segunda-feira, 10 de junho de 2013

Amor sem fim


ian mcewan
Amor sem fim
Tradução
Jorio Dauster
Para Annalena
1.
É fácil precisar como começou. Fazia sol, mas estávamos debaixo de um carvalho que nos
protegia parcialmente das fortes lufadas de vento. Ajoelhado na grama, eu segurava um sacarolhas
enquanto Clarissa me passava a garrafa — um Daumas Gassac de 1987. Esse foi o
momento, naquele exato instante foi espetado o alfinete no mapa do tempo: estendi o braço e,
quando o gargalo frio e o invólucro metalizado tocaram a palma da minha mão, ouvimos um
homem gritar. Voltamo-nos para o outro lado do campo e vimos o perigo. Ato contínuo, comecei
a correr em sua direção. A transformação foi total: não me lembro de deixar cair o saca-rolhas,
de me pôr de pé, de tomar alguma decisão e nem mesmo de ouvir as palavras de cautela lançadas
por Clarissa em meu encalço. Que idiotice, correr para essa história e seus labirintos deixando
para trás nossa felicidade no relvado primaveril sob um carvalho frondoso! Ouviu-se outro grito
de homem e logo depois o de uma criança, enfraquecido pelo vento que rugia nas altas árvores ao
longo das cercas vivas. Acelerei. E de repente reparei que, de pontos diferentes do campo,
quatro outros homens convergiam para o local, todos correndo como eu.
Vejo-nos de uma altura de aproximadamente cem metros pelos olhos do falcão que pouco
antes havíamos observado disparando para o alto, dando algumas voltas e descendo como uma
flecha no turbilhão das correntes de ar: cinco homens correndo em silêncio rumo ao centro de um
campo de uns quarenta hectares. Eu vinha do sudeste, com o vento atrás de mim. Cerca de
duzentos metros à minha esquerda, dois homens corriam lado a lado. Eram trabalhadores rurais
que consertavam a cerca no sul do campo, onde passa a estrada. A igual distância vinha John
Logan, cujo carro estava estacionado no acostamento gramado com a porta escancarada, ou com
as portas escancaradas. Sabendo o que sei agora, é estranho evocar a figura de Jed Parry
diretamente na minha frente, surgindo de um renque de faias do outro lado do campo, a uns
quatrocentos metros de distância, e correndo contra o vento. Para o falcão, Parry e eu, com
nossas camisas brancas brilhando contra o fundo verde, éramos figuras diminutas que corriam um
para o outro como amantes, desconhecendo o sofrimento que esse encontro iria causar. O
envolvimento que nos tiraria dos eixos estava para acontecer dali a alguns minutos, mas sua
enormidade era ocultada pela barreira do tempo e pelo colosso no centro do campo, cujo
fabuloso poder de atração tornava insignificantes as angústias humanas a seu redor.
Que fazia Clarissa? Ela disse que tinha caminhado rapidamente para o centro do campo.
Não sei como resistiu à compulsão de correr. Quando a coisa aconteceu — o fato que estou
prestes a narrar, a queda —, ela havia quase nos alcançado e estava bem situada para observar
tudo sem os estorvos da participação direta, das cordas e dos gritos, de nossa falta de
cooperação fatal. Minha descrição se baseia também no que Clarissa viu, no que nos dissemos
durante as obsessivas recapitulações que se seguiram: as consequências, o que aconteceu num
campo que aguardava a ceifa do início do verão. Sim, as consequências, a segunda colheita, o
crescimento resultante daquele primeiro corte feito em maio.
Estou me detendo, retardando a informação. Deixo-me ficar no momento anterior porque,
então, outros resultados ainda eram possíveis; quando vista da perspectiva do falcão, a
convergência de seis figuras num espaço plano e verde oferece uma geometria confortadora, as
limitações bem conhecidas da mesa de sinuca. As condições iniciais, a força e a direção em que
ela é aplicada, definem todas as trajetórias subsequentes, todos os ângulos de colisão e repique,
ao mesmo tempo em que as luzes de cima inundam com uma claridade reconfortante o campo, o
feltro e todos os corpos que nele se movem. Enquanto ainda convergíamos sem fazer contato, nos
encontrávamos num estado de graça matemático. Demoro-me na contemplação de nossas
posições, das distâncias e dos pontos cardeais porque, no que tange aos acontecimentos que
vieram depois, essa foi a última vez que entendi alguma coisa claramente.
Corríamos em direção a quê? Creio que nenhum de nós jamais o soube por completo.
Superficialmente, para um balão. Não o espaço que contém a fala ou o pensamento dos
personagens de uma história em quadrinhos, ou, por analogia, o tipo que necessita apenas de ar
quente para subir. Tratava-se de um enorme balão cheio de hélio, esse gás nobre forjado do
hidrogênio nas fornalhas nucleares das estrelas, primeiro passo na cadeia de geração das
múltiplas e variadas formas de matéria no universo, inclusive nós próprios e todas as nossas
elucubrações.
Corríamos em direção a uma catástrofe, em si mesma um tipo de fornalha cujo calor iria
deformar identidades e destinos. Na base do balão, havia uma cesta com um menino dentro e, ao
lado dela, agarrando-se por uma amarra, um homem necessitado de ajuda.
Mesmo sem o balão, o dia seria memorável, mas de forma prazerosa, porque marcava nosso
reencontro após uma separação de seis semanas, a mais longa que eu e Clarissa havíamos
enfrentado nos sete anos de vida em comum. A caminho do aeroporto de Heathrow, eu havia feito
um desvio até Covent Garden e encontrara um lugar mais ou menos permitido para estacionar
perto do restaurante Carluccio. Lá comprei o material para o piquenique, cuja peça principal era
uma grande bola de mozarela que o vendedor pescou de um tonel de barro com uma garra de
madeira. Comprei também azeitonas pretas, salada mista e focaccia. Subi então correndo a Long
Acre até a livraria Bertram Rota para recolher o presente de aniversário de Clarissa. Fora o
apartamento e nosso carro, nunca comprei nada mais caro na vida. A raridade daquele livrinho
parecia irradiar um calor que eu sentia através do grosso papel de embrulho pardo ao caminhar
de volta pela rua.
Quarenta minutos depois eu esquadrinhava os painéis com as informações sobre chegadas.
Como o voo de Boston acabara de aterrissar, calculei que teria de esperar meia hora. Se alguém
quiser comprovar a afirmação de Darwin de que as manifestações de emoção nos seres humanos
têm caráter universal, correspondendo a uma imposição genética, basta passar alguns minutos no
portão de chegada do Terminal 4 de Heathrow. Lá eu vi a mesma alegria, o mesmo riso
incontrolável, nos rostos de uma matrona nigeriana, de uma avó escocesa de lábios finos, e de um
homem de negócios japonês, pálido e formal, ao saírem com seus carrinhos de bagagem e
reconhecerem uma face amiga na multidão à espera. Se a observação da variedade humana pode
dar prazer, isso também se aplica às semelhanças. Ouvi várias vezes os mesmos suspiros com
entonações cadentes, frequentemente envolvendo um nome no momento em que duas pessoas
abriam caminho para se abraçarem. Seria uma segunda em tom maior ou uma terceira em tom
menor, ou algo intermediário? Pa-pai! Yolan-ta! Ro-bi! Nz-e! Havia também uma nota
ascendente, cantada diante dos rostos solenes e cautelosos de bebês por pais ou avós ausentes
por muito tempo, provocando, implorando uma reação amorosa imediata. Hann-ah? Tom-ii?
Deixe-me entrar!
A variedade era visível nos dramas íntimos: um pai e um filho adolescente, talvez turcos,
abraçaram-se em silêncio por longo tempo, perdoando-se mutuamente ou lamentando uma perda,
sem atentar para os carrinhos de bagagem bloqueados por eles; irmãs gêmeas cinquentonas
cumprimentaram-se com evidente desprazer, um mero toque de mãos e um beijo à distância; um
garotinho americano, erguido aos ombros de um pai que ele não reconheceu, gritou para ser posto
no chão, provocando um ataque de nervos em sua mãe cansada.
No entanto, como predominavam os sorrisos e abraços, em trinta e cinco minutos assisti a
mais de cinquenta finais felizes teatrais, cada qual dando a impressão de ter atores ligeiramente
inferiores aos do anterior, até que comecei a me sentir emocionalmente exausto e suspeitei que
mesmo as crianças estavam sendo insinceras. Quando me perguntei se eu próprio seria
convincente ao receber Clarissa, ela me tocou no ombro por trás, tendo dado a volta ao não me
localizar na multidão. Imediatamente meu afastamento emocional se desfez e pronunciei seu nome
no mesmo diapasão de todos os demais.
Menos de uma hora depois, paramos junto à trilha que atravessa os bosques de faias nas
colinas de Chiltern, perto da cidadezinha de Christmas Common. Enquanto Clarissa trocava de
sapatos, transferi o piquenique para uma mochila. Partimos de braço dado, ainda extasiados com
o reencontro. O que era familiar nela — o tamanho e o toque de sua mão, o calor e a
tranquilidade de sua voz, a pele pálida e os olhos verdes típicos dos celtas — também era novo
sob o brilho de uma luz insólita, trazendo-me à lembrança os primeiros encontros e os meses que
levamos consolidando nossa paixão. Ou, imaginei, eu era outro homem, meu rival sexual, que
tinha vindo roubá-la de mim. Quando lhe contei isso, ela riu e disse que eu era o boboca mais
complicado do mundo. Ao pararmos para nos beijar, nos perguntando se não teria sido melhor
seguir direto para casa e para a cama, entrevimos através das folhas novas o balão de hélio que,
a oeste, flutuava sonhadoramente acima do vale coberto de florestas. Nem o homem nem o
menino eram visíveis para nós. Lembro-me de haver pensado, sem o dizer a Clarissa, que aquele
era um meio de transporte precário quando o vento, e não o piloto, ditava o rumo. Então me
ocorreu que talvez essa fosse a verdadeira atração para o balonista, e instantaneamente esqueci o
assunto.
Atravessamos a College Wood na direção de Pishill, parando para apreciar a folhagem
nova nas faias. Cada folha parecia brilhar com uma luz vinda do interior. Falamos sobre a pureza
da cor da folha de faia na primavera, e como era uma higiene mental contemplá-la. Ao
penetrarmos no bosque, o vento ficou mais forte e os galhos rangiam como máquinas
enferrujadas. Conhecíamos bem o caminho. Aquela era sem dúvida a mais bonita paisagem a uma
hora do centro de Londres. Eu adorava o ondulado dos campos, com suas manchas de argila e
sílex, e as veredas que mergulhavam nos escuros renques de faias e nos vales sem trato e mal
drenados; ali, musgos espessos e iridescentes cobriam os troncos apodrecidos e vez por outra se
vislumbrava um veadinho abrindo caminho na vegetação rasteira.
Enquanto seguíamos no rumo oeste, conversamos quase o tempo todo sobre a pesquisa de
Clarissa — os últimos dias de John Keats em Roma na casa ao pé da Escadaria de Espanha, onde
se hospedara com o amigo Joseph Severn. Seria possível que ainda existissem três ou quatro
cartas inéditas de Keats? Seria uma delas dirigida a Fanny Brawne? Clarissa tinha razões para
crer que sim e passara parte de seu semestre sabático viajando pela Espanha e por Portugal para
visitar as casas frequentadas por Fanny Brawne e a irmã de Keats, também chamada Fanny. Ela
acabara de voltar de Boston, onde tinha trabalhado na Biblioteca Houghton, da Universidade
Harvard, tentando localizar a correspondência entre Severn e seus familiares distantes. A última
carta conhecida de Keats foi escrita quase três meses antes de sua morte para o velho amigo
Charles Brown. O tom é muito cerimonioso e, coisa típica do autor, a carta contém de passagem,
quase como um parêntese, uma brilhante descrição da criação artística — “o conhecimento do
contraste, a sensibilidade para com a luz e a sombra, toda a informação (no sentido primitivo)
necessária para um poema são grandes inimigos da recuperação do estômago”. Nela consta a
famosa despedida, tão lancinante em sua reticência e cortesia: “Custa-me lhe dizer adeus, mesmo
numa carta. Minhas reverências sempre foram desajeitadas. Deus o abençoe! John Keats”. Mas
as biografias concordam em que, quando escreveu essa carta, Keats tivera uma melhora
passageira da tuberculose, que se estendeu por uns dez dias. Visitou a Villa Borghese e passeou
pelo Corso. Escutou com prazer Severn tocar Haydn, travessamente atirou o jantar pela janela em
protesto contra a má qualidade da comida, e até pensou em iniciar um poema. Se foram escritas
cartas nesse período, por que Severn, ou mais provavelmente Brown, teria desejado suprimi-las?
Clarissa achava ter encontrado a resposta num par de referências na correspondência trocada
entre parentes distantes de Brown nos anos 1840, porém necessitava de mais provas, de fontes
diferentes.
“Ele sabia que não voltaria a ver Fanny”, explicou Clarissa. “Escreveu para Brown dizendo
que ver o nome dela escrito era mais do que podia suportar. Mas nunca parou de pensar nela. Ele
se sentiu suficientemente forte naqueles dias de dezembro e a amava muito. É fácil imaginá-lo
escrevendo uma carta que não tencionava enviar nunca.”
Apertei a mão dela e não disse nada. Eu sabia pouco sobre Keats e sua poesia, mas achava
que, na situação desesperada em que se encontrava, ele não desejaria escrever a Fanny
justamente por amá-la tanto. Ultimamente, me ocorrera que o interesse de Clarissa por essas
cartas hipotéticas tinha algo a ver com nosso próprio relacionamento e com sua convicção de ser
imperfeito um amor que não se pode expressar numa carta. Nos meses seguintes ao nosso
primeiro encontro, antes que comprássemos o apartamento, ela me escrevera belas cartas,
apaixonadamente abstratas na exploração das formas em que nosso amor era diferente e superior
a todos que jamais existiram. Talvez seja essa a essência de uma carta de amor, a celebração do
que é único. Tentei equiparar-me a ela, mas tudo que a sinceridade me permitia eram os fatos, os
quais, aliás, pareciam suficientemente miraculosos: uma mulher bonita amava um sujeito
grandalhão, desajeitado e em vias de ficar careca, que mal podia acreditar em sua sorte, e queria
ser amada por ele.
Paramos para observar o falcão ao nos aproximarmos de Maidensgrove. O balão devia ter
cruzado de novo nosso caminho enquanto estávamos dentro dos bosques que cobrem os vales no
entorno da reserva natural. No começo da tarde, entramos na trilha de Ridgeway, andando para o
norte ao longo da escarpa. Depois enveredamos por um daqueles grandes promontórios que
avançam para oeste a partir das Chilterns, penetrando como dedos largos nas ricas terras
agrícolas que ficam mais abaixo. Do outro lado do vale de Oxford podíamos distinguir os
contornos das colinas de Cotswold e, mais além, talvez, as montanhas Brecon Beacons como uma
tênue massa azulada. Tínhamos planejado fazer o piquenique bem na ponta, onde a vista era mais
bonita, porém o vento já estava forte demais a essa altura. Cruzamos de volta o campo e nos
protegemos em meio aos carvalhos no lado norte. E foi por causa dessas árvores que não vimos o
balão descer. Mais tarde me perguntei por que ele não fora soprado para mais longe, porém
depois descobri que, naquele dia, o vento não tinha a mesma velocidade a quase duzentos metros
de altitude e ao nível do solo.
A conversa sobre Keats cessou ao prepararmos o lanche. Clarissa tirou a garrafa da mochila
e a passou para mim segurando por baixo. Como já disse, foi quando o gargalo tocou a palma da
minha mão que ouvimos o grito. Era uma voz de barítono, com uma nota ascendente de pavor. O
grito marcou o início e, naturalmente, também um fim. Naquele instante, um capítulo se encerrou,
ou melhor, toda uma etapa de minha vida. Se soubesse disso, ou se tivesse um ou dois segundos
de sobra, quem sabe eu me haveria concedido um pouco de nostalgia. Vivíamos o sétimo ano de
uma união sem filhos mas plena de amor. Clarissa Mellon estava apaixonada também por outro
homem, mas, com seu ducentésimo aniversário tão próximo, ele não chegava a preocupar. Na
verdade, até ajudava nos debates inflamados que faziam parte de nosso equilíbrio, de nosso
modo de falar sobre as questões de trabalho. Vivíamos num edifício de apartamentos art déco no
norte de Londres com uma dose de preocupações inferior à média — um aperto financeiro que
durou mais ou menos um ano, um susto de câncer que se provou sem fundamento, os divórcios e
enfermidades de amigos, a irritação de Clarissa com meus surtos ocasionais e doentios de
insatisfação com meu próprio trabalho —, mas nada que ameaçasse a liberdade e a riqueza de
nossa vida em comum.
O que vimos ao deixar para trás nosso piquenique foi um enorme balão cinzento, do tamanho
de uma casa e com o formato de uma lágrima, que descera no campo. O piloto devia estar com
metade do corpo para fora da cesta de passageiros ao tocar no solo. Sua perna se emaranhara
numa corda presa à âncora. Agora, com as rajadas do vento erguendo o balão e o empurrando na
direção da escarpa, ele era arrastado ou transportado ao longo do campo. Na cesta havia uma
criança, um menino de uns dez anos. Durante uma repentina calmaria, o homem se pôs de pé,
tentando agarrar a cesta ou o menino. Soprou outra rajada e o piloto voltou a cair de costas,
sacolejando no terreno irregular, tentando fincar os pés ou alcançar a âncora atrás dele para
cravá-la na terra. Mesmo que tivesse sido capaz de fazer isso, ele não ousaria desembaraçar-se
da amarra da âncora, porque precisava usar seu peso para manter o balão no solo e o vento
poderia arrancar-lhe a corda das mãos.
Enquanto corria, ouvi que ele gritava para que o menino pulasse da cesta. Mas, seguindo aos
trancos pelo campo, o balão jogava o garoto de um lado para outro. Ele retomou o equilíbrio e
passou uma perna por cima da beirada da cesta. O balão subiu e desceu, esbarrando num
montinho, e o menino mais uma vez desapareceu de vista. Surgiu de novo, com os braços
estendidos na direção do homem e gritando algo de volta — não sei se palavras com nexo ou uma
expressão de medo inarticulado.
Eu devia estar a uns cem metros de distância quando a situação ficou sob controle.
Aproveitando que o vento amainara, o homem se pôs de pé e, debruçado sobre a âncora, a
enfiava no solo. Ele havia desembaraçado a perna da corda. Por algum motivo — falta de
discernimento, exaustão, ou simplesmente por estar cumprindo ordens —, o garoto permaneceu
na cesta. O altíssimo balão balançou, se inclinou, tentou libertar-se, mas o animal fora domado.
Diminuí o ritmo, embora não parasse. Ao erguer o corpo, o homem nos viu — ou ao menos viu os
trabalhadores rurais e a mim — e fez sinal para que nos aproximássemos. Ele ainda precisava de
ajuda, mas fiquei feliz de poder ir mais devagar, andando agora com passos rápidos. Os
trabalhadores também passaram a andar. Um deles tossia alto. Mas o homem do carro, John
Logan, sabia de alguma coisa que nós não sabíamos e continuou correndo. Quanto a Jed Parry, o
balão o encobria.
O vento retornou com raiva no topo das árvores pouco antes de eu senti-lo nas costas.
Atacou então o balão que, cessando seus bamboleios cômicos e inocentes, se imobilizou de
chofre. Seu único movimento foi uma vibração que percorreu a superfície enrugada enquanto a
energia se acumulava. Num repelão, a âncora foi jogada para cima, espalhando terra em seu
redor, e a cesta se elevou três metros no ar. O menino foi atirado para trás, perdendo-se de vista.
O piloto, que segurava a corda, foi levantado mais de meio metro acima do solo. Se Logan não
tivesse chegado a tempo de agarrar um dos muitos cabos pendentes, o balão teria levado o
menino embora. Em vez disso, os dois homens eram agora arrastados pelo campo, enquanto eu e
os trabalhadores voltamos a correr.
Cheguei antes deles. Quando peguei uma corda, a cesta estava acima de nossas cabeças. O
garoto gritava lá dentro. Apesar do vento, senti o cheiro de urina. Jed Parry agarrou uma corda
segundos depois de mim, o mesmo fazendo logo após os dois trabalhadores, Joseph Lacey e Toby
Greene. Greene estava tendo um ataque de tosse, mas não afrouxou as mãos. O piloto berrava
instruções, porém de forma frenética, fazendo com que ninguém o escutasse. Como já vinha
lutando havia muito tempo, ele agora se encontrava exaurido e emocionalmente descontrolado.
Com cinco pessoas segurando as cordas, o balão estava seguro. Tínhamos apenas de nos manter
de pé e puxar pouco a pouco as cordas para fazer descer a cesta — e isso, não importava o que o
piloto estivesse gritando, foi o que começamos a fazer.
A essa altura, havíamos chegado à beira da escarpa. O terreno caía abruptamente, num
gradiente de uns vinte e cinco por cento, descendo depois de modo mais suave. No inverno, a
rapaziada da região ia lá para brincar de tobogã. Falávamos todos ao mesmo tempo. Dois de nós,
o dono do carro e eu, queríamos afastar o balão dali. Alguém achava que a prioridade era tirar o
menino da cesta. Outro recomendava que o balão fosse baixado para que pudéssemos ancorá-lo
com firmeza. Eu não via nenhuma contradição, pois podíamos ir baixando o balão enquanto
voltávamos ao centro do campo. Mas a segunda opinião parecia prevalecer. O piloto tinha uma
quarta ideia, porém ninguém sabia qual era ou se importava em saber.
Há algo que devo deixar bem claro. Talvez existisse uma vaga comunhão de propósitos, mas
nunca atuamos como uma equipe. Não houve oportunidade nem tempo para isso. Coincidências
de espaço e tempo, uma predisposição para ajudar, nos haviam reunido debaixo do balão.
Ninguém estava no comando — ou todos estavam, o que gerava uma competição para ver quem
falava mais alto. O piloto, com o rosto vermelhíssimo, vociferando e suando, foi ignorado. Assim
como certas pessoas emitem calor, ele irradiava incompetência. Mas nós também começamos a
berrar instruções. Sei que, se eu fosse o líder inconteste, a tragédia não teria ocorrido. Mais tarde
ouvi os outros dizerem o mesmo deles. Mas não havia tempo nem oportunidade para que a força
de caráter se manifestasse. Qualquer líder, qualquer plano preciso seria preferível a nada.
Nenhuma sociedade humana estudada pelos antropólogos, desde aquelas formadas por caçadores
extrativistas até as pós-industriais, deixou de ter líderes e liderados; e nenhuma emergência
jamais foi enfrentada eficazmente com métodos democráticos.
Não foi tão difícil baixar a cesta para vermos o que se passava lá dentro. Tínhamos um novo
problema. O menino estava enrodilhado no fundo. Cobria o rosto com os braços e agarrava os
cabelos com força. “Qual é o nome dele?”, perguntamos ao homem rubicundo.
“Harry.”
“Harry!”, gritamos. “Vamos, Harry. Harry! Pega minha mão, Harry. Sai daí, Harry!”
Mas Harry se enroscou ainda mais. Tremia cada vez que chamávamos seu nome. Nossas
palavras eram como pedras que lhe atirássemos. Ele se encontrava num estado de paralisia da
vontade frequentemente observado em animais de laboratório submetidos a tensões anormais,
quando desaparecem todos os impulsos que conduzem à solução de problemas e se apaga o
instinto de sobrevivência. Tendo trazido a cesta até o solo e conseguido mantê-la parada,
debruçávamo-nos para pegar o menino quando o piloto nos afastou com os ombros e tentou pular
para dentro. Depois disse que nos alertou sobre o que planejava fazer. Só ouvimos nossos
próprios gritos e imprecações. O que ele estava fazendo parecia ridículo, mas suas intenções,
como se verificou mais tarde, eram perfeitamente sensatas: ele queria desinflar o balão puxando
uma corda que havia se enredado na cesta.
“Seu idiota!”, Lacey gritou. “Nos ajude a tirar o menino!”
Ouvi o que iria acontecer dois segundos antes de chegar até nós. Era como se um trem
expresso atravessasse as copas das árvores, avançando celeremente em nossa direção. O som
agudo, ao mesmo tempo sibilante e plangente, atingiu o volume máximo em meio segundo.
Durante a investigação, os dados do serviço de meteorologia sobre a velocidade do vento
naquele dia fizeram parte do processo, confirmando ter havido rajadas de mais de cento e dez
quilômetros por hora. Essa deve ter sido uma delas, mas, antes de deixar que a ventania nos
alcance, permitam-me congelar a imagem — existe segurança na imobilidade — a fim de
descrever nosso grupo.
O terreno caía à minha direita. Diretamente à esquerda estava John Logan, um clínico geral
de Oxford, com quarenta e dois anos, casado com uma historiadora, pai de dois filhos. Embora
não fosse o mais moço de nós, era o que tinha a melhor forma física: participava de competições
de tênis de nível regional e pertencia a um clube de montanhismo. Durante certo tempo fizera
parte de uma equipe de resgate nas Highlands Ocidentais. Logan era aparentemente um homem
suave e introspectivo, pois de outro modo teria sido capaz de assumir a liderança sobre nós. À
esquerda dele estava Joseph Lacey, de sessenta e três anos, trabalhador rural e faz-tudo, capitão
de seu time de boliche. Vivia com a mulher em Watlington, uma cidadezinha no sopé da escarpa.
À esquerda estava seu companheiro, Toby Greene, de cinquenta e oito anos, também trabalhador
rural, solteiro, que morava com a mãe em Russell’s Water. Ambos trabalhavam na fazenda
Stonor. Greene era o que tinha a tosse de fumante. O próximo no círculo, tentando entrar na cesta,
era o piloto, James Gadd, de cinquenta e cinco anos, executivo de uma pequena empresa de
publicidade, que vivia em Reading com a esposa e um dos filhos adultos, retardado. A
investigação revelou que Gadd violara um bom número de normas básicas de segurança, as quais
foram listadas em tom neutro pelo promotor. Sua licença de balonagem foi revogada. O menino
na cesta era seu neto Harry Gadd, de dez anos, que vivia no bairro londrino de Camberwell.
Diante de mim, tendo à sua esquerda o declive do terreno, estava Jed Parry, de vinte e oito anos,
desempregado, que vivia com a renda de uma herança em Hampstead.
Era essa a equipe. A nosso juízo, o piloto abdicara de sua autoridade. Estávamos sem
fôlego, excitados, convictos de nossos planos individuais, enquanto o garoto não tinha condições
de ajudar na sua própria sobrevivência. Reduzido a um montinho de carne e ossos, ele se
limitava a bloquear o mundo com os antebraços. Lacey, Greene e eu tentávamos puxá-lo para
fora, mas agora Gadd subia por cima de nós. Logan e Parry urravam suas próprias sugestões.
