no alcance da cascavel, provavelmente nada irá lhe acontecer. A não ser que ela esteja com a cabeça levantada e o chocalho se movendo, que são sinais evidentes de ataque. Senão, só se afaste calmamente e fique bem quieta. Deixe a cobra ter seu espaço para ir embora. E não a provoque. Irritar uma cobra só tem um resultado: você vira o alvo.
Meu discurso não pareceu confortá-la.
— E se ela estiver em posição de ataque? O que devo fazer?
Com certa ironia, eu ri.
— Não se preocupe com isso. O ataque da maioria das cobras é mais rápido do que o olho humano pode acompanhar. Quando pensar em se dar conta, já estará morta. Vamos dar o fora daqui. — Comecei a andar.
— Espera! — ela gritou, passando um braço pelo meu. É melhor andarmos bem juntos.
E assim estávamos ali: Rafaela agarrada a mim como se eu fosse a sua tábua de salvação, e eu confesso todo satisfeito. Devo ter-lhe parecido quente, pois àquela altura fique tão vermelho quanto um tomate.
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Começamos a andar de volta para a trilha principal. No fundo, eu esperava que nosso retorno demorasse algum tempo. Estava curtindo tê-la junto comigo. Parecia um sonho. Fiz o possível para ignorar o perfume convidativo que emanava dela. Minha vontade era inclinar-me para o lado e dar-lhe uma boa fungada no pescoço. Rafaela parecia estar desconcertada com a nossa proximidade, mas, para minha vantagem, com medo demais para ser orgulhosa.
— O que você faz da vida? — De repente saiu-me com essa. — Por acaso é escoteiro?
— Não. — Eu ri. — Por que me perguntou isso?
— Sei lá, você sabe tanto de cobras...
— Discovery Channel. — Começando a ficar preocupado, parei para olhar a onde estávamos indo. — É o meu programa favorito. Quando era pequeno, até quis ser escoteiro, mas perguntei ao meu pai se podia e ele disse que iria pensar. O que corresponde a não, em "Gustavonês". Ele é muito protetor. Mas se você prestasse mais atenção nas aulas de ciências (e em mim, eu queria dizer) saberia que sou o primeiro da turma.
A mão livre de Rafaela foi parar na cintura.
— O que você está querendo dizer? Eu presto atenção nas aulas de ciências, só não é a minha matéria favorita. Quando for para a faculdade, quero cursar Moda! Obviamente você não sabe, mas já tenho um blog que
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dá dicas sobre isso e já tenho mais de sete mil seguidores. Tenho jeito pra coisa garoto, nossos talentos são bem diferentes. — Unindo as sobrancelhas, ela olhou para a mata. — E por que estamos parados aqui? Não me diga que estamos perdidos?
— Não, não. — Não quis alarmá-la. — Só estamos descansando um pouquinho, quero saber se os bandidos já foram.
— Ah...
— Fale-me mais da sua nobre contribuição à sociedade. — Continuei caminhando para tentar distraí-la. — Sete mil seguidores? É coisa pra caramba. Sobre o que você fala no blog? — perguntei, como se eu já não tivesse visto todos os vídeos.
— Todo tipo de coisa — ela deu de ombros. — As novas tendências de acessórios, novas estampas, maquiagem e. Cara... — Ela parou e sacudiu uma das pernas. — Esse pé ta doendo pra caramba.
— Também — olhei para ela — quem mandou vim de All Star para uma caminhada? Devia ter vindo com um tênis mais propício.
— Acontece engraçadinho, que o único tênis esportivo que eu tinha era branco, e com detalhes em verde. Como eu poderia usar com essa roupa? — Olhou-me com os olhos arregalados.
— Mudasse de roupa — sugeri, ingenuamente.
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Abruptamente, ela estacou, parecendo apavorada por um instante. Em seguida, me largou e olhou para o próprio corpo. Sua súbita distância não foi o suficiente para interromper o fluxo do calor em meu braço.
— Acha que essa roupa está feia?
— Claro que não. — Eu ri, aliviado, quando entendi sua preocupação. — Só acho que devia ter usado algo mais confortável. É isso que usamos nas caminhadas, principalmente em se tratando dos pés.
Parecendo aliviada, Rafaela cruzou os braços.
— Pois desde que sou criança escuto dizer que mulher, para estar bonita, tem que sofrer. E, até que eu tenha uma boa legging que combine com aqueles tênis, suportarei os sacrifícios.
— Tudo bem, você que sabe — eu disse. — Mas agora precisamos ir. Quer que eu te carregue um pouquinho?
Ela demorou uns três segundos para responder.
— Como vai cutucar o chão se me carregar?
— Se pendura nas minhas costas.
Ela fez uma careta.
— Acho que não. Dá para aguentar mais um pouquinho. Já estamos perto, não é?
— Acho que sim — menti. — Vamos andando.
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Atrelada a mim novamente, tornamos a caminhar. Começou a me bater um desassossego quando passou meia hora e nada de trilha. Rafaela monologava o tempo todo, me pondo a par de um novo web site sobre sapatos. Eu fazia perguntas esporadicamente para mantê-la distraída e indiferente ao meu nervosismo. Tentei localizar algum barulho de rio para seguir o seu fluxo, mas os chiados pareciam muito distantes. Tinha certeza de que estava andando na direção certa até que percebi um grande tronco caído no chão. Era gigante e impossível de não se notar. Com certeza, não havíamos passado por ele na vinda. Dessa vez fui eu que estaquei. Rafaela interrompeu o passo junto comigo e olhou para frente. Quando viu o tronco, deve ter pensado o mesmo que eu, pois levou as mãos ao rosto e desandou a chorar outra vez.
— Meu Deus! Estamos mesmo perdidos...
— Rafaela...
— SOCORRO! — começou a berrar. — SOCORRO! SOCORRO! SOCORRO!
— Não faça isso — eu disse, segurando-a petos braços — pode ter predadores por aqui. E os bandidos ainda podem estar por perto.
— Pois eu quero mais é que eles me achem! — explodiu para cima de mim. —Pelo menos eles sabem o caminho de volta. Não sei onde estava com a cabeça quando corri para a floresta atrás de você!
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Eu a soltei.
— Deixa de ser ingrata, garota, há essa hora você poderia estar morta!
— E que diferença faz? — Ela colocou as mãos na cintura. Tinha uma forte tendência a demarcar o meio do corpo. Como eu não havia percebido? — Acha que se eu ficar perdida aqui vou sobreviver? Ainda mais com você? Um Indiana Jones paraguaio.
Apertei minhas mãos em punho ao lado do corpo. Nunca pensei que desejaria estrangulá-la.
— Pois, então, vá embora sozinha. A partir daqui, estamos separados.
— Nada disso! — ela protestou. — Você me trouxe até aqui, agora vai me levar de volta. E aceito aquela sua carona. Coloca a mochila na frente, pois vou pular nas suas costas.
— Vai pular coisa nenhuma — rosnei para ela. — Nem me agradeceu por salvar sua vida ainda. A partir daqui, caminhamos sozinhos. — Para mostrar que falava sério, virei-me e dei os primeiros passos na direção oposta.
— Enzo, espera!
Continuei caminhando.
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— Por favor...
Parei, sorrindo, mas me virei com a cara amarrada. Creio que não deixei transparecer o prazer que tive ao ouvir meu nome em seus lábios pela primeira vez. Bem mais humilde Rafaela torcia as mãos. Fitei-a até ser obrigada a continuar. Então, ela murmurou:
— Não vá.
Marquei um ponto, pensei.
— Se quiser continuar caminhando comigo, terá de parar de me acusar e reclamar o tempo todo. Estamos oficialmente perdidos, mas vivos. Lamento que isso tenha acontecido, mas agora precisamos agir. Não podemos ficar aqui até entardecer, ou seremos realmente devorados, mas pelos mosquitos.
— Tudo bem. — Ela aproximou um passo de mim, o rostinho demonstrando tal abandono que tive vontade de pegá-la no colo. — Estou morrendo de medo. E costumo ficar histérica em situações como essa. Não que eu já tenha me perdido na selva em situações de perigo eu quero dizer. Mas agora você é tudo que tenho. Por favor, não me abandone.
Xeque-mate.
— É claro que não vou te abandonar. — Atrevido, passei a mão na franja dela. Seu cabelo era sedoso como eu imaginava. — Só preciso que
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fique calma, ok? Essa é a primeira lição do exército para perdidos na selva: manter a calma. Agora, sobe aí. — Virei-me de costas, passando a minha mochila para frente. — Logo, logo, alguém vai nos achar. Vamos procurar um lugar mais aberto, para que, se for o caso, um helicóptero nos veja.
Aborrecimento esquecido, Rafaela subiu em cima de mim. Passei o punho por debaixo dos seus joelhos para lhe dar mais firmeza nas pernas. Caminhei com ela assim por cerca de meia hora, impressionado com a minha resistência e secretamente apavorado com o silêncio daquela mata. Paramos por dez minutos para comer. Dividi um sanduíche com ela. Não sabia por quanto tempo ficaríamos alie achei melhor racionar a nossa comida. Rafaela só tinha trazido um pacote de Pringles, uma squeeze com água e uma barra de chocolate branco. Enquanto comíamos, ouvimos um barulho na mata e Rafaela sobressaltou-se, achando que pudesse ser um predador farejando a nossa comida. Pulou para cima de mim com tanta força que cambaleei para trás. Mas era somente um casai de gambás. A despeito do medo de partir desta vida, ou de ficar preso naquela mata para sempre comecei a me empolgar com o incidente. Se toda vez que Rafaela tomasse um susto de atirasse para cima mim, eu mesmo provocaria os barulhos. De repente, ela parou e ficou mirando seu sanduíche.
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— Acha que ele morreu?
— Quem? — Dei um gole moderado no meu isotônico, percebendo que o mato alto arranhara um pouco as suas canelas.
— Mateus.
Ao perceber que ela ainda estava preocupada com ele, senti minha garganta fechar, mas tentei confortá-la:
— Claro que não. Pelo menos, ele estava na trilha. Com certeza já o encontraram. Aquela coronhada na cabeça não foi suficiente para matá-lo.
Nenhum de nós dois disse nada por um momento.
— Mas, e se atiraram nele? — ela perguntou.
— Ele estava inconsciente, não representava perigo. Com certeza eles correram atrás dos outros.
Desabando, Rafaela começou a soluçar.
— Que foi? — Comovido, coloquei a mão no seu ombro.
— Jéssica, a minha amiga, foi a primeira a correr. Será que eles a pegaram?
Fiquei olhando para ela, sem saber o que dizer.
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— Vamos torcer que não. — Ela continuou me olhando. — Vem aqui. — Puxei-a para perto de mim, largando minha garrafa no chão. — Nesse momento, precisamos pensar em nós dois. Em como sair daqui. Não vamos sofrer por antecedência, ok?
Um sorriso conformado, porém não menos brilhante, surgiu nos cantos da sua boca. Fiquei satisfeito por ter provocado aquilo. Ela era maravilhosa, tudo com que eu sempre sonhara, com os cabelos afastados do rosto e aquele meio sorriso nos olhos castanhos. Subitamente, ela desviou os olhos de mim e olhou para longe. Uma leve linha apareceu entre suas sobrancelhas enquanto examinava algo a leste de nós. De repente, me perguntou:
— Aquilo ali é uma gruta?
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Recolhemos as nossas coisas e caminhamos até lá, sem deixar nenhum resquício de sujeira para trás. Minhas heranças ecológicas não permitiam. Conforme chegávamos perto, avistei uma enorme rocha. As copas iam se abrindo acima de nós, liberando os raios de sol como uma cortina em direção ao solo. Havia uma fenda na rocha, mas não exatamente uma gruta, na verdade estava mais para um abrigo. O que seria bom, raciocinei, procurando ser prático, caso precisássemos de um
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lugar para passar a noite, pois dificilmente abrigaria morcegos. Entrei no pequeno espaço seguido por Rafaela. Debaixo da cobertura, o clima ficou imediatamente mais frio, mas eu imaginava que durante a noite o efeito seria o contrário. Devia ter em torno de quinze metros quadrados, mas era comprido, como se fosse um túnel. O chão era de terra irregular e em algumas partes pontiagudo. Havia um pouco de musgo subindo pelas paredes. Fiquei contente por não notar nenhum buraco nelas, pois poderia conter algum animal entocado. O teto ia descendo para o fundo em degraus como uma escada invertida. Havia uma grande pedra que poderia servir-nos como uma espécie de mesa, apesar de ser irregular, e pedras menores por todo o recinto. Chutei algumas delas para ver se havia algum animal embaixo, como um escorpião, uma aranha ou sei lá o quê.
Não havia nenhum resquício do Homem naquele local. O lugar era inóspito, sem dúvida. Rafaela sentou-se perto de um tronco apodrecido e pensei que ela fosse chorar novamente ao se dar conta de que estava em sua provável morada atual, mas ela apenas sibilou de prazer quando tirou um dos tênis.
—Vamos descansar um pouquinho, ok? Meus pés estão me matando.
— Tudo bem. — Joguei a mochila no chão. — Fique aqui. Vou ver se consigo subir nessa pedra, tentar avistar algo ta de cima.
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— Não! — ela berrou. — E se aparecer uma cobra?
Com um suspiro, ajoelhei em frente a ela.
— Já está quase entardecendo, Rafaela, não podemos facilitar. Precisamos sinalizar onde estamos, buscar alguma direção...
— Então, eu vou com você. — Ela começou a se levantar, mas percebi que seu calcanhar estava mesmo machucado.
— Não, fique aqui. Olha — abri minha mochila —, fique com isso. — Entreguei-lhe meu desodorante, me esforçando para manter a seriedade. — Bichos têm medo disso, se algum aparecer e te ameaçar, espirre com toda força. Mas se eles não se meterem com você, fique quietinha.
Intrigada, Rafaela deu uma rápida borrifada no ar.
— Eu gosto do cheiro, por que eles iriam fugir?
Segurei uma risada.
— Por causa do barulho, não do cheiro.
Pouco convencida, Rafaela se ajeitou novamente no chão, porém alerta, com o dedo no gatilho. Acenei com a cabeça e sai pelo abrigo afora, morrendo de vontade de rir e torcendo para que nenhum predador realmente aparecesse. Qualquer cachorro do mato a deixaria apavorada. Contornei a rocha que nos abrigava que parecia bem grande e que
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dificilmente seria escalada, porém servia perfeitamente para rapel. Olhei ao redor para ver se via alguma árvore mais fácil de subir e tentar avistar algo na superfície, mas todas tinham troncos muito longos e grossos, ou pareciam muito frágeis. Ao que parecia, a floresta, com suas sombras verdes e cheiro de umidade, por enquanto seria meu lar. Meu e de Rafaela, pelo menos.
Olhei ao redor para ver se via alguma árvore frutífera e reconheci algumas espécies: murici, ipê-amarelo, cambuí, jequitibá, cedro e pau-pereira eram apenas algumas delas. Felizmente, avistei uma jaquelra perto dali. Não que eu gostasse de jaca, mas havia visto uma matéria da tevê que dizia que essa fruta era muito rica em proteínas e vitaminas, principalmente cálcio, tanto que era indicada na alimentação de crianças para fortalecer os dentes e os ossos. E que também era rica em fibras e sais minerais, como ferro e fósforo. Pelo menos, não morreríamos de inanição.
