quarta-feira, 12 de junho de 2013

Entre irmãs


CAPÍTULO
UM
A DRA. BLOOM esperava pacientemente por uma resposta.
Meghann Dontess recostou-se no diva e observou as
unhas. Era hora de ir à manicure.
— Eu tento não sentir tanto, Harriet. Você sabe disso.
Acho que sentir me impediria de aproveitar a vida.
— É por isso que me vê todas as semanas, há quatro
anos? Por aproveitar tanto a vida?
— Eu não diria isso se fosse você. Depõe contra sua
capacidade psiquiátrica. Sabe, é possível que eu tivesse sido
perfeitamente normal quando a conheci e na verdade
você esteja me deixando louca.
— Você está usando o humor como escudo de novo.
—Você me dá crédito demais. Não foi engraçado.
Harriet não sorriu.
— Vamos falar do dia em que você e Claire foram
separadas.
Meghann mexeu-se no diva. Sabia aonde Harriet
queria chegar.
— Esse assunto está encerrado.
— É interessante que você mantenha uma relação
com sua mãe enquanto se distancia da sua irmã.
Meghann deu de ombros.
— Minha mãe é atriz. Eu sou advogada. Nós nos
sentimos à vontade com o faz-de-conta.
— Como assim?
— Você já leu alguma entrevista da minha mãe? Ela
diz a todo mundo que levou uma vida pobre, patética, mas
repleta de amor. Nós fingimos que é verdade.
— Vocês moravam em Bakersfield quando a farsa
patética mas repleta de amor chegou ao fim, certo?
Meghann não respondeu.
— Claire tinha nove anos, se não me engano. —
prosseguiu Harriet.
— Não comece — pediu Meghann.
Harriet a encarou.
— Não fuja. Nós estamos progredindo.
— Mais progresso, e eu precisarei de uma ambulância.
Deveríamos conversar sobre o meu trabalho. É por
isso que consulto você. A vara de família anda uma loucura.
Ontem um pai caloteiro apareceu de Ferrari e jurou
que estava completamente quebrado. Não queria pagar os
estudos da filha.
— Por que continua me pagando se não discute a
raiz dos seus problemas?
— Eu tinha 16 anos quando tudo isso aconteceu.
Agora estou com 42. É hora de seguir em frente. Já não
importa mais.
— Então por que ainda tem o pesadelo?
Meghann deveria ter previsto isso. Consultou o relógio
de platina e ouro.
— Que pena, Harriet. Acabou o tempo. Vamos ter
de resolver minhas tristes neuroses na semana que vem.
Ela levantou-se.
— Gosta da sua vida, Meghann? — perguntou Harriet.
Essa era nova.
— Por que não gostaria? Sou a melhor advogada de
divórcios no Estado. Moro...
— Sozinha.
— Num apartamento magnífico sobre o Pike Place
Market e dirijo um Porsche novinho em folha.
— Família?
— Minha mãe passou uma semana comigo no ano
passado. Se eu tiver sorte, ela voltará a me visitar a tempo
de assistirmos juntas pela MTV à colonização de Marte.
— E Claire?
— Minha irmã e eu temos problemas, reconheço.
Mas nada grave. Só somos ocupadas demais para nos
vermos. — Como Harriet não disse nada, Meghann apressou-
se em preencher o silêncio. — Tudo bem, ela me
enlouquece, o jeito como desperdiça a vida. Ela é inteligente
o bastante para fazer o que quiser, mas fica presa
àquele acampamento tosco que eles chamam de resort.
— Com o pai dela.
— Eu não quero falar sobre minha irmã. E definitivamente
não quero falar sobre o pai dela.
Harriet deu leves batidas com a caneta na mesa.
— Muito bem. Que tal isto: qual foi a última ocasião
em que dormiu com o mesmo homem duas vezes?
— Gosto de variedade.
— Do mesmo jeito que gosta de homens mais novos,
não é? Homens que não sentem a menor vontade de
se estabelecer.
— Não quero uma casa com cerca nos confins da
cidade. Não me interessa a vida familiar.
— E da solidão, você gosta?
— Não sou solitária — respondeu, inflexível. — Sou
independente. Homem não gosta de mulher forte.
— Homem forte gosta. E mulher forte enfrenta os
próprios temores. Fala sobre as escolhas dolorosas que fez
na vida.
Meghann chegou a encolher-se.
— Desculpe, Harriet, preciso ir. Até a semana que
vem.
Ela saiu do consultório.
Lá fora, fazia um dia gloriosamente ensolarado de
junho. Adiantado no suposto verão. Em qualquer outro
lugar do país, as pessoas estavam nadando, preparando
churrasco e organizando piqueniques à beira da piscina.
Ali, na boa e velha Seattle, todos consultavam o calendário
e murmuravam que era junho, droga.
Havia poucos turistas passeando nessa manhã, forasteiros
identificáveis pelos guarda-chuvas debaixo do
braço. Meghann atravessou a rua movimentada, até o jardim
do parque à margem da baía. À sua frente, o azul-
marinho da Puget Sound estendia-se ao longo do horizonte
pálido. Ela adoraria poder se reconfortar com essa
vista. Mas hoje sua mente estava enredada na teia de outro
tempo e outro lugar.
Se fechasse os olhos — o que não ousava fazer —,
se lembraria de tudo: a discagem do número de telefone, a
conversa formal, desesperada, com um homem que não
conhecia, a longa viagem até aquela cidadezinha ao norte.
E, o pior de tudo, as lágrimas que ela havia enxugado no
rosto corado da irmã caçula depois de dizer: Estou indo embora.
Ela agarrou o parapeito. A Dra. Bloom estava enganada.
Falar sobre sua escolha dolorosa e os anos solitários
que se seguiram não ajudaria.
O passado dela não era um conjunto de lembranças a
ser explorado; era uma mala Samsonite imensa com rodinhas.
Tudo o que Meghann podia fazer era arrastá-la.
CLAIRE CAVENAUGH encontrava-se à margem do rio
Skykomish, as botas afundadas quase à altura dos tornozelos
na lama marrom. A seu lado havia um cortador de
grama sem gasolina. Ela sorriu, passou a mão protegida
com luva na testa suada. A quantidade de trabalho braçal
necessária para deixar o resort pronto para o verão era inacreditável.
Resort.
Era assim que seu pai chamava aqueles seis hectares.
Sam Cavenaugh deparara-se com o terreno quase quarenta
anos antes, quando Hayden ainda era só uma parada para
abastecimento a caminho de Stevens Pass. Ele comprara o
sítio por uma ninharia e estabelecera-se na casa decrépita
que lá havia. Batizara o lugar de Resort River's Edge e
começara a sonhar com uma vida que não incluía capacetes,
tampões de ouvido e plantões noturnos na fábrica de
papel de Everett.
No começo, trabalhara incansavelmente, mesmo nos
fins de semana. Com uma serra elétrica, uma caminhonete
e um mapa desenhado num guardanapo, deu início à empreitada.
Abriu áreas para acampamento, limpou o acúmulo
de vegetação rasteira e construiu à mão cada chalé
de madeira à margem do rio. Agora o River's Edge era um
próspero negócio de família. Havia oito chalés ao todo,
cada qual com dois quartos, um banheiro e uma varanda
com vista para o rio.
Nos últimos anos, haviam feito também uma piscina
e um salão de jogos. Era o tipo de lugar aonde as mesmas
famílias iam ano após ano para passar suas preciosas férias.
Claire ainda se lembrava da primeira vez em que o
vira. As árvores gigantescas e o rio prateado pareceram-
lhe uma espécie de éden. Suas lembranças infantis
anteriores ao River's Edge eram cinzentas: cidades feias
que iam e vinham, apartamentos ainda mais feios em prédios
arruinados. A mãe casara-se repetidas vezes, mas
Claire não se lembrava de nenhum homem que tivesse
permanecido muito tempo. Era de Meghann que Claire se
lembrava. A irmã mais velha que tomava conta de tudo... e
um dia se foi, deixando-a para trás.
Agora, todos esses anos depois, suas vidas eram ligadas
pelo mais tênue laço. De meses em meses, ela e Meg
conversavam pelo telefone. Então Meg invariavelmente
“recebia outra chamada” e desligava. A irmã adorava enfatizar
que era um sucesso e que Claire se subestimara. Morando
nesse acampamento ridículo, limpando a sujeira dos outros
era a sua ladainha. Todos os natais ela se oferecia para pagar
uma universidade para Claire. Como se ler Beowulf
fosse melhorar a vida da irmã.
Durante anos Claire desejara ser sua amiga, além de
irmã, mas Meghann não queria isso, e elas eram o que
Meghann queria que fossem: desconhecidas educadas que
dividiam um grupo sangüíneo e uma infância difícil.
Claire pegou o cortador de grama. Ao caminhar pelo
lamaçal, notou uma dezena de coisas que precisavam ser
feitas antes do dia de abertura. Era preciso aparar as roseiras,
raspar o musgo do telhado, tirar o mofo do parapeito
das varandas. Mentalmente, tomou nota para pedir a
George, o empregado que fazia de tudo, para esfregar as
canoas naquela tarde.
Jogou o cortador de grama na traseira da caminhonete.
Ele caiu com um tinido que chacoalhou a carroceria
enferrujada.
— Oi, querida. Vai à cidade?
Ela virou-se e viu o pai na varanda da casa de recepção.
Ele usava um macacão esfarrapado e uma camisa de
flanela.
— Vou consertar aquele freezer. Nem pense em ver
o preço de modelos novos.
Não havia aparelho que ele não soubesse consertar.
— Precisa de alguma coisa da cidade? — perguntou
ela.
— Smitty tem uma peça para mim. Você pode pegar?
— Claro. E peça ao George que comece a limpar as
canoas quando chegar, está bem?
— Vou pôr isso na lista. Volta para o jantar?
— Hoje, não. A princesa tem um jogo de t-bal no
parque Riverfront, lembra? Às 17 horas.
— Ah, é. Estarei lá.
Claire assentiu, certa de que ele estaria. Ele não perdia
nenhum acontecimento na vida da neta.
— Tchau, pai.
Ela torceu a maçaneta da caminhonete e deu um puxão.
A porta abriu. Ela subiu no banco.
O pai fechou a porta do veículo.
— Dirija com atenção. Cuidado com a curva dos
quatro quilômetros.
Ela sorriu. Havia quase duas décadas que ele dava o
mesmo conselho.
— Amo você, pai.
— Amo você também, filha. Agora vá pegar minha
neta.
CAPÍTULO
DOIS
A LATERAL DO PRÉDIO dava para a Sound. Uma parede
de janelas que se estendiam do chão ao teto emoldurava
a bela vista.
Meghann estava sentada sozinha à longa mesa de
reuniões. A superfície lustrada de cerejeira e ébano sugeria
requinte e luxo. Quando a pessoa se sentava àquela mesa e
contemplava a vista, a intenção era óbvia: mostrar que o
dono do escritório era muito bem-sucedido.
Era verdade. Meghann alcançara todos os objetivos
que traçara para si mesma. Ao ingressar na universidade, a
adolescente assustada e solitária ousara sonhar com uma
vida melhor. E a havia atingido. Sua firma estava entre as
mais prósperas e respeitadas da cidade.
Ela consultou o relógio: 16h20. A cliente estava atrasada.
Era de imaginar que cobrar mais de trezentos dólares
a hora incentivaria as pessoas a chegarem pontualmente.
— Sra. Dontess? — irrompeu a voz pelo interfone.
— Sim, Rhona?
— Sua irmã, Claire, está na linha um.
— Pode passar. E me avise quando May Monroe
chegar.
Meghann apertou o botão do telefone e forçou um
sorriso na voz.
— Claire, que bom que você ligou!
— Você também pode telefonar. Como vai a vida na
Terra do Dinheiro?
— Tudo bem. E em Hayden? Ainda está todo mundo
esperando o rio transbordar?
— Este ano o perigo já passou.
— Ah. — Meghann olhou pela janela. — E como
vai minha sobrinha linda? Ela gostou do skate?
— Adorou. — Claire riu. — Mas, Meg, na próxima
vez é melhor você pedir ajuda às vendedoras. Meninas de
cinco anos geralmente não têm coordenação para andar
de skate.
— Você tinha. Nós morávamos em Needles na época.
Meg imediatamente desejou não ter dito isso. Sempre
doía lembrar o passado delas juntas. Durante muitos anos,
Claire fora mais filha que irmã de Meghann. Sem dúvida,
Meg fora mais mãe de Claire que a mãe de ambas jamais
havia sido.
— Compre um filme da Disney na próxima vez. Não
precisa gastar tanto dinheiro. Ela vai ficar feliz com uma
Polly.
Um silêncio incômodo instaurou-se entre elas. Meghann
consultou o relógio mais uma vez. Então ambas
falaram ao mesmo tempo.
— O que você está...
— Como vai a firma?
— Bem. E o acampamento?
— Resort. Abriremos em duas semanas. Os Jefferson
vão fazer uma reunião de família para cerca de vinte pessoas.
— Uma semana sem telefone nem televisão? Por que
será que a música-tema de Amargo pesadelo me vem à mente?
— Algumas famílias gostam de se reunir — respondeu
Claire, naquele tom de voz firme que diz: você me
magoou.
— Desculpe. Tem razão. Sei que você adora esse lugar.
— É... — Claire hesitou. — Eu vou ao lago Chelan
amanhã.
— A viagem anual das amigas — deduziu Meghann.
— Como vocês se chamam? As Bluesers?
— É.
— Ainda vão ao mesmo lugar?
— Todo verão, desde o secundário.
Meghann não conseguia imaginar-se amiga de pessoas
com as quais freqüentara o secundário.
— Bem, divirtam-se.
— Ah, vamos nos divertir. Este ano, Charlotte...
A campainha do interfone tocou.
— Meghann? A Sra. Monroe está aqui.
— Droga. Desculpe, Claire, preciso desligar.
— Ah, tudo bem. Sei o quanto você adora ouvir sobre
minhas amigas que não completaram os estudos.
— Não é isso. Acabou de chegar uma cliente.
— Claro, tchau.
— Tchau.
Meghann desligou o telefone quando a secretária indicava
à Sra. Monroe a sala de reuniões.
— Oi, May — saudou Meghann, adiantando-se para
a cliente. — Obrigada, Rhona. Por favor, não passe nenhuma
ligação.
A secretária assentiu e deixou a sala, fechando a porta.
May Monroe ficou parada diante de um grande quadro
a óleo, um Nechita original chamado Verdadeiro amor.
Meghann sempre adorara a ironia disso: ali, naquela sala, o
verdadeiro amor morria a cada dia.
May usava um vestido de jérsei preto e sapatos também
pretos que estavam fora de moda havia pelo menos
cinco anos. O anel de casamento era um aro liso de ouro.
Olhando para ela, jamais imaginaríamos que o marido dirigia
um Mercedes preto e batia ponto todas as terças-
feiras no campo de golfe Broadmoor. May provavelmente
não gastava dinheiro consigo mesma havia anos.
Desde que se matara de trabalhar num restaurante para
pagar a faculdade de odontologia do marido.
— Por favor, May, sente-se.
May avançou como uma marionete que tivesse sido
movida por outra pessoa. Sentou-se numa das cadeiras de
camurça preta.
Meghann acomodou-se no lugar de sempre, à cabeceira
da mesa. Espalhadas diante dela, diversas pastas com
adesivos cor-de-rosa ao longo das margens dos documentos.
Meghann fitou a cliente.
— Como lhe falei no nosso último encontro, contratei
um detetive particular para investigar as finanças do
seu marido.
— Foi perda de tempo, não foi?
— Não exatamente.
May encarou-a durante alguns instantes, levantou-se
e dirigiu-se ao aparelho de café de prata, disposto sobre o
aparador de cerejeira.
— Sei — disse afinal. — O que vocês descobriram?
— Ele tem mais de seiscentos mil dólares numa
conta nas ilhas Cayman, que está em nome dele. Sete meses
atrás, tirou quase todo o dinheiro do crédito imobiliário.
Você deve ter achado que estava assinando documentos
de refinanciamento.
May virou-se. Segurava uma xícara de café com o pires.
A porcelana tilintava nas mãos trêmulas à medida que
ela retornava à mesa.
— As taxas tinham caído.
— O que caiu foi o dinheiro. Bem nas mãos dele.
— Ah, meu Deus — murmurou ela.
— Isso não é o pior — prosseguiu Meghann, tentando
ser suave com as palavras, mas sabendo o corte
fundo que deixaria. — Ele vendeu a clínica para o sócio,
Theodore Blevin, por um dólar.
— Por que faria isso? Ela vale...
— Para você não poder receber a metade que lhe
cabe.
Com isso, as pernas de May pareceram faltar. Ela
desabou na cadeira. A xícara e o pires bateram na mesa
com um tinido. O café espirrou sobre a borda de porcelana
e formou uma poça na superfície de madeira. May
imediatamente começou a limpá-la com o guardanapo.
— Desculpe.
Meghann tocou o braço da cliente.
— Não tem problema.
Levantou-se, pegou mais guardanapos e enxugou o
líquido derramado.
— Algum desses papéis explica por que ele faria isso
comigo?
Meghann abriu uma pasta e retirou uma fotografia.
Com calma,mostrou-a a May.
— O nome dela é Ashleigh.
— Ashleigh Stoker. Agora eu sei por que ele sempre
se oferecia para pegar Sarah nas aulas de piano.
Meghann assentiu. Era sempre pior quando a mulher
conhecia a amante, mesmo que por alto.
— No Estado de Washington não precisamos de
motivos para o divórcio, então o caso extraconjugal dele
não importa.
May ergueu os olhos. Tinha a expressão ao mesmo
tempo vaga e vidrada de uma vítima de acidente.
— Não importa? — Ela fechou os olhos. — Eu sou
uma idiota.
As palavras eram mais um suspiro.
— Não. Você é uma mulher fiel e honesta que pagou
os estudos de um homem egoísta para que ele tivesse uma
vida melhor.
— Deveria ser uma vida melhor para nós.
— Claro.
Meg estendeu o braço, tocou a mão de May.
— Você confiou num homem que disse amá-la. Agora
ele está esperando que você seja aquela velha May
solícita que põe a família em primeiro lugar e facilita a vida
do Dr. Dale Monroe.
May parecia confusa, talvez até um pouco assustada.
— Como devemos proceder? Não quero fazer mal
às crianças.
— Foi ele que fez mal às crianças, May. Roubou dinheiro
delas. E de você.
— Mas ele é um bom pai.
— Então vai querer se certificar de que os filhos vivam
com conforto e vai entregar metade dos bens sem
briga.
— E se não fizer isso?
— Aí vamos forçá-lo.
— Ele vai ficar enfurecido. Meghann inclinou-se para
a frente.
— É você que deveria estar enfurecida, May. Esse
homem mentiu, traiu você e roubou seu dinheiro.
— Ele também criou meus filhos — retrucou May.
— Não quero que a situação fique intolerável. Quero que
ele... saiba que pode voltar.
Ah, May. Meghann escolheu as palavras com cuidado.
— Nós vamos apenas ser justas. Não quero fazer
mal a ninguém, mas você com certeza não será deixada na
miséria por esse homem. Ele é um ortodontista muitíssimo
rico. Não vou deixá-lo fazer você sofrer mais.
— E acha que alguns documentos e dinheiro no
banco vão me proteger disso? — Ela suspirou. — Vá em
frente, Meghann, faça o que for preciso para proteger o
futuro dos meus filhos. Mas não vamos fingir que você
poderá dar fim ao meu sofrimento. Já dói tanto que mal
consigo respirar, e estamos só no começo.
NA VASTIDÃO IRREGULAR dos campos gramados,
uma fileira de moinhos de vento cortava o horizonte sem
nuvens. Às vezes, quando o tempo ajudava, era possível
ouvir o rangido de cada rotação. Hoje fazia calor demais
para se ouvir qualquer coisa além do próprio batimento
cardíaco.
Joe Wyatt estava na laje de concreto que servia de
varanda do armazém, segurando uma lata agora quente de
Coca-Cola: tudo o que sobrara do almoço.
Ele contemplava os campos distantes. O calor o incomodava,
e era apenas a segunda semana de junho. De
jeito nenhum ele passaria o verão em Yakima Valley. Era
hora de se mudar novamente.
A constatação deixou-o desalentado.
Ele imaginou por quanto tempo ainda conseguiria
fazer isto, vagar de cidade em cidade. A solidão o fatigava,
reduzia-o a uma sombra estreita. Um dia — parecia muito
tempo atrás —, ele tivera a esperança de que um daqueles
lugares lhe cairia como uma luva, que ele chegaria à cidade,
pensaria É aqui e alugaria um apartamento em vez de
um quarto de hotel decrépito. Já não nutria esse sonho.
Depois de uma semana no mesmo quarto, ele começava a
sentir coisas, lembrar coisas. Quando criava raízes e se
deixava ficar, invariavelmente sonhava com Diana.
Isso não era um problema. Doía, evidentemente,
porque ver o rosto dela, mesmo em sonho, enchia-o de
uma angústia que lhe atravessava os ossos, mas também
havia prazer, a doce recordação de como era a vida, do
amor que ele outrora fora capaz de sentir. Se ao menos os
sonhos parassem aí, com a lembrança de Diana sentada na
relva verde da quadra, à época de faculdade, ou de ambos
enrascados na cama grande, em casa, na ilha Bainbridge...
Ele nunca tinha essa sorte. Os belos sonhos invariavelmente
desandavam, transformando-se em pesadelos.
Quase sempre ele acordava sussurrando “Desculpe”. A
única maneira de sobreviver era continuar se mudando.
Nesses anos de nomadismo ele havia aprendido a ser
invisível. Se mantínhamos o cabelo cortado e nos vestíamos
bem, as pessoas nos viam. Mas, se nos largávamos,
esquecíamos de cortar o cabelo, usávamos uma camiseta
desbotada Harley-Davidson e carregávamos uma mochila
em frangalhos, ninguém nos notava.
Três anos antes, ao fugir, ele havia levado uma mala
sofisticada. Ainda se lembrava de estar em seu quarto,
preparando-se para uma viagem sem destino ou tempo de
duração e se perguntando do que um homem exilado necessitaria.
Decidira-se por uma calça caqui, pulôver de
merino e até um terno preto Joseph Abboud.
Mas no fim do primeiro inverno sozinho ele já havia
entendido que aquelas roupas eram os restos arqueológicos
de uma vida esquecida. Tudo de que ele necessitava
em sua nova vida era de duas calças jeans, algumas camisetas,
um suéter e uma capa de chuva. O resto ele dera para
pessoas necessitadas.
Fechou os olhos e Diana lhe surgiu.
— Estou cansado — disse ele.
Não adianta o que você está fazendo.
— Não sei o que fazer.
Volte para casa.
— Não posso.
Você está partindo meu coração, Joey.
E ela se foi.
CLAIRE ESTAVA à pia da cozinha, pensando na conversa
por telefone que tivera com Meg no dia anterior.
Botou o waffle na torradeira. Enquanto ele esquentava,
procurou mais louça suja na cozinha, vendo o lugar
através dos olhos da irmã.
Não era uma casa ruim. Pequena, sim: três quartos
minúsculos amontoados no segundo andar, um único banheiro
em cada pavimento, uma sala e uma cozinha com
uma bancada, onde também se comia. Nos seis anos em
que Claire morava ali, ela havia pintado as paredes outrora
verde-musgo de um tom de creme bonito e trocado o
grosso carpete laranja por tábuas corridas. Os móveis,
embora em sua maioria usados, eram todos remontados
com madeira que ela própria havia retocado.
Meg não veria nada desse jeito, evidentemente. Meg,
que se formara cedo no secundário e depois atravessara
lepidamente sete anos de faculdade, que nunca deixava de
mencionar que possuía rios de dinheiro e tinha a desfaçatez
de mandar para a sobrinha presentes de Natal que faziam
os demais parecerem insignificantes debaixo da árvore.
— Mamãe, meu waffle está pronto.
— Está mesmo. — Claire tirou o waffle da torradeira,
passou manteiga e cortou-o, pondo o prato na frente da
filha. — Aí está.
Alison enfiou logo um pedaço na boca, mastigando
daquele seu jeito de personagem de desenho animado.
Claire não pôde deixar de sorrir. Ficou admirando a
versão em miniatura de si mesma. O mesmo cabelo louro
e liso, os mesmos olhos, o rosto em forma de coração. O
pai de Alison não deixara nenhuma marca genética na filha.
O que vinha a calhar. No instante em que ouvira dizer
que Claire estava grávida, ele havia calçado os tênis de corrida.
— Você está de pijama, mamãe. Vamos chegar atrasadas
se não se apressar.
— Tem razão. — Claire pensou em tudo o que precisava
fazer naquele dia: calafetar os chuveiros e as janelas
dos banheiros, desentupir o vaso sanitário do quinto chalé
e consertar o galpão das canoas. Ainda estava cedo, nem
oito horas, e era o último dia de aula. No dia seguinte, elas
partiriam para uma semana de descanso e diversão no lago
Chelan. Claire correu os olhos à volta. — Viu minha lista
de trabalho, Alison?
— Na mesinha da sala.
Claire pegou a lista, sacudindo a cabeça. Não se lembrava
de tê-la deixado ali.
— Quero fazer aulas de bale, mamãe. Posso?
Claire sorriu.
— Eu já quis ser bailarina.
— E por que agora é uma abelha operária?
— Abelha operária é como seu avô me chama. Na
verdade, sou gerente-assistente.
Acontecera muito tempo antes, a escolha dessa vida.
Como a maioria de suas decisões, Claire havia se deparado
com ela sem se dar conta. Primeiro abandonara a Universidade
Estadual de Washington, um dos muitos prejuízos
que a vida de badalações causara ao ensino superior. Sem
diploma nem sonho, vira-se de volta a Hayden. Mas adorava
o lugar, o trabalho. Era, nisso e em muitas outras
coisas, filha de seu pai. Havia algo naqueles maravilhosos
seis hectares ao longo do rio que enchia sua alma.
Claire nunca se sentia um fracasso. Só quando falava
com a irmã.
VINTE E QUATRO horas depois, Claire estava pronta
para sair de férias. Percorreu pela última vez a casa, procurando
qualquer coisa esquecida ou deixada por fazer.
Estava endireitando a cortina do boxe quando ouviu passos
na sala.
— Pelas barbas de Netuno, o que você ainda está
fazendo aqui?
Ela sorriu e afastou-se do banheiro minúsculo.
O pai encontrava-se na sala. Com boa altura e ombros
largos, ele fazia todos os cômodos da casa parecerem
menores. Mas era a personalidade dele que realmente tinha
vulto.
Ela o conhecera aos nove anos. Bem, dissera ele, ao
dar com os olhos nela, você deve ser minha filha. É a menina
mais bonita que já vi. Vamos para casa.
Casa.
Era essa a palavra pela qual ela havia ansiado, com a
qual sempre sonhara. Levara anos — e mais que algumas
poucas lágrimas — para perceber que ele não oferecera as
mesmas boas-vindas a Meghann.
— Oi, pai. Eu estava me certificando de que está
tudo pronto para você se mudar para cá.
O sorriso dele revelou a dentadura branquíssima.
— Você sabe muito bem que não vou me mudar
para cá. Eu gosto do meu trailer. Tenho geladeira e antena
parabólica. Não preciso de mais nada.
Eles tinham essa discussão desde que Claire se mudara
de volta para a propriedade e o pai lhe cedera a casa.
Ele jurava que o trailer escondido em meio às árvores oferecia
espaço suficiente para um homem solteiro de 56 anos.
— Agora venha dançando até aqui e dê um abraço
no seu velho.
Claire obedeceu. Os braços fortes dele a envolveram,
fizeram-na se sentir segura e amada.
— Vou sair em uma hora — avisou ela. — O vaso
sanitário do quinto...
Ele a girou e empurrou-a com delicadeza em direção
à porta.
— Suma. Este lugar não vai cair aos pedaços sem
você.
Claire não pôde deixar de sorrir.
— Tudo bem.
— Leve o tempo que quiser. De verdade. Você só
tem 35 anos. Você e Alison deveriam se divertir. Você é
responsável demais.
— Eu tenho 35 anos, sou mãe solteira e nunca me
casei. Isso não é ser responsável demais, e vou, sim, me
divertir em Chelan. Mas estarei de volta em uma semana.
Ele deu um tapinha no ombro dela.
— Você sempre faz exatamente o que quer, mas não
pode me culpar por tentar. Divirta-se.
Claire saiu da casa para o dia cinzento. Caía uma garoa
fina.
— Vamos, mamãe!
Alison botou o rostinho para fora da janela aberta do
carro.
O pai correu à frente dela e beijou a neta.
Claire entrou no carro e ligou o motor.
— Estamos prontas, Ali? Não esqueceu nada?
Alison pulou no banco, segurando a baleia de pelúcia
e a merendeira de Mary-Kate e Ashley.
— Estou pronta!
— Então vamos zarpar — disse Claire, engatando a
marcha enquanto gritava um último adeus ao pai.
Claire adorava o acampamento Blue Skies do lago
Chelan. Ela e as amigas haviam passado as férias lá pela
primeira vez alguns anos depois do secundário. Eram cinco
meninas ao todo, mas o tempo e uma tragédia tinham
reduzido o número para quatro. No começo, elas eram
jovens, rebeldes e obcecadas pelos rapazes da cidade. Aos
poucos, quando começaram a levar também berços e carrinhos,
as férias haviam sossegado um pouco. Agora, com
as crianças em idade de nadar e brincar sozinhas no parquinho,
elas tinham reencontrado um pouco da antiga liberdade.
— Mamãe, você não está prestando atenção.
— Ah. Desculpe, querida.
— Eu disse que o chalé nupcial é nosso este ano,
lembra? — Ela pulou com mais entusiasmo no banco. —
Oba! Nós vamos ficar com a banheira grande. Você trouxe
meu skate?
— Não. Você é muito pequena para andar nele.
— Por que tia Meg nunca vem nos visitar?
— Tia Meg é tão ocupada que mal tem tempo de
respirar.
— Eliot Zane ficou azul quando deixou de respirar.
— Eu só quis dizer que Meg é super ocupada ajudando
os outros.
Claire pôs uma fita cassete da Disney no aparelho de
som. Em pouco tempo elas atravessavam a planície árida
do lado leste do Estado.
— Olhe o escorrega! — disse Alison, afinal. Ela inclinou-
se para a frente, contando em voz alta. Quando
chegou a 47, gritou: — Olhe o lago!
O lago Chelan surgiu à esquerda, uma enorme extensão
de água azul e cristalina, aninhada contra a encosta
dourada. Elas atravessaram a ponte que dava na cidade.
Duas décadas antes a cidade não tinha nem três quadras
de comprimento e não havia nenhuma franquia nacional.
Mas, com o tempo, a notícia do clima espalhara-se
por aquelas regiões litorâneas cheias de umidade que tanto
prezavam seus rododendros minúsculos e suas samambaias
gigantescas. Aos poucos os habitantes de Seattle
começaram a prestar mais atenção ao leste. Tornou-se
uma tradição de veraneio atravessar as montanhas em direção
à planície árida. Ao chegar, os turistas trouxeram
consigo o progresso. Prédios brotaram ao longo da margem.
O lugar transformara-se numa próspera atração de
férias, com todas as comodidades exigidas pelas crianças:
piscinas, parques aquáticos e aluguel de jet ski.
A estrada contornava a orla. Elas passaram por dezenas
de prédios. Então a orla tornou-se novamente mais
desabitada. Viram a placa: ACAMPAMENTO BLUE
SKIES, PRÓXIMA À ESQUERDA.
— Olhe, mamãe, olhe!
A placa mostrava duas árvores estilizadas escorando
uma barraca, com uma canoa à frente.
— É isso aí, Ali.
Claire dobrou à esquerda na estrada pedregosa.
DEPOIS DE SE REGISTRAR na recepção, Claire entregou
a Alison a chave do chalé nupcial.
— Aqui está, Ali. Você é a responsável. Mostre o
caminho.
Com um grito, Ali saiu em disparada, e Claire correu
atrás dela. As duas atravessaram o jardim, passaram pelo
galpão onde se alugavam barcos e meteram-se entre as
árvores. O chão ali era terra dura, coberta pelo equivalente
a cem anos de folhas de pinheiro.
Finalmente elas chegaram ao lago. Um cais de madeira
oscilava ao sabor da água azul.
— Clara Bela!
Claire protegeu os olhos com a mão e procurou em
volta.
Gina estava sentada à margem, acenando. Mesmo
dali, Claire podia ver o tamanho do drinque na mão da
amiga. Em geral, Gina era a conservadora, a bóia que segurava
todo mundo, mas ela se divorciara alguns meses
antes e estava à deriva. Na semana anterior, o ex-marido
fora morar com uma mulher mais jovem.
— Venha, Ali!
Era Bonnie, a filha de seis anos de Gina.
Alison largou a mochila e despiu-se, revelando o biquíni
amarelo.
— Estou pronta.
— Não vá para o fundo — advertiu Claire.
Claire sentou-se ao lado de Gina.
— A que horas vocês chegaram?
Gina riu.
— Na hora, evidentemente. É uma coisa que aprendi
este ano.Nossa vida pode desmoronar, mas continuamos
sendo o que somos. E eu sou uma mulher que chega aos
lugares na hora.
— Não há nada de errado nisso.
— Rex discordaria. Sempre reclamou que eu não era
espontânea o bastante. Achei que ele estivesse se referindo
a fazer sexo à tarde. Acabou que queria fazer pára-
quedismo. — Ela sacudiu a cabeça, abrindo um sorriso
torto. — Agora eu adoraria empurrá-lo do avião.
— Eu ajeitaria o pára-quedas para ele.
Elas riram, embora não fosse engraçado.
— Como Bonnie está reagindo?
— Essa é a parte mais triste. Ela mal parece notar.
Rex nunca estava em casa mesmo.
Ficaram em silêncio por alguns instantes. O único
som entre elas era o rumor da água no cais e o riso das
meninas. Gina virou-se para ela.
— Como conseguiu ficar sozinha durante todos esses anos?
Claire não pensava muito na solidão desde o nascimento
de Alison. Sim, ela era sozinha — no sentido de
que nunca fora casada nem vivera com um homem —,
mas raramente se sentia solitária.
Claire olhou para Alison, que pulava na parte rasa da
água. A cena fez seu peito apertar. Ela sabia que amava a
filha em excesso, mas nunca soubera amar de outro jeito.
Por isso jamais se casara. Eram raros os homens que amavam
suas mulheres incondicionalmente. Na realidade,
Claire duvidava da existência desse tipo de amor verdadeiro.
— A gente esquece a solidão. E vive pelos filhos —
respondeu.
— Alison não deveria ser todo o seu mundo, Claire.
— Não é que eu não tenha tentado me apaixonar. Saí
com todos os caras de Hayden.
— Nenhum deles duas vezes. — Gina sorriu. — E
Bert Shubert ainda é gamado por você. A Sra. Hauser acha
você doida por deixá-lo escapar.
— É triste quando um encanador de 53 anos com
óculos fundo-de-garrafa e cavanhaque ruivo é considerado
bom partido só porque possui uma loja de ferramentas.
Gina riu.
— É. Se um dia eu disser a você que estou saindo
com Bert, dê-me um tiro.
— Você vai ficar bem, Gina. Juro que vai.
— Não sei — murmurou Gina, e começou a chorar.
Por mais absurdo que fosse, Claire pensou no dia em
que sua vida mudara: quando aprendeu que o amor tinha
data de validade, um dia-limite que podia chegar de repente
e fazer tudo azedar. Estou indo embora, a irmã dissera.
Até aquele momento, Meg fora o mundo de Claire, e mais
mãe do que sua mãe jamais havia sido.
Então Claire chorou também.
Gina fungou.
— Dez minutos na minha companhia, e pessoas
perfeitamente felizes começam a chorar.
Claire enxugou os olhos. Não havia motivo para
derramar lágrimas pelo passado.
— Lembra o ano em que Char despencou do cais
porque estava chorando tanto que mal conseguia enxergar?
— A crise dos quarenta de Bob. Ela achou que estivesse
tendo um caso.
— E acabou que ele estava fazendo implante capilar
às escondidas.
Gina abraçou Claire.
— Graças a Deus pelas Bluesers. Não preciso tanto
assim de vocês desde que estava grávida.
CAPÍTULO
TRÊS
A NOITE TRAZIA o melhor de Seattle. A auto-estrada
— um pesadelo congestionado na hora do rush matinal —
tornava-se, à noite, um reluzente dragão chinês vermelho
e dourado que serpenteava ao longo da margem enegrecida
do lago Union. Meghann estava à janela do escritório.
Eram 20h30. Hora de voltar para casa. Ela levaria consigo
a pasta Wanamaker. Para se adiantar no dia seguinte.
Estava quase no elevador quando o celular tocou.
Tirou-o da bolsa.
— Meghann Dontess — disse.
— Meghann? — A voz trazia nervosismo. — É May
Monroe.
Meghann ficou imediatamente alerta.
— O que houve?
— Dale apareceu aqui em casa agora à noite e falou
alguma coisa sobre uns documentos que recebeu hoje.
Estava alucinado. O que você mandou para ele?
— Nós conversamos sobre isso, May. Eu notifiquei
o advogado de Dale de que contestaríamos a transferência
fraudulenta da clínica e exigiríamos o extrato da conta nas
ilhas Cayman. Também avisei ao advogado que sabíamos
do caso extraconjugal com a professora de piano da filha e
que essa conduta poderia ameaçar a idoneidade dele como
pai.
— Você ameaçou afastá-lo dos filhos?
— Filho é um trunfo com homens como seu marido.
Finja querer a custódia e receberá mais dinheiro.