Gadd havia posto um pé junto à cabeça do neto e Greene o xingava quando a coisa aconteceu. Um
punho possante atingiu o balão com dois socos rápidos, um-dois, o segundo mais violento que o
primeiro. E o primeiro já havia sido bem duro, atirando Gadd para fora da cesta e erguendo o
balão a uma altura de mais ou menos um metro e meio do solo. O peso considerável de Gadd foi
removido da equação. O cabo correu, queimando as palmas das minhas mãos, mas consegui
recuperar a pegada a uns sessenta centímetros apenas da extremidade da corda. Os outros
também continuaram a segurar seus cabos. A cesta agora estava acima de nossas cabeças e, com
os braços erguidos, poderia parecer que tocávamos os sinos da igreja no domingo. Em meio a
nosso silêncio de assombro, antes que a gritaria recomeçasse, o segundo soco atirou o balão para
cima, rumo ao oeste. De repente, estávamos pedalando no ar, todo o nosso peso sustentado pelas
mãos. Esse segundo ou esses dois segundos sem tocar o solo ocupam tanto espaço em minha
memória quanto uma longa viagem de subida de um rio desconhecido. Meu primeiro impulso foi
me manter pendurado para impedir que o balão subisse ainda mais. O menino, incapacitado,
estava prestes a ser levado para longe. Linhas de alta-tensão erguiam-se a uns três quilômetros
dali na direção oeste. Uma criança sozinha e necessitada de ajuda. Era meu dever perseverar —
e pensei que todos fariam o mesmo.
Quase simultaneamente com o desejo de ficar agarrado ao cabo e salvar o garoto, no
impulso neuronal seguinte chegaram outros pensamentos, mesclando o medo e cálculos
instantâneos de complexidade logarítmica. Estávamos subindo e o declive aumentava à medida
que o balão era empurrado rumo ao oeste. Eu sabia que precisava manter as pernas e os pés bem
apertados contra o cabo, mas sua extremidade mal passava da minha cintura e as mãos
começavam a escorregar. Minhas pernas açoitavam o ar. A altura da queda crescia a cada fração
de segundo, em breve seria alcançado o ponto em que soltar o cabo seria impossível ou fatal. E,
comparado a mim, Harry estava bem seguro enquanto continuasse enroscado na cesta. O balão
podia muito bem aterrissar sem problemas no fundo do vale. E o impulso de perseverar talvez
fosse a simples continuação do que eu vinha tentando alguns momentos antes, a mera
incapacidade de adaptar-me com rapidez.
E então, após uma breve batida do coração inundada de adrenalina, outra variável foi
introduzida na equação: alguém largou seu cabo, e o balão e os que ainda pendiam dele foram
erguidos mais alguns metros.
Não sei, nem nunca descobri, quem soltou a corda em primeiro lugar. Não estou pronto a
admitir que tenha sido eu, porém todos negam haver sido o primeiro. O certo é que, caso não se
rompesse a disciplina, nosso peso coletivo teria feito o balão descer alguns segundos depois,
ainda no início do declive, tão logo se dissipasse o efeito das rajadas. Mas, como disse antes,
não formávamos uma equipe, não havia nenhum plano, nenhum acordo a ser rompido. Nenhuma
falha. Devemos então aceitar o fato de que era cada um por si? Ficamos mesmo convencidos de
que esse era um comportamento razoável? Jamais tivemos tal consolo, pois havia um
compromisso mais profundo, mais antigo e automático, inscrito em nossa natureza: a cooperação
— base de nossos sucessos primevos como caçadores, a força por trás da evolução da
linguagem, o determinante da coesão social. Nossa infelicidade no final de tudo era prova de que
sabíamos ter falhado com nós mesmos. Mas o fato de se soltar também pertencia à nossa
natureza. O egoísmo está igualmente gravado em nossos corações. Esse é o nosso conflito como
mamíferos — o que dar aos outros, o que guardar para nós próprios. Caminhar ao longo dessa
linha estreita, mantendo os outros sob controle e sendo por eles controlado, é o que chamamos de
moralidade. Pendurado alguns metros acima da escarpa das Chilterns, nosso grupo viveu o antigo
e insolúvel dilema da moralidade: nós ou eu.
Alguém disse eu, e a partir de então não havia nada a ganhar dizendo nós. Na maior parte do
tempo, somos bons quando isso faz sentido. Uma sociedade boa é aquela em que faz sentido ser
bom. De repente, agarrados debaixo da cesta, nos tornamos uma sociedade má, estávamos nos
desintegrando. De repente, a escolha sensata era cuidar de si próprio. A criança não era meu
filho, e eu não iria morrer por ela. No momento em que vi um corpo cair — mas de quem? — e
senti o balão se elevar, a questão estava resolvida: não havia lugar para o altruísmo. Ser bom não
fazia sentido. Soltei as mãos e caí, calculo, de uma altura de uns três metros e meio. Bati de lado
com força e escapei com um machucado na coxa. À minha volta — antes ou depois, não estou
certo — outros corpos se chocavam contra o solo. Jed Parry nada sofreu. Toby Greene fraturou o
tornozelo. Joseph Lacey, o mais velho, que fizera o serviço militar num regimento de
paraquedistas, mal perdeu o fôlego.
Quando me pus de pé, o balão já se afastara mais de quarenta e cinco metros, mas um
homem ainda estava agarrado a seu cabo. Em John Logan — marido, pai, médico e membro de
uma equipe de resgate na montanha —, a chama do altruísmo deve ter queimado com mais
intensidade. Não precisava de muito. Depois que quatro de nós se soltaram, o balão, carregando
cerca de trezentos quilos a menos, deve ter dado um salto para cima. Uma demora de um segundo
seria suficiente para eliminar suas opções. Quando me levantei e o vi, ele já estava a uma altura
de uns trinta metros, subindo ainda justamente onde o declive do terreno se acentuava. Ele não
estava lutando, não esperneava ou tentava desesperadamente subir pelo cabo. Manteve-se
perfeitamente imóvel na linha do cabo, toda a sua energia concentrada na pega cada vez mais
fraca. Já era uma silhueta pequena, quase negra contra o céu. Não se via o menino. O balão e a
cesta continuaram a subir, rumando para oeste — e, quanto menor Logan foi ficando, mais
terrível a situação se tornou, tão terrível a ponto de ser cômica, qual um stunt, um cartum, e um
riso assustado saiu de meu peito. Porque aquilo era ridículo, o tipo de coisa que acontece com o
Pernalonga, ou Tom, ou Jerry, e por um instante pensei que não era verdade, que só eu entendia a
piada, e que minha incredulidade absoluta poria a realidade de volta nos eixos e traria o dr.
Logan são e salvo para baixo.
Não sei se os demais estavam de pé ou ainda deitados no chão. Toby Greene provavelmente
se curvava por cima do tornozelo. Mas me recordo do silêncio, quebrado por meu riso. Nenhuma
exclamação, nenhuma instrução dada aos berros como antes. A desesperança muda. Ele estava
agora a cerca de duzentos metros de distância e talvez cem de altura. Nosso silêncio era uma
espécie de aceitação, a sentença de morte. Ou era o horror da vergonha, porque o vento amainara
e se transformara numa aragem a nossas costas. Logan estava pendurado no cabo por tanto tempo
que comecei a pensar que resistiria até que o balão descesse, ou o menino recobrasse a razão e
achasse a válvula que liberava o gás, ou um raio misterioso, ou um deus, ou qualquer dessas
coisas impossíveis que aparecem nas histórias em quadrinhos surgisse para salvá-lo. Eu ainda
agasalhava essa esperança quando o vimos escorregar até a ponta do cabo. Mas ele ainda se
manteve pendurado. Dois segundos, três, quatro. Até que por fim se desprendeu. Mesmo então,
durante um átimo ele praticamente não caiu, e eu imaginei haver ainda alguma chance de que uma
lei física anômala, uma corrente térmica potentíssima, algum fenômeno não mais espantoso do
que aquele que estávamos testemunhando interviria e o manteria no ar. Observamos sua queda.
Dava para notar a aceleração. Nenhum perdão, nenhuma clemência por conta da carne, da
bravura, da bondade. Apenas a implacável gravidade. E, vindo de algum lugar, talvez dele,
talvez de alguma vaca indiferente, um guincho distante cortou o ar parado. Ele caiu como estivera
pendurado, um gravetinho reto e negro. Jamais vi algo tão terrível quanto aquele homem caindo.
2.
É melhor ir mais devagar. Consideremos cuidadosamente o meio minuto que se seguiu à
queda de Logan. O que ocorreu simultaneamente ou em rápida sucessão, o que foi dito, como nos
movemos ou deixamos de nos mover, o que pensei — todos esses elementos precisam ser
separados. Tanta coisa resultou do incidente, tantas bifurcações e subdivisões brotaram naqueles
primeiros momentos, tantas linhas de amor e ódio se abriram a partir daquela posição inicial que
certo esforço de reflexão e até mesmo o excesso de zelo podem me ser úteis aqui. A melhor
descrição de um acontecimento não precisa replicar sua velocidade. Livros inteiros e vastos
departamentos de pesquisa se dedicam ao primeiro meio minuto na história do universo. Teorias
vertiginosas do caos e da turbulência estão predicadas na supremacia das condições iniciais, que
por isso exigem uma descrição exaustiva.
Já localizei meu começo — a explosão de consequências — no contato com uma garrafa de
vinho e num grito de aflição. Mas tal marcação, um mero alfinete enfiado no mapa do tempo, é
tão aleatória quanto um ponto na geometria euclidiana, e, embora pareça correta, eu poderia ter
igualmente proposto o momento em que planejamos o piquenique no aeroporto, ou em que
decidimos sobre o caminho a seguir, ou o campo onde iríamos almoçar, ou a hora que
escolhemos para comer. Existem sempre causas antecedentes. Todo começo é artificial, e o que
torna um mais recomendável do que outros é o sentido que pode dar à sequência de eventos. O
toque frio do vidro na pele e o grito de James Gadd — essa sincronia fixa uma transição, uma
divergência do que era esperado: do vinho que não provamos (e foi bebido à noite para ajudar a
nos anestesiar) ao apelo de socorro, da existência deliciosa que partilhávamos e desejávamos
preservar ao suplício que depois tivemos de suportar.
Quando deixei cair a garrafa de vinho para correr rumo ao balão e à cesta aos sacolejos,
rumo a Jed Parry e os outros, tomei um caminho na bifurcação que tornou impossível uma vida
amena. A luta com as cordas, a descoordenação e o desgarre de Logan — esses foram os fatos
mais marcantes e óbvios que moldaram nossa história. Mas compreendo agora que, nos
momentos subsequentes à queda, elementos mais sutis exerceram uma influência poderosa sobre
o futuro. O instante em que Logan se chocou contra o solo deveria marcar o fim dessa história, e
não mais um começo que eu poderia haver escolhido. A tarde podia ter findado com uma mera
tragédia.
No segundo ou nos dois segundos transcorridos até que Logan chegasse ao chão, tive uma
sensação de déjà-vu cuja origem percebi imediatamente. O que me veio à memória foi um
pesadelo que eu costumava ter entre os vinte e trinta anos e do qual acordava aos berros. O
cenário variava, mas a essência era sempre a mesma. Eu me encontrava num lugar alto e
observava, de muito longe, um desastre em curso — terremoto, incêndio num arranha-céu, navio
indo a pique, vulcão em erupção. Podia ver as pessoas impotentes, reduzidas pela distância a
uma massa amorfa, correndo em pânico para todos os lados, certas de que iriam morrer. O horror
estava no contraste entre o tamanho aparente delas e a enormidade de seu sofrimento. A
precariedade da vida se revelava por inteiro: milhares de indivíduos aos gritos, não maiores do
que formigas, estavam prestes a ser aniquilados e eu nada podia fazer para ajudá-los. Naquele
momento, não pensei nos pormenores do sonho, e sim fui tomado por sua carga emocional —
misto de terror, culpa e impotência —, sentindo a náusea de uma premonição confirmada.
Abaixo de onde estávamos, lá onde diminuía o declive da escarpa, um campo usado como
pasto era limitado por uma fileira de salgueiros podados. Mais além, numa pastagem ainda
maior, ovelhas e uns poucos cordeiros se deliciavam com o capim novo. Foi no centro desse
segundo campo, diretamente em nossa linha de visão, que Logan caiu. Tive a impressão de que,
no momento do impacto, a pequena figura em forma de graveto havia se derramado no solo como
a gota de um líquido viscoso. Mas, quando tudo se imobilizou, o que vimos foi, como se
reconstituída, a silhueta de seu corpo compactado. A ovelha mais próxima, a uns cinco metros,
mal levantou os olhos da grama que mastigava.
Joseph Lacey cuidava de seu amigo Toby Greene, que não podia ficar de pé. Junto a mim,
encontrava-se Jed Parry e, alguns metros atrás, James Gadd. Ele estava menos interessado em
Logan do que nós. Vociferava acerca do neto, que o balão levava através do vale de Oxford rumo
aos pilões das linhas de alta-tensão. Gadd abriu caminho entre nós dois e começou a descer a
colina como se tencionasse perseguir o balão. Lembro-me de haver pensado tolamente que ele
fazia isso para proteger seu investimento genético. Chegando por trás, Clarissa enlaçou-me pela
cintura e apertou o rosto contra minhas costas. O que me surpreendeu foi que ela já estava
chorando (senti a camisa úmida), enquanto para mim a tristeza parecia muito distante.
Como alguém num sonho, eu era ao mesmo tempo a primeira e a terceira pessoa. Eu agia, e
me via agindo. Eu pensava, e via meus pensamentos projetados numa tela. Como num sonho,
minhas reações emocionais eram inexistentes ou inapropriadas. As lágrimas de Clarissa não
passavam de um fato, mas eu me sentia feliz com a forma como meus pés, bem afastados um do
outro, estavam ancorados no solo, enquanto os braços se cruzavam sobre o peito. Olhei para os
campos e um pensamento foi aparecendo na tela palavra por palavra: aquele homem está morto.
Um calor se espalhou por meu corpo, uma espécie de amor por mim mesmo, e os braços
apertaram ainda mais meu peito. O corolário parecia ser: e eu estou vivo. Era uma questão de
chance, quem estava vivo ou morto em dado momento. Acontece que eu estava vivo. Notei então
que Jed Parry me observava. Seu rosto comprido e ossudo emoldurava uma pergunta dolorosa.
Ele dava a impressão de estar se sentindo miserável, como um cachorro que sabe que vai ser
castigado. Nos poucos instantes em que os olhos claros de um tom azulado de cinza daquele
estranho se fixaram nos meus, achei que podia incluí-lo no calor autocongratulatório que eu
sentia por estar vivo. Passou até por minha cabeça a ideia de lhe dar um tapinha de consolo no
ombro. Meus pensamentos surgiam lá na tela: esse homem se encontra em estado de choque. Ele
quer que eu o ajude.
Se soubesse o que esse olhar significou para Jed naquele momento, e como ele o
interpretaria mais tarde a fim de erigir toda uma vida mental em torno desse olhar, eu não teria
sido tão generoso. Em seu olhar dolorido e interrogativo estava plantada aquela primeira flor que
eu desconhecia totalmente. A calma eufórica que eu sentia era apenas um sintoma do meu próprio
choque. Presenteei Parry com um aceno amistoso da cabeça e, ignorando Clarissa às minhas
costas — eu era um homem ocupado, lidaria com cada um a seu tempo —, disse-lhe, no que
imaginei ser um tom grave e tranquilizador: “Está tudo bem”.
Essa inverdade patente reverberou de maneira tão agradável entre minhas costelas que
quase a repeti. Talvez o tenha feito. Fui o primeiro a falar desde que Logan se chocou com o
solo. Meti a mão no bolso da calça e de lá tirei, entre todas as coisas que alguém poderia exibir
naquele lugar e hora, um telefone celular. Percebi que os olhos do jovem se arregalavam numa
demonstração de respeito. De toda forma, era o que eu sentia por mim mesmo ao segurar aquele
denso aparelhinho na palma da mão e, com o polegar, apertar três vezes o 9. Quando a telefonista
do serviço de emergência me atendeu, pedi que mandassem um carro de polícia e uma
ambulância, fazendo um relato breve e lúcido do acidente, do fato de que o balão se afastava com
o menino, de nossa posição e dos acessos rodoviários mais próximos. Esforcei-me para não
demonstrar meu entusiasmo. Queria gritar algo — comandos, exortações, sons não articulados de
vogais. Eu estava vulnerável, excitado, talvez parecesse feliz.
Quando desliguei o telefone, Joseph Lacey disse: “Ele não vai precisar de ambulância
nenhuma”.
Greene levantou os olhos do tornozelo. “Vai servir para levar ele daqui.”
Lembrei-me, óbvio. Era disso que eu precisava: fazer alguma coisa. Eu agora estava a toda,
pronto para lutar, correr, dançar, o que viesse. “Talvez ele não esteja morto”, comentei. “Há
sempre uma possibilidade. Vamos lá ver.”
Ao dizer isso, tomei consciência de um tremor em minhas pernas. Eu queria descer a colina
com passos firmes, mas não confiava em meu equilíbrio. Seria melhor subir. Disse a Parry:
“Você vem comigo”. Tencionava fazer uma sugestão, porém soou como um pedido, como se eu
necessitasse dele. Ele me olhou, incapaz de falar. Cada gesto, cada palavra que pronunciei, tudo
estava sendo armazenado, empacotado e empilhado, combustível para o longo inverno de sua
obsessão.
Desvencilhei-me dos braços de Clarissa e me voltei. Não me ocorreu que ela estava
tentando me manter estável. “Vamos lá embaixo”, eu disse em voz calma. “Talvez possamos
fazer alguma coisa.” Notei que o tom se abrandara, a magistral redução no volume da voz. Eu era
um ator numa novela. Agora ele está falando com sua mulher. Momento de intimidade, close-up
do casal.
Clarissa pousou a mão em meu ombro. Mais tarde confessou que pensou em me dar um tapa
na cara. “Joe”, ela sussurrou, “você precisa se controlar.”
“Que que há?”, perguntei em voz mais alta. Um homem morrendo no meio de um campo e
ninguém reagia. Clarissa me olhou e, embora sua boca parecesse pronta a emoldurar as palavras,
não disse por que eu deveria me controlar. Voltei-me na direção dos outros, que estavam
espalhados pelo relvado aguardando, assim pensei, que lhes dissesse o que fazer. “Vou vê-lo lá
embaixo. Alguém vem comigo?” Sem esperar pela resposta, iniciei a descida com passos curtos,
consciente de que meus joelhos pareciam liquefeitos. Vinte segundos depois dei uma olhada para
trás. Ninguém se mexera.
Enquanto eu caminhava, meu acesso neurótico começou a se dissipar e me senti solitário,
apanhado na armadilha de minha própria decisão. Também havia o medo, não tanto dentro de
mim, mas no campo, espalhado como um nevoeiro e mais denso no centro. Eu avançava na
direção dele, agora sem alternativa, porque todos me observavam e voltar atrás significaria subir
a colina, uma dupla humilhação. À medida que a euforia evaporava, o medo se infiltrava. O
homem morto que eu não queria encontrar esperava por mim no meio do campo. Pior ainda seria
encontrá-lo agonizando. Nesse caso eu teria de lidar sozinho com ele, usando minhas técnicas de
primeiros socorros, um punhado de brincadeirinhas de salão. Ele não se deixaria enganar.
Trataria de ir em frente e morrer, fizesse eu o que fizesse, depositando sua morte em minhas
mãos. Queria voltar-me e chamar por Clarissa, mas sabia que todos me observavam e sentia
vergonha da fanfarronada que havia feito lá em cima. A longa descida era meu castigo.
Cheguei ao renque de salgueiros podados no pé da colina, cruzei uma vala seca e passei por
cima de uma cerca de arame farpado. Agora estava fora da vista deles e queria poder vomitar.
Em vez disso, urinei num tronco de árvore. Minha mão tremia bastante. Depois fiquei imóvel,
retardando o momento em que teria de começar a cruzar o campo. Estar fora da vista de todos era
um alívio físico, comparável a encontrar uma sombra no deserto. Tinha consciência da posição
de Logan, mas, mesmo a uma grande distância, não queria vê-lo.
As ovelhas, que mal haviam levantado a cabeça no momento do impacto, me encararam e
recuaram em curtas corridinhas quando passei pelo meio delas. Estava me sentindo um pouco
melhor. Mantive Logan na periferia do campo visual, porém, mesmo assim, notei que ele não
estava prostrado no solo. Havia algo protuberante no centro do campo, como a antena truncada
de sua existência atual ou pretérita. Só quando cheguei a uns vinte metros de distância é que me
permiti olhar para ele. Logan estava sentado de costas para mim, como se meditasse ou
contemplasse a direção tomada pelo balão e por Harry. Sua postura irradiava serenidade.
Cheguei mais perto, instintivamente incomodado com o fato de me aproximar por trás, sem ser
visto, embora contente de não poder ver seu rosto. Ainda me aferrava à possibilidade de que
existisse uma técnica, uma lei ou processo físico, que eu desconhecia por completo, capaz de
garantir sua sobrevivência. O fato de estar sentado ali tão tranquilamente no campo, como se
procurasse se recuperar após aquela terrível experiência, deu-me alguma esperança e me fez
pigarrear como um idiota. Sabendo que ninguém mais podia me ouvir, perguntei: “Precisa de
ajuda?”. Não foi tão ridículo naquela hora. Eu podia ver seu cabelo encaracolado por cima da
gola da camisa e a pele queimada de sol acima das orelhas. Seu paletó de tweed permanecia
impecável, conquanto exibisse um caimento estranho porque os ombros estavam mais estreitos do
que seria normal, mais estreitos que os de qualquer adulto. Não havia nenhuma extensão lateral a
partir da base do pescoço. A estrutura do esqueleto tinha desmoronado internamente, deixando
apenas a cabeça em cima de uma coluna tornada mais grossa. Ao perceber isso, entendi que
tomara como calma o que era uma simples ausência. Não havia ninguém lá. A serenidade
pertencia às coisas inanimadas, e mais uma vez compreendi, pois já tinha visto cadáveres
anteriormente, por que fora necessário inventar a alma numa era pré-científica. Era tão claro
quanto a ilusão do sol vespertino mergulhando no céu. A olho nu, a cessação de incontáveis
trocas neurais e bioquímicas interconectadas sugeria o apagar de uma centelha ou a partida de um
elemento único e imprescindível. Por mais bem informados que acreditemos ser em matéria de
ciência, a presença dos mortos ainda nos inspira medo e pasmo. Ou talvez seja a vida o que
realmente nos espante.
Foram esses os pensamentos com que tentei me proteger ao circundar o cadáver. Ele estava
sentado numa pequena depressão do terreno. Não vi Logan morto até contemplar seu rosto, e
apenas o entrevi. Embora a pele estivesse intacta, não se tratava realmente de um rosto, pois a
estrutura óssea havia se despedaçado e, antes de afastar os olhos, tive a impressão de uma
violação radical da perspectiva digna de Picasso. Talvez só tenha imaginado que os olhos
estavam dispostos na vertical. Afastando a vista, notei que Parry se aproximava pelo campo. Ele
devia ter me seguido de perto, pois já nos podíamos falar àquela distância. Deve ter visto quando
fiz a pausa ao abrigo das árvores.
Observei-o por cima da cabeça de Logan quando ele diminuiu o passo e gritou para mim:
“Não toque nele, por favor, não toque nele!”.
Não tencionava fazê-lo, mas não disse nada. Era como se eu visse Parry pela primeira vez.
Com as mãos nas cadeiras, ele olhava fixamente para mim, e não para Logan. Já naquele
momento, demonstrava maior interesse por mim. Viera para me dizer alguma coisa. Alto e magro,
todo feito de ossos e tendões, dava a impressão de estar em boa forma física. Usava jeans e um
par de tênis novo em folha, com cadarços vermelhos. Os ossos pareciam querer perfurar-lhe a
pele, ao contrário dos de Logan. Roçando no cinto de couro, os grandes nós dos dedos esticavam
ao máximo a pele branca. As maçãs do rosto eram altas e também repuxavam a pele, o que,
somado ao rabo de cavalo, lhe dava a aparência de um guerreiro índio de tez clara. Era uma
figura impressionante, até mesmo um pouco ameaçadora, mas sua voz punha tudo a perder. Era
débil e hesitante, sem nenhum sotaque regional, embora tivesse ligeiros vestígios do dialeto das
classes baixas de Londres — por conta de um passado superado ou por mera afetação. Como era
comum entre as pessoas de sua geração, Parry costumava fazer uma afirmação lhe dando a
entonação ascendente de uma pergunta — numa humilde imitação dos americanos e australianos
ou, como ouvi um linguista explicar, por estarem demasiadamente atolados em avaliações
relativistas, por serem hesitantes ou apologéticos demais para dizer como as coisas eram de fato
no mundo.
É claro que não pensei nada disso naquele momento. Tudo que ouvi foram alguns ganidos de
impotência, e relaxei. O que ele disse foi o seguinte: “Clarissa está realmente preocupada com
você? Eu disse que vinha aqui ver se estava tudo bem com você?”.
Fiz um silêncio hostil. Eu tinha idade suficiente para não gostar de sua presunção ao usar o
primeiro nome dela ou da pretensão de conhecer o estado de espírito de Clarissa. A essa altura,
eu nem sabia o nome de Parry. Mesmo com um homem morto sentado entre nós, as regras de
comportamento social permaneciam válidas. Como soube depois por Clarissa, Parry tinha se
apresentado a ela antes de me seguir colina abaixo. Ela nada lhe dissera sobre mim.
“Você está bem?”
“Não há nada a fazer senão esperar”, respondi, apontando na direção da estrada, do outro
lado do campo.
Parry avançou alguns passos e olhou para Logan, voltando depois a me encarar. Seus olhos
de um tom azulado de cinza reluziam. Ele estava excitado, mas ninguém poderia imaginar até que
ponto. “Na verdade, acho que há uma coisa que podemos fazer.”
Olhei para o relógio. Quinze minutos haviam se passado desde que chamara o serviço de
emergência. “Vá em frente”, eu disse, “faça o que quiser.”
“É uma coisa que podemos fazer juntos?”, ele retrucou, procurando a seu redor um lugar
apropriado. Ocorreu-me o pensamento alucinado de que ele iria propor um ato da mais vil
indecência com um cadáver. Ele se abaixou e, com um olhar, convidou-me a acompanhá-lo.
Então entendi. Ele se ajoelhara.