A esse pensamento, fui acometido por um leve tremor. Pela primeira vez dei-me conta de que estava realmente perdido. Mas não podia parecer amedrontado, pelo menos não para Rafaela. Por isso, voltei para lá. Quando cheguei, ela já havia se levantado. Estava descalça e pulando de um pé para o outro com uma mão no ventre e a outra no desodorante. Olhou-me com uma cara desesperada e disse que precisava fazer xixi. Um silêncio se seguiu a esse seu comentário. Corei inteiro,
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pensando no que deveria fazer, como se houvesse outra solução. Afastamo-nos um pouco da nova "casa" para que ela pudesse aliviar-se mais longe dali. Evidentemente, ela não quis ir sozinha, pois ainda estava com medo da vida selvagem. Vi que trazia algo na mão, parecido com um lenço de papel. A certa distância, ela pediu que eu me virasse de costas e me entregou o desodorante. Fiquei contente, pois me sentiria ofendido se ela me visse como um ser absolutamente assexuado. Ou gay. Só assim ficaria nua na minha frente. Tentando parecer tão casual quanto possível, virei o corpo para o outro lado, mantendo-me a uns dois metros de distância.
— Que horas são? — perguntou Rafaela, enquanto voltávamos.
Olhei para o relógio e informei que eram duas horas.
— Conseguiu enxergar algo lá de cima? — Ela apontou para o teto.
— Nem consegui subir, a parede é muito íngreme.
— E o que vamos fazer? — Ela arregalou os olhos, enquanto eu pegava a mochila. — Não podemos passar a noite perdidos aqui. Tem que haver algum jeito...
— Vamos tentar voltar para a trilha de novo, mas desta vez, vamos marcar o caminho. Se não acharmos, pelo menos saberemos como voltar.
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Rafaela parou e me mirou em silêncio. Mas não foi um silêncio normal, muito menos amistoso.
— E por que eu voltaria para cá? — indagou ela, já perdendo a paciência, coisa que nunca tinha muito, pelo visto.
— Provavelmente, está olhando para o nosso futuro lar. Em termos de perdidos na floresta, isso aqui é o mais perto que chegaremos de um hotel cinco estrelas.
Rafaela piscou atônita.
— O quê? Acha que vou ficar aqui e dormir com você? Nem morta! — disse incisiva, como se fosse a pior escolha a se fazer na história da humanidade.
Fiquei mirando seu rosto, estupefato. Uma raiva súbita me fez estremecer até a medula. Nunca havia visto alguém tão irritante e ingrato na vida. Olhava desdenhosamente para mim. Havia qualquer coisa no seu olhar que me perturbou, uma espécie de aversão ou de medo de ficar ali sozinha comigo. Não parecia, nem por um momento, sentir-se grata por tudo que eu já havia feito por ela. Estava sempre a pedir algo ou a exigir, muito diferente do que eu a imaginava. Foi como se eu tivesse um clique: Rafaela era rabugenta. E estava me magoando. Magoando muito. Por isso não respondi, só fechei a cara e fui andando para a mata sozinho.
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— Ei, pera aí a onde você está indo? — Ela veio correndo atrás de mim. — Por que me deixou falando sozinha?
— Se que saber, estamos os dois no mesmo barco, e ele está afundando. Se estiver a fim de ficar dando chiliques, pode fazer suas escolhas sozinha. Não tô mais a fim de ficar dando uma de babá.
Resolvendo parar, ela gritou para mim.
— Pois quer saber, que se dane você! Ninguém está pedindo sua proteção. Não sei por que diabos fugi com você do assalto. Agora vou morrer aqui, devorada por animais selvagens! Já posso até ver as manchetes: "Menina sobrevivente de assalto é encontrada no bucho de uma sucuri". Mas, tudo bem. Posso perfeitamente achar o caminho da trilha sozinha. Não via Discovery channel, mas via Lost. E quando eu voltar vou dizer que você está morto na barriga de um jacaré. Vai ficar perdido nesta selva pelo resto da sua vida miserável. Ninguém virá te buscar...
Silêncio! Gritei na minha mente.
— Pois boa sorte, então. — Continuei andando, com vontade de me virar e lhe dar uns bons tapas na bunda, como se ela fosse uma criança birrenta. — pode ficar com o meu desodorante. Só vai deixar a cobra perfumada antes de dar um bote em você. Mas, não se preocupe do jeito que você é enjoada, é capaz dela te vomitar.
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Esse argumento a calou por alguns segundos. Pelo pouco que conhecia sobre ela, comecei a contar mentalmente. Três, dois, um...
— Enzo — sua voz surgiu fininha atrás de mim. Abri um sorriso malicioso. — Volte aqui, não vai adiantar nada a gente discutir desse jeito.
Sentindo-me um rei cruel, não respondi. Mas involuntariamente senti meus pés diminuírem minhas passadas.
— Isso é burrice. Precisamos nos unir — ela insistiu. — Nossas chances de sobrevivência serão muito maiores. Ambos sabemos disso.
Continuei sem responder. Rafaela era uma mulher sem tirar nem pôr: amável e amistosa num momento, despeitada e insuportável no outro. Perguntei-me para onde fora minha determinação, pois acabei parando. Eu era como cera em suas mãos.
— Por favor — ela me disse por fim, suave e delicadamente. Foi difícil resistir.
Virei-me para ela e lhe disse:
— Você precisa entender que não é a única a estar perdida por aqui. Estou fazendo de tudo para manter o controle, o que não quer dizer que também não esteja assustado. Então, em vez de ficar reclamando de tudo o tempo todo, FAÇA ALGUMA COISA PARA AJUDAR! — berrei no final.
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Olhou-me apavorada. Como se eu tivesse exigido que descobrisse a cura do câncer.
— Mas, o que posso fazer? Na verdade, não sei nada sobre esse negócio de mata.
— Vamos tentar achar a trilha de novo e precisaremos estar atentos a vestígios que as pessoas deixam pelo caminho, como pegadas, roupas e restos de comida. Também precisamos ficar com os ouvidos atentos para identificar barulhos. Portanto, se mantiver essa matraca fechada, já estará me ajudando.
Cerrou os olhos, ultrajada.
— Grosso! — disse cruzando os braços na altura do peito.
Satisfeito por tê-la nas mãos, virei-me de costas e continuei caminhando. Ela correu e se pôs ao meu lado, acompanhando meus passos. Durante o percurso, marcamos caminho fazendo cruzes em alguns troncos com a minha chave. Acredito que andamos por cerca de uma hora. Rafaela permaneceu miraculosamente calada. Não falamos pelo que me pareceu muito tempo. Só ouvíamos o zumbido das folhas, o que me ajudou a raciocinar com maior clareza. Se realmente fôssemos pernoitar por ali, havia algumas providências a serem tomadas. Parecia que andávamos em círculos, pois não chegávamos a lugar algum. Nenhum cenário novo, nenhum barulho, nada. Éramos como se fossemos as únicas
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pessoas do mundo. Rafaela parou mais uma vez para fazer xixi. Em certo momento, os mosquitos começaram a nos incomodar. Com medo de ficar escuro Rafaela sugeriu que voltássemos para o abrigo. Como tínhamos pouca comida e não podíamos desperdiçar energia, concordei. Foi como se levantássemos uma bandeira branca nos rendendo àquela imensa floresta. Rafaela, talvez por causa da tensão, estava o tempo todo com fome e queria beliscar alguma coisa. Não deixei que fizesse isso, explicando que precisaríamos poupar os suprimentos, mas ela continuava insistindo. Deixei bem claro que a resposta era "não", mas a criatura parecia não entender português.
Quando chegamos novamente na caverna, sentamos um em cada canto e seguiu-se um longo silêncio entre nós. Quase podíamos ouvir o batimento das nossas artérias. Rafaela ficou ali sentada, as costas contra a parede, com um ar tão infeliz que eu não sabia o que podia fazer. Olhou para mim de repente, sem expressão. Deu-me a impressão de estar pensando em qualquer coisa desagradável. Em seguida, fechou os olhos, como se só olhar para mim já cansasse sua vista. Diálogo que se seguiu:
Ela: Acha que já estão procurando por nós?
Eu: Não sei (eu olhava para o chão). Mas não podemos ficar contando com isso.
Ela: E o que vamos fazer?
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Eu: Precisamos recolher galhos e folhas secas.
Ela: Por quê?
Eu (me levantei): A não ser que queira morrer congelada, precisamos providenciar uma fogueira.
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Rafaela tornou a chorar e tapou os ouvidos. Mas não foi um choro histérico como os outros, ela parecia realmente amedrontada. Vi seus ombros estremecerem e quis aproximar-me para abraçá-la, para confortá-la, mas não sabia se era isso que ela queria. Não depois daquele olhar que ela me lançou. Mas transtornou-me realmente vê-la daquele jeito, tão fragilizada. Disse-lhe que ficaria tudo bem e fui para a mata buscar o que precisava. Em segundos, Rafaela se recuperou e me seguiu. Juntamos gravetos finos, cascas de árvore, folhas, musgos soltos, capim seco, tudo que imaginamos que fosse facilmente inflamável. Achamos também alguns tocos de madeira de árvores mortas, galhos caídos e escolhemos os mais secos para servir de lenha. Quando retornamos para o abrigo, aproveitei as pedras menores do chão e construí uma plataforma bem atrás da pedra maior, a que seria usada como mesa. Essa pedra serviria para isolar o calor em direção ao fundo do abrigo, nos protegendo
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mais eficientemente do frio. Dispus os materiais que recolhemos de forma que permitisse a circulação de oxigênio no meio. Então, chegou a hora do meu maior desafio: fazer o fogo.
Já havia feito isso com a ajuda de um amigo, mas nunca havia experimentado sozinho. Minha primeira tentativa foi fazer a chama com o atrito de pedras, quase consegui uma tendinite de tanto tentar, mas não funcionou. Em seguida, peguei o meu cadarço do tênis e um pedaço mais resistente de galho. Torci-o um pouco e fiz um arco com ele. Depois, organizei uma pequena quantidade de materiais inflamáveis em cima de uma madeira maciça. Peguei outro toco de madeira e tentei parti-lo no meio, mas o destruí. Estava multo velho e desgastado. Procurei outro. Depois da terceira tentativa, achei um que parecia ideal. Enrolei-o no cadarço e comecei a friccioná-lo na base, movendo o arco horizontalmente depressa. O galho quebrou. Tentei com mais três deles, sem sucesso nenhum. Por fim, Rafaela foi à mata novamente em busca de um galho mais duro. Foi eficiente na sua empreitada, pois o que ela trouxe não quebrou. Creio que fiz isso por uns cinco minutos até ver o primeiro resquício de fumaça surgir. Rafaela ficou tão excitada com aquilo que deu um berro de empolgação. Na verdade, eu também fiquei. Parei e me abaixei para soprar a fumaça.
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— Não faça isso! — ela berrou. — Já estamos há meia hora aqui e nada. Daqui a pouco estará escuro. Não está vendo que vai apagar a fumaça?
— O fogo precisa de oxigênio — eu lhe disse. — Não fui escoteiro, mas já acampei com um amigo que era escoteiro uma vez, ele me ensinou como fazer isso. Veja...
Continuei soprando e, diante de nossos olhos atônitos, como num passe de mágica, o fogo finalmente acendeu. Joguei o pequeno tufo de palha que estava queimando no meio da fogueira que eu mesmo havia montado me sentindo um herói. As labaredas foram se formando aos poucos e em poucos minutos já estávamos aquecidos. O calor do fogo nos abraçou. Sentamos em frente à fogueira. O chão não estava exatamente confortável, mas estávamos tão cansados que não nos incomodamos. Rafaela olhou para mim e as chamas denunciaram uma onda de gratidão em seus olhos. Tinha um verdadeiro sorriso no rosto, o primeiro que dirigia a mim desde que ficamos perdidos ali. Não pude fazer outra coisa a não ser sorrir de volta para ela. Estávamos sujos e igualmente exaustos. Havia arranhões em nosso corpo e picadas de mosquitos. Depois de tantas brigas, eu desejava que ela estivesse pálida, desgrenhada e horrorosa. Mas aquela beleza descuidada só aumentava seu encanto. Eu desejava e não
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desejava tocá-la. Não consegui definir direito se eu ainda estava com raiva dela. A beleza nos confunde. Deixamos de saber o que queremos ou não.
Aproveitamos nosso descanso para beber um pouco do meu isotônico. Ainda havia água na garrafa de Rafaela, mas achamos melhor reservá-la. Abrimos a barra de chocolate e pegamos um quarto para cada um. Ela deu uma mordida, um grunhido de satisfação e recostou-se na parede em seguida. De repente, abriu os olhos e ficou me olhando por um longo tempo. Comecei a corar, não pude evitar. Seus olhos grandes e ardentes estavam ali, a me olhar fixamente. Eu não queria me sentir daquele jeito, emocionado por estar ali com ela, finalmente sozinhos, naquela situação horrorosa. Rafaela era muito diferente do que eu idealizara. Era imprevisível. Criticava tudo constantemente. Eu não queria sentir aquele prazer incompreensível e ofuscante que ela sempre me causava. Meu sentimento por ela apenas crescia, mesmo depois de descobrir os seus defeitos. Ela era egoísta, mimada e exigente. Mas olhando para ela ali parada, eu me esquecia de tudo. Eu amava o jeito como seu cabelo emoldurava seu rosto, caindo numa curva graciosa, como se fosse um véu. Caia-lhe até a altura dos cotovelos. Adorava quando ela girava o cabelo de lado, num movimento descontraído. Acho que não tinha a menor ideia de como ficava encantadora. Eu poderia ver
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aquele movimento dezenas de vezes sem jamais me cansar. Odiava-me por isso.
— Obrigada — disse ela subitamente —, não sei o que faria se estivesse perdida sozinha. Com certeza iria morrer. Se não fosse congelada, devorada pelos animais. Uma vez li que a chama os afasta...
— É verdade — pigarreei, desconcertado com seu primeiro surto de gratidão —, mas não precisa me agradecer. Afinal, fui eu quem te trouxe para a mata.
Parecendo arrependida, Rafaela deu um longo suspiro.
— Desculpe por tê-lo acusado disso também. Ficamos desesperados, sei que você só queria ajudar.
Olhei para ela de relance.
— Prometo que vou tirá-la daqui. Não quero que tenha medo. Com certeza amanhã nos acharão.
—Não estou mais com medo. — Ela fez uma pausa. — Sabe — me apontou o chocolate — fiquei aqui me perguntando por que... — fez uma pausa — por que nunca fomos amigos? Por que nunca nos falamos? Você é meu vizinho de frente...
— Pois é. — Joguei um galho na fogueira. — Coisas da vida.
Pensativa, Rafaela continuou me encarando.
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— Você quase nunca saía na rua. Por quê?
— Sempre fui muito tímido. — Dei de ombros. — Ainda sou. Mas às vezes eu saía, sim. Na verdade, não gostava muito dos meninos do nosso condomínio. E ainda não gosto. São todos muito baderneiros. A maioria ainda não mudou.
— É verdade — ela riu, parecendo conhecê-los bem de perto —, a maioria realmente não mudou.
Eu ri.