— Você acha que conhece meu marido melhor do
que eu.
— Não preciso conhecê-lo — respondeu Meghann,
usando o discurso automático que criara havia muito
tempo.— Meu trabalho é proteger você. Se incomodo seu
marido no percurso, trata-se de uma triste necessidade.
Ele vai se acalmar. Sempre se acalmam.
— Você não conhece Dale — insistiu ela.
Meghann sentiu um tom diferente. Havia algo errado.
— Está com medo dele, May?
— Medo?
May tentou parecer surpresa com a pergunta.
— Ele bate em você, May?
— Às vezes, quando bebe. Eu digo a coisa errada.
Ah, claro. É culpa dela.
— Você está bem?
— Ele não me bateu. E não bate nas crianças.
Meghann não disse o que lhe ocorreu. Com freqüência, se
o homem bate na mulher, vai acabar batendo nos filhos.
— Nós precisamos deixar claro que não pretendo tirar
os filhos dele. Senão ele vai enlouquecer — disse May,
a voz um pouco rouca.
— May, vamos avançar três meses no tempo. Imagine
que Dale está morando com a Barbie Bailarina, e eles
chegam em casa bêbados uma noite. Suponho que você
sempre tenha sido uma muralha entre seu marido e as crianças.
Provavelmente aprendeu a acalmá-lo e a desviar sua
atenção dos filhos. Será que a Barbie vai saber protegê-
los?
— Sou tão previsível assim?
— Infelizmente, a situação é. A boa notícia é que
você está dando a si mesma e a seus filhos um novo começo.
Não vacile agora.
— Então o que devo fazer?
— Tranque as portas e desligue o telefone. Se não se
sentir segura, vá para a casa de um parente ou amigo.
Amanhã nos encontraremos e traçaremos outro plano.
Vou pedir alguns mandados de restrição.
— Você pode garantir nossa segurança?
— Vocês vão ficar bem. Confie em mim. Quando
vir sua força, ele vai recuar.
— Tudo bem. Quando podemos nos encontrar?
— Que tal um almoço tardio, às 14 horas, no café
próximo ao tribunal?
— Tudo bem.
— Ótimo. Até lá.
Meghann colocou o telefone na bolsa e apertou o
botão do elevador. Quando a porta abriu, entrou, como
sempre, estudando seu reflexo no espelho. Tinha 42 anos,
e, como parecia que havia completado trinta apenas dias
antes, era forçoso presumir que estaria com cinqüenta
num piscar de olhos.
Isso a deprimia. Ela se imaginava aos sessenta. Sozinha,
trabalhando do raiar do dia ao anoitecer, conversando
com os gatos da vizinha e embarcando em cruzeiros
para solteiros.
Lá fora, a noite estava linda: o céu ametista conferia a
tudo um brilho rosa-pérola. Ela caminhava rápido pela
rua, avançando sem olhar nos olhos de ninguém. Em
frente a seu prédio, deteve-se e olhou para cima.
Ali estava sua varanda. A única no edifício sem plantas
ou móveis. Atrás dela, as janelas se encontravam escuras,
enquanto o resto do prédio irradiava luz. Amigos e
parentes se achavam naqueles lugares iluminados, jantando,
assistindo à televisão, fazendo amor. Interagindo.
Meghann não queria subir, vestir o antigo conjunto
de moletom da Universidade de Washington, jantar granola
e assistir a um episódio repetido de Third Watch. Portanto,
seguiu adiante, para o Public Market. Àquela hora,
praticamente tudo estava fechado.
Dirigiu-se ao Athenian, o bar antiquado que Sintonia
de amor tornara famoso. Meghann havia aperfeiçoado a arte
de sondar um bar sem ser óbvia. Foi o que fez. Havia
cinco ou seis homens no local. Pescadores preparando-se
para a temporada no Alasca, imaginou.
— Oi, Meghann — gritou Freddie, o barman. — O
de sempre?
Ela atravessou o bar e sentou-se a uma das antigas
mesas de madeira envernizada.
— Aqui está — disse Freddie, pondo um copo de
martíni diante dela. Sacudiu a coqueteleira de aço e serviu
o cosmopolitan. — Quer uma porção de ostras e batatas fritas?
— Você leu minha mente.
Freddie sorriu.
— Não é tão difícil, doutora. — Ele inclinou-se para
ela. — Os Eagles vão aparecer hoje à noite.
— Os Eagles?
— O time de Everett.
Ele piscou para ela.
Meghann prendeu um gemido. Não era nada bom
quando o barman começava a recomendar times inteiros.
Ela fechou os olhos, lembrando a si mesma que essa
era a vida que ela queria. Já havia experimentado o casamento,
que terminara exatamente como ela temia: com a
traição do marido e seu coração em pedaços.
Quando o primeiro drinque chegou ao fim, pediu
mais um.
— Posso me sentar com você?
Ela ergueu a cabeça e se viu fitando dois olhos castanhos.
Dava para ver, pela aparência do rapaz — jovem,
louro, muitíssimo sensual —, que ele estava acostumado a
conseguir o que queria. E o que ele queria essa noite era
ela. A idéia era estimulante.
— Claro. — Ela não abriu sequer meio sorriso, nem
pestanejou. — Meu nome é Meghann Dontess. Os amigos
me chamam de Meg.
— Eu sou Donny MacMillan. Você gosta de beisebol?
— Gosto de muitas coisas. — Ela acenou para Freddie,
que, instantes depois, trouxe outro cosmopolitan. —
Você deve ser jogador de beisebol.
Ele abriu um sorriso, e ela sentiu a primeira pontada
de desejo. Sexo com ele seria ótimo, ela sabia. E a faria
esquecer.
O PRIMEIRO ENCONTRO no lago Chelan dera-se em
1989, ano em que todas completaram 21 anos. Elas eram
cinco na época. Melhores amigas desde o ginasial.
Essa primeira reunião acontecera por acaso. As meninas
haviam juntado dinheiro para dar de aniversário a
Claire um fim de semana no chalé nupcial. Na época —
março —, ela estava apaixonada. Mas em meados de julho,
no fim de semana previsto, Claire encontrava-se desiludida,
sozinha e bastante deprimida. Sem querer desperdiçar
dinheiro, viajou sozinha, com a intenção de ficar
lendo na varanda.
Antes do jantar do primeiro dia, porém, um Ford
Pinto amarelo caindo aos pedaços chegou ao local. As
amigas saltaram do carro e correram pelo jardim, rindo,
levando duas jarras grandes de margarita. Chamaram a visita
de “intervenção do amor”, e funcionou.
Desde então, todos os anos elas passavam uma semana
juntas no acampamento. Agora, evidentemente, era
diferente. Gina e Claire tinham uma filha. Karen tinha
quatro filhos, com idades entre 11 e 14 anos, e Charlotte
tentava desesperadamente engravidar.
Nos últimos anos, a festa havia sossegado. Em vez
de se vestirem com apuro para ir ao Cowboy Bob’s Western
Roundup beber tequila e dançar, elas botavam os filhos
na cama cedo, tomavam vinho branco e jogavam cartas
na mesa redonda de madeira que ficava na varanda da
casa da recepção. A contagem dos pontos corria durante
toda a semana. A vencedora ganhava a chave do chalé
nupcial para o ano seguinte.
Elas passavam o dia no lago, deitadas em toalhas de
praia listradas de vermelho e branco. Nos dias quentes,
como esse, ficavam a maior parte do tempo no lago, com
água à altura do pescoço. Conversando.
Sempre conversando.
Hoje o clima estava perfeito. O céu era de um azul-
claro infinito, e o lago se achava transparente. As crianças
maiores estavam dentro de um dos chalés, jogando
cartas e ouvindo a música ensurdecedora de Willie, filho
de Karen. Alison e Bonnie andavam de pedalinho.
Karen estava sentada numa cadeira, abanando-se
com o prospecto de um parque aquático. Charlotte, completamente
protegida do sol por um chapéu branco e um
blusão com mangas três-quartos, lia a última seleção do
clube literário de Kelly Ripa e tomava limonada.
Gina virou-se de lado e abriu a caixa de isopor, à
procura de uma Coca light.
— Meu casamento termina, e tomamos Coca light e
limonada. Quando o primeiro marido de Karen foi embora,
nós dançamos macarena no Cowboy Bob’s.
— Esse foi meu segundo marido, Stan — corrigiu
Karen. — Quando Aaron foi embora, nós nadamos nuas
no lago.
— Meu argumento ainda procede — disse Gina. —
Minha crise está recebendo um tratamento Vila Sésamo. A
sua recebeu o Clube dos Cafajestes.
— Cowboy Bob’s — suspirou Charlotte. — Há anos
não vamos lá.
— Desde que começamos a trazer conosco esses seres
humanos em miniatura — brincou Karen. — É difícil
dançar com uma criança nas costas.
Claire apoiou-se nos cotovelos. O algodão áspero da
toalha de praia parecia pinicar os antebraços queimados de
sol.
— Willie está com 14 anos, não está?
Karen assentiu.
— Vai começar o secundário em setembro.
— Por que ele não pode cuidar das outras crianças
durante uma hora ou duas?
Gina sentou-se.
— Por que não pensamos nisso antes? Ele tem 14
anos.
— E a maturidade de uma minhoca.
— Todas nós cuidávamos de crianças nessa idade —
argumentou Charlotte. — Eu praticamente fui babá no
verão que antecedeu o secundário.
— Ele é um menino responsável, Karen. Não vai ter
o menor problema — defendeu Claire.
— Não sei. No mês passado o peixe dele morreu.
Por falta de comida.
— Eles não vão morrer de fome em duas horas.
Karen olhou para o chalé.
— É — assentiu, afinal. — Podemos deixar um celular
com ele.
— E uma lista de números.
Gina sorriu pela primeira vez no dia.
— Meninas, as Bluesers vão sair da toca.
Levaram duas horas para tomar banho, mudar de
roupa e preparar o jantar dos filhos. Levaram mais uma
hora para convencer os filhos de que o plano era possível.
Por fim, Claire tomou a mão de Karen e conduziu-a
para fora. Ao avançarem pelo jardim, Karen volta e meia
se detinha para olhar para trás.
— Vocês têm certeza? — não parava de perguntar.
— Vamos em frente. — Gina aproximou-se de Claire
e disse: — Ela é como um carro no gelo. Se parar, nunca
mais vamos conseguir botá-la para andar.
Elas já avistavam o Cowboy Bob’s do outro lado da
rua, quando a ficha caiu. Claire foi a primeira a falar:
— Ainda nem escureceu.
— Para ratas de festa, nós perdemos o jeito — disse
Charlotte.
Claire recusava-se a desistir. E daí que elas parecessem
estudantes universitárias entre os bebedores profissionais
que povoavam um lugar como aquele a essa hora
da tarde? Elas estavam ali para se divertir.
— Vamos, pessoal — chamou, avançando.
As amigas a seguiram. De cabeça erguida, entraram
no Cowboy Bob’s como se fossem donas do bar.
Claire dirigiu-se a uma mesa próximo à pista de dança
vazia. Dali, elas teriam uma bela vista da banda, que estava
obviamente ausente. O jukebox tocava música country.
Gina pediu margaritas e cebolas fritas.
— Meu Deus, como é bom sair! — exclamou Karen.
— Não me lembro da última vez em que saí sem ter de
fazer preparativos suficientes para empreender um ataque
aéreo.
Claire ergueu o copo.
— À nossa — brindou, firme. — Às Bluesers. Atravessamos
juntas o ginásio e o secundário, partos e cirurgias,
casamentos e divórcios. Duas de nós se separaram,
uma não conseguiu engravidar, uma jamais se apaixonou
e, há poucos anos, uma de nós morreu. Mas ainda estamos
aqui. Sempre estaremos aqui, umas pelas outras. Por
isso somos mulheres de sorte.
Voltaram a falar sobre o passado, e tudo as fazia rir.
A certa altura, pediram uma porção de nachos. Quando o
segundo prato chegou, a banda havia começado. A primeira
música era uma versão barulhenta de “Friends in
low places”.
Quando o grupo entoou “Here in the real world”, de
Alan Jackson, o bar já estava abarrotado.
— Vocês estão ouvindo isso? — Claire inclinou-se
para a frente e pôs as mãos na mesa. — É “Guitars and
Cadillacs”. Nós temos de dançar.
— Dançar? — Gina riu. — Na última vez em que
dancei com vocês, bati o traseiro num velho que voou
longe.
Karen sacudiu a cabeça.
— Desculpe.
Claire levantou-se.
— Vamos, Charlotte. Quer dançar?
— É para já.
Ela deixou a bolsa e seguiu Claire até a pista de dança.
No instante em que Claire começou a se deixar levar
pela música, balançando os quadris, batendo os pés e as
mãos, lembrou-se do quanto gostava daquilo. Não conseguia
acreditar que deixara tantos anos de sossego se acumularem.
Quando a banda fez um intervalo, Claire estava ofegante.
Uma leve dor de cabeça insinuava-se atrás do olho
esquerdo; ela meteu a mão no bolso e achou um analgésico.
Charlotte afastou o cabelo dos olhos.
— Foi ótimo. Vamos. Estou desidratada.
Claire começou a se dirigir à mesa, mas lembrou-se
da aspirina. Foi ao bar e pediu um copo com água.
A água chegou e, enquanto tomava o comprimido,
ela viu um homem subir ao palco. Ele levava um violão
— comum, antigo, que não se ligava a nenhum amplificador
de som.
Sentou-se num banco bambo. Plantou uma das botas
pretas de caubói no chão e apoiou a outra na parte inferior
do banco. Usava uma calça jeans desbotada e uma camisa
preta. O cabelo quase chegava aos ombros e reluzia
dourado sob a luz da ribalta. Ele olhava para o violão, e,
embora um chapéu preto escondesse a maior parte do
rosto, Claire divisava os malares fortes que o definiam.
— Uau!
Ela não se lembrava da última vez em que vira um
homem tão bonito. Com certeza não fora em Hayden.
O homem aproximou-se do microfone.
— Vou tocar um pouco enquanto a banda faz um
pequeno intervalo. Espero que não se importem.
Claire avançou entre a multidão, até o começo da
pista de dança.
Ele dedilhou algumas notas no violão e começou a
cantar. No começo, a voz era suave demais para se fazer
ouvir acima do alarido.
— Silêncio.
Claire ficou surpresa ao ouvir a palavra dita em voz
alta; ela pretendia apenas “pensá-la”. Sentia-se ridiculamente
exposta, parada ali na frente da multidão, mas não
conseguia se mexer nem desviar os olhos.
Ele ergueu a cabeça. Na escuridão esfumaçada, com
uma dezena de pessoas amontoadas a seu lado, Claire achou
que ele estivesse olhando para ela. Aos poucos, o
homem sorriu.
Uma vez, anos antes, Claire vinha correndo pelo cais
do lago Crescent atrás da irmã. Num instante, estava rindo,
aprumada; no instante seguinte, congelava na água fria,
sem fôlego, tentando chegar à superfície. Era assim que
se sentia agora.
— Meu nome é Bobby Austin — apresentou-se ele,
a voz macia, ainda olhando para Claire. — Esta música é
para Ela. Ela, que venho procurando a vida inteira.
Os dedos longos tocaram as cordas do violão, e ele
começou a cantar. A voz era baixa e rouca, sedutora. Claire
se flagrou movendo-se no ritmo da música, dançando
sozinha.
Quando a música terminou, ele deixou de lado o violão
e levantou-se. A platéia aplaudiu e voltou-se para os
jarros de cerveja.
Ele avançou na direção de Claire. Ela não conseguia
se mexer.
Bem na frente dela, ele se deteve. Como não disse
nada, ela se adiantou:
— Meu nome é Claire Cavenaugh.
Um sorriso torceu um lado da boca dele.
— Não sei como dizer o que estou pensando sem
parecer um idiota.
O coração de Claire batia tão rápido que ela se sentia
tonta.
— O que é?
Ele aproximou-se ainda mais. Agora achava-se tão
perto que dava para ela ver os pontos dourados dos olhos
verdes e a minúscula cicatriz em meia-lua na ponta do lábio
superior.
— Eu sou Ele — murmurou.
— Ele quem? — Ela tentou sorrir. — O Messias? O
iluminado? O único jeito de chegar ao paraíso?
— Sem brincadeira. Sou quem você está procurando.
Ela deveria ter soltado uma gargalhada, respondido
que não ouvia uma cantada tão batida fazia anos. Havia
muito tempo não acreditava em amor à primeira vista.
Tudo isso era o que ela pretendia dizer, mas, quando abriu
a boca, ouviu seu coração falar.
— Como é que você sabe?
— Porque eu também estava procurando você.
Claire deu um passo atrás, o suficiente apenas para
respirar. Queria rir dele. Queria mesmo.
— Vamos, Claire Cavenaugh - convidou ele. —
Dance comigo.
CAPÍTULO
QUATRO
ALGUNS CASAMENTOS terminavam com palavras
amargas e epítetos feios; outros, com lágrimas copiosas e
desculpas sussurradas; cada caso era um caso. A única invariável
era a tristeza, e tratava-se de fato bem conhecido
nas varas de família que a mulher que atravessava o divórcio
jamais via o mundo — ou o amor — da mesma maneira.
— Você está bem? — perguntou Meghann a May
Monroe.
A cliente estava rigidamente sentada, as mãos juntas
no colo.
— Estou — respondeu.
— Vamos comer no restaurante ao lado, está bem?
Na frente da sala de audiências, a juíza levantou-se.
Sorriu para Meghann e George Gutterson, o advogado da
outra parte, e retirou-se.
Meghann ajudou May a levantar-se. Segurava o braço
dela para mantê-la firme ao caminharem em direção à
porta.
— Sua puta!
Dale Monroe avançou. O rosto estava vermelho.
Uma veia azul saltava-lhe no meio da testa.
— Dale — gritou George, agarrando o cliente —,
não seja burro.
Dale desvencilhou-se do braço do advogado e continuou
avançando. Meghann se interpôs entre Dale e May.
— Afaste-se, Sr. Monroe.
— Dr. Monroe, sua puta avarenta.
— Excelente uso da língua. O senhor também deve
ter freqüentado uma boa faculdade de Letras. Agora, por
favor, afaste-se.
— Você tirou meus filhos de mim — disse Dale para
Meghann.
— O senhor está sugerindo que fui eu que fraudulentamente
transferi bens da minha mulher... ou que eu
roubei dinheiro da família? Talvez esteja sugerindo que era
eu que transava com a professora de piano da minha filha
todas as terças-feiras à tarde.
Ele ficou lívido e tentou olhar nos olhos da
ex-mulher.
— May, por favor. Eu teria dado tudo o que você
me pedisse. Mas as crianças... Eu não posso vê-las só nos
fins de semana e duas semanas durante as férias.
Ele parecia sincero. Se Meghann já não tivesse visto
a terrível verdade nua e crua, talvez acreditasse.
Ela interveio rápido, de modo que May não precisasse
responder.
— A divisão dos bens foi bastante justa, Dr. Monroe.
A questão da custódia também foi resolvida com muita
sensatez, e, quando o senhor se acalmar, tenho certeza de
que concordará. Todos lemos os depoimentos que retratavam
seu estilo de vida. O senhor saía de casa às 6 horas,
antes que as crianças estivessem acordadas, e raramente
voltava antes das 22 horas, depois que já se encontravam
na cama. Provavelmente vai ver seus filhos mais agora do
que quando morava em casa.
— Quem você pensa que é? — sussurrou Dale rispidamente,
dando um passo na direção dela. Ele cerrou os
punhos.
— Vai me bater, Dale? Faça isso. Perca a pequena
custódia que tem.
Meghann abraçou May pela cintura. Juntas, elas saíram
da sala de audiências.
— Você vai pagar por isso — gritou Dale.
Meghann não olhou para trás. Manteve a mão na
cintura de May e conduziu-a para o elevador. No instante
em que a porta se fechou, May desatou a chorar.
Meghann segurou a mão dela, apertando-a com delicadeza.
— Sei que agora parece impossível, mas a vida vai
melhorar. Eu juro.
Conduziu May para fora do tribunal. O céu estava
pesado, cinza. Elas desceram a rua Third, até o Judicial
Annex, restaurante preferido do pessoal da vara de família.
— Oi, Meg — cumprimentaram alguns colegas
quando ela atravessava o salão até uma mesa no fundo.
Em poucos instantes uma garçonete aparecia.
— É dia de champanhe ou martíni? - perguntou.
— Sem dúvida, champanhe. Obrigada.
May a encarou.
— Nós não vamos mesmo tomar champanhe, vamos?
— May, você agora é milionária. Seus filhos podem
fazer doutorado em Harvard, se quiserem. E você tem
custódia total. Claro que sim, vamos comemorar.
— O que há com você? — Como assim?
— Minha vida foi atingida por um míssil. E você vai
tomar champanhe. Qual é o seu problema?
— Meu trabalho pode ser difícil — respondeu Meghann,
com sinceridade. — Às vezes, o único jeito de lidar...
Houve confusão no restaurante. Vidro saltando em
estilhaços. Uma mesa virou no chão. Uma mulher gritava.
— Ah, não — balbuciou May.
O rosto dela ficou lívido.
Meghann franziu a testa.
— O que está...
Ela olhou para trás.
Dale encontrava-se no vão da porta, segurando uma
arma na mão esquerda. Parecia ter chorado.
— Abaixe a arma, Dale.
Meghann ficou surpresa ao notar a calma de sua voz.
— Você arruinou minha vida.
— Abaixe a arma. Não vá fazer nenhuma besteira.
— Eu já fiz a besteira. — A voz falhou. — Tive um
caso, fiquei ganancioso e esqueci o quanto amava minha
mulher.
May começou a levantar-se. Meghann segurou-a, obrigando-
a a sentar-se e levantou-se.
— Vamos lá, Dale. Abaixe a arma. Vou ajudar você.
— Por que não me ajudou quando tentei contar à
minha mulher o quanto estava arrependido?
Lágrimas rolavam no rosto dele.
— Dale — disse Meghann, mantendo a tranqüilidade.
— Eu sei que...
— Cale a boca. É sua culpa, vagabunda. Foi você que
fez isso tudo. Ele ergueu a arma, mirou e puxou o gatilho.
JOE ACORDOU com febre e dor de garganta. Uma tosse
seca fez com que se levantasse antes mesmo de ter aberto
completamente os olhos. Quando o acesso passou, ele ficou
ali sentado, os olhos vermelhos.
Uma reluzente camada de gelo cobria o saco de dormir,
sua presença era um sinal da altitude. Embora os dias
nessa parte do Estado fossem quentes como o inferno, as
noites eram frias.
Ele tossiu de novo e saiu do saco de dormir. Os dedos
tremiam ao retirar da mochila o sabonete, a escova e a
pasta de dentes. Agachando-se à margem do rio Icicle, ele
se preparou para o dia.
Hoje era o aniversário dele. O 42°. Em outra época
— outra vida —, seria um dia para comemoração, para a
família. Diana sempre adorara uma festa. No ano em que
ele completara 38, ela havia alugado a Space Needle e
contratado um cover de Bruce Springsteen para cantar a
trilha sonora de sua juventude. O lugar estivera cheio de
amigos. Todos queriam comemorar o aniversário de Joe
com ele. Na época.
Com um suspiro ele se pôs de pé. Conferiu a carteira
e os bolsos e viu que estava novamente quebrado. Colocando
a mochila nas costas, caminhou para fora do parque
nacional. Quando chegou à auto-estrada, a testa ardia. Ele
sabia que estava com febre, pelo menos 38 graus.
Fitou o rio de asfalto que se estendia até a cidadezinha
de Leavenworth. Ela ficava a apenas uns dois quilômetros
de distância.
Quando Joe chegou lá, a dor de cabeça estava quase
insuportável. Num posto de gasolina Chevron, gastou os
últimos dois dólares em aspirina.
Estava parado no lado de fora da loja de conveniência,
tentando induzir pela força de vontade a aspirina a fazer
efeito, quando sentiu a primeira gota de chuva.
— Droga.
Antes que ele terminasse a palavra, a tempestade caiu.
Uma chuva violenta que parecia prendê-lo ali. E de repente
ele já não podia mais viver assim. Estava doente e
cansado disso tudo.
Casa.
Fechou os olhos e pensou na cidadezinha onde fora
criado, onde fora jogador do time local de beisebol e também
onde trabalhara numa oficina depois da escola e durante
todos os verões, até mudar-se de lá para ingressar na
universidade. Se alguma cidade o aceitaria depois do que
ele havia feito, seria aquela.
Avançando devagar, as emoções como um misto de
medo e ansiedade, dirigiu-se à silenciosa cabine telefônica.
Agora a chuva era apenas um ruído, como seu batimento
cardíaco: rápido, ofegante. Ele soltou um longo suspiro,
pegou o fone e fez a chamada a cobrar.
— Oi, maninha — disse, quando ela atendeu. —
Como você está?
— Ah, meu Deus. Eu andei super preocupada com
você, Joey. Você não liga há, quanto tempo, oito meses?
— Eu sei. Desculpe. Como está minha sobrinha linda?
— Está ótima.
Ele sentiu alguma coisa errada na voz dela.
— Qual é o problema?
— Nada — respondeu ela. Então mais suavemente:
— Ando precisando do meu irmão mais velho, só isso.
Chegou a hora de voltar?
Lá estava a pergunta da qual tudo dependia.
— Não sei. Estou cansado, disso eu sei. As pessoas
esqueceram?
— Já não me perguntam tanto.
Ele não sabia se era forte o bastante para enfrentar o
passado. Não fora quando ainda se tratava do presente.
— Volte para casa, Joey. Você não pode se esconder
para sempre. E... estou precisando de você.
Ele ouviu o choro baixo e entrecortado, o que lhe
rasgou a alma.
— Por favor, não chore.
— Não estou chorando. Estou cortando cebola. —
Ela fungou. — Sua sobrinha está na fase do espaguete.
Não quer comer mais nada.
Ela tentou rir.
Joe apreciava aquela tentativa de aparentar normalidade,
por mais forçada que fosse.
— Faça o espaguete da avó dela. Isso deve pôr fim
ao problema.
Ela riu.
— Minha nossa, eu tinha esquecido. O dela era horrível.
— Melhor do que o bolo de carne.
Depois disso, o silêncio tomou conta. Com ternura,
ela disse:
— Você precisa se perdoar, Joey.
— Algumas coisas são imperdoáveis.
— Então pelo menos volte para casa. As pessoas aqui
gostam de você.
— Eu quero. Não consigo mais viver assim.
— Espero que este telefonema signifique isso.
—Também espero.
ERA AQUELE DIA raro em Seattle. Quente e úmido. A
névoa pairava sobre a cidade. Se nas ruas fazia calor, no
tribunal estava sufocante. Meghann fitou o bloco à frente.
Não escrevera nada. A mão direita começou a tremer.
— Sra. Dontess. Ei. Sra. Dontess.
A juíza a chamava.
Ela piscou os olhos devagar.
— Desculpe.
Levantou-se.
A juíza — uma mulher magra como uma garça —
franziu a testa.
— Aproxime-se — pediu.
Meghann tentou mostrar segurança. Aproximou-se
da juíza, ergueu os olhos.
— Sim, meritíssima.
A juíza inclinou-se para dizer, com delicadeza:
— Todos sabemos o que aconteceu na semana passada,
Meghann. A bala não a acertou por poucos centímetros.
Tem certeza de que está pronta para voltar ao tribunal?
— Tenho.
A mão direita de Meghann tremia. A juíza pigarreou
e assentiu.
— Pode se sentar.
Meghann retornou à mesa, desabou no banco.
A cliente, uma dona de casa de Mercer Island, olhou
para ela.
— O que está acontecendo?
Meghann sacudiu a cabeça.
— Não se preocupe.
— Vou repetir, meritíssima — disse John Heinreid.
Ele e Meghann já haviam se enfrentado em dezenas de
litígios. — Meu cliente gostaria de pedir a suspensão do
processo por algum tempo, para que ele e a Sra. Miller
possam fazer terapia. Afinal, há crianças pequenas envolvidas.
Meghann ouviu a cliente sussurrar:
— De jeito nenhum.
Pôs as mãos na mesa e levantou-se devagar. A mente
anuviou-se. Ela não conseguia pensar em nenhum argumento.
Ao fechar os olhos, procurando se concentrar, viu
a arma apontada em sua direção, ouviu o tiro alto. Quando
abriu os olhos, todos a observavam.
Meghann virou-se para a cliente.
— É um pedido razoável, Celene. Não vai ficar nada
bem se travarmos essa batalha na frente da juíza.
— Ah. Sei...
Celene franziu as sobrancelhas.
Meghann voltou sua atenção para a juíza.
— Gostaríamos de pedir um limite de tempo e uma
data de prosseguimento a serem estipulados agora.
— Aceitamos, meritíssima.
Meghann manteve-se parada enquanto os detalhes
eram acertados. A mão direita ainda tremia. Automaticamente,
guardou os objetos na pasta.
— Espere. O que acabou de acontecer? — sussurrou
Celene.
— Concordamos com a terapia. Alguns meses. Não
mais que isso.
— Terapia? Nós tentamos terapia, ou você se esqueceu?
Não funcionou. O Sr. Informática gosta de homem,
lembra?
Meghann havia se esquecido disso tudo.
— Desculpe, Celene.
— Desculpe? Desculpe? Meus filhos e eu precisamos
recomeçar nossas vidas.
— Tem razão. Vou consertar isso. Juro que vou.
E de fato poderia. Um telefonema para John Heinreid
que ameaçasse revelar a preferência sexual do Sr. Miller,
e tudo seria resolvido na hora. Com discrição.
Celene suspirou.
— Olhe, eu sei o que aconteceu na semana passada.
Sinto muito por aquela mulher e por você. Mas tenho de
me preocupar comigo mesma.
— Você deve cuidar de si mesma. Eu fiz uma bobagem.
Mas vou consertá-la, e você não vai pagar nem um
centavo por esse divórcio.
Celene tentou bravamente sorrir.
— Está bem.
Meghann pôs a mão na mesa para equilibrar-se, enquanto
observava a cliente sair da sala de audiências. Sentiu
tocarem-lhe o ombro.
— Meg?
Era Julie Gorset, sua sócia.
— Oi, Jules. Não vá me dizer que você estava na sala
de audiências hoje.
Julie encarou-a com tristeza.
— Estava. E precisamos conversar.
O PIKE PLACE PUBLIC Market ficava abarrotado nos
dias ensolarados de verão. Agora, à noite, estava tranqüilo.
Meghann deteve-se à porta aberta do Athenian. Poderia
entrar e achar alguém com quem passar o tempo.
Mas de repente só conseguia pensar no que realmente aconteceria.
Ela conheceria um homem cujo nome não
importaria... e depois seria deixada ainda mais solitária do
que estivera no começo. Sentiu um tique no olho esquerdo.
Pegou o celular na bolsa. Digitou o número, mordendo
o lábio enquanto ouvia os toques. Estava prestes a
desligar quando atenderam.
— Alô? Meghann, estou reconhecendo o número do
seu celular.
— Vou processar quem inventou o identificador de
chamadas.
— São 20h30. Por que está ligando para mim? —
perguntou Harriet.
— Minha pálpebra esquerda está se fechando como
as asas de uma borboleta alucinada. Preciso de uma receita
de relaxante muscular.
— Nós conversamos sobre a possibilidade de uma
reação retardada, lembra?
— Lembro. Estresse pós-traumático.
— Estarei no consultório em trinta minutos.
— Se você puder telefonar para uma farmácia...
— No consultório. Em trinta minutos.
— Estarei lá.
Meghann desligou o telefone e colocou-o de novo na
bolsa. Levou menos de 15 minutos para chegar ao consultório
de Harriet.
Exatamente às 21 horas, a psiquiatra apareceu. O
cabelo estava preso por uma faixa estreita e o rosto brilhava
sem maquiagem.
— Se fizer graça por causa da faixa de cabelo, cobrarei
o dobro.
— Eu? Ser venenosa? Você deve estar brincando.
Harriet abriu a porta.
Meghann passou pela sala da recepção e entrou no
grande consultório. A psiquiatra acomodou-se na cadeira
de sempre.
— Sente-se, Meghann.
— É necessário?
— Sente-se.
Meghann obedeceu.
Harriet juntou as mãos à frente e olhou para Meghann
por cima das unhas curtas e pintadas com esmalte
claro.
— Hoje faz uma semana, não é? Que o marido da
sua cliente tentou atirar em você.
Meghann começou a bater o pé esquerdo no chão.
— É.
— Eu avisei que você precisava lidar com isso.
— É, avisou.
— Tem conseguido dormir?
— Não. Sempre que fecho os olhos, vejo tudo de
novo. A bala zunindo no meu ouvido... a maneira como
ele depois largou a arma e caiu de joelhos... May correndo
para ele, abraçando-o, dizendo que tudo ficaria bem, que
ela o apoiaria... a polícia levando-o algemado. Hoje revivi
tudo na sala de audiências. — Ela ergueu a cabeça. — Foi
maravilhoso, aliás.
— Não é sua culpa. O criminoso é ele.
— Eu sei. Mas também sei que conduzi mal a ação
de divórcio deles. Perdi a capacidade de me compadecer
das pessoas. — Ela suspirou. — Hoje arruinei uma cliente.
Minha sócia pediu... na verdade, exigiu que eu tirasse
férias.
— Talvez não seja má idéia.
— Será que vou me sentir melhor em Londres ou
Roma... sozinha?
— Por que não liga para Claire? Poderia ficar no resort.
— Claire e eu não conseguimos conversar nem cinco
minutos sem brigar.
— Você poderia visitar sua mãe.
— Prefiro contrair o vírus do Oeste do Nilo.
— Então está dizendo que não tem aonde ir nem
quem visitar.
— Só estava imaginando para onde viajaria. — Fora
um erro ir ali. Harriet estava fazendo com que se sentisse
pior. — Olhe, Harriet... — A voz era mais baixa que de
costume. — Eu estou desmoronando. É como se eu viesse
perdendo controle de mim mesma. Só quero que você
me dê um remédio para atenuar a crise. Você me conhece.
Estarei bem daqui a um ou dois dias.
— A rainha da negação.
— Quando uma coisa funciona para mim, agarro-me
a ela.
— Só que a negação já não está funcionando, está? É
por isso que seu olho começou a piscar, as mãos começaram
a tremer, e você não consegue mais dormir. Não dá
para ficar fugindo do passado. Um dia você vai ter de acertar
os ponteiros com Claire.
— Isso não tem nada a ver com Claire, droga!
— Cedo ou tarde, Meg, sempre tem a ver com a família.
O passado possui uma tendência irritante de sempre
se tornar presente.
— Uma vez abri um biscoito da sorte que dizia a
mesma coisa.
— Você está se desviando do assunto novamente.
— Não. Estou rejeitando o assunto. — Meghann levantou-
se. — Isso quer dizer que você não vai me dar a
receita de um relaxante muscular?
— Não resolveria seu tique.
— Tudo bem. Vou arrumar um tapa-olho.
Harriet se pôs de pé.
— Por que não me deixa ajudá-la?
Meghann se fizera a mesma pergunta um milhão de
vezes.
— O que você quer? — perguntou Harriet, afinal.
— Não sei.
— Sabe, sim. Quer parar de se sentir só.
Um arrepio atravessou o corpo de Meghann.
— Eu sempre fui só. Estou acostumada.
— Não. Nem sempre.
Meghann voltou o pensamento para aqueles anos,
muito tempo antes, quando ela e Claire eram inseparáveis,
melhores amigas. Naquela época, Meg sabia amar.
Chega. Isso não a levaria a lugar nenhum.
Ela pegou a bolsa no chão e avançou para a porta.
— Mande a conta de hoje para minha secretária.
Cobre o que quiser. Adeus, Harriet.
Disse “adeus” em vez de “até mais” porque não pretendia
voltar. Estava à porta quando a voz de Harriet a
deteve.
— Tenha cuidado. Ainda mais agora. Não deixe a
solidão consumi-la.
Meghann continuou andando.
Atravessou a porta, tomou o elevador e saiu do prédio.
Lá fora, consultou o relógio: 21h40.
Ainda dava tempo de sobra para ir ao Athenian.
NO BANCO DO CARONA, Joe estava sentado de ombros
curvos contra a janela. O motorista do caminhão,
Erv, pisou no freio e mudou a marcha. O veículo ressoou,
tremeu e começou a desacelerar.
— Essa é a saída para Hayden.
Joe viu a placa conhecida e não sabia o que sentir.
Havia muito tempo que não vinha ali.
Casa. Não. Era apenas a cidade onde havia crescido.
Casa era outra coisa — ou, para ser mais exato,
outra pessoa —, e ela não estaria aguardando a volta dele.
A rampa de saída passava por cima da auto-estrada e
desembocava numa rua arborizada. No lado esquerdo havia
um pequeno posto de gasolina coberto com telhas de
madeira. Erv parou o caminhão ao lado da bomba de abastecimento.
Joe baixou a maçaneta e empurrou com força a porta.
Ela abriu com um rangido, e ele saltou pisando pela
primeira vez em três anos o oeste de Washington. Olhou
para Erv.
— Obrigado pela carona.
— De nada — respondeu Erv. — Tem certeza de
que não quer ir para Seattle? Fica só a uma hora e meia
daqui. Em Hayden não tem nada.
Joe mirou a rua comprida.
— Você ficaria surpreso — murmurou. A irmã encontrava-
se no fim daquela rua, à sua espera.
Ele pendurou a mochila nos ombros e começou a
andar. Em pouco tempo, alcançava a pequena placa verde
que dava boas-vindas a HAYDEN, 872 HABITANTES.