“O que podemos fazer”, ele disse no tom sério de quem quer evitar qualquer zombaria, “é
rezarmos juntos.” Antes que eu pudesse objetar, o que se provou impossível porque me faltaram
as palavras, Parry acrescentou: “Sei que é difícil. Mas você vai ver que ajuda. Nessas horas,
você sabe, realmente ajuda”.
Afastei-me um passo de Logan e de Parry. Estava embaraçado, e meu primeiro impulso foi
não ofender um crente de verdade. Mas soube me controlar. Afinal, ele não se preocupara com o
fato de que podia estar me constrangendo.
“Sinto muito”, disse de forma simpática. “Não é meu negócio de jeito nenhum.”
Parry tentou argumentar, conquanto se encontrasse numa posição mais baixa. “Olhe, nós não
nos conhecemos e você não tem nenhuma razão para confiar em mim. Mas o fato é que Deus nos
uniu nesta tragédia e, você sabe, temos que tentar entender o porquê disso?” E então, vendo que
eu não me movia, continuou: “Acho que você tem uma necessidade especial de rezar?”.
Dei de ombros. “Desculpe, mas trate de ir em frente.” Americanizei meu modo de falar para
sugerir uma despreocupação que de fato eu não sentia.
Parry, ainda de joelhos, não desistiu. “Acho que você não entendeu. Não deve pensar nisso,
está entendendo, como um tipo qualquer de obrigação. O importante é saber se suas próprias
necessidades estão sendo satisfeitas? Na verdade, não tem nada a ver comigo, eu sou apenas o
mensageiro. É uma dádiva.”
Diante de sua insistência, os últimos vestígios de meu embaraço se dissiparam. “Obrigado,
mas a resposta é não.”
Parry fechou os olhos e respirou fundo, não para rezar, e sim reunindo suas forças. Decidi
subir de volta a colina. Ouvindo meus passos, ele se levantou e veio atrás de mim. Realmente não
queria deixar que eu fosse embora. Estava desesperado para me persuadir, mas não desejava
abandonar o estilo paciente e compreensivo. Por isso, sorriu como quem vence uma barreira de
dor e disse: “Por favor, não recuse isso. Sei que é uma coisa que você normalmente não faria.
Quer dizer, não precisa acreditar em nada, basta se permitir fazer isso e eu lhe prometo,
prometo...”.
Enquanto ele buscava articular sua promessa, eu o interrompi e dei um passo para trás.
Suspeitava que a qualquer momento ele esticaria o braço e me tocaria. “Olhe, sinto muito. Vou
voltar para ver minha amiga.” Não era capaz de compartilhar o nome de Clarissa com Parry.
Ele deve ter compreendido que sua única chance de me manter lá exigia agora uma mudança
radical de tom. Eu já me afastara alguns passos quando ele disse de modo incisivo: “Está bem,
muito bem. Por favor, pelo menos tenha a cortesia de me dizer uma coisa”.
Era irresistível. Parei e voltei-me.
“O que é exatamente que o impede? Quer dizer, você é capaz de me dizer se sabe
exatamente o que é?”
Por um momento pensei que não ia lhe dar nenhuma resposta — eu queria que ele soubesse
que sua fé não me impunha a menor obrigação. Mas então mudei de ideia e disse: “Nada. Nada
me impede”.
Ele se aproximava novamente, com os braços caídos ao lado do corpo, as palmas das mãos
viradas para cima e os dedos espraiados, numa pequena encenação da perplexidade de um
homem razoável. “Então por que não arriscar?”, ele disse com uma risada artificial. “Quem sabe
você vai entender a razão da coisa, a força que pode lhe dar. Por favor, por que não?”
Mais uma vez hesitei e por pouco não fiquei calado. Mas decidi que ele precisava saber a
verdade. “Porque, meu amigo, ninguém está ouvindo. Não há ninguém lá em cima.”
Parry inclinou a cabeça para o lado enquanto um sorriso de imensa felicidade se espalhava
lentamente por seu rosto. Fiquei na dúvida se me ouvira bem, porque, a julgar por sua expressão,
eu acabara de lhe dizer que era são João Batista. Foi então que notei, por cima de seu ombro,
dois policiais pulando uma alta porteira. Quando correram pelo campo em nossa direção, um
deles usou a mão para manter o quepe na cabeça, tal como se via nas comédias dos Keystone
Kops. Eles chegavam para dar início ao processamento oficial do destino de Logan e, do meu
ponto de vista, para me livrar do poder magnético emitido pelo amor e pela comiseração de Jed
Parry.
3.
Às seis da tarde estávamos de volta a nossa casa, na cozinha, e tudo parecia igual — o
relógio da estação ferroviária acima da porta, a coleção de livros de culinária de Clarissa, a
caligrafia floreada da nota deixada pela arrumadeira na véspera. A arrumação inalterada de
minha xícara do café da manhã ao lado do jornal tinha um quê de blasfêmia. Enquanto Clarissa
levava sua bagagem para o quarto, limpei a mesa, abri o vinho do piquenique e peguei duas
taças. Sentamo-nos frente a frente e começamos.
Não havíamos conversado muito no carro. Parecia suficiente estar enfrentando o tráfego sem
sofrer nenhum acidente. Agora veio tudo numa torrente — autópsia, recapitulação, troca de
relatórios —, a dor reencenada, o exorcismo do terror. Relembramos muitas vezes durante a
noite os fatos e nossas percepções, bem como as próprias frases e palavras que moldamos para
assimilá-los, criando assim um ritual em que as descrições se tornavam também fórmulas
cabalísticas. A reiteração trazia consolo, tanto quanto o peso familiar das taças de vinho e os
veios na superfície da mesa de pinho que pertencera à bisavó de Clarissa. Havia sulcos rasos
perto das beiradas como cicatrizes de cortes causados por facas, os quais, segundo sempre
imaginei, tinham sido desgastados por cotovelos semelhantes aos nossos. Muitas crises e mortes
já deviam ter sido discutidas em torno daquela mesa.
Clarissa contou num jorro o início de sua história, a confusão de homens andando às tontas e
se enrolando nos cabos, os gritos e xingamentos, como ela tentara ajudar mas não encontrara
nenhuma corda livre a que pudesse se agarrar. Juntos, maldissemos o piloto, James Gadd, por sua
incompetência, embora isso não nos eximisse de pensar em tudo que poderíamos ter feito para
evitar a morte de Logan. Tal como fizemos diversas vezes durante aquela noite, pulamos
diretamente para o momento em que ele largou a corda. Contei como ele pareceu pairar por
frações de segundo antes de cair, e ela disse que lhe veio à mente um fragmento de Milton: Em
chamas, arrojado de cabeça da abóbada celeste. Mas recuamos seguidamente ao chegar a esse
momento, dando voltas em torno dele, armando-lhe emboscadas, até que conseguimos cercá-lo e
começamos a domesticá-lo com nossas palavras. Retornamos à luta com o balão e as amarras.
Senti a angústia da culpa, sem poder ainda discuti-la. Mostrei a Clarissa a queimadura deixada
pela corda em minhas mãos. Havíamos terminado o Gassac em menos de meia hora. Clarissa
ergueu as palmas das minhas mãos até seus lábios e as beijou. Olhei fundo em seus olhos —
aquele belo e carinhoso verde —, mas não foi possível sustentar o olhar por muito tempo, aquele
tipo de paz não nos era permitido. Ela estremeceu ao dizer em voz alta: “Ai, meu Deus, mas
quando ele caiu!”, e eu me levantei às pressas para pegar um Beaujolais no armário de garrafas.
Retornando à queda, nos perguntamos quanto tempo ele levara para atingir o solo, dois ou
três segundos. Imediatamente, batendo em retirada, falamos sobre coisas menores: a polícia; os
homens da ambulância (um deles, incapaz de suportar sua extremidade da maca em que Greene
era levado, necessitou da ajuda de Lacey para atravessar o campo); o guincho que removeu o
carro de Logan. Tentamos imaginar a entrega do carro vazio na casa de Oxford onde a sra. Logan
esperava com os dois filhos. Mas, como isso também era insuportável, voltamos a nossas
próprias recordações. Havia nós nas linhas de narração, emaranhados de horror que não
conseguíamos enfrentar de início, obrigando-nos a recuar ao vê-los pela primeira vez a fim de
retornar mais tarde. Qual prisioneiros numa cela, corríamos em direção às paredes e nelas
batíamos com a cabeça. Aos poucos nossa prisão se tornou mais ampla.
Estranho lembrar que, no tocante a Jed Parry, nos sentíamos em terreno mais seguro.
Clarissa me contou como ele se aproximara e dissera o nome dele, e ela, o seu. Sem ao menos
trocar um aperto de mão, ele dera meia-volta e descera a colina atrás de mim. Contei a história
da oração como uma comédia e fiz com que Clarissa risse. Ela entrelaçou os dedos nos meus e
deu um aperto carinhoso. Quis dizer que a amava, mas de repente surgiu entre nós a figura de
Logan, sentado rigidamente, imóvel. Eu precisava descrevê-lo. Era muito pior ao ser relembrado
do que quando o vi de fato. O estado de choque deve ter embotado minhas reações naquela hora.
Comecei a lhe contar como os traços dele pareciam estar nos lugares errados, mas interrompi a
descrição para explicar a diferença entre o então e o agora, como certa lógica onírica tornara o
insuportável bastante corriqueiro, como eu achara normal conversar com Parry junto aos restos
destroçados de Logan. E, no momento mesmo em que dizia isso, ocorreu-me que eu ainda estava
evitando Logan, que me esquivara de continuar a descrição porque ainda não podia digerir os
fatos — e também queria explicar isso a Clarissa. Ela observou, paciente, enquanto embarquei
numa viagem de volta, misturando lembranças, emoções e comentários. Não que fosse incapaz de
encontrar as palavras, simplesmente não conseguia acompanhar a velocidade dos meus
pensamentos. Clarissa empurrou a cadeira para trás e contornou a mesa. Apertou minha cabeça
contra os seios. Calei-me e fechei os olhos. Nas fibras de seu suéter senti o cheiro do ar livre e
imaginei ver o céu se abrir diante de mim.
Pouco depois, ela voltou a sentar e nos debruçamos sobre a mesa como artesãos
conscienciosos executando seu trabalho, aparando as arestas cortantes das recordações,
moldando em palavras, a golpes de cinzel, o indizível, fazendo um colar narrativo de percepções
isoladas, até que Clarissa nos trouxe de volta à queda, ao momento preciso em que Logan
escorregara pelo cabo e lá ficara pendurado por um derradeiro e precioso segundo, até se deixar
cair. Era a isso que ela precisava retornar, a imagem à qual seu choque se soldara. Repassou
tudo mais uma vez, repetiu o verso do Paraíso perdido. Depois me contou que, ela também,
havia desejado uma salvação mesmo enquanto Logan caía. O que lhe viera à mente foram anjos,
não os réprobos atirados dos céus, mas a corporificação de todo o bem e da justiça sob a forma
de uma figura dourada que mergulharia das nuvens para acolher em seus braços o homem em
queda. Naquele segundo delirante, povoado de pensamentos, parecera a ela que a queda de
Logan era um desafio a que nenhum anjo resistiria — e sua morte negava a existência dessas
criaturas. Seria mesmo necessária tal negação, eu queria perguntar, porém ela segurou minhas
mãos com força e disse: “Ele era um homem bom”, com uma nota repentina de súplica, como se
eu estivesse prestes a condená-lo. “O menino estava na cesta, e Logan não queria deixá-lo
sozinho. Ele também tinha filhos. Era um homem bom.”
Quando Clarissa tinha pouco mais de vinte anos, uma intervenção cirúrgica de rotina a
deixou incapaz de ter filhos. Ela acreditava que suas informações médicas haviam sido
confundidas com as de outra mulher, mas era impossível provar isso e um longo processo
judicial terminou atolado em atrasos e recursos. Pouco a pouco, Clarissa conseguiu enterrar a
tristeza e, refazendo sua vida, se assegurou de que nela não faltariam crianças. Sobrinhos,
sobrinhas, afilhados, os filhos de vizinhos e de velhos amigos — todos a adoravam. Ela se
lembrava dos aniversários de cada um e também os presenteava no Natal. Tínhamos um quarto
adaptado para crianças ou adolescentes, e às vezes recebíamos em casa esses jovens visitantes.
Os amigos viam em Clarissa uma mulher feliz e realizada, o que quase sempre correspondia à
verdade. Mas vez por outra algo vinha reacender o sentimento de perda. Cinco anos antes do
acidente com o balão, quando nos conhecíamos havia dois anos, Marjorie, uma boa amiga dos
tempos da universidade, perdeu seu bebê de quatro semanas por causa de uma rara infecção
bacteriana. Clarissa fora a Manchester ver a criancinha de cinco dias e lá passara uma semana
ajudando a amiga. A notícia da morte do bebê a arrasou. Nunca vi uma dor tão demolidora. Sua
essência não era tanto o destino da criança, mas a perda de Marjorie, que ela sentiu como sua. O
que se viu foi o luto de Clarissa por uma criança ilusória, cuja existência virtual teve origem em
seu amor frustrado. Clarissa havia se apropriado do sofrimento de Marjorie. Passados alguns
dias, suas defesas se recompuseram, e ela se dedicou a ser tão útil quanto possível à velha amiga.
Esse foi um exemplo extremo. Em outras ocasiões, a criança não concebida mal se revelava
antes que o momento crítico passasse. Agora, ela via em John Logan um homem pronto a morrer
para evitar o tipo de perda que ela própria sentia ter sofrido. Embora o menino não fosse seu
filho, ele, como pai, entendia. Aquela espécie de amor havia perfurado as defesas de Clarissa.
Com a nota de súplica — “era um homem bom” — ela se desculpava perante seu próprio
passado, perante a criança espectral.
O inaceitável era que Logan havia morrido à toa. O menino, Harry Gadd, ao fim e ao cabo
nada sofrera. Eu largara a corda. Eu ajudara a matar John Logan. Mas, até mesmo enquanto
voltava a sentir a náusea da culpa, eu procurava me convencer de que tinha razão em fazer o que
fiz. Caso contrário, Logan e eu poderíamos ter caído juntos, e Clarissa estaria sentada ali sozinha
naquela noite. No final da tarde, a polícia nos informou que o menino descera são e salvo cerca
de vinte quilômetros a oeste. Quando se deu conta de que não tinha quem o ajudasse, tratou de se
salvar. Passado o terror causado pelo pânico do avô, ele assumiu o controle da situação e fez
tudo corretamente. Deixou o balão subir acima das linhas de alta-tensão e depois abriu a válvula
de gás a fim de descer lentamente num campo próximo a uma cidadezinha.
Clarissa se calara. Com o queixo apoiado na mão fechada, seus olhos observavam os veios
da madeira. “Sim”, eu disse por fim, “ele queria salvar aquele menino.” Ela balançou a cabeça
devagar, reconhecendo algum pensamento não expresso. Esperei, contente em fugir de meus
próprios sentimentos para ajudá-la a lidar com os dela. Sabendo que eu a olhava, Clarissa ergueu
a vista. “Deve significar alguma coisa”, disse em tom sombrio.
Hesitei. Jamais gostei desse tipo de especulação. A morte de Logan tinha sido inútil — o
que explicava em parte nosso estado de choque. As pessoas boas às vezes sofriam e morriam,
não porque a bondade delas estivesse sendo posta à prova, mas precisamente porque não havia
nada nem ninguém para testá-la. Ninguém exceto nós. Fiquei em silêncio por tempo demasiado,
pois ela acrescentou de repente: “Não se preocupe, Joe. Não vou te incomodar com nenhuma
ideia estranha. Mas como é que podemos encontrar algum sentido nisso tudo?”.
“Tentamos e fracassamos”, respondi.
Ela sorriu e fez que não com a cabeça. Fui me postar ao lado da sua cadeira e, abraçando-a
num gesto protetor, lhe beijei o topo da cabeça. Suspirando, ela apertou o rosto contra minha
camisa e me envolveu pela cintura. Com a voz abafada, ela disse: “Você é mesmo um bobinho. É
tão racional que às vezes parece uma criança...”.
Será que ela queria dizer que a racionalidade era um tipo de inocência? Nunca descobri,
porque suas mãos avançavam de leve por minhas nádegas rumo ao períneo. Ela acariciou meus
testículos e, mantendo lá uma das mãos, abriu meu cinto, afastou a camisa e beijou meu ventre.
“Vou lhe explicar um dos sentidos do que aconteceu, seu boboca. Vimos juntos algo terrível. Isso
não vai desaparecer, e temos de ajudar um ao outro. E isso significa que precisamos nos amar
ainda mais.”
Obviamente. Por que eu não havia pensado nisso? Por que não pensei desse jeito?
Precisávamos de amor. Eu vinha tentando evitar até que ela me tocasse com a mão, presumindo
que o afeto era inadequado, uma indulgência, uma irreverência com a morte. Algo a que
voltaríamos mais tarde, quando todas as conversas e confrontos de opinião houvessem cessado.
Clarissa nos conduzira de volta ao essencial. Fomos de mãos dadas para o quarto. Ela sentou na
beira da cama e a despi. Quando lhe beijei o pescoço, ela me puxou para si. “Não me importa o
que vamos fazer”, sussurrou. “Não precisamos fazer nada. Só quero te abraçar.” Ela se enfiou
debaixo das cobertas e ficou deitada de costas, com os joelhos dobrados, enquanto eu tirava a
roupa. Quando me deitei, ela passou os braços em volta de meu pescoço e trouxe meu rosto para
perto do seu. Ela sabia que eu adorava esse tipo de enlace, que me dava a sensação de pertencer,
de ter raízes, de ser um bem-aventurado. E eu sabia que ela gostava de fechar os olhos para que
eu beijasse suas pálpebras, seu nariz, todo o rosto, como se ela fosse uma criança na hora de
dormir — e só no final eu encontrava seus lábios.
Muitas vezes nos recriminávamos por perder tempo conversando sentados e vestidos
quando podíamos fazer o mesmo deitados na cama, nus e de rostos colados. Aquela fase preciosa
antes de se fazer amor não é bem descrita pelo termo pseudocientífico preliminares. O mundo
ficava mais estreito e profundo, nossas vozes mergulhavam no calor dos dois corpos, a conversa
se transformava numa imprevisível associação de ideias. Tudo se resumia a toques e hálitos.
Vinham-me à mente frases simples que eu não pronunciava por soarem tão banais: Cá estamos ou
Faz outra vez ou É isso mesmo. Tal como certas cenas num sonho recorrente, aqueles minutos
espaçosos e inocentes eram esquecidos até retornarmos a eles, quando então nossas vidas
recuperavam o que tinham de essencial e começavam outra vez. Ao silenciarmos, estávamos tão
próximos que nossas bocas se tocavam, retardando o ato que nos unia ainda mais intimamente por
causa daquele prelúdio.
Assim, lá estávamos, aquilo foi feito outra vez — e nos resgatamos. Fora da penumbra do
quarto, as trevas eram infinitas e frias como a morte. Nós representávamos um ponto de calor na
vastidão gélida. Os eventos da tarde haviam penetrado em nós, mas os banimos das conversas.
“Como você está se sentindo?”, perguntei.
“Apavorada”, ela respondeu, “com muito medo.”
“Mas não parece.”
“Sinto como se estivesse tremendo por dentro.”
Em vez de tomar o caminho que certamente levaria de volta a Logan, nos contamos histórias
assustadoras em que, como é comum, a infância era o elemento central. Quando tinha sete anos,
Clarissa foi passar férias com a família no País de Gales. Uma de suas primas, de cinco anos,
desaparecera numa manhã chuvosa e seis horas depois ainda não havia sido encontrada. A
polícia chegou trazendo dois cães rastreadores. As pessoas da cidadezinha iniciaram as buscas
pelo mato e durante algum tempo um helicóptero esquadrinhou as áreas mais altas. Pouco antes
do anoitecer, a menina foi achada num celeiro, dormindo debaixo de alguns sacos. Clarissa se
lembrava da comemoração que houve à noite na fazenda alugada. Seu tio, o pai da garota, havia
acabado de se despedir do último policial. Ao voltar para a sala, cambaleou e acabou desabando
numa poltrona. Suas pernas tremiam violentamente, e as crianças espiaram fascinadas quando a
tia de Clarissa se ajoelhou diante dele e apertou suas coxas com as palmas das mãos para
acalmá-lo. “Na época não associei aquilo à busca pela minha prima. Era só uma dessas coisas
estranhas que a gente observa de forma neutra como criança. Pensei que podia ser o que
chamavam de bebedeira, os joelhos dançando para cima e para baixo dentro das calças dele.”
Contei a história de minha primeira exibição pública tocando trompete, quando tinha onze
anos. Eu estava tão nervoso e minhas mãos tremiam tanto que não consegui sustentar o bocal na
altura certa ou esticar os lábios para fazer uma nota. Finalmente, enfiei o bocal entre os dentes e
mordi com força para mantê-lo no lugar, tocando minha parte numa mistura de canto e sopro.
Ninguém notou nada em meio à cacofonia geral de uma orquestra infantil no Natal. “Ainda hoje
você faz, no banho, uma boa imitação de um trompete”, disse Clarissa.
Das histórias assustadoras passamos para a dança (que ela adora e eu detesto) e daí para o
amor. Dissemos aquilo que quem ama nunca se cansa de ouvir e precisa dizer. “Eu te amo ainda
mais agora, depois de ver você pirar de todo”, ela disse. “O racionalista enfim perdeu o
controle!”
“Foi só o começo”, prometi. “Aguarde os novos capítulos.”
Essa referência a meu comportamento após Logan se chocar contra o solo quebrou o
encantamento, porém só por meio minuto. Chegamos mais perto um do outro e nos beijamos. O
que veio depois foi intensificado por toda a força emocional de uma reconciliação, como se uma
briga pavorosa que houvesse durado todo o fim de semana, com ameaças e insultos, acabasse
docemente num perdão mútuo. Nada tínhamos a perdoar, a menos que, assim suponho,
estivéssemos nos absolvendo um ao outro da morte, mas esses foram os sentimentos trazidos
pelas ondas de estimulação física. Esse êxtase exigiu um alto preço, e tive de rechaçar a imagem
de uma casa às escuras em Oxford, tão isolada como se plantada num deserto, onde, de uma
janela no andar de cima, duas crianças aturdidas observavam a mãe receber os lúgubres
visitantes.
Depois dormimos e, ao acordarmos mais ou menos uma hora mais tarde, estávamos
esfomeados. Tendo vestido nossos robes, atacávamos a geladeira quando sentimos a necessidade
de companhia. Clarissa foi ao telefone. Consolo emocional, sexo, casa, vinho, comida, amizades
— queríamos reafirmar todo o nosso mundo. Meia hora depois, em volta da mesa, contávamos a
história a nossos amigos Tony e Anna Bruce enquanto comíamos os pratos tailandeses que eu
havia encomendado. Contamos tudo como os casais costumam fazer, cada um tocando a narrativa
por algum tempo, às vezes continuando a falar quando o outro tentava interromper, outras vezes
cedendo a palavra sem protesto. Em algumas ocasiões falávamos ao mesmo tempo, mas, apesar
de tudo, nossa história ganhava coerência: agora tinha começo, meio e fim, além de fluir de um
ponto seguro. Vi como os rostos inteligentes e atentos de nossos amigos reagiam com espanto ao
relato. O choque que eles sentiam era uma simples sombra do nosso, mais parecendo uma
imitação bem-intencionada da emoção original, motivo pelo qual corríamos o risco de exagerar,
de lançar uma corda de superlativos sobre o abismo que separava nossa experiência de sua
representação oral. Nos dias e semanas que se seguiram, Clarissa e eu contamos a história muitas
vezes a amigos, colegas e parentes. Dei-me conta de que usava as mesmas frases, os mesmos
adjetivos na mesma ordem. Tornou-se possível relatar os eventos sem nem de longe revivê-los,
sem nem mesmo lembrar deles.
Tony e Anna saíram à uma da madrugada. Voltando da porta após me despedir deles,
reparei que Clarissa passava os olhos em algumas anotações de aula. Claro, seu período sabático
havia terminado, o dia seguinte era segunda-feira e ela teria de voltar a dar aulas. Fui para o meu
escritório e examinei a agenda embora soubesse perfeitamente o que estava lá: duas reuniões e
um artigo a ser concluído até as cinco da tarde. Em certo sentido, estávamos bem protegidos
contra aquela catástrofe. Tínhamos um ao outro, bem como um grande número de velhos amigos.
E ambos possuíamos ocupações interessantes e exigentes que nos absorviam. Sob a luz da
lâmpada da escrivaninha, contemplei a pilha irregular de seis ou sete cartas não respondidas, e
me senti reconfortado com aquela visão.
Ficamos conversando durante mais meia hora, mas só porque estávamos cansados demais
para dormir. Às duas horas conseguimos ir para a cama. As luzes se haviam apagado fazia cinco
minutos quando o telefone tocou e me arrancou de um sono apenas iniciado.
Não tenho dúvida de que me lembro exatamente de suas palavras. “É o Joe?”, ele perguntou.
Não respondi. Já havia identificado a voz. “Só queria que você soubesse”, ele continuou, “que
compreendo seus sentimentos. É o que eu estou sentindo também. Eu te amo.”
Desliguei.
Clarissa murmurou contra o travesseiro: “Quem era?”.
Pode ter sido por mero cansaço, ou talvez só quisesse protegê-la, mas sei que cometi meu
primeiro erro grave quando me deitei de lado e respondi: “Não foi nada. Engano. Trate de
dormir”.
4.
Embora ao acordarmos na manhã seguinte aqueles acontecimentos ainda vibrassem acima da
cama, o resto do dia, com sua carga de compromissos diversificados, serviu como um bálsamo
para nós. Clarissa saiu de casa às oito e meia para um seminário sobre poesia romântica na
universidade. Depois, participou de uma reunião administrativa de seu departamento, almoçou
com uma colega, corrigiu provas e durante uma hora supervisionou uma aluna de pós-graduação
que escrevia uma tese sobre Leigh Hunt. Voltou às seis enquanto eu ainda estava fora de casa.
Deu uns telefonemas, tomou um banho e saiu para jantar com o irmão, Luke, cujo casamento de
quinze anos estava em crise.
Eu havia tomado meu banho pela manhã. Levei uma garrafa térmica com café para o
escritório e durante quinze minutos corri o risco de sucumbir às tentações de todo freelancer:
jornais, telefonemas, devaneios. Não me faltavam assuntos para sonhar acordado. Porém reagi e
me obriguei a terminar o artigo sobre o telescópio Hubble para uma revista americana.