— Sabe... — ela continuou — eu sempre acreditei que as impressões dos primeiros anos permanecem por mais tempo com a gente. Boas ou ruins, elas acabam determinando quem nós somos. — Parecendo realmente interessada, inclinou-se para mim e abraçou os joelhos, sorrindo. — Conte-me, quando você pensa nos seus cinco anos, do que se lembra?
Engoli em seco. Depois olhei para as minhas mãos fechadas em punho diante de mim, como se ali estivessem minhas memórias. Depois de alguns segundos, disse:
— Lembro-me da minha mãe. De ficar sentado no barco esperando ela emergir do oceano. Ela era mergulhadora. — A lembrança surgiu com tanta claridade, que sorri. — Ela morreu mergulhando sozinha, ficou presa nos corais. — A expressão de Rafaela se enterneceu.
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— Lembro-me do cheiro das flores que ela trazia para dentro de casa, do bolo de cenoura que ela fazia... Também me lembro de como ela brigava comigo quando eu ficava dividido entre terminar de arrumar o meu quarto ou espiar a sua casa pela janela. — Calei-me por dois segundos, embaraçado pelo que acabara de revelar. —Lembro-me de você — confessei num murmúrio.
— De mim? — repetiu Rafaela, o riso demonstrando mais divertimento do que ironia. Colocou as mãos no queixo, curvando-se, enfeitiçando-me com o jogo de luz e sombras em seu rosto. — Lembra-se de mim quando eu era pequena?
Senti meu rosto queimar, mas não por causa do fogo. Mantive os olhos na chama.
— Me lembro da primeira vez em que te vi pela janela do quarto. Você estava na rua, andando de bicicleta de rodinhas, seu pai estava ensinando. Você caiu e machucou o joelho, ele veio te socorrer. — Por causa do silêncio de sua parte, virei o rosto para ela. — Sente falta dele?
Rafaela olhou para o chocolate nas mãos, parecendo-me ter perdido o apetite.
— Muito. — Seus olhos se enevoaram com a memória. — Desde que se separou da minha mãe, ele não veio me visitar. Acho que sua nova mulher tem ciúmes. Não costumo pensar muito nisso, não me lembro dele
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com frequência. Mas quando acontece, as lembranças são nítidas, claras como água. E machuca. Não gosto muito de falar sobre isso.
Fiquei olhando para ela. Eu também nunca falava dessa época da minha vida, nem da minha mãe. Nunca! Nem mesmo com a minha família. Nosso primeiro contato pacífico pareceu dissipar o ar entre nós. Mas, como ela continuava triste, senti uma necessidade desesperada de mudar de assunto. Comecei a fazer perguntas sobre seu blog de moda, o que fez com que Rafaela disparasse a falar novamente. Eu ria diante da sua empolgação. Rafaela era muito expressiva enquanto falava. Agitava os braços, fazia caretas e elevava o tom de voz quando queria ressaltar algum fato importante. E de repente estávamos ali, como eu sempre sonhei. Conhecendo melhor um ao outro. A despeito das circunstâncias, eu só queria que ela estivesse tão feliz quanto eu. Continuando nosso papo, de repente perguntei:
— O que você costuma fazer nas noites de sábado? Quer dizer, além de pernoitar em florestas...
Rafaela sorriu.
— Bem, costumo ir a vários lugares com as minhas amigas. Vamos ao shopping, ao cinema, comemos alguma coisa... Hoje eu tinha uma festa de quinze anos para ir. Mas eu nunca fui muito com a cara da debutante, então, tudo bem.
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Rimos juntos.
— Mateus costuma ir com vocês? — tentei falar de modo descontraído.
A expressão dela esmaeceu um pouquinho, Rafaela olhou para as mãos.
— Na maioria das vezes, não.
— Pensei que estivessem namorando — instiguei —, sempre vejo vocês dois juntos.
Pensando em como responder, Rafaela jogou o cabelo de lado. Admirei-a.
— Ainda não sei bem o que temos. Na escola, ele sempre fica atrás de mim. E durante a semana, às vezes, aparece na minha casa. Nunca definimos realmente o que é isso entre nós. Mas, no final de semana ele some. Sábado ele diz que é o dia dos amigos e costuma sair com eles. Diz que precisamos ter nosso espaço. E domingo ele sempre tem algum compromisso, em geral um jogo de futebol. Mas, e você? — Ela olhou novamente para mim, querendo deixar aquele assunto de lado. — O que costuma fazer?
Mirei as chamas novamente e dei um sorriso de lado.
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— Geralmente eu e Leandro vamos ao boliche, ao Paint-ball, ou passamos a noite jogando RPG. Mas a noite sempre termina no Pizza Hut. Somos viciados na pizza de peperone.
— Não tem namorada? — Ela devolveu a pergunta.
— Não.
— Mas, não sai com ninguém? Nem esporadicamente?
Meu pomo de adão subiu e desceu.
— No momento, não. Mas gosto de uma pessoa — deixei escapar.
— Sério? — Com um sorriso nos olhos, ela se inclinou para frente. — Como é que ela é? É bonita? Vocês dois já ficaram?
Nessa hora, meu rosto já não estava mais quente, estava pegando fogo. Perdido por cem, perdido por mil, pensei.
— É a garota mais bonita que já vi na vida — eu disse —, mas ela ainda não sabe do meu interesse. Praticamente nunca nos falamos.
— Como assim? — ela uniu as sobrancelhas. — Vocês dois nunca ficaram? Nem uma paquerinha?
— Não. — Estiquei o corpo e pus as mãos atrás da cabeça, fingindo me espreguiçar. — Digamos que é um tipo de amor platônico da minha parte. Ela nem desconfia.
— Ela é da escola? — ela investigou.
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Virei o rosto de lado e dei outro meio sorriso.
— Aí você já tá querendo saber demais.
Rafaela me lançou um sorriso estranho.
— Nossa... — ela se recostou na parede. — Como pode amar alguém que não te conhece? Somente por vê-la? Não consigo compreender.
— Provavelmente, eu e você temos um tipo diferente de coração.
— O que quer dizer com isso?
Abracei os joelhos.
— Não consigo entender o que você viu no Mateus, não consigo enxergar as qualidades dele.
Houve uma pausa meio tensa entre nós.
— Ele é divertido — disse mais séria. — E bonito.
— Se isso é suficiente para você... — Antes que começássemos a discutir novamente, levantei-me. Não queria estragar a atmosfera. — Se me der licença, acho que vou ao reservado, já está escuro. Também precisa ir?
— Não, não... — Ela devolveu o sorriso, meio sem graça. — Nem morta me atrevo a ir lá no escuro.
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— Tudo bem então, eu já volto.
Quando me levantei, com o canto dos olhos vi que Rafaela acompanhou os meus movimentos. Daria tudo para saber o que ela estava pensando. Assim que saí para o relento, fui golpeado no rosto por um frio cortante. Batendo os dentes, demorei uns bons cinco minutos até conseguir urinar. Havia vários ruídos estranhos a minha volta. Fiquei com medo. Assim que consegui, retornei para o abrigo e, quando cheguei, a visão foi arrebatadora.
Rafaela estava deitada de lado no chão, dormindo e fazendo sua mochila de travesseiro. Seus cabelos escorregavam pela mochila parecendo uma cascata dourada. As chamas iluminavam sua pele, dando-lhe um ar sereno, quase infantil. Fiquei perdido olhando a curva do seu quadril, desabando na cintura fina, tão delicada. Ela parecia uma deusa na abundância dos atributos. Mesmo quando fazia coisas feias, como bocejar, se coçar, ou dar um grunhido de raiva, nela sempre pareciam bonitas. E agora, dormindo... Gostaria de ter palavras para descrever a cena como um poeta saberia. Andei até ali e me sentei perto dela. E em algum momento da noite, comecei a achar que tudo aquilo na verdade fora um grande golpe de sorte, e não um acidente sem nenhum propósito. Prometi a mim mesmo que a levaria em segurança para casa. Se precisasse, eu tinha certeza, daria a minha vida para isso.
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O dia seguinte também não foi nada fácil. Estávamos mais cansados e famintos do que no dia anterior. Acordei com Rafaela gritando "ladrão!". Fiquei com medo que um dos meliantes tivesse nos encontrado, mas depois percebi que ela berrava para um sagui. Segundo ela, o bicho viu minha mochila aberta e roubou nossa única maçã. (Tenho certeza de que deixei a mochila fechada, para mim, foi ela quem abriu durante a noite). Ela pegou o coitado no ato do furto, mas não soube o que fazer para impedi-lo, pois teve medo de se aproximar. O resultado foi o de sempre: Rafaela já estava de mau humor. Tentando animá-la, abri meu saco de biscoitos recheados e tirei cinco para cada um de nós, imaginando que seu mau humor fosse fome. Mas tão logo deu a primeira mordida, Rafaela soltou um grito de pavor. Um inseto desconhecido, muito parecido com um besouro preto, estava subindo pela sua perna. Rafaela ficou pulando feito uma gazela maluca. Fui obrigado a fincar o pé dela no chão para dar um peteleco no bicho. Daí, ela fez algo que me chocou. Sem pensar duas vezes, pegou minha garrafa de isotônico - que ainda devia ter um quarto de líquido - e, tomada de cólera, espatifou-o com toda força contra a parede. Fiquei olhando para ela, atônito.
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— Muito obrigado — disse eu, com tom de sarcasmo —, agora além de termos que achar a saída, precisaremos achar água também. E o cheiro de isotônico vai atrair os insetos para cá. E esteja grata se for só isso que o cheiro atrair.
Rafaela tapou o rosto, parecendo tentar se acalmar. A essa altura, já começara a compreender que não ganhava nada comigo com seus chiliques.
— Foi mal, Enzo, mas preciso que me tire daqui. Eu devia estar na praia, pegando sol com as minhas amigas — parecia estar falando consigo mesma. — Pelo amor de Deus! Não é possível que isso tudo não te desespere... — ela apontou as paredes da rocha. — Passei a pior noite da minha vida, espantando um inseto da perna a cada cinco minutos, assustada com os barulhos. Estou nervosa, não estou em meu estado normal.
— Ainda bem — falei me levantando, indignado com o seu egoísmo. — Senão, te indicaria urgentemente alguma clínica psiquiátrica. Já te disse que esse seu desespero não ajuda em nada. Precisamos pensar com clareza. Vamos buscar a trilha novamente. Mas preciso que esteja calma. Também dormi mal essa noite, mas nem por isso descontei em você, muito menos desperdicei nossos suprimentos. Aquela garrafa podia servir para abastecimento de líquido, sabia? O ser humano pode resistir
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vários dias sem alimento, mas essa possibilidade diminui muito com a falta de água.
— Tudo bem — ela disse de novo —, não vai mais se repetir. O que quer que eu faça agora?
— Junte suas coisas. Não deixe nada para trás que possa atrair algum bicho pra cá. Se não encontrarmos o caminho, voltaremos.
Rafaela amarrou o cabelo na nuca e fez o que eu lhe disse. Parecia-me contrariada por receber ordens minhas, porém, nada falou. Também me deu a impressão de ter novamente acusações contra mim na ruga que se formou entre as sobrancelhas, como se eu fosse o culpado daquela situação. Ignorei-a, pois pelo visto seu mau humor era contagioso.
Caminhamos novamente marcando o caminho. A densidade da vegetação só nos permitia enxergar de dez a trinta metros de distância. Diferente de Rafaela, andei praticamente cantando por cerca de duas horas. Deparamos com um lagarto, alguns macacos-prego e uma dupla de quatis. Rafaela se enrijecia a cada encontro inesperado com eles. Mas, dessa vez - é claro, com algum esforço - repeti-a todas as vezes que se aproximava de mim e não deixei que se pendurasse no meu braço. Em certo momento, comecei a notar uma mudança no clima. Os galhos das árvores começaram a dançar e sentimos um vento frio nos envolver. Dei-
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me conta de que iria chover e sugeri que retornássemos peto caminho. Sabia que nossa saúde poderia ficar debilitada se ficássemos com as roupas molhadas. Era uma das primeiras regras de sobrevivência na mata: manter-se seco. Aproveitamos para fazer nossas necessidades por causa do abrigo. Por sorte, Rafaela tinha na bolsa alguns lenços umedecidos, que serviam para tirar maquiagem. Apesar da situação constrangedora, tive de concordar: foram providenciais. Senti que ela ficou inchada de orgulho por desempenhar um papel tão importante na nossa expedição.
No caminho de volta, parei para pegar uma fruta estranha caída no chão. Eu não conhecia, mas vi alguns micos comendo pelo caminho. Parecia uma castanha gigante. E eu ouvi dizer uma vez, em um programa de televisão, que tudo que os animais comem também pode ser consumido peto homem. Rafaela franziu o cenho e me perguntou:
— Pra que está pegando isso?
— E comida, não vê?
— Não vou comer essa porcaria! — afirmou ela, insolente como de costume. Respirei fundo.
— Não deve ter um gosto tão ruim. Vi vários micos devorando isso pelo caminho.
— E por acaso eu tenho cara de babuíno?
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Esforço sobre-humano.
— Conversaremos sobre isso quando a nossa comida acabar. Provavelmente, em pouco tempo vamos degustar larvas ou raízes de plantas. E na maior alegria. Agora, cale a boca e recolha algumas dessas frutas também.
— Sim, chefe. — Ela bateu continência, com evidente sarcasmo.
Recolhemos umas cinco frutas e retornamos para o abrigo. Assim que chegamos, vimos três quatis passeando dentro da caverna. Eram os animais mais abundantes da região. Provavelmente, haviam sido atraídos pelo cheiro de isotônico. Lancei um Olhar acusador para ela e entrei sozinho no abrigo para espantá-los. Depois disso, isolei bem as comidas que ainda tínhamos no fundo da minha bolsa. Pelo cheiro, percebi que a chuva estava prestes a começar, então chamei Rafaela para o lado de fora para cavarmos um buraco no chão.
— Precisamos cavá-lo na profundidade de um balde — avisei a ela.
— Pra quê?
— Para armazenarmos água da chuva. Cavaremos e colocaremos um saco dentro. Pegue aquele da minha bolsa.
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Rafaela me obedeceu sem reclamar, o que achei um milagre. Verifiquei se o saco que trouxe estava furado, mas parecia que não. A seguir, recolhemos materiais para fazer uma nova fogueira. Sugeri que recolhêssemos o máximo de galhos secos possíveis, pois não sabíamos por quanto tempo iria chover. Assim que deixei tudo preparado, voltei para a caverna e comecei a montar a fogueira para acender mais à noite. Dividimos o segundo sanduíche. Afinal, não podíamos nos arriscar a deixá-lo estragar. Naquele momento, estava mais do que agradecido por Doralice achar que eu sofria de bulimia. Bebemos o resto da água e guardamos a garrafa para armazenar a água da chuva. Após um silêncio tenso, Rafaela tombou a cabeça de lado e falou:
— Está com raiva de mim?
Joguei uma pedrinha no lado de fora.
— Às vezes, é difícil não ficar.
— Não sei como tem me aturado — confessou e me observou ao mesmo tempo, para ver o efeito que suas palavras me produziam. — Você é sempre assim, tão paciente com todos? Ou eu tenho algo especial?
Fiquei gelado. Eu sabia onde ela estava querendo chegar, queria saber se a garota que eu amava era ela. Por isso, permaneci calado.