TERRA NATAL DE LORI ADAMS, VENCEDORA
ESTADUAL DO CAMPEONATO DE SOLETRAR
DE 1974. A cidade onde ele havia nascido era exatamente
como a guardava na memória: um belo conjunto de construções
rústicas dormitando tranqüilamente sob aquele sol
quente de junho.
As casas ostentavam mais do que possuíam, e volta e
meia surgiam postes destinados a amarrar cavalos ao longo
do calçadão de madeira. Os estabelecimentos comerciais
eram em sua maioria os mesmos: o restaurante Whitewater,
a floricultura Basket Case, o bar Mo’s Fireside e o
supermercado Stock ’Em Up. Todos os letreiros traziam
alguma lembrança, todas as casas um dia haviam aberto as
portas para ele. Agora... quem sabia?
Joe soltou um longo suspiro e continuou andando,
passando pela encruzilhada que demarcava o começo da
cidade, pela loja de ferramentas Loose Screw e pela padaria
que pertencia à família.
Sentiu que as pessoas olhavam para ele. Eram golpes
aqueles olhares que se transformavam em carrancas de
reconhecimento. Os sussurros o seguiam.
— Não é o Joe Wyatt?
— Você viu, Myrtle? Era o Joe Wyatt.
Ele baixou a cabeça e seguiu adiante. Na rua Azalea,
dobrou à esquerda, depois virou à direita na Cascade. Ali,
a apenas poucas quadras da rua principal, o mundo aquietava-
se novamente. Casas de madeira antiquadas surgiam
em jardins impecavelmente bem cuidados.
Quando ele alcançou a travessa Rhododendron, a rua
estava quase totalmente deserta. Passou pela Craven
Farms, vazia nessa época do ano, antes da colheita de outono,
e entrou na propriedade. Agora a caixa de correspondência
dizia TRAINOR. Durante anos fora WYATT.
A casa era uma ampla estrutura em estilo suíço construída
com tábuas de madeira, que ficava no meio de um
jardim planejado à perfeição. O pai construíra a casa à
mão, tábua por tábua. Uma das últimas coisas que dissera
a eles foi: Cuidem da casa. Sua mãe a adorava.
Joe sentiu uma súbita melancolia, quase doce demais
para suportar. A irmã mantivera a casa exatamente como
sempre havia sido. A mãe e o pai teriam gostado. Ele subiu
a escada, ouvindo os estalos familiares das tábuas no
chão. Depois de uma longa espera, bateu à porta.
Por um instante, não se ouviu nenhum ruído no interior,
então o estrépito de sapatos pesados e o grito de
“Já vai!”.
A porta se abriu. Gina estava ali parada, vestida com
um conjunto largo de ginástica preto e tamancos verdes
de borracha, mal conseguindo respirar. O cabelo castanho
era um ninho desgrenhado. Ela olhou surpresa para ele e
desatou a chorar.
— Joey...
Abraçou-o. Por um instante, ele ficou aturdido. Não
era tocado havia tanto tempo que alguma coisa parecia
errada.
— Joey — repetiu ela, deitando o rosto na curva do
pescoço do irmão. Sentiu suas lágrimas quentes na pele e
algo dentro dele cedeu. Ele retribuiu o abraço. Toda a infância
lhe voltava, trazida pelo cheiro de pão assado e o
doce perfume cítrico do xampu de Gina.
Ela afastou-se, enxugando os olhos vermelhos.
— Não achei que realmente viesse. — Passou a mão
no cabelo e fez uma careta. — Estou parecendo uma assombração.
Estava plantando flores no quintal.
— Você está linda- disse ele, com sinceridade.
— Você está péssimo.
Ela puxou-o para a sala iluminada pelo sol.
— Estou. Minha cabeça está doendo.
Gina saiu correndo da sala.
— Água — gritou —, e aspirina.
Ele viu o porta-retratos sobre o consolo da lareira e
avançou naquela direção. Era a fotografia de cinco mulheres
juntas, quatro delas usando vestidos cor-de-rosa.
Todas sorriam. Gina — à frente, no meio — vestia branco.
Diana estava ao lado dela, sorrindo.
— É uma das minhas fotos preferidas — comentou
Gina.
— No fim — confidenciou Joe —, ela falava de vocês.
Das Bluesers. Deve ter me contado uns cem casos do
lago Chelan.
Gina apertou o ombro do irmão.
— Todas sentimos saudade dela.
— Eu sei.
— Você encontrou... o que quer que estivesse procurando?
Ele pensou na pergunta.
— Não — respondeu, afinal. — Mas agora que estou
aqui quero sumir de novo. Para onde eu olhar, vou
vê-la.
— Isso não acontecia lá também?
Ele suspirou. A irmã tinha razão. Não importava
onde ele estivesse. Diana tomava conta de seus pensamentos,
de seus sonhos.
— Estou perdido, Gigi. Não sei como recomeçar.
Ela tocou-lhe o rosto.
— Já recomeçou. Está aqui.
Ele pôs a mão sobre a dela e tentou pensar em algo a
dizer. Não lhe ocorreu nada, e ele sorriu.
— Onde está minha sobrinha linda? E meu cunhado?
— Bonnie está no River’s Edge, brincando com Ali.
— E Alex? Ele não trabalha aos domingos.
— Ele me deixou, Joey. Nós nos divorciamos.
Ela não disse “Enquanto você estava fora”, mas poderia.
A irmã caçula precisara dele, e ele não estivera presente
para ajudá-la. Puxou-a em seus braços.
Gina começou a chorar. Joe afagou-lhe o cabelo e
sussurrou que estava ali, que não iria a lugar nenhum.
Pela primeira vez em três anos isso era verdade.
MEGHANN NÃO CONSEGUIA acreditar na visão de
sua mesa. Estava vazia pela primeira vez em mais de uma
década. Todos os processos pendentes haviam sido distribuídos
entre os outros advogados. Ela prometera a Julie
que ficaria pelo menos três semanas de férias, mas já começava
a se arrepender. Não tirava férias havia dez anos.
O que faria com todas as horas que compunham um dia
comum?
Pegou a pasta na gaveta da mesa e avançou para a
porta. Permitiu-se uma última olhada na sala que era mais
sua casa que o próprio apartamento e fechou a porta com
cuidado.
Lá fora, a noite se avizinhava, afastando o calor de
um dia surpreendentemente quente. À medida que se aproximava
do Public Market, a quantidade de gente aumentava.
Ela tomou a travessa Post para chegar ao prédio.
Não era um trajeto que sempre escolhesse, mas não queria
passar pelo Athenian. Não agora, quando se sentia vulnerável.
Na portaria do edifício, cumprimentou o porteiro e
subiu para o apartamento. Esquecera-se de deixar o rádio
ligado. O lugar estava assustadoramente silencioso.
O apartamento era bonito e arrumado, sem um clipe
fora do lugar. Havia dois sofás de brocado de frente um
para o outro, com uma elegante mesinha de centro entre
eles. Uma das paredes era apenas vidro grosso. A vista era
a imensidão azul do céu e da Sound.
Meghann abriu o armário laqueado preto e dourado
da sala de televisão e pegou o controle remoto. Quando o
som tomou conta do cômodo, ela sentou-se na poltrona
preferida e descansou os pés no escabelo. Levou menos
de cinco segundos para reconhecer a música-tema.
Era uma reapresentação do antigo programa televisivo
de sua mãe: Starbase IV. A mãe corria na tela usando
um ridículo terninho de algodão de stretch verde-limão
com botas pretas à altura das coxas.
— Capitão Wad — dizia a mãe —, recebemos um
recado urgente dos meninos na cápsula de desidratação.
Meg detestava aquele sotaque falso. Como se a microbotânica
de uma base espacial em Marte tivesse de ser
do Alabama! E a mãe adotara o sotaque desde então. Dizia
que os fãs esperavam isso dela.
Meg fechou os olhos e lembrou-se daquele dia distante.
Elas moravam em Bakersfield na época...
Oi, meninas, mamãe chegou.
Meghann aproximou-se de Claire, abraçando a irmã
caçula. A mãe entrou na sala do trailer, usando um vestido
justo de lantejoulas vermelhas com franjas prateadas.
Trouxe o Sr. Mason comigo. Agora sejam boazinhas com ele,
advertiu, naquele tom de voz elevado que significava que
acordaria de mau humor.
Meghann sabia que precisava agir rápido. Com um
homem no trailer, a mãe não conseguiria pensar em mais
nada, e o aluguel estava atrasado há um tempão. Ela pegou
a Variety amassada que roubara na biblioteca local.
Mamãe?
A mãe acendeu um cigarro mentolado.
O quê?
Meghann jogou a revista para ela. Havia marcado o
anúncio com caneta vermelha. Ele dizia: “Procura-se atriz
madura para pequeno papel em série televisiva de ficção
científica.” Então vinha o endereço em Los Angeles.
A mãe leu o anúncio em voz alta. O sorriso congelou
às palavras “atriz madura”. Depois de longos instantes de
tensão, ela soltou uma gargalhada e indicou o quarto ao
Sr. Mason. Quando ele entrou no quarto e fechou a porta,
a mãe ajoelhou-se no chão.
Dêem um abraço na mamãe.
Meghann e Claire jogaram-se em seus braços. Elas
esperavam dias por um momento desses, às vezes semanas,
mas, quando a mãe acendia o fogo de seu amor, ele as
aquecia até os ossos.
Obrigada, dona Meggy. Não sei o que eu faria sem você. Com
certeza vou me candidatar ao papel. Agora vocês duas dêem o fora e
tenham juízo. Preciso fazer meu número.
A mãe fez o teste. Para sua surpresa, e de todos os
demais, saiu vencedora. Mas não ganhou o pequeno papel
ao qual concorrera, conquistou o papel importante de Tara
Zyn, a microbotânica da base espacial.
Meghann suspirou. Não queria lembrar-se da semana
em que a mãe viajara para Los Angeles, deixando as filhas
sozinhas naquele trailer imundo, ou das mudanças que se
haviam seguido. Desde então, Meghann e Claire nunca
mais tinham sido irmãs de verdade.
A seu lado o telefone tocou. Meghann agarrou-o,
ávida por falar com qualquer pessoa.
— Alô?
— Oi, Meggy, sou eu. Sua mãe. Como está, querida?
Meg torceu o rosto para o sotaque.
— Estou bem, mamãe. E você?
— Não poderia estar melhor. O encontro com os fãs
foi nesse fim de semana. Minha nossa, dei tantos autógrafos
que meus dedos doíam!
— Seus fãs adoram você.
— Graças a Deus pelos pequenos milagres. É muito
bom falar com você, Meggy. Deveria vir me visitar.
A mãe sempre dizia isso, mas Meghann não podia
passar três semanas sozinha naquele apartamento.
— Estou de férias — apressou-se em informar. —
Talvez eu pudesse passar um tempo com você.
— Ah. Seria... ótimo. Quem sabe no Natal...
— Amanhã.
— Amanhã? — A mãe riu. — Querida, um fotógrafo
da revista People vai vir me fotografar às 15 horas, e, na
minha idade, acordo parecendo um daqueles cachorros
sem pêlo. Dez mulheres precisam trabalhar o dia inteiro
para me deixar bonita.
Meghann quis desligar o telefone, dizer “Esqueça”,
mas quando correu os olhos pelo apartamento vazio, sem
fotografias, quase sentiu náuseas.
— Então que tal segunda-feira? Poderíamos ir juntas
a um spa.
— Você nunca assiste ao canal E!? Vou viajar para
Cleveland na segunda-feira. Fazer Shakespeare num parque
com Pamela Anderson e Charlie Sheen. Hamlet.
— Você? Fazendo Shakespeare?
— Vou esquecer que ouvi esse tom de voz.
— Pare com o sotaque, mamãe. Sou eu. Sei que você
nasceu em Detroit. Joan Jojovitch é o nome na sua certidão
de nascimento.
— Agora você está sendo grosseira. Sempre foi irritadiça.
Essa é uma grande oportunidade para mim.
Para mim. As palavras preferidas da mãe.
— Então boa sorte. É melhor você desfrutar uma
boa noite de sono antes da sessão de fotos para a revista.
— Essa é a mais pura verdade. — A mãe suspirou
fundo. — Talvez vocês pudessem vir quando eu estiver
menos ocupada. Claire também.
— Claro. Tchau, mamãe.
Meghann desligou o telefone. Durante a hora que se
seguiu, ficou andando pelo apartamento, tentando traçar
um plano que fosse razoável. O telefone tocou. Ela saltou
em direção a ele.
— Alô?
— Oi, Meg.
— Claire? Que boa surpresa! — E dessa vez era
mesmo. — Falei com mamãe hoje. Você não vai acreditar
nisso. Ela vai fazer...
— Eu vou me casar.
— Shakespeare num... Casar?
— Nunca estive tão feliz, Meg. Sei que parece loucura,
mas é o amor, eu acho.
— Com quem vai se casar?
— Bobby Jack Austin. Eu o conheci dez dias atrás
em Chelan. Sei o que você vai dizer, mas...
— Dez dias atrás. Claire! Às vezes a mulher foge para
passar um fim de semana ardente com um homem que
acabou de conhecer. O que ela não faz é se casar com ele.
— Eu estou apaixonada, Meg. Por favor, não estrague
tudo.
Meg queria tanto despejar seus conselhos, que precisou
cerrar os punhos.
— O que ele faz da vida?
— É cantor e compositor. Estava se apresentando
no Cowboy Bob’s Western Roundup quando o conheci.
Meu coração parou por um instante. Já se sentiu assim?
Antes que Meghann pudesse responder, Claire prosseguiu.
— Ele é instrutor de esqui no inverno e passa o verão
viajando, apresentando sua música. É dois anos mais
velho que eu e tão lindo que você não vai acreditar. Mais
bonito que o Brad Pitt. Ele vai ser um grande astro.
Meghann absorveu todas as informações. A irmã se
casaria com um vagabundo de 37 anos que sonhava ser
cantor de música country. E o melhor palco que havia conseguido
era o do Cowboy Bob’s.
— Ele sabe quanto vale o acampamento? Vai assinar
um contrato pré-nupcial?
— Droga, Meg! Você não pode ficar feliz por mim?
— Quero ficar — respondeu ela, e era verdade. —
Quando é o casamento?
— No sábado, dia 23.
— Deste mês? — Isso era loucura. — Eu preciso
conhecê-lo.
— Claro. O ensaio da cerimônia...
— Nem pensar. Preciso conhecê-lo agora. Estarei na
sua casa amanhã à noite. Levarei vocês para jantar.
— Sinceramente, Meg, não tem necessidade.
— Preciso conhecer o homem que roubou o coração
da minha irmã!
— Tudo bem, vejo você amanhã. — Claire se deteve,
então disse: — Vai ser bom ver você.
— É. Tchau. — Meg desligou o telefone e imediatamente
digitou o número do escritório, deixando uma
mensagem para a secretária. — Quero que você envie tudo
que temos sobre contratos pré-nupciais para minha
casa até as 10 horas da manhã. — Numa espécie de reflexão
tardia, acrescentou: — Obrigada.
Depois sentou-se de frente para o computador a fim
de realizar uma breve investigação sobre Bobby Jack Austin.
Era isso que ela faria naquelas férias idiotas. Impediria
que Claire cometesse o maior erro de sua vida.
CLAIRE DESLIGOU o telefone. No silêncio que se seguiu,
a dúvida insinuou-se pelo quarto. Ela e Bobby estavam
de fato avançando muito rápido.
— Droga, Meg!
Mas Claire sabia que a dúvida sempre estivera presente,
uma sementinha dentro dela, esperando para germinar
e crescer. Ela era velha demais para se deixar levar
pela paixão.
Tinha uma filha em quem pensar, afinal de contas.
Alison nunca conhecera o pai biológico. Fora fácil até agora
proteger o mundo de Ali das agruras da vida. Mas o
casamento mudaria tudo.
A última coisa que Claire queria era se casar com um
homem inconstante. Ela conhecera quatro padrastos antes
de completar nove anos. Esse número não incluía os homens
que tivera de chamar de “tio”, homens que haviam
passado pela vida da mãe como doses de tequila, sem deixar
para trás nada além de um persistente gosto amargo.
Claire dirigiu-se à janela. Lá fora, o sol começava a se
pôr. O resort estava banhado por uma luz dourada.
O pai e Bobby surgiram à vista. Bobby trazia numa
das mãos um cortador de grama, na outra, uma lata de
gasolina. Desde que se mudara para ali, entregara-se de
corpo e alma ao trabalho. Era bom no serviço, embora ela
soubesse que ele não se sentiria feliz no River’s Edge para
sempre. Já mencionara viajar por algumas semanas naquele
verão. Os três juntos. “A viagem dos Austin” era como
ele a chamava. Claire ainda não tinha tocado no assunto
com o pai, mas sabia que ele toparia.
O pai e Bobby pararam em frente ao quinto chalé. O
pai apontou para o beiral e Bobby olhou o local indicado.
Instantes depois, ambos riam. O pai pôs a mão no ombro
do futuro genro. E eles se foram, em direção à lavanderia.
— Oi, mamãe. — Claire virou-se. Alison estava parada
no pé da escada. — O vovô vai me levar à oficina do
Smitty. Nós vamos consertar a caminhonete.
Ao observar a filha correndo para fora de casa, Claire
sentia o peso da responsabilidade. E se o casamento não
desse certo? Ela precisava conversar com alguém sobre
isso.
Não a irmã, evidentemente. Uma amiga. Telefonou
para Gina.
Ela atendeu ao primeiro toque.
Claire afundou na poltrona.
— Sou eu. A rainha do casamento instantâneo. Meghann
acha que estou sendo idiota.
— Desde quando nos importamos com o que sua
irmã acha? Pelo amor de Deus, ela é advogada. Isso fica
abaixo dos invertebrados na cadeia evolucionária.
Claire sorriu.
— Eu sabia que você botaria tudo em perspectiva.
Só me diga que não estou sendo uma megera egoísta que
vai arruinar a vida da filha se casando com um desconhecido.
— Ah, então estamos falando da sua mãe.
— Eu não quero ser como ela.
A voz de Claire de repente perdia força.
— Eu conheço você desde que nós cinco aparecemos
no primeiro dia de escola vestindo a mesma camisa
azul. Você nunca foi egoísta. E nunca vi você feliz assim.
Deus finalmente lhe deu esse presente de amor e paixão.
Não o devolva fechado.
— Estou com medo. Deveria ter feito isso quando
era nova.
— Claro que você está com medo. A pessoa inteligente
sente medo do casamento. Se você não estiver
pronta para se casar, espere. Mas não espere porque sua
irmã mais velha fez você se questionar. Siga seu coração.
— O que eu faria sem você?
Gina riu.
— O mesmo que eu faria sem você: beberia demais e
me lamentaria com estranhos.
— Como estão as coisas?
Ela suspirou.
— Não muito bem. Rex esteve aqui ontem à noite.
O filho-da-puta perdeu uns cinco quilos e pintou o cabelo.
Daqui a pouco vai me pedir para chamá-lo de Rex o Terrível
novamente. — Ela se deteve. — Ele quer se casar
com aquela mulher.
— Ai!
— Ai, mesmo. Dói muito. Mas você não ouviu a boa
notícia: Joey voltou!
— Não brinca. Onde ele estava?
Gina baixou a voz.
— Por aí, foi o que ele disse. Está péssimo. Envelhecido.
Chegou ontem. Está dormindo há quase 13 horas.
Espero nunca amar ninguém como ele amava Diana.
— O que ele vai fazer?
— Não sei. Disse que poderia ficar aqui, mas não
quer. A casa traz muitas lembranças. Ele passou uma hora
olhando a fotografia do meu casamento. Sinceramente,
senti vontade de chorar.
— Dê um beijo nele.
— Pode deixar.
Elas conversaram mais alguns minutos sobre coisas
do dia-a-dia. Quando desligaram, Claire se sentia melhor.
Olhou a mão esquerda, o anel de noivado que estava
usando. Era uma tira de folha de metal prateado, cuidadosamente
dobrada e torcida em torno do dedo.
Ela se recusava a pensar no que a irmã diria sobre a
aliança. Em vez disso, lembrou-se de como havia se sentido
no dia em que Bobby a colocara ali.
Case comigo, pedira ele, de joelhos. Os olhos transbordavam
um amor com o qual ela apenas sonhara.
Gina tinha razão. Esse amor era um presente que lhe
fora dado. Ela não o recusaria por medo. Uma coisa que a
maternidade lhe havia ensinado: o amor exigia coragem. E
o medo apenas fazia parte do negócio.
Ela pegou o casaco no sofá, jogou-o sobre os ombros
e saiu de casa. A noite agora quase caíra por completo;
a escuridão cobria as montanhas graníticas.
Claire fez a ronda noturna devagar, parando para falar
com diversos hóspedes. Estava totalmente escuro
quando alcançou a pequena fileira de chalés no extremo
da propriedade.
O quarto chalé possuía uma linda varandinha com
vista para o rio. Eles não haviam alugado o chalé naquele
verão por causa de estragos da chuva no telhado, o que
dera a Bobby um lugar para ficar até o casamento. Destino,
o pai dissera ao entregar a chave a Claire.
Agora o destino estava sentado na beira da varanda,
de pernas cruzadas, o corpo encoberto pela penumbra,
um violão no colo. Contemplava o rio, tocando uma vaga
música lenta.
Claire avançou para a sombra de uma enorme sempre-
verde. Escondida, observou-o. A música lhe dava arrepios.
Quase baixo demais para ser ouvido, ele começou a
cantar.
— “Venho andando a vida inteira... numa estrada
sem fim. Dobrei a esquina, princesa... você sorriu para
mim.”
Claire saiu da sombra. Bobby ergueu os olhos e
viu-a. Um sorriso franziu-lhe a pele bronzeada do rosto.
Ele começou a cantar novamente, olhando para ela.
— “Pela primeira vez na vida... acredito no bom
Deus... porque vejo o paraíso... iluminando os olhos
seus.” — Ele dedilhou mais alguns acordes, então bateu
no violão e sorriu. — Foi só o que compus até agora. Sei
que precisa de retoques.
Deixou o instrumento de lado e avançou na direção
dela.
A cada passo, Claire sentia a respiração diminuir, até,
ao tê-lo diante de si, perder o fôlego. Era quase constrangedor
sentir tanto.
Ele segurou-lhe a mão esquerda, olhou o aro de metal
prateado que pretendia ser uma aliança de diamante.
— Patético — murmurou. — Nem toda mulher aceitaria
uma aliança dessas.
— Eu amo você, Bobby. É isso que importa.
— Eu não sou nenhuma dádiva, Claire. Você sabe
disso. Cometi erros na vida. Três, para ser exato.
— Sou mãe solteira e nunca me casei. Entendo de
erros.
— Nunca me senti assim — murmurou ele.
— Assim como?
— Como se meu coração já não me pertencesse,
como se ele não pudesse bater sem você. Você está dentro
de mim, Claire, mantendo-me de pé. Você me faz querer
ser mais do que sou.
— Eu quero envelhecer com você — sussurrou ela.
— Quero ouvir nossos filhos brigando por bobagens
no banco traseiro fedido do carro.
Claire riu. Era tão bom sonhar com alguém!
Ele a abraçou, dançou com ela a música do rio e dos
grilos.
Por fim, Claire disse:
— Minha irmã, Meghann, vem nos visitar amanhã.
Como era de esperar, não ficou muito animada com a notícia
do casamento.
Pela mão, ele conduziu-a à varanda. Sentaram-se no
rangente balanço de madeira e balançaram-se suavemente.
— Você não disse que ela não viria ao casamento?
— Doce ilusão.
— A opinião dela importa?
— Não deveria.
— Mas importa.
Claire sentia-se uma idiota.
— Importa.
— Ela não vai conseguir mudar sua idéia sobre mim,
vai?
— Ela nunca conseguiu mudar minha idéia sobre
nada. É o que a deixa furiosa.
— Contanto que você me ame, posso suportar tudo.
— Bem, Bobby Austin... — Ela abraçou-o e aproximou-
se para um beijo. Pouco antes de os lábios se tocarem,
sussurrou: — Então você pode suportar tudo. Até
minha irmã.
CAPÍTULO
CINCO
— É ESTUPIDEZ casar com um homem que acabou de
conhecer.
— “Estupidez” não é a palavra certa.
— É desaconselhável...
— Você é irmã. Não advogada dela.
Meghann vinha travando essa conversa louca com o
espelho retrovisor durante a viagem de Seattle. Por que
conseguia apresentar argumentos que levavam os jurados
às lágrimas e não achava uma maneira simples e eficaz de
advertir a irmã da tragédia iminente?
Na última parada antes de Hayden havia um bar decrépito,
chamado Roadhouse, encimado por um néon que
recomendava Coors light. De todo o coração, ela queria
parar o carro, entrar no bar cheio e perder-se na escuridão
enfumaçada. Certamente seria melhor do que dizer a Claire,
depois de se encontrar afastada havia tanto tempo:
“Você está cometendo um erro.”
Mas não parou. Deixou a estrada principal e dirigiu
15 quilômetros numa via de duas pistas ladeada por imensas
sempre-verdes.
A pequena placa surgiu, desejando-lhe boas-vindas.
Ela diminuiu a marcha. Hayden ainda parecia o tipo
de lugar que acolhia de portas abertas novos moradores,
onde mulheres levavam tortas de atum caseiras às famílias
recém-chegadas. Mas Meghann não se deixava enganar.
Vivera ali tempo suficiente para saber como aquela gente
simpática podia ser cruel com quem andasse com as pessoas
erradas. Sem dúvida, cidade pequena podia nos reconfortar;
e também podia tornar-se rapidamente hostil.
Meghann parou no único sinal existente. Quando a
luz verde acendeu, pisou no acelerador e atravessou a cidade.
Alguns quilômetros depois, avistava a placa: RESORT
RIVER’S EDGE. PRÓXIMA À ESQUERDA.
Entrou na estrada pedregosa. As árvores eram gigantescas
em ambos os lados. Na primeira casa, diminuiu
a velocidade. A bela caixa de correspondência, pintada
para parecer uma orca, dizia C. CAVENAUGH.
O terreno, outrora silvestre, fora cultivado. Agora
parecia um jardim inglês. A casa era totalmente Martha
Stewart: tabuado amarelo-claro e lustrosas molduras brancas,
uma bela varanda decorada com vasos pendurados de
gerânio e lobélia.
Ela estacionou e desceu do carro. Arrastando os
presentes, caminhou até a porta e bateu. Ninguém atendeu.
Depois de uma longa espera, voltou ao carro e dirigiu
quinhentos metros até a casa da recepção do acampamento.
Passando pela piscina, alcançou a longa e estreita
construção de madeira onde se faziam os registros. Um
sino retiniu quando ela abriu a porta.
Sam Cavenaugh estava atrás do balcão. À entrada
dela, levantou-se. O sorriso pronto esvaeceu aos poucos,
então se firmou outra vez.
— Oi, Meg. É bom ver você. Faz muito tempo.
— É. Tenho certeza de que você sentiu saudade.
Como sempre, Meghann sentia-se pouco à vontade
perto de Sam, nervosa. Ainda se lembrava do dia em que
ele lhe havia dito: Saia daqui, desapareça. Ele imaginara que
ela era má influência para a filha. Mas a frase que Meghann
mais detestara, aquela que guardara consigo, tinha
sido: Igual à sua mãe.
Eles entreolharam-se.
— Você está bem — elogiou ele, afinal.
— Você também. — Meghann consultou o relógio.
A última coisa que queria era ficar ali sem falar com Sam.
— Claire avisou que você talvez chegasse. A família
Ford, que está no acampamento 17, teve uma emergência
com o fogão, mas ela deve voltar a qualquer momento.
— Ótimo. Então vou esperar na casa.
Ela deu meia-volta e retirou-se, deixando a porta bater.
Estava na metade do caminho do carro quando ouviu
a voz dele novamente.
— Ela está feliz, sabia? Com esse rapaz.
Meghann virou-se.
— Se bem me lembro, você estava feliz quando se
casou com minha mãe. Eu estava feliz quando me casei
com Eric.
Sam aproximou-se.
— Sua mãe é uma peça, sem dúvida, mas não me arrependo
de ter me casado com ela.
— Você deve estar drogado.
— Claire — foi tudo o que ele disse.
— Ah. — Meghann sentiu uma ponta de ciúme. Lá
estava outra vez: a relação “pai e filha” de Claire.
— Tenha cuidado com ela — pediu Sam. — Você é
irmã dela.
— Sei que sou irmã dela.
Mais uma vez ela se retirou: entrou no carro e seguiu
para a casa de Claire.
Dessa vez, quando bateu à porta, ouviu passos no
interior. A porta foi aberta. Alison surgiu à vista, usando
um macacão de brim adornado com margaridas e uma
camisa amarela bonita.
— Você não pode ser Alison Katherine Cavenaugh.
Ela é um bebê.
Alison sorriu.
— Agora eu sou grande.
— É mesmo. Vai dar um abraço na tia Meg?
Alison avançou e deu-lhe um abraço morno. Quando
se afastou, Meg disse:
— Eu trouxe um presente para você.
— Deixe-me adivinhar. — Claire surgia da escuridão
no fim do corredor. — Um canivete suíço.
— Não. Uma espingarda de chumbinho.
— Você não fez isso!
Meghann riu.
— A vendedora de aparência mais careta na loja de
brinquedos recomendou isto aqui.
Ela entregou à sobrinha a caixa embrulhada.
Alison abriu o presente.
— É a Groovy Girl, mamãe! A Groovy Girl!
Ela lançou-se nos braços de Meghann, dessa vez abraçando-
a para valer. Mostrou a boneca a Claire e subiu
correndo a escada.
Meghann entregou a Claire uma garrafa de vinho:
Far Niente 1997.
— É um dos meus preferidos.
— Obrigada.
Elas entreolharam-se. Por fim, Claire deu um passo à
frente, puxou Meghann para um abraço rápido e soltou-a.
Meghann recuou vacilante, surpresa demais pelo
gesto para reagir.
— O jantar está cheirando muito bem, mas eu queria
levar vocês para comer fora.
— O bufê do Chuck Wagon não é exatamente seu
estilo.
— Ah.
— Enfim, entre. Você nunca esteve aqui em casa.
Meghann seguiu Claire até o sofá e sentou-se ao lado
dela. Não pôde deixar de notar a ridícula aliança, um aro
de alumínio, pelo amor de Deus. Era bom que ela tivesse
ido ali. E não havia por que adiar o assunto.
— Claire, eu acho...
Então ele entrou na sala. Meghann logo entendeu por
que a irmã se apaixonara tão perdidamente. Bobby podia
ser um fracasso como cantor, mas era um sucesso no quesito
beleza. Quando sorria, era com o rosto todo. Um
homem desses não apenas arrancava nossos pés do chão,
como também nos fazia girar no ar tão rápido e alto que a
única certeza era a queda. Ele e Claire trocaram um olhar
apaixonado.
— Eu sou Bobby Austin — apresentou-se ele, sorrindo.
Meghann levantou-se e apertou-lhe a mão.
— Meghann Dontess.
— Claire me disse que as pessoas a chamam de Meg.
— Meus amigos, sim.
Ele sorriu.
— Pelo seu olhar azedo, imagino que eu deva me ater
a Sra. Dontess.
— As meninas de Arkansas devem achar você encantador.
— As do Texas achavam. — Ele abraçou Claire. —
Mas esse tempo ficou para trás. Encontrei a mulher com
quem quero passar o resto da vida.
Ele beijou o rosto de Claire, pegou a garrafa de vinho
e dirigiu-se à cozinha.
Nos poucos instantes em que se manteve ausente,
Meghann ficou ali parada, olhando para a irmã, tentando
escolher as palavras com cuidado, mas nada parecia adequado.
Bobby retornou com duas taças de vinho e entregou
uma delas a Meghann.
— Você deve ter algumas perguntas para mim —
disse, sentando-se.
A franqueza dele deixou Meghann surpresa. Devagar,
ela acomodou-se na cadeira que ficava de frente para
o sofá. Eles agora eram entidades distintas: Bobby e Claire
contra Meghann.
— Fale-me de você.
— Eu amo Claire.
— Algo mais substancial.
— Tenho 37 anos. Formado em música pela Universidade
Estadual de Oklahoma. Fui... casado.
Meghann inclinou-se para a frente, alerta.
— Quantas vezes?
Ele olhou para Claire.
— Três.
Meghann também olhou para Claire.
— Você deve estar brincando.
Ele se apressou em explicar.
— Eu me casei com Suellen quando nós tínhamos
18 anos. Ela estava grávida, e na nossa cidade...
— Você tem filhos?
— Não. — A voz dele ficou mais branda. — Aborto
espontâneo. Depois disso, não tinha razão para continuarmos
casados. Ficamos juntos menos de três meses. Então
me casei novamente aos 21 anos. Infelizmente, descobri
que ela queria uma vida diferente da que eu queria.
Carros finos, jóias finas. Fui preso quando a pegaram vendendo
cocaína em nossa casa. Vivi dois anos com ela e
nunca notei nada. Só achava que ela era muito temperamental.
Ninguém acreditou que eu não fazia parte daquilo.
Laura foi a única que teve importância. Ela era... uma pediatra
que adorava música country. Ficamos dez anos casados.
Terminamos há um ano. Eu poderia contar por que,
mas não é da sua conta. Claire sabe de tudo.
Três divórcios e um crime. Perfeito.
E agora a irmã má tinha de partir o coração da irmã
boazinha.
Claire levantou-se, aproximando-se dela. Sentou-se
na arca chinesa entalhada que servia de mesinha de centro.
— Sei que você não pode ficar feliz por mim, Meg.
— Eu quero ficar. — Era verdade. — Só que...
— Ele não é o melhor partido. Eu sei. E você ganha
a vida lidando com divórcios. Também sei disso. Acima
de tudo, sei que você cresceu na casa de mamãe. — Ela
inclinou-se para a frente. — Eu sei, Meg.
Meghann sentiu o peso daquelas poucas palavras. A
irmã havia pensado em todas as mesmas razões. Não havia
nada que Meghann pudesse dizer que Claire já não
soubesse.
— Não vai nunca fazer sentido. E sei que é louco,
arriscado e, pior de tudo, algo que lembra mamãe. Mas
significaria muito para mim você me abraçar e dizer que
está feliz por mim. Mesmo que seja mentira.
Meghann fitou os olhos verdes da irmã e lembrou-se
da infância. Sempre que a mãe levava para casa um novo
“amigo”, Claire deixava-se acreditar que finalmente haveria
um pai em sua vida. Cada padrasto arrancava um pedacinho
de seu coração. E, todavia, quando o homem seguinte
aparecia, a irmã achava uma maneira de acreditar novamente.
Era claro que Claire acreditava em Bobby Austin.
Não havia jeito de mudar a opinião ou, ainda mais
importante, o coração da irmã. Portanto, havia duas opções:
fingir que dava sua aprovação ou aferrar-se às armas.
— Eu confio em você, Claire — disse, afinal. — Se
está falando que Bobby Austin é o homem que você ama,
isso me basta.
Claire soltou um longo suspiro.
— Obrigada.
Ela abraçou Meghann, que ficou surpresa demais
para retribuir o gesto. Claire levantou-se. Voltou ao sofá e
sentou-se ao lado de Bobby, que imediatamente pôs o
braço em seus ombros.
Meghann tentou pensar no que dizer no silêncio que
se seguiu.
— Então, quais são os planos para o casamento?
Cartório?
— Nem pensar. — Claire riu. — Esperei 35 anos
por isso. Vou querer tudo a que tenho direito. Vestido
branco. Casamento na igreja. Bolo. Recepção com dança.
Tudo.
— Tem uma consultora no meu prédio — observou
Meghann. — Acho que ela planejou o casamento de Bill
Gates.
— Isso aqui é Hayden, não Seattle. Vou alugar o salão
da Associação dos Veteranos de Guerra, e cada convidado
vai trazer um prato, como numa festa americana.
Vai ser ótimo.
— Festa americana? Festa americana? — Meghann levantou-
se. Aparentemente havia nela algo de sua mãe, afinal
de contas. Ela não deixaria a irmã ter um casamento
estilo Wal-Mart. — Vou organizar a cerimônia e a recepção
— ofereceu-se, num impulso.
O sorriso de Claire desapareceu.
— Você?
— Não sou nenhuma retardada. Posso fazer isso.
— Mas... seu trabalho é tão absorvente. Eu jamais
pediria que você tirasse folga da sua rotina corrida para
isso.
— Você não pediu. Eu me ofereci. E por acaso estou...
com pouco serviço. — A idéia começava a lhe agradar.
Talvez isso acabasse por uni-las. — Vai ser perfeito,
aliás. Eu quero fazer isso por você, Claire.
— Ah. — Claire não parecia muito animada. — Por
que será que fico me lembrando de O pai da noiva? Você
nunca faz nada com simplicidade, Meg.
Meghann sentiu-se estranha de repente, vulnerável.
Não sabia por que queria tanto fazer aquilo.
— Vou escutar você e seguir suas recomendações.
Vai ser o seu casamento. Eu juro.
— Tudo bem — assentiu Claire, afinal. — Você pode
me ajudar a planejar tudo.
Meghann sorriu e bateu palmas.
— Ótimo! Agora, qual é mesmo a data... 23? O próximo
sábado? Não nos resta muito tempo.
Ela dirigiu-se à cozinha, onde achou um papel e começou
a traçar uma lista de afazeres.
NA SEGUNDA NOITE na casa da irmã, Joe se sentia
sufocado. Para onde olhava, via lampejos da antiga vida.
Não sabia o que fazer, mas sabia que não podia ficar ali.