Esse projeto me interessava fazia muitos anos por encarnar um heroísmo e uma
grandiosidade incomuns, por não ter propósitos bélicos ou comerciais imediatos e por responder
a um impulso tão simples quanto nobre — alargar as fronteiras do conhecimento. Quando se
descobriu que havia uma imperfeição de vinte e cinco centésimos de milésimo de centímetro na
curvatura do espelho primário de dois metros e quarenta, a reação geral não foi de
desapontamento, e sim de alegria, gozação e zombaria numa escala planetária. Desde que o
Titanic afundou, temos sido muito severos com os engenheiros, encarando com ceticismo suas
ambições exageradas. Aqui estava o mais comprido brinquedo no espaço até então, da altura de
um prédio de quatro andares, destinado a brindar nossas retinas com maravilhas, as imagens das
origens do universo, nossos próprios primórdios no começo dos tempos. Ele havia fracassado,
não por causa de algum mistério algorítmico na programação do software, e sim por um erro fácil
de compreender — a miopia provocada pela má execução do velho ofício de esmerilhar e polir.
O telescópio Hubble se tornou um prato cheio para os humoristas na tv, a prova definitiva do
ocaso industrial americano.
O Hubble era majestoso como conceito, mas a operação de salvamento foi tecnologicamente
sublime. Centenas de horas de caminhadas no espaço, dez espelhos corretores fixados com uma
precisão sobre-humana em torno da borda da lente defeituosa, enquanto, aqui embaixo, a sala de
controle era ocupada por uma orquestra wagneriana de cientistas e computadores potentíssimos.
Do ponto de vista técnico, foi mais difícil do que pôr um homem na Lua. O defeito foi corrigido,
as fotografias do que era o universo doze bilhões de anos atrás nos chegaram com exatidão e
nitidez, o mundo esqueceu o escárnio e se maravilhou — por um dia —, voltando depois a seus
afazeres cotidianos.
Trabalhei sem interrupção por duas horas e meia. O que me preocupava naquela manhã,
enquanto digitava o artigo, era uma inquietação, uma sensação física que eu não conseguia
identificar precisamente. Há certos erros que nem mil astronautas podem consertar. Como o meu,
ontem. Mas o que é que eu havia feito, ou deixado de fazer? Caso houvesse culpa, onde
exatamente ela tivera início? Nas amarras sob o balão, ao largar a corda, mais tarde junto ao
corpo, no telefone à noite? O desassossego começava na pele e ia mais fundo. Como se eu não
houvesse me lavado. Mas, quando parei de digitar e repassei todos os acontecimentos, não senti
culpa nenhuma. Balancei a cabeça e digitei ainda mais depressa. Não sei como fui capaz de
afastar inteiramente da cabeça aquela chamada telefônica noturna, porém o fato é que consegui
fundi-la em todos os problemas do dia anterior. Acho que ainda me encontrava em estado de
choque e tentava escapar no trabalho.
Terminei o artigo, corrigi-o e o passei por fax para Nova York, cinco horas antes do prazo
fatal. Telefonei para a delegacia de polícia em Oxford e, após ser transferido para três
departamentos em sequência, fui informado de que haveria uma investigação sobre a morte de
John Logan, que a audiência da promotoria provavelmente teria lugar dali a seis semanas e que
todos nós deveríamos comparecer.
Peguei um táxi para o Soho a fim de me encontrar com um produtor de rádio no seu
escritório. Ele queria que eu fizesse um programa sobre as verduras nos supermercados.
Respondi que isso estava fora de minha área de conhecimento e o produtor, Eric, me surpreendeu
ao se pôr de pé e fazer um discurso apaixonado. Disse que a demanda durante todo o ano por
ervilhas, morangos e coisas do gênero estava destruindo o meio ambiente e as economias de
vários países africanos. Repeti que esse não era meu campo e dei o nome de algumas pessoas
que ele poderia contatar. Então, embora mal o conhecesse, ou talvez por causa disso, me
aproveitei de seu impulso caloroso e lhe contei a história toda. Não pude me conter. Precisava
contar para alguém. Eric ouviu pacientemente, fazendo os ruídos e os movimentos de cabeça
apropriados, conquanto me olhasse como se eu estivesse contaminado, trazendo para seu
escritório a mais recente mutação do vírus do infortúnio. Eu poderia ter interrompido o relato ou
inventado um final qualquer. Mas fui até o fim porque não conseguia parar. Estava contando tudo
aquilo para mim mesmo e, em matéria de plateia, um peixinho-dourado teria me servido tão bem
quanto um produtor radiofônico. Quando terminei, ele se despediu às pressas — tinha outra
reunião, iria me procurar para discutir outra ideia —, e me senti conspurcado ao pisar de volta
na imunda Meard Street. A sensação sem nome retornou, dessa vez sob a forma de um
formigamento na nuca e uma dorzinha na barriga que, pela terceira vez naquele dia, deu origem a
uma vontade pouco confiável de evacuar.
Passei a tarde na sala de leitura da Biblioteca de Londres, pesquisando alguns dos mais
obscuros contemporâneos de Darwin. Queria escrever sobre o desaparecimento das narrativas de
“casos” na literatura científica, pois achava que a geração de Darwin tinha sido a última a se
permitir o luxo de utilizar esses relatos informais nos artigos publicados. Encontrei uma carta
enviada à revista Nature em 1904, parte de uma longa troca de correspondência em que se
debatia a consciência dos animais e, em especial, a possibilidade de que os mamíferos
superiores, tais como os cães, fossem capazes de prever as consequências de suas ações. O autor
da carta tinha um amigo cujo cachorro manifestava clara preferência por uma poltrona muito
confortável junto à lareira da biblioteca de sua casa. Certa noite, quando foram tomar um cálice
de porto na biblioteca após o jantar, o missivista pôde testemunhar o comportamento do
cachorro. Enxotado da poltrona por seu dono, que lhe tomou o lugar, o cão passou alguns minutos
sentado ao lado da lareira, num silêncio contemplativo, e depois foi até a porta e ganiu, pedindo
para sair. O dono levantou-se, solícito, e atravessou o aposento, quando então o animal disparou
na direção contrária e voltou a tomar posse de seu lugar predileto. Durante alguns segundos, seu
focinho expressou uma sensação de triunfo absoluto.
O autor concluía que o cachorro deve ter formulado um plano, com uma visão do futuro que
ele tentou moldar praticando um logro deliberado. E seu prazer com o êxito da manobra teria
exigido a intervenção da memória. O que eu admirei na carta foi como o poder e as atrações da
narrativa haviam toldado o senso crítico do autor. Segundo os mais elementares critérios de
pesquisa científica, a historinha, apesar de encantadora, não tinha a menor validade. Não provava
nenhuma teoria, não definia nenhum termo, correspondia a um exemplo único e irrelevante,
baseava-se num risível antropomorfismo. Era fácil alterar o relato a fim de aplicá-lo a um
autômato ou até mesmo a uma criatura obrigada a viver perpetuamente no presente: enxotada da
poltrona, ocupa a segunda melhor posição (junto à lareira para desfrutar do calor, e não para
fazer planos) até que sente vontade de urinar, vai até a porta tal como havia sido treinada, de
repente repara que seu lugar preferido está vago de novo, esquece por ora a sinalização da
bexiga e volta para tomar posse da poltrona, a expressão de triunfo nada mais sendo que uma
manifestação imediata de prazer — ou mera projeção mental do observador.
Eu próprio estava confortavelmente instalado numa grande poltrona de couro com braços
bem acolchoados. Meu campo de visão abrangia três outros associados da biblioteca, cada qual
munido de um livro ou revista, todos dormindo a sono solto. Do lado de fora, o tráfego estridente
de St. James Square, incluindo as motocicletas de entrega, exercia um efeito soporífero como às
vezes ocorre quando alguém se movimenta freneticamente diante de nós. Na sala de leitura, a
água murmurava ao correr por velhos canos invisíveis e, mais perto, o assoalho estalou quando
alguém, ocultado pela estante de revistas, caminhou alguns passos, parou por um ou dois minutos
e voltou a se afastar. Em retrospecto, dei-me conta de que aquele ruído tinha rondado por quase
meia hora a periferia de minha consciência. Perguntei-me se seria razoável pedir àquela pessoa
que ficasse parada ou pegasse uma pilha de revistas e fosse sentar em silêncio. Meu algoz entrou
em ação — quatro passadas lentas e rangedoras, e por fim se fez a paz. Tentei focalizar a atenção
no autor da carta e na capacidade mental dos cachorros, mas agora meus pensamentos estavam
dispersos. Quando algo se movimentou do outro lado da sala, fiz questão de não tirar os olhos da
página, embora não estivesse mais lendo. Mas acabei cedendo, e tudo que vi de relance foi um
sapato branco e algo vermelho ao se fechar com um suspiro a porta de vaivém que separava a
sala de leitura das escadas.
Depois que o desocupado barulhento saiu, transferi minha irritação para os administradores.
O prédio era famoso por seus ruídos, em especial pelo zumbido das lâmpadas fluorescentes ao
longo das estantes, problema aparentemente insolúvel. Talvez me sentisse mais feliz na
Biblioteca Wellcome. A coleção de ciência na Biblioteca de Londres era mesmo ridícula, talvez
com base na premissa de que o mundo podia ser suficientemente compreendido por meio de
obras de ficção, livros de história e biografias. Será que os analfabetos científicos que dirigiam a
instituição (e ousavam se dizer instruídos) de fato acreditavam que a literatura era a maior
conquista intelectual de nossa civilização?
Essa arenga interna deve ter durado uns dois minutos. Eu estava envolto nela, invisível para
mim mesmo. Saí daquele marasmo graças à afirmação de uma autoconsciência que nem mesmo o
autor da carta poderia atribuir ao cachorro de seu amigo. Obviamente, não era o assoalho
rangedor ou a administração da biblioteca o que me agitava — e sim meu estado emocional, a
condição mental e visceral que eu ainda não conseguira desvendar. Recostei-me na poltrona e
recolhi meus apontamentos. Até então, não tinha me apercebido das pistas dadas pelo tipo de
sapato e pela combinação de cores. Fiquei olhando para a página pousada sobre as pernas. Antes
que meus pensamentos perdessem o foco, as últimas palavras que eu escrevera haviam sido
intencionalidade, intenção, tentativa de assumir controle sobre o futuro. Ao escrever essas
palavras, tinha em mente um cão, mas, ao relê-las agora, comecei a ficar inquieto. Não conseguia
expressar o que sentia. Enxovalhado, contaminado, louco, algo que se manifestava no plano
físico mas também tinha uma projeção moral. É falso dizer que não há pensamento sem
linguagem. Eu possuía um pensamento, uma sensação, uma percepção, e buscava a palavra que a
expressasse. Assim como a culpa estava para o passado, o que estaria, em igual relação, para o
futuro? Intenção? Não, não se tratava de influenciar o futuro. Presságio. Ansiedade com relação
ao futuro, repugnância com relação ao futuro. Culpa e pressentimento numa linha que ligava o
passado ao futuro e cujo fulcro era o presente — o único momento em que a percepção podia ser
vivenciada. Não era exatamente medo. O medo é algo demasiadamente focado, ele tem um
objeto. Pavor era forte demais. Receio do futuro. Vamos lá, apreensão. Sim, isso mesmo, ou
quase. Apreensão.
Na minha frente, os três dorminhocos não se mexiam. A porta de vaivém foi diminuindo seu
movimento pendular até que só sobrou uma reverberação molecular, bem próxima de algo
simplesmente imaginado. Quem era aquela pessoa que acabara de sair? Por que tão
repentinamente? Levantei-me. Quer dizer que se tratava de apreensão. Eu havia sentido aquilo
durante o dia todo. Simples, era uma forma de medo. Medo das consequências. Durante o dia
inteiro eu sentira medo. Será que tinha sido muita estupidez de minha parte não reconhecer o
medo desde o começo? Não era o medo uma emoção elementar, que no famoso estudo
multicultural de Ekman se equiparava à repugnância, à surpresa, à raiva e à alegria? Afinal de
contas, o medo e seu reconhecimento nos outros estão associados à atividade neural nas amídalas
cerebelosas, profundamente inseridas na parte de nossos cérebros que deriva dos primeiros
mamíferos e de onde partem reações instantâneas. Mas minha reação não havia sido imediata.
Meu medo se escondera atrás de uma máscara. Contaminação, confusão, algaravia. Eu estava
com medo do meu medo porque não conhecia ainda sua causa. Temia o que ele poderia provocar
em mim e o que me obrigaria a fazer. E eu não conseguia parar de olhar para a porta.
Pode ter sido uma ilusão gerada pela persistência visual ou um atraso de percepção
produzido pelo tropeço de algum neurônio, mas me pareceu que eu estava ainda afundado na
macia poltrona de couro, observando aquela porta, enquanto já me movia em sua direção. Desci
de dois em dois os largos degraus cobertos com um tapete vermelho, girei no primeiro patamar
agarrado ao balaústre, venci o último vão de escadas em três passadas e penetrei no hall de
entrada rompendo a calma pré-digital dos balcões de reservas e de catalogação. Driblei alguns
associados, o livro de sugestões e uma profusão de mochilas escolares e casacos até alcançar a
porta principal e chegar à rua. A praça estava coalhada de carros e vazia de pedestres. Eu
procurava um par de tênis brancos com cadarços vermelhos. Esgueirei-me, veloz, entre os
veículos que latejavam pacientemente. Sabia com precisão onde me posicionaria para vigiar as
portas da biblioteca: no canto nordeste, defronte à antiga embaixada da Líbia. De passagem,
olhei de relance para a esquerda ao longo da Duke of York Street. Calçadas vazias, rua cheia. Os
carros eram agora nossos cidadãos. Cheguei à esquina, perto da cerca. Não vi ninguém, nem ao
menos um bêbado no parque. Fiquei lá algum tempo, olhando a meu redor e retomando o fôlego.
Encontrava-me no lugar exato em que a policial Yvonne Fletcher fora assassinada com um tiro
disparado por um líbio de uma das janelas do prédio situado do outro lado da rua. Aos meus pés
jazia um punhadinho de cravos-de-defunto amarrados com um fio de lã, quem sabe trazido por
alguma criança. O vidro de geleia no qual as flores tinham sido postas estava caído de lado,
embora ainda guardasse um restinho de água. Sem deixar de olhar a meu redor, ajoelhei-me e
repus as flores no vidro. Ao colocá-lo mais perto da cerca, onde era menor o risco de ser
chutado outra vez, não pude deixar de pensar que isso talvez me traria sorte ou, melhor dizendo,
alguma proteção, sabendo perfeitamente que com base nesse tipo de ato propiciatório, destinado
a conjurar as imprevisíveis forças do mal, religiões inteiras haviam sido fundadas e complexos
sistemas de pensamento tinham visto a luz do dia.
Por fim voltei à sala de leitura.
5.
Como tive outra reunião naquele dia — eu pertencia à comissão que premiaria um livro
científico —, Clarissa já havia saído para se encontrar com o irmão quando cheguei em casa. Eu
precisava falar com ela. O esforço de parecer mentalmente são e ponderado durante três horas
tinha me arrasado. No apartamento confortável e até chique, as formas e cores familiares
pareciam mais densas, os aposentos davam a impressão de estar algo empoeirados. Preparei um
gim-tônica e o bebi ao lado da secretária eletrônica. A última mensagem consistia apenas numa
pausa, sem que se ouvisse nenhuma respiração, seguida do ruído do telefone sendo desligado.
Precisava falar com Clarissa sobre Parry, sobre a chamada na noite anterior, e como ele me
seguira na biblioteca, e sobre aquele meu desconforto, aquela apreensão que vinha sentindo.
Pensei em me reunir a eles no restaurante, mas sabia que, a essa altura, seu irmão adúltero teria
iniciado o implacável cantochão do noviço em matéria de divórcio: a dolorida autodefesa que
descreve as transmutações do amor em ódio ou indiferença. Clarissa, que gostava da cunhada,
estaria ouvindo com grande tristeza.
Para me acalmar, recorri à clínica vespertina de dor terceirizada, o noticiário da televisão.
Naquela noite: uma sepultura coletiva num bosque da Bósnia central, o ninho de amor de um
ministro que sofria de câncer, o segundo dia do julgamento de um assassino. O que me trouxe
certo alívio foi a familiaridade do formato: a música marcial, a voz suave e pressurosa do
apresentador, a verdade tranquilizadora de que toda infelicidade é relativa e, para encerrar, o
ópio das previsões do tempo. Voltei à cozinha para preparar um segundo drinque e me sentei à
mesa para bebê-lo ali mesmo. Se Parry havia me seguido o dia inteiro, então sabia onde eu
morava. Se não tivesse me seguido, então meu estado mental deveria estar muito frágil. Mas
fundamentalmente não estava, pois de fato ele me seguira — e isso exigia que eu pensasse com
seriedade na questão. Era possível atribuir sua chamada noturna à tensão e quem sabe ao fato de
estar bebendo sozinho, porém não se houvesse me seguido. E eu sabia que isso era verdade
porque tinha visto os tênis brancos com os cadarços vermelhos. A menos que — e o hábito do
ceticismo era prova de minha sanidade mental — o vermelho tivesse sido imaginado ou
resultasse de um processo de fusão visual. Afinal de contas, o tapete da biblioteca era vermelho.
Mas eu tinha percebido a cor como parte do movimento rápido de um calçado. Eu sentira a
presença dele atrás de mim antes mesmo de vê-lo. Estava pronto a admitir que esse tipo de
intuição não é muito confiável. Mas era ele. Tal como muitas pessoas que levam uma vida
segura, logo imaginei o pior. Que razão eu lhe dera para querer me matar? Será que ele achava
que eu havia zombado de sua fé? Talvez tivesse telefonado outra vez...
Peguei o telefone sem fio e apertei as teclas para saber quem nos chamara. A voz feminina
computadorizada cantou um número londrino que eu desconhecia. Fiz a chamada e balancei a
cabeça ao ouvir a resposta transmitida pela secretária eletrônica. Por mais razoáveis que fossem
as minhas suspeitas, a confirmação ainda chegou como uma surpresa. “Por favor, deixe sua
mensagem após o sinal. E que Deus o proteja.” Era a voz dele, e em duas frases. Sua fé chegava
bem longe, invadia os desvãos da secretária eletrônica, os meandros de sua prosa. A que ele se
referira ao dizer que sentia o mesmo que eu? O que é que ele queria?
Olhei para a garrafa de gim e decidi que não. O problema mais imediato consistia em como
passar a noite até a volta de Clarissa. Se não fizesse alguma escolha consciente, iria ficar
ruminando aquelas questões e bebendo. Não queria ver nenhum amigo, não precisava de
diversão, nem fome tinha. Às vezes me ocorriam vazios desse gênero, e a única maneira de
superá-los consistia em trabalhar. Fui para o escritório, acendi as luzes e liguei o computador,
pus diante de mim os apontamentos feitos na biblioteca. Eram oito e quinze. Em três horas
poderia concluir o essencial do artigo sobre o estilo narrativo na literatura científica. Já tinha os
contornos de uma teoria, embora não necessariamente acreditasse nela. De toda forma, serviria a
meus propósitos imediatos. Bastaria propor a tese, exibir as provas, considerar as objeções, e
reafirmá-la com mais vigor na conclusão. O próprio artigo seguiria um esquema bem batido, mas
que se provara muito útil para milhares de jornalistas antes de mim.
O trabalho era uma fuga — não duvidei disso nem naquele momento. Como não tinha
resposta para minhas perguntas, pensar mais sobre elas não me levaria a lugar algum. Achando
que Clarissa não voltaria antes da meia-noite, mergulhei com toda a seriedade em minha frágil
argumentação. Vinte minutos depois já alcançara o estado mental desejado, o claustro inviolável
do pensamento dirigido. Nem sempre consigo atingir tal estado, e fiquei grato ao fazê-lo naquela
noite. Não precisava me defender do entulho habitual trazido pelas marés — retalhos de
memórias recentes, lembretes de coisas a fazer, traços espectrais de desejo sexual. Minha praia
estava limpa. Não me enganei levantando da cadeira para ir buscar café e, malgrado a tônica, não
senti vontade de urinar.
Foi o valor dado aos diletantes na cultura do século xix que nutriu os cientistas narradores,
todos aqueles senhores bem-nascidos e sem profissão definida, aqueles párocos com tempo de
sobra nas mãos. O próprio Darwin, nos dias que antecederam a viagem do Beagle, sonhava em
morar no campo para perseguir em paz sua paixão de colecionador e, mesmo diante das
circunstâncias de vida que resultaram de sua genialidade e das voltas do destino, a Downe House
era mais uma residência paroquial do que um laboratório. A forma artística prevalecente era o
romance, grandes e esparramados relatos que não apenas mapeavam trajetórias individuais, mas
também retratavam toda a sociedade e as questões públicas de maior relevância. A maioria das
pessoas educadas lia os romances de sua época. A narração estava profundamente entranhada na
alma do século xix.
Aconteceram então duas coisas. A ciência se tornou mais difícil e se profissionalizou. Nas
universidades, as narrativas paroquiais foram substituídas por teorias rigorosas que eram
capazes de sobreviver sem sustentação experimental e possuíam sua estética própria. Ao mesmo
tempo, na literatura e em outros campos artísticos, um modernismo recém-surgido celebrava as
qualidades formais e estruturais, a coerência interna e a autorreferência. Uma casta de sacerdotes
protegia os templos dessa difícil arte contra as invasões do homem comum.
O mesmo ocorria com a ciência. Na física, por exemplo, uma pequena elite de iniciados
europeus e americanos aceitou e aclamou a Teoria Geral de Einstein muito antes de serem
coligidas as observações que a confirmaram. A teoria, que Einstein apresentou ao mundo entre
1915 e 1916, propunha, de forma ofensiva para o senso comum, que a gravitação era
simplesmente um efeito causado pela curvatura do espaço-tempo forjada pela matéria e pela
energia. Previa, por isso, que a luz seria desviada pelo campo gravitacional do Sol. Em 1914 já
se montara uma expedição à Crimeia para observar um eclipse e testar tal previsão, porém a
guerra impedira sua realização. Outra expedição seguiu em 1919 para duas ilhas remotas no
Atlântico. A confirmação foi noticiada a todo o mundo, mas dados imprecisos ou inconvenientes
haviam sido ignorados na ânsia de comprovar a teoria. Novas expedições partiram com o
propósito de observar eclipses e verificar as predições de Einstein: para a Austrália em 1922,
para Sumatra em 1929, para a União Soviética em 1936, para o Brasil em 1947. Só após o
desenvolvimento da radioastronomia, na década de 50, se chegou a uma verificação experimental
incontroversa, mas, em essência, todos aqueles anos de esforços práticos se revelaram
irrelevantes. A Teoria da Relatividade já constava dos manuais desde os anos 20. Seu poder de
integração era grande demais, ela era irresistivelmente bela.
Assim, as sinuosidades da narrativa haviam cedido lugar a uma estética da forma, tanto na
arte como na ciência. Digitei noite adentro. Tinha gastado demasiado tempo com Einstein e
procurava outro exemplo de teoria aceita por força de sua beleza. À medida que perdia confiança
nos meus argumentos, mais rápido eu escrevia. Encontrei um tipo de argumento invertido no meu
próprio passado — a eletrodinâmica quântica. Nesse caso, existia um bom volume de verificação
experimental para um conjunto de ideias sobre os elétrons e a luz, mas a teoria, sobretudo na
forma apresentada por Dirac, levou muito tempo para obter aceitação geral. Havia
inconsistências, o arcabouço conceitual parecia desequilibrado. Em suma, a teoria não era
atraente nem elegante, lembrava uma melodia cantada por alguém desafinado. Aceitação negada
por motivo de feiura.
Já vinha trabalhando havia três horas, tendo escrito duas mil palavras. Cairia bem um
terceiro exemplo, mas minha energia começava a declinar. Imprimi as páginas e as observei
pousadas sobre minhas pernas, perplexo com o fato de que um raciocínio tão débil, com
exemplos tão forçados, pudesse ter atraído minha atenção por tanto tempo. Contra-argumentos
brotavam entre as linhas límpidas do texto. Que provas eu podia oferecer para sugerir que os
romances de Dickens, Scott, Trollope, Thackeray e outros houvessem de fato influenciado, com
uma vírgula que fosse, a apresentação de qualquer ideia científica? Além disso, meus exemplos
eram extraordinariamente distorcidos. Eu tinha comparado as ciências naturais do século xix (o
cachorro ardiloso na biblioteca) às ciências exatas do século posterior. Nos anais da física e da
química da era vitoriana, para não ir mais longe, havia inúmeras teorias brilhantes que não
continham nenhuma narrativa. E, afinal de contas, quais eram os produtos típicos da mente
científica ou pseudocientífica do século xx? A antropologia e a psicanálise — puras fabulações.
Assim, usando os métodos mais clássicos dos contadores de histórias e todos os artifícios da
classe sacerdotal, Freud sustentou suas ideias com base na veracidade da ciência, mas não em
sua falsificabilidade. E que dizer dos behavioristas e sociólogos dos anos 20? Era como se um
exército de Balzacs vestindo aventais brancos houvesse tomado de assalto os departamentos e
laboratórios das universidades.
Prendi minhas doze páginas com um clipe e senti seu peso. O que eu havia escrito não era
verdade. Não fora escrito buscando a verdade, não era ciência. Era jornalismo para uso em
revistas, em que o que conta é a facilidade da leitura. Sacudi as páginas, tentando encontrar
outros consolos. Eu tinha me distraído de forma útil, poderia escrever um artigo coerente usando
os contra-argumentos (o método narrativo na ciência chegou a seu ápice no século xx etc.) e, de
qualquer modo, tratava-se de um primeiro rascunho que eu reescreveria alguns dias depois.
Joguei as páginas sobre a escrivaninha e, quando elas aterrissaram, ouvi pela segunda vez
naquele dia o estalido do assoalho atrás de mim. Havia alguém às minhas costas.
O simpático é uma parte primitiva e maravilhosa do sistema nervoso que compartilhamos
com todas as demais espécies que devem sua existência continuada à rapidez em dar meia-volta,
à agilidade e dureza na luta ou à celeridade na fuga. A evolução só poupa os eficientes.
Terminais nervosos localizados nos tecidos mais profundos do coração secretam a
noradrenalina, acelerando o bombeamento do sangue. Mais oxigênio, mais glicose, mais energia,
raciocínio mais rápido, membros mais fortes. Desenvolvido no passado remoto, quando os
mamíferos se bifurcaram de seus antepassados, o simpático é um sistema tão antigo que nunca
temos consciência de sua operação. Nem haveria tempo para isso, ele perderia sua eficácia. Só
conhecemos os resultados. O arranque que chega ao coração parece ser simultâneo à percepção
do perigo: no instante mesmo em que o córtex visual e auditivo está processando e tornando
compreensível o que foi captado pelo olho ou pelo ouvido, aquelas potentes gotículas já estão
fazendo efeito.