— Diga-me — ela insistiu —, há algum motivo para ser tão generoso comigo? Qualquer outro já teria me largado na mata.
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— Qualquer outro como Mateus? — perguntei, para espezinhá-la.
Ignorando a alfinetada, Rafaela sorriu.
— Não estamos falando dele. — Ela não parecia abalada. — Venha, sente aqui do meu lado. Vamos conversar mais um pouco, para passar o tempo.
Persuasiva, pensei eu. Muito persuasiva.
— Estou te ouvindo perfeitamente daqui — defendi-me. Não queria que ela arrancasse a verdade de mim, não com aquela cara debochada. Eu estava doido para ajustar algumas contas com ela, pois às vezes me atacava sem motivo, mas não lhe daria aquele gostinho. Rafaela tinha uma forte tendência a apreciar bate-bocas. Eu não.
— Já jogou imagem e ação? — ela perguntou de repente.
Olhei para ela e pisquei.
— Já. Várias vezes — respondi ainda emburrado.
— Que tal brincarmos um pouco, para passar o tempo?
— Não sou muito bom nessa coisa de mímica — afirmei. Irritado.
— Então eu faço e você adivinha — ela sugeriu.
Expiei seu rosto, que parecia exibir um sorriso sincero. Derreteu-me. É impressionante o que a garota mais linda do mundo pode fazer com a gente.
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— Tudo bem — eu disse, me odiando por estar sempre cedendo. — Vamos ver se você tem talento para o teatro.
Instantaneamente animada, Rafaela pôs-se de pé à minha frente. Em seguida, jogou o cabelo de lado - enfeitiçando-me por alguns segundos - e começou a fazer uma mímica. Fez diversos gestos e movimentos, contando palavras ao meio, separando sílabas, mas eu não tinha nenhuma habilidade naquele jogo. Às vezes ela parava e se acabava de rir diante das minhas tentativas estúpidas. Uma das palavras foi "avião". Dei o nome de todos os pássaros que vieram à minha cabeça, talvez influenciado pelo ambiente, mas não acertei. Em determinado momento, enquanto ela fazia ou outra mímica, falei a palavra "helicóptero". Rafaela desabou no chão rindo e me disse que eu era um caso perdido.
— Helicóptero - repeti, com um olhar mais atento. — Não está ouvindo?
Creio que ela também começou a ouvir o barulho da hélice, pois danou a correr para fora e a pular cruzando os braços por cima da cabeça.
— Aqui, aqui! — gritava ela, agoniada.
Saí também, mas ainda não o avistava.
— Precisamos correr para um lugar mais alto — falei.
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Rafaela olhou para os lados, apavorada. Em seguida saiu correndo contornando a Pedra.
— Não é possível, não é possível! — dizia, tateando as paredes da rocha. — Tem que ter um jeito de subirmos aqui.
Lembrei-me da fogueira e corri para nossa caverna. Talvez, se eles vissem a fumaça, saberiam onde nos encontrávamos. No exato momento que entrei, peto barulho concluí que o helicóptero estava passando bem em cima de nós. Ouvi Rafaela gritando mais alto: "Estamos aqui, estamos aqui!"' Comecei usar o arco freneticamente, tentando acender a fogueira. Mas minhas mãos tremiam, por isso deixei o galho cair várias vezes. Ouvi o barulho de novo, mas não consegui' Somente depois de uns oito intermináveis minutos vi a fumaça começar a sair. Assim que acendi, vi Rafaela aparecer na porta da gruta, com um ar derrotado. Ficamos nos encarando, calados e deprimidos. Reparei que um de seus joelhos estava sangrando. Provavelmente, em seu desespero, havia tentado escalar a pedra. Levantei-me para ampará-la. Começou a chover. Fiz com que ela entrasse e se sentasse junto comigo.
— Vou pegar um pouco de água da chuva para limpar seu machucado — eu disse.
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— Não. — A voz de Rafaela foi mais um sussurro. Ela olhou para fora, a chuva já estava ficando um pouco mais forte. — Eu estou mesmo precisando de um banho. Estou me sentindo nojenta.
Tentei impedi-la.
— Não pode molhar suas roupas. Ficará resfriada na certa.
— E quem disse que vou tomar banho de roupa? Ficarei só com as roupas de baixo.
Senti um calor intenso subindo pelo meu corpo, que deve ter transparecido no rosto, pois ela emendou:
— Não fique tão animadinho... É claro que vou tomar banho sozinha. Se precisar de você, eu grito. Mas se pegar você me espiando sequer uma vez, arrancarei seus olhos e os comerei no jantar. Está me entendendo?
Olhei para a chuva de novo, tentando bloquear meus pensamentos, não exatamente produtivos.
— E como vai se enxugar depois disso? — perguntei, tentando demonstrar que era isso que me intrigava, sem muito sucesso.
— Me enxugarei com a blusa e vestirei meu casaco. Depois a secarei na fogueira.
Acenei com a cabeça positivamente.
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— Está certo — eu disse. — Não se preocupe, não vou espiá-la. E depois de você, tomarei um banho também.
Rafaela pediu que eu me virasse de costas para que pudesse tirar a roupa. Obrigou-me a encarar a parede até retornar. Imaginar Rafaela seminua na chuva era uma tortura para mim. Tive que me conter dezenas de vezes para não espiá-la. Mas eu realmente a respeitava e não poderia ser tão canalha com ela. Em seguida, fui eu. Não foi o pior banho da minha vida, mas com certeza foi o mais congelante. Aproveitei para beber um pouco de água da chuva. Quando voltei, fiquei feliz ao ver que o saco no chão já estava cheio de água e desejei que tivéssemos outro.
Rafaela encarava a parede quando entrei no abrigo. Também me enxuguei com a blusa. Em seguida, vesti meu casaco e a calça por cima da cueca molhada. Coloquei os óculos. Infelizmente, o zíper do casaco estava quebrado, por isso teve de ficar aberto. Aproximei-me da lareira e me sentei. Rafaela se virou para mim e nossos olhos se encontraram. O cabelo todo úmido e solto pareceu lhe dar um ar mais ameno, mais suave. Sorrimos um para o outro, como duas crianças travessas, envergonhadas por terem um segredo. Dividimos minha barra de cereal e estendemos nossas blusas perto do fogo para secá-las. A tarde virou noite. Apesar da lareira, às vezes meus lábios estremeciam por causa do clima. Meu nariz devia estar vermelho como o de um palhaço, pois Rafaela comentou:
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— Você está tremendo de frio. Por que não fica aqui mais certo de mim? Também estou tremendo um pouco. E dois corpos juntos se aquecem mais rápido, não é?
— Principalmente pelados — retruquei, brincando com ela, mas torcendo para que Rafaela abraçasse a ideia. Ela somente riu e chegou mais para o lado.
— É a primeira vez que é mais atrevido comigo. Se fosse outro, aposto que já teria me cantado.
— Não sou como os outros — falei, e de repente percebi minhas lentes ficando embaçadas.
— Mas acha que sou bonita?
— A mais bonita que já vi — deixei escapar.
— Eu sabia... — Rafaela jogou a cabeça para trás e sorriu. Só então me dei conta de que tinha sido pego no flagra. Eu já havia dito que a garota que eu amava era a mais bonita que já vira. — É por isso que sempre espiava minha casa, não é? Por que é apaixonado por mim?
Não olhei para ela. Não sabia o que dizer como negar.
— Isso não faz diferença — foi o que consegui dizer. — Não sou o tipo de garoto com quem você sai, nem pretendo ser.
Rafaela franziu o cenho e parou para pensar.
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— Como sabe de que tipo de garoto eu gosto? Não pode me julgar somente por Mateus. Ele não foi o único garoto com quem saí.
— Sei disso — falei, lembrando-me dos tipinhos que a pegavam em casa. — Mas tenho certeza de que não sou como eles. Tenho outras qualidades, outras aspirações, outras atitudes.
— Como amar uma pessoa em silêncio? — ela me provocou, com um pequeno sorriso.
Nunca mais se calava. Não largava o assunto.
— Não vamos mais falar sobre isso. Não tem sentido — eu lhe disse.
Pegando-me de surpresa, Rafaela veio para perto de mim e encostou no meu braço. Depois, retirou meus óculos e ergueu o meu queixo delicadamente, olhando-me fixamente nos olhos. Era como se estivesse me dando carta branca para beijá-la. Eu não podia acreditar no que estava vendo. Rafaela estava ali, se oferecendo para mim. Tudo que eu sempre desejara na vida estava acontecendo. Sua mão estava pousada no meu rosto, quente, sedosa e macia. Delicadamente, seus dedos escorregaram pelo meu pescoço, passando pelo peito e parando na barriga. Fiquei tão zonzo com o seu toque que bastaria um sopro para eu cair. Todavia, um fiapo de amor-próprio falou mais alto dentro de mim. Eu não queria somente viver uma aventura com ela. Já sofria por Rafaela o
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suficiente. Se ficássemos juntos agora, como seria quando fôssemos resgatados? Como seria quando eu a visse de novo nos braços de Mateus? Não queria que ficasse comigo somente uma vez por caridade, gratidão, ou simplesmente para não morrer de tédio na mata. Meditei sobre o nosso relacionamento, ou melhor, sobre o nosso não relacionamento, como um jogo de xadrez, no qual nunca chegaríamos a um xeque-mate. Por isso, com uma força que não sabia de onde vinha, resisti. De repente, ela disse:
— Você parece o Harry Potter. Os cabelos negros e lisos, o nariz anguloso, esses lábios finos. — Ela passou um dos dedos sobre eles. — Só faltava ter os olhos azuis...
— Não faça isso — pedi.
— Fazer o quê? — ela abriu um sorriso inocente.
Não respondi. Somente pus os óculos de novo.
— Você não quer me beijar? — ela perguntou. — Não era isso que queria esse tempo todo?
Com um profundo suspiro, reforcei minha determinação.
— Não. Não como nós estamos agora — falei.
Rafaela recuou um pouco o rosto, parecendo me examinar.
— E como é que estamos agora? — ela me perguntou.
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— Confusos. Perdidos. Você não sabe o que está fazendo. É sempre tão impulsiva... — À minha critica, seus olhos se estreitaram minimamente.
— Eu sou assim mesmo — ela confirmou. — impulsiva. Às vezes corro riscos que outras pessoas não correriam. Mas, pelo menos, nunca vou deixar uma oportunidade escapar. Fique tranquilo. Esse momento não vai voltar a acontecer. — Ela saiu de perto de mim. — Eu devo mesmo estar muito confusa para querer beijar um CDF como você! Devo ter destrambelhado de vez! Estou ficando maluca!
A seguir, cruzou os braços e se recusou a falar comigo, me olhando com a mesma expressão petulante de sempre. Ergui os olhos para ela, com meu ego irremediavelmente machucado. Reconsiderei seriamente meus sentimentos por Rafaela. Eu estava farto daquela situação. Das suas súbitas e constantes variações de humor. Sempre tão irritável, tão exigente. Não quero dizer que eu também não tivesse momentos alegres, que não fosse vibrante, mas tinha grandes inclinações a mergulhar num estado de mau humor. Estou convencido de que ela estaria mais feliz se estivesse maquiada. Sempre com aquela expressão que, começo a compreender, é descontentamento. Reclama de tudo.
E fato. É a pessoa mais tremendamente propensa a tagarelar que já conheci. Até mais do que Alana. Depois de uma vida inteira de expectativa
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de conhecê-la melhor, tive vontade de amordaçá-la dezenas de vezes. Eu só queria escafeder-me na escuridão. Tudo ali, incluindo ela mesma, parecia-me insuportável. Nunca imaginei que ficaria fatigado dela, mas, naquele momento, para minha surpresar eu fiquei.
Rafaela
Segunda-feira.
Ainda não acredito que estou presa nessa selva idiota. Isso tudo só pode ser um pesadelo, ou um castigo de Deus. Como se não bastasse, a minha única real companhia resolveu ficar muda, praticamente não se
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comunica comigo. Eita garoto mandão! Eu juro que tentei entendê-lo, mas Enzo é a criatura mais complicada que já conheci. Sempre com aquele jeito tão centrado e dono da situação.
Adora dar ordens.
Como pode não estar endoidecendo com tudo isso? Estamos perdidos! Às vezes, sua falta de desespero parece alarmante, me irrita. Confesso que no começo cheguei a ser meio cruel com ele por causa disso. Fui uma verdadeira peste. Gritava horrivelmente, amaldiçoando a sua vida, amaldiçoando sua tentativa estúpida de me salvar me levando para dentro da mata... Mas não há nada mais difícil do que colocá-lo na defensiva. Dificilmente se irrita. Possui um autocontrole monumental. Disparei-lhe perguntas na cabeça diversas vezes para irritá-lo, mas ele não se cansava de responder. Dava-me até a impressão de que até gostava de fazer isso. Como se só o fato de comunicar-se comigo já o encantasse o suficiente. Penso que eu fazia isso porque gostaria que ele fizesse alguma coisa absurda, algo que chamasse a atenção para nós. Como escalar uma rocha, provocar um estouro, derrubar uma árvore...
Ousadia. É disso de que Enzo precisa.
Por mim, passearíamos berrando por cerca de duas horas até que alguém nos achasse. Que se danem os predadores! Sua praticidade só serviu para nos manter salvos até agora, mas o que quero mesmo é sair
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logo desse lugar. Nunca mais vou explorar a natureza. Somente frequentarei os passeios urbanos. Se tivesse sido assaltada na Praça XV nada disso estaria acontecendo. Prefiro arriscar minha vida a ficar presa nesse abrigo para sempre. Minhas costas doem. Meu cabelo está um ninho de nós. E - tenho certeza – estou começando a variar das ideias.
Ontem - que ninguém nunca descubra isso - tentei beijar o Enzo. Logo eu, que sempre julguei minhas amigas quando ficavam com esses caras sem nexo. Mas, por um segundo, eu realmente queria fazer isso. Devo ter perdido um parafuso na mata. Se fossem vinte e quatro horas atrás, só a ideia me deixaria nauseada. Cheguei perto dele e mantive meus olhos no mesmo nível que os seus, mas não esperava me emocionar com o modo gentil com que Enzo me olhou. O garoto parecia estar contemplando um milagre. Fiz isso - acredito eu – pelo prazer de me sentir dona da situação, de ter poder sobre o coração de outra pessoa. Senti vontade de inebriá-lo, de lhe dar um presente, de me exibir... Ele era apaixonado por mim uma vida inteira, ora bolas! Eu me senti... Envaidecida quando soube de tudo isso! Quer dizer, todo mundo deseja ser especial para alguém. E nunca ninguém sentiu nada parecido por mim. Pelo menos ninguém que me conhecesse de verdade. Contudo, por menos que Enzo tenha falado, percebo que seus sentimentos por mim são profundos. Totalmente diferentes dos de Mateus, que já mostrou que não
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tem intenções exatamente inocentes comigo. Tenho certeza de que, se eu tivesse cedido, Mateus já teria pulado para a próxima vítima, pois ele só pensa em fazer bonito para os amigos. Mas não posso julgá-lo por isso, pois estou com ele, em parte, pela mesma motivação: status. E não se engane, é duro ter que admitir isso para mim mesma, mas a verdade é que Mateus é um dos garotos mais cobiçados daquela escola, e estar com ele é quase como... Como levar um troféu para casa. Minhas amigas estão morrendo de inveja, tenho certeza disso. Eu sempre dei mais sorte do que elas com os meninos, mas é claro que me comporto de maneira humilde quando estou com as garotas, ignorando os olhares masculinos, dando a transparecer que não sei o quanto sou sortuda e tenho boa aparência, e muito menos como sei aproveitar-me dessa vantagem. E assim as derrubo ainda mais: sendo absolutamente simpática.