Esperou Gina sair para o supermercado, botou seus
pertences na velha mochila — inclusive alguns porta-
retratos com fotografias de Diana que havia tirado de
casa — e encaminhou-se para a porta. Deixou um bilhete
na bancada da cozinha: “Não posso ficar. Desculpe. Dói demais.
Sei que é um momento difícil para você, então não irei longe.
Telefonarei em breve. Com amor, J.”
Refez os poucos quilômetros de volta ao centro da
cidade. Algumas pessoas andavam nas ruas, e mais de um
rosto se voltou surpreso para ele, mas ninguém o abordou.
Joe estava prestes a desistir de procurar emprego
quando chegou ao fim da cidade. Do outro lado da rua do
parque Riverfront, estudou o barracão de metal que anunciava:
SMITTY’S, A MELHOR OFICINA DE HAYDEN.
Na cerca de aço havia uma placa: PRECISA-SE DE
MECÂNICO. EXIGE-SE EXPERIÊNCIA, MAS A
QUEM QUERO ENGANAR?
Joe atravessou a rua e dirigiu-se à entrada.
Um cachorro começou a latir. Ele notou a placa de
CUIDADO COM O CÃO. Instantes depois, aparecia um
poodle branco.
— Madonna, pare de latir! — Um homem velho
surgiu do barracão escuro. Usava um macacão manchado
de óleo e um boné da marinha. — Não ligue para a cadela.
Em que posso ser útil?
— Eu vi a placa de “precisa-se de mecânico”.
— Não brinca. — O velho bateu na própria coxa. —
Esse negócio está aí há quase dois anos. Eu... — Ele se
deteve, deu um passo à frente, franzindo as sobrancelhas.
— Joe Wyatt?
Joe ficou nervoso.
— Oi, Smitty.
Smitty soltou um suspiro.
— Macacos me mordam.
— Eu voltei. E preciso de um emprego. Mas, se isso
for lhe custar os clientes, eu posso entender. Sem ressentimento.
— Você quer um emprego consertando carros! Mas você
é médico.
— Aquela vida acabou.
Smitty encarou-o durante um longo tempo, então
perguntou:
— Você se lembra do meu filho, Phil?
— Ele era bem mais velho que eu, mas me lembro,
sim.
— O Vietnã acabou com ele. Culpa, eu acho. Ele fez
umas coisas por lá... Enfim, já vi homem fugir. Não é
bom. Claro que vou contratar você, Joe. O chalé ainda
vem com o emprego. Quer?
— Quero.
Smitty conduziu-o pela construção de metal até os
fundos. O quintal era grande e bem cuidado. Havia muitas
flores ao longo da passagem de pedras. Um bosque de
sempre-verdes aninhava-se ao lado do pequeno chalé de
madeira.
— Você era adolescente quando morou aqui.
— Faz muito tempo.
— É. — Smitty suspirou. — Helga ainda mantém o
lugar imaculado. Vai ficar feliz em ver você de volta.
Joe seguiu Smitty até o chalé.
O interior estava asseado como sempre. Uma manta
de lã com listras vermelhas cobria o antigo sofá de couro,
e havia uma cadeira de balanço próxima à lareira de pedras.
A cozinha parecia bem provida de utensílios, panelas
e caçarolas, e o único quarto ostentava uma cama de casal.
Joe apertou a mão de Smitty.
— Obrigado — disse, surpreso pela profundidade de
sua gratidão.
— Muita gente nesta cidade gosta de você, Joe. Você
parece ter esquecido.
— É bom ouvir isso. Ainda assim, prefiro que ninguém
saiba que estou aqui. Pelo menos por enquanto.
— Imagino que seja um longo caminho para superar
uma coisa dessas.
— Muito longo.
Depois que Smitty saiu, Joe procurou na mochila um
dos porta-retratos que pegara na casa da irmã. Fitou o
rosto sorridente de Diana.
— É um começo — disse a ela.
MEGHANN ACORDOU desorientada. Achou que houvesse
um rádio ligado em algum quarto no fim do corredor.
Então se deu conta de que o barulho eram pássaros
cantando. Pássaros cantando, pelo amor de Deus.
A casa de Claire.
Sentou-se na cama. O quarto de visitas, muito bem
decorado, era estranhamente confortável. Por todos os
lados havia bugigangas feitas à mão e trabalhos manuais
de Ali.
Ouviu-se uma batida à porta, então um grito hesitante
de “Meg?”.
Ela consultou o relógio na mesinha-de-cabeceira:
10hl5. Minha nossa! Esfregou os olhos, que pareciam areentos
por causa da insônia. Como sempre, passara a noite
inteira revirando-se na cama.
— Estou acordada — disse, livrando-se dos cobertores.
— O café-da-manhã está na mesa — avisou Claire
pela porta fechada. — Vou limpar a piscina. Vamos sair lá
pelas 11 horas, se você ainda estiver de acordo.
Meghann levou alguns segundos para se lembrar.
Prometera sair para comprar o vestido de noiva em Hayden
com as Bluesers.
— Vou me vestir.
— Vejo você daqui a pouco.
Meghann ouviu os passos de Claire afastando-se. Por
quanto tempo conseguiria manter aquela farsa de “Eu sou
sua irmã, apoio seu casamento”? E todavia, como não podia
voltar ao trabalho, Meghann se flagrava preparando-se
para planejar o casamento da irmã. Sinceramente, quem
seria pior para a função?
Ela saiu da cama e atravessou o corredor em direção
ao pequeno banheiro do segundo andar. Escovou os dentes
e tomou um banho rápido, muito quente. Trinta minutos
depois, estava pronta para sair, novamente vestida
com as roupas do dia anterior: uma blusa branca Dolce &
Gabbana e uma calça jeans Marc Jacobs.
Lá fora, o sol brilhava no jardim. Meghann jogou a
bolsa dentro do Porsche e entrou. O motor ressoou. Ela
dirigiu devagar até a casa da recepção do acampamento,
com cuidado para não levantar poeira demais. Era uma
distância curta, mas as sandálias de salto alto não dariam
conta do caminho de pedras.
Estacionou em frente da casa. Entrou. A recepção
estava vazia.
Dirigiu-se ao balcão e encontrou o catálogo telefônico
de Hayden. Havia um único anúncio de consultoria
para casamentos: “Planejamento de Eventos Royal.” Em
letras pequenas, lia-se: “Finja que você só vai se casar uma
vez.”
Meghann não pôde deixar de sorrir. Anotou o número
e guardou-o na bolsa.
Voltou ao carro, baixou a capota e esperou. Às 11
horas, Claire apareceu, usando uma calça jeans e uma camiseta
do River’s Edge Resort. Jogou a mochila de lona
atrás do banco e entrou no carro.
— Isso é que é ir à cidade com estilo.
Meghann não sabia se a observação pretendia ser
uma alfinetada, portanto manteve silêncio.
— Você acordou tarde — comentou Claire. — Achei
que sempre chegasse à firma às 7 horas.
— Eu não dormi bem.
— Por favor, não se preocupe comigo, Meg. Por favor.
Meghann não podia deixar a irmã pensar que a falta
de sono se devesse ao casamento.
— Não é isso. Eu nunca durmo.
— Desde quando?
— Acho que começou na faculdade. Estudando a
noite toda para as provas. Você sabe como é.
— Não, não sei.
Meghann tentara proteger Claire, para esconder o
fato de que a insônia havia começado quando a família
desmoronou, mas faculdade fora a desculpa errada.
— Pelo que ouvi dizer, a maternidade também deixa
algumas pessoas acordadas a noite inteira.
— Então você sabe alguma coisa sobre crianças.
Mamãe disse que eu sentia muita eólica.
— Como se mamãe fosse saber! Você não sentia cólica.
Você tinha dor de ouvido. Quando estava doente,
gritava desesperadamente. Eu levava você, chorando, para
a lavanderia. Aí me sentava na secadora, com você no colo,
e você acabava dormindo. Mamãe nunca soube o que
acontecia com as moedas de 25 centavos.
— Não é de admirar que eu goste de lavar roupa.
Chegamos.
Claire apontou para uma casa antiga em estilo vitoriano,
pintada num tom rosa forte, com molduras roxas. A
cerca branca trazia uma placa pintada à mão que dizia AS
INTIMIDADES DE DONA ABIGAIL. ENTRE.
Meghann olhou a casa ao mesmo tempo ridícula e
graciosa.
— Nós podíamos ir à Escada ou à Nordstrom.
— Não seja você, Meg.
— Tudo bem. — Ela suspirou. — Vá na frente. Vou
calar a boca.
Elas subiram a escada e entraram na loja.
— Olá! — gritou Claire.
Houve uma resposta imediata: algumas vozes femininas
e passos apressados.
Uma senhora roliça, usando um vestido largo e florido,
surgiu à vista.
— Claire Cavenaugh, estou tão feliz em finalmente
poder mostrar a você o segundo andar!
— Os vestidos de noiva ficam no segundo andar —
esclareceu Claire a Meghann. — Dona Abigail já tinha desistido
de mim.
Antes que Meghann pudesse responder, duas outras
mulheres chegaram correndo à sala. Uma delas era baixinha
e usava um vestido largo, sem cintura, com tênis
brancos. A outra era alta, talvez magra demais, e vestia-se
impecavelmente com seda bege. Duas das Bluesers. A de
vestido sem cintura, Meg ficou sabendo, era Gina, e a de
seda bege era Charlotte.
— Karen não pôde vir — explicou Gina. — Willie
tem consulta no ortodontista e Dottie quebrou os óculos.
— Em outras palavras — observou Charlotte —,
um dia comum na vida de Karen.
Claire se pôs entre Charlotte e Abigail. Elas conversavam
sobre rendas, bordados e véus.
— Meghann — disse Gina —, estou surpresa de que
você tenha conseguido escapar do trabalho. Ouvi dizer
que é a melhor advogada especializada em divórcios de
Seattle.
— Eu não deixaria de vir ao casamento de Claire.
— Conheço uma advogada especializada em divórcios.
Ela é ótima em separar famílias.
— É o que fazemos.
Uma sombra cruzou os olhos de Gina. A voz baixou.
— Alguma vez chegam a reconstituí-las?
— É raro.
O rosto de Gina pareceu fechar-se; enrugou-se como
um saco de papel velho. E Meghann entendeu o que se
passava.
— Você está se divorciando.
Gina tentou sorrir.
— Acabei de me divorciar, na verdade. Diga-me que
vai melhorar.
— Vai, sim — murmurou Meg. — Mas pode levar
um tempo. Existem vários grupos de apoio que podem
ajudá-la.
— Eu tenho as Bluesers com quem chorar, mas obrigada.
Agradeço a sinceridade. Agora vamos subir e achar
o vestido perfeito para a sua irmã.
Gina conduziu Meg escada acima. Quando chegaram
ao segundo andar, Claire já experimentava o primeiro vestido.
As mangas eram enormes, e a saia parecia uma xícara
de chá de cabeça para baixo. Meg acomodou-se numa cadeira
de vime branca. Gina ficou atrás dela.
— Ai, que lindo! — exclamou Abigail.
Claire estava de frente para o espelho, virando-se
para lá e para cá.
— Parece roupa de princesa — considerou Charlotte.
Claire olhou para Meg.
— O que você acha?
Meg não sabia o que se esperava dela: honestidade
ou apoio. Deu mais uma olhada no vestido e chegou à
conclusão de que apoio seria impossível.
— Medonho.
— Minha irmã sempre foi severa — balbuciou Claire,
voltando à cabine.
Meghann suspirou. Mais uma vez havia estragado
tudo, desferira sua opinião como um golpe de punhal na
nuca. Afundou na cadeira e fechou a boca.
O resto da tarde foi um desfile exaustivo de vestidos
baratos, um após o outro. Claire aparecia, recebia comentários
e desaparecia. Não pediu mais a opinião de Meghann,
que sabia que era melhor não a oferecer. Recostou-
se na cadeira e apoiou a cabeça na parede.
Uma cutucada na altura das costelas a acordou. Ela
piscou os olhos, endireitou-se. Charlotte, Abigail e Claire
retiravam-se para uma sala denominada CHAPÉUS E
VÉUS.
Gina falou:
— Eu já tinha ouvido dizer que você não era fácil,
mas dormir enquanto sua irmã experimenta vestidos de
noiva é o fim.
— Era o único jeito de ficar quieta. Ela achou algum?
— Não.
Meghann franziu a testa.
— Como assim, não sou fácil? É isso que Claire diz?
— Não. É. Às vezes. Você sabe como é, quando
bebemos margaritas num dia ruim. Karen chama a irmã de
Psicopata Desalmada. Claire chama você de Tubarão.
Meghann quis sorrir, mas não conseguiu.
— Eu me lembro de quando ela se mudou para cá
— murmurou Gina. — Chorava só de olharmos diferente
para ela. Passou anos reclamando que sentia saudade da
irmã. Só depois da formatura descobri o que tinha acontecido
com ela.
— O que eu tinha feito, é isso que você quer dizer.
— Quem sou eu para julgar? A questão é a seguinte:
Claire ficou muito magoada com aquilo tudo, mas, admita
minha amiga ou não, significa muito para ela ter você aqui.
— Eu me ofereci para planejar o casamento.
— Você parece perfeita para isso.
— Ah, claro. Sou muito romântica.
Meghann suspirou.
— Você só precisa ouvir Claire. Qual foi a última
vez em que você se sentou com sua irmã para conversar?
— Digamos que não tínhamos idade suficiente para
tomar vinho durante as refeições.
— Foi o que imaginei. Saia com ela agora.
— Mas Alison...
— Sam pode tomar conta de Alison. Vou avisá-lo.
— Claire não vai querer sair comigo depois que vetei
os vestidos.
— E dormiu. O ronco foi o ponto alto.
— Você também não alivia, hein?
— Daí o divórcio. Leve Claire para jantar. Vá ver um
filme. Faça alguma coisa de irmã. Está mais do que na hora.
CLAIRE OLHOU DE ESGUELHA para a irmã, que se
achava atrás do volante.
— Para onde estamos indo? — perguntou, pela
quarta vez.
— Você vai ver.
Sempre a mesma resposta.
— Alison está me esperando — argumentou Claire,
pela quarta vez.
— Chegamos. — Meg estacionou o Porsche prateado
numa vaga. Antes que Claire pudesse contestar, ela já
se encontrava fora do carro, perto do parquímetro. —
Vamos.
Elas agora estavam no centro de Seattle. Território
da irmã. Claire avançava a seu lado.
— Aqui — indicou Meghann, parando de repente
em frente a uma porta branca estreita ladeada por janelas.
Uma pequena placa de ferro dizia BY DESIGN.
— Que lugar é este?
— Você falou que eu podia planejar o casamento,
certo? Meg abriu a porta e entrou.
Claire continuou parada, hesitante.
— Vamos.
Meghann a aguardava de frente para um elevador.
Claire seguiu-a. Um instante depois o elevador apitou,
e a porta abriu. Elas entraram; a porta fechou.
— Desculpe por hoje de manhã — disse Meghann.
— Eu estraguei tudo.
— Uma coisa é dormir. Outra é roncar.
— Eu sei. Desculpe.
Claire suspirou.
— É a história de nossas vidas, Meg, mas nós nunca...
A porta do elevador abriu. Claire soltou um grito abafado.
Havia manequins por toda parte, cobertos com os
vestidos de noiva mais lindos que ela já vira. Deu um
passo adiante. O vestido à sua frente era um tomara-
que-caia. Claire espiou a etiqueta com o preço. Dizia
ESCADA US4.200.
Soltou-a imediatamente e virou-se para Meghann.
— Vamos embora.
Meg segurou-lhe o braço.
— Quero que você experimente os vestidos daqui.
— Não posso. Sei que você só está sendo você, Meg.
Mas... magoa um pouco. Eu trabalho num acampamento.
— Não quero repetir isso, Claire, então, por favor,
preste atenção. Eu trabalho 85 horas por semana, e meus
clientes pagam quase quatrocentos dólares a hora. Dinheiro
é uma coisa que eu tenho. Significaria muito para
mim comprar o vestido de noiva. As roupas que vimos de
manhã não são para você. Desculpe se acha que estou
sendo cruel e esnobe, mas é o que penso.
Antes que Claire pudesse responder, alguém exclamou:
— Meghann Dontess! Numa loja de noivas! Quem
diria?
Uma mulher alta, muito magra, usando um vestido
justo azul-marinho avançou na direção delas. O cabelo,
uma combinação perfeita de louro e branco, caía sobre o
rosto num corte à Meg Ryan.
— Oi, Risa — cumprimentou Meg, estendendo a
mão.
— E esta é a irmã caçula, certo?
Claire notou um leve sotaque, talvez russo, e disse:
— Eu sou Claire.
— E Meghann está deixando você se casar.
— Na verdade, ela foi contra.
Risa jogou a cabeça para trás e riu.
— É claro que ela foi contra. Já ouvi essa advertência
duas vezes. Em ambas eu deveria ter escutado, é claro,
mas o amor sempre vence.
Ela recuou, analisando Claire dos pés à cabeça.
— Você é linda — avaliou, afinal. —Tamanho 40 ou
42, imagino. Para você, penso nos clássicos: Prada, Valentino,
Armani, Vera Wang. Venha.
Ela virou-se e começou a afastar-se, volta e meia estendendo
o braço para pegar um vestido.
Claire olhou para Meghann.
— Armani? Vera Wang?
Ela sacudiu a cabeça, sem conseguir dizer “você não
pode fazer isso”.
— Não somos obrigadas a comprar nada — observou
Meghann. — Experimente. Só de farra.
Minutos depois Claire entrava num provador que era
maior do que seu quarto. Três espelhos gigantescos desdobravam-
se à frente. Havia uma pequena plataforma de
madeira no centro.
— Vá. Os vestidos estão aí dentro.
Risa empurrou-a de leve.
Claire entrou na cabine, onde diversos vestidos aguardavam-
na pendurados. O primeiro era um magnífico
Ralph Lauren de seda branca com corpete trabalhado em
rendas e bordados.
Claire tirou a calça jeans surrada e a camiseta. O vestido
caiu-lhe sobre os ombros como uma nuvem.
— Venha cá, linda. Queremos ver — chamou Risa.
Claire abriu a porta e saiu da cabine. Ouviram-se exclamações.
Risa gritou “Sapatos!” e saiu correndo.
Meg segurava alguns vestidos, os lábios entreabertos
num suspiro.
Claire não pôde deixar de sorrir. Subiu a plataforma
e olhou-se no espelho. Não era de admirar que Meghann
tivesse detestado os vestidos vistos pela manhã.
Risa retornou, sacudindo os sapatos de cetim.
— Calce.
Claire obedeceu e manteve-se imóvel.
— Acho que o tecido é fino demais, vocês não acham?
— perguntou.
Meghann franziu as sobrancelhas.
— Fino demais? Você está linda.
— Ele marca muito.
— Claire, é tamanho quarenta.
Depois disso Claire experimentou uma sucessão de
vestidos, cada qual mais bonito que o anterior. Sentia-se
uma princesa, e ter de recusar todos não estragava em nada
seu dia. Dava para ver que Meghann estava ficando
frustrada. Entregava-lhe pencas de vestidos.
Risa havia muito se voltara para outras clientes.
Por fim, Claire chegou à última peça da noite. Meghann
a escolhera. Um vestido branco elegante com corpete
ornado em contas e saia de tafetá esvoaçante. Claire
ainda abotoava as costas quando saiu da cabine.
Meghann manteve-se completamente calada.
Claire olhou para a irmã,
— Você não é de ficar quieta assim. É melhor eu tirar?
— Veja.
Claire suspendeu a saia do chão e subiu a plataforma.
Devagar, encarou o espelho.
A mulher que retribuiu seu olhar não era Claire Cavenaugh.
Não. Aquela mulher não havia abandonado a
faculdade estadual, não era mãe solteira e certamente não
gerenciava um acampamento. Aquela mulher chegava aos
lugares de limusine e bebia champanhe em taças delicadas.
Dormia em lençóis de linho suaves e sempre tinha um
passaporte válido. Aquela era a mulher que ela poderia ter
sido se tivesse feito faculdade em Nova York e estagiado
em Paris. Talvez fosse a mulher que ainda poderia se tornar.
Imaginou a cara de Bobby quando entrasse na igreja.
Bobby, que se ajoelhara ao lhe pedir que, por favor, fosse
sua mulher. Se ele a visse naquele vestido...
Meghann aproximou-se por trás dela, subiu a plataforma.
Lá estavam elas, lado a lado. As duas irmãs. Meghann
tocou o ombro nu de Claire.
— Nem ouse achar um defeito nesse vestido.
— Eu não vi o preço, mas...
Meghann rasgou a etiqueta.
— Nem vai ver.
Claire encarou a irmã.
— Você sabia. Escolheu a dedo.
Meg tentou não sorrir.
— É Vera Wang. Claro que eu sabia. Significa muito
para mim você ter me incluído no seu casamento.
— Nós somos irmãs — respondeu Claire, depois de
uma longa pausa. Era estranha aquela conversa. E vagamente
perigosa. — Obrigada pelo vestido. É o que... — a
voz falhou — ...eu sempre sonhei.
Meg finalmente sorriu.
— Não é só porque não acredito em casamento que
não posso planejar uma cerimônia de arrasar.
Risa entrou no provador.
— O Wang — murmurou, olhando para Meg. —
Você disse que seria a escolha dela.
— Um bom palpite.
— Ela está a personificação do amor. — Risa aproximou-
se de Claire. — Vamos precisar apertar um pouco
aqui, na altura do busto, não acha? — Ela começou a fazer
marcações com os alfinetes. — Vai ficar pronto a
tempo — prometeu ao terminar, e então se retirou às
pressas.
— Agora, que tal passarmos no Wild Ginger e levarmos
alguma coisa para comer no meu apartamento? —
propôs Meg.
— Alison...
— Está jantando no Zeke’s Drive-In, depois acompanhará
Sam e Bobby ao boliche.
Claire sorriu.
— Bobby vai ao boliche com meu pai e Alison? E
você não acredita no amor verdadeiro?
Na frente do Wild Ginger, Meghann estacionou em
fila dupla, então correu ao restaurante e voltou três minutos
depois com um saco de papel. Deixou-o no colo de
Claire, sentou-se no banco do motorista e seguiu para casa.
No apartamento, a vista era maravilhosa. O céu ametista
do fim de tarde tomava todas as janelas panorâmicas.
A Space Needle, enfeitada com cores de verão, ocupava
uma janela. O resto era o azul-escuro da Sound.
— Uau! — exclamou Claire.
— É, uma bela vista — assentiu Meghann.
Para onde quer que olhasse, Claire via a perfeição.
Ela avançou para a pequena mesa Biedermeier no canto.
Sobre a superfície lustrada havia um único porta-retratos.
Era uma fotografia de Claire e Meghann, tirada quando
eram crianças — talvez 7 e 14 anos —, abraçadas na beira
de um cais.
Por surpreendente que fosse, Claire achou triste
vê-las assim. Botou o porta-retratos no lugar e dirigiu-se à
cozinha.
— Sua casa é incrível.
— Casa. — Meg riu ao entregar a Claire uma margarita.
— É engraçado. Nunca penso nisto aqui dessa maneira,
mas claro que é. Obrigada.
A grande questão: aquilo não era casa; era uma bela
suíte de hotel, sem dúvida cinco-estrelas, mas fria, impessoal.
Meghann pegou os pratos.
— Tome. Vamos comer na varanda. — Elas levaram
pratos e copos para fora. — Teremos de nos sentar no
chão. O decorador escolheu a mobília mais desconfortável
que havia. Devolvi tudo e ainda não tive tempo de comprar
outra.
— Há quanto tempo você mora aqui?
— Sete anos.
Era uma noite linda. Estrelas por toda parte. Enquanto
as duas comiam, Claire olhava para Meghann,
lembrando-se dos tempos passados, quando eram grandes
amigas. Imaginou se isso poderia acontecer de novo. Se
fosse o caso, uma delas teria de dar o primeiro passo.
Claire decidiu correr o risco.
— Você deveria passar umas noites lá em casa enquanto
planeja o casamento.
— Jura?
Meghann ergueu os olhos, obviamente surpresa.
— Você deve estar ocupada demais.
— Não. Na verdade, estou numa entressafra de trabalho.
E preciso mesmo passar algum tempo em Hayden.
Aliás, tenho um compromisso lá amanhã. Com o consultor
de casamentos.
Grande erro, pensou Claire. Grande como o Incrível Hulk.
— Então está combinado. Você vai passar uns dias
lá em casa.
CAPÍTULO
SEIS
MEGHANN ESTACIONOU O CARRO, conferiu novamente
as coordenadas e olhou a rua. Caminhou duas
quadras e dobrou à direita na Azalea. Seu destino era fácil
de reconhecer: uma casa estreita em estilo vitoriano, pintada
de amarelo-canário com molduras roxas. Uma placa
pendurada na cerca dizia: PLANEJAMENTO DE EVENTOS
ROYAL. Havia flores cintilantes em torno das
letras cor-de-rosa.
Meghann quase desistiu. Não havia como alguém
que usava tinta cintilante preparar um casamento de classe.
Mas era o dia de Claire, e ela queria uma cerimônia
pequena, simples.
Meghann abriu o portão e entrou no jardim de conto
de fadas. Uma passagem de grama artificial conduzia à
varanda. À porta salmão, ela bateu.
Um homem alto, de cabelo louro, e bronzeado digno
da Califórnia, atendeu.
— Você deve ser Meghann Dontess. Eu sou Roy
Royal.
Ela tentou conter o riso.
— Não tem problema, pode rir. Tenho sorte de meu
segundo nome não ser Al. — Ele girou o quadril, apoiou a
mão ali. — Que sapatos lindos, Sra. Dontess! Não estamos
acostumados a ver Marc Jacobs em Hayden. Não
consigo imaginar o que a traz aqui.
— Sou irmã de Claire Cavenaugh. Vim planejar o
casamento.
Ele soltou um berro.
— Claire! Nossa! Bem, vamos entrar. Só o melhor
para Claire. — Ele a conduziu até a sala, ao sofá de veludo
cor-de-rosa. — Cerimônia na igreja episcopal, evidentemente.
Recepção no hotel Moose, bufê do Chuck Wagon.
— Isso é um casamento em Hayden?
— De primeira.
— E quanto custa um casamento aqui?
— Um bom casamento, de peso? Dois mil dólares.
Meg inclinou-se para a frente.
— Você lê a revista In Style, Roy?
— Você está brincando? De cabo a rabo.
— Então sabe como é casamento de celebridade.
Principalmente aquele tipo que chamam de “simples e elegante”.
— Simples em Hollywood quer dizer apenas muito,
muito caro, sem dama de honra, com recepção ao ar livre.
— Eu quero um casamento como esta cidade jamais
viu, Roy. Mas, e isso é importante, ninguém além de mim
e você pode saber. Você precisa virar mestre na frase “Estava
em promoção”. Fechado?
— Você é quem manda. — Ele sorriu e bateu palmas.
— Qual é o orçamento?
— Dinheiro não é problema.
Ele sacudiu a cabeça, ainda sorrindo.
— Coração, essa é uma frase que eu nunca ouvi. Vamos
ao trabalho.
JOE ESTAVA DEBAIXO do chassi de um antigo trator,
trocando o óleo, quando ouviu um carro se aproximar.
Esperou escutar a voz poderosa de Smitty, mas só houve
silêncio.
— Alguém aí? — gritaram. — Smitty?
Joe levantou-se. Um homem atarracado entrava na
oficina. Joe o reconheceu. Era Reb Tribbs, antigo lenhador
que havia perdido um braço no trabalho.
Joe baixou a aba do boné.
— Posso ajudá-lo?
— Minha caminhonete está morrendo. Acabei de
trazer esta bosta para o Smitty. Ele disse que tinha consertado.
Só vou pagar quando ela estiver andando.
— O senhor vai ter de acertar isso com o Smitty.
Mas, se quiser trazer a caminhonete para a oficina, posso...
— A gente se conhece? — Reb franziu a testa e aproximou-
se. — Joe Wyatt. — Ele soltou um assobio. —
É você, não é? Que cara-de-pau em voltar aqui! Ninguém
esqueceu o que você fez. Achei que estivesse na cadeia.
— Não. — Joe mantinha-se imóvel, ouvindo. Merecia
cada uma daquelas palavras.
— É melhor você dar o fora daqui. O pai dela não
vai querer saber que você voltou à cidade.
— Ainda não vi o pai dela.
— Claro que não. Não tem coragem.
— Chega, Reb.
Era a voz de Smitty. Ele encontrava-se à porta aberta
da oficina, trazendo numa das mãos um sanduíche e na
outra uma lata de Coca.
— Não acredito que você contratou esse desgraçado
— resmungou Reb. — Não trago mais minha caminhonete
aqui, se é ele que vai fazer o conserto.
— Posso perder você como cliente e ainda assim
sobreviver — rebateu Smitty.
Reb simulou uma cusparada, deu meia-volta e saiu.
Quando entrou na caminhonete, gritou:
— Você vai se arrepender, Zeb Smith. Gentinha
como ele não tem lugar nesta cidade.
Depois que o homem se foi, Smitty pôs a mão no
ombro de Joe.
— Gentinha é ele, Joe. Sempre foi. Ruim feito o diabo.
— Você vai perder clientes quando a notícia de que
estou aqui se espalhar.
— Não tem importância. A casa está paga. O terreno
está pago. E tenho uma casa alugada na cidade que rende
quinhentos dólares por mês.
— Mesmo assim, sua reputação é importante.
Smitty apertou o ombro dele.
— Na última vez em que Helga e eu tivemos notícia
de Philly, ele estava vivendo em Seattle. Debaixo de um
viaduto. Heroína. Todos os dias rezo a Deus para que alguém
lhe ofereça uma mão amiga.
Joe fez com a cabeça um sinal de que entendia. Não
sabia o que dizer.
Então Smitty falou:
— Preciso ir ao Costco. Acha que dá conta da oficina
por umas duas horas?
— Não se Reb servir de parâmetro.
— Não serve. — Smitty jogou as chaves para ele. —
Feche quando quiser. E saiu.
Joe concluiu o dia de trabalho, mas não conseguia
esquecer o incidente com Reb. As palavras do homem
pairavam à sua volta, envenenando o ambiente. Gentinha
como ele não tem lugar nesta cidade.
Quando fechou a oficina, sentiu-se vazio outra vez.
Trancou tudo e estava prestes a retornar ao chalé quando
olhou para o fim da rua. O néon de REDHOOK do bar
Mo’s chamou sua atenção. De repente ele queria entrar
naquela escuridão enfumaçada e beber até sentir a dor no
peito desaparecer.
Baixou a aba do boné sobre a testa e cruzou a rua.
Rezando para que nenhum conhecido estivesse ali, abriu a
velha porta de madeira.
MEGHANN NÃO PARTICIPAVA de um chá-de-panela
havia mais de uma década. Não fazia idéia de como se
misturar àquelas pessoas de cidade pequena, e a última
coisa que queria era destoar.
Depois do encontro de quatro horas com Roy, passara
mais uma hora na Too Many Cooks, onde comprou
para Claire — e Bobby, embora não pensasse nos dois
como casal — um processador de alimentos Cuisinart.
Estava cansada quando voltou à casa de Claire. Alegando
dor de cabeça, escapara cedo da mesa de jantar e
subira para o quarto. Mas agora, quase uma hora depois,
sentia-se melhor. Num olhar de relance, viu que o relógio
da mesinha-de-cabeceira marcava 18h40.
Abriu o armário, escolhendo um vestido preto simples.
Armani nunca falhava. Acrescentou uma meia-calça
também preta e sapatos de salto alto, e desceu. A casa estava
silenciosa.
— Claire?
Nenhuma resposta. Então ela viu o bilhete na mesa
da cozinha: “Querida Meg, Uma pena você estar passando mal.
Fique em casa e descanse. Muitos beijos, C.”
Claire e Bobby haviam-na deixado para trás. Ela
consultou o relógio: 19 horas. Não admirava que tivessem
saído. Eles eram os convidados de honra.
Ela pegou na bolsa o convite violeta. Dizia:
“Chá-de-Panela de Casais para Claire e Bobby, 19 horas.”
O mapa achava-se no verso.
Demorou menos de dez minutos para achar a casa
de Gina. Levando o presente debaixo do braço, subiu a
escada da varanda e bateu à porta. Você pode fazer isso. Pode
interagir com as amigas dela.
Ouviram-se passos, e a porta se abriu.
Gina surgiu à vista, um sorriso estampado no rosto.
Até ver Meghann.
— Ah. — Ela afastou-se para dar passagem. — Que
bom que você está se sentindo melhor!
Meghann olhou para Gina, que vestia calça cápri e
uma larga camiseta preta. Ótimo.
— Acho que me arrumei demais.
— Você está de brincadeira? Se não tivesse ganhado
sete quilos desde que Rex me abandonou, eu também teria
me arrumado. Venha. Você é meu par esta noite. — Gina
sorriu. — Achei que eu fosse segurar vela.
Tomou o braço de Meghann e conduziu-a pelo corredor
amplo. Elas finalmente alcançaram um salão —
combinação de sala de estar e sala de jantar —, que dava
vista para um belo jardim.
— Claire, olhe quem veio — disse ela, acima do
burburinho.
Todos pararam de conversar e se viraram. As pessoas
eram um mar de calças jeans e camisetas. À exceção de
Meghann, evidentemente.
Claire correu na direção dela, sorrindo. Estava linda
com uma calça de algodão azul-clara e um suéter branco
também de algodão com gola canoa. O cabelo louro, comprido,
estava preso.
— Estou tão feliz que você tenha conseguido vir!
Quando tenho dor de cabeça, fico horas sem poder me
mexer.
Meghann sentia-se como Jackie Onassis numa festa
de república de universitários.
— Eu não deveria ter vindo. Vou embora.
— Não, por favor — pediu a irmã. — Estou feliz
que você tenha vindo. De verdade.
Elas se flagraram num silêncio incômodo, até Gina
dizer:
— Aposto que você quer uma bebida.
Meghann assentiu:
— Com certeza.
— Venha à cozinha comigo — chamou Gina.
— Mas volte logo — pediu Claire. — As brincadeiras
vão começar.
MEGHANN AGORA sentia de fato dor de cabeça. Estava
sentada na beira do sofá, com os joelhos cerrados. Os
demais convidados sentavam-se esparramados uns contra
os outros — em pares, como na arca de Noé —, num círculo
formado no chão. Todos falavam ao mesmo tempo,
recordando momentos de uma vida que Meghann não
conhecia.
— Lembra quando Claire caiu do trampolim no acampamento
de Island Lake?
— E quando ela escondeu a régua preferida da professora
Testern?
— E quando ela telefonou para a Emergência porque
pegou Ali comendo pastilha de purificador de ar?
A época de escola, a época da diversão adolescente, a
época de Alison. Todas eram um grande mistério para
Meghann.
— Muito bem, pessoal, está na hora da primeira
brincadeira — anunciou Gina.
Ela saiu correndo para a cozinha e retornou com
uma tigela branca.
— Esse jogo se chama Verdade com M&M. Todos
pegam quantos quiserem.
Ela circulou pelo grupo, oferecendo os confeitos.
Meghann notou que não era a única pessoa desconfiada.
Ninguém pegou um punhado. Meg escolheu dois.
— Para cada M&M, vocês precisam dizer alguma
coisa sobre a noiva ou o noivo e fazer uma previsão para
o futuro.
Os homens resmungaram.
— Eu vou começar — disse Charlotte. — Peguei
três. Claire tem um sorriso lindo, e imagino que Bobby o
manterá em seu rosto. Ela é ótima cozinheira, então ele
vai estar gordo aos quarenta. Por último, ela odeia lavar
roupa, então Bobby vai aprender a gostar do visual encardido.
Claire riu mais alto que todos.
A brincadeira prosseguiu, e, a cada comentário, Meghann
ficava mais apreensiva. Até os maridos pareciam
saber mais do que ela sobre o dia-a-dia de Claire, e ela estava
apavorada de que, quando chegasse sua vez de fazer a
previsão, soltasse: “Imagino que ele vá lhe partir o coração.”
— Meg? Meg? — Era Gina. — Sua vez.
Meghann fitou a palma da mão. O suor havia transformado
os confeitos em borrões vermelhos.
— Eu peguei dois. — Ela tentou sorrir. — Claire é a
melhor mãe que conheço, então terá outro filho.
Claire sorriu para ela e encostou-se carinhosamente
em Bobby.
— Mais um, Meg.
Ela assentiu.
— Claire ama muito, mas não necessariamente com
facilidade, então imagino... — ela mal se deteve — ...que
isso seja para valer.
Quando ergueu os olhos, Claire tinha a testa franzida.
Meghann não sabia o que dissera de errado. Parecia-
lhe alegre e otimista, mas Claire estava à beira das lágrimas.
— Eu sou a última — falou Gina, quebrando o silêncio
repentino. — Só tenho um. Claire é completamente
desafinada. Então imagino que Bobby nunca a deixará
acompanhá-lo no palco.
Isso fez todos rirem e retomarem a conversa.
Por absurdo que fosse, Meghann sentiu o começo de
um choro. Levantou-se. Quando ninguém estava olhando,
saiu da festa e correu para o carro. Queria ir para casa, esperar
Claire e pedir desculpas pelo que quer que tivesse
dito de errado.
Então viu o bar.
Tirou o pé do acelerador. Sabia que, se entrasse ali e
tomasse um drinque — ou dois ou três —, acabaria por se
sentir melhor.
Estacionou o automóvel e entrou. O bar era como
uma centena de outros. O balcão estendia-se por todo o
lado direito. Viu pessoas acomodadas ao longo do balcão,
sentadas em bancos de madeira. Eram os beberrões.