Meu coração havia recebido a primeira carga gélida e aterrorizante antes mesmo que eu
começasse a girar o corpo, levantar-me da cadeira e erguer as mãos, pronto a me defender ou, se
necessário, atacar. Alguém que se aproxime sorrateiramente por trás pode atacar com facilidade
os seres humanos modernos porque seus únicos predadores naturais são outros seres humanos e,
além disso, todos os seus brinquedos, esquemas mentais e aposentos confortáveis os tornaram
menos alertas. Esquilos e passarinhos devem nos olhar com escárnio.
A pessoa que vi caminhando rapidamente em minha direção, com os braços estendidos para
a frente como um sonâmbulo de desenho animado, era Clarissa e, sabe-se lá graças a que
complexas intervenções de meus centros nervosos superiores, fui capaz de converter de forma
plausível os gestos de terror primitivo num abraço ternamente dado e recebido: quando seus
braços envolveram meu pescoço, fui atingido por uma pontada de amor que, na verdade, era
inseparável do alívio que senti.
“Ah, Joe”, ela disse, “senti tanta falta de você o dia todo, eu te amo tanto! Tive uma noite
terrível com Luke. Ai, meu Deus, como eu te amo.”
E, ai, meu Deus, como eu a amava. Por mais que pensasse em Clarissa, na lembrança ou por
antecipação, o fato de tê-la outra vez — sua pele, sua voz, a qualidade exata do amor que
transitava entre nós, sua simples presença animal — sempre me trazia, juntamente com a
familiaridade, um toque de surpresa. Talvez esse tipo de amnésia tenha alguma função: os
indivíduos incapazes de afastar seus corações e suas mentes do ente amado estão fadados a
fracassar nos embates da vida e não deixam nenhuma herança genética. Bem no centro do meu
escritório, plantados sobre o diamante amarelo do tapete bokhara, Clarissa e eu nos beijamos e
abraçamos. E, em meio aos beijos, ouvi os primeiros fragmentos da loucura de seu irmão. Luke
estava abandonando sua bonita e adorável mulher, as gêmeas magricelas e a casa no estilo Queen
Anne em Islington para viver com uma atriz que conhecera três meses antes. Eis aí um caso de
amnésia em grande escala. Enquanto comiam as coquilles Saint-Jacques, ele disse a Clarissa que
estava contemplando a ideia de largar o emprego e escrever uma peça de teatro, na verdade um
monólogo a ser interpretado por uma mulher, que talvez pudesse ser encenada num teatrinho que
ficava em cima de um salão de cabeleireiros em Kensal Green.
“Antes de irmos para o paraíso”, comecei, e Clarissa terminou: “Passando por Kensal
Green”.
“Coragem irresponsável”, comentei. “Ele deve estar correndo atrás do seu pau duro.”
“Coragem de merda!” Ela respirou fundo e me fuzilou com os olhos verdes. “Uma atriz! Ele
está correndo atrás de um clichê!”
Por um segundo eu me tornara seu irmão. Reconhecendo isso, ela me puxou mais para perto
e me beijou. “Joe, me deu vontade de ter você o dia todo. Depois de ontem, e da noite anterior...”
Ainda abraçados, fomos do escritório para o quarto. Enquanto Clarissa continuava a me
contar mais sobre os problemas do casal e eu descrevia o artigo que havia escrito, nos
preparamos para a viagem noturna rumo ao sexo e ao sono. Eu já tinha percorrido uma boa
distância naquela noite desde que entrara em casa querendo falar com Clarissa apenas sobre
Parry. O trabalho me envolvera num véu de contentamento abstrato, e com sua chegada, apesar da
triste história que ela contara, eu tinha me recuperado por completo. Não sentia medo de nada.
Ao nos deitarmos, de rostos colados como na noite anterior, faria algum sentido perturbar nossa
felicidade com o relato do telefonema de Parry? Diante de tudo que havíamos vivido no dia
anterior, poderia eu destruir nossa ternura com as suspeitas angustiantes de ter sido seguido? As
luzes haviam sido diminuídas, em breve seriam apagadas. O fantasma de John Logan ainda
permanecia no quarto, mas não nos ameaçava mais. Parry ficaria para amanhã. Toda a urgência
se dissipara. De olhos fechados, tracei na escuridão absoluta os belos lábios de Clarissa. Num
gesto carinhoso, ela mordeu com força o nó do meu dedo. Há momentos em que o cansaço é o
melhor afrodisíaco, eliminando qualquer outro pensamento, conferindo a membros pesados um
movimento sensual em câmera lenta, promovendo a generosidade, a aceitação, o abandono total.
Caímos de nossos dias respectivos como insetos sacudidos de uma rede.
Ao lado da cama, no escuro, o telefone permaneceu em silêncio. Muitas horas antes eu o
tirara da tomada.
6.
Houve um tempo neste século em que os transatlânticos brancos e luxuosos que singravam
os mares entre Londres e Nova York se tornaram uma fonte de inspiração para muitos arquitetos.
Na década de 20, alguma coisa parecida com o Queen Mary encalhou em Maida Vale, deixando
à vista apenas sua ponte, isto é, nosso edifício de apartamentos. Embora a tinta branca já esteja
descascando aqui e ali, ele brilha entre os plátanos. Suas quinas são arredondadas, vigias
iluminam os banheiros e as escadas em espiral. As janelas com molduras de aço são baixas e
oblongas, reforçadas contra as borrascas da vida urbana. Os assoalhos de tacos de carvalho
foram feitos para resistir aos passos mais vigorosos dos dançarinos de charleston.
Os dois apartamentos do último andar têm a vantagem de possuir várias claraboias e acesso
ao telhado plano por uma sinuosa escada de ferro. Nossos vizinhos, um arquiteto de renome e seu
companheiro (que toma conta da casa), criaram no lado deles um jardim artificial, com
trepadeiras severamente enroladas em colunas e austeras folhas pontiagudas despontando entre
grandes pedras lisas coletadas no leito de algum rio e mantidas, no estilo japonês, em caixas
abertas de madeira preta.
No frenético mês que se seguiu à mudança, Clarissa e eu esgotamos no próprio apartamento
nossas pequenas reservas de energia para fins de decoração e construção de ninhos, de modo
que, no nosso lado do telhado, só havia uma mesa e quatro cadeiras de plástico, todas
aparafusadas no chão por causa das ventanias. Ali, podíamos sentar em meio às antenas
parabólicas de tv, tendo a nossos pés a superfície de piche tão enrugada e poeirenta quanto o
couro de um elefante, e contemplar o verdor do Hyde Park ao som tranquilizador do tonitruante
tráfego londrino. Do outro lado da mesa, tem-se a melhor vista do santuário que nossos vizinhos
ergueram em homenagem ao crescimento ordenado e, mais além, os telhados sombrios dos
subúrbios que se estendem infinitamente na direção norte. Foi lá que me sentei na manhã seguinte,
às sete horas. Tendo deixado Clarissa dormindo, trouxe meu café, o jornal e as páginas escritas
na noite anterior.
No entanto, em vez de ler meus escritos ou os de outrem, pensei em John Logan e em como o
havíamos matado. Na véspera, os acontecimentos do dia anterior tinham ficado toldados. Agora
pela manhã, apesar das lufadas de vento, o sol iluminava e dava vida à cena. Eu podia sentir
outra vez a corda em minhas mãos ao examinar as bolhas de sangue. Fiz alguns cálculos. Se Gadd
houvesse permanecido na cesta com o neto e todos os demais continuassem agarrados às amarras,
supondo que cada adulto pesasse em média setenta e dois quilos teríamos no total trezentos e
sessenta quilos, o que certamente nos manteria perto do solo. Se alguém não tivesse largado a
corda, os outros se manteriam em seus lugares. Mas quem era esse alguém? Eu não. Não fui eu.
Até pronunciei essas palavras em voz alta. Lembrava-me de um vulto em queda e do repentino
arranco do balão, para cima. Mas não podia dizer se o vulto estava na minha frente, à esquerda
ou à direita. Se conhecesse a posição, saberia quem era.
Será que podia atribuir toda a culpa a essa pessoa? Enquanto eu bebia meu café, o ruído do
tráfego iniciou seu lento crescendo. Era difícil pensar sobre aquilo de forma sistemática. Frases
cheias de lugares-comuns e qualificações me vinham à cabeça, sem nada resolverem. De um
lado, o primeiro pedregulho numa avalanche; de outro, a falta de coordenação. A causa, mas não
o agente moralmente responsável. Os pratos da balança se desequilibrando, do altruísmo para o
egoísmo. Teria sido pânico ou uma avaliação racional? Nós realmente o tínhamos matado ou
apenas nos recusamos a morrer junto com ele? Porém, se estivéssemos com ele, se houvéssemos
continuado com ele, ninguém teria morrido.
Outra questão é se eu deveria visitar a sra. Logan e lhe contar o que acontecera. Ela merecia
saber, da boca de uma testemunha, que seu marido era um herói. Imaginei-nos sentados frente a
frente em tamboretes de madeira. Ela de preto, representando o papel da viúva enlutada, diante
de mim numa cela de prisão, sob a janela com grades. Os dois filhos a ladeavam, grudados em
seus joelhos, se recusando a olhar para mim. Minha cela, minha culpa? Aquela imagem provinha
de um quase esquecido quadro a óleo no estilo narrativo do final da era vitoriana, a pantomima
da pergunta “Quando foi que você viu seu pai pela última vez?”. Narrativa... senti uma fisgada na
barriga ao pensar nessa palavra. Quanta baboseira eu havia escrito na noite anterior! Como seria
possível falar com a sra. Logan sobre o sacrifício do marido sem chamar sua atenção para nossa
própria covardia? Ou teria sido loucura da parte dele? De duas, uma. Ele era o herói, e um
punhado de pessoas fracas tinha causado sua morte. Ou nós éramos os sobreviventes, e ele era o
idiota que cometera um erro de cálculo.
Eu estava tão absorto que só notei a chegada de Clarissa quando ela sentou do outro lado da
mesa. Sorrindo e desenhando um beijo com os lábios, ela envolveu a caneca de café com as mãos
para aquecê-las.
“Você está pensando naquilo?”
Confirmei com a cabeça. Precisava lhe contar antes que sua ternura e nosso amor tomassem
conta de mim. “Você se lembra, naquele dia, que o telefone tocou quando estávamos começando
a cair no sono?”
“Hã... Engano.”
“Não, foi aquele sujeito com o rabo de cavalo. Você sabe, o que queria que eu rezasse. Jed
Parry.”
Ela franziu a testa. “Por que você não me disse? O que é que ele queria?”
Respondi sem hesitação: “Ele disse que me amava...”.
Por uma fração de segundo, o mundo pareceu se congelar enquanto Clarissa absorvia minhas
palavras. Então ela riu. Riso espontâneo, feliz.
“Joe! Você escondeu isso de mim. Ficou envergonhado? Boboca!”
“Era mais uma coisa... Depois me senti mal de não ter contado, e aí ficou mais difícil. Não
quis te interromper ontem à noite.”
“O que foi que ele disse? Só ‘eu te amo’, assim sem mais nem menos?”
“Ele disse: ‘É o que eu estou sentindo também. Eu te amo’...”
Clarissa cobriu a boca com a mão, como fazem as meninas. Eu não havia esperado que ela
achasse graça na coisa. “Um caso secreto de amor homossexual com um fanático religioso! Estou
doida para contar a teus amigos cientistas.”
“Está bem, está bem”, respondi, embora me sentisse mais leve por ela estar levando na
brincadeira. “Mas tem mais.”
“Vocês vão se casar!”
“Escute. Ontem ele me seguiu.”
“Meu Deus! O troço é mesmo sério!”
Eu sabia que precisava acabar com aquela visão brincalhona apesar do alívio que ela me
trazia. “Clarissa, é assustador.” Contei da presença dele na biblioteca e de como eu correra para
a praça. Ela me interrompeu.
“Mas você não chegou a vê-lo na biblioteca.”
“Vi o tênis quando ele saiu da sala. Tênis brancos com cadarços vermelhos. Só podia ser
ele.”
“Mas você não viu a cara dele.”
“Clarissa, era ele!”
“Não fique aborrecido comigo, Joe. Você não viu o rosto dele e não o encontrou na praça.”
“Não, ele já tinha ido embora.”
Olhando-me agora com um jeito diferente, ela passou a participar da conversa com o
cuidado de um perito em desativar explosivos. “Deixe eu entender isso direito. Você achou que
estava sendo seguido antes mesmo de ver o sapato dele?”
“Era só uma sensação, uma sensação ruim. Só quando tive tempo para pensar, na biblioteca,
é que entendi como aquilo estava me afetando.”
“E então você o viu.”
“É, vi o tênis dele.”
Ela deu uma olhada no relógio e bebeu um gole de café. Chegaria atrasada no trabalho.
“Você precisa ir”, eu disse. “Conversamos de noite.”
Ela balançou a cabeça afirmativamente, mas continuou sentada. “Não consigo entender bem
o que está te preocupando. Um pobre coitado se apaixona por você e começa a te seguir. Pense
bem, Joe, isso é cômico! Uma historinha engraçada que você vai contar para os teus amigos. Na
pior das hipóteses, uma chateação. Você não pode permitir que isso te afete.”
Tive uma sensação infantil de abandono quando Clarissa se levantou. Eu estava gostando do
que ela dizia. Queria ouvir tudo outra vez de formas diferentes. Contornando a mesa, ela me deu
um beijo na cabeça. “Você está trabalhando demais. Não exija tanto de você. E lembre-se que eu
te amo. Eu te amo.” Beijamo-nos de novo, longamente.
Desci a escada atrás dela e a observei enquanto se preparava para sair. Talvez tenha sido o
sorriso preocupado que me deu ao passar correndo para arrumar a pasta de papéis, talvez a
forma solícita com que disse que voltaria às sete e telefonaria durante o dia, porém, ali de pé no
lustroso assoalho digno de uma pista de dança, me senti como um doente mental quando terminam
as horas de visita. Não me deixe aqui sozinho com minha mente, eu pensei. Diz a eles para me
deixarem ir embora. Ela vestiu o casaco, abriu a porta da entrada e se preparou para me dizer
alguma coisa, mas as palavras nunca saíram de sua boca. Lembrou-se de um livro que precisava
levar. Enquanto ela o apanhava, fiquei zanzando perto da porta. Eu sabia o que queria dizer e
talvez ainda houvesse tempo para isso. Não se tratava de nenhum “pobre coitado”. Tanto quanto
os trabalhadores rurais, era um homem ligado a mim por uma experiência comum, por uma
responsabilidade compartilhada da morte de outro homem — ou, quando nada, pelo
envolvimento compartilhado naquela morte. Tratava-se também de um homem que queria que eu
rezasse com ele. Talvez se sentisse insultado. Talvez fosse um fanático vingativo.
Clarissa voltou com o livro e o enfiou na pasta enquanto segurava outros papéis entre os
dentes. Ela já estava com um pé para fora da porta quando comecei a falar. Descansou a pasta no
chão para liberar as mãos e a boca. “Não posso, Joe, não posso mesmo. Já estou atrasada. É uma
aula.” Hesitou, dividida. “Está bem, então me fala rapidinho.” Nesse justo momento o telefone
tocou e me senti aliviado. Eu havia pensado que seu compromisso era uma sessão de orientação,
não uma aula, e ela perderia ainda mais tempo se eu quisesse explicar meu erro.
“Deixe que eu atendo, vá embora”, eu disse em tom alegre, “conto tudo à noite.”
Ela soprou um beijo e se foi. Ouvi seus passos na escada quando atendi o telefone. “Joe?”,
disse a voz. “É Jed.”
Inexplicavelmente, me senti surpreso e, por um momento, fiquei sem fala. Afinal de contas,
ele havia telefonado na véspera e estava presente nos meus lábios, na minha mente. A tal ponto
na minha mente que eu esquecera que ele também existia fora de mim, uma entidade física capaz
de utilizar o sistema telefônico.
Tendo feito uma pausa após dizer seu nome, ele tratou de ocupar meu silêncio. “Você me
telefonou.” Nós dois podíamos verificar as chamadas recebidas. O telefone moderno nada tem a
ver com seus precursores. Uma engenhosidade cruel o vem tornando algo excessivamente
personalizado.
“O que você quer?” As palavras estavam sendo pronunciadas e eu já as queria de volta.
Não me interessava saber o que ele queria ou, melhor dizendo, eu não desejava que ele me
dissesse isso. Seja como for, nem era uma pergunta, e sim uma manifestação de hostilidade. Bem
como o que se seguiu: “E quem lhe deu meu número?”.
O tom de Parry mostrou sua alegria em poder responder à pergunta. “Essa é uma longa
história, Joe? Fui ao...”
“Não me interessa saber de história nenhuma. Não quero que você me telefone.” Quase
disse: “ou me siga”, mas algo me deteve.
“Precisamos conversar.”
“Eu não.”
Ouvi Parry respirar fundo. “Acho que você precisa. Pelo menos acho que você precisa me
escutar.”
“Vou desligar. Se você telefonar de novo, chamo a polícia.”
A frase soou tola, o tipo de bobagem que as pessoas dizem, tal como “vou mandar uma ação
em cima deles”. Eu conhecia a delegacia local. Eles tinham um bocado de trabalho e sabiam
quais eram as suas prioridades. Cabia aos próprios cidadãos resolver problemas desse gênero.
Parry reagiu de imediato à minha ameaça. A voz ficou mais aguda, as palavras saíram mais
depressa. Ele tinha de dizer alguma coisa antes que eu cortasse a chamada. “Olhe, vou fazer uma
promessa. Se você se encontrar comigo uma vez, só uma vez, e me ouvir, aí desapareço de sua
vida. Prometo, essa é uma promessa solene.”
Solene. Cheirava mais a pânico. Pensei: talvez eu deva me encontrar com ele, deixar que me
veja e fazê-lo compreender que não sou a criatura do seu mundo de fantasia. Deixar que ele fale.
A alternativa era continuar desse jeito. Quem sabe eu conseguiria despertar em mim um
pouquinho de curiosidade. Quando tudo acabasse, seria importante conhecer alguma coisa sobre
Parry. Do contrário, ele continuaria a ser uma projeção de mim tanto quanto eu era uma projeção
dele. Passou pela minha cabeça fazer com que ele invocasse seu deus para endossar a promessa
solene. Mas eu não queria provocá-lo.
“Onde é que você está?”, perguntei.
“Posso ir aí”, ele disse após breve hesitação.
“Não. Me diga onde você está.”
“Estou na cabine telefônica no fim da rua?”
Ele disse isso, ele perguntou isso, sem nenhuma vergonha. Fiquei chocado, mas resolvi não
demonstrar meu sentimento. “Está bem”, eu disse, “estou indo para aí.” Desliguei, vesti o casaco,
peguei as chaves e saí do apartamento. Foi um alívio descobrir que o perfume de Clarissa,
Diorissimo, ainda pairava no ar da escada até lá embaixo.
7.
Subindo em linha reta uma ligeira elevação, a avenida que passa diante de nosso edifício é
ladeada de plátanos, que naqueles dias ganhavam suas novas folhas. Tão logo pisei na calçada,
vi Parry de pé, sob uma árvore, a uns cem metros de distância. Ao ver-me, ele tirou as mãos dos
bolsos e cruzou os braços, deixando-os depois cair ao longo do corpo. Começou a caminhar na
minha direção, mas mudou de ideia e voltou para junto da árvore. Segui devagar a seu encontro e
senti que minha ansiedade se dissolvia.
Quando me aproximei, Parry recuou ainda mais para perto da árvore, se encostou ao tronco
e tentou parecer à vontade enganchando o polegar no bolso da calça. Na verdade, ele tinha uma
aparência reles. Magro e ossudo, dava a impressão de ter ficado menor, não mais lembrando,
apesar do rabo de cavalo, o bem-apanhado guerreiro índio. Seus olhos fugiram dos meus, ou
melhor, percorreram nervosamente meu rosto e se voltaram para baixo. Ao lhe estender a mão,
me senti bastante aliviado. Clarissa tinha razão, tratava-se de um sujeito inofensivo com uma
estranha compulsão, na pior das hipóteses um chato, jamais o perigo que pensei ver nele.
Encolhido sob a folhagem nova do plátano, fazia triste figura. O acidente e as reverberações do
choque posterior haviam me perturbado, levando-me a transformar uma farsa em ameaça
indefinida. Sua mão não exerceu nenhuma pressão sobre a minha. Falei-lhe com firmeza, mas
também com certa bondade. Ele era moço o suficiente para ser meu filho. “É melhor você me
dizer o que isso significa.”
“Tem um café...”, ele disse, indicando com a cabeça a Edgware Road.
“Aqui está bem. Tenho pouco tempo.”
O vento voltara a soprar com força, como se aguçado pela pálida luz do sol. Enquanto
ajustava o casaco em torno do corpo e apertava o cinto, olhei para os pés de Parry. No lugar dos
tênis, sapatos de couro marrom e macio, talvez feitos à mão. Encostei-me a um muro próximo e
cruzei os braços.
Parry se afastou da árvore e ficou na minha frente, olhando para o chão. “Seria melhor se
fôssemos para algum lugar”, disse em tom lamuriento.
Permaneci calado, esperando. Ele suspirou e olhou para o prédio onde eu morava,
acompanhando depois um carro que passava. Contemplou então os montes imensos de cúmulos
que se erguiam no céu e as unhas da mão esquerda, sem conseguir ainda me encarar. Quando por
fim falou, acho que seus olhos estavam cravados numa rachadura da calçada.
“Aconteceu alguma coisa”, ele disse.
Como não continuou, perguntei: “Aconteceu o quê?”.
Ele inspirou profundamente pelo nariz. Ainda não era capaz de me encarar. “Você sabe o
que é”, ele disse, ressentido.
Tentei ajudá-lo. “Você está falando do acidente?”
“Você sabe o que é, mas quer que eu diga.”
“É melhor mesmo que diga. Tenho que ir embora daqui a pouco.”
“O problema todo é saber quem controla quem, não é?” Lançou-me um olhar de desafio
juvenil, mas logo baixou os olhos. “É a maior bobagem se preocupar com isso. Por que não diz
logo a verdade? Não há nenhuma razão para se sentir envergonhado.”
Consultei o relógio. Essa era a hora em que meu trabalho rendia mais, e ainda tinha de ir ao
centro da cidade apanhar um livro. Um táxi vazio vinha em nossa direção. Parry também o viu.
“Você pensa que está bancando o superior, mas é ridículo. Não vai conseguir fazer isso por
muito tempo, você sabe disso. Tudo mudou. Por favor, pare de fazer de conta. Por favor...”
O táxi passou por nós. “Você pediu que eu o encontrasse porque tinha alguma coisa para me
dizer”, falei.
“Você é muito cruel”, ele disse. “Mas é quem tem todo o poder.” Voltou a inspirar pelo
nariz, como se estivesse se preparando para executar alguma acrobacia difícil. Conseguiu olhar
para mim enquanto dizia: “Você me ama. Você me ama e tudo que posso fazer é retribuir seu
amor”.
Eu não disse nada. Parry respirou fundo mais uma vez. “Não sei por que você me escolheu.
Só sei que agora também amo você e que há uma razão para isso, um propósito.”
Tivemos de esperar que passasse uma ambulância com a sirene ululante. Eu estava
pensando no que dizer, se uma demonstração de raiva o faria ir embora, porém, nos poucos
segundos que decorreram até a barulheira acabar, decidi ser firme e razoável. “Olhe, sr. Parry...”
“Jed”, ele interrompeu, ansioso. “Me chame de Jed.” A inflexão interrogativa havia
desaparecido.
“Não o conheço, não sei onde mora, o que faz, quem você é. E nem quero saber nada disso.
Nós nos vimos uma vez antes e posso lhe garantir que não sinto nada por você, não gosto nem
desgosto...”
Parry falava em espasmos ao mesmo tempo que eu, as mãos abertas na sua frente como se
quisesse afastar minhas palavras. “Por favor, não faça isso... Francamente, não é necessário que
seja assim. Você não precisa fazer isso comigo.”
Paramos de falar de repente. Pensei em ir embora, subir a rua em busca de um táxi. Talvez
aquela conversa estivesse piorando as coisas.
Parry cruzou os braços e adotou o tom controlado de quem fala de homem para homem.
Imaginei que podia estar me parodiando. “Olhe. Você não precisa agir dessa forma. Poderia nos
poupar muito sofrimento.”
“Você me seguiu ontem, não foi?”, perguntei.
Ele desviou o olhar e não respondeu, o que tomei como uma confirmação.
“De onde saiu essa ideia de que eu amo você?” Tentei imprimir sinceridade à pergunta,
para não parecer apenas retórica. Na verdade, eu tinha bastante interesse em saber aquilo,
embora também quisesse ir embora.
“Não”, Parry sussurrou. “Por favor, não.” Seu lábio inferior tremia.
Mas não dei trégua. “Lembro que conversamos lá embaixo da colina. Posso compreender
que você tenha se sentido confuso por causa do acidente. Eu me senti.”
Nesse ponto, para minha enorme surpresa, Parry cobriu o rosto com as mãos e começou a
chorar. Também tentava dizer alguma coisa que só depois entendi. “Por quê? Por quê? Por quê?”,
ele repetia sem parar. E, ao se recuperar um pouco: “O que é que eu fiz a você? Por que está
fazendo isso comigo?”. A pergunta o fez chorar de novo. Afastei-me do muro no qual estivera
encostado e dei alguns passos. Ele se aproximou, trôpego, tentando firmar a voz. “Eu não posso
controlar meus sentimentos como você”, ele disse. “Sei que isso lhe dá poder sobre mim, mas
não consigo evitar.”
“Acredite em mim, eu não preciso controlar sentimento nenhum.”
Ele me olhava fixamente com uma expressão de carência absoluta, de desespero. “Se isso é
uma piada, então é hora de parar. Está fazendo mal a nós dois.”
“Olhe”, eu disse, “tenho que ir agora. Não quero que me procure nunca mais.”
“Ah, meu Deus”, ele se lamuriou. “Você diz isso e depois me olha desse jeito. O que é que
você realmente quer que eu faça?”
Eu me sentia sufocado. Dei meia-volta e caminhei rapidamente rumo à Edgware Road. Ouvi
que ele corria atrás de mim. Puxou minha manga, tentando me segurar pelo braço. “Por favor, por
favor”, balbuciou. “Você não pode ir embora assim. Me diga alguma coisa, me dê um pouquinho
de esperança. A verdade, ou só uma parte da verdade. Basta dizer que está me torturando. Não
vou perguntar por quê. Mas, por favor, me diga que é isso que você está fazendo.”
Desvencilhei o braço e parei. “Não sei quem você é. Não entendo o que quer e não estou
interessado em saber. Afinal, quando é que você vai me deixar em paz?”
De repente, ele se mostrou amargo. “Muito engraçado. Você nem está tentando ser
convincente. Isso é que é o mais ofensivo.”