Mas agora, eu só queria... Saber como era beijar alguém que me amasse de verdade. Sentir uma sensação diferente.
Isso significa que tenha perdido o controle sobre as minhas emoções? Claro que não. Significa que agi de forma irracional, simplesmente por que meus impulsos e vaidade tinham conseguido abrir caminho para as ações? Talvez. De qualquer modo, como se já não fosse suficientemente humilhante me oferecer para Enzo, o panaca me recusou. Fiquei lívida, me recusando a acreditar. Não só por ele ser um CDF
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insignificante, que jamais deve ter beijado uma bela menina, mas por saber que ele sempre foi apaixonado por mim! Que tipo de idiota dispensaria uma chance dessas? Será que ele imagina, por um sequer esperançoso minuto, que haverá outra chance como aquela? Será que ele não se enxerga?
O fato é, que desde esse episódio, Enzo tem me parecido cansado, exaurido de mim. Não me dirigiu mais uma palavra sequer. E, pior, começo realmente a sentir falta da sua voz. Será que estou pirando de vez? Sinto falta do seu sorriso, sinto falta das suas tiradas sarcásticas, daquele ar protetor... Porém, preciso confessar: depois que Enzo recusou aquele beijo, fiquei bastante irritada com ele. Por isso, acabei disparando ofensas na sua cara sem premeditar. Estou arrependida, de verdade. Ainda mais depois daquele olhar que ele me lançou profundamente magoado. Internamente, eu não queria ter provocado aquilo. Permanecemos calados. A chuva que caía do lado de fora do abrigo parecia interminável, monótona. Pensei que Enzo fosse deixar aquilo pra lá, esquecer rapidamente o incidente, mas ele passou o resto da noite estudando atentamente a fogueira. Nem sequer ergueu os olhos das labaredas douradas que crepitaram quando dei boa noite, tentado amenizar o clima entre nós. Pare perdido no fogo.
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Dei-lhe boa noite, tentado amenizar o clima entre nós. Parecia perdido no fogo.
Percebo que, ao descobrir a Rafaela que existia dentro de mim, a minha alma, as minhas emoções, Enzo ficou completamente decepcionado. O que só prova - segundo a minha teoria - que ele nunca me amou de verdade. Nunca amou a verdadeira Rafaela. Ele é tão fútil e superficial quanto eu. Pois era ao meu exterior, ao meu aspecto e à fantasia que criou em sua mente que Enzo acreditava amar. Afinal, que reação ele esperava de mim? Estou confusa, nervosa e perdida. E, atém de estar absurdamente com fome, também começo a desconfiar que esteja entrando na TPM, período em que meu humor oscila freneticamente. Mas, como abordar um assunto desses com um menino? A despeito das circunstâncias, somos praticamente desconhecidos. Pelo menos, eu me sentia assim até algumas horas atrás. Talvez ficar ilhado com alguém faça com que nos sintamos muito próximos a essa pessoas mesmo que desejássemos estar em qualquer outro lugar. Até mesmo em outro país. Até mesmo na lua!
O problema é que sinto que algo está se transformando dentro de mim. Foram somente algumas horas de convivência, mas foram intensas, e tenho medo dos sentimentos despertados por Enzo. Sentimentos indesejáveis. Principalmente a culpa. Quando estou perto dele, não gosto
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de mim. Ele faz com que eu me sinta culpada quando infrinjo alguma regra, quando extrapolo os limites. Mas eu sempre agi assim, minhas amigas sempre agiram assim. Mas agora, com ele, é como se tudo que eu fizesse fosse completamente idiota. Como seu eu fosse vazia e inútil. Infantil. A única vez em que Enzo me elogiou desde que chegamos foi quando providenciei lenços umedecidos para as nossas necessidades. Na verdade, nem foi bem um elogio:
"Que providencial!" ele comentou.
"Obrigada" falei, sentindo-me orgulhosa e deprimida ao mesmo tempo.
Eu estou acostumada a ser sempre elogiada, mas a verdade é que, pelo menos aqui, Enzo é muito melhor do que eu em quase tudo. Sempre tão educado, tão prestativo, tão cheio de qualidades... E em uma de nossas poucas conversas, completamente comovido, Enzo me falou sobre sua mãe. E a sinceridade na sua voz tocou-me o ponto mais vulnerável: o amor à família. Começo a perceber que sempre quis admirar esse tipo de cara. Talvez já admirasse secretamente, embora reconheça que não são populares. Mas é como se Enzo cutucasse uma parte boa dentro de mim. Tenho plena consciência disso, muito embora acredite que jamais darei o braço a torcer. Minha vida era tão simples antes de conhecê-lo... Eu a quero de volta. Quero voltar a me sentir bem comigo mesma. Quero sair
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dessa selva. E quero um repelente, pelo amor de Deus! Ainda faço um pedido secreto: se houver realmente um Criador neste mundo, por favor, transforme Enzo em alguém atraente!
Ai Deus! Se minhas amigas ouvissem isso...
Coisa ainda mais estranha: Enzo me fascina. Nunca havia reparado nele até chegarmos aqui. Ele era como parte do mobiliário daquela escola, totalmente ignorável, e no condomínio, praticamente invisível!
Se bem que, certa vez, eu e minhas amigas fizemos apostas sobre os possíveis garotos virgens da nossa classe e Enzo encabeçava o topo da lista. Foi à única vez em que tocamos no nome dele. E também, quando éramos mais novas, apesar de nos acharmos adoráveis, éramos um pouco cruéis com os meninos desse tipo, que sentam sempre na primeira fileira da classe e ficam todos satisfeitos quando a professora lhes faz alguma pergunta; só para responder corretamente e esnobar o resto da classe com o seu elevado intelecto. Costumávamos mandar bilhetes secretos de amor para esses sujeitos, assinando como uma anônima apaixonada, marcando encontro no recreio do colégio, só para morrer de dar risada quando eles iam e não aparecia ninguém. Agora, ao lembrar-me que fiz isso com Enzo uma vez, bateu uma pontada de culpa.
A verdade é que nunca pensei nesse tipo de cara – que nunca usa roupas nem acessórios de grife - objetivamente como outra pessoa. E não
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era só por fora que Enzo era diferente dos outros meninos. Ele nunca aparecia nas festas, não fazia parte do time de futebol, nunca se metia em nenhuma briga, não zoava ninguém... Eu odiava aquele seu jeito certinho e pensamentos organizados. Porém, agora, confesso que passei a sentir um profundo respeito por ele. E não se trata somente de ele ter muito mais conhecimento sobre tudo do que eu - tanto conhecimento que me faz balançar a cabeça e me perguntar de que planeta ele veio -, mas é que Enzo sempre diz o que pensa e isso faz com que eu questione a minha própria conduta. Percebo agora que nunca tive para com a sua espécie, os nerds, compreensão suficiente. E, verdade seja dita: se não fosse Enzo e seus neurônios de CDF, há essa hora eu já estaria a caminho da luz. Além do que, qualquer outro garoto podia ter sido mais abusado comigo. Mas Enzo, não. Por isso, quando ele me trata com tanto respeito, não consigo evitar encher-me de culpa ao lembrar-me de tudo que dizíamos sobre ele. Mas também tenho uma crítica a fazer: Enzo nunca viveu a vida como merece ser vivida. Acredito que ele nunca agiu por impulso. Afinal, adolescência significar arriscar, fazer coisas ilícitas, cometer alguns erros... Inacreditavelmente, ele nem tentou me espiar quando tomei banho ao relento, sozinha. Enzo é um perfeito cavalheiro, daquele tipo que dá o braço para atravessar as velhinhas na rua.
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O engraçado é que sempre desprezei sujeitos como ele, que não têm grandes atributos visuais. Mede aproximadamente um metro e setenta e cinco - o quer para mim, significa girafa, visto a minha insignificante estatura. Todavia, não é desengonçado como a maioria dos adolescentes. Anda sempre tão seguro de si... Tem olhos aguçados, expressivos e vigilantes. Parece que tudo assimila. Possui mãos grandes e panturrilhas avantajadas. Mas se veste com muita simplicidade, simplicidade até demais para o meu gosto. Sempre com aquele ar inteligente, aquela expressão madura, como se fosse muito mais velho do que eu. O tipo de garoto que esperamos ver num evento de Campus Party².
Mas enrubesce, enrubesce por tudo. Principalmente quando chega perto de mim. Quando toquei o seu braço pela primeira vez, acho que foi o prazer que deixou suas bochechas rosadas. E quando descobri que ele era apaixonado por mim, pensei que fosse incendiar tamanha a vermelhidão de seu rosto.
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²Campus Party - é o principal acontecimento tecnológico realizado em diversos países e também no Brasil desde 2008.
Fui muito astuta. Já estava desconfiada de que ele era apaixonado por mim, só o encheu de perguntas e, pimba, apanhei-o com a boca na botija. Creio que, antes de cair na minha emboscada, ele apreciou minha
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genuína curiosidade petos seus interesses, mas eu estava igualmente determinada em explorar áreas mais pessoais. Confesso que ele ficou uma gracinha quando pareceu tão tímido e embaraçado por eu ter descoberto seus sentimentos. Seu olhar se tornou estático, suas bochechas ficaram avermelhadas, a respiração levemente ofegante...
Mas por que diabos eu estou reparando nele?, Eu me perguntei, decidindo que era melhor observar a caverna. Já imaginou o que minhas amigas diriam se desconfiassem disso? Sinto-me tão atribulada com meus pensamentos... Será que ingeri algum cogumelo alucinógeno por acidente? Bem que desconfiei daquelas frutas malucas que recolhemos pelo caminho.
Mas já estou divagando.
Há essa hora, eu deveria estar no curso de inglês. Deveria estar seguindo com a minha vida. Será que o mundo lá fora continua? Será que já estão espalhando cartazes por aí procurando por mim? Bem, pensei eu, me consolando, depois de ser vetada no Big Brother por ser menor de idade, finalmente serei famosa por alguma coisa. Fico imaginando se já há faixas diante da nossa escola, velas acesas nos enviando boa energia, flores jogadas perto do muro do condomínio...
Deus! Será que sairei na capa da revista Veja desta semana?
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Agora senti um real arrepio de medo. Que foto, pelo amor de Deus, minha mãe deverá escolher? Ela sempre foi péssima para essas coisas. Espero que não escolha aquela que tirou de surpresa no último Natal. Eu estava ridícula, com o rímel todo borrado e a cara abatida de sono. Mas minha mãe adorou, inclusive colocou-a na sala, em um porta-retrato. Já posso até ver minhas amigas maldosas, se empurrando numa briga louca para olhar a fotografia e me criticar. Não posso pensar sobre isso, preciso ser otimista: minha mãe escolherá uma foto do Facebook.
Talvez, quando voltarmos, serei convidada para desfiles de moda. Também darei entrevistas, posarei para capas de revistas... E, quem sabe, não serei convidada para atuar em Malhação? Sairei do anonimato para a fama, como tantas ex-BBBs! Afinal, vamos combinar a maioria não tinha talento nenhum. Foi à beleza que deu um empurrãozinho. E isso - beleza -, com toda licença, eu tenho de sobra.
Preciso mesmo pensar nessas coisas, pensava eu, remexendo na minha mochila em busca do último quadradinho de chocolate. Preciso alimentar minha esperança. Na verdade, sinto-me grata por ainda estar viva. Não quero morrer. Há tantas coisas que ainda desejo fazer... Se conseguir sair daqui, nunca mais serei a mesma pessoa fútil de antes. Amarei a vida mais apaixonadamente. Farei com que cada segundo seja digno de ser vivido. Também vou passar o fazer caridade! Zelar pelos
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pobres! Doar todas as minhas roupas de marco para... Ah! Que maravilha! Vejo só onde botei meu batom da MAC. Já estava procurando por ele há um tempão. É como eu digo: a vida ainda me reserva gratas surpresas! Esse batom custou-me os olhos da cara. Só pode ser um sinal do Divino. Um sinal de que tudo dará certo no fim. Serei tão famosa quando a marca MAC, tão famosa quanto a Grazi Massafera! Com certeza, vou amar o estrelato. Quem sabe até posso escrever um livro? Se bem que, na verdade, pensei comigo mesma, isso seria muito mais a cara do Enzo.
Aliás, ele ainda não voltou, percebi, olhando para os lados. Confesso que quando acordei e não o vi, fiquei assustada. Não fosse pela mochila que deixou para trás, eu pensaria que ele tinha me abandonado depois de todas as coisas estúpidas que eu disse. Mas, pelo pouco que conheço dele, Enzo nunca faria isso. Pelas novas marcas nas árvores, vejo que ele foi à outra direção. Deve ter acordado cedo para tentar buscar a saída sozinho. Porém, não gosto de ficar aqui, esperando sozinha. Tenho medo de que um animal apareça. E, impossível compreender, tenho ainda mais medo de que Enzo volte ferido. Ainda mais depois de tudo que fez por mim.
É estranho, mas eu estou tão ansiosa para vê-lo de novo... Claro que isso não significa que alguém precise saber, mas Enzo consegue me fazer depender dele, desejar a sua presença. Como meus sentimentos
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saíram de controle dessa maneira, meu Deus do céu? É como se Enzo fosse à única pessoa que eu conhecesse neste mundo. Sei que parece esquisito, mas é assim que me sinto. Sinto-me tão longe da normalidade, da minha vida e de tudo o mais. Não que eu não queira voltar, é claro que quero. Mas, será que tudo voltará a ser como antes?
Estava pensando em tudo isso quando, de repente, minha pulsação disparou. Levantei em silêncio, detectando o barulho. Era o helicóptero de novo. Saí em disparada para a mata. Não sabia o que devia fazer. Vi-o passando bem em cima de nós, mas as copas daquelas árvores me camuflavam. Será que Enzo conseguira buscar ajuda? Meu coração transbordou de esperança. Fiquei olhando para cima, depois olhei para a maldita pedra. Por que tinha de ser tão íngreme? Se eu conseguisse subir, facilmente seria avistada por eles. O zumbido das hélices foi parecendo esmaecer, indo para longe. Fiquei parada por uns dois minutos, atenta, na esperança de ele voltar. Em seguida, desalentada, caí de joelhos no chão e levei as mãos ao rosto. Pela primeira vez fechei os olhos e lembrei-me da minha mãe, o que só serviu para aumentar as saudades de casa. Éramos só nós duas, só tínhamos uma à outra. Como ela deve estar desesperada, comecei a pensar. Tinha hipertensão. Será que passava bem? Será que sentia que eu ainda estava viva? Dizem que as mães têm esse tipo de
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premonição. Eu não poderia fazer isso com ela, não poderia abandoná-la sozinha.
Não como meu pai.
Naquele momento, decidi que iria sobreviver. Custasse o que custasse. A partir de então, colaboraria em tudo com Enzo. Eu sabia que só ele poderia nos tirar dali. Deixaria de fazer da sua vida um inferno. Queria tanto que ele estivesse ali comigo...