Espalhadas à esquerda do salão havia mesas redondas,
a maioria delas ocupada. Perfeito. Meg caminhou até
uma parte vazia do balcão, onde um homem de aspecto
cansado enxugava algum líquido derramado. À sua chegada,
ele perguntou:
— O que você quer?
Ela sorriu.
— Uma taça de vinho branco. Vouvray, se tiver.
— Tem Inglenook e Gallo.
— Inglenook.
Ele afastou-se por um instante e retornou com a taça
de vinho. Ela bateu com o cartão de crédito Platinum no
balcão.
— Esta é só a primeira.
A jukebox deu um clique. Começou a tocar uma antiga
música do Aerosmith. Ela avançou para a mesa mais
próxima, onde um homem escrevia num caderno, copiando
trechos de um livro.
Aproximou-se.
— Posso me sentar aqui?
Quando ele levantou o rosto, ela viu que se tratava
de um rapaz de 21 ou 22 anos.
— Desculpe. O que a senhora disse?
Senhora.
— Pode me chamar de Meg.
— Você não me é estranha. É amiga da minha mãe?
Ela se sentiu como a velha de Titanic.
— Achei que nos conhecêssemos, mas me enganei.
Desculpe.
Seguiu para outra mesa. Quando se aproximava, uma
mulher sentou-se na cadeira vazia e beijou o homem.
Meghann virou-se para a esquerda e esbarrou num
homem desgrenhado, com aspecto de vagabundo, que
voltava do balcão.
— Desculpe — pediu. — Eu deveria ter ligado o
pisca-pisca antes de virar assim.
— Sem problema.
Ele voltou à sua mesa e sentou-se. Ela viu que ele
estava ligeiramente cambaleante.
Ficou ali parada, sozinha no meio do bar cheio. Essa
não seria sua noite. Teria de voltar ao confortável e aconchegante
quarto de visitas de Claire, deitar-se sozinha na
cama e passar a noite se revirando.
Olhou o vagabundo. Os ombros eram largos; a camiseta
preta esticava-se nas costas. Era ele... ou a solidão.
Ela dirigiu-se à mesa, parou ao lado.
— Posso me sentar?
Puxou uma cadeira e sentou-se de frente para o homem.
Ele ergueu a cabeça. Abaixo da franja grisalha, dois
olhos azuis a fitaram. Com surpresa, Meghann notou que
ele não era muito mais velho que ela, e era quase bonito,
de um jeito “forasteiro”, à Sam Elliott.
— O que quer que esteja procurando — disse ele —,
não vai achar aqui.
Ela começou a paquerar, ia dizer uma coisa engraçada
e impessoal, mas, antes que emitisse a primeira palavra,
deteve-se. Havia algo nele...
— Nós nos conhecemos? — perguntou, franzindo
as sobrancelhas. Ela se orgulhava de sua boa memória.
Era raro esquecer um rosto.
— As pessoas me perguntam isso o tempo todo. Um
rosto comum, eu acho.
Não, não era isso. Meg tinha certeza de que já o vira,
mas na verdade isso não importava.
— Você é daqui?
— Agora sou.
— Como ganha a vida?
— E pareço ganhar a vida? Eu me viro, só isso.
— É o que todos fazemos, na realidade.
— Olhe, moça...
— Meghann. Os amigos me chamam de Meg.
— Meghann. Eu não vou levá-la para casa. Está claro?
Isso a fez sorrir.
— Não me lembro de ter lhe pedido que me levasse
para casa. Você está tirando conclusões precipitadas.
— Desculpe. Estou sozinho há algum tempo. Já não
sei mais ser uma boa companhia.
O modo de falar revelava instrução.
Ela aproximou-se, analisando-o. Gostou do rosto.
— E se eu realmente quisesse ir para casa com você?
Ele levou uma eternidade para responder.
— O que fizéssemos não significaria nada.
A voz era tensa. Ele parecia assustado.
De repente ela sentiu o frisson da caça. Encostou o
indicador no dorso da mão dele.
— E se eu dissesse que isso não tem importância?
— Eu acharia triste.
Ela recolheu a mão, tocada pela resposta. Sentia-se
subitamente transparente, como se aqueles olhos azuis
enxergassem sua alma.
— Talvez pudéssemos apenas nos ajudar a atravessar
esta noite.
Ele se pôs de pé rápido; a cadeira balançou e quase
caiu.
— Eu moro no fim da rua.
— Vou com você — foi tudo o que ela disse.
JOE SENTIA aquela mulher a seu lado, o calor do
corpo, a maneira como acidentalmente a mão dela volta e
meia tocava a sua.
Pare com isso agora, pensou. Vire-se para ela e diga: Foi
um erro, desculpe. Mas continuou andando. De repente, estava
à frente do chalé. Eles tinham caminhado três quadras
sem dizer nada. Joe não sabia se devia se sentir grato
por isso ou não.
— É aqui que estou morando agora — falou ele, um
tanto tolamente, ou pelo menos foi o que achou.
— Agora, é?
Ele destrancou a porta e abriu caminho para deixá-la
passar.
Ela avançou para a escuridão.
Ele a seguiu, mantendo as luzes apagadas de propósito.
Havia fotografias de Diana por toda parte. Ele não
queria explicar por que vivia desse jeito, não para aquela
mulher de vestido sofisticado e jóias caras de ouro e platina.
Aliás, ele não queria falar nada.
Foi à cozinha e pegou algumas velas. Sempre deixava
à mão para as tempestades, quando acabava a energia elétrica.
Ainda sem nada dizer, ele as levou para o quarto e as
dispôs onde podia, então acendeu uma a uma. Quando
acabou, deu meia-volta e lá estava ela, à beira da cama.
Ele soltou um suspiro abafado. Ela era linda. Cabelo
negro, pele clara, olhos verdes. O que fazia ali em sua
companhia? Desde Diana ele não saíra com nenhuma
mulher.
Ela aproximou-se, balançando um pouco os quadris.
Ele quis dizer “Saia daqui”, mas puxou-a. Estava
trêmulo.
— Você está bem? — perguntou ela.
Ele não pensou, não respondeu, apenas carregou-a
no colo para a cama.
Nessa noite, pela primeira vez em muitos anos, Joe
Wyatt fez amor com uma mulher e dormiu abraçado com
ela.
Quando acordou, estava sozinho de novo.
CLAIRE VOLTOU a pousar a cabeça no travesseiro.
— Você deve me amar mesmo para me beijar antes
de eu escovar os dentes.
Bobby deitou-se de lado. O rosto bonito tinha marcas
de sono.
— Você ainda duvida, não é?
— Não. Só prove que Meg está errada. Nada vai
deixá-la mais irritada.
— Ela vem se esforçando, sabia?
Claire sentou-se.
— Não acredito que você vai defendê-la. Ela disse
que eu estava fazendo uma bobagem ao me casar com
você.
Ele abriu aquele sorriso lento que sempre a deixava
bamba.
— Amor, você não pode usar isso contra ela. Sua
irmã só está tentando proteger você.
— “Controlar” me parece melhor.
— Venha cá — chamou ele.
Ela inclinou-se para a frente e os dois se beijaram.
— Agora estou conhecendo você, Claire Cavenaugh-
que-em-breve-será-Austin — sussurrou ele contra os
lábios dela. — Você teve uma dor de cabeça depois da
confusão do vestido de noiva e outra ontem à noite depois
que ela saiu cedo da festa. Quando Meghann a magoa,
você diz que não liga e começa a tomar aspirina. Já passei
por isso, amor. Sei que o importante é que ela é sua
irmã. A única que você tem.
— Ninguém mexe comigo como Meghann. Ela tem
o dom de dizer exatamente a coisa errada.
— É. Meu pai era assim. Nunca conseguimos nos
entender. Agora ele não está mais aqui, e eu gostaria de ter
tentado mais.
— Tudo bem, Sigmund Freud. Vou tentar falar com
ela. De novo.
Claire desceu para preparar o café. Quando ele estava
pronto, serviu-se de uma xícara e dirigiu-se à varanda
dos fundos.
O balanço de madeira parecia saudá-la. Ela sentou-se
ali, balançando, contemplando a curva prateada do rio que
demarcava a propriedade.
A porta de tela abriu e bateu. Meghann surgiu na varanda.
Usava uma blusa preta franjada e uma calça jeans de
boca larga. O cabelo solto caía-lhe às costas numa profusão
de cachos. Ela estava bonita.
— Bom dia.
Claire jogou uma manta de lã sobre as pernas, escondendo
a calça de moletom esfarrapada que havia vestido.
— Quer panqueca?
Meg sentou-se na espreguiçadeira que ficava de
frente para o balanço.
— Não, obrigada. Ainda estou tentando digerir o
bolo de ontem à noite.
— Você saiu cedo da festa.
— Foi um belo chá-de-panela. Gina tem um senso
de humor incrível.
— Tem, sim.
— Deve ser difícil para ela acompanhar seu casamento
tão pouco tempo depois de um divórcio.
Claire assentiu.
— Ela está enfrentando uma barra.
— É sempre terrível descobrir que nos casamos com
o homem errado.
— Eles ficaram 15 anos casados. Só porque se separaram,
não significa que ele era o homem errado.
Meg encarou-a.
— Eu diria que significa exatamente isso.
Claire tomou um gole do café. Achou melhor esquecer
o assunto, fazer o que sempre fizera com relação a
Meg: calar a boca e fingir que aquilo não a havia magoado.
Então lembrou-se da conversa com Bobby. Devagar, disse:
— Você não respondeu à minha pergunta: por que
saiu cedo do chá-de-panela?
— Não era cedo. E os presentes?
— São maravilhosos. Aliás, obrigada pelo Cuisinart.
Mas por que saiu cedo?
Meg fechou os olhos e abriu-os lentamente. Parecia
assustada.
— Foi a brincadeira do M&M. Eu tentei ser bacana e
participar, mas mal conheço você e acabei dizendo alguma
coisa errada. Ainda não sei o que foi.
— Você disse que eu amava muito, mas não necessariamente
com facilidade. Acho que não é verdade, só
isso, e feriu meus sentimentos.
— É verdade com relação a mim — argumentou
Meg.
Claire inclinou-se para a frente. Elas na verdade estavam
tateando algo importante.
— Às vezes é difícil amar você, Meg.
— Pode acreditar, eu sei.
Ela riu, um riso amargo, rouco.
— Você julga as pessoas, julga a mim, de maneira
muito dura. Suas opiniões são açoites. Todas deixam
marcas de sangue.
— As pessoas, tudo bem. Mas você? Eu não julgo
você.
— Eu abandonei a faculdade. Nunca saí de Hayden.
Tive uma filha com um homem que depois descobri ser
casado. Agora estou me casando com um homem que já
se divorciou três vezes e sou burra demais para me proteger
com um acordo pré-nupcial.
Meg franziu a testa.
— Eu joguei isso tudo na sua cara?
— Não consigo falar com você sem me sentir um
fracasso. E, evidentemente, você é rica e perfeita.
— Essa parte é verdade. — Meg viu que sua tentativa
de brincadeira não funcionou. — Minha analista acha
que sou controladora.
— Grande novidade. Você é muito parecida com
mamãe, sabia? As duas precisam estar sempre no comando.
— A diferença é que ela é psicótica. Eu sou neurótica.
Mas Deus sabe que ela passou às filhas seu azar com
os homens. — Meghann olhou para a irmã. — Será que
você quebrou a maldição?
O legado da mãe para Claire era a certeza de que,
mais cedo ou mais tarde, o amor nos abandonava. Meg
herdara algo totalmente diverso: não acreditava nem um
pouco no amor.
— Quebrei, Meg. Sinceramente.
Meg sorriu, mas havia tristeza no olhar.
— Eu gostaria de ter sua convicção. Você deu sorte
de ter Sam.
Claire não pôde deixar de pensar no verão em que
seu pai acolhera Meg. Fora um pesadelo. Meg e Sam brigavam
aos berros sobre quem amava mais Claire, sobre
quem sabia o que era melhor para ela. A própria Claire
dera fim à pior das batalhas. Bradara a Meg: Pare de gritar
com meu pai. Foi a primeira vez que viu a irmã chorar. No
dia seguinte Meg tinha ido embora.
— Ele quis ajudar você também — observou Claire,
em voz baixa.
— Ele não era meu pai.
As duas ficaram em silêncio depois disso. Então
Claire aproximou-se da irmã.
— Eu gostaria que você cuidasse de Alison para mim
na semana que vem. Enquanto Bobby e eu estivermos fora,
em lua-de-mel.
— Achei que não fossem sair em lua-de-mel.
— Meu pai insistiu. O presente de casamento dele
foi uma semana em Kauai.
— E você quer que eu cuide de Ali?
— Seria importante para mim. Ela precisa conhecer
você melhor.
Meghann parecia nervosa.
— Você confiaria em mim?
— Claro.
Meg recostou-se. Um sorriso trêmulo insinuou-se em
seus lábios.
— Tudo bem. Claire riu.
— Não vá ensiná-la a saltar de bungee-jump.
— Então pára-quedas está fora de cogitação.
Elas ainda riam quando o telefone começou a tocar.
Claire levantou-se e correu para dentro de casa.
— Alô?
— Um momento, por favor. Eliana Sullivan vai falar.
Claire ouviu Meg aproximar-se por trás dela. Sussurrou:
— É mamãe.
— Vai ser divertido — imaginou Meg.
— Alô — disse a mãe. — Alô.
— Oi, mamãe. Sou eu, Claire.
A mãe soltou aquele riso sensual que havia desenvolvido
com o passar dos anos.
— Acho que sei para qual das minhas filhas eu telefonei.
— Claro — respondeu Claire, embora a mãe confundisse
as duas o tempo todo.
— Querida, o mordomo disse que você deixou um
recado para mim. O que foi?
Claire detestava o falso sotaque sulista.
— Liguei para dizer que vou me casar.
— Minha nossa! Quem é ele?
— Você vai adorá-lo, mamãe. É um bom rapaz do
Texas.
— Ganha bem?
— Isso não é importante para mim.
— Pobre, não é? Bem, vou lhe dar um conselho,
querida. É mais fácil se casar com homem rico, mas que
assim seja. Parabéns. Quando é o casamento?
— No sábado, dia 23.
— De junho? Sábado que vem?
— Você saberia há mais tempo se tivesse retornado
minha ligação.
— Eu estava representando Shakespeare no parque.
Aliás, com Charlie Sheen. Você viu meu retrato na People?
— Não. Uma pena.
— Bem, sábado vai ser difícil para mim, querida.
Que tal a primeira semana de agosto?
Claire impacientou-se.
— Mamãe, já mandamos os convites. É tarde demais
para mudar a data.
— A que horas, no sábado?
— A cerimônia é às 19 horas. A recepção acontece
em seguida.
A mãe suspirou.
— Sábado. Há três meses tenho hora marcada com
José, o cabeleireiro. Talvez ele possa me atender antes.
Para Claire, já bastava.
— Preciso ir, mamãe. Estarei na igreja episcopal de
Hayden às 19 horas de sábado. Espero que você possa vir,
mas vou entender se estiver ocupada demais.
— Responda rápido, querida. Acha que esse vai durar?
Eu detestaria abrir mão da hora marcada no salão para...
— Preciso ir, mamãe. Tchau.
— Certo, querida. Eu também. E parabéns. — Obrigada.
Tchau.
Claire olhou para Meghann.
— Sábado não é um bom dia para ela. Hora marcada
com José, o cabeleireiro.
— Nós deveríamos ter mandado o convite depois da
festa.
— Não sei por que continuo esperando algo diferente
dela.
Meg sacudiu a cabeça.
— Até uma mãe jacaré fica perto dos ovos.
— Mamãe faria uma omelete.
Ambas riram.
CAPÍTULO
SETE
A TARDE DE SEXTA-FEIRA estava nublada e fria. Caía
uma chuva fina quase invisível a olho nu.
Claire passou o resto do dia fingindo trabalhar. Aos
35 anos, encontrava-se velha demais para se casar pela
primeira vez. Como poderia estar fazendo a coisa certa?
Mas, sempre que essas preocupações ameaçavam dominá-
la, ela entrava num cômodo ou abria uma porta e via
Bobby.
— Oi, amor — dizia ele. — Amo você.
Com essas poucas e preciosas palavras, Claire voltava
a respirar mais fácil por uma hora.
Por volta das 15 horas, o pai conduziu-a de volta para
casa. Pegou no bolso uma caixinha preta e abriu-a.
Dentro havia um anel de diamante com aro de platina.
— É da sua avó Myrtle. Ela queria que fosse seu. —
Sam tomou a mão dela. — Eu não podia deixar minha filha
se casar com uma aliança de papel-alumínio.
Ela experimentou o anel. Era como se a jóia tivesse
sido feita sob medida. Ela abraçou-o.
— Obrigada, papai.
Depois de amanhã ela seria uma mulher casada. Outro
homem se tornaria o centro de sua vida. Ela seria a
mulher de Bobby dali em diante, não a filhinha de Sam
Cavenaugh.
Quando o pai recuou, havia lágrimas em seus olhos,
e ela sabia que ele pensara o mesmo.
— Sempre — sussurrou ela.
Ele fez com a cabeça que entendia.
— Sempre.
MEGHANN ESTAVA AMARGAMENTE arrependida
por haver concordado em deixar Gina planejar o ensaio
do jantar. Foram momentos de puro inferno.
— Você está aqui sozinha?
— Onde está seu marido?
— Você não tem filhos? Bem, sorte a sua. Às vezes
eu gostaria de dar os meus.
Meghann sabia que as amigas de Claire estavam tentando
incluí-la, principalmente as Bluesers, mas, quanto
mais tentavam torná-la parte do grupo, mais alienada ela
se sentia. Meg sabia conversar sobre muitas coisas: política,
a situação do Oriente Médio, Wall Street. O que não
sabia era conversar sobre coisas de família. Coisas de criança.
Ela estava perto da lareira, na casa de Gina. Do outro
lado da sala, Claire comia batatas fritas e conversava
com a anfitriã. Enquanto Meghann observava a cena,
Bobby surgiu por trás de Claire e cochichou algo em seu
ouvido. Ela o abraçou. Eles se encaixavam como peças de
um quebra-cabeça, à perfeição.
— Muito bem, pessoal — anunciou Gina. — Chegou
a hora da segunda parte da noite.
Fez-se silêncio. Gina sorriu.
— Hector vai abrir o boliche só para nós! Vamos sair
em 15 minutos.
Boliche. Sapatos alugados. Camisas de poliéster.
Meg atravessou a sala e parou ao lado de Claire,
pousando a mão com delicadeza em seu ombro.
Claire virou-se. Estava tão feliz que isso deixou Meghann
comovida. Ao ver a irmã mais velha, ela riu.
— Deixe-me adivinhar. Você não gosta de boliche.
— Ah, adoro. De verdade. Tenho até uma bola. -Sei.
— Infelizmente preciso cuidar de alguns detalhes de
última hora para amanhã. E quero acordar cedo.
Claire assentiu.
— Eu entendo, Meg. Mesmo.
— Bem, tchau. Vou me despedir de Gina.
Quinze minutos depois Meghann estava no carro,
acelerando em direção ao centro da cidade. As bem-intencionadas
amigas da irmã tinham conseguido acentuar o
vazio de sua vida.
Ela viu o letreiro do bar Mo’s Fireside e pisou no
freio. Não era uma boa idéia, ela sabia. Só tinha encrenca
ali. E ainda assim... Estacionou o veículo e entrou.
Havia homens em todos os bancos, em todas as mesas.
Algumas mulheres espalhavam-se entre a clientela. Ela
circulou pelo lugar, audaciosamente analisando cada um
dos homens.
Já havia percorrido o salão inteiro e retornado à porta
quando entendeu por que estava ali.
— Joe — murmurou, surpresa. Ela sinceramente
não se dera conta de que o queria.
Isso não era bom.
Saiu do bar e encostou-se no carro, olhando o pequeno
chalé no fim da rua. Havia luz nas janelas.
— Não — disse. Não faria isso, mas ainda assim
avançou, atravessando a rua e entrando no jardim, que tinha
cheiro de jasmim e madressilva. À porta, deteve-se,
perguntando-se o que estava fazendo.
Então bateu. Ninguém atendeu.
Girou a maçaneta e entrou. O chalé estava na penumbra.
O fogo crepitava na lareira.
— Joe?
Com cuidado, ela avançou. Nenhuma resposta.
Um arrepio correu-lhe o corpo. Ela sentia que ele
estava ali, encovado na escuridão como um animal ferido,
à espreita.
Começou a voltar-se para a porta quando viu as fotografias
nas mesas, no consolo da lareira. Em toda parte.
Aturdida, caminhou de um canto a outro investigando os
retratos. Eram todos da mesma mulher, uma loura com
um tipo de elegância à Grace Kelly. Pegou um dos porta-
retratos.
— Você sempre invade a casa dos outros e mexe nas
coisas?
Meghann teve um sobressalto. Os dedos ficaram
dormentes por um instante, e o porta-retratos estilhaçou-
se no chão. Ela deu meia-volta, olhando para ele.
— Joe? Sou eu, Meghann.
— Eu sei que é você.
Ele estava sentado no canto da sala, com uma das
pernas dobrada, a outra estendida. A luz do fogo iluminava-
lhe o cabelo grisalho. Havia tristeza nele, o que a fez
imaginar se ele estivera chorando.
— Eu não deveria ter entrado. Ou mesmo vindo aqui
— disse ela, constrangida. — Desculpe.
Avançou para a porta.
— Beba comigo.
Devagar, ela o encarou.
— O que você gostaria de tomar?
— Martíni.
— Tem uísque. E uísque.
Ela sentou-se no sofá puído de couro.
— Aceito um uísque.
Joe levantou-se, atravessou a sala. Ela agora via por
que ele estivera tão invisível: usava uma calça jeans e camisa
preta.
Meghann ouviu o barulho do líquido vertido, depois
o chacoalhar do gelo. Enquanto ele servia o drinque, ela
corria os olhos pela sala. Todas aquelas fotografias da sósia
de Grace Kelly deixavam-na pouco à vontade.
— Aqui.
Ela ergueu os olhos. Ele estava à sua frente.
— Obrigada — sussurrou Meg.
Ele bebeu direto da garrafa e limpou a boca com o
dorso da mão.
— De nada.
Não se afastou, apenas ficou ali parado, encarando-a.
Estava novamente cambaleante.
— Você está bêbado — comentou ela, dando-se
conta disso afinal.
— Hoje é 22 de junho.
Ele sentou-se ao lado dela.
— Você tem alguma coisa contra o dia 22?
Ele voltou o olhar para as fotografias dispostas numa
mesinha.
— Quem é ela, Joe?
A voz era suave, mas, no silêncio da sala, pareceu alta
demais, íntima demais.
— Minha mulher, Diana.
— Você é casado?
— Era. Ela... me deixou.
— No dia 22 de junho.
— Como você sabe?
— Entendo de divórcios. As datas de aniversário são
um inferno.
Meghann fitou os olhos tristes e tentou não sentir
nada. Era melhor assim, mais seguro. Sentada ali, porém,
ao lado dele, perto o bastante para cair em seus braços, ela
sentiu-se... carente. Súbito, queria alguma coisa de Joe, alguma
coisa além de sexo.
Ele tocou o rosto dela.
— Não posso lhe oferecer nada, Meghann.
A maneira como ele proferiu seu nome, com tristeza
e lentidão, provocou-lhe um arrepio. Ela queria dizer que
não esperava nada dele, mas não conseguia achar as palavras.
— Não tem problema.
— Você deveria querer mais.
— Você também.
De repente ela sentiu-se frágil.
— Estamos conversando muito. Venha me beijar.
Na lareira, uma lenha caiu num baque surdo. Centelhas
invadiram a sala.
Com um gemido, ele puxou-a para os seus braços.
CAPÍTULO
OITO
NA MANHÃ SEGUINTE o tempo estava perfeito em
Hayden. O sol reluzente ia alto no céu azul. Uma brisa leve
e refrescante soprava por entre as árvores, fazendo
música nas folhas verde-escuras dos bordos. Às 17 horas,
Claire estava de banho tomado, pronta para começar a
vestir-se.
Alguém bateu à porta.
— Entre — disse ela.
Era Meghann.
— Achei que talvez pudéssemos nos vestir juntas. —
Como Claire não respondeu, Meghann adiantou-se: —
Você deve achar isso uma bobagem.
— Pare. Acho que seria ótimo.
O cabelo de Meghann encontrava-se preso num belo
coque.
— Seu cabelo está lindo — elogiou Claire.
— Posso fazer o seu, se quiser.
— É mesmo?
— Claro. Eu sempre fazia quando você era pequena.
Claire atravessou o quarto e ajoelhou-se em frente à
cama. Meghann posicionou-se atrás dela, começou a escovar
o cabelo. Claire fechou os olhos. Era uma sensação
muito boa.
— Pronto. Acabei.
Claire ficou de pé e foi ao banheiro olhar-se no espelho.
O cabelo louro estava frouxamente preso num coque
elegante. O penteado salientava os malares e deixava
os olhos maiores. Ela nunca estivera tão bonita. Nunca.
— Adorei! — exclamou.
Meghann sorriu, um sorriso encantador.
— Jura?
De repente a porta foi aberta.
— Mamãe! — Ali entrou correndo no quarto, já usando
o belo vestido de seda azul-claro de dama de honra.
— Rápido, mamãe, venha ver.
Ela tomou a mão de Claire e arrastou-a para a porta.
Claire e Meghann seguiram Ali escada abaixo. Lá fora,
Sam e Bobby encontravam-se ao redor de um conversível
vermelho.
Claire aproximou-se, desconfiada. Foi quando notou
o laço cor-de-rosa na capota.
— O que é isso?
O pai entregou-lhe um cartão. Dizia: “Queridos Claire
e Bobby, muita sorte no grande dia. Ainda pretendo aparecer. Beijos
e abraços, Mamãe.”
Meg aproximou-se de Claire, pôs a mão em seu ombro.
— Deixe-me adivinhar: o presente de casamento de
mamãe.
Claire suspirou.
— Só mamãe mesmo para me dar um carro de dois
lugares. O que devo fazer com Ali? Pedir que nos siga
correndo?
Então riu. O que mais podia fazer?
CLAIRE ESTAVA NO VESTIÁRIO da pequena igreja
episcopal, na rua Front. Os momentos anteriores haviam
sido agitados. As Bluesers entravam e saíam a cada minuto,
soltando exclamações a respeito do vestido, e Meghann
ocupava-se em conferir detalhes, com uma prancheta
na mão. Mas agora o lugar estava tranqüilo afinal.
Claire achava-se de frente para o espelho, sem conseguir
acreditar que a mulher ali refletida era ela. O vestido assentava-
lhe perfeitamente, caindo ao chão numa cascata
de seda branca.
Alguém bateu à porta.
Era Meghann.
— A igreja está lotada. Você está pronta?
Claire engoliu em seco.
— Estou.
Meghann pegou a mão da irmã e conduziu-a à porta
ainda fechada da igreja. Sam já estava a postos, esperando
com Ali.
— Ah, Ali, você está uma princesa! — exclamou
Claire, agachando-se para beijar a filha.
Alison riu, rodopiando.
— Adorei meu vestido, mamãe.
Atrás da porta a música começou. Chegara a hora.
Meghann inclinou-se para Alison.
— Está pronta, querida? Ande bem devagar, como
nós ensaiamos, certo?
Ali pulava no chão.
— Estou pronta.
Um instante depois o órgão começou a tocar “Lá
vem a noiva”, e Meghann abriu as portas.
Claire deu a mão ao pai, e ambos seguiram Ali pelo
corredor. No fim dele, Bobby, vestido com um smoking
preto, aguardava sorridente. O pai parou, virou-se para
Claire. Ergueu o véu e beijou-lhe o rosto, afastando-se em
seguida, e de repente Bobby estava ao lado dela, tomando
seu braço, levando-a para o altar.
Ela olhou para ele, amando-o tanto que chegava a se
assustar.
— Não tenha medo — murmurou ele, apertando sua
mão.
O padre Tim começou a falar, mas Claire não conseguia
ouvir nada além das batidas do seu coração.
Quando chegou a hora de dizer sua parte, desesperou-se,
achando que não se lembraria. Mas se lembrou. Ao responder
“Aceito”, era como se o coração se expandisse
dentro do peito. Nesse momento, parada na frente dos
amigos e da família, e olhando nos olhos de Bobby, ela
começou a chorar.
O padre Tini sorriu para eles e disse:
— Eu os declaro marido e...
A porta da igreja foi aberta com um estrondo.
Uma mulher ocupava o vão da porta, de braços estendidos,
com um cigarro na mão. Usava um vestido de
lamê prateado que lhe revelava as curvas. Atrás dela havia
pelo menos uma dezena de pessoas: guarda-costas, repórteres
e fotógrafos.
— Não acredito que começaram sem mim.
Houve comoção na igreja à medida que a multidão a
reconhecia.
Alguém sussurrou:
— É ela.
Bobby não fazia idéia do que se passava. Claire suspirou
e enxugou os olhos. Deveria ter esperado por isso.
— Bobby, você está prestes a conhecer minha mãe.
— EU VOU matá-la!
Meghann levantou-se e avançou para o corredor.
— Esta é minha outra filha.
A mãe abriu os braços. Os flashes espocaram, ofuscantes.
Meghann agarrou o braço da mãe e puxou-a para
fora. Os paparazzi seguiram-nas, todos falando ao mesmo
tempo.
Pela porta agora fechada Meghann ouviu a segunda
tentativa do padre Tim de declará-los marido e mulher.
Um instante depois aplausos ecoaram na igreja.
Meghann puxou a mãe para o vestiário e trancou a
porta.
— O que foi? — resmungou a mãe, obviamente
querendo franzir a testa, sem conseguir. Botox demais,
sem dúvida.
Um cachorro latiu. A mãe conferiu a caixa que trazia
nos braços.
— Está tudo bem, amor. Meggy só está fazendo uma
tempestade em copo d’água.
— Você trouxe o cachorro?
A mãe pôs a mão no peito.
— Você sabe que Elvis detesta ficar sozinho. Agora,
por que me expulsou do casamento da minha própria filha?
Meghann teve um acesso de cólera.
— Hoje era o dia de Claire ser a estrela. Entende,
mamãe? O dia dela. E você chegou no momento de glória
e roubou o espetáculo. O que estava fazendo aqui fora,
esperando pelo momento perfeito de fazer sua entrada?
A mãe desviou o olhar por um instante, mas foi o
suficiente para confirmar a suspeita de Meghann.
— Ah, mamãe — disse ela, sacudindo a cabeça —,
que coisa baixa. Até para você. E quem é essa gente toda?
Você acha que precisa de guarda-costas em Hayden?
— Meus fãs estão por toda parte. Às vezes me assustam.
Meghann riu.
— Poupe a representação para a revista People. Agora
você e eu vamos à festa para dizer a Claire o quanto estamos
felizes por ela. Você pode levar um fotógrafo, mas
nada de guarda-costas e cachorro. Essas regras não são
negociáveis.
Elas ficaram ali paradas, a centímetros de distância
uma da outra, encarando-se.
Então a mãe riu. De verdade, dessa vez: não o riso
felino e sensual que usava em Hollywood, mas a gargalhada
grave com a qual havia nascido.
Meghann sorriu contra a própria vontade. Como
sentir raiva de uma mulher tão superficial como a mãe?
Ela abraçou Meghann.
— Então, nós vamos ou não vamos a essa recepção?
Meu vôo é à meia-noite. Preciso estar no SeaTac às 23
horas.
— Isso significa que você tem de sair daqui por volta
das 20h30. Vamos. Claire deve estar achando que matei
você.
CLAIRE ERA o CENTRO de uma multidão entregue a
risos, conversas e congratulações. Jamais se sentira tão
especial, tão amada em sua vida. Bobby enlaçou-a pela
cintura, puxou-a para si.
— Já falei que você está linda?
— Já.
— Quando você apareceu na igreja, fiquei sem ação.
Abraçados, eles acompanharam os convidados do
casamento ao parque Riverfront. À frente deles, as pessoas
pararam. Como numa coreografia, criaram um corredor
escuro.
À volta do casal, os convidados batiam palmas e gritavam.
Uma chuva de arroz pareceu cair do céu; pinicava
seus rostos e estalava debaixo de seus pés.
— Oh, meu Deus! — exclamou Claire.
Ela não conseguia acreditar em seus olhos. Uma enorme
tenda branca havia sido montada no parque. Milhares
de luzinhas de Natal entrelaçavam-se nos mastros e
no teto improvisado. Claire viu as mesas dispostas sob a
tenda. Reluzentes toalhas prateadas forravam cada uma
delas. No canto, três homens vestidos de smoking branco
tocavam uma inesquecível canção de amor da Segunda
Guerra.
— Uau! — exclamou Bobby.
A banda começou a tocar uma versão bonita de
“Isn’t it romantic?”.
— Gostaria de dançar, Sra. Austin?
Claire deixou-se conduzir à pista de dança. Lá, com
todos os amigos e parentes olhando, bailou com o marido.
Quando a música acabou, Claire avistou a irmã. Ela
seguia a mãe, que se dedicava a cumprimentar as pessoas.
— Venha, Bobby — chamou ela, puxando-o para
fora da pista de dança.
Eles alcançaram o bar, onde a mãe deleitava um pequeno
grupo de admiradores com histórias sobre a vida a
bordo do foguete Star Seeker.
A mãe percebeu a aproximação da filha.
— Claire! — saudou-a, estendendo os braços. —
Desculpe pelo atraso, filha. Vida de atriz é uma loucura.
Mas você era a noiva mais bonita que já vi.
Elas entreolharam-se. Nos olhos castanhos da mãe,
Claire entreviu uma alegria genuína, e isso a comoveu.
— Agora — disse a mãe, rapidamente —, onde está
meu novo genro?
— Estou aqui, Sra. Sullivan.
— Pode me chamar de Ellie. É como os parentes me
chamam. — Ela aproximou-se dele, assobiando baixo. —
Você é bonito o bastante para Hollywood.
Era o maior elogio da mãe.
— Obrigado.
— Se sua música tiver metade da beleza do seu rosto,
você vai estar nas rádios em pouquíssimo tempo. Venha.
Conte-me sobre sua carreira enquanto dançamos.
— Seria uma honra dançar com minha sogra.
Lançando para Claire um sorriso breve, ele se foi.
Claire virou-se afinal para Meghann.
— Você está bem?
— Mamãe trouxe o cachorro. Sem falar na comitiva
de guarda-costas.
— Ela poderia ser subjugada pelo exército de fãs a
qualquer momento — brincou Claire, com seu melhor
sotaque sulista.
Meghann riu.
— Ela precisa ir embora às 20h30. Acho que deveríamos
rezar em agradecimento.
A banda deu início a uma interpretação comovente
de “As time goes by”.
Claire olhou para a irmã, tentando achar palavras que
condissessem com sua emoção.
— Este casamento... — começou, mas a voz falhou.
Ela respirou fundo. — Você gastou uma fortuna.
— Não. — Meghann sacudiu a cabeça. — Quase
tudo estava em promoção. As luzes de Natal são minhas.
A tenda...
Claire tocou os lábios da irmã, calando-a.
— Estou tentando agradecer.
— Ah.
— Eu adoraria que...
Ela não sabia nem como expressar aquele desejo súbito.
— Eu sei — disse Meghann. — Talvez as coisas
possam ser diferentes agora.
— Você era minha melhor amiga — murmurou
Claire. — Senti falta disso quando você me...
Abandonou. Ela não podia dizer a palavra difícil, não
agora.
— Também senti saudade.
— Mamãe! Mamãe! Venha dançar com a gente.
Claire deu meia-volta e viu o pai e Alison a poucos
metros.
— Acho que é de praxe a noiva dançar com o pai —
sugeriu ele, sorridente, estendendo a mão calejada.
— E com a filha! Vovô vai me botar no colo.
Alison pulava de alegria.
Claire entregou a taça de champanhe para Meghann,
que disse:
— Vá.
Ela avançou para a pista de dança. Quando chegaram
ao centro da multidão, o pai agachou-se e pegou Alison.
Os três abraçaram-se, balançando suavemente ao ritmo de
“The very thought of you”.
Claire recordaria essa noite para sempre e se lembraria
de como sua vida era boa, de como ela amava e era
amada. Meghann lhe dera isso.
MEGHANN CONTEMPLAVA o aveludado jardim negro
do parque Edgar Peabody Riverfront. Atrás dela, a
banda guardava os equipamentos. Apenas alguns convidados
ainda estavam presentes. A mãe saíra horas antes,
assim como Sam e Ali. Todos os demais, inclusive os
noivos, tinham se retirado por volta da meia-noite. Meghann
permanecera, supervisionando a limpeza, mas seu
trabalho estava feito.
Ela tomou um gole do champanhe e olhou novamente
para o outro lado da rua.
Joe provavelmente estava dormindo. Ela sabia que
era ridículo bater à sua porta, talvez até perigoso, mas havia
algo no ar aquela noite. O inebriante misto de romance
e magia que desprendia cheiro de rosas e fazia a mulher
acreditar que tudo era possível. Pelo menos nessa noite.
Assim, Meghann desceu a rua de pedras. À porta da
casa, parou. As luzes estavam acesas. Ela hesitou durante
um ou dois minutos, então bateu.
Instantes depois Joe abria a porta. O cabelo estava
desalinhado, como se ele estivesse dormindo; usava apenas
uma calça jeans preta.
Olhou para ela, sem dizer nada.
— Achei que poderíamos sair — arriscou ela.
— Você quer sair agora? À l hora da madrugada?
— Claro. Por que não?
— A pergunta é por quê.