Pôs as mãos nas cadeiras e pela primeira vez me vi calculando o risco físico que ele
representava. Eu era mais pesado e ainda fazia exercícios regulares, porém nunca havia batido
em ninguém em toda a minha vida, e ele era vinte anos mais moço, com mãos grandes e ossudas
— além de ser movido por uma causa desesperada, qualquer que ela fosse. Endireitei o corpo
para ficar mais alto.
“Não tinha intenção de ofendê-lo”, eu disse. “Até agora.”
Parry afastou as mãos dos quadris e mostrou as palmas abertas. O que o tornava tão
cansativo era a variedade de estados emocionais e a rapidez com que passava de um para outro.
Razoabilidade, lágrimas, desespero, ameaça vaga — e, agora, súplica honesta. “Joe, por favor,
olhe para mim, lembre quem eu sou, lembre o que você sentiu quando nos encontramos.”
O branco de seus olhos era excepcionalmente límpido. Ele sustentou meu olhar por alguns
segundos antes de desviar o rosto. Eu começava a perceber seu cacoete ao falar. Depois de olhar
o interlocutor no olho, ele desviava a cabeça como se estivesse se dirigindo a alguém ao lado ou
a uma criatura invisível empoleirada em seu ombro. “Não nos negue”, ele disse àquele ser
invisível. “Não negue o que temos. E, por favor, não faça esse jogo comigo. Sei que é difícil para
você aceitar a ideia, que vai resistir a ela, mas nós estamos juntos por uma razão.”
Eu deveria ter continuado a andar, porém sua intensidade me deteve por um momento e
minha curiosidade me levou a ecoar sua última palavra. “Razão?”
“Houve uma troca entre nós lá no alto da colina, depois que ele caiu. Foi pura energia, pura
luz?” Tendo superado sua ansiedade imediata, Parry se animou e voltou a dar uma inflexão
interrogativa às afirmações. “O fato de que você me ama e que eu amo você não tem importância.
É apenas o meio...”
O meio?
Notando minha testa franzida, ele adotou o tom de quem explica alguma coisa a um débil
mental. “Para levá-lo a Deus, por meio do amor. Você vai lutar loucamente contra isso porque
está muito distante de seus sentimentos? Mas eu sei que Jesus está dentro de você. De alguma
forma, você também sabe disso. É por esse motivo que você luta tanto usando sua educação, seu
poder de raciocínio, sua lógica e essa maneira superior de falar, como se estivesse acima de
tudo? Pode fingir que não sabe do que estou falando, talvez porque queira me ferir e me dominar,
mas o fato é que eu chego trazendo dádivas. O propósito é conduzi-lo a Jesus, que está dentro de
você e que é você. Essa é que é a verdadeira dádiva do amor. É realmente muito simples?”
Ouvi a arenga tentando não demonstrar meu pasmo. Ele era tão sincero e inofensivo, parecia
tão arrasado e falava tanta bobagem que realmente me inspirou pena.
“Olhe”, eu disse da forma mais simpática possível. “O que é que você quer exatamente?”
“Quero que você se abra a...”
“Está bem, está bem. Mas o que é que você quer mesmo de mim? Ou comigo.”
Ele teve dificuldade em responder. Contorceu-se e olhou para a criatura pousada em seu
ombro antes de dizer: “Quero me encontrar com você”.
“Para fazer o quê?”
“Para conversarmos... nos conhecermos melhor.”
“Só falar? Nada mais?”
Ele não respondeu nem olhou para mim.
“Você fica usando a palavra amor. Está falando de sexo? É isso que você quer?”
Ele claramente achou que a pergunta era perversa. O tom lamuriento retornou. “Você sabe
muito bem que não podemos falar disso assim. Já lhe disse, meus próprios sentimentos não são
importantes. Há um propósito que não se pode esperar que você conheça por enquanto.”
Ele continuou a dizer coisas desse gênero, mas eu já mal as ouvia. Como era extraordinário
estar de pé na minha rua, vestindo um sobretudo naquela fria manhã de uma terça-feira de maio e
conversando com um estranho em termos mais apropriados para um casal de amantes ou em crise
matrimonial! Como se eu tivesse caído por uma fenda em outra vida, com outras preferências
sexuais, outro passado, outro futuro. Nessa outra existência em que eu fora parar, um homem
podia me dizer: Não podemos falar disso assim e Meus próprios sentimentos não são
importantes. Também me espantava como era fácil eu não dizer: Quem é você, seu filho da
puta? Que merda é essa que você está falando? A linguagem usada por Parry provocava em
mim respostas predeterminadas, acionava velhos circuitos emocionais. Eu necessitava fazer um
esforço consciente para eliminar a sensação de que devia algo àquele homem, de que não estava
sendo razoável ao lhe negar alguma coisa. Em parte, eu agia como um personagem nesse drama
conjugal, muito embora o lar nada mais fosse que uma calçada cheia de cocô de cachorro.
Também me perguntei se não precisaria de ajuda. Parry sabia onde eu morava, conquanto eu
nada soubesse sobre ele. Interrompi-o. “É melhor que você me dê o seu endereço.” O tipo de
pedido que ele certamente iria interpretar erroneamente. Puxou do bolso um cartão com seu nome
e um endereço na Frognal Lane, em Hampstead. Guardei-o na carteira e me afastei às pressas
porque outro táxi dobrara a esquina e vinha em nossa direção. De certo modo, ainda sentia pena
de Parry, mas era evidente que conversar com ele não ajudaria em nada. Ele corria a meu lado.
“Aonde é que você vai agora?”, perguntou como uma criança curiosa.
“Por favor, não me aborreça nunca mais”, respondi, fazendo sinal para o táxi.
“Eu sei o que você sente de verdade. E, se está querendo me testar, isso é inteiramente
desnecessário. Jamais vou abandonar você.”
O táxi parou e abri a porta, já começando a ficar com raiva. Tentei fechar a porta e vi que
Parry a segurava. Ele não estava tentando entrar no táxi, porém tinha uma última coisa a dizer.
Inclinando-se para a frente, sussurrou em meio às pulsações do motor a diesel: “Eu sei qual
é o seu problema. É porque você é uma pessoa muito boa. Mas, Joe, o sofrimento tem que ser
enfrentado. A única solução é nós três conversarmos juntos”.
Eu havia decidido não lhe dizer mais nada, mas não pude me conter. “Três?”
“Clarissa. É melhor lidar com isso de frente...”
Não deixei que ele terminasse a frase. “Vamos embora”, disse ao motorista, usando as duas
mãos para puxar a porta que Parry mantinha aberta.
Olhei para trás quando o táxi arrancou. Ele estava na rua, acenando tristemente para mim
mas, sem dúvida, com a expressão de um homem abençoado pelo amor.
8.
Disse ao motorista que me levasse a Bloomsbury. Enquanto me afundava no assento para
tentar recuperar a calma, recordei os sentimentos incoerentes que me haviam assaltado na
véspera ao correr para a praça no encalço de Parry. Naquele momento, ele representava o
desconhecido, no qual eu projetava todo tipo de terror indefinido. Agora eu o via como um
homem ainda moço, confuso e excêntrico, incapaz de me olhar de frente, tornado inofensivo por
suas inadequações e carências emocionais. Em vez de uma ameaça real, ele era de fato uma
figura patética, um mero incômodo que, como dizia Clarissa, poderia se transformar numa
história engraçada. Talvez fosse estranho que, após um encontro tão intenso, eu pudesse varrê-lo
de minha mente. Naquela hora, isso me pareceu razoável e necessário — eu já tinha
desperdiçado uma boa parte da manhã. Antes que o táxi percorresse um quilômetro, meus
pensamentos haviam se deslocado para o artigo que eu tencionava escrever e que começara a ser
esboçado enquanto esperava por Clarissa em Heathrow.
Tinha reservado o dia para iniciar uma longa reflexão sobre o sorriso. Uma revista
científica americana séria dedicaria um número inteiro ao que seu editor proclamava ser uma
revolução intelectual. Biólogos e psicólogos evolucionistas estavam reformulando as ciências
sociais. O modelo-padrão, que fora consensual no pós-guerra, vinha perdendo força, suscitando
um reexame da natureza humana. Não chegamos ao mundo como páginas em branco ou como
mecanismos capazes de aprender qualquer coisa. Nem somos “produtos” do meio que nos cerca.
Se quisermos saber o que somos, é preciso saber de onde viemos. Evoluímos, como qualquer
outra criatura terrestre. Chegamos ao mundo com limitações e capacitações geneticamente
determinadas. Muitos de nossos traços — o formato dos pés, a cor dos olhos — são fixos,
enquanto outros — como nosso comportamento social e sexual ou o aprendizado linguístico — se
expressam no curso de nossas vidas. Mas esse curso não é infinitamente variável. Somos um
fenômeno natural. O mundo tal como visto pelos biólogos comprova as teses de Darwin: nossos
rostos expressam as emoções de modo quase igual em todas as culturas, sendo o sorriso do bebê
uma sinalização social particularmente fácil de isolar e estudar. Ele está tão presente nas
criancinhas Kung San do Kalahari quanto nas dos bairros ricos de Nova York, exercendo o
mesmo efeito em ambos os casos. Nas palavras comedidas de Edward O. Wilson, ele “aciona
uma oferta maior de amor e afeição por parte dos pais”, uma vez que, “na terminologia dos
zoólogos, é um propiciador social, um sinal nato e relativamente invariante que serve como
agente numa relação social básica”.
Alguns anos atrás, os editores de livros científicos só pensavam no caos. Agora imploravam
por material tão variado quanto possível acerca do neodarwinismo, da psicologia evolucionista,
da genética. Eu não tinha razões para reclamar, as oportunidades de trabalho se multiplicavam,
mas Clarissa tomara uma atitude contrária a todo o projeto. Dizia que se tratava de um
racionalismo ensandecido. “É o novo fundamentalismo”, afirmou certa noite. “Há vinte anos você
e todos os teus amigos eram socialistas e culpavam o meio pelos males da humanidade. Agora
estamos presos na armadilha de nossos genes e existe uma razão para tudo!” Ficou aborrecida
quando li para ela a passagem de Wilson. Tudo estava sendo simplificado, ela reclamou, e, nesse
processo, se perdia um significado maior. O que um zoólogo tinha a dizer sobre o sorriso de um
bebê não podia ser relevante. A verdade daquele sorriso estava nos olhos e no coração de seus
pais, no amor em formação que só ganhava sentido ao longo do tempo.
Estávamos em meio a um dos nossos debates tarde da noite à volta da mesa da cozinha.
Disse-lhe que ultimamente ela passava tempo demasiado na companhia de John Keats. Um gênio,
sem dúvida, mas também um obscurantista segundo o qual a ciência estava privando o mundo da
capacidade de se maravilhar, quando o contrário é que era verdade. Se damos valor ao sorriso
de um bebê, por que não investigar sua origem? Devemos crer que todas as criancinhas
compartilham uma piada secreta? Ou que Deus estica um dedo lá de cima e faz cócegas nelas?
Ou, o que é menos implausível, porque aprendem a sorrir com suas mães? No entanto, como
criancinhas surdas e cegas também sorriem, esse sorriso já vem programado no cérebro por boas
razões evolucionistas. Clarissa disse que eu não a tinha entendido. Não havia nada de errado em
examinar os fragmentos, porém era fácil perder de vista o todo. Concordei. O trabalho de síntese
era crucial. Clarissa disse que eu ainda não a tinha entendido, ela estava falando do amor.
Respondi que eu também, especialmente de que modo os bebês que nem sabiam falar conseguiam
obter uma maior parcela de amor. Ela disse que não, eu ainda não a entendera. Paramos por ali.
Sem ressentimentos. Havíamos tido essa conversa muitas vezes de formas diferentes. Dessa vez,
o verdadeiro objeto era a falta de bebês em nossa vida.
Peguei o livro na Dillons e passei vinte minutos dando uma olhada nas estantes. Como
estava ansioso para começar a escrever, fui de táxi para casa. Tendo pagado o motorista, volteime
para deparar com Parry aguardando por mim junto ao portão de entrada. E que mais eu
poderia esperar? Que ele iria desaparecer só porque eu estava pensando em outra coisa? Ele
parecia estar um pouco envergonhado, mas não se moveu.
Começou a falar enquanto eu ainda me encontrava a alguma distância. “Você me mandou
esperar, por isso esperei.”
Com as chaves na mão, hesitei, pensando em lhe dizer que nunca o havia mandado esperar,
desejando lembrá-lo de sua “promessa solene”. Pensei também se não seria útil voltar a ouvi-lo
para conhecer melhor seu estado de espírito. Mas me horrorizava a perspectiva de ser arrastado
de novo para um drama conjugal, dessa vez num estreito caminho de tijolos entre alfeneiros
recém-aparados.
Mostrei a chave e disse que ele estava bloqueando meu caminho.
Continuando a tapar minha visão da entrada, ele retrucou: “Quero conversar sobre o
acidente”.
“Mas eu não quero.” Dei mais dois passos em sua direção como se Parry fosse um fantasma
e eu pudesse, através dele, enfiar na fechadura a chave que trazia na mão estendida na minha
frente. Ele voltou a falar num tom lamuriento. “Olhe, Joe. Temos tanta coisa para conversar. Sei
que você está sentindo o mesmo. Por que não nos sentamos e tratamos de acertar tudo?”
Empurrei-o com o ombro, emitindo um rude “dá licença”. Surpreendeu-me como ele se
derreteu quando o toquei. Era mais leve do que eu imaginara. Como ele se deixou ser empurrado
para o lado, pude abrir a porta.
“O importante”, ele disse, “é que vejo tudo isso do ângulo do perdão.”
Entrei no hall, pronto a barrar qualquer tentativa sua de me seguir. Mas Parry lá ficou e, ao
fechar a porta, o vi através do vidro blindado articulando uma palavra que, mais uma vez, pode
ter sido perdão. Subi as escadas e ainda estava do lado de fora quando ouvi o telefone tocar.
Pensei que podia ser Clarissa, cumprindo o que prometera. Entrei correndo no hall do
apartamento e arranquei o fone do gancho.
Era Parry. “Por favor, não fuja disso, Joe”, ele começou.
Desliguei e deixei o fone fora do gancho. Mudei de ideia e o repus no lugar. Eliminei o sinal
de chamada e acionei a secretária eletrônica, que entrou em ação enquanto eu cruzava a sala de
estar em direção à janela. Parry estava do outro lado da rua, de onde podia me ver, com um
celular grudado à orelha. Sua voz, transmitida pelo monitor, ecoou no hall às minhas costas. “Joe,
o amor de Deus vai encontrar você.” Ele olhou para cima e deve ter me visto de relance antes
que me ocultasse atrás da cortina. “Sei que você está aí, posso ver você. Sei que está
escutando...”
Voltei ao hall e baixei o volume do monitor. No banheiro, joguei água fria no rosto e, com a
água ainda escorrendo, perguntei o que nas minhas feições seria capaz de atrair a obsessão de
alguém. Esse momento, tanto quanto aquele em que Clarissa me passou a garrafa de vinho,
poderia servir como ponto de partida, pois creio que só então comecei de verdade a
compreender que aquele assunto não acabaria no fim do dia. Ao caminhar de volta à secretária
eletrônica, ficou claro para mim que eu estava envolvido num relacionamento.
Levantei a tampa do aparelho. A fita ainda estava correndo. Aumentei um pouco o volume e
ouvi a voz de Parry entoando baixinho “... escapar disso, Joe, mas eu amo você. Você é que deu a
partida nisso tudo. Não pode virar as costas agora...”.
Caminhei rapidamente até meu escritório, peguei o telefone do fax e chamei a polícia.
Enquanto esperava que a ligação se completasse, me dei conta de que não sabia o que iria dizer.
Atendeu uma voz de mulher, lacônica e cética, endurecida para resistir ao dilúvio diário de
pânico e desgraça.
Falei no tom seco e controlado de um cidadão responsável. “Gostaria de reportar um caso
de molestamento.” A chamada foi transferida para um homem cuja voz revelava a mesma calma
precavida. Repeti o pedido. Houve uma hesitação mínima antes da primeira pergunta.
“O senhor é a pessoa que está sendo molestada?”
“Sou, eu venho...”
“E a pessoa que está causando o problema se encontra na sua companhia agora?”
“Agora mesmo ele está do lado de fora do meu prédio.”
“Ele já lhe fez algum mal físico?”
“Não, mas ele...”
“Ameaçou lhe fazer algum mal?”
“Não.” Compreendi que minha queixa teria de ser posta numa fôrma burocrática
preexistente. Não havia na polícia nenhuma repartição suficientemente refinada para processar
narrativas individualizadas. Não obtendo alívio direto pela queixa, tentei me consolar com a
possibilidade de que minha história fosse amoldada aos padrões usuais, porque o comportamento
de Parry certamente devia corresponder a algum crime.
“Ele fez ameaças contra seus bens?”
“Não.”
“Contra terceiros?”
“Não.”
“Está tentando chantagear o senhor?”
“Não.”
“O senhor acha que pode provar que ele tenciona lhe causar algum mal?”
“Hum, não.”
Abandonando a neutralidade oficial, a voz adotou um tom quase sincero. Acreditei haver
captado um leve sotaque de Yorkshire. “Então pode me dizer o que é que ele realmente está
fazendo?”
“Me telefona a qualquer hora. Me fala na...”
A voz retornou rapidamente à sua posição inicial de obediência ao formulário de perguntas.
“O comportamento dele é insultante ou obsceno?”
“Não. Olhe, meu senhor. Deixe-me explicar, por favor. Ele é um maníaco, não me dá um
minuto de paz.”
“O senhor sabe o que ele quer de verdade?”
Fiz uma pausa. Só então percebi outras vozes ao fundo. Talvez houvesse fileiras de
policiais como ele, com fones de ouvido, recebendo sem cessar informações sobre roubos,
assassinatos, suicídios, estupros sob a ameaça de uma arma branca. E lá estava eu misturado a
todo o resto — tentativa de conversão religiosa à luz do dia.
“Ele quer me salvar”, respondi.
“Salvá-lo?”
“O senhor sabe, me converter. É um obsessivo. Simplesmente não me deixa em paz.”
A voz me interrompeu, a impaciência por fim vindo à tona. “Sinto muito, senhor. Isso não é
um assunto policial. A menos que lhe faça mal, ou a seus bens, ou ameace fazer essas coisas, ele
não está cometendo nenhum crime. Tentar convertê-lo não é ilegal.” Terminou então nossa
conversa sobre uma suposta emergência com um toque pessoal de repreensão: “Em nosso país
todos gozam de liberdade religiosa”.
Voltei para a janela da sala de estar e vi Parry lá embaixo. Ele já não falava para minha
secretária eletrônica. Postado diante do prédio com as mãos enfiadas nos bolsos, mantinha-se tão
impassível quanto um agente secreto da Alemanha Oriental.
Depois de preparar uma garrafa térmica de café e alguns sanduíches, fui me encafuar no
escritório, que dá para outra rua, a fim de ler minhas notas — ou melhor, as folhear, porque não
conseguia me concentrar. A perseguição de Parry vinha agravar uma insatisfação mais antiga. Às
vezes, sobretudo quando estou infeliz por algum motivo, me conscientizo do fato de que todas as
ideias com que trabalho derivam da mente de outras pessoas. Eu me limito a coligir e digerir a
pesquisa feita por elas de modo a transmiti-la ao leitor comum. Dizem que tenho o dom de
escrever com clareza. Sou capaz de compor uma narrativa decente partindo dos tropeços, recuos
e êxitos acidentais que estão por trás de quase todos os grandes avanços científicos. É verdade
que alguém precisa servir como intermediário entre o pesquisador e o público em geral,
oferecendo as explicações mais complexas, o que o técnico envolvido no trabalho de laboratório
não pode se permitir por estar ocupado demais ou por ser cauteloso demais. É verdade também
que ganhei um bocado de dinheiro ao me balançar como um macaco-aranha nas mais altas
árvores da floresta científica então em voga — dinossauros, buracos negros, mágica quântica,
caos, supercordas, neurociência, Darwin revisitado. Meus livros de capa dura, belamente
ilustrados, geraram documentários de tv, debates radiofônicos e conferências nos locais mais
aprazíveis do planeta.
Nos meus maus momentos, volta a sensação de que sou um parasita e a certeza de que
provavelmente não me sentiria assim caso não possuísse um bom diploma de físico e um
doutorado em eletrodinâmica quântica. Eu devia estar na luta, trazendo minha ínfima contribuição
à massa gigantesca do conhecimento humano. Entretanto, quando terminei a universidade, estava
inquieto após sete anos de estudo rigoroso. Viajei por toda parte, sem rumo ou razão e por tempo
demasiado. Voltando finalmente para Londres, abri um negócio com um amigo. A ideia era
vendermos um dispositivo, em essência um conjunto de circuitos engenhosamente sincronizados,
que eu havia desenvolvido durante o período de pós-graduação. A peça diminuta se propunha a
melhorar o desempenho de certos microprocessadores e, segundo imaginávamos, todos os
computadores do mundo precisariam contar com nosso produto. Uma companhia alemã pagou
nossas passagens aéreas para Hanover na primeira classe e, durante uns dois anos, acreditamos
que seríamos bilionários. Mas o pedido de patente foi recusado. Uma equipe que trabalhava num
parque científico nas imediações de Edimburgo havia chegado lá antes de nós utilizando recursos
eletrônicos superiores. Além do mais, como nessa época a indústria de computadores rumava em
outra direção, nossa empresa nunca vendeu uma ação e a turma de Edimburgo também não foi
adiante. Quando retornei à eletrodinâmica quântica, o buraco no meu currículo já era grande
demais, minhas habilidades matemáticas estavam enferrujadas e, antes mesmo de fazer trinta
anos, eu já parecia velho demais para entrar num jogo tão competitivo.
Ao sair da última entrevista, já sabia — pela gentileza excessiva com que fui levado à porta
por meu antigo professor — que minha carreira acadêmica fora a pique. Desci a Exhibition Road
sob a chuva, pensando no que poderia fazer. Quando passei em frente ao Museu de História
Natural, a chuva se tornou torrencial e, junto com outras dezenas de pessoas, busquei abrigo na
instituição. Sentei-me perto da réplica do diplódoco e, enquanto secava, fiquei estranhamente
feliz ao apreciar o comportamento das pessoas. Grupos numerosos frequentemente me provocam
certa misantropia. Dessa vez, contudo, me pareceu que a curiosidade e o espanto demonstrado
pelos visitantes os enobreciam. Quem entrava, independentemente de sua idade, era atraído pelo
majestoso animal e se maravilhava. Entreouvindo conversas, o que me impressionou, além do
entusiasmo, foi o nível generalizado de ignorância. Um menino de dez anos perguntou a três
adultos que o acompanhavam se uma criatura como aquela teria caçado e comido seres humanos.
Pelas respostas, ficou claro que o cronograma evolucionário dos adultos estava profundamente
fora de esquadro.
Ainda sentado lá, comecei a repassar as poucas noções disparatadas que eu próprio tinha
sobre os dinossauros. Lembrava como Darwin havia relatado, no livro A viagem do Beagle, a
descoberta de grandes ossos fossilizados na América do Sul e como era crucial, para sua teoria,
a datação desses vestígios. Os argumentos do geólogo Charles Lyell o tinham convencido de que
a Terra era muito mais antiga do que os quatro mil anos prescritos pela Igreja. Recentemente, se
discutira se os dinossauros tinham sangue quente ou frio, predominando por fim a primeira
hipótese. Havia novas provas geológicas dos diversos cataclismos que perturbaram a vida na
Terra. Aquela imensa cratera no México bem podia ter sido causada pelo meteoro que acabou
com o império dos dinossauros e permitiu que expandissem seu nicho as criaturas parecidas com
ratos que corriam em volta das patas daqueles monstros, propiciando assim o florescimento dos
mamíferos e, consequentemente, dos primatas. Também circulava a ideia atraente de que os
dinossauros não foram extintos — e sim, atendendo a um imperativo evolucionário do meio
ambiente, teriam se transformado nos inofensivos pássaros que visitam nossos jardins.
Ao sair do museu, eu já tinha rabiscado o projeto de um livro nas costas da carta em que o
professor confirmara a entrevista. Passei três meses lendo e seis meses escrevendo. A irmã do
meu ex-sócio era pesquisadora de imagens e, num gesto simpático, concordou em ser paga mais
tarde. O livro foi publicado num momento em que nada que tratasse de dinossauros poderia
fracassar, e o meu alcançou suficiente êxito para garantir a encomenda de outro, agora sobre os
buracos negros. Iniciei assim a nova carreira e, à medida que obtive outros sucessos, as
possibilidades de arranjar trabalho na área da ciência foram se reduzindo. Eu era um jornalista,
um comentarista, posto à margem de minha profissão original. Jamais voltariam aqueles dias,
arrebatadores em retrospecto, em que eu conduzia pesquisas originais para minha tese de
doutorado sobre o campo magnético do elétron, em que frequentava conferências acerca do
problema da eliminação dos infinitos nas teorias renormalizadas — não como observador, mas
como participante menor embora ativo. Agora, nenhum cientista, e nem mesmo um técnico de
laboratório ou porteiro de universidade, voltaria a me levar a sério.
Naquele dia — com o café e os sanduíches no escritório, com Parry à espreita na calçada,
com a dificuldade em avançar no tema do sorriso —, o sentimento veio forte e me obrigou a
refletir sobre tudo que me levara até ali. De vez em quando ouvia o clique da secretária
eletrônica ao ser ativada. Mais ou menos de hora em hora chegava à janela da sala de estar para
verificar e o via sempre lá, olhos fixos na porta de entrada, como um cachorro amarrado diante
de uma loja. Só numa das vezes ele me chamava do celular. Na maior parte do tempo, se
mantinha imóvel, os pés ligeiramente afastados, as mãos nos bolsos, com uma expressão no rosto
que, pelo que eu podia perceber, sugeria concentração — ou talvez uma felicidade iminente.
Quando olhei de novo às cinco da tarde, ele já se fora. Demorei-me à janela, imaginando
poder ver sua silhueta no espaço que ele tinha ocupado, um pilar de ausência brilhando na luz
crepuscular. Fui até a secretária eletrônica, que registrava trinta e três mensagens no mostrador
de caracteres vermelhos. Usei a função que permitia saltar de uma para outra e encontrei a voz de
Clarissa. Ela esperava que eu estivesse bem, voltaria às seis e me amava. Como havia três
recados de trabalho, chegavam a vinte e nove as contribuições de Parry. Enquanto refletia sobre
esse número, a fita começou a rodar. Aumentei o som. A voz parecia vir de um táxi. “Joe.
Brilhante essa sua ideia de usar as cortinas. Entendi logo. Só quero dizer outra vez que também
sinto o mesmo. De verdade.” A emoção fez com que ele pronunciasse as duas últimas palavras
num tom mais agudo.