— Volte logo — falei em voz alta, embora ninguém pudesse me ouvir.
— Já está falando sozinha? — perguntou ele por trás de mim. — Mau sinal.
Virei-me e olhei para ele. Enzo estava corado, provavelmente se cansara na caminhada. Segurava um galho grande, como sempre, e estava muito descabelado. Seu rosto tinha novos arranhões, um bem perto do olho esquerdo. Pela primeira vez, não sei por quer reparei como seus cílios eram longos. Nossa garrafa de água estava no bolso esquerdo da sua calça. Enzo me encarava muito sério, com a mesma expressão de ontem. Senti uma nova onda de culpa.
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— Que bom que voltou. Estava preocupada com você — eu disse, e percebi que era a pura verdade. Assim como estava estupidamente decepcionada por ver que ele ainda estava magoado comigo.
— Tentei ir por um caminho diferente — ele desviou os olhos de mim e jogou o galho no chão. — Não achei a saída, mas descobri uma queda-d'água perto daqui.
— Jura? — Me levantei, desejando parecer animada. — E dá para mergulhar?
— Não. É muito rasinha. Mas enchia garrafa de água. Pelo menos não morreremos de sede.
Dito isso, ele encaminhou-se para dentro do abrigo.
— Enzo — fui atrás dele. — Queria falar com você.
— Pode falar. — Sem olhar para mim, Enzo se abaixou e guardou a garrafa de água na mochila. Fiquei incomodada com sua falta de atenção, mas prossegui:
— Sei que tenho sido uma imbecil desde que chegamos aqui, e você não merece isso. Queria saber se você me perdoa.
Enzo se conteve, em seguida olhou para mim como se eu fosse uma alienígena.
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— Por acaso ingeriu alguma folha desconhecida? — ele me perguntou.
A esse comentário, senti um resquício de raiva borbulhando dentro de mim, mas mantive-me pacífica e somente ri.
— Você está me pedindo desculpa? — ele insistiu, voltando os olhos para a mochila.
— Sim, estou.
— E exatamente pelo quê? — Ele ficou de pé e se virou para mim. Em seguida, cruzou os braços e exibiu um sorriso satisfeito.
— Por tudo que eu disse... — tentei resumir, afinal, eu não esperava por aquela pergunta.
Ele ergueu uma sobrancelha. Eu suspirei.
— Tudo bem. Por ter feito da sua vida um inferno e por ter te chamado de CDF.
Enzo deu um sorriso sarcástico.
— E acha que foi isso que me ofendeu? Ser chamado de CDF? — Ele balançou a cabeça, evidentemente reprovando meu raciocínio. — Pois fique sabendo que isso, pra mim, foi um elogio. Sujeitos descerebrados como o seu amiguinho Mateus, no futuro, trabalharão para nós, os CDFs
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da turma. O que eu não suporto é essa sua atitude egoísta. Você só pensa em si mesma, não tem respeito pelos sentimentos dos outros. Mas, sabe, você acabou me fazendo um favor, pois me arrancou da famosa terra da fantasia. Sei que você julga os outros pela aparência, mas percebi que cometi o mesmo erro, pois julguei você pela "capa". Pensei que você fosse doce, inteligente e delicada. Mas a verdadeira Rafaela é o antônimo disso tudo.
Fiquei parada por alguns instantes, magoada, olhando para ele.
— Está me chamando de burra? — me enfureci.
— Não espero que sejamos amigos — continuou ele, ignorando a minha pergunta —, só espero que você me respeite. Quanto eu, torço para que sejamos resgatados o mais rápido possível. Não aguento mais nem um minuto perdido nessa selva com você.
Tão logo senti minhas lágrimas brotando de novo, mordi os lábios, fechei as mãos com bastante força e disse a mim mesma que não iria chorar. Era impossível me dar bem com aquele imbecil. Cruzei os braços e experimentei mostrar-me mal-humorada. Em geral, Enzo sempre me adulava quando eu fazia isso. Mas percebi que naquele dia não iria rolar. Ele havia criado uma espécie de barreira entre nós. Eu poderia gritar insultos pelo resto do dia que ele não iria se importar. Agora, eu era como a sua mochila, algo que Enzo precisaria carregar, pois seu espírito de bom
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moço não permitiria que ele fizesse o contrário. Mas eu era como um objeto, como algo insignificante, exatamente como eu o via antes de tudo. E de repente, senti-me triste, pois percebi que não queria ser só isso para Enzo.
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Eu pretendia recuperar o tempo perdido, desfazer a má impressão que Enzo tinha sobre mim e ajudá-lo no que fosse possível para o nosso retorno. Passamos o dia a fazer caminhadas em várias direções, mas ele permanecia mudo, só que agora eu respeitava o seu silêncio. Nossa comida estava se esgotando e isso sempre acabava com o meu humor, mas fiz de tudo para controlar os meus faniquitos. Devoramos quilos e quilos de jaca e eu já estava nauseada só de olhar para a fruta. Eu detestava jaca, mas Enzo insistiu que eu comesse. Cheguei a argumentar que eu só precisava comer um pouquinho, afinal, somente cem gramas da fruta continham SESSENTA E UMA calorias. Mas Enzo me fulminou com os olhos. Eu estava com fome. Ele venceu.
No final da tarde seguinte, ele resolveu sair para buscar um pouco de água e eu pedi para ir com ele, que somente deu de ombros e saiu andando na minha frente.
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A cascata era realmente muito rasar por isso, ao chegarmos lá, sentei em uma pedra próxima e enfiei os pés dentro da água enquanto Enzo enchia a garrafinha. Ele estava dentro do pequeno lago e a água batia em seus joelhos. Eu estava farta daquele clima tenso entre nós, por isso arrisquei.
— Por quanto tempo vai ficar assim comigo?
Enzo me espiou rapidamente.
— Assim como? — ele tampava a garrafinha.
Pulei na água ao seu lado e olhei-o de cabeça para baixo.
— Assim — disse eu —, me ignorando.
— Não estou te ignorando, só não quero falar com você — respondeu ele, lacônico.
Eu ri.
— Que frase inteligente! — comentei, ainda sorrindo para ele.
Enzo quase riu enquanto enfiava a garrafinha no bolso.
— Já está ficando tarde — ele disse —, é melhor voltarmos logo para o abrigo.
— Não vou voltar até você me dar um sorriso — cruzei os braços. Enzo suspirou.
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— Acha que isso tudo é uma brincadeira? — perguntou ele, pondo as mãos na cintura. — Estamos perdidos e nossa comida está quase acabando.
— Só um sorriso... — Aproximei o indicador e o polegar. — Um sorrisinho pequeno...
Enzo continuou me encarando com a amabilidade de um galo de rinha.
— Ah, não vai rir? — Abaixei-me com as mãos em concha. — Mas também não vai me desprezar. Prefiro que fique bravo comigo. — Comecei a jogar água na roupa dele.
— Que isso? Está maluca, garota? Como eu vou me secar? — Ele tentou segurar o meu braço. — Ah, você está rindo? Pois não vou ser o único a ficar gripado por aqui.
Enzo me deu uma banda e afundou-me no fundo do lago. A água estava tão gelada que pareciam mil agulhas penetrando na minha pele. Quando emergi, meu cabelo tapava o meu rosto, mas vi que Enzo já estava sorrindo, por isso não reclamei. Segurei-o pelas pernas e derrubei-o na água também. Ficamos lutando para ver quem afogava um ao outro. Somente quando vi nossa garrafinha seguindo no curso do rio, comecei a gritar:
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— Nossa água! Nossa água!
A garrafa havia escapado da calça de Enzo e seguia para uma queda próxima a nós. Se não chegássemos a tempo, perderíamos nosso último depósito de líquido. Enzo saiu correndo na minha frente, mas escorregou e caiu pelo caminho. Ultrapassei-o, andando com dificuldade por causa da água pelos joelhos.
Desesperada, quando a garrafa estava a uns dois metros da queda, lancei-me para frente e a agarrei, mas bati com o queixo em uma pedra submersa.
— Ai... - gritei de dor ao sentir minha língua latejar.
Em um segundo, Enzo materializou-se atrás de mim.
— Você se machucou — ele segurou o meu queixo com um ar apavorado. — Vi que você bateu em alguma coisa.
— Acho que mordi a língua — avisei, espantada com toda a sua preocupação.
— Não parece que está sangrando — ele observou. O rosto dele estava tão próximo, que meu rosto queimou de repente.
— Já, já vai passar... — disse eu. Em seguida me desvencilhei da mão dele, incomodada com os sentimentos que me dominaram.
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Enzo me puxou para fora da água e sentamos lado a lado em uma pedra. Ele deve ter percebido que eu estava tremendo, pois, como se sempre tivesse sido assim, passou o braço esquerdo em torno do meu pescoço.
— Pelo menos eu salvei a nossa garrafa de água — falei, sem graça com a nossa proximidade, mas feliz por estarmos às boas de novo.
Enzo riu com sarcasmo em seguida passou a mão direta em seu próprio cabelo, ajeitando-o para trás.
— Já temos água suficiente nas nossas roupas hoje seria só torcer e beber.
Mordi os lábios, receosa.
— Me desculpe por isso, Enzo. É que você não falava comigo — eu abri os dedos. — E essa situação toda já é tão angustiante... Sei que fui uma peste, mas preciso de você... — adulei-o.
Enzo retirou o braço de mim. Parecia magoado de repente.
— Já disse que não vou te abandonar, não precisa temer. Não vou fazer isso.
Engoli um nó que se apertou na minha garganta e me virei para ele.
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— Não, não é só por isso, Enzo. Não é só porque pode me ajudar que eu quero que você fale comigo — procurei deixar claro. — Precisa acreditar em mim. Esses dias que passei com você, me fez perceber o quanto fui idiota. Nunca lhe dei atenção. E você é tão inteligente, tão sensato, tão gentil... Nós somos vizinhos e colegas de classe! Já deveríamos ser amigos há muito tempo.
Enzo me olhou por um segundo, em silêncio.
— Bem — ele riu, depois jogou uma pedrinha na água —, pelo visto nosso relacionamento evoluiu muito rápido, pois agora não somos mais somente vizinhos, nós moramos juntos. Então, acho melhor começarmos a nos entender.
— É — verdade. — Eu ri, mas em seguida franzi o cenho. — Enzo?
— Que foi?
— O que você acha de mim?
Surpreso pela pergunta, Enzo uniu as sobrancelhas. Mas eu queria mesmo saber. Acho que nunca tinha ouvido uma resposta sincera para essa pergunta. Minha mãe me achava o máximo, minhas amigas me achavam o máximo e os meninos me achavam gostosa. E se Enzo falasse o
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que realmente pensava sobre mim, talvez eu me sentisse mais à vontade para dizer como me surpreendi o conhecendo melhor.
— Quer saber o que eu acho sobre você?
Assenti com a cabeça. Ele ficou mudo por alguns instantes. Dava para ver que ele estava processando como falar.
— Por favor, seja sincero — pedi.
Enzo suspirou, tomando coragem.
— Bem — começou ele, olhando para frente —, acho que você se importa muito com a opinião dos outros. E fica muito preocupada em ter a aprovação alheia. Mas, talvez, seja porque seu pai a abandonou.
Aquilo doeu. Mas eu concordei com a cabeça, incentivando-o a continuar.
— Também acho que você é meio egoísta — ele espiou-me com os olhos — e bastante mimada.
Resignada, concordei novamente.
— Também não gosto muito das suas amigas.
Eu concordei mais uma vez.
— Nem dos seus amigos.
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Já entendi, pensei, sentindo-me deprimida. Pra que eu fui perguntar...
— Mas sabe mesmo o que eu acho? — ele disse de repente.
— O quê? — perguntei, pensando se poderia ficar pior.
— Acho que debaixo dessa fachada fútil, existe uma pessoa realmente especial. É impossível que alguém vazio pudesse emanar tanto brilho. Se você juntasse o que tem por dentro, com o que já tem por fora, a verdadeira Rafaela seria simplesmente imbatível.
Obviamente, enrubescida mesma hora, e minha boca ficou aberta por três segundos. E não, meninas, eu não pulei nele — Fico feliz que veja algo bom dentro de mim — eu disse, Olhando para as mãos — e feliz que não esteja mais irritado comigo.
Enzo lançou-me um sorriso triste.
— Por mais que eu me esforce, não consigo odiar você por muito tempo.
Ao ouvir isso, olhei para as flores ao nosso lado, com um misto de alegria e tristeza. Alegria por ter ouvido o que ouvi, e tristeza por perceber o quanto agora eu me importava com o que Enzo pensava de mim. Seguiu-se um longo silêncio entre nós, que ele quebrou.
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— E você? — perguntou-me repentinamente, olhando bem nos meus olhos. — O que acha de mim?
Senti meu estômago embrulhar, pois percebi que não estava preparada para falar a verdade.
— Acho que você é inteligente — respondi concisa.
— Tem certeza? — ele perguntou. — É isso que você e seus amigos sempre acharam de mim?
— Que amigos? — indaguei, tentando fugir do assunto, embora soubesse multo bem a resposta.
Percebendo o estratagema, Enzo apertou os olhos para mim. Eu suspirei.
— Você me perguntou o que eu acho de você agora... — eu assinalei.
— E o que achava antes — ele quis saber.
— Não nos conhecíamos muito bem — respondi vagamente. Eu não queria aprofundar aquele assunto.
Enzo ficou calado por uns cinco segundos. Depois, apoiou os cotovelos no joelho e ficou mirando um pedaço de grama das mãos.
-—Você me achava um otário — ele disse por fim.
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— Claro que não — menti.
Enzo riu num suspiro.
— Se vamos começar uma amizade, precisamos ser sinceros um com o outro. Eu fui sincero com você. Portanto, não minta para mim. Você me achava esquisito?
— Sim — respondi, após alguns segundos. Triste por ter de confessar aquilo.
— Foi por isso que nunca falou comigo? — ele perguntou.
Responder aquela pergunta doeu-me mais do que eu esperava.
— Acho que sim — tentei ser honesta — mas hoje não acho mais isso. Só acho que você é mal compreendido pelas outras pessoas.
— Como se eu me importasse... — murmurou, em seguida ficando em silêncio de novo. Aquilo me incomodou. Eu não queria vê-lo daquele jeito, não queria que ficasse magoado comigo. Demorei algum tempo para perceber que a conversa tinha acabado e que era a minha vez de falar alguma coisa.
— E você, por que nunca falou comigo antes? Também me achava esquisita? — Eu ri, tentando recuperar o clima bom entre nós.
Enzo sorriu e começou a se levantar.
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— Confesso que te estranhei quando chegamos aqui, mas agora, que está mais calma, posso até dizer que você é quase simpática. Bem próxima da Rafaela que imaginei.
Senti um estranho pulinho de alegria no meu estômago, que tentei ignorar. Não consegui.
— Quase — fingi estar magoada, segurando em sua mão para me levantar.
— Isso mesmo. Mas não se engane — ele advertiu —, se continuar enchendo meu saco, vou arrumar uma mordaça para sua boca. Agora vamos, não quero que você pegue um resfriado.
— Quer dizer que ainda se importa com a minha saúde? — perguntei, curiosidade e tom de brincadeira disputando lugar em minha voz.