Ela o encarou. Quando os olhares se cruzaram, Meg
sentiu o coração disparar.
— Eu estava de bom humor. Talvez tenha bebido
demais. — Humilhada, ela fechou os olhos. — Não deveria
ter vindo. Desculpe.
Quando voltou a abrir os olhos, viu que ele se aproximara.
— Eu não gosto de sair.
— Ah.
— Mas gostaria que você entrasse.
Ela sentiu o começo de um sorriso.
— Ótimo.
— O que eu não gosto — disse ele — é de acordar
sozinho. Tudo bem se você não quiser passar a noite, mas
não saia daqui como se fosse uma prostituta.
— Desculpe.
Ele sorriu. O sorriso iluminou seu rosto inteiro, fez
com que parecesse dez anos mais jovem.
— Tudo bem, entre.
Ela tocou-lhe o braço.
— É a primeira vez que vejo você sorrir.
— É — sussurrou Joe, talvez com tristeza. — Faz
um tempo.
MEGHANN ESTAVA DE BANHO TOMADO, vestida
com calça jeans e camiseta, as malas prontas. À saída, deteve-
se para escrever a Claire um bilhete rápido, que deixou
sobre a bancada da cozinha. Então deu uma última
olhada na casa, que era um lar de verdade. Foi inesperadamente
difícil sair. O apartamento dela era muito frio e
vazio em comparação.
Por fim, entrou no carro e dirigiu devagar pelo acampamento.
Chegou ao jardim em forma de meia-lua,
cheio de enormes rododendros. Havia um trailer cinza sobre
alguns blocos de concreto.
Meghann estacionou e saltou do veículo. Como
sempre, sentiu um frio na boca do estômago quando considerou
que veria Sam.
Seguiu o caminho de pedras até a varanda. Bateu à
porta. Como ninguém atendeu, tentou outra vez.
A porta foi aberta, rangendo, e lá estava ele, vestido
com um macacão surrado e uma camiseta azul-clara que
dizia RIVER’S EDGE. O cabelo castanho achava-se desalinhado,
à Albert Einstein.
— Oi, Meg. — Ele abriu caminho. — Entre.
Ela obedeceu e viu-se numa sala surpreendentemente
aconchegante.
— Bom dia, Sam. Vim pegar Alison.
— Tem certeza de que quer levá-la? Eu posso ficar
com ela.
— Imagino que sim — respondeu Meghann, ofendida.
— Sei como você é ocupada.
— Você ainda acha que eu sou má influência, é isso?
Ele deu um passo na direção dela, e parou.
— Eu nunca deveria ter pensado isso. Claire me disse
como você foi boa com ela. Eu não entendia de crianças
na época e certamente não entendia de meninas adolescentes
que...
— Por favor. Não termine a frase. Você tem alguma
lista para mim? Alergias. Remédios. Alguma coisa de que
eu precise saber?
— Ela dorme às 20 horas. Gosta quando lemos histórias.
A pequena sereia é sua preferida.
— Muito bem. — Meg olhou para o corredor. —
Ela está pronta?
— Está só se despedindo do gato. Ela tem uma festa
de aniversário no sábado. Se a trouxer ao meio-dia, vai dar
tempo. Assim ela estará aqui quando Claire e Bobby voltarem
para casa no domingo.
Alison surgiu correndo pelo corredor, trazendo um
gato preto cujo corpo se alongava quase até o chão.
— Relâmpago quer ir comigo, vovô. Posso levá-lo,
tia Meg? Posso?
Meg não sabia se seu prédio permitia gatos.
Antes que ela pudesse responder, Sam ajoelhou-se de
frente para a neta e, com jeito, tirou o gato de seus braços.
— Relâmpago precisa ficar aqui. Você sabe que ele
gosta de brincar com os amiguinhos e caçar camundongos
no mato. É um gato do campo. Não gostaria da cidade.
— Eu também não sou uma menina da cidade —
respondeu ela, fazendo bico.
— É verdade — assentiu Sam. — Mas você é aventureira.
Assim como Mulan e a princesa Jasmine. Você acha
que elas ficariam nervosas por causa de uma viagem à cidade
grande?
Alison sacudiu a cabeça.
Sam abraçou-a. Quando a soltou afinal, levantou-se
devagar e olhou para Meghann.
— Cuide bem da minha neta.
Não era diferente do que ela lhe dissera havia muitos
anos, antes de ir-se para sempre. Cuide bem da minha irmã.
A única diferença era que na ocasião ela estava chorando.
— Vou cuidar.
Alison pegou a mochila e uma pequena mala.
— Estou pronta, tia Meg.
— Tudo bem, vamos.
Meg pegou a mala e avançou para a porta.
Elas estavam no carro, de saída, quando Alison de
repente gritou:
— Pare!
Meg pisou no freio.
— O que foi?
Alison saltou do veículo e correu de volta ao trailer.
Instantes depois, voltava abraçando uma manta cor-
-de-rosa puída. Os olhos brilhavam com lágrimas.
— Não posso sair para uma aventura sem o meu
lençolzinho.
O TELEFONE ACORDOU CLAIRE. Ela levantou-se
rápido.
— Que horas são? — Correu os olhos pelo quarto
de hotel, à procura do relógio, consultou-o: 5h45 da manhã.
— Bobby, o telefone...
Ela pulou por cima dele e atendeu.
— Alô?
— Oi, querida. Como está você?
Claire soltou um suspiro aliviado e desceu da cama.
— Estou bem, mamãe. São 5h45 da manhã em Kauai.
— Achei que fosse o mesmo fuso da Califórnia.
— Nós estamos quase na Ásia, mamãe.
— Você sempre foi exagerada. E eu tenho motivo
para ligar, sabia?
Claire vestiu o roupão e saiu para a varanda. Lá fora,
o céu começava a ficar rosado. A manhã tinha cheiro de
flores tropicais e maresia.
— O que aconteceu?
— Independentemente do que sua irmã faladeira e
você se lembram ou acham que se lembram, a verdade é
que amo vocês.
— Eu sei, mamãe.
— Agora me deixe falar com Bobby.
— Por quê?
A mãe bufou dramaticamente.
— É sobre um presente de casamento para ele.
— Tudo bem. Que seja. Espere um pouco. — Ela
voltou para o quarto. — Minha mãe quer falar com você.
Bobby levantou-se e pegou o telefone.
— Como vai a sogra mais atraente do mundo? —
Depois de alguns instantes, o sorriso dele murchou. — O
quê? Você está brincando.
Claire pôs a mão no ombro dele.
— O que foi?
Ele sacudiu a cabeça.
— Isso é incrível, Ellie. Não sei como agradecer...
Quando? — Ele franziu a testa. — Você sabe que estamos
em... Ah, claro. Entendo. Ligo já para você. E obrigado.
Nem sei dizer o quanto isso significa... É. Tchau.
— O que ela fez? — perguntou Claire, assim que ele
desligou.
O sorriso de Bobby era tão grande que lhe franzia o
rosto todo.
— Conseguiu para mim um teste com Kent Ames,
da Down Home Records. Eu não acredito! Há dez anos
espero por uma oportunidade dessas.
Claire abraçou-o com emoção.
— Você vai arrasar.
Ele girou-a no colo até ambos estarem às gargalhadas.
Ela ainda ria quando ele a colocou de volta no chão.
— Mas... — prosseguiu ele, agora sem sorrir. — O
teste é quinta-feira. Depois disso Kent passará um mês
fora.
— Esta quinta?
— Esta quinta. Em Nashville.
Claire sabia que, se negasse — se dissesse “Ainda estaremos
em lua-de-mel” —, ele a beijaria e responderia:
“Tudo bem, vou ligar para sua mãe e ver se o teste pode
ser remarcado para daqui a um mês.”
A resposta dela foi fácil:
— Eu sempre quis conhecer Opryland.
Bobby puxou-a, olhou para ela.
— Eu teria desistido — admitiu, em voz baixa.
— Agora me passe o telefone — pediu ela. — É
melhor eu avisar a papai e Meg que vamos acrescentar um
ou dois dias à viagem.
OS DIAS QUE MEGHANN passou ciceroneando Alison
caíram numa rotina agradável. Na terceira tarde Meghann
havia deixado de lado sua necessidade obsessiva de
mostrar à sobrinha todas as atrações infantis de Seattle.
Agora elas só faziam coisas simples. Alugavam filmes, assavam
biscoitos e jogavam Candy Land.
Na primeira noite, Ali surgiu em seu quarto chorando
porque não conseguia dormir. Nessa noite, e em todas
as que se seguiram, Meg dormiu com Ali aninhada em
seus braços, e a cada manhã acordava com um novo entusiasmo
inesperado. Sorria mais fácil, gargalhava com mais
freqüência. Esquecera-se de como era gostoso cuidar de
alguém.
Quando Claire telefonou para avisar sobre a prorrogação
da lua-de-mel, Meg deixou a irmã admirada oferecendo-
se — de bom grado — para ficar com Alison alguns
dias a mais. Infelizmente, uma festa de aniversário
“muito importante” em Hayden eliminava essa possibilidade.
Quando o sábado finalmente chegou, Meghann se
viu surpresa pela intensidade de sua emoção. Durante todo
o trajeto para Hayden, teve de esforçar-se por continuar
sorrindo, enquanto Ali falava sem parar e pulava no
banco. Na casa de Sam, Ali atirou-se nos braços do avô e
começou a contar-lhe sobre a semana. Meg despediu-se da
sobrinha e saiu às pressas do trailer. Naquela noite, mal
conseguiu dormir. Não conseguia livrar-se da solidão.
Na segunda-feira, voltou ao trabalho.
As horas arrastavam-se mais devagar que de costume.
Ao fim do dia, ela estava tão cansada que mal se agüentava.
Lá fora, era o começo de uma refrescante noite de
verão.
Meghann não queria ir ao Athenian para fisgar um
homem que não conhecia. Ela queria... Joe.
ÀS 16 HORAS JOE TERMINOU o trabalho. Isso era
bom, porque na verdade ele tinha um lugar aonde ir, pessoas
para ver.
Era reconfortante ter a expectativa de alguma coisa,
mesmo se essa coisa fosse lhe causar sofrimento.
Nos momentos que se seguiram, enquanto se barbeava,
tomava banho e vestia roupas limpas, Joe tentava
juntar as frases de que necessitaria. Experimentou palavras
bonitas: “A morte de Diana destruiu algo dentro de mim.”
Palavras ásperas: “Estraguei tudo.” Palavras dolorosas:
“Eu não conseguia ficar parado vendo-a morrer.” Mas
nenhuma delas dava conta de tudo, nenhuma delas expressava
a verdade de seus sentimentos.
Ele ainda não decidira o que falar quando chegou à
rua ou, instantes depois, quando avistou a caixa de correspondência:
DR. E SRA. HENRY ROLOFF.
Joe não pôde deixar de tocá-la. Outrora havia em
Bainbridge uma caixa de correspondência como aquela,
onde se lia: DR. E SRA. JOE WYATT.
Fitou a casa dos ex-sogros. Estava exatamente como
em outro dia de junho, muito tempo antes, quando Joe e
Di se casaram no jardim.
Ele quase desistiu, mas fugir não adiantaria. Havia
experimentado esse caminho, e ele o levara de volta ali —
àquela casa, àquelas pessoas que um dia ele tanto havia
amado — para se desculpar.
Joe subiu a passagem de concreto na direção da casa.
Não se permitiu parar nem pensar. Estendeu o braço e
tocou a campainha.
Instantes depois a porta foi aberta. Henry Roloff
surgiu à sua frente, um cachimbo na mão, usando calça
caqui e suéter de gola rulê.
— Pois não... — Ao ver Joe, o sorriso desapareceu.
— Joey! — exclamou, o cachimbo agora oscilando na
mão trêmula. — Nós ouvimos dizer que você tinha voltado.
Joe tentou sorrir.
— Quem é? — gritou Tina, em algum canto da casa.
— Você não vai acreditar — respondeu Henry.
— Henry? — gritou ela novamente. — Quem é?
Henry recuou. Um sorriso lacrimoso franzia seu
rosto.
— Ele voltou, mãe — bradou ele. Então, em voz
baixa, os olhos rasos d’água, disse mais uma vez: — Ele
voltou.
— ESTE É O BAR ONDE Garth Brooks foi descoberto.
Claire sorriu para Kent Ames, o grande magnata da
Down Home Records em Nashville. Ela e Bobby estavam
na cidade havia dois dias. O quarto no hotel Loews era
maravilhoso. Eles tinham se deliciado com jantares românticos.
Tinham passeado em Opryland e visitado o Hall
da Fama da música country. Ainda mais importante, Bobby
arrasara nos testes. Em todos os quatro.
Apresentara suas canções para executivo após executivo,
até chegar afinal ao grande escritório que dava vista
para a rua dos sonhos da música country. a Music Row.
Suas vidas haviam mudado nas últimas 24 horas.
Bobby era “alguém”. Alguém que “acontecia”.
Agora eles se achavam à mesa de um pequeno bar
despretensioso: ela, os executivos e o marido. Em menos
de uma hora Bobby subiria ao palco. Era a chance de
“mostrar seu som” aos executivos.
Bobby conversava com os homens sem o menor
problema. Falava de pessoas e coisas de que Claire nada
sabia: demos, tempo de estúdio, royalties e cláusulas de
contrato.
Ela queria aprender, mas não conseguia concentrar-
se. O vôo interminável de Kauai para Nashville, com
baldeações em Oahu, Seattle e Memphis, havia lhe custado
uma insistente dor de cabeça. A fumaça do bar não ajudava.
Assim como a música alta e a conversa gritada.
Kent Ames sorriu para ela.
— Bobby vai subir em 45 minutos. Geralmente leva-
se anos para conseguir lugar nesse palco.
Claire sentiu uma dormência estranha na mão direita.
Precisou de duas tentativas para pegar o copo de margarita.
Quando finalmente conseguiu, bebeu todo o líquido, na
esperança de que ele melhorasse a sua dor de cabeça.
Não melhorou. Deixou-a com dor de barriga. Ela
levantou-se, surpresa por encontrar-se vacilante.
— Claire?
Bobby ficou de pé.
Ela forçou um sorriso. Um sorriso fraco, com o
canto da boca.
— Desculpe, Bobby. Minha dor de cabeça piorou.
Acho que preciso me deitar. — Beijou o rosto dele, sussurrou:
— Arrase, amor.
Ele a enlaçou.
— Vou levar minha mulher ao hotel.
Ryan franziu a testa.
— Mas sua vez...
— Já volto — garantiu Bobby.
Abraçando-a, ele conduziu-a para fora do bar, até a
rua barulhenta, agitada.
— Você não precisa me levar, Bobby. De verdade.
— Nada é mais importante que você. Nada. É melhor
esses caras saberem desde já quais são minhas prioridades.
Eles atravessaram o saguão e tomaram o elevador.
Na suíte, Bobby deitou-a na cama.
— Agora durma, meu amor — sussurrou, beijando-
lhe a testa.
— Boa sorte. Eu amo você.
— É exatamente por isso que não preciso de sorte.
Claire levantou-se o suficiente para telefonar para
casa. Tentou parecer animada ao contar a Ali e Sam sobre
o dia emocionante e lembrá-los de que estaria de volta em
dois dias. Depois de desligar, suspirou alto e fechou os
olhos.
QUANDO CLAIRE ACORDOU na manhã seguinte, a
dor de cabeça havia desaparecido. Ela se sentia exausta,
mas foi fácil sorrir quando Bobby lhe contou como tudo
transcorrera.
— Eu arrebentei, Claire. Sem brincadeira. Kent Ames
salivava ao falar sobre o meu futuro. Ofereceu um
contrato, acredita?
Eles encontravam-se aninhados no sofá próximo à
janela do quarto. A luz clara da manhã entrava pela janela.
Bobby estava tão bonito que deixava Claire extasiada.
— É óbvio que acredito. Já ouvi você cantar. Agora
quais são os procedimentos?
— Eles acham que vamos levar mais ou menos um
mês em Nashville. Para achar material, montar uma banda.
Querem que eu saia em turnê em setembro e outubro.
Mas não se preocupe. Avisei que teríamos de criar uma
agenda que estivesse de acordo com as necessidades da
família.
Claire amava-o nesse momento mais que jamais imaginara
ser possível. Puxou-o pelo roupão.
— Só vai ter homem e mulher feia no seu ônibus. Já
vi filmes sobre essas turnês.
Ele beijou-a, demoradamente. Quando se afastou, ela
estava tonta.
— O que fiz para merecer você, Claire?
— Você me amou — respondeu ela, passando a mão
por baixo do roupão dele. — Agora me leve para a cama e
me ame de novo.
ÀS 6H30 DA MANHÃ, Meghann saiu da cama, tomou
banho e vestiu um terninho preto e uma blusa de seda lilás.
Bastou uma olhadela no espelho para lembrar-se de
que não dormira nem duas horas na noite anterior. Estava
à mesa da firma às 7h30, lendo um testemunho.
De 15 em 15 minutos, olhava o telefone. Era dia de
semana. Joe estaria no trabalho. Ligue.
Por fim, às dez, ela cedeu à tentação e telefonou para
a secretária.
— Sim, Sra. Dontess?
— Preciso do número de uma oficina de Hayden,
Washington.
— Que oficina?
— Não sei o nome nem o endereço. Mas fica de
frente para o parque Riverfront. Na rua Front.
— Vou precisar...
— Ser criativa. Obrigada.
Meghann desligou. Dez longos minutos se passaram.
Então Rhona telefonou na linha um.
— Consegui o número. O nome da oficina é
Smitty’s.
Meghann anotou o número e ficou olhando para ele.
O coração batia rápido.
— Que ridículo!
Pegou o telefone e digitou o número. A cada toque,
precisava lutar contra a vontade de desligar.
— Oficina Smitty’s.
Meghann engoliu em seco.
— Eu poderia falar com o Joe?
— Um minuto. Joe!
O telefone fez um ruído, então o pegaram.
— Alô?
— Joe? É Meghann.
Houve uma longa pausa.
— Achei que nunca mais fosse ver você.
— Não vai ser assim tão fácil. — Mas a brincadeira
caiu no vazio. — Eu... hã... tenho de ouvir um testemunho
no condado de Snohomish na sexta-feira. Achei que
você talvez quisesse sair para jantar.
Ele não respondeu.
— Esqueça. Sou uma idiota. Vou desligar.
— Posso comprar carne e pegar emprestada a churrasqueira.
— Sério?
Ele riu, e o riso relaxou a tensão dolorosa que se
formara no pescoço dela.
— Por que não?
— Estarei aí por volta das 18 horas. Tudo bem?
— Perfeito.
— Vou levar o vinho e a sobremesa.
Meghann sorria quando desligou. Dez minutos depois
Rhona telefonava para ela novamente.
— Sra. Dontess, sua irmã está na linha dois. Disse
que é urgente.
— Obrigada. — Meg apertou o botão. — Oi, Claire.
Seja bem-vinda. Seu vôo deve ter saído na hora. Incrível.
Como foi...
— Eu estou no aeroporto. Não sabia para quem ligar.
A voz era trêmula; parecia que ela havia chorado.
— O que está acontecendo, Claire?
— Eu não me lembro do vôo de Nashville. Também
não me lembro de pegar a bagagem, mas ela está aqui comigo.
Não me lembro de andar pelo estacionamento, mas
estou sentada no carro.
— Não entendo.
— Nem eu, droga! — gritou Claire, e desatou a chorar.
— Eu não me lembro de como voltar para casa.
— Oh, meu Deus. — Em vez de entrar em pânico,
Meghann procurou tomar controle da situação. — Você
tem um papel?
— Tenho. Aqui.
— Caneta?
— Tenho. — Os soluços diminuíram. — Eu estou
com medo, Meg.
— Escreva: travessa Post, 829. Escreveu?
— Escrevi.
— Agora saia do carro e volte para o terminal.
— Eu estou com medo.
— Vou ficar ao telefone com você.
— Espere. Não sei para onde...
— Tem uma passagem coberta à sua frente, com os
nomes das companhias aéreas listados acima?
— Tem. Diz Alaska e Horizon.
— Vá para lá. Eu estou aqui, Claire. Não vou a lugar
nenhum. Desça a escada rolante. Está vendo?
— Estou.
Ela parecia fraca. Meghann ficava cada vez mais assustada.
— Saia. Pegue o telefone onde está escrito TÁXI.
Qual é o número da porta pela qual você acabou de passar?
— Doze.
— Peça ao motorista de táxi que pegue você no portão
12, explique que está indo para o centro da cidade.
— Espere.
Meghann a ouviu falar. Então Claire disse:
— OK.
— Eu estou aqui, Claire. Vai ficar tudo bem.
— Quem está falando?
Meghann sentiu o fluxo gelado do pavor.
— É Meghann.
— Eu não me lembro de telefonar para você.
Meghann fechou os olhos. Foi difícil encontrar voz.
— Tem um táxi na sua frente?
— Tem. Por que ele está aqui?
— Para você. Entregue ao motorista o papel que está
na sua mão.
— Ah, meu Deus, Meg! Como você sabe que eu estava
segurando este papel? O que há de errado comigo?
— Está tudo bem, Claire. Ele vai deixar você no
meu prédio. Estarei esperando por você.
O TÁXI ENCOSTOU no meio-fio e parou. Antes que
Claire pudesse sequer agradecer, a porta do banco do carona
foi aberta. Meghann pagou ao motorista e conduziu
Claire ao confortável interior de um Lincoln Town Car
que aguardava estacionado. Meg analisou-a.
— Você está bem agora?
Claire notou a preocupação da irmã, e isso a comoveu.
— Estou, sim. Mesmo. Acho que tive um ataque de
pânico ou algo parecido. Só me leve a um restaurante
tranqüilo, para tomarmos café. Deve ser falta de sono.
Meg olhou para a irmã como se ela fosse um experimento
científico que tivesse dado errado.
— Você está brincando? Ataque de pânico? Claire,
eu sei o que é ataque de pânico, e a pessoa não se esquece
de como chegar em casa. Vamos ao hospital.
Elas entreolharam-se até Claire desviar os olhos.
— Bobby saiu-se muito bem nas apresentações. Ofereceram
a ele um bom contrato.
— Ele só vai assinar depois que eu der uma olhada,
certo?
— A resposta-padrão é “Parabéns”.
Meghann teve a elegância de enrubescer.
— Parabéns.
— Acho que isso deveria entrar para o Acredite, se
quiser, sob o título “Eliana Sullivan faz uma boa ação”.
Meg levou a mão ao peito e, com arrastado sotaque
sulista, disse:
— Eu sou tão generosa com a família!
Claire começou a rir. Então notou que a dormência
na mão direita havia voltado. Enquanto observava a mão,
os dedos se fecharam numa espécie de gancho. Por um
instante, não conseguiu abri-la. Entrou em desespero. Por
favor, meu Deus...
A contração parou.
Elas chegaram ao hospital. Na recepção do setor de
emergência, uma mulher corpulenta atendeu as duas.
— Posso ajudá-las?
— Gostaríamos de ver um médico.
— Qual é o problema?
— Estou com uma dor de cabeça infernal.
Meghann aproximou-se do balcão.
— Escreva aí: dor de cabeça severa, perda da memória
recente.
— Ah, é. Eu me esqueci.
Claire abriu um sorriso frouxo.
A recepcionista jogou uma prancheta sobre o balcão.
— Preencha isso e me dê seu documento de identidade.
Claire pegou o documento na carteira e o entregou à
mulher, que disse:
— Podem se sentar. Nós as chamaremos.
Uma hora depois elas ainda aguardavam. Meghann
estava furiosa.
— Como é que eles têm a audácia de chamar isto
aqui de setor de emergência?
Claire pensou em tentar acalmar a irmã, mas o esforço
seria grande demais. A dor de cabeça havia piorado.
— Claire Austin — chamou uma enfermeira de jaleco
azul.
— Já não era sem tempo.
Meghann ajudou Claire a levantar-se.
— Você é um verdadeiro alento, Meg — disse Claire.
— Isso é dom — respondeu Meg, conduzindo-a em
direção à enfermeira pequenina que se achava à porta dupla
da sala de emergência.
Claire deu a mão à irmã ao cruzar o vão da porta.
Vestiu a camisola do hospital e estendeu o braço para o
exame de pressão arterial e a coleta para o exame de sangue.
Novamente elas esperaram. Por fim, alguém bateu à
porta. Um adolescente de jaleco branco surgiu na sala.
— Sou o Dr. Lannigan. Qual é o problema?
Meghann resmungou.
— Oi, doutor — disse Claire. — Eu nem deveria ter
vindo aqui. Estou com dor de cabeça, e minha irmã acha
que enxaqueca é caso de hospital. Depois de uma viagem
longa, tive uma espécie de ataque de pânico.
— Durante o qual ela se esqueceu de como chegar
em casa — acrescentou Meghann.
O médico pediu a Claire que realizasse algumas atividades
— levantar um braço, depois o outro, virar a cabeça,
piscar os olhos — e respondesse a algumas perguntas
fáceis, como em que ano estavam, quem era o presidente
do país. Ao terminar, indagou:
— Você costuma sentir dor de cabeça?
— Quando estou estressada. Mais ultimamente —
admitiu.
— Houve alguma grande mudança na sua vida há
pouco tempo?
Claire riu.
— Muitas. Acabei de me casar pela primeira vez.
Meu marido está em Nashville, gravando um disco.
— Ah. — Ele sorriu. — Bem, Sra. Austin, o sangue
e a pressão estão normais. Tenho certeza de que é só estresse.
Mas, se a dor de cabeça persistir, recomendo que
procure um neurologista.
Claire assentiu, aliviada.
— Obrigada, doutor.
— Ah, não — protestou Meghann. — Isso não basta.
O rapaz piscou os olhos, recuou.
— Eu vejo Plantão médico. Ela precisa de uma tomografia
ou de uma ressonância magnética. Alguma droga de
exame inicial. No mínimo, ela vai consultar o neurologista
agora.
Ele franziu a testa.
— Esses exames são caros. Não podemos fazer tomografia
de todo paciente que reclama de dor de cabeça,
mas, se a senhora quiser, posso recomendar o neurologista.
A senhora marca uma hora.
— Há quanto tempo você é médico?
— Estou no primeiro ano de residência.
— Quer chegar ao segundo ano?
— Claro. Não vejo...
— Chame seu supervisor. Agora. Não passamos três
horas aqui para que um projeto de médico nos diga que
Claire está estressada. Eu estou estressada, você está estressado.
Mas nos lembramos do caminho de casa. Traga
um neurologista aqui. Agora.
— Vou ver se consigo uma consulta.
Ele pegou sua prancheta e saiu às pressas.
Claire suspirou.
— Você está sendo você de novo. É estresse, sim.
— Também espero que seja, mas não vou confiar na
palavra do galãzinho do baile de formatura.
Alguns minutos depois a enfermeira estava de volta.
— A Dra. Kensington recebeu o material. Gostaria
que a senhora fizesse uma tomografia.
— Uma mulher. Ótimo — animou-se Meghann.
A enfermeira assentiu.
— Venham comigo — chamou.
Claire deu a mão a Meghann. O trajeto parecia durar
uma eternidade: elas atravessaram dois corredores e tomaram
o elevador, até chegarem ao Centro de Medicina
Nuclear.
Nuclear. Claire sentiu Meghann apertar-lhe a mão.
— Chegamos. — A enfermeira deteve-se à porta fechada.
Virou-se para Meghann. — Tem uma cadeira ali. A
senhora não pode entrar, mas cuidaremos bem dela, está
bem?
Meghann hesitou, então assentiu.
— Estarei aqui, Claire.
Claire acompanhou a enfermeira a uma sala atravancada
por uma máquina enorme, que parecia uma rosquinha
branca. Deitou-se na cama estreita que cruzava o buraco
da rosquinha. E esperou. E esperou. De vez em
quando a enfermeira voltava, murmurava qualquer coisa a
respeito do médico e desaparecia novamente.
Por fim a porta foi aberta e um homem de jaleco
branco entrou na sala.
— Desculpe fazê-la esperar. Eu sou o Dr. Cole, radiologista.
Mantenha-se bem parada, e acabaremos logo
com isso.
Claire forçou um sorriso. Recusava-se a pensar no
fato de que todos os demais ali presentes usavam avental
de chumbo, ao passo que ela só tinha uma fina camada de
algodão a protegê-la.
— Acabamos. Ótimo trabalho — disse ele, quando
tudo terminou.
Claire estava tão agradecida que quase se esqueceu da
dor de cabeça, que havia aumentado enquanto ela se encontrava
deitada na máquina.
No corredor, Meghann estava irritada.
— O que aconteceu? Eles disseram que levaria uma
hora.
— E levou, depois que acharam o médico.
Elas seguiram a enfermeira a outra sala de exames.
— Posso me vestir? — perguntou Claire.
— Ainda não. A médica já vem.
— Aposto que sim — respondeu Meghann, num
murmúrio.
TRINTA MINUTOS DEPOIS a enfermeira estava de
volta.
— A médica pediu outro exame — disse para Meghann.
— Uma ressonância magnética.
— Ressonância magnética? — perguntou Meghann,
ansiosa.
— É uma imagem mais clara do que está acontecendo.
Procedimento-padrão.
O exame, que levaria uma hora, demorou duas. Por
fim Claire foi liberada, e as duas voltaram ao setor de medicina
nuclear, onde as roupas de Claire estavam penduradas.
Depois seguiram para outra sala de espera.
— É claro — resmungou Meg.
Mais uma hora se passou. Finalmente uma mulher
alta, de aspecto cansado, vestida com um jaleco de laboratório,
entrou na sala.
— Claire Austin?
Claire levantou-se. À brusquidão do movimento,
quase caiu. Meghann amparou-a.
A mulher sorriu e disse:
— Eu sou a Dra. Sheri Kensington, diretora da unidade
de neurologia.
— Claire Austin. Esta é minha irmã, Meghann.
— Muito prazer. Venham comigo.
A Dra. Kensington conduziu-as pelo corredor até
um consultório abarrotado de livros, diplomas e desenhos
infantis. Atrás dela, algumas chapas de radiografia achavam-
se dispostas no negatoscópio aceso.
Claire olhou para elas, imaginando o que revelavam.
A médica sentou-se à mesa e indicou a Claire e Megahnn
que se acomodassem à sua frente.
— Sinto muito que tenham tido problemas com o
Dr. Lannigan. Este é um hospital universitário, e às vezes
os residentes não são tão cuidadosos quanto gostaríamos.
Sua exigência de um nível de atendimento mais elevado
foi uma chamada necessária ao Dr. Lannigan.
Claire encarou-a.
— Eu estou com sinusite?
— Não, Claire. Você tem urna massa no cérebro.
— O quê?
— Um tumor. No cérebro. — A Dra. Kensington
levantou-se devagar e aproximou-se das radiografias, apontando
para uma área branca. — Ele é do tamanho de
uma bola de golfe e está localizado no lobo frontal direito,
cruzando a linha média.
Tumor. Claire sentia-se como se tivesse sido jogada
de um avião. Não conseguia respirar; o chão ficava cada
vez mais próximo.
— Sinto muito em dizer isso — prosseguiu a Dra.
Kensington —, mas consultei um neurocirurgião, e achamos
que é inoperável. Você deve buscar uma segunda
opinião, evidentemente. Também precisará consultar um
oncologista.
Meghann ficou de pé.
— Você está dizendo que ela tem um tumor no cérebro
e vocês não podem fazer nada?
— Achamos que é inoperável, mas não falei que não
podemos fazer nada.
— Meg, por favor. — Por absurdo que fosse, Claire
temia que a irmã piorasse ainda mais a situação. Olhou
com ar de súplica para a médica. — Está dizendo que eu
talvez morra?
— Vamos precisar de outros exames, mas, dados o
tamanho e a localização da massa, o quadro não é muito
bom.
— Inoperável significa que vocês não operam —
grunhiu Meg.
A Dra. Kensington mostrou-se surpresa.
— Acho que ninguém vai operar. Consultei nosso
melhor neurocirurgião. Ele concorda com meu diagnóstico.
A intervenção seria perigosa demais.
Meg estava irritada.
— Quem faria esse tipo de operação?
— Ninguém neste hospital.
Meg pegou a bolsa.
— Vamos, Claire. Estamos no hospital errado.
Claire olhava em desalento para a Dra. Kensington e
a irmã.
— Meg — protestou —, você não sabe tudo. Por
favor...
Meghann ajoelhou-se na frente dela.
— Eu sei que não sei tudo. Sei até que já decepcionei
você, mas nada disso importa agora. Deste momento em
diante, só sua vida importa.
Claire começou a chorar. Detestava mostrar-se frágil
assim, mas não havia jeito. De repente, sentia-se morrendo.
— Apóie-se em mim, Claire.
Claire fitou os olhos da irmã e lembrou-se de como
outrora Meg havia sido seu mundo. Devagar, obedeceu.
Meghann ajudou-a a levantar-se, então se virou para
a médica.
— Ensine o Dr. Lannigan a usar o termômetro. Nós
vamos achar um médico que salve a vida dela.
Fora do hospital, Meghann ajudou Claire a entrar no
Town Car.
— Você está bem? — perguntou, a voz elevada e
apreensiva.
— Eu tenho câncer? É isso o tumor?
— Nós não sabemos o que você tem. Com certeza,
esses médicos não sabem.
— Você viu a mancha na chapa, Meg? Era enorme!
Meghann segurou-a, sacudiu-a com força.
— Escute. Você precisa ser forte agora. Não amolecer,
não desistir. Amanhã começaremos a procurar outras
opiniões. Primeiro vamos ao Johns Hopkins. Depois vamos
tentar o Sloan-Kettering, em Nova York. Deve existir
um cirurgião que tenha coragem.
Os olhos de Meg encheram-se de lágrimas; a voz falhou.
De algum modo, Claire ficou ainda mais assustada ao
ver Meg vacilar.
— Vai ficar tudo bem — disse ela, automaticamente.
Confortar os outros era mais fácil que pensar. — Só precisamos
ser otimistas.
— Ter fé. Exatamente — concordou Meghann. —
Você se agarra à fé, e eu vou começar a procurar tudo o
que há para saber sobre a doença. Assim cobriremos todas
as bases.
— Como um time?
— Alguém precisa ficar ao seu lado nesse período.
Toda a infância das duas se achava de repente entre
elas, todos os bons momentos e, ainda mais importante,
os momentos ruins.
Claire encarou a irmã.
— Se você começar isso comigo, vai ter de permanecer
se a situação se complicar.
Meg olhou para ela.
— Confie em mim.
Claire franziu a testa.
— Não quero contar a ninguém.
— Por que contar antes de ter certeza?
— Só vai preocupar meu pai e obrigar Bobby a voltar
para casa. — Ela se deteve, engoliu em seco. — Não
quero nem pensar em contar a Ali.
— Vamos dizer a todo mundo que passaremos uma
semana num spa.
— Bobby vai acreditar. E Ali. Meu pai... não sei.
Talvez se eu disser que precisamos de algum tempo juntas.
Há anos ele quer que nos reconciliemos. É. Ele vai
aceitar isso.
ENCONTRAR OS PAIS DE Diana restituíra algo em
Joe. O perdão, a compreensão deles, aliviara o fardo. Pela
primeira vez desde a morte da mulher, ele conseguia andar
ereto outra vez. Conseguia acreditar que havia uma saída.
Não a medicina. Ele jamais poderia ver a morte tão perto
novamente. Mas alguma coisa...
E tinha Meghann. Por inacreditável que fosse, ela
havia telefonado. Convidara-o para um jantar. Seu primeiro
jantar com uma mulher em mais de 15 anos. Meghann,
talvez até mais que o perdão dos Roloff, trouxera
Joe de volta à vida.
No intervalo para o almoço ele cortou o cabelo e
comprou roupas novas. Voltou para a oficina às 13 horas
e trabalhou o resto do dia.
— É a décima vez que você olha esse relógio nos últimos
trinta minutos — observou Smitty, às 16h30.
— Eu... hã... tenho um compromisso — balbuciou
Joe.
Smitty pegou uma chave inglesa.
— Não brinca.
Joe fechou o capo da caminhonete.
— Será que eu poderia sair uns minutos mais cedo?
— Não faço nenhuma objeção.
— Uma amiga vem jantar comigo — explicou Joe.
— Essa amiga dirige um Porsche?
— Dirige.
Smitty sorriu.
— Você não quer pegar emprestada a churrasqueira?
Colher umas flores no jardim de Helga?
— Eu não sabia como pedir.
— Puxa, Joe, não é difícil. Abra a boca e diga “Por
favor”. Faz parte de sermos vizinhos e colegas de trabalho.
— Obrigado.
— Tenha uma boa noite, Joe.
Joe saiu da oficina e parou na casa de Smitty. Saiu
carregando uma pequena churrasqueira portátil. Armou-a
na varanda.
Em casa, tomou banho e fez a barba, depois vestiu
as roupas novas e foi para a cozinha.
Nos momentos que se seguiram, entregou-se a uma
tarefa depois da outra, até que as batatas estivessem no
forno, as flores se encontrassem sobre a mesa e as velas se
achassem acesas. Serviu-se de uma taça de vinho tinto e
dirigiu-se à sala para esperar por ela.
Sentou-se no sofá e esticou as pernas.
Do consolo da lareira, Diana sorria para ele.
Joe sentiu uma ponta de culpa, como se tivesse feito
alguma coisa errada. Era bobagem, ele não estava sendo
infiel. Ainda...
Deixou a taça sobre a mesinha de centro e recolheu
os porta-retratos, um a um, deixando uma única fotografia
sobre a mesa. Apenas uma. Todas as demais ele levou para
o quarto e guardou com cuidado. Depois devolveria
algumas à casa da irmã.