As cortinas? Voltei à sala de visitas para examiná-las. Estavam penduradas como sempre
haviam estado. Nunca as abríamos de todo. Puxei uma para o lado, esperando tolamente
descobrir alguma pista.
Depois fui sentar outra vez no escritório, não para trabalhar, e sim para ruminar tudo aquilo
enquanto esperava por Clarissa. Mais uma vez, pensei em como me tornara o que era, em como
poderia ter sido diferente e, ridiculamente, em como eu talvez fosse capaz de retomar as
pesquisas originais e descobrir algo novo antes de fazer cinquenta anos.
9.
Faz mais sentido contar a volta de Clarissa do ponto de vista dela. Ou, melhor dizendo, do
ponto de vista que mais tarde deduzi ser o dela. Clarissa sobe três lances de escada trazendo
cinco quilos de livros e papéis na pasta de couro que carregou por oitocentos metros desde a
saída do metrô. Atrás de si, um mau dia. Para começar, a aluna que ela havia orientado na
véspera, uma garota chucra de Lancaster, telefonou aos prantos, gritando de forma incoerente.
Acalmada por Clarissa, a moça a acusou de lhe impor tarefas de leitura impossíveis e de fazê-la
perseguir linhas de pesquisa que não passavam de becos sem saída. O seminário sobre poesia
romântica tinha sido um fracasso porque os dois estudantes incumbidos de fazer as apresentações
chegaram de mãos abanando, enquanto os demais nem tinham se dado ao trabalho de ler o
material recomendado. No final da manhã, ela descobriu que sua agenda de compromissos havia
desaparecido. Durante todo o almoço, uma colega se queixara de que o marido era delicado
demais na cama e, não possuindo a dose de agressão sexual necessária para dominá-la, era
incapaz de lhe garantir o tipo de orgasmo que ela acreditava merecer. À tarde, Clarissa passou
três horas numa reunião administrativa e se viu forçada a votar na opção menos ruim, uma
redução de sete por cento nas verbas de seu próprio departamento. Saiu dali direto para uma
entrevista sobre desempenho e eficiência, conduzida pela diretoria, quando foi lembrada de que
vinha se atrasando sistematicamente no preenchimento da Planilha de Tarefas Executadas e que
as horas dedicadas por ela a ensino, pesquisa e administração não estavam bem distribuídas.
Ao subir as escadas carregando a pesada pasta, ela sente que está fazendo um esforço maior
do que devia e imagina que pode estar se resfriando. Há um ponto dolorido acima do seu nariz,
os olhos ardem. Além disso, uma dor se espalha na parte de baixo das costas — para ela, um
sinal seguro de infecção viral. Para piorar, a memória do acidente do balão voltou a atormentála.
Embora ela nunca houvesse estado muito distante de sua mente, durante boa parte do dia
Clarissa a mantivera sob controle, reduzida a uma história banal, guardada num compartimento
próprio. Agora aquela recordação havia escapado, a invadindo por inteiro, como um cheiro na
ponta dos dedos. O que a perseguira desde o fim da tarde era a imagem de Logan se
desprendendo da corda. A sensação que acompanhou aquele gesto, a horrível impotência,
também a acompanha agora, parecendo ter gerado os sintomas físicos de uma gripe ou resfriado.
Conversar com amigos sobre os acontecimentos já não ajudava porque tudo lhe parecia por
demais absurdo. No último lance de escadas, a dor já chegara aos joelhos. Ou será que isso é
normal se alguém que já não tem vinte anos carrega um monte de livros escada acima? Quando
enfia a chave na porta, ela se sente um pouco melhor ao lembrar que Joe estaria em casa e
sempre soubera cuidar dela quando isso foi necessário.
Ele a esperava na porta do escritório, com uma expressão conturbada que fazia muito tempo
ela não via. Clarissa associava aquela expressão aos esquemas superambiciosos, aos planos
trêfegos e em geral absurdos que de raro em raro afligiam o homem calmo e organizado que ela
amava. Ele vinha em sua direção, já falando antes mesmo que ela passasse pela porta. Sem um
beijo nem nenhum tipo de saudação, Joe se lança numa história imbecil de molestamento por trás
da qual parecia haver alguma espécie de acusação ou mesmo de raiva contra ela. Segundo Joe,
ela estava inteiramente errada e isso agora tinha sido confirmado. Antes que pudesse lhe
perguntar do que estava falando, na verdade antes mesmo que pudesse pôr a pasta no chão, Joe
muda de assunto e passa a relatar a conversa que havia acabado de ter com um velho amigo da
Unidade de Física de Partículas na Gloucester Road, o qual talvez pudesse lhe arranjar uma
entrevista com seu professor. Tudo que Clarissa quer dizer é: Onde está meu beijo? Me abrace!
Cuide de mim! Mas Joe se comporta como alguém que há um ano não vê um único ser humano.
Como ele continua a agir tal qual um surdo-mudo, Clarissa levanta as mãos com as palmas
para fora, num gesto de rendição, e diz: “Ótimo, Joe, vou tomar um banho”. Mesmo assim ele não
para, provavelmente nem a terá ouvido. Quando ruma para o banheiro, ele vai atrás, repetindo,
de diferentes formas, que precisa voltar a fazer ciência. Coisa que ela já ouviu. Na verdade, da
última vez, numa crise séria dois anos antes, ele terminou admitindo que estava reconciliado com
sua vida, que, aliás, nada tinha de mau — e isso supostamente havia enterrado o assunto em
definitivo. Agora, elevando a voz para vencer o trovejar das torneiras, ele tinha voltado à
história do molestamento e, ao ouvir o nome de Parry, ela se lembrou. Ah, sim, é isso. Ela acha
que entende Parry muito bem. Um homem solitário e inadequado, um fanático por Jesus, que
possivelmente vive à custa dos pais e está desesperado para se ligar a alguém, a qualquer um, até
mesmo a Joe.
Joe está pendurado no lintel da porta do banheiro como um membro de alguma espécie
recém-descoberta de primatas que fala sem parar. Falando, mas quase sem perceber tudo que o
cerca. Ela o afasta para o lado a fim de voltar ao quarto. Gostaria de lhe pedir que trouxesse uma
taça de vinho branco, mas acha que provavelmente ele também vai se servir e sentará junto à
banheira, quando tudo que ela quer agora, já que Joe não lhe dá a menor atenção, é ficar sozinha.
Senta-se na beirada da cama para desfazer os laços das botas. Se estivesse de fato doente,
poderia dizer isso claramente a ele. Mas ainda tinha dúvidas, talvez fosse só cansaço e a angústia
pelo que havia acontecido no domingo. Como não era mesmo de seu estilo se queixar, ela
levantou a perna e Joe se ajoelhou para tirar a bota — sem parar de falar um só segundo. Quer
voltar a lidar com a física teórica, precisa do apoio de uma universidade, está pronto a dar aulas
se necessário, tem algumas ideias sobre o fóton virtual.
Ela se levanta calçando apenas as meias e desabotoa a blusa. A pele exposta e a sensação
das solas dos pés sobre o grosso tapete através da seda a excitam vagamente e ela se recorda da
noite anterior e da outra — a tristeza, a gangorra de emoções, o sexo —, lembrando também que
eles se amam e naquele momento se encontram em universos mentais totalmente diferentes, com
necessidades muito diversas. Isso é tudo. Vai passar, não há motivo para extrair conclusões
importantes como está exigindo seu estado de espírito. Ela tira a blusa, toca no fecho do sutiã,
mas de repente muda de ideia. Sente-se melhor, embora ainda não recuperada de vez, e não quer
dar a Joe um sinal errado — se é que ele iria notar. Caso pudesse ficar sozinha na banheira por
meia hora, então seria capaz de ouvi-lo, e ele também a ouviria. Toda aquela comunicação que
supostamente faz bem aos casais. Ela atravessa o quarto para pendurar a saia e senta na cama de
novo para tirar as meias. Enquanto ouve Joe sem prestar muita atenção, pensa em Jessica
Marlowe, a mulher que reclamou do marido durante o almoço: dócil demais, sexualmente
delicado demais. Com quem você acaba e como a coisa funciona — depende tanto da sorte, há
tantos milhões de bifurcações que resultam da escolha inconsciente de um companheiro, que, por
mais que as pessoas conversem, ninguém se entende quando as coisas dão errado.
Joe está dizendo que não faz diferença se o seu conhecimento de matemática está superado,
porque agora o software se encarrega de tudo. Clarissa já viu Joe trabalhando e sabe que, tal
qual um poeta, tudo que um físico teórico necessita, além de talento e uma boa ideia, é de uma
folha de papel e um lápis apontado — ou um computador potente. Se quisesse, ele podia ir para o
escritório e voltaria a “fazer ciência” no minuto seguinte. A universidade, os professores, os
colegas e o local de trabalho de que diz precisar são irrelevantes, porém constituem sua proteção
contra o fracasso, pois ele jamais será convidado a voltar. (Ela própria está até aqui com a
universidade.) Veste o robe por cima da roupa de baixo. Ele retornou à sua velha e frenética
ambição porque está tenso — os acontecimentos de domingo também o afetam de modo diferente.
O problema é que a mente precisa e cuidadosa de Joe não leva em conta seu próprio campo
emocional. Ele parece não saber que sua argumentação é um mero delírio, uma aberração que,
contudo, tem um motivo. Por isso fica vulnerável, mas, no momento, Clarissa não tem condições
de protegê-lo. Tanto quanto ela, Joe necessita encarar o absurdo da tragédia de Logan, embora
não tenha se conscientizado disso. Enquanto ela deseja ficar quieta, num banho quente e cheio de
espuma, para refletir, ele quer fazer qualquer coisa para mudar seu destino.
De volta ao banheiro, ela mistura água fria na quente com uma escova de cabo longo,
acrescentando óleo de pinheiro, sais de lilases e, quando lhe vem a lembrança, uma essência que
ganhara no Natal de uma afilhada e que, segundo o rótulo, era usada pelos antigos egípcios para
alcançar sabedoria e paz de espírito. Derrama o vidro todo na banheira. Joe abaixa o assento da
privada e se instala a seu lado. O tipo de relação que existia entre eles tornava perfeitamente
possível que um pudesse pedir ao outro para ficar sozinho, sem criar problema, porém agora a
intensidade dele a inibia. Especialmente porque o assunto voltara a ser Parry. Ao afundar na água
esverdeada, Clarissa permite a si própria concentrar-se por inteiro no que ele está falando.
Polícia? Você telefonou para a polícia? Trinta e três mensagens na secretária eletrônica? Mas ela
havia checado ao entrar, e o mostrador apontava zero. Quando Joe responde que as apagou,
Clarissa senta na banheira e o olha nos olhos sem que ele afaste a vista. Tinha doze anos quando
seu pai morrera com a doença de Alzheimer, razão pela qual sempre temeu viver com alguém que
enlouquecesse. Por isso havia escolhido um homem tão racional quanto Joe.
Algo no olhar dela, ou o fato de haver endireitado de repente as costas doloridas, ou a
maneira como o espanto fez seu queixo cair — alguma coisa enfim fez Joe tropeçar na palavra
fenômeno e se calar por alguns instantes; depois disso ele pergunta em voz mais baixa: “Que que
houve?”.
“Você está falando sem parar desde que eu entrei. Dê uma paradinha, Joe. Respire fundo
algumas vezes”, ela responde sem tirar os olhos dele.
Sensibilizada ao ver que ele está pronto a seguir seu conselho, continua:
“Como você está se sentindo?”
Olhando para o chão na sua frente, Joe pousa as mãos nos joelhos e suspira fundo.
“Agitado.”
Clarissa espera que ele prossiga, que vá além do reconhecimento da agitação, mas Joe
aguarda por ela. Ambos ouvem o tiquetaquear arrítmico do cano de água quente atrás da
banheira. Ela quebra o silêncio. “Como eu sei que já te disse isso antes, por favor, não fique
aborrecido. Você não acha que pode estar exagerando nesse caso do Parry? Que talvez ele não
seja um problema assim tão grande? Quer dizer, convide-o para tomar chá e provavelmente ele
nunca mais vai te aborrecer. Ele não é a causa da tua irritação, é apenas um sintoma.” Ao dizer
isso, ela pensa nas trinta mensagens apagadas. Talvez Parry, ou o Parry descrito por Joe, não
exista. Ela sente um calafrio e volta a afundar na água, sem desviar os olhos do seu rosto.
Joe dá a impressão de considerar com toda a atenção o que ela disse. “Sintoma de quê,
exatamente?”
Há um toque frio de advertência em sua última palavra que a faz assumir um tom mais leve.
“Ah, sei lá. Essa tua velha frustração de não estar fazendo pesquisa original”, responde,
desejando que fosse mesmo só isso.
Outra vez ele reflete com cuidado. A necessidade de responder àquelas perguntas de repente
o cansou. Ele parece uma criança na hora de dormir, sentado na privada sem inibição alguma
enquanto ela toma banho. “Pois é justamente o contrário. Fui apanhado nessa situação ridícula
que não posso resolver sozinho. Fico chateado e então começo a pensar em meu trabalho, no
trabalho que devia estar fazendo.”
“Por que você diz que não pode resolver a situação, que não pode lidar com esse sujeito?”
“Acabei de te dizer. Depois que falei com ele, o cara se postou na frente do prédio e
praticamente não se mexeu durante sete horas. Telefonou o dia todo. A polícia diz que não é com
eles. Então, o que você quer que eu faça?”
Clarissa sente um jato frio no coração como sempre acontece quando alguém lhe fala com
raiva. Mas também percebe que fez exatamente o que se propunha evitar. Deixara se arrastar pelo
estado emocional de Joe, por seus problemas, seus dilemas, suas carências. Ficara exposta,
indefesa. Tinha feito aquelas perguntas cautelosas com o propósito de ajudá-lo, e agora ele lhe
retribuía com agressividade, enquanto suas próprias carências nem eram reconhecidas. Estava
pronta para cuidar de si própria, já que ele não queria fazê-lo, porém até isso lhe havia sido
negado. Ela passa a falar rápido, reagindo à pergunta dele com outra pergunta. “Por que você
apagou as mensagens da fita?”
Isso o desorienta. “O que que você está falando?”
“É uma pergunta simples. Trinta mensagens seriam a prova do molestamento que você
poderia levar à polícia.”
“A polícia não está...”
“Está bem. Então eu poderia ouvir as mensagens. Seriam uma prova para mim.” Ela se põe
de pé e puxa uma toalha com um repelão para se cobrir. O movimento brusco a deixa tonta.
Talvez ela tenha algum problema cardíaco.
Joe também se levanta. “Pensei mesmo que íamos chegar nesse ponto. Você não acredita em
mim.”
“Não sei o que pensar”, ela diz, enquanto se enxuga com um vigor incomum. “O que eu sei é
que volto de um dia terrível e dou de cara com o teu.”
“Dia terrível. Você acha que estamos falando de um dia terrível?”
Eles estão de volta ao quarto. Ela se pergunta se foi longe demais. Mas lá está,
prematuramente fora da banheira, procurando pelas roupas de baixo, enquanto a dor na parte de
baixo da coluna continua a se espalhar. Eles raramente brigam. Ela, em especial, não é boa em
matéria de discussão. Nunca foi capaz de aceitar as regras de combate que lhe permitem ou
exigem dizer coisas em que não acredita ou que são distorções da verdade, quando não mentiras
puras. Não pode escapar à sensação de que cada tirada hostil mais a afasta não apenas do amor
de Joe, mas de todo o amor que ela sentiu na vida — fazendo-a pensar que, com isso, vem à tona
uma maldade que genuinamente corresponde ao mais profundo de seu ser.
Joe tem outro tipo de problema. Para começar, a raiva nele leva tempo para se manifestar e,
mesmo quando isso acontece, sua inteligência não o ajuda, ele esquece o que devia dizer e não é
capaz de marcar pontos na discussão. E não consegue vencer o hábito de responder a uma
acusação com uma resposta racional e pormenorizada, em vez de contra-atacar com outra
acusação. Não é difícil desnorteá-lo com uma súbita irrelevância. A irritação bloqueia a
compreensão de seu próprio caso, e só depois, quando ele se acalma, é que lhe vem à mente uma
defesa bem articulada. Além disso, é especialmente difícil ser duro com Clarissa, porque ela se
fere com muita facilidade. Palavras raivosas deixam uma marca imediata em seu rosto.
Mas agora, incapazes de parar, eles parecem meros atores numa peça teatral, paira no ar
uma liberdade terrível. “O sujeito é ridículo”, Joe continua. “Está com uma fixação em mim.”
Clarissa faz menção de falar, mas ele a interrompe com um gesto de mão. “Não consigo fazer
com que você leve isso a sério. Tua única preocupação é que eu não estou massageando a merda
dos teus pés depois de um dia difícil.” Essa referência a meia hora de ternura recente choca tanto
Joe como Clarissa. Ele não tivera então nenhum sentimento negativo, na verdade fizera aquilo
com prazer. Ela afasta o rosto, mas consegue botar para fora o que antes pensara. “Houve alguma
coisa muito intensa quando você o encontrou. É como se o tivesse inventado.”
“Ah, essa é boa! Agora compreendo. Eu mesmo é que criei isso para mim. Sou responsável
pelo que acontecer. É meu carma. Até pensei que você estivesse acima desse tipo de modismo
idiota.”
Aquele “até” vinha de lugar nenhum, entrou apenas para dar ritmo, um intensificadorzinho
descuidado. Clarissa nunca demonstrou o menor interesse por essas novidades. Ela o olha,
surpresa. O insulto a libertou. “Você devia se perguntar quem está fixado em quem.” A sugestão
de que ele é que está obcecado por Parry lhe parece tão grotesca que Joe só consegue dizer:
“Meu Deus!”. Uma energia gratuita o obriga a atravessar o quarto em direção à janela. Não há
ninguém do lado de fora. É tão forte a carga de raiva no ar que Clarissa se sente vulnerável nas
roupas de baixo e aproveita o movimento causado por seu comentário para pegar às pressas uma
saia no armário. Dois cabides caem no chão, mas ela não os apanha como habitualmente faria.
Joe respira bem fundo e dá as costas para a janela antes de expelir o ar. Faz questão de
mostrar que está se acalmando, que prefere começar de novo partindo de uma premissa razoável,
que é um homem equilibrado que se recusa a ser empurrado para posições extremadas. Fala num
tom baixo, soprando as palavras, exageradamente devagar. Onde é que aprendemos esses
truques? Estão gravados em nós, como o resto de nosso repertório emocional? Ou nos são
transmitidos pelo cinema? “Escute, tem esse problema lá fora”, ele diz, gesticulando em direção
à janela, “e tudo que eu queria de você era apoio e ajuda.”
Mas Clarissa não está disposta a ouvir sua argumentação. A voz rouquenha e a tensão no “eu
queria” sugerem autocomiseração e acusação, o que lhe dá mais raiva. Não precisa dizer que ele
sempre contou com seu apoio e ajuda. Em vez disso, o ataca de um novo ângulo, inventando uma
queixa e dela se recordando numa única operação mental. “Na primeira vez que ele telefonou e
disse que te amava, você mentiu para mim.”
Joe fica tão surpreso que a encara com os olhos esbugalhados enquanto sua boca tenta
articular alguma palavra. Clarissa, embora inexperiente nesse tipo de batalha, sente uma pontada
de triunfo facilmente confundida com a sensação de desforra. Naquele momento, acha
honestamente que Joe a traiu e, assim, está justificada de acrescentar: “E então, o que é que eu
devo pensar? Me diga. Aí vamos ver que tipo de apoio e ajuda você precisa”. Ela calça os
chinelos enquanto diz isso. Joe começa a retomar a fala. Ocorrem-lhe ao mesmo tempo tantas
formas de protesto que sua mente fica bloqueada. “Espere um minuto. Você está realmente
sugerindo...”
Sabendo que seu comentário talvez não resista a uma discussão, Clarissa resolve terminar o
jogo enquanto está ganhando e sai do quarto ainda com a deliciosa sensação de que foi ofendida.
“Então vai se foder”, Joe grita, ao vê-la se afastar. Tem vontade de pegar o banquinho da
penteadeira e o jogar pela janela. Era ele quem devia lhe dar as costas. Após alguns segundos de
hesitação, abandona o quarto às pressas, passa por Clarissa no hall, arranca o sobretudo do
gancho e sai batendo a porta, satisfeito em saber que ela estava suficientemente perto para sentir
toda a força da pancada.
Quando deixa o edifício, surpreende-se ao ver como já estava escuro. Também chovia.
Aperta o cinto do sobretudo e, percebendo que Parry espera por ele no final do caminho calçado
de tijolos, nem diminui o passo.
10.
Tive a impressão de que a chuva apertou quando pisei na rua, mas não ia voltar para pegar
um chapéu ou um guarda-chuva. Ignorei a presença de Parry e saí andando com passadas tão
rápidas que, ao chegar à esquina e olhar para trás, vi que ele se encontrava a uns cinquenta
metros de distância. Meus cabelos estavam empapados e a água já penetrara no sapato direito,
cuja sola exibia um buraco havia muito negligenciado. Minha raiva se irradiava com um brilho
frio e, de forma bastante infantil, não tinha um objeto definido. Obviamente, Parry era culpado de
se intrometer entre Clarissa e mim, mas, além dos dois — ele era a aflição da qual ela não me
amparara —, minha fúria abarcava tudo e todos, em particular aquela chuva penetrante e o fato
de que não sabia para onde ir.
Também havia outra coisa, qual uma membrana ou casca mole, que envolvia minha raiva,
limitando-a e a fazendo parecer ainda mais teatral. Tratava-se de um retalho de memória, uma
ninharia, vaga conexão enraizada em alguma leitura esquecida, irrelevante quando topei com ela,
porém encravada em meu cérebro como o fragmento duradouro de algum sonho de criança. Agora
se tornara importante, poderia me ajudar. A palavra-chave era cortina, que eu imaginava ler na
minha própria escrita. E, assim como a chuva caindo nos meus cílios cindia e refratava a luz dos
lampiões, aquela palavra parecia se partir em pedaços, puxada para cá e para lá por associações
que minha memória não alcançava por muito pouco. Eu via uma grande casa à distância,
reproduzida no branco e preto borrado de um velho jornal, grades altas e talvez a presença de
militares, guardas de segurança ou sentinelas. No entanto, se essa era a casa onde ficavam as tais
cortinas, nada significava para mim.
Fui em frente, passando por grandes casas de verdade, enormes mansões com janelas
iluminadas que se elevavam acima dos altos portões com interfones, detrás dos quais havia
carros estacionados de forma descuidada. Meu estado de espírito era tal que eu podia esquecer,
conscientemente e sem tristeza alguma, que nosso apartamento valia meio milhão de libras a fim
de me permitir a fantasia de que era um pobretão correndo na chuva defronte das casas dos
milionários. A vida sorria para alguns, enquanto eu desperdiçara as poucas oportunidades que
me haviam sido oferecidas e não era ninguém, nem tendo mais quem se importasse comigo.
Desde os tempos de adolescente eu não enganava meus sentimentos desse modo, e a descoberta
de que ainda era capaz de fazê-lo me deu tanto prazer quanto correr um quilômetro e meio em
cinco minutos. Entretanto, ao buscar outra vez pela “cortina”, não me ocorreu nenhuma
associação de ideias nem o menor indício, e, ao diminuir o passo, pensei como o cérebro era
algo tão delicadamente filigranado que não podia nem mesmo simular uma mudança em seu
estado emocional sem também alterar as condições de milhões de outros circuitos que
permaneciam no subconsciente.
Senti que meu perseguidor se aproximava antes de ouvi-lo ulular meu nome. Gritou de novo.
“Joe! Joe!” Notei que ele chorava. “Foi você. Você começou tudo isso, aconteceu por sua causa.
Você está brincando comigo o tempo todo, está fingindo...” Não conseguiu terminar. Acelerei o
passo, quase corria ao atravessar a rua seguinte. Suas lamúrias mudavam de tom com cada
passada vigorosa. Eu sentia um misto de repugnância e medo. Cheguei à calçada oposta e olhei
para trás. Ele me seguira e agora estava imobilizado no meio da rua, esperando que o tráfego
rareasse. Havia uma pequena chance de que ele caísse sob as rodas de um carro em movimento
— e eu quis que isso acontecesse, com um desejo frio e intenso, sem ficar surpreso ou
envergonhado com tal sentimento. Quando ele viu que meu rosto estava voltado em sua direção,
recomeçou a gritar. “Quando é que você vai me deixar em paz? Você tomou conta de mim. Não
posso fazer nada. Por que não admite o que está fazendo? Por que fica fingindo que não sabe do
que eu estou falando? E agora todos esses sinais, Joe. Por que você continua a fazer isso?”
Ainda plantado no meio da rua, seu corpo e suas palavras obliteradas a intervalos regulares
pela passagem dos carros, ele elevou a voz já rouca, gritando tanto que não pude afastar a vista.
Eu devia ter continuado a correr, lá estava a oportunidade perfeita para me livrar dele. Mas sua
raiva era irresistível e fui forçado a olhar para ele, pasmo, embora não perdesse de todo a
esperança na possibilidade salvadora de que um ônibus o atropelasse ali, a quase oito metros de
distância, enquanto ele me suplicava e maldizia.
As palavras saíam num guincho, com uma inflexão repetitiva e ascendente, como se um
pássaro infeliz do jardim zoológico houvesse assumido características humanas. “O que é que
você quer? Você me ama e quer me destruir. Faz de conta que não está acontecendo. Que nada
está acontecendo! Seu sacana! Você está brincando... me torturando... me dando todos esses
sinais secretos de merda para eu vir atrás de você. Eu sei o que você quer, seu puto. Puto! Pensa
que não sei? Você quer me afastar de...” Perdi algumas palavras por conta de um caminhão de
mudanças do tamanho de uma casa. “... e pensa que pode fazer isso. Mas você é que virá para
mim. No final você também irá para Ele porque precisa ir. Seu filho da puta! Você vai pedir
perdão, vai se arrastar pelo chão...”
Os soluços de Parry sufocaram suas palavras. Ele deu um passo na minha direção, mas um
carro em disparada o empurrou de volta com um toque raivoso e estridente de buzina cujo efeito
Doppler, ao se tornar mais grave, era o inverso dos tristes sons que Parry produzia. Em algum
momento, durante sua algaravia, quase senti pena dele outra vez, apesar de minha hostilidade e
aversão. Mas talvez não fosse realmente pena. Ao vê-lo ali incapaz de fugir, vociferando como
um louco, senti alívio por não estar no lugar dele, como quando vejo um bêbado ou um
esquizofrênico dirigindo o trânsito. Também pensei que seu estado era tão grave, sua visão da
realidade tão distorcida, que ele seria incapaz de me fazer mal. Ele necessitava de ajuda,
conquanto não vinda de mim. Tudo isso em paralelo com o desejo abstrato de ver aquela fonte de
aborrecimento achatada no asfalto sem que eu tivesse a menor culpa.