Enzo virou-se para mim e grudou os olhos molhados nos meus. Senti algo em meu peito aquecer, algo que me assustou. Ele ergueu o braço e colocou uma mão no meu queixo suavemente me causando um tremor, que não era de frio.
— Me importo com tudo que envolve você, Rafaela, não consigo evitar. Você é a parte mais bonita da minha vida... — Ele fez uma pausa, parecendo angustiado, mas em seguida sorriu. — Mas a verdade é que
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você já me dá trabalho suficiente quando está saudável. Por isso, vamos, garota, ainda preciso bancar o senhor do fogo hoje à noite, de novo.
Ele pegou minha mão com firmeza e foi caminhando na minha frente como sempre. Apertei bem meus dedos em torno dos seus, para fazê-lo parar, pois só uma imbecil como eu o teria evitado por tanto tempo. Só uma tola não perceberia o quanto Enzo era especial. O quanto era mais interessante do que qualquer outro garoto daquela escola. Enquanto ele me mirava, para ver o que me fizera estacar, fiquei olhando em seus olhos sentindo um leve tremor na mão, enquanto borboletas agitavam-se no meu estômago. Não havia mais como negar: sobre tudo que Enzo representava como pessoas eu o queria para mim. Nem que fosse por um dia.
Como não havia testemunhas, mesmo tremendo, puxei-o um pouco para mais perto de mim. Ele não relutou, mas seus olhos arregalaram-se levemente. Eu nunca havia tomado a iniciativa com um menino na minha vida, mas enchi-me de coragem naquela hora. Toquei no rosto dele delicadamente e retirei seus óculos. Quando fiz isso, Enzo ergueu uma mão e segurou o meu pulso, em seguida fechou os olhos e beijou a palma da minha mão, com muito carinho. O toque doce dos seus lábios na minha mão disparou calores que se estenderam pelo meu braço e tomaram o meu coração. E quando Enzo envolveu-me pela minha
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cintura, pensei que meu coração fosse explodir. Eu nunca havia sentido isso por um menino, nunca tive tanta expectativa antes de um beijo. Por isso, fechei os olhos para absorver melhor o momento. Estávamos às margens da cachoeira, molhados e descalços. O cheiro de flores e frutos impregnava o ar ao nosso redor. Eu não via à hora de Enzo me beijar e de poder retribuir seu carinho. Mas de repente, um barulho ensurdecedor como uma britadeira foi preenchendo o ambiente, interrompendo o clima entre nós. Um barulho que eu havia desejado tanto nos últimos dias, mas que pensei em ignorar solenemente naquela hora. Mas eu sabia que não podia fazer isso. Quando abri os olhos, contemplei Enzo se afastar, tão constrangido quanto eu, e dei-me conta, infeliz, de que aquele momento nunca mais se repetiria.
ENZO
Eu já havia ouvido algumas histórias de pessoas que ganharam na loteria e perderam o bilhete, mas nunca havia conseguido imaginar qual
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era a sensação. Agora, eu sabia. Havia ficado sozinho com Rafaela por três dias completos e tudo que consegui foram dois quase beijos dela. E um - agora eu quero me matar - que eu recusei. Abafei um grito estrangulado no meu travesseiro. Eu estava com ódio de mim. Eu não tinha ideia do que aconteceria agora entre nós. Por um momento, enquanto estávamos perdidos na mata, achei que poderia realmente esquecê-la. Estava tão irritado com ela... Além do que, eu não estava mais iludido a respeito de sua personalidade. Sabia que Rafaela podia ser a pessoa mais irritante do mundo, se assim o quisesse. Mas, a cada vez que eu a olhava, cada traço do seu rosto, cada gesto despreocupado me hipnotizavam de uma forma preocupante.
Desde que voltamos para casa não havíamos nos falado. Era quarta-feira e nenhum de nós foi à aula. Eu tinha uma entrevista para dar e meu pai havia marcado uns quinze exames médicos para eu fazer. Queria ter certeza de que minha saúde não fora abalada. Mas eu pouco me importava com isso, minha cabeça estava em outro lugar.
Desde que voltei, olhei pela janela dezenas de vezes para ver se avistava Rafaela. Mas fora um entre e sai desenfreado de suas amigas, eu não vi nada que me animasse naquela casa. Para culminar, a Scooter de Mateus estava parada na frente da casa dela desde que Rafaela retornou. Confesso que vigiei a porta praticamente a noite toda, na esperança de vê-
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la enxotá-lo de lá, ou de que o conduzisse até o portão com qualquer indício físico de que o relacionamento havia acabado. Mas, meu sacrifício foi inútil. Mateus ficou por lá a noite toda.
Eu não podia acreditar que nada havia mudado entre nós, que nada havia mudado nos sentimentos de Rafaela por mim. Afinal, ela tentara me beijar! E duas vezes! E da última vez, posso jurar que ela queria me beijar de verdade. Por isso, ouvir a voz do megafone que veio daquele helicóptero foi de lascar. Nunca imaginei que desejaria tanto ficar perdido na mata.
Mesmo em somente três dias, nós ficamos muito próximos um do outro. Será que tudo ficaria para trás? Será que eu seria somente uma experiência que Rafaela desejaria esquecer? Esse pensamento me consumia. Ela fora o centro da minha vida durante anos!
Quando fomos resgatados no fim da tarde, percebi, para o meu espanto - e também absoluta vergonha - que estávamos a cerca de duas horas de distância da trilha. Andamos para o lado totalmente oposto na mata. Primeiro, um bombeiro desceu do helicóptero por uma corda e nos perguntou se estávamos bem. Conferindo que sim, nos orientou que pegássemos nossas coisas enquanto um segundo bombeiro descia. Fomos amarrados e resgatados pelo helicóptero e, quando descemos, havia dezenas de pessoas e flashes esperando por nós.
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Assim que Rafaela colocou os pés em solo de novo, sua mãe e Mateus correram para a abraçarem. Qualquer idiota poderia notar como Mateus estava satisfeito diante das câmeras. Meu pai, tio Mauro, Leandro, Eva e Alana também aguardavam por mim. Eu nunca havia visto meu pai tão comovido na vida. Chorava feito criança, e fiquei feliz por ver que minha presença daria um fim ao seu sofrimento. Quando cheguei em casa, a recepção efusiva de Doralice quase me estrangulou. Chorando, lançou os braços em torno do meu pescoço e enfiou meu nariz com toda a força contra o seu peito. Vovó Rose, como já era de se esperar, sorrindo para mim, pediu à Doralice que servisse um café à visita. Nunca imaginei que ficaria tão feliz em revê-la.
A quarta-feira finalmente virou quinta, triplicando a minha ansiedade. Durante a noite, vi que Rafaela havia aceitado meu convite de amizade do MSN, mas estava constantemente ausente. Arrumei-me como nunca para o colégio naquela manhã. E, pela primeira vez em minha vida, utilizei as lentes de contato que havia ganhado de tio Mauro no Natal.
Coloquei o meu melhor par de tênis, minha melhor calça jeans, mas não tive como escapar da horrenda blusa azul e vermelha para poder entrar no colégio. Mesmo desconfiado de que havia expirado o prazo da validade, coloquei um pouco do perfume importado do meu pai, que minha mãe, antes de morrer, lhe trouxera de uma de suas viagens. O
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cheiro era ótimo e, se fosse o caso, eu suportaria as alergias que aparecessem depois.
Quando cheguei ao colégio, meu coração retumbava tão alto no peito que achei que alguém poderia escutá-lo. Não só por saber que finalmente a veria, mas porque sabia que eu seria o centro das atenções naquela semana. Desci do carro de meu pai, que fez questão de me acompanhar naquele dia importante, e investigue em torno para ver se avistava Leandro. Ele já havia deixado bem claro ao telefone que queria saber todos os detalhes de minha empreitada selvagem com Rafaela. Tenho certeza de que ele estava imaginando altas cenas eróticas rolando na mata. Mas Leandro não estava por ali.
Cruzei o portão de cabeça baixa, tentando, inutilmente, me tornar invisível. Todos olhavam na minha direção, alguns até batendo fotos com o celular. Era ridículo! Pessoas que nunca falaram comigo na vida vieram me cumprimentar, cheios de preocupação. Achei impressionante a quantidade de caras-de-pau. Mas eu não estava me importando com isso, a cada aproximação eu perguntava por Rafaela. Depois de perguntar pela décima vez, avisaram-me que ela estava no pátio, cercada por suas amigas. Ainda que relutante, caminhei para lá. Não sabia como seria recebido. Será que ela correria e se lançaria em meus braços? Isso era tudo que eu mais desejava, mas é claro que desconfiava que não. Todavia,
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certamente, nosso relacionamento já havia mudado. E fomos interrompidos em um ponto de evolução muito importante, que eu pretendia alcançar agora o mais breve possível. Ainda procurava por ela quando senti uma mão tocar minhas costas. Virei-me e vi Alana sorrindo.
— Que bom que voltou para a escola! — disse-me ela em um tom alegre.
Assenti com a cabeça, também sorrindo.
— Pois é...eu...
- Não imagina como fiquei curiosa para saber como você sobreviveu na floresta. Você deve ter tido experiências incríveis!
— Nem tan...
— Você precisou comer alguma minhoca? Ou de repente algum desses bichos nojentos?
— Não, não foi necessário — respondi, olhando em torno, com uma agonia evidente.
— Está procurando Leandro? — ela me perguntou, deixando um de seus livros caírem no chão. — Pois eu o vi agora a pouco lá na cantina comprando M&M.
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— Não, não... Estou procurando por Rafaela, me disseram que ela estava aqui no pátio. Você a viu?
Alana ajeitou os óculos que lhe escorregavam pelo nariz, indicando com a cabeça que não.
— Acho que vou procurá-la novamente lá fora, e... — Olhei para ela. — Ei... Você soltou o cabelo!
— Pois é — ela enrubesceu um pouquinho. — E você tirou os óculos. Ficou muito bem assim.
— Você também — eu ainda olhava para os lados.
— Olha — ela disse —, acho que a Rafaela já deve ter ido para a sala. Agora que ela e Mateus terminaram, acho que não tem mais motivo para ela ficar enrolando aqui fora. Mas ele já deve estar por aí paquerando a mulherada como sempre.
— Como é que é... — Segurei no braço dela, o coração fervilhando de esperança. — Rafaela e Mateus terminaram?
— Sim — ela arregalou mais olhos. — Você não sabia?
— Não — respondi, engolindo um grunhido de alegria.
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— Mas nem parece — Alana continuou. — Mateus chegou ao colégio tão alegre hoje cedo... Ah — ela estalou os dedos —, Enzo, preciso mesmo fazer aquele trabalho sobre genética e queria saber se você vai mesmo poder me ajudar. Não posso deixar minha média em ciências cair. Eu poderia passar na sua casa hoje à noite e então...
— Acho que não vai dar. — Nesse momento, como uma cortina se abrindo para mostrar um grande espetáculo, um grupo de garotas se afastou e pude ver Rafaela no meio delas. Sorrindo! Constatei otimista. Não parecia nem um pouco abalada com o fim do namoro. — Peça para o Leandro te ajudar, ele adora essa matéria.
— Mas...
— Preciso ir agora, Alana, a gente se fala depois.
Caminhando com cautela, comecei a me aproximar das meninas. Rafaela estava de lado para mim e encostada em uma das mesas do pátio. Uma de suas amigas avistou minha aproximação e deu uma cotovelada na outra. Eu ainda estava a uns cinquenta metros dela quando tive a impressão de que Rafaela também me notou. Ela endireitou a postura e parou de sorrir, Olhando para frente. Deu-me a impressão de que ficara um pouco nervosa. Confiante, continuei caminhando, dizendo a mim mesmo que talvez ela não tivesse realmente me visto, senão teria acenado
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ou coisa parecida. Mas Rafaela espiou-me rápido mais uma vez e dessa vez eu tive certeza de que ela tinha me avistado, pois em seguida, jogou o cabelo de lado como sempre. Mas dessa vez ela não me encantou. Ao contrário, senti uma pontada aguda e traiçoeira no coração. Parecia que ela usava o cabelo para cobrir o rosto, como que colocando uma cortina entre nós. Meu estômago estava tão retorcido que faria inveja a qualquer escultura de arame, mas já era tarde demais para eu dar meia-volta. Todas as meninas olhavam para mim e em poucos segundos eu estava parado ao lado delas.
— Rafaela — uma das meninas disse —, seu namorado está aqui.
— Eu não tenho namorado — rosnou ela entre os dentes.
— Seu noivo?
— Cata a boca, Dandara! — Com um sorriso forçado, Rafaela respirou fundo e olhou para mim, fingindo surpresa. — E aí Enzo, tudo bom com você?
— Tudo — respondi, tentando ignorar seu desprezo.
Ela se virou para as amigas.
— Meninas, acho que todas já conhecem o Enzo, não é?
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A maioria me olhou com desdém e respondeu com um desanimado "E, aí?". Cumprimentei-as de volta e voltei meus olhos para ela. Uma onda de mágoa me invadiu, pois reconheci em seus olhos a mesma distância com que olhava para mim antes de tudo. Eu achei que Rafaela fosse se manifestar para vir conversar comigo a sós, mas parece que isso não estava nos seus planos. Com vergonha do meu silêncio, comecei a dizer;
— Tive que fazer um monte de exames médicos ontem, sabe como é o meu pai... — Droga! Pensei, assim que acabei de falar. Será que não consigo nem puxar um assunto decente?
Houve uma chuva de risadinhas das suas amigas e uma delas virou para outra e formou nos lábios a palavra "papai", mas Rafaela somente olhou para mim, com um olhar que agora me parecia culpado. Tentei não demonstrar emoção.
— Espero que tenha dado tudo certo — ela murmurou.
— Ainda não sei — olhei para meu tênis —, vamos pegar o resultado na sexta.
— Hum...
Outro silêncio perturbador. Eu não acreditava no que estava acontecendo. Parecia que eu havia entrado em um túnel do tempo e
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estávamos exatamente do modo como éramos antes, em dois polos distantes, divididos por um muro invisível que dividia dois mundos: o meu e o dela. Era como se tudo que tivéssemos vivido naqueles dias não passasse de um sonho distante. Eu não podia admitir essa possibilidade. Afinal, Rafaela terminara com Mateus, e isso devia significar alguma coisa em meu benefício, não é? Por isso, arrisquei:
— Podemos conversar a sós um minuto?
Outra chuva de risadinhas das suas amigas. Aquilo já estava me dando nos nervos. Rafaela estava mordendo os lábios, com uma expressão reticente. Por um minuto, pensei que fosse recusar. Mas em seguida ela concordou e fomos caminhando para a cantina.
— Você me parece estranha — comentei, tentando entender o motivo.
— Estou?
— Bem — dei de ombros —, soube que você e Mateus terminaram. Talvez seja por isso. Aliás, sinto muito.
— Pois eu não — ela disse e ergueu mais a cabeça. A seguir, estacou e virou-se para mim. — O que quer falar comigo, Enzo? Já estamos quase na hora da aula.
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— Queria saber como você estava depois de tudo que passamos...
— Pois estou ótima. E, pelo visto, você também. Podemos ir? Não quero ouvir gracinha da professora.
— Por que está fazendo isso? — segurei seu braço, para impedi-la de prosseguir.
— Fazendo o quê?
— Me evitando, como sempre.
Rafaela puxou o braço da minha mão.