Quando voltou à sala e se sentou, Joe sorriu, pensando
em Meghann. Imaginando a noite.
Às 21h30 o sorriso havia desaparecido.
Ele estava sozinho no sofá, ligeiramente embriagado,
com uma garrafa de vinho vazia a seu lado. As batatas
encontravam-se assadas fazia tempo e as velas tinham
derretido.
À meia-noite ele foi para a cama sozinho.
CAPÍTULO
NOVE
NOS ÚLTIMOS NOVE DIAS, Meghann e Claire haviam
consultado vários especialistas. Era incrível a rapidez com
que os médicos atendiam as pessoas que tinham tumor
cerebral e muito dinheiro. Neurologistas. Neurocirurgiões.
Neuroncologistas. Radiologistas. Elas foram do Johns
Hopkins ao Scripps, passando pelo Sloan-Kettering. Aprenderam
dezenas de novas palavras assustadoras: glioblastoma,
astrocitoma anaplásico, craniotomia.
Alguns médicos eram atenciosos e solícitos; a maioria
era distante e ocupada demais para conversar durante
muito tempo. Todos diziam a mesma coisa: inoperável.
Não importava se o tumor de Claire era maligno ou benigno;
de qualquer forma, poderia ser fatal. A maioria acreditava
que o tumor era glioblastoma multiforme. De
um tipo fatal.
Sempre que deixavam uma cidade, Meghann depositava
suas esperanças na parada seguinte, até que um neurologista
do Scripps chamou-a de lado.
— Olhe — disse —, você está desperdiçando um
tempo precioso. A radioterapia é a melhor esperança da
sua irmã. Dos tumores cerebrais, 25% reagem bem ao
tratamento. Se ele diminuir o suficiente, talvez se torne
operável. Leve-a para casa. Pare de lutar contra o diagnóstico
e comece a lutar contra o tumor.
Portanto, elas tinham voltado a Seattle. Um dia depois,
Meghann levou Claire ao hospital Swedish, onde acertaram
de começar a radioterapia no dia seguinte. Uma
vez por dia, durante quatro semanas.
— Vou precisar ficar aqui para o tratamento — disse
Claire, já no apartamento de Meghann. — Hayden é longe
demais.
— Claro. Vou diminuir minha carga de trabalho.
— Não precisa. Posso tomar o ônibus até o hospital.
— Vou fingir que não ouvi isso.
Claire olhou para fora da janela.
— Uma amiga minha teve de fazer quimioterapia e
radioterapia. — Ela olhava a cidade iluminada, mas só
conseguia ver Diana se esvaindo. No fim, todos aqueles
tratamentos não haviam ajudado em nada. — Não quero
que Ali me veja assim. Ela pode ficar com meu pai. Nós
os visitaremos nos fins de semana.
— Vou alugar um carro para Bobby. Assim vocês
podem se ver com mais freqüência.
— Eu não vou contar a Bobby... por enquanto.
Meghann franziu a testa.
— O quê?
— Não vou telefonar para o homem com quem acabei
de me casar para dizer que tenho um tumor no cérebro.
Ele esperou a vida inteira por essa oportunidade.
Não quero estragar tudo.
— Mas se ele ama você...
— Ele me ama! — respondeu ela, com veemência.
— Essa é a questão. E eu o amo. Quero que ele tenha essa
chance.
— O que me parece é que você está com medo de
que ele não queira vir — argumentou Meghann. — Sei
que você está com medo, Claire. E sei que mamãe e eu a
magoamos. Mas você precisa dar a Bobby a chance de...
— Não se trata do passado. Sou eu que tenho o tumor.
Eu. Não venha criticar minhas decisões. Eu amo
Bobby e não vou pedir a ele que sacrifique tudo por mim.
— Claire levantou-se. — É melhor nós irmos. Preciso
contar ao meu pai o que está acontecendo.
— E mamãe? Quer ligar para ela?
— Se eu piorar. Agora vamos.
Duas horas depois Meg entrava na rua River. O sol
de fim de tarde escorria pelas paredes da casa de madeira
amarela; o jardim era um turbilhão de cores. Uma bicicleta
infantil encontrava-se largada na grama crescida.
Claire virou-se para Meg.
— Preciso fazer isso sozinha.
Meg entendia. Aquela era a família de Claire, não a
sua.
— Tudo bem. Os médicos vão deixá-la boa.
Claire olhou para Meghann.
— Como posso prometer isso? E se...
— Prometa, Claire. Vamos deixar as suposições para
depois.
Claire assentiu.
— Tem razão.
O sorriso era vacilante.
Meghann notou o tremor da irmã e quis abraçá-la
como quando elas eram crianças.
Claire saltou do carro e galgou a passagem de pedras.
Virou-se para Meghann.
— Venha me pegar às 18 horas, pode ser?
Meg deu marcha a ré e se foi. Só soube de fato para
onde ia quando já estava lá.
O chalé achava-se escuro, parecia vazio. Ela estacionou
o veículo, dirigiu-se à porta. E bateu.
Ele abriu a porta.
— Você deve estar brincando.
Foi quando ela se lembrou do encontro. Mais de
uma semana antes. Ela levaria o vinho e a sobremesa.
Olhou a sala, viu um buquê de flores murchas sobre a mesinha
de centro e torceu para que ele não o tivesse comprado
para a ocasião. Quanto tempo Joe havia esperado
até jantar sozinho?
— Desculpe. Eu me esqueci.
— Só me dê uma boa razão para eu não bater a porta
na sua cara.
Ela olhou para ele, sentindo-se tão frágil que mal
conseguia respirar.
— Minha irmã tem um tumor no cérebro.
A fisionomia dele mudou devagar. Uma nova expressão
tomou conta de seus olhos, uma espécie de compaixão
dolorosa que a fez imaginar os caminhos sombrios
que ele havia percorrido na vida.
Ele abriu os braços e ela entregou-se. Pela primeira
vez, permitiu-se chorar de verdade.
ALISON OUVIA COM ATENÇÃO a explicação de
Claire sobre um “dodói” do tamanho de uma bola de golfe
em seu cérebro.
— Bola de golfe é pequena — disse, afinal.
Claire assentiu, sorrindo.
— É. É, sim.
— E uma arma especial vai atirar raios mágicos até
ele desaparecer? Como se fosse a lâmpada de Aladim?
— Exatamente.
— Mas por que precisa morar com tia Meg?
— É uma distância grande até o hospital. Não posso
ir e voltar todos os dias.
Por fim Ali disse:
— Tudo bem. — Então levantou-se e subiu correndo
a escada. — Já volto, mamãe! — gritou.
— Você ainda não olhou para mim — observou
Sam, quando Ali saiu.
— Eu sei.
Sam levantou-se e atravessou a sala, sentando-se ao
seu lado. Claire sentiu o reconfortante calor conhecido de
seu abraço. Encostou a cabeça no ombro dele e sentiu lágrimas
no rosto. Sabia que ele também estava chorando.
Ele suspirou alto, enxugando os olhos.
— Já contou a Bobby? — Ainda não.
— Mas vai?
— Claro. Assim que ele terminar as gravações em
Nashville. Não vou fazê-lo desistir dessa grande oportunidade
por mim.
Antes que o pai pudesse argumentar, Alison voltou à
sala, arrastando a manta puída e manchada, a manta com a
qual ela dormira todas as noites de sua vida.
— Aqui, mamãe, pode ficar com meu lençolzinho
até você melhorar.
Claire pegou a manta rosa-acinzentada. Levou-a ao
rosto e sentiu o cheiro adocicado da filha.
— Obrigada, Ali — disse, com a voz embargada.
Alison pulou no colo dela e abraçou-a.
— Está tudo bem, mamãe. Não chore. Eu já sou
grande. Posso dormir sem meu lençolzinho.
NA MANHÃ SEGUINTE MEGHANN encontrava-se
na sala de espera do setor de radioterapia, no hospital
Swedish, tentando ler o último número da revista People.
Era a edição dos “mais e menos elegantes”. Sinceramente,
ela não via diferença. Por fim, jogou a revista sobre a mesa
ao lado e dirigiu-se outra vez ao balcão.
— Faz mais de uma hora. Tem certeza de que está
tudo bem com minha irmã?
— Falei com a equipe de radioterapia há cinco minutos.
Ela já vai sair.
Meghann suspirou aliviada e voltou a sentar-se. A
única revista que restava para ser lida era a Field & Stream.
Ignorou-a.
Por fim, Claire apareceu. Meghann levantou-se devagar.
Na lateral direita da cabeça da irmã havia uma pequena
área que tinha sido raspada. Claire tocava o local,
sentindo-o com os dedos.
— Eles me tatuaram. Estou me sentindo como Damien,
o menino de A profecia.
Meg olhou os minúsculos pontos pretos na pele raspada.
— Posso arrumar seu cabelo de modo que você nem
veja a...
— Parte raspada? Seria ótimo.
Elas dirigiram-se ao estacionamento. A caminho de
casa, Claire disse:
— Não doeu.
— Sério? Que bom!
— Fechei os olhos e imaginei que os raios eram a luz
do sol. Tentando me curar. Como o artigo que você me
deu.
Meghann dera à irmã uma vasta literatura sobre pensamento
positivo e visualização.
— Fico feliz que isso tenha ajudado.
Claire recostou-se no banco e olhou para fora da janela.
Meghann queria dizer alguma coisa que fosse importante;
havia tanto a ser dito entre elas. Com um suspiro,
entrou no estacionamento subterrâneo e parou o carro na
vaga.
Ainda em silêncio, elas tomaram o elevador. No apartamento,
Claire tocou a irmã por um instante; os dedos
estavam gelados.
— Obrigada por me acompanhar hoje. Foi bom não
estar sozinha.
As duas entreolharam-se. Novamente Meghann sentiu
o peso da distância que havia entre elas.
— Acho que vou me deitar — decidiu Claire. —
Não dormi bem à noite.
— Nem eu.
Claire esperou mais alguns instantes, então deu meia-
volta e seguiu para o quarto.
Meg recolheu-se ao escritório do apartamento. Outrora,
autos, mandados e testemunhos abarrotavam a mesa.
Agora ela se achava soterrada de livros médicos, artigos
do JAMA e literatura sobre experiências clínicas. Todos
os dias chegavam caixas da Barnes & Noble.com e da
Amazon.
Meghann sentou-se à mesa. Sua leitura atual era um
artigo do JAMA sobre os benefícios potenciais do tamoxifeno
na redução dos tumores. Ela abriu um caderno e
começou a tomar notas. Trabalhava furiosamente, escrevendo
e escrevendo. Horas depois, quando ergueu a cabeça,
Claire estava no vão da porta, sorrindo para ela.
— Por que tenho a impressão de que minha irmã
está querendo ela mesma realizar a cirurgia?
— Já sei mais sobre a doença que o primeiro idiota
que consultamos.
Claire entrou no escritório com cuidado para não pisar
nas caixas vazias da Amazon nem nas revistas que haviam
sido descartadas.
— Acho melhor eu mesma ler, não?
— Algumas partes são... difíceis.
Claire aproximou-se do arquivo que ficava sobre o
lado esquerdo da mesa. Pegou a pasta que dizia ESPERANÇA
em letras vermelhas.
— Não faça isso — pediu Meg. — Acabei de começar.
Claire abriu a pasta. Estava vazia.
— Isto vai entrar aí — apressou-se em dizer Meg,
arrancando várias páginas do caderno. — Tamoxifeno.
— Remédio?
— Tem de haver médicos que curem tumor cerebral
— considerou Meghann, determinada. — Vou encontrá-
los e pôr seus históricos aí.
A campainha tocou.
— Quem será? — Meghann passou por Claire e avançou
para a porta. Quando chegou lá, a campainha tinha
tocado mais oito vezes. — Que ótimo porteiro! —
murmurou, abrindo a porta.
Gina, Charlotte e Karen estavam no corredor.
— Cadê nossa moça? — gritou Karen.
Claire apareceu e a gritaria começou. Karen e Charlotte
adiantaram-se, abraçando-a.
— Sam nos telefonou — explicou Gina, quando ela
e Meghann se achavam sozinhas no corredor. — Como
ela está?
— Bem, eu acho. A radioterapia foi tranqüila. — À
expressão assustada de Gina, Meghann acrescentou: —
Ela não queria preocupar vocês.
— Ela não pode ficar sozinha numa hora dessas.
— Eu estou aqui — respondeu Meghann, ofendida.
Gina apertou seu braço.
— Claire vai precisar de todas nós.
Meghann assentiu. Então ela e Gina se entreolharam.
— Pode ligar para mim, não importa a hora — sussurrou
Gina.
— Obrigada.
Depois disso Gina entrou na sala, anunciando em
voz alta:
— Muito bem, temos doces, pipoca, filmes hilariantes
e, evidentemente, jogos.
Meghann observou as quatro amigas juntas, todas
falando ao mesmo tempo. Voltou ao escritório e fechou a
porta.
EMBORA A RADIOTERAPIA propriamente dita durasse
apenas alguns minutos por dia, o tratamento monopolizava
a vida de Claire. Lá pelo quarto dia ela se sentia
exausta e nauseada. Mas os efeitos colaterais não chegavam
nem perto do horror que eram os telefonemas.
Todos os dias ela ligava para casa. Alison sempre
perguntava se o dodói já tinha melhorado, depois o pai
fazia a mesma pergunta de maneira diferente.
Meghann quase não ficava mais na firma. Talvez três
horas por dia, no máximo. O resto do tempo ela passava
lendo livros, artigos e sites. Atacava a questão do tumor
do mesmo modo como outrora perseguia pais malandros.
O único momento em que Meg parecia disposta a
desaparecer do mapa era às 14 horas: hora do telefonema
de Bobby.
Agora Claire estava sozinha na sala. Na cozinha, soaram
14 horas. Claire digitou o número do novo celular de
Bobby.
Ele atendeu ao primeiro toque.
— Oi, amor, você está dois minutos atrasada.
Claire recostou-se nas almofadas macias do sofá.
— Como foi seu dia?
Ela havia aprendido que era mais fácil ouvir que falar.
Sua cabeça andava meio anuviada. Perguntava-se
quanto tempo ele levaria para perceber que ela passava o
tempo todo apenas ouvindo ou que sua voz sempre falhava
ao dizer “Amo você”.
— Estou com saudade, Claire.
— Eu também. Mas só faltam algumas semanas.
— Kent acha que provavelmente teremos as músicas
escolhidas até a semana que vem. Aí iremos para o estúdio.
Você acha que poderia vir para isso? Eu adoraria
cantar as músicas para você.
— Talvez — respondeu ela, imaginando a mentira
que teria de inventar. Estava cansada demais para pensar
nisso agora. — Bem, amor, tenho de ir. Meg vai me levar
para almoçar. Depois vamos fazer as unhas.
— Vocês não fizeram as unhas ontem?
Claire titubeou.
— Hã, foram os pés. Eu amo você.
— Também amo você, Claire. Está... tudo bem?
Ela sentiu a ardência das lágrimas mais uma vez.
— Está tudo perfeito.
— PREPAREI UM PIQUENIQUE para nós — disse
Meghann no carro, na manhã seguinte, depois do tratamento,
e entrou numa rua arborizada. Estacionou numa
linda casa de telhado cinza.
— É a casa da minha sócia. Ela deixou que passássemos
a tarde aqui.
Meghann ajudou Claire a saltar do automóvel e atravessar
o jardim até o cais de madeira que se projetava na
água azul.
— Você se lembra do lago Winobee? — perguntou,
conduzindo Claire à beira do cais, ajudando-a a sentar-se.
— O verão em que ganhei aquele biquíni rosa?
Meghann deixou no chão a cesta de piquenique e
sentou-se ao lado da irmã. Ambas balançavam os pés sobre
o lago.
— Roubei aquele biquíni — confidenciou Meghann.
— Quando cheguei em casa, estava tão assustada que vomitei.
Mamãe não deu a menor importância, só despregou
os olhos da Variety e disse: “Menina de mão leve acaba na
pior.”
Claire virou-se para a irmã.
— Esperei você voltar, sabia? Meu pai sempre dizia:
“Não se preocupe, Claire. Ela é sua irmã, vai voltar.” Esperei
muito. O que aconteceu?
Meghann soltou um suspiro, ciente de que essa conversa
não podia mais ser protelada.
— Lembra-se de quando mamãe foi fazer o teste
para Starbase IV?
— Claro que me lembro.
— Ela não voltou. Eu estava acostumada com as
ausências de um ou dois dias, mas, depois de cinco dias,
comecei a entrar em pânico. Não tinha sobrado dinheiro.
Nós estávamos com fome. E os assistentes sociais começaram
a aparecer. Fiquei com medo de que nos pusessem
em alguma instituição. Então liguei para Sam.
— Eu sei de tudo isso, Meg.
— Ele concordou em receber nós duas.
— E recebeu.
— Mas não era meu pai. Eu tentei me adaptar a Hayden;
que piada! Conheci o pessoal errado e comecei a fazer
besteira. Sempre que olhava para você e Sam juntos,
sentia-me excluída. Você era tudo o que eu tinha, e de repente
eu não tinha mais você. Uma noite, voltei para casa
bêbada, e Sam disse que eu deveria me emendar ou ir
embora.
— E você foi embora. Para onde?
— Fiquei vagabundeando um tempo em Seattle, sentindo
pena de mim mesma. Então um dia me lembrei de
um professor que tinha acreditado no meu potencial, o Sr.
Earhart. Ele tinha me convencido de que o estudo era a
saída daquela vida errante de mamãe. Foi por isso que
sempre tirei nota A. Enfim, telefonei para o professor...
graças a Deus ele ainda trabalhava na mesma escola! Conseguiu
que eu me formasse mais cedo no secundário e fizesse
o exame para admissão na universidade. Eu me saí
bem. Nota máxima. A Universidade de Washington me
ofereceu bolsa integral. Você sabe o resto da história.
— Minha irmã gênio — murmurou Claire.
Dessa vez havia orgulho na voz, em vez de rancor.
— Eu dizia a mim mesma que aquilo era o melhor
para você, que você já não precisava da irmã mais velha.
Mas sabia o quanto eu a havia magoado. Era mais fácil
manter distância. Eu achava que você nunca me perdoaria.
Então não lhe dei a chance.
— Seu único erro foi se manter longe — observou
Claire.
— Estou aqui agora.
— Eu sei. — Claire fitou a água azul translúcida. —
Eu não teria enfrentado nada disso sem você.
— Não é verdade. Você é a pessoa mais corajosa que
conheço.
— Não sou tão corajosa assim, pode acreditar.
Meghann inclinou-se para trás, a fim de abrir a cesta
de piquenique.
— Venho esperando o momento certo para lhe dar
isto. — Ela pegou uma pasta e entregou-a a Claire. —
Aqui.
Claire pegou a pasta com um suspiro. Era aquela que
trazia escrito ESPERANÇA. As mãos tremiam ao abri-la.
Dentro havia uma dezena de relatos pessoais de vítimas
de glioblastoma multiforme. Todas haviam recebido
o prognóstico de menos de um ano de vida... pelo menos
sete anos antes.
Claire fechou os olhos, mas as lágrimas brotaram
mesmo assim.
— Eu precisava disso hoje.
— Imaginei que sim.
Ela engoliu em seco e ousou encarar a irmã.
— Venho sentindo muito medo.
Era bom finalmente admitir.
— Eu também — apressou-se em responder Meg, e
abraçou Claire.
Pela primeira vez desde a infância Claire era abraçada
pela irmã mais velha. Meghann afagou seu cabelo como
fazia quando Claire era pequena. Uma mecha desprendeu-
se ao toque de Meghann.
Claire recuou, viu o rufo de cabelo louro na mão da
irmã.
— Eu não queria contar para você que está caindo.
Toda manhã acordo com o meu travesseiro coberto de
cabelo.
— Talvez seja melhor voltarmos para casa — sugeriu
Meg afinal.
— Estou mesmo cansada.
Meghann ajudou Claire a levantar-se. Devagar, elas
retornaram para o carro. Claire apoiava-se pesadamente
no braço de Meg.
No apartamento, Meghann ajudou Claire a vestir o
pijama de flanela e deitar-se.
— É só cabelo — disse Claire. — Vai crescer de
novo.
— Claro.
Meghann deixou a pasta da ESPERANÇA na mesinha-
de-cabeceira e saiu do quarto. À porta, deteve-se.
A irmã estava de olhos fechados. Lágrimas escorriam-
lhe pelo rosto, formando minúsculas manchas cinza
no travesseiro.
E Meghann decidiu o que precisava fazer.
Fechou a porta e dirigiu-se ao telefone. Todos os
números de emergência de Claire estavam anotados num
bloco ao lado do aparelho.
Inclusive o de Bobby.
NAS ÚLTIMAS 24 HORAS, Claire havia perdido quase
metade do cabelo. Nessa manhã, ao aprontar-se para a radioterapia,
passou cerca de trinta minutos enrolando um
lenço de seda na cabeça.
— Pare de mexer nisso — pediu Meghann, quando
elas chegaram à sala de espera do setor de medicina nuclear.
— Você está ótima.
Claire retirou-se para fazer o tratamento e estava de
volta à sala de espera trinta minutos depois. Não se deu o
trabalho de botar o lenço outra vez.
— Vamos sair para tomar café? — propôs, ao ver
Meghann levantar-se.
— Preciso ir ao escritório. Tenho um compromisso.
— Ah.
Claire seguiu Meghann pelo corredor do hospital,
tentando acompanhá-la. Vinha se sentindo tão cansada
que era difícil não se arrastar como uma velha. Praticamente
dormiu no carro.
À porta do apartamento, Meghann parou, com a
chave na mão, e olhou para ela.
— Estou tentando fazer o melhor para você.
— Eu sei.
— Às vezes, faço besteira. Costumo achar que sei
tudo.
Claire sorriu.
— Você está querendo brigar?
— Só não se esqueça de que estou tentando fazer o
melhor.
— Tudo bem, Meg. Não vou me esquecer. Agora vá
para o trabalho. Não quero perder Judge Judy. Ela me lembra
você.
— Engraçadinha. — Meg abriu a porta do apartamento.
— Tchau.
Claire entrou na sala, fechando a porta. Lá dentro, o
aparelho de som estava ligado: “Pocket of a clown”, de
Dwight Yoakam.
Claire dobrou o corredor, e lá estava ele. Bobby.
Ela levou a mão à cabeça descoberta. Correu para o
banheiro, abriu a tampa do vaso e vomitou.
Ele se pôs atrás dela, afastando de seu rosto o pouco
cabelo que lhe havia sobrado, dizendo que estava tudo
bem.
— Eu estou aqui agora, Claire. Eu estou aqui.
Ela fechou os olhos, segurando lágrimas de humilhação.
Ele alisou suas costas.
Por fim ela avançou para a pia e escovou os dentes.
Quando se virou para ele, tentou sorrir.
— Bem-vindo ao meu pesadelo.
Ele aproximou-se, e o amor que havia em seus olhos
fez com que ela sentisse vontade de chorar.
— Nosso pesadelo, Claire.
Ela não sabia o que dizer. Tinha medo de que, se abrisse
a boca, cairia em pranto.
— Você não tinha o direito de esconder isso de
mim.
— Há tanto tempo você sonha em cantar!
— Sonho, sim. Gosto de cantar, mas amo você. Não
acredito que escondeu isso de mim. E se...
Claire mordeu o lábio.
— Desculpe. Só estava tentando amar você.
— Será que você sabe o que é o amor? “Estou no
hospital todos os dias, querido, lutando pela minha vida,
mas não se preocupe, vá cantar suas musiquinhas.” Que
tipo de homem você acha que eu sou?
— Desculpe, Bobby. Eu...
Ela olhou para ele.
Ele abraçou-a com tanta força que a fez arquejar.
— Eu amo você, Claire. Amo você — repetiu, com
ímpeto. — Quando é que vai botar isso na cabeça?
Ela enlaçou-o, agarrou-se a ele.
— Acho que o tumor estava atrapalhando, mas agora
entendo, Bobby. Entendo.
OS DIAS PASSAVAM LENTAMENTE. Cada nova
manhã encontrava Claire um pouco mais debilitada que a
noite anterior. Ela esforçava-se por manter uma postura
otimista, mas a saúde se deteriorava rápido.
As Bluesers visitavam-na com freqüência, juntas ou
separadas, fazendo o melhor que podiam para mantê-la
animada. O pior momento eram os fins de semana,
quando eles voltavam para Hayden. Claire tentava fingir
para Ali que estava tudo bem.
À noite, entretanto, ficavam apenas os três — Claire,
Meg e Bobby — no apartamento silencioso. Quase sempre
viam filmes. No começo, quando Bobby chegou, tinham
tentado passar a noite conversando ou jogando cartas,
mas isso se mostrara difícil. Excesso de assuntos perigosos.
Ninguém podia mencionar o futuro sem logo se
retrair, sem se perguntar: Será que vamos passar o Natal juntos?
O Dia de Ação de Graças? O verão?
Por fim a radioterapia terminou. Na manhã seguinte
Claire levantou-se cedo. Vestiu-se e tomou o café na varanda.
Ficou impressionada com a quantidade de gente
que já estava acordada, seguindo com suas vidas naquele
dia que determinaria seu futuro.
— É hoje — disse Meg, surgindo na varanda.
Atrás delas, a porta de vidro foi aberta.
— Bom dia, meninas.
Bobby aproximou-se por trás de Claire e beijou-lhe a
nuca.
Eles permaneceram ali por mais alguns minutos, em
silêncio absoluto, então se viraram juntos e saíram do apartamento.
Logo estavam no hospital. Quando chegaram à sala
de espera, Claire notou os outros pacientes que usavam
chapéus e lenços. Quando os olhares se cruzavam, havia
uma espécie de triste reconhecimento mútuo. Eles eram
membros de um clube para o qual ninguém queria entrar.
Claire agora desejava não ter usado o lenço. A calvície trazia
uma ousadia que ela queria abraçar.
Não houve espera nesse dia, não na data que responderia
a todas as suas perguntas. Ela registrou-se e logo
seguiu para a sala de ressonância magnética. Em poucos
instantes já lhe injetavam contraste e a punham na máquina
barulhenta.
Ao término, ela voltou para a sala de espera e sentou-
se entre Meghann e Bobby. Deu as mãos a eles.
Por fim chamaram seu nome.
Claire levantou-se. Bobby amparou-a.
— Estou aqui, amor.
Os três começaram a longa caminhada até o consultório
do Dr. Sussman. A placa na porta dizia CHEFE DA
UNIDADE DE NEUROLOGIA. O Dr. McGrail, chefe
da radiologia, também estava lá.
— Olá, Claire. Meghann — cumprimentou o Dr.
Sussman. — Bobby.
— E então? — perguntou Meghann.
— O tumor reagiu à radioterapia. Está 12% menor
— informou o Dr. McGrail.
— Que bom! — exclamou Meg.
Os médicos entreolharam-se. O Dr. Sussman dirigiu-
se ao negatoscópio onde estavam as imagens do cérebro
de Claire. Virou-se para ela.
— A redução de tamanho vai lhe dar mais tempo de
vida. Mas, infelizmente, o tumor ainda é inoperável. Sinto
muito.
Sinto muito.
Claire sentou-se na cadeira de couro. Achou que as
pernas não resistiriam.
— Quanto tempo tenho?
A voz do Dr. Sussman era suave.
— Os índices de sobrevivência não são bons. Alguns
pacientes chegam a viver um ano. Às vezes um pouco
mais.
— E o resto?
— De seis a nove meses.
Claire olhou a recente aliança de casamento, a mesma
que a avó Myrtle usara por seis décadas.
Meghann aproximou-se e ajoelhou-se de frente para
ela.
— Nós não vamos acreditar nisso. Os arquivos...
— Pare — pediu Claire, sacudindo a cabeça, pensando
em Ali. Imaginou os olhos e o sorriso luminoso da
filha, e lágrimas escorreram em seu rosto. Enxugou os
olhos, encarou o médico. — Qual é o próximo passo?
Meghann ficou de pé e começou a andar pelo consultório,
olhando as fotografias e os diplomas nas paredes.
Claire sabia que a irmã estava com medo e, portanto, irritada.
O Dr. Sussman puxou uma cadeira e sentou-se de
frente para Claire.
— Temos algumas opções. Nenhuma muito boa,
mas...
— Quem é este?
A voz de Meghann trazia nervosismo. Ela segurava
uma fotografia que havia retirado da parede.
O Dr. Sussman franziu a testa.
— Esse é um grupo de alunos da faculdade de medicina.
Ele se voltou para Claire.
Meghann jogou o retrato sobre a mesa com tanta
força que o vidro se partiu. Apontou para alguém na fotografia.
— Quem é este homem?
O Dr. Sussman inclinou-se para a frente.
— Joe Wyatt.
— Ele é médico?
Claire fitou a irmã.
— Você conhece Joe?
— Você conhece Joe? — surpreendeu-se Meghann.
— Na verdade, ele é radiologista. — Foi o Dr. Mc-
Grail que respondeu. — Um dos melhores do país. Pelo
menos, era. Uma sumidade em ressonância magnética.
Enxergava coisas, e possibilidades, que ninguém mais enxergava.
Claire franziu as sobrancelhas.
— Meghann, desista. Não precisamos mais de nenhum
radiologista. E, acredite em mim, Joe não seria a
pessoa indicada para se pedir ajuda. O que eu preciso é de
um milagre.
Meghann perguntou ao Dr. McGrail:
— Como assim, era o melhor?
— Ele abandonou a medicina. Aliás, desapareceu.
— Por quê?
— Porque matou a mulher.
CAPÍTULO
DEZ
A VOLTA PARA CASA durou uma eternidade. Ninguém
dizia nada. Quando chegaram ao apartamento, Bobby abraçou
Claire com tanta força, que ela mal conseguia respirar,
então ele se afastou.
— Preciso tomar um banho — murmurou.
Ela assentiu, sabendo exatamente do que ele precisava.
Ela própria havia derramado algumas lágrimas no
boxe de vidro de Meghann.
Desabou no sofá. Estava cansada e aérea. Havia um
zumbido em seus ouvidos e um formigamento na mão
direita, mas não podia admitir nada disso para Meghann.
Meg sentou-se de frente para ela, do outro lado da
mesinha de centro.
— Estão sendo feitas milhares de experiências clínicas...
Claire ergueu a mão.
— Podemos falar a sério por um minuto?
Meghann parecia desnorteada.
— O que foi? — perguntou.
— Quando eu era pequena, costumava fantasiar contrair
uma doença rara que levasse você e mamãe ao meu
leito de morte. Imaginava vocês chorando por mim.
Meg levantou-se com tanta fúria que bateu a canela
na mesinha de centro e soltou um palavrão.
— Eu... não posso conversar sobre isso. Não posso.
Parecia-lhe impossível sair da sala rápido o bastante.
— Mas preciso que você converse — objetou Claire
à sala vazia.
Uma dor de cabeça insinuou-se atrás dos olhos novamente.
O dia todo ela ameaçara surgir. Claire estava se
recostando no sofá quando a dor a acometeu de fato.
Soltou um gemido, tentou gritar. A cabeça parecia prestes
a explodir.
Ela não conseguia se mexer, não conseguia respirar.
Alison, pensou.
Então tudo escureceu.
MEGHANN ESTAVA ao lado da cama da irmã, segurando
as barras de metal.
— O remédio está adiantando?
Claire parecia pequena no leito hospitalar, frágil. A
tentativa de sorrir foi de partir o coração.
— Está. Só me faltava essa, uma convulsão.
Bem-vinda ao meu novo mundo. Quanto tempo vou ficar
aqui?
— Alguns dias.
— É hora de ligar para mamãe.
Meghann retraiu-se. A boca tremia.
— Tudo bem.
— Diga ao papai, a Ali e às Bluesers que também
podem vir me ver.
Meghann sentia a derrota na voz da irmã. Queria
deixá-la furiosa o suficiente para lutar, mas lhe faltava voz.
— Vou dormir — anunciou Claire. — Estou cansada.
— São os remédios.
— São? — Claire sorriu. — Boa noite. E cuide de
Bobby hoje. Ele não é tão forte quanto parece.
Alguns minutos depois Bobby entrava no quarto,
com a aparência abatida. Os olhos estavam vermelhos e
inchados.
— Ela acordou — informou Meghann. — E voltou
a dormir.
— Droga! — Ele pegou a mão de Claire. — Oi, amor.
Voltei. Só saí para tomar café. — Soltou um suspiro.
— Ela está desistindo.
— Eu sei. Quer que eu telefone para todo mundo.
Peça que venham vê-la. Como se conta uma coisa dessas a
Ali?
Os olhos dela ardiam de lágrimas.
— Eu conto — balbuciou Claire, abrindo os olhos.
Ela sorriu cansada para o marido. — Bobby — sussurrou
—, eu amo você.
Meghann não conseguia ficar ali nem mais um segundo.
— Vou dar os telefonemas. Tchau.
Saiu às pressas do quarto.
Era tarde agora, e os corredores estavam silenciosos.
Ela dirigiu-se à fileira de telefones públicos e digitou o
número da mãe.
— Sou eu, mamãe. Meghann. Claire está doente.
— Ela está em lua-de-mel.
— Isso foi há um mês, mamãe. Ela agora está no
hospital.
— É melhor que isso não seja uma das suas invencionices,
Meggy. Como quando você ligou para o meu
trabalho porque Claire tinha caído da cama e você achava
que ela estava paralisada.
— Ela tem um tumor no cérebro, mamãe. A radioterapia
não funcionou, e ninguém tem coragem de operá-
la.
Houve uma longa pausa. E finalmente:
— Ela vai ficar bem?
— Vai — respondeu Meghann, por não imaginar
nenhuma outra resposta. Então, com calma, admitiu: —
Talvez não. Você deveria vir. Sem sua comitiva. Sozinha.
— Eu tenho um evento do Starbase IV amanhã às 14
horas e...
— Esteja aqui amanhã, ou vou ligar para a revista
People e dizer que você não visitou sua filha que tem um
tumor cerebral.
— Eu não sou boa nesse tipo de coisa.
— Ninguém é, mamãe.
Meghann desligou o telefone e digitou o número de
Sam. Deixou soarem alguns toques, mas perdeu a coragem.
Precisava contar aquilo pessoalmente.
Bateu o fone no gancho e retornou ao quarto da irmã.
Bobby estava ao lado da cama, cantando em voz baixa
para Claire, que dormia. Isso fez Meghann deter-se.
Bobby virou-se para ela. Havia lágrimas em seu rosto.
— Ela não abriu mais os olhos.
— Mas vai abrir. Continue cantando. Tenho certeza
de que ela adora.
— É — respondeu ele, a voz falhando.
Meg nunca vira um homem sofrer tanto.
— Vou sair para contar a Sam. Se Claire acordar... —
Ela interrompeu-se. — Quando Claire acordar, avise que
voltarei logo. Você tem a chave do apartamento?
— Vou dormir aqui.
— Tudo bem.
Meghann deixou o quarto. Praticamente correu até o
carro. E seguiu para o norte.
Noventa minutos depois, alcançava Hayden. Diminuiu
a marcha, parou no sinal de trânsito.
E lá estava: o barracão de metal.
Joe Wyatt.
Dr. Joseph Wyatt. Claro. Não admirava que ele lhe
parecesse familiar. O julgamento fora notícia de primeira
página.
Ele é radiologista. Provavelmente um dos melhores do país.
Agora aquilo voltava-lhe à mente, a informação assombrosa
que de algum modo se perdera, enterrada sob a camada
grossa do sofrimento.
E no entanto, quando ela o procurara, chorando pela
irmã doente, ele não fizera nada. Nada. E conhecia Claire.
— Filho-da-puta!
Ela olhou para o lado. O envelope contendo as imagens
mais recentes da ressonância magnética de Claire estava
no banco do carona.
Meghann virou o volante com rapidez e pisou no
freio, estacionando junto ao meio-fio. Então pegou o envelope
e avançou para o chalé. Bateu à porta, gritando, até
ouvir passos.
Quando ele abriu a porta, viu quem era e disse “O
que...”, ela o empurrou com tanta força que ele quase caiu
para trás.
— Oi, Joe. Não vai me convidar para entrar?
Ela fechou a porta com um chute.
— É quase meia-noite.
— É mesmo, Dr. Wyatt.
Ele sentou-se afundado no sofá e a encarou.
— Você me abraçou. Deixou que eu chorasse nos
seus braços. — A voz estava trêmula. — E não me ofereceu
nada. Que tipo de homem é você?
— O tipo de homem que sabe que seus dias de herói
ficaram para trás. Se você sabe quem eu sou, sabe o que
fiz.
— Você matou sua mulher. — Embora ele se retraísse,
ela prosseguiu. — Seu julgamento foi um acontecimento
em Seattle. O processo do médico que fez eutanásia
na mulher doente.
— “Eutanásia” é um termo mais bonito que “homicídio
culposo”.
Parte do furor dela murchou à tristeza que havia na
voz dele.
— Olhe, Joe, num momento normal eu conversaria
sobre o que você fez. Mas agora não se trata de um momento
normal. Minha irmã está morrendo. — Ela jogou o
envelope grande sobre a mesinha de centro, na frente dele.
— Aqui estão as imagens da ressonância magnética.
Talvez você possa me ajudar.
— Minha licença expirou. Já não posso exercer a
medicina. Sinto muito.
— Sente muito? Sente muito? Você pode salvar vidas e
está escondido nesta porcaria de chalé sentindo pena de si
mesmo? — Ela o encarou, desejando odiá-lo, magoá-lo,
sem no entanto conseguir imaginar como. — Eu gostei de
você.
— Sinto muito — repetiu ele.
— Vou lhe mandar um convite para o enterro.
Ela deu meia-volta e avançou para a porta.
— Leve isto.
Ela parou e dirigiu-lhe um último olhar demorado.
— Não, Joe. Você vai ter de pegá-lo. Jogá-lo na lixeira
você mesmo.
Então saiu. Já estava no carro quando começou a
chorar.
CLAIRE FICAVA CADA VEZ mais fraca. No segundo
dia no hospital, queria apenas dormir.
Os amigos e parentes começaram a aparecer religiosamente.
Todos. Até a mãe. As Bluesers haviam baixado
no minúsculo quarto de hospital, levando vida, riso, flores
e comida calórica. Elas conversavam, contavam piadas e
lembravam-se dos velhos tempos. Só Gina tivera coragem
de aventurar-se pela paisagem gelada do medo de Claire.
— Sempre estarei presente para Ali — afirmou
quando todas as demais se achavam no refeitório.
— Obrigada — Claire conseguiu dizer. Então, com
suavidade: — Ainda não consegui contar a ela.
— E como poderia? — Os olhos de Gina cruzaram-
se com os dela, enchendo-se de lágrimas. Ambas estiveram
imaginando como uma mulher diria adeus à filha
de cinco anos. Depois de uma longa pausa, Gina sorriu.
— O que vamos fazer com seu cabelo?
— Pensei em cortar. Descolorir o que resta.
— Chiquérrimo. Vamos todas parecer velhas donas
de casa perto de você.
— Esse é meu sonho agora — admitiu Claire, sem
conseguir se conter. — Virar uma velha dona de casa.
No fim, por mais que amasse as amigas, Claire ficava
contente quando elas iam embora. Mais tarde naquela
noite, na escuridão silenciosa, sucumbiu aos remédios e
adormeceu.
Acordou com um sobressalto. O coração batendo
rápido demais, descompassado. Parecia não conseguir
respirar. Algo estava errado.
— Claire, você está bem?
Era Bobby. Ele obviamente estivera dormindo. Esfregando
os olhos, levantou-se e aproximou-se da cama.
— Bobby — sussurrou ela —, venha para a cama
comigo.
Ele olhou os aparelhos, os fios intravenosos, os tubos.
— Oh, amor...
Inclinou-se e deu-lhe um beijo.
Ela fechou os olhos, sentindo-se afundar no travesseiro.
— Alison — murmurou. — Preciso da minha filha...
A dor explodiu atrás do olho direito.
Ao lado da cama, o alarme disparou.
NÃO HÁ DOR. Nenhuma. Os tubos que a ligam aos aparelhos
se foram. Ela quer mostrar que se sente melhor.
De repente percebe que está se vendo de cima, observando os
médicos mexerem em seu corpo. Abriram a camisola e estão apertando
alguma coisa contra o seu peito.
— Afastem-se-grita um deles.
É um alívio tão grande estar ali em cima, onde não há dor.
— Afastem-se.
Então ela pensa na filha, em sua preciosa menininha, que receberá
a notícia de que a mãe morreu.
O MÉDICO afastou-se.
— Ela não resistiu.
Meghann correu para a cama, gritando:
— Não faça isso, Claire. Volte. Volte, droga!
Um homem tentou afastá-la. Ela desvencilhou-se
dele.
— Estou falando sério, Claire. Volte. Você não pode
deixar Alison assim. — Ela sacudia a irmã pelos ombros.
— Não ouse fazer isso.
— O batimento voltou — gritou alguém.
Empurraram Meghann para o lado. Ela manteve-se
no canto da sala, olhando, rezando, enquanto os médicos
estabilizavam o quadro.
Por fim eles se retiraram, arrastando os equipamentos.
Meg fitou o peito de Claire, vendo-o subir e descer.
— Eu ouvi você, sabia?
Ao escutar a voz de Claire, Meg aproximou-se.
Lá estava a irmã, branca como um papel, sorrindo.
— Eu pensei: “Meu Deus, estou morta, e ela continua
gritando comigo.”
JOE TENTARA JOGAR FORA o envelope pelo menos
dez vezes. O problema era que não conseguia tocá-lo.
Covarde.
Ouviu a palavra tão claramente que levantou a cabeça.
O chalé estava vazio. Olhou para Diana, que retribuía
o olhar do alto do consolo da lareira.
Não precisava evocar a imagem dela para saber quais
seriam suas palavras naquele instante. Ela estaria tão envergonhada
dele quanto ele próprio. Lembraria ao marido
que um dia ele fizera o juramento de ajudar as pessoas. E
também não se tratava de qualquer pessoa. Era Claire Cavenaugh,
a mulher que ficara ao lado de Diana hora após
hora quando ela estava doente, jogando palavras cruzadas
e assistindo a novelas.
Agora era Claire que se achava num leito daqueles,
num quarto que exalava desespero. Se estivesse ali agora,
Diana lhe diria que essa era evidentemente uma segunda
chance. Uma coisa era fugir do nada. Outra era virar as
costas para imagens de ressonância magnética que traziam
no canto o nome de uma pessoa amiga.
Ele soltou um longo suspiro e estendeu o braço, fingindo
não notar que a mão tremia. Tirou as imagens do
envelope e levou-as para a cozinha, onde a luz do sol irradiava
pela janela acima da pia.
Ao analisá-las, entendeu por que todo mundo havia
determinado que o tumor era inoperável. A perícia necessária
para realizar a cirurgia era quase inaudita. Seria preciso
um neurocirurgião com mãos divinas e ego à altura.
Mas, com uma resseção cuidadosa, talvez houvesse uma
chance. Era possível — apenas possível — que aquela
sombra estreita não fosse tumor, mas tecido reagindo ao
tumor.
Stu Weissman. O caubói. Stu Weissman, da UCLA,
talvez conseguisse. Joe consultou o relógio. Sabia que só
poderia falar com ele ao telefone depois do meio-dia.
Não havia dúvida sobre o que fazer em seguida.
Tomou um longo banho quente e vestiu a camisa
azul que comprara havia pouco tempo, arrependido de
não ter roupas melhores, aceitando que não as tivesse.
Pegou as imagens, guardou-as no envelope e dirigiu-se à
casa de Smitty. Smitty estava na sala, assistindo à televisão.
Ergueu a cabeça.
— Oi, Joe.
— Sei que isso não é comum, mas será que você
poderia me emprestar a caminhonete? Preciso ir a Seattle.
Talvez tenha de passar a noite lá.
Smitty pegou a chave no bolso e jogou-a para ele.
— Obrigado.
Joe entrou na velha e enferrujada picape Ford 1973.
Bateu a porta.
Olhou o painel. Fazia anos que não se sentava no
banco do motorista. Ligou o veículo e pisou no acelerador.
DUAS HORAS DEPOIS PARAVA a caminhonete no
estacionamento subterrâneo da Madison com a Broadway
e ingressava no saguão de sua antiga vida.
Quando a porta do elevador abriu, ele entrou. Duas
pessoas de jaleco branco subiram ao seu lado, conversando
sobre resultados laboratoriais. Saltaram no terceiro andar:
o andar da passarela que ligava aquele prédio ao hospital
Swedish.
Joe não pôde deixar de lembrar-se do tempo em que
andava naquele edifício de cabeça erguida.
No 14º andar a porta abriu. Ele manteve-se parado
por um instante, olhando as letras negras na porta de vidro
do outro lado do corredor: ESPECIALISTAS EM
MEDICINA NUCLEAR DE SEATTLE. A clínica que
ele iniciara sozinho. Havia os nomes de sete ou oito médicos
listados abaixo. O de Joe não constava ali.
Ele passou pela fila de mulheres aguardando suas
mamografias e dobrou outro corredor. No fim dele, respirou
fundo e bateu à porta.
— Entre — ecoou a voz familiar.
Joe entrou no grande escritório que outrora havia
sido seu. Li Chinn estava sentado à mesa, lendo. À entrada
de Joe, ergueu os olhos. Uma expressão quase cômica de
surpresa atravessou-lhe o rosto.
— Não acredito.
— Oi, Li.
Li parecia pouco à vontade, sem saber como agir, o
que dizer.
— Faz muito tempo, Joe.
— Três anos.
— Onde estava?
— E isso importa? Eu gostaria que você desse uma
olhada numas imagens.
Com o consentimento de Li, Joe dirigiu-se ao negatoscópio
e dispôs os filmes. Li aproximou-se, analisando-
os. Por um longo tempo, não disse nada. Então:
— Você está vendo alguma coisa que eu não estou?
Joe apontou.
— Aqui.
Li cruzou os braços, franziu a testa.
— Poucos cirurgiões se aventurariam. Os riscos são
enormes.
— Ela vai morrer se não fizer a cirurgia.
— Ela pode morrer por causa da cirurgia.
— Acha que vale a pena tentar?
Li o encarou, o cenho cada vez mais franzido.
— O antigo Joe Wyatt nunca pedia opinião.
— As coisas mudam — respondeu ele, simplesmente.
— Conhece algum cirurgião que faria isso? Que teria
capacidade de fazer isso?
— Stu Weissman, da UCLA.
— Ah. O caubói. É, talvez.
— Eu não exerço mais a medicina. Minha licença
expirou. Você pode mandar as imagens ao Stu? Vou ligar
para ele.
Li apagou o negatoscópio.
— Posso, sim. Sabe, não é difícil revalidar sua licença.
— Eu sei.
Joe manteve-se imóvel por um instante. O silêncio
espraiou-se como um rio entre os dois homens. Ele fez
menção de retirar-se.
— Espere. — Li aproximou-se. — Em particular,
muitos de nós teriam feito o mesmo. Diana estava sentindo
muita dor. Não havia esperança. Só agradecemos a
Deus que não estávamos no seu lugar.
Joe não conseguia pensar em nenhuma resposta para
aquilo.
— Você tem um dom, Joe — prosseguiu Li. — Abrir
mão dele seria um crime. Quando estiver pronto, venha
me ver. Este hospital tem a função de salvar vidas, e
não de dar ouvidos a velhos mexericos.
— Obrigado.
Era uma palavra pequena, pequena demais para expressar
sua gratidão. Constrangido pela profundidade do
que sentia, Joe murmurou um agradecimento outra vez e
saiu da sala.
No saguão, dirigiu-se ao telefone público e ligou para
Stu Weissman.
— Joe Wyatt! — exclamou Stu. — Como está você?
Achei que tivesse desaparecido da face da Terra. Uma pena
o que você passou.
Ele não queria perder tempo com aquele papo de
“onde você esteve”. Disse:
— Eu gostaria que você fizesse uma cirurgia. Muito
arriscada. Você é o único homem que conheço capaz de
realizá-la.
— Qual é o quadro?
Joe explicou o que sabia do histórico de Claire, informou
o diagnóstico atual e resumiu o que vira nas imagens.
— E você acha que eu posso fazer alguma coisa.
— Só você.
— Bem, Joe. Você tem o melhor olho do ramo.
Mande-me as imagens. Se eu vir o que você está vendo,
embarcarei no próximo avião. Mas certifique-se de que a
paciente entende os riscos.
— Pode deixar. Obrigado, Stu.
Joe pôs o fone no gancho. Agora precisava falar com
Claire.
Voltou ao elevador, cruzou a passarela e entrou no
hospital Swedish. Algumas pessoas franziam a testa ao
reconhecê-lo, outras sussurravam às suas costas. Ele as
ignorou e seguiu adiante. Ninguém teve coragem de falar
com ele ou perguntar por que estava de volta, até ele alcançar
a UTI. Lá, alguém disse:
— Dr. Wyatt!
Ele virou-se devagar. Era Trish Bey, enfermeira-
chefe da UTI. Eles haviam trabalhado juntos durante
muitos anos. Ela e Diana tinham virado grandes amigas
no fim.
— Oi, Trish.
Ela sorriu.
— Que bom vê-lo de volta! Sentimos sua falta.
Os ombros dele relaxaram. Ele quase retribuiu o sorriso.
— Obrigado.
Os dois ficaram se olhando por um instante, então
ele se despediu e avançou para o quarto de Claire.
Bateu de leve e abriu a porta.
Ela estava sentada na cama, dormindo, a cabeça
pendendo para o lado. Ele aproximou-se, tentando não se
lembrar de quando Diana ficara assim. Pálida e frágil, o
cabelo rareando, como se fosse uma boneca antiga que
tivesse sido muito amada e depois abandonada.
Ela despertou, olhou para ele.
— Joey — sussurrou, sorrindo com cansaço. — Ouvi
dizer que você tinha voltado. Bem-vindo.
Ele sentou-se ao lado da cama.
— Oi, Claire.
— Eu sei. Já tive dias melhores.
— Você está linda. Sempre foi.
— Obrigada, Joe. Vou mandar lembranças a Di. —
Ela fechou os olhos. — Desculpe, mas estou exausta.
— Não tenha tanta pressa em ver minha mulher.
Devagar, ela abriu os olhos.
— Não existe esperança, Joe. Mais que todo mundo,
você sabe disso. Dói demais fingir o contrário.
— Eu vejo a coisa... de outro modo.
— Está dizendo que eu não deveria desistir?
— A cirurgia pode salvá-la. Mas é possível que haja
efeitos colaterais complicados, Claire. Paralisia. Perda da
capacidade motora. Danos cerebrais.
— Sabe no que eu estava pensando antes de você
chegar?
— Não.
— Em como dizer a Ali que a mamãe vai morrer. Eu
correria qualquer risco, Joe. Qualquer coisa para não ter
de me despedir de Ali para sempre.
— Vou mandar suas imagens da ressonância para
um amigo meu. Se ele concordar com meu diagnóstico,
vai fazer a cirurgia.
— Obrigada, Joe — murmurou ela, e fechou os olhos
de novo.
Ele inclinou-se e beijou-lhe a testa.
— Tchau, Claire.
Estava perto da porta quando ela chamou:
— Joe?
Ele virou-se.
— O quê?
— Ela não deveria ter pedido aquilo a você.
— Quem? — perguntou ele, embora soubesse.
— Diana. Eu nunca pediria uma coisa dessas a
Bobby. Sei que isso o destruiria.
Joe não sabia o que responder. Era o mesmo que
Gina sempre dizia. Ele deixou o quarto e fechou a porta.
Com um suspiro, encostou-se na parede e fechou os olhos.
— Joe?
Ele reabriu os olhos e afastou-se da parede. Meghann
estava a poucos metros de distância, os olhos vermelhos
e úmidos.
Aproximou-se dele.
— Diga que achou uma maneira de ajudá-la.
— Falei com um colega da UCLA. Se ele concordar
comigo, vai operá-la, mas...
Meghann abraçou-o.
— Obrigada!
— É muito arriscado, Meg. Ela pode não sobreviver
à cirurgia.
Meghann afastou-se, segurou as lágrimas.
— As mulheres da nossa família preferem perder lutando.
Obrigada, Joe. E...desculpe pelas coisas que eu disse.
Às vezes eu sei ser uma bruxa.
— Agora que você me avisa?
Ela sorriu, enxugou os olhos mais uma vez.
— Você deveria ter me falado da sua mulher.
— Num dos nossos bate-papos íntimos?
— É, num deles.
— Não é conversa para se ter na cama. Como fazer
amor com uma mulher, depois contar a ela que matei minha
esposa?
— Você não a matou. O câncer a matou. Você pôs
fim ao sofrimento dela.
— E à respiração.
Meghann encarou-o.
— Se Claire me pedisse, eu faria o mesmo. Acho que
também estaria disposta a ir para a cadeia por isso.
— Peça a Deus para nunca ter de descobrir.
A voz dele falhou.
— O que fazemos agora? — perguntou ela. — Com
relação a Claire.
— Esperamos a resposta de Stu. E rezamos para que
ele concorde com minha avaliação.
NA MANHÃ SEGUINTE Stu Weissman telefonou para
Claire. Ela estava tão grogue que precisou de algum tempo
para entendê-lo.
— Espere um pouco — pediu afinal, sentando-se.
— O senhor está dizendo que vai fazer a cirurgia?
— Isso mesmo. Mas o quadro não é dos melhores.
Você pode acabar sofrendo paralisia, danos cerebrais ou
algo pior.
— Algo pior mais cedo, é isso que o senhor quer dizer.
Ele riu.
— É.
— Vou arriscar.
— Então também vou. Estarei aí à noite. Marquei a
cirurgia para as 8 da manhã. — A voz ficou mais branda.
— Não quero ser pessimista, Claire. Mas é melhor você
pôr suas coisas em ordem hoje. Se é que me entende.
— Entendo, sim. Obrigada, Dr. Weissman.
DURANTE TODO O DIA Claire despediu-se das amigas.
Com Karen, brincou sobre os cabelos brancos que
Willie certamente lhe traria nos anos seguintes. Para
Charlotte, disse:
— Não desista de ter filhos. Eles são a marca que
deixamos neste mundo. Se não engravidar, adote.
Gina foi a mais difícil. Durante quase uma hora elas
ficaram juntas, com Claire volta e meia cochilando.
— Cuide da minha família — pediu afinal.
Todas faziam de conta de que Claire ainda estaria ali
na noite seguinte, rindo como sempre. Ela transmitia essa
fé às amigas, e, embora quisesse tê-la ela própria, a esperança
parecia um suéter emprestado que não lhe assentava
bem.
A idéia das despedidas que ainda teria de enfrentar
era devastadora. Bobby e Sam a abraçariam e chorariam,
Meg ficaria nervosa e exaltada, e ainda havia Ali. Como ela
conseguiria passar por tudo isso?
CLAIRE PROVAVELMENTE DORMIRA de novo.
Quando acordou, a luz do sol lá fora havia sumido, deixando
no quarto um leve tom prateado.
— Mamãe acordou!
Ela viu a filha abraçada a Meghann como uma macaquinha,
os braços enlaçados no pescoço, os pés presos
às costas da tia.
Claire soltou um gemido antes de recobrar o ânimo e
abrir um sorriso cansado. O único jeito de atravessar aquele
momento era fingir que haveria outro. Por Ali, ela
precisava acreditar num milagre.
— Olá, Ali. — Claire abriu os braços. — Venha aqui.
Com cuidado, Meg deixou Ali nos braços finos de
Claire. Ela abraçou a filha com força. Estava refreando as
lágrimas e mantendo o sorriso por um triz quando sussurrou
no ouvido pequenino dela:
— Lembre-se de que amo você.
— Eu sei — respondeu Ali, aninhando-se à mãe. Ela
manteve-se imóvel como se dormisse, mais parada que de
costume. Foi aí que Claire se deu conta de que Alison entendia.
A filha aproximou-se e disse: — Falei com Deus
que nunca mais vou pedir Cap’n Crunch se Ele fizer você
melhorar.
Claire manteve-se agarrada a Ali o quanto pôde.
— Leve-a para casa — pediu, quando a dor ficou
insuportável.
Meghann adiantou-se imediatamente, tomando Ali
nos braços outra vez.
Mas Ali se desembaraçou do domínio de Meg e sentou-
se na cadeira de plástico ao lado da cama. Ficou ali
parada na cadeira bamba, olhando para Claire.
— Eu não quero que você morra, mamãe — disse.
Doía tanto que até chorar era difícil.
— Eu sei, princesa, e amo você mais do que há estrelas
no céu. Agora volte para casa com o vovô e Bobby.
Eles vão levar você para assistir a um filme.
Meghann ergueu Ali novamente. Claire notou que ela
também estava à beira das lágrimas.
— Peça a Bobby que vá para casa hoje — suplicou à
irmã. — Diga que Ali precisa dele esta noite.
Meg apertou a mão dela.
— Nós precisamos de você.
— Agora preciso dormir — foi tudo que Claire conseguiu
pensar em dizer.
HORAS MAIS TARDE, Claire acordou com um sobressalto.
Por um instante, não sabia onde estava. Então viu as
flores e os aparelhos. Se comprimisse os olhos, divisaria o
relógio de parede. O luar reluzia no vidro do mostrador.
Eram 4 horas da madrugada.
Dali a poucas horas, abririam sua cabeça. Ela começou
a entrar em desespero, então viu que Meg estava no
canto do quarto, esparramada numa daquelas cadeiras
desconfortáveis, dormindo.
— Meg — sussurrou, apertando o botão de controle
da cama, que se inclinou para cima. — Meg — chamou
em voz mais alta.
Meghann endireitou-se e olhou à volta.
— Está na hora?
— Não. Faltam quatro horas.
Meghann puxou a cadeira para perto da cama.
— Dormiu?
— Um pouco. — Claire olhou a lua pela janela. De
repente, sentia medo, tremia. — Você se lembra do que
eu fazia quando tinha pesadelo?
— Você se deitava na cama comigo.
— É. Aquele catre velho na sala do trailer. — Claire
sorriu. — Ele tinha cheiro de uísque e cigarro, mas,
quando eu me deitava com você, e você me abraçava, era
como se nada pudesse me atingir.
Ela encarou Meghann e puxou a manta devagar.
Meghann hesitou, mas acabou entrando no leito de
Claire, e puxou-a para si.
— Por que nos esquecemos de tudo que era importante?
— perguntou Claire.
— Eu fui uma idiota.
— Nós desperdiçamos muito tempo.
— Desculpe — pediu Meg. — Eu deveria ter dito
isso há anos.
Claire pegou a mão de Meg.
— Vou lhe pedir um favor, mas não posso pedir duas
vezes. Dizer cada palavra é como engolir vidro quebrado.
Se o pior acontecer, quero que você participe da
vida de Ali. Ela vai precisar de uma mãe.
Meg apertou a mão de Claire. Longos segundos se
passaram antes de responder:
— Vou me certificar de que ela sempre se lembre de
você.
Claire assentiu; não conseguia falar.
Depois disso elas ficaram deitadas na escuridão, abraçadas,
até a alvorada iluminar o quarto e os médicos
levarem Claire.
MEGHANN ESTAVA À JANELA, olhando o aglomerado
de prédios bege do outro lado da rua. Nas três horas
que se passaram desde que haviam levado Claire para a
cirurgia, Meghann contara todas as janelas.
Alguém puxou a manga de sua blusa. Ela olhou para
baixo. Alison a fitava.
— Estou com sede.
— Tudo bem, querida — disse Meg, colocando-a no
colo e levando-a para o refeitório.
— Quero Pepsi Blue. Foi o que você me deu da última
vez.
— São só 11 horas da manhã. É melhor tomar suco.
— Você está parecendo minha mãe.
Meg engoliu em seco.
— Sabia que sua mãe adorava Tab quando era pequena?
Mas eu a obrigava a tomar suco de laranja.
Meghann comprou o suco e levou Alison de volta à
sala de espera. Mas, quando se inclinou para deixá-la no
chão, a menininha apertou-a com mais força.
— Ah, Ali — suspirou Meg, abraçando a sobrinha.
Ela queria prometer que sua mãe melhoraria, mas as
palavras ficaram presas na garganta. Sentou-se, ainda abraçando
Ali, e afagou seu cabelo. Em poucos minutos a
criança dormia.
Do outro lado da sala Gina olhou para elas e retornou
a suas palavras cruzadas. Sam, a mãe, Bobby, Karen e
Charlotte jogavam cartas. Joe estava sentado num canto,
lendo uma revista. Há horas não falava com ninguém.
Por volta do meio-dia a enfermeira surgiu para avisar
que demoraria mais algumas horas.
— Vocês deveriam comer alguma coisa — sugeriu.
— Não vai ser de grande ajuda para Claire se caírem desmaiados
aqui.
Sam assentiu e levantou-se.
— Vamos — chamou todos. — Vamos sair um
pouco. O almoço é por minha conta.
— Eu vou ficar — decidiu Meghann. — Alison precisa
dormir.
Quando todos se foram, Meghann recostou-se na
cadeira e apoiou a cabeça na parede. Parecia que apenas
um dia antes abraçara Claire assim, garantindo à irmã caçula
que tudo ficaria bem.
— Já se passaram quatro horas, droga! O que estão
fazendo aí dentro?
Meg abriu os olhos. A mãe estava diante dela, segurando
um cigarro Virginia Slims apagado. A maquiagem
havia desbotado um pouco, borrara em algumas partes, e,
sem a maquiagem, a mãe também parecia desbotada.
— Achei que você tivesse ido almoçar com eles.
— Comida de refeitório! Nem pensar. Depois janto
na suíte do hotel.
— Sente-se, mamãe.
A mãe desabou na cadeira de plástico ao lado.
— Este é o pior dia da minha vida. E isso não é
pouco.
AS HORAS PASSARAM ARRASTADAS até finalmente,
por volta das 16 horas, o Dr. Weissman surgir na sala de
espera. Meghann foi a primeira a vê-lo. Firmou Ali no colo
e se pôs de pé. Bobby levantou-se em seguida, então
Sam, a mãe, Joe, Gina, Karen e Charlotte fizeram o mesmo.
O médico conseguiu abrir um sorriso cansado.
— A cirurgia correu bem.
— Graças a Deus! — murmuraram todos juntos.
— Mas ela ainda corre perigo. O tumor era mais invasivo
que imaginávamos. — Ele olhou para Joe. — As
próximas horas nos dirão mais.
CAPÍTULO
ONZE
CLAIRE ACORDOU GROGUE E CONFUSA. Uma
dor de cabeça latejava atrás dos olhos. Ela estava prestes a
apertar o botão de chamada das enfermeiras para pedir
um Advil quando lhe ocorreu que estava viva.
Testou a memória procurando lembrar-se de todas
as cidades em que havia morado na infância, mas chegara
apenas a Barstow quando a primeira enfermeira apareceu.
Depois disso ela foi cutucada, espetada e examinada até
não conseguir mais pensar.
A família revezava-se para lhe fazer companhia. Duas
de suas lembranças mais vividas do período pós-operatório
viriam a ser Bobby segurando um saco de gelo por
horas a fio sobre sua cabeça e o pai lhe dando lascas de
gelo quando ela sentia sede. Meghann levou para ela o
desenho mais recente de Ali: três figuras coloridas à margem
de um rio. Num garrancho vago ao fundo, lia-se:
“Amo você, mamãe.”
No segundo dia posterior à cirurgia Claire ficou irritadiça.
Sentia dor no corpo inteiro, e os machucados na
testa, causados pelo halo metálico, haviam começado a
inchar.
Quando chegou a hora da ressonância magnética, ela
visualizou o cérebro imaculado, viu-o tão claramente que,
quando o exame terminou, as têmporas estavam úmidas
de lágrimas.
A espera do resultado foi insuportável. Meghann
andava de um lado para outro do quarto do hospital.
Bobby apertava a mão de Claire com tanta força que ela
perdeu a sensação dos dedos. Sam surgia de poucos em
poucos minutos.
Por fim a enfermeira de Claire apareceu.
— Os médicos estão esperando por você.
Pequenas coisas ajudaram Claire no trajeto realizado
em cadeira de rodas: o calor da mão de Bobby em seu
ombro, a maneira como Meghann se mantinha próxima.
Quando chegaram ao consultório onde os médicos
aguardavam, o Dr. Weissman foi o primeiro a falar.
— Bom dia, Claire.
— Bom dia — respondeu ela.
Os homens esperaram Meghann sentar-se. Logo entenderam
que ela não se sentaria.
O Dr. Weissman acendeu o negatoscópio. Claire analisou
as imagens de seu cérebro, então encarou os homens.
— Não estou vendo o tumor.
O Dr. Weissman sorriu.
— Acho que tiramos tudo, Claire.
— Oh, meu Deus!
Ela havia ansiado por isso, rezado por isso.
— Os primeiros relatórios laboratoriais indicam que
se tratava de um astrocitoma de baixo grau.
— Não era glioblastoma multiforme? Graças a Deus.
— Sim, uma boa notícia. E ele também era benigno.
Um dos outros médicos interveio.
— Você é uma mulher de muita sorte. O Dr.
Weissman fez um trabalho excelente. Mas, como você sabe,
a maioria dos tumores cerebrais se regenera. São
28%...
— Pare! — Claire só se deu conta de que havia gritado
quando viu o olhar espantado dos médicos. — Não
quero saber das estatísticas. Era benigno, não era?
— Era, mas “benigno” no cérebro é um termo um
tanto enganoso. Todo tumor cerebral pode acabar sendo
fatal, benigno ou não.
— Tudo bem, tudo bem — assentiu Claire. — Mas
não é um câncer que vai se espalhar pelo meu corpo, certo?
— Correto.
— Então, agora ele se foi, e era benigno. Só quero
ouvir isso. Podem falar sobre tratamentos daqui em diante,
mas não sobre índices de so-brevida. — Ela sorriu para
Meg. — Eu tenho um belo futuro pela frente.
Só o Dr. Weissman sorria. Atravessou o escritório e
sussurrou no ouvido de Claire.
— Sorte a sua.
Ela o fitou.
— Não tenho palavras para lhe agradecer.
— Joe Wyatt é o homem a quem você deveria agradecer.
Boa sorte.
Assim que retornou ao quarto, Claire desatou a chorar.
Bobby abraçou-a apertado até ela finalmente olhar
para ele.
— Eu amo você, Bobby. Agora vá pegar nossa filha.
Ele saiu às pressas.
— Você foi incrível lá dentro — elogiou Meg,
quando estavam sozinhas.
— Meu novo lema é “Não se meta com a Carequinha”.
— Não vou me meter — assentiu Meg, rindo.
Claire segurou sua mão.
— Obrigada.
Meg beijou a testa de Claire e sussurrou:
— Nós somos irmãs. — Era resposta suficiente. —
Vou chamar mamãe agora. Ela provavelmente vai trazer
uma equipe de filmagem.
Com um sorriso, Meghann deixou o quarto.
— Eu não tenho mais tumor — ensaiou Claire em
voz alta para o quarto vazio. Então riu.
MEGHANN ENCONTROU todos no refeitório. Bobby
já estava ali, falando com Sam. A mãe encontrava-se na
fila, distribuindo autógrafos. As Bluesers e Alison achavam-
se sentadas num canto, conversando em voz baixa.
Só faltava Joe.
— E lá estava eu — dizia a mãe a uma platéia extasiada
—, pronta para subir ao palco num vestido que não
fechava. Eu sou — frisou, rindo — uma mulher de peito,
então imaginem...
— Mamãe? — chamou Meghann, tocando seu braço.
A mãe deu meia-volta. Quando viu Meghann, o sorriso
desapareceu. Por um instante ela pareceu vulnerável.
— E aí? — sussurrou.
— Vá até o quarto, mamãe. A notícia é boa.
A mãe suspirou aliviada.
— Claro que é. Vocês são tão dramáticos. — Ela virou-
se para a platéia. — Detesto sair no meio de uma história,
mas parece que minha filha teve uma recuperação
milagrosa. Isso me lembra de um filme que eu fiz para a
televisão, no qual...
Meghann afastou-se.
— Tia Meg! — gritou Ali, pulando, lançando-se
contra ela, que a pegou no colo e a beijou. — Minha mãe
melhorou!
Com isso, as Bluesers soltaram hurras.
— Venham — disse Gina às amigas. — Vamos ver
Claire.
Bobby aproximou-se de Meghann.
— Vamos, Ali — chamou, tomando a menininha
nos braços. — Vamos cobrir a mamãe de beijos. — Ele
começou a afastar-se, então parou e deu meia-volta. Com
delicadeza, beijou o rosto de Meghann e murmurou: —
Obrigado.
Meghann fechou os olhos, surpresa pela intensidade
de sua emoção. Quando abriu os olhos embaçados, Sam
vinha em sua direção. Ele tocou seu rosto.
— Você foi o amparo de Claire nesse pesadelo —
murmurou. — Tem um coração de ouro. E sinto muito
por não ter visto isso antes.
— Muitas coisas ficaram mais claras nos últimos
tempos.
— É. — Um segundo depois ele acrescentava: —
Espero você lá em casa no Dia de Ação de Graças. E não
me venha com desculpas esfarrapadas. Nós somos uma
família.
Meg lembrou-se de todos os anos em que recusara
os convites de Claire. Então pensou no último Dia de
Ação de Graças, quando jantara granola sozinha. Durante
todo aquele tempo, havia fingido que não era solitária.
Para ela, bastava de fingimento e bastava de estar sozinha
quando tinha uma família com que ficar.
— Nem tente me deixar de lado.
Meghann dirigiu-se até o elevador, desceu para o saguão
e saiu do hospital. Tudo na cidade parecia mais distinto,
mais nítido. Ela desceu a rua, pensando em muitas
coisas: na vida, no trabalho, na família.
Talvez mudasse de profissão, atuasse em outra área
do Direito. Ou talvez montasse um negócio, como uma
agência de informações para pessoas com tumor cerebral.
O mundo agora parecia aberto para ela, cheio de novas
possibilidades.
Meghann levou menos de meia hora para chegar em
casa. Estava prestes a atravessar a rua quando o viu parado
na frente do prédio.
Joe afastou-se da parede onde estivera encostado e
atravessou a rua.
— Gina me contou onde você morava.
— Stu falou com você sobre a ressonância magnética?
— Acabei de me despedir dele. Boa perspectiva para
Claire.
Ele aproximou-se.
— Estou cansado de não me importar, Meg — desabafou,
em voz baixa. — E estou cansado de fingir que
morri quando Diana morreu.
Ela encarou-o. Eles estavam próximos agora, próximos
o bastante para ele a beijar se quisesse.
— Que chances tem um casal como nós?
— Nós temos uma chance. É o que todo casal tem.
— Podemos acabar nos magoando.
— Já sobrevivemos a isso. — Ele tocou o rosto dela
com suavidade, o que a fez querer chorar. — E talvez nos
apaixonemos.
Ela mirou os olhos dele e viu uma esperança para o
futuro. Viu um pouco do amor do qual ele falava e, pela
primeira vez, acreditou nesse amor. Se Claire podia recobrar
a saúde, tudo era possível. Ela o enlaçou e ficou na
ponta dos pés. Pouco antes de beijá-lo, ousou sussurrar:
— Talvez já tenhamos nos apaixonado.
EPÍLOGO
Um ano depois
O BARULHO ERA ensurdecedor. O parque de diversões
estava abarrotado: crianças gritando nos brinquedos, pais
berrando pelos filhos, funcionários chamando os visitantes
para participar das brincadeiras. Alison seguia na frente,
arrastando Joe de brinquedo em brinquedo. Meghann e
Claire caminhavam no encalço deles, conversando com
tranqüilidade, carregando os animais de pelúcia baratos e
as quinquilharias que Joe ganhara. A manqueira de Claire
era o único vestígio físico de seu martírio, e a cada dia ficava
menos evidente.
— Está na hora — anunciou Claire, fazendo sinal
para Joe.
Os quatro cruzaram a praça de alimentação e dobraram
à esquerda, em direção à arquibancada do parque.
— Já tem bastante gente — comentou Claire, nervosa.
— Claro que tem — respondeu Meghann.
— Depressa, mamãe, depressa!
Alison pulava no chão. À porta de acesso especial,
Claire mostrou a credencial de trânsito livre pelos camarins.
Eles atravessaram o palco, passando pelos músicos e
cantores que se preparavam.
Bobby viu-os chegar e acenou. Alison correu em sua
direção. Ele pegou-a no colo e girou-a no ar.
— Meu pai vai cantar hoje! — gritou a menina, para
quem quisesse ouvir.
— Isso mesmo. — Bobby abraçou Claire e puxou-a
para um beijo. — Deseje-me sorte.
— Você não precisa disso.
Eles conversaram com Bobby durante mais alguns
minutos, então se retiraram para deixá-lo aprontar-se. Subiram
na arquibancada e acharam seus lugares na quarta
fila. Meghann ajudou Claire a sentar-se; a irmã às vezes
ainda se mostrava instável.
— Kent Ames telefonou na semana passada —
contou Claire. — Mamãe o esculhambou por cancelar o
contrato. Parece que ele quer dar outra chance a Bobby.
Disse que espera que suas prioridades tenham mudado.
Ela sorriu. Um homem subiu ao palco e anunciou:
— Bobby Jack Austin!
A platéia aplaudiu com educação.
Alison pulava, gritando:
— Aí, papai!
Bobby subiu ao palco com o violão. Correu os olhos
pela platéia, achou Claire e mandou-lhe um beijo.
— Esta música é para minha mulher, que me ensinou
sobre o amor e a coragem. Eu amo você.
Ele dedilhou o violão e começou a cantar. A bela voz
envolveu a música e hipnotizou a multidão. A canção falava
sobre o encontro com a mulher de seus sonhos e o
amor que ele sentia por ela, sobre o apoio que lhe dera
nos momentos difíceis. Na última estrofe, a voz tornou-se
um sussurro enrouquecido:
Quando a vi tropeçar
nas pedras do caminho
aprendi sobre o amor e
a dádiva do nosso ninho.
Dessa vez o aplauso foi estrondoso. Metade das
mulheres na platéia chorava.
Meghann abraçou a irmã.
— Eu avisei que ele seria um ótimo marido. Gostei
dele de cara.
Claire riu.
— É, sei. E você e Joe? Estão praticamente morando
juntos. Sinto que em breve teremos um acordo pré-nupcial.
Meghann olhou para Joe, que estava de pé, aplaudindo.
Alison achava-se nos braços dele. Desde que voltara
a exercer a medicina, ele dizia que tudo era possível.
Os dois haviam ensinado um ao outro a acreditar no amor
novamente.
— Contrato pré-nupcial? Eu? De jeito nenhum. Estamos
pensando num casamento pequeno. Ao ar livre...
— Ao ar livre? Onde pode chover? Onde existem
mosquitos?
— Talvez com hambúrgueres, cachorros-quentes e...
— A salada de batatas de Gina.
Ambas falaram ao mesmo tempo e riram.
— É — assentiu Meghann, encostando-se na irmã.
— Esse tipo de casamento.
* * *
Digitalização/Revisão: eragocris

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