— Se estivesse te evitando, não estaria aqui com você.
— Acha que sou algum idiota? Vi como você me tratou na frente das suas amigas. E essa frieza toda com que está me tratando agora...
— Enzo, o que você quer de mim? — Rafaela cruzou os braços.
— Espero que me trate com o mesmo interesse que me tratou naquele último dia.
— Escuta — ela pôs uma mão na testa —, sabe que sou muito grata a você por tudo que fez, mas aquilo que quase rolou... — ela fez uma cara de desculpas. — Aquilo não vai mais acontecer. Eu estava confusa. Nós dois somos muito diferentes.
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— Mas você terminou com Mateus, então eu pensei...
— Foi o Mateus quem terminou comigo — ela confessou.
Perdi o que ia dizer, abismado.
— Mas eu vi a Scooter dele em frente à sua casa ontem, a noite toda.
— Ele foi embora de madrugada. — Rafaela ergueu os olhos para mim, só que agora estavam enevoados. — Ele quis tentar até o último minuto.
Pisquei os olhos e sacudi a cabeça, confuso.
— Não entendi. Tentar o quê?
Ela enxugou o rosto.
— Não vou ficar aqui explicando tudo tin-tin por tin-tin pra você, Enzo. Às vezes você é tão lento... Eu não tenho mais nada que interesse ao Mateus. Deixei bem claro para ele que não iríamos chegar onde ele queria. Ele achou que, com todo aquele incidente na mata, eu voltaria para casa muito carente, por isso ficou forçando a barra para nós dois... — E parou de falar, ruborizando levemente de vergonha.
O entendimento me atropelou como um trem de carga. Mateus era mesmo um cafajeste! A única coisa que ele poderia querer de qualquer
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garota era... Trinquei os dentes e olhei em torno de nós. A não ser pelas amigas de Rafaela, esperando por ela, não havia mais ninguém por ali. Sorte dele, pois eu desejava esmurrar o maldito.
— Fico feliz que não tenha cedido a ele — eu disse, voltando os olhos para ela. — isso não seria muito digno de você.
— Obrigada. Mas agora eu preciso ir mesmo, minhas amigas estão me esperando.
— Rafaela — segurei-a de novo —, podemos conversar mais no recreio? Ainda tem muita coisa que eu preciso lhe dizer.
Antes de me responder, Rafaela espiou rápido suas amigas. Olhei para o grupo também, a tempo de ver uma delas revirar os olhos quando olhou para mim.
— Olha Enzo, é claro que podemos ser amigos fora daqui, mas esse negócio de ficarmos andando juntos aqui no colégio... — Ela se calou, torcendo um pouco os lábios ao olhar para os pés. — Você já havia dito que não gosta muito das minhas amigas, e eu não vou abandoná-las para andar com você. Que tal... — aproximando-se de mim, baixou um pouco a voz. - Que tal a gente se falar no MSN mais tarde?
É claro que eu não gostei do que ouvi, mas mesmo assim disse:
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— Pelo MSN, não. Que tai eu ir à sua casa por volta das sete horas?
— Na minha casa? — Ela arregalou os olhos, parecendo apavorada. — Não, não... Alguma amiga minha pode aparecer por lá de repente. Atém do que, ainda tenho a esperança de que Mateus... — Rafaela se interrompeu e olhou para mim.
— Como é que é? Você ainda pretende dar outra chance para aquele panaca? Mesmo depois do modo como te tratou?
Rafaela não respondeu, mas seu rosto refletia um patético sim. Por isso, virei-me de costas, completamente sem ar. Naquele momento, ao fechar os olhos, penso que experimentei uma profunda sensação de catarse. Comecei a me lembrar de como eu a admirava, do tempo que perdi imaginando as nossas conversas, dos plantões que fiz espionando sua casa. Dos desenhos que fiz imaginando seu rosto. Eu sempre havia colocado Rafaela num pedestal, mas agora, ele estava em mil cacos no chão. Lembrei-me também que uma vez li que não é bom que cheguemos muito perto de um ídolo, pois ao tocá-lo o dourado poderia escorrer-nos nas mãos. E era a pura verdade, pois as minhas mãos, agora, já estavam manchadas.
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Olhei para Rafaela de novo, como se a enxergando verdadeiramente pela primeira vez e não gostei do que vi. Ela não era, nem de longe, a garota que eu sonhava para mim. Eu sonhava com uma garota que fosse forte, que se amasse em primeiro lugar. Que não se importasse com o que as outras pessoas falariam dela. Que fosse doce, sincera e genuína. Uma pessoa que tivesse os mesmos valores e interesses que eu. De repente, ela perguntou:
— Está com raiva de mim?
— Não — respondi, sereno. — Estou com raiva de mim por ter sido tão idiota esses anos todos pensando em você. A Rafaela que idealizei não existe. Nunca existiu.
Ela se aproximou e tocou no meu rosto.
— Ainda podemos ser amigos, Enzo. Quando sairmos daqui...
— Não — protestei, retirando sua mão —, não quero mais a sua amizade, não quero nada que venha de você. E isso é mesmo a sua cara... — eu ri com sarcasmo. — Só quer ser minha amiga fora daqui, onde suas amigas não poderão te julgar. Sabe agora eu tenho pena de você, Rafaela. Pena da sua falta de amor-próprio, pena dos falsos amigos que você tem e pena da sua prisão. Você não é uma pessoa livre, pois vive sob as regras e a ditadura das suas amigas, e uma pessoa assim não tem nada para me
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acrescentar. Então, me faça um favor, me evite realmente de agora em diante. — Dito isso, virei de costas e fui andando para sala de aula. Meu corpo tremia de ódio dos pés à cabeça. Eu desejava esmurrar alguma coisa e foi quase o que fiz a uns dez passos da sala, quando Leandro me agarrou pela mochila.
— Cara, foi isso mesmo que ouvi?
— Tudo bem com você também, Leandro?
— Para de cerimônia, desembucha logo. A propósito, ficou bem sem óculos. Estava dando um fora na Rafaela?
— Não foi exatamente um fora. Ela não me ofereceu nada, além de migalhas de sua amizade.
— Nada disso, bonitinho. Escutei tudo da janela do banheiro. Você disse que ela tentou te beijar!
— Então também deve ter ouvido o que ela disse que sente por Mateus.
— E daí? — perguntou ele, inabalado. — Quem disse que você não pode ser o outro? Vai me dizer que não gostaria de pôr um galho na cabeça daquele idiota?
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Parei, olhando para o chão. Em seguida espiei a cara dele, balancei a cabeça e tornei a andar.
— Ei, não vai tão rápido — ele disse. — Quero andar ao lado do destaque do jornal dessa semana.
— Que jornal?
Leandro revirou os olhos.
— Sabia que você não tinha visto. Só fica aí suspirando pela Rafaela...
Ele me entregou o jornal. Era do dia anterior. E eu estava mesmo tão atormentado para ver Rafaela que nem havia visto nada na internet, nem no jornal. Sabia que as matérias saíram, mas também sabia que seria uma fama relâmpago. Não estava emocionado por isso. Mesmo assim, passei os olhos pelo artigo. Em destaque, havia uma foto minha e de Rafaela em preto e branco.
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DUPLA DE JOVENS SE PERDE EM MATA POR MAIS DE 72 HORAS NO RJ
Os dois jovens que estavam desaparecidos desde o assalto aos estudantes do colégio Dilebrian, e que eram procurados pelo Corpo de Bombeiros na Floresta da Tijuca, região metropolitana do Rio de Janeiro, voltaram para casa na tarde desta terça-feira. De acordo com os bombeiros, os jovens de 16 e 15 anos encontraram um abrigo em uma gruta e passaram os três dias no local. Ambos estavam perdidos desde sábado e, segundo sua colega de turma Alana Gonçalves, que ajudou incansavelmente na busca mobilizando um grupo de trilheiros experientes, eles somente sobreviveram devido ao vasto conhecimento científico do rapaz. O jovem conseguiu não só achar água e alimento, como também fazer uma fogueira à moda antiga para aquecê-los. Por causa do sumiço da dupla, o corpo de bombeiros mobilizou equipes com cães farejadores e dois helicópteros durante todo esse tempo. Eles não tiveram ferimentos graves e passavam bem quando reencontraram amigos e familiares.
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Fiquei olhando para aquela matéria, me sentindo um imbecil, pois percebi que sempre estive tão envolvido com meus próprios interesses que não percebi o que acontecia bem debaixo do meu nariz. Foi como se eu tivesse tido uma luz: Alana era apaixonada por mim! Ela havia me procurado incansavelmente por três dias. Onde eu encontraria maior prova de amor do que essa?
E, por Deus! Só um idiota não teria percebido aqueles olhos míopes e em estado de adoração quando Alana me olhava. Aquela alegria constante. Os assuntos científicos que puxava, pensando que fosse me agradar. Sempre havia sido educada e solícita comigo.
Naquele momento, fechei os olhos, lembrando-me de como a havia tratado naquela manhã, e fiquei com vergonha de mim. Eu mal havia olhado em seus olhos. Nunca lhe dei a devida atenção. Para mim, Alana era invisível simplesmente porque não se vestia como as outras garotas. Exatamente como eu era para Rafaela. Flquei triste ao me dar conta daquilo. Ambos só enxergávamos a aparência. Pelo menos nesse sentido, eu e Rafaela éramos iguais. Mas felizmente, não em tudo...
— Onde está Alana? — pergunte para Leandro, olhando para dentro da sala.
— Quem?
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— Alana — gritei para ele.
— Ah, sei ta! Acho que ela passou por mim, indo em direção à quadra.
— Tem certeza?
— Certeza, certeza, eu não tenho. Não fico reparando muito nela. Mas, por que a pergunta?
Entreguei o jornal para ele.
— Porque venho cometendo o mesmo erro.
Aproveitei a ausência do monitor no corredor e corri para a quadra. Esperava sinceramente encontrá-la por lá, mas espiei toda a arquibancada e não havia sinal de ninguém por ali. Continuei procurando. Olhei na secretaria, na biblioteca, no laboratório de ciências... Cheguei a ir até a enfermaria para ver se a encontrava, mas lá só havia uma criança vomitando. Espreitei por todos os corredores e no estacionamento. Tornei a olhar na sala de aula e a carteira dela ainda estava vazia. Por fim, apoiei-me de costas no corredor e encostei a cabeça na parede. Estava exausto e não sabia mais por onde procurar. Repassava o mapa do colégio na minha mente, quando de repente ouvi passos vindo em minha direção. A qualquer momento o monitor viraria a esquina no corredor onde eu estava. O esconderijo mais próximo era o banheiro das
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meninas. Não titubeei. Entrei e fechei a porta de alumínio. Nesse momento, ouvi uma fungada que vinha de um dos boxes privativos. O monitor estava já no corredor, eu não podia sair. Portanto, achei melhor anunciar minha presença no recinto.
— Olha, não se assuste, não sou nenhum tarado. Só entrei aqui porque estou matando aula, mas assim que o monitor sair do corredor, eu sairei do banheiro...
— Enzo? — Escutei uma voz conhecida. — por que está matando aula?
— Alana?
Ela abriu a porta e eu a vi chorando, sentada na tampa da privada, com os livros no colo.
— Por que está chorando? — Agachei-me diante dela.
— Não estou chorando — ela se levantou. — E que eu tenho alergia. Por que está matando aula? — Mudou de assunto e foi andando e direção ao espelho.
— Estava procurando você.
— Eu? — Ela girou para mim, deixando os livros caírem. Adorei o movimento dos seus cabelos.
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— Sim.
— E por que estava me procurando? — Ela já catava os livros do chão.
— Para saber por que você estava procurando por mim.
— Quê? — ela endireitou os óculos. — Como assim?
Olhei fixo em seus olhos azuis.
— Soube que você estava ajudando nas buscas. Queria muito te agradecer.
— Ah! — O rosto inchado sorriu para mim e corou. Eu nunca havia reparado como seu sorriso era meigo. — Não foi nada. Já faço trilha há muito tempo. Foi até divertido. — Ela soprou um cabelo da testa.
— Então, me procurou só por isso? Por causa da diversão?
Alana perdeu um tempo engolindo a saliva. Pela primeira vez, eu a vi sem palavras.
— O que está querendo saber exatamente, Enzo? Somos amigos. Foi por isso que fui te procurar.
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— Não — eu disse, segurando uma de suas mãos. — Você sempre foi minha amiga, mas eu ainda não fui seu amigo... — Fiz uma pausa. — Até hoje.
Alana ficou me olhando, com o rosto em vários tons de vermelho, sem saber o que fazer.
— O que quer dizer? — ela perguntou.
— Que ainda não te dei a atenção que você merece. Você é uma menina muito especial. Talvez, a mais especial desse colégio. Mas, como posso ter certeza se não tiver uma chance...
Delicadamente, Alana recolheu sua mão.
— Chance de que, Enzo? Você está me deixando confusa...
— De te conhecer melhor. — Enfiei as mãos nos bolsos. — Ainda quer estudar comigo hoje à noite?
— Não sei — ela enxugou os olhos. — Você disse que estava ocupado.
Passeia mão pela sua bochecha molhada.
— E era por isso que você estava chorando? — perguntei.
Alana arregalou os olhos para mim, sem palavras de novo. Dei um meio sorriso.
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— Olha — coloquei seu cabelo atrás da orelha —, sei que não mereço nenhuma chance de me aproximar de você pelo modo como a tratei até hoje. Mas eu estava hipnotizado por Rafaela. Precisei tomar uma bordoada para perceber que havia idealizado uma pessoa que não existia. Mas agora, eu enxergo você. E sei que você é de verdade. Por isso, quero te conhecer melhor.
Com a mão visivelmente trêmula, Alana ergueu os dedos e também tocou no meu rosto.
— Pensei que nunca fosse me notar.
Beijei sua mão.
— Mas notei. Você foi pra mim como uma borboleta, que saiu do casulo e de repente me mostrou outro tipo de beleza. E então, ainda podemos estudar juntos? — Com o olhar carregado de emoção, Alana indicou com a cabeça que sim. — Bem — aproximei-me mais dela —, a primeira coisa que você precisa saber sobre genética é que geralmente os opostos se atraem, mas na vida real, isso não é exatamente uma regra... — Passei um braço em sua cintura. — Podemos fazer uma experiência científica quanto a isso. O que acha?
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Com nossos rostos a um palmo de distância, Alana sorriu graciosamente para mim. Em seguida, colocou os livros em cima da pia. A doçura que havia em seus olhos adoçaria o mais amargo dos vinhos.
— Tudo bem — ela disse, passando os braços em torno do meu pescoço — somos um casal de alunos bastante aplicado. Portanto — mordiscou levemente a minha boca —, comecemos a pesquisa.
Fim!
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A autora Lycia Barros reside com o marido e os filhos em sua cidade natal: Rio de Janeiro. Hoje, como sua função principal, atua apaixonadamente como escritora. Paixão essa, herdada desde que cursou letras na UFRJ. Seu primeiro romance foi o livro que já é sucesso "A Bandeja- qual pecado te seduz?" lançando em Outubro de 201. Autora de "A Bandeja - Qual Pecado Te Seduz?" , "Entre a Mente e o Coração" (Coleção Despertares) e "Tortura cor-de-rosa" (Geração Z). Uma excelente escritora!
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