Enquanto o ouvia, me beneficiei de uma terceira linha de pensamentos e emoções acionada
por uma palavra que ele usara duas vezes: sinais. Em ambas as ocasiões se agitara a cortina que
tinha me incomodado anteriormente, fazendo com que os dois conceitos se unissem numa sintaxe
elementar: cortina utilizada para dar sinal. Agora eu estava mais perto do que nunca. Quase havia
chegado lá. Uma casa grande, uma residência famosa de Londres, as cortinas em suas janelas
usadas para comunicar...
A luta contra essas frágeis associações me trouxe à mente as cortinas do escritório e logo
depois o próprio escritório. Não seu conforto, não a luz dos abajures de pergaminho ou os
vibrantes azuis e vermelhos dos bokharas, ou os tons submarinos de meu falso Chagall (Le poète
allongé, 1915), mas os trinta e poucos metros de caixas pretas rotuladas, cheias até o topo de
recortes, que, ocupando cinco estantes, tomavam toda a parede; e, do outro lado, junto à janela
que dava para o sul, a pequena torre do computador onde três gigabytes de dados guardados no
disco rígido iriam me ajudar a construir a ponte entre aquela mansão e as duas palavras.
Pensei em Clarissa com um súbito arroubo de amor e alegria, com a sensação de que seria
fácil superar nossa briga — não porque eu houvesse me comportado mal ou cometido algum erro,
mas porque tinha tanta razão que isso era óbvio e incontroverso. Ela estava simplesmente errada.
Eu precisava voltar para casa.
A chuva continuava a cair, porém com menos força. Cerca de duzentos metros à frente, o
sinal de trânsito fechou e pude ver, pelo número de carros vindo na minha direção, que dali a
alguns segundos Parry teria a chance de atravessar a rua. Por isso, deixei-o onde estava, as mãos
cobrindo o rosto, chorando. Ele provavelmente não me viu quando entrei correndo numa estreita
rua residencial. E, mesmo se, malgrado sua desolação, ele encontrasse forças para correr atrás
de mim, eu poderia dar a volta no quarteirão e escapar dele num minuto.
11.
Querido Joe,
Sinto que a felicidade circula dentro de mim como uma corrente elétrica. Fecho os olhos e o
vejo como ontem à noite, debaixo da chuva e do outro lado da rua, ligado a mim por um amor que
não precisa ser expresso em palavras mas é tão forte quanto um cabo de aço. Fecho os olhos e
agradeço a Deus em voz alta por você existir, por permitir que eu exista no mesmo lugar e no
mesmo tempo que você, por deixar que tivesse início essa estranha aventura entre nós. Eu Lhe
agradeço por todas as pequenas coisas que nos unem. Esta manhã, ao acordar, vi na parede ao
lado de minha cama um círculo perfeito de luz do sol — e Lhe agradeci por estar derramando
essa mesma luz sobre você! Assim como, na noite de ontem, a chuva que o encharcou também me
encharcou, nos aproximando ainda mais. Louvado seja Deus por me conduzir a você. Sei que
encontraremos pela frente muita dor e dificuldade, porém, se é duro o caminho que Ele nos
traçou, isso serve a algum propósito. O propósito Dele! Assim somos testados e fortalecidos, o
que no futuro nos trará alegrias ainda maiores.
Sei que lhe devo desculpas — e essa palavra é pequena demais. Apresento-me nu, indefeso,
diante de você, dependendo de seu perdão, implorando que releve minha falta. Porque você
soube reconhecer nosso amor desde o primeiro minuto. Você o percebeu no olhar que trocamos
no alto da colina depois que ele caiu, toda a força, o poder e a beatitude do amor, enquanto eu fui
insensível e grosseiro, negando tudo, tentando me proteger, tentando fingir que nada estava
acontecendo, que não podia acontecer assim — e ignorei o que você estava me dizendo com os
olhos e com cada gesto seu. Pensei que seria suficiente segui-lo colina abaixo e sugerir que
rezássemos juntos. Você tinha razão em ficar aborrecido comigo por eu não ver o que você já
tinha visto. O que aconteceu foi tão óbvio. Por que me recusei a admiti-lo? Você deve ter me
achado um insensível, um imbecil. Tinha toda a razão em me dar as costas e ir embora. Até hoje
me recordo do momento em que você começou a subir a colina, mas só agora entendo que os
ombros curvados e os passos lentos mostravam como você se sentiu rejeitado por mim. E solto
gemidos em voz alta ao recordar meu comportamento. Que idiota! Eu poderia ter posto a perder o
que nós temos. Joe, pelo amor de Deus, me perdoe, por favor.
Agora, pelo menos, você sabe que eu vi o que você viu. E, com as restrições impostas por
sua situação e seu respeito pelos sentimentos de Clarissa, você me acolheu usando meios que
nenhum intrometido pode interceptar, meios que só eu sou capaz de interpretar. Você sabia que
eu estava fadado a encontrá-lo. Você estava esperando por mim. Por isso é que tive de lhe
telefonar tão tarde naquela noite, tão logo entendi o que você me havia dito com seu olhar.
Quando você atendeu o telefone, pude sentir o alívio em sua voz. Você aceitou minha mensagem
em silêncio, mas não pense que não me dei conta de sua gratidão. Quando desliguei, chorei de
alegria e sei que você também chorou. Agora, finalmente, a vida podia começar. Toda a espera, a
solidão e as orações tinham rendido fruto, e me ajoelhei para dar graças a Deus até o sol raiar.
Você dormiu naquela noite? Não creio. Você ficou acordado no escuro, ouvindo a respiração de
Clarissa e pensando aonde isso tudo iria nos levar.
Joe, você realmente pôs em marcha alguma coisa especial!
Temos tantas coisas para nos dizer, tanto tempo a recuperar. Começou a exploração no
fundo do oceano, porém a superfície permanece tranquila. O que estou tentando dizer é que você
viu minha alma (tenho certeza disso) e sabe como penetrar mais fundo dentro de mim, embora
não conheça praticamente nada dos pormenores de minha vida — como eu vivo, onde moro, meu
passado, minha história. É só a crosta, eu sei, mas nosso amor tem de incluir tudo. Já conheço
muito sobre sua vida. Fiz disso minha ocupação, minha missão. Você me atraiu para sua vida
cotidiana e exigiu que eu a entendesse. E o fato é que não posso lhe negar nada. Se algum dia eu
tiver de fazer uma prova sobre você, vou tirar dez, não cometerei um único erro. Você ficará
muito orgulhoso de mim!
Por isso, aí vai minha crosta. Sei que muito em breve você estará aqui. É uma bela casa,
situada numa pequena curva da Frognal Lane, cercada de gramados, com um pátio interno no
centro que ninguém pode ver, mesmo quem consegue passar do portão (poucos o fazem além do
carteiro) e chega à porta de entrada. É a réplica em miniatura de um palacete francês. Tem até
janelas com persianas pintadas de um verde desbotado e um cata-vento em forma de galo no
telhado. Minha mãe, que morreu de câncer quatro anos atrás, herdou a casa da irmã, a qual, por
sua vez, a recebeu numa partilha de divórcio poucas semanas antes de morrer num acidente de
carro. Estou contando isso porque não quero que você fique com uma falsa impressão sobre
minha família. Minha tia teve um casamento terrível com um escroque que enriqueceu no
mercado imobiliário, mas o resto da família sobreviveu com empreguinhos bem banais. Meu pai
morreu quando eu tinha oito anos. Tenho uma irmã mais velha que vive na Austrália, mas não
fomos capazes de descobrir seu paradeiro quando mamãe morreu, além do quê, por algum
motivo, ela não é mencionada no testamento. Possuo um punhado de primos que nunca vejo e,
pelo que sei, sou o único na família que continuou a estudar depois dos dezesseis anos. Assim,
aqui estou, rei no castelo que Deus me concedeu para algum propósito que só Ele conhece.
Posso sentir sua presença ao meu redor. Acho que não vou voltar a lhe telefonar. É
desagradável por causa de Clarissa e, ao escrever, fico mais perto de você. Eu o imagino sentado
aqui ao meu lado, vendo o que estou vendo. Estou sentado diante de uma pequena mesa de
madeira na varanda coberta do segundo andar, que é uma continuação do escritório e dá para o
pátio interno. A chuva cai sobre duas cerejeiras em flor. Como o galho de uma delas penetra pela
balaustrada, estou suficientemente próximo para ver como a água toma a forma de contas ovais
coloridas pelo rosa pálido das flores. O amor me deu olhos novos, vejo tudo com muita clareza e
em grande detalhe. Os veios das velhas vigas, cada folha da relva molhada lá embaixo, as
patinhas negras (que me fizeram cócegas) da joaninha que passeou por minha mão um minuto
atrás. Tenho vontade de tocar e acariciar tudo que vejo. Enfim estou acordado. Sinto-me tão
vivo, o amor me fez ficar tão alerta!
Por falar em toques e na grama molhada, me lembrei de uma coisa. Quando você saiu ontem
de tarde de casa e roçou com a mão o topo da cerca de alfeneiros, de início não entendi.
Caminhei alguns passos e passei os dedos pelas folhas que você tinha tocado. Peguei em cada
uma e foi um choque quando percebi que havia uma diferença com relação às que você não tocou.
Senti uma vibração, parecia que meus dedos iam se queimar nas bordas daquelas folhas úmidas.
Então compreendi. Você as tinha tocado de uma forma especial, transmitindo uma mensagem.
Você pensou que eu não ia perceber, Joe? Tão simples, tão engenhoso, tão carinhoso. Que
maneira fabulosa de ouvir falar de amor — através da chuva, das folhas, da pele —, a mensagem
bordada na delicada criação de Deus, se revelando em forma de calor pelo toque de meus dedos.
Eu poderia ter ficado lá por uma hora, maravilhado, caso não me importasse em ser deixado para
trás. Queria saber para onde você ia me levar em meio à chuva.
Mas retornemos à superfície do mar. Eu dava aulas de inglês para estrangeiros num lugar
perto de Leicester Square. Era suportável, embora eu nunca tivesse conseguido fazer
camaradagem com outros professores. Havia uma falta de seriedade geral que me irritava. Acho
que falavam mal de mim pelas costas porque eu levava a religião a sério — coisa fora de moda
hoje em dia! Logo que ganhei o dinheiro e a casa, abandonei o emprego e me mudei. Imaginei que
seria algo temporário, que estava esperando. Sempre tive a convicção de que este lugar
incrivelmente bonito me foi concedido com algum propósito. Num dia estou morando numa
quitinete miserável em Arnos Grove, no dia seguinte, num palacete em Hampstead, com uma
pequena fortuna no banco. Havia necessariamente um desígnio nisso, e pensei que meu dever,
como o tempo comprovou, consistia em me manter calmo, atento aos silêncios, sempre pronto. Eu
rezava, meditava e às vezes fazia longas caminhadas no campo, sabendo que, cedo ou tarde, o
propósito Dele seria revelado. Minha responsabilidade era estar alerta, preparado para captar o
primeiro sinal. E, apesar de toda essa preparação, isso me escapou! Devia ter entendido quando
nossos olhares se encontraram no alto da colina. Só à noite, de volta ao silêncio e à solidão desta
casa, é que comecei a compreender. E por isso telefonei para você... Mas agora estou andando
em círculos!
Esta casa está esperando por você, Joe. A biblioteca, o salão de sinuca, a sala de estar com
sua linda lareira e enormes sofás antigos. Temos até um cinema em miniatura (vídeos,
naturalmente), uma sala de ginástica e uma sauna. Encontraremos obstáculos pela frente, sem
dúvida. Cadeias de montanhas! A mais alta de todas sendo sua negação de Deus. Mas já entendi
isso, como você sabe muito bem. Na verdade, você provavelmente planejou tudo assim. É um
jogo que está fazendo comigo, parte sedução, parte provação. Você está querendo testar os
limites da minha fé. Fica horrorizado por eu ser capaz de perceber tão facilmente seus truques?
Espero que isso lhe dê prazer, como sinto prazer quando você me guia com suas mensagens, com
esses códigos que penetram diretamente na minha alma. Eu sei que você chegará a Deus, tanto
quanto sei que é meu dever levá-lo a Ele por meio do amor. Ou, em outras palavras, seu
afastamento de Deus será vencido graças ao poder curativo do amor.
Joe, Joe, Joe... Vou confessar: cobri cinco folhas com seu nome. Você pode rir de mim —
mas não demais. Pode ser cruel comigo — mas não demais. Por trás desses jogos em que
estamos envolvidos, existe um propósito que não cabe a mim ou a você questionar. Tudo que
fazemos juntos, tudo que somos está sob os cuidados de Deus, e nosso amor deve sua existência,
forma e significado ao amor Dele. Temos tanta coisa para conversar, tantos pormenores
interessantes. Ainda precisamos discutir tudo que se refere a Clarissa. Acho justo que você tome
a frente e me diga o que acha melhor. Quer que eu fale com ela? Eu gostaria muito de fazer isso.
Não significa que eu ficaria feliz, é claro, e sim que estou preparado. Ou deveríamos nos sentar,
os três, e resolver as coisas numa conversa? Tenho certeza de que existem maneiras de lidar com
isso fazendo-a sofrer menos. Mas tem de ser uma decisão sua, e vou esperar para saber o que
você decidir que é melhor. Senti sua presença, bem junto a meu braço, enquanto escrevia. A
chuva parou, os passarinhos voltaram a cantar e o dia está ainda mais radioso. Terminar esta
carta é como partir. Não posso deixar de sentir que, a cada vez que me afasto de você, eu o estou
decepcionando. Jamais esquecerei aquele momento lá embaixo da colina, como você me deu as
costas, rejeitado, chocado com minha recusa em reconhecer já então o nosso amor. Nunca
deixarei de repetir que sinto muito. Joe, você algum dia me perdoará?
Jed
12.
O sentimento de ter fracassado como cientista, de haver me tornado um parasita e de estar
marginalizado não me abandonou. Na verdade, nunca havia me abandonado. A velha inquietação
pode ter sido reacendida pela queda de Logan, pelo problema com Parry ou pela pequena
rachadura que se abrira no relacionamento com Clarissa. Obviamente, ficar sentado no escritório
pensando não me conduziria à origem da inquietação ou a alguma solução. Vinte anos antes eu
talvez contratasse um ouvinte profissional, mas desde então perdera a fé na cura pela conversa. A
meu juízo, uma fraude bem-educada. Atualmente, preferia dirigir meu carro. Alguns dias após
receber a carta de Parry, a primeira delas, fui até Oxford me encontrar com Jean, a viúva de
Logan.A estrada estava inexplicavelmente vazia na manhã daquele dia nublado porém bastante
claro, e ainda peguei um vento de popa. No trecho plano e elevado antes da escarpa, cheguei
quase ao dobro do limite de velocidade. O rápido avanço, a necessidade de dedicar um quarto de
minha atenção ao retrovisor (por causa da polícia, por causa de Parry) e a exigência geral de
concentração me acalmaram, gerando uma sensação de purificação. Quando desci pelo corte feito
no paredão de calcário, uns cinco quilômetros ao norte da cena do acidente, o vale de Oxford se
abriu diante de mim como um país estrangeiro. Depois de atravessar aquela neblina esverdeada
por vinte e cinco quilômetros, eu encontraria, aprisionado numa ampla casa em estilo vitoriano, o
sofrimento que me fizera ir até ali. Deixando a velocidade cair para setenta, dei-me um tempo
adicional para refletir.
De nada valeu uma pesquisa nas informações armazenadas no computador usando as
palavras-chave cortina/sinal. Abri alguns atalhos ao azar, mas, sem uma orientação mais clara,
desisti depois de meia hora. Eu havia lido algo em algum lugar sobre uma cortina usada para fins
de sinalização e isso, de certa forma, dizia respeito a Parry. Achei que o melhor a fazer era
abandonar a busca e esperar que viessem à tona associações mais precisas, talvez durante o
sono.
Eu não estava tendo mais sorte com Clarissa. É verdade que nos falávamos, éramos afáveis
um com o outro, havíamos até tido relações sexuais — rapidinho, pela manhã, antes do trabalho.
Li a carta de Parry enquanto tomava o café da manhã, e a passei para ela. Clarissa pareceu
concordar comigo que ele era louco e que eu tinha razão em me sentir molestado. “Pareceu”,
porque ela não mostrou uma convicção absoluta e, se disse que eu estava certo — o que acho que
fez —, nunca chegou a admitir que houvesse errado. Senti que ela estava mantendo suas opções
em aberto, embora o negasse quando perguntei. Leu a carta com a testa franzida, parando para me
olhar em determinado momento, quando disse: “A letra dele se parece muito com a tua”.
Então me perguntou o que, exatamente, eu havia dito a Parry.
“Disse para ele ir se foder”, respondi, talvez com excessiva energia. E, quando me
perguntou de novo, levantei a voz, exasperado: “Olhe só essa coisa sobre a mensagem na cerca
viva! Ele é doido varrido, será que você não vê?”.
“Vejo”, ela disse baixinho, retomando a leitura. Acho que eu sabia o que a estava
aborrecendo. Era a técnica habilidosa de Parry ao insinuar um passado, um pacto, um conluio,
uma vida secreta de olhares e gestos, e eu parecia estar negando tudo isso exatamente como faria
se por acaso fosse verdade. Por que estava tão desesperado, se nada tinha a esconder? A frase na
penúltima página sobre “tudo que se refere a Clarissa” fez com que ela parasse e olhasse, não
para mim, mas para o lado, enquanto respirava fundo bem devagar. Pousou na mesa a folha que
estava lendo e tocou a testa com os dedos. Não que ela acreditasse em Parry, eu disse comigo,
mas a carta transmitia tamanha certeza, tanta emoção genuína (pois ele sem dúvida havia
experimentado os sentimentos ali narrados), que necessariamente provocava certas reações
automáticas. Até mesmo um filme vagabundo pode fazer a gente chorar. Reações emocionais
profundas, que escapam à censura dos processos superiores da razão, nos obrigaram a
representar, ainda que de forma vestigial, papéis predeterminados: eu, como o indigno amante
cujo segredo fora revelado; Clarissa, como a mulher cruelmente traída. Porém, quando tentei lhe
explicar isso, ela me olhou e balançou ligeiramente a cabeça de um lado para outro, surpresa
com minha idiotice. Mal leu as últimas linhas da carta.
“Aonde você vai?”, perguntei quando ela se levantou de repente.
“Tenho que me preparar para sair.” Partiu às pressas, deixando a conversa inconclusa.
Devia ter havido um momento de consolidação, de reafirmação mútua; nós devíamos ter ficado
lado a lado, ou costas contra costas, para nos protegermos juntos daquela violação de nossa
privacidade. Em vez disso, era como se já tivéssemos sido violados. Estava prestes a lhe dizer
isso quando ela voltou, mas agora Clarissa se mostrava alegre e me beijou na boca. Ficamos
abraçados por um minuto na cozinha, trocando palavras carinhosas. Estávamos juntos, não havia
necessidade de que eu fizesse meu discurso. Então ela se afastou, pegou o casaco num movimento
rápido e foi embora. Tive a impressão de que permanecia entre nós um problema não
explicitado, embora sem saber com certeza do que se tratava.
Deixei-me ficar na cozinha, lavando os pratos, terminando o café e recolhendo as folhas da
carta — aqueles pequenos papéis azuis que, por algum motivo, eu associo ao semianalfabetismo.
A espontaneidade de nosso relacionamento, preservada sem nenhum problema durante anos,
subitamente me parecia um engenho complexo, um mecanismo finamente balanceado, como um
antigo relógio de carruagem. Estávamos perdendo a capacidade de mantê-lo funcionando, ou de
fazer isso sem um enorme esforço de concentração. Todas as vezes que eu falara com Clarissa
ultimamente, preocupava-me com as consequências de minhas palavras. Será que eu vinha lhe
dando a impressão de estar secretamente lisonjeado com as atenções de Parry, ou de estimulá-lo
inconscientemente, ou, sem o reconhecer, de estar me deleitando com o poder exercido sobre ele
ou — quem sabe Clarissa assim imaginava — com o poder exercido sobre ela?
A consciência de si próprio acaba com o erotismo. Na cama, apenas uma hora e meia antes,
nós de algum modo não havíamos sido convincentes, como se entre nossas mucosas houvesse se
introduzido um fino pó, ou seu equivalente mental, porém tão tangível quanto a areia da praia.
Sentado à mesa da cozinha depois da partida de Clarissa, desenvolvi uma melancólica sequência
causal que ia do psíquico ao somático — maus pensamentos, pouca excitação, lubrificação
mínima — e terminava na dor.
Que maus pensamentos eram esses? Um deles era a suspeita de que, naquelas paragens dos
sentimentos que desafiam a responsabilidade da lógica, Clarissa considerava que Parry era culpa
minha. Ele era o tipo de fantasma que só eu poderia ter invocado, um espírito nascido de meu
caráter falho e distorcido, ou daquilo que ela chamava carinhosamente de minha inocência. Eu o
havia atraído sobre nossas cabeças e o mantinha lá, apesar de repudiá-lo.
Clarissa disse que eu estava errado, que era ridículo pensar assim, embora não se
aprofundasse sobre sua própria atitude. Mas falou sobre a minha enquanto nos vestíamos de
manhã. Eu estava confuso, ela disse. Eu calçava as botas e não a interrompi. Disse que odiava me
ver de novo às voltas com aquela obsessão de “fazer ciência” quando eu tinha uma ocupação tão
agradável e era tão competente no que fazia. Ela tentava me ajudar, mas nos últimos dias eu me
tornara tão desvairado, tão frenético com relação a Parry, tão... Parou por um instante para
procurar a palavra. Estava na porta, ajeitando em volta da cintura uma saia pregueada forrada de
seda. Na luz matinal, sua palidez fazia com que os olhos parecessem ainda mais verdes. Ela era
linda. Dava a impressão de ser inalcançável, o que foi reforçado pela palavra enfim escolhida.
“... Sozinho, Joe. Você está muito sozinho nisso tudo, até quando fala comigo sobre o assunto.
Sinto que está me excluindo. Há alguma coisa que não me contou. Você não está falando do fundo
do coração.”
Limitei-me a olhar para ela. Ou sempre falei do fundo do coração em momentos como
aquele, ou nunca o fiz e não sei o que isso significa. Mas eu estava pensando em outra coisa.
Ocorreu-me a pergunta que me fazia na época em que a conheci: de que forma um sujeito como
eu, grandalhão e sem nada de bonito, pôde fisgar aquela mulher tão pálida e bela? E então um
novo pensamento ruim: será que ela estava começando a ver que tinha feito um mau negócio?
Clarissa se encaminhava para a cozinha, onde, sem que soubéssemos, a carta de Parry nos
esperava. Ela compreendeu mal minha expressão. Num apelo, e não numa acusação, ela disse:
“Veja só a maneira que você está olhando para mim agora. Está fazendo algum cálculo mental
que eu jamais vou conhecer. Uma contabilidade interna de dupla entrada que você acha ser a
melhor maneira de chegar à verdade. Mas não entende que assim se afasta de mim?”.
Eu sabia que não a convenceria se dissesse: “Só estava pensando como você é linda e que
não te mereço”. Quando me pus de pé, isso me fez pensar que era ela que talvez não me
merecesse. Pronto. Contabilidade, dupla entrada. Clarissa tinha razão, razão em dobro, porque eu
não havia dito nada e ela jamais saberia. Sorri e disse: “Vamos conversar sobre isso durante o
café da manhã”. Mas acabamos falando sobre a carta de Parry e a coisa não correu muito bem.
Depois que ela saiu e limpei a mesa, fiquei sentado na cozinha com o café morno, enfiando
as páginas da carta de Parry de volta no pequeno envelope como se assim pudesse conter os
vírus que invadiam nossa casa. Mais pensamentos ruins: na verdade, um devaneio, porém
precisava deixar que ele seguisse seu curso. Ocorreu-me que Clarissa estava usando Parry como
pretexto. Afinal de contas, sua reação ao caso era bem estranha. Ela parecia estar agravando as
dificuldades ao me envolver com Parry. Como explicar isso? Ela estaria começando a se
arrepender de nossa vida em comum? Teria encontrado alguém? Se quisesse me deixar, seria
mais fácil se pudesse se convencer de que havia algo entre Parry e mim. Teria encontrado
alguém? No trabalho? Um colega? Um aluno? Será que se tratava de um caso exemplar de
autopersuasão não admitida?
Levantei-me. Autopersuasão era um conceito muito caro aos psicólogos evolucionistas. Eu
escrevera um artigo sobre isso para uma revista australiana. Era pura ciência de poltrona, na
seguinte linha: se você vivesse em grupo, como os seres humanos sempre fizeram, a capacidade
de persuadir os outros de suas necessidades e interesses seria fundamental para seu bem-estar.
Às vezes haveria a necessidade de usar astúcia. Obviamente, você seria mais convincente se,
para começar, estivesse realmente persuadido do que iria dizer, não precisando fingir nada. O
tipo de indivíduo capaz de iludir a si próprio tendia a prosperar, assim como seus genes. Desse
modo, os seres humanos se atracam e disputam tanto porque nossa inteligência excepcional está
sempre a serviço de interesses pessoais, existindo uma cegueira seletiva para as fraquezas da
causa que defendemos.
Juro que não sabia para onde ia ao atravessar a cozinha. Chegando à porta do escritório de
Clarissa, imaginei que estava entrando para apanhar meu grampeador. Ao cruzar o pequeno
aposento, talvez tenha me dito que queria ver se o resto de minha correspondência matinal não
estava misturado com a dela, como às vezes ocorria. Havia uma barreira moral a ser
ultrapassada, e suponho que para isso servia a autopersuasão que eu atribuíra a ela.
O escritório não era o lugar onde Clarissa estudava, como ela antes imaginara. O trabalho
de verdade era feito no escritório que tinha na universidade. Com isso, aquele passara a ser um
local de trânsito, um depósito entre a casa e a universidade onde se acumulavam papéis, livros e
ensaios dos alunos. Era também o centro de acompanhamento dos afilhados, no qual suas cartas
eram respondidas, os presentes embrulhados, os desenhos e as lembrancinhas exibidos
desordenadamente. Ela ia lá para fazer pagamentos e escrever aos amigos. Era certo encontrar
em seu escritório selos, envelopes de boa qualidade e cartões-postais comprados nas principais
mostras artísticas do ano anterior.
Chegando à escrivaninha, na verdade agi como se estivesse procurando o grampeador, que
encontrei debaixo de um jornal. Soltei até um grunhido de satisfação. Será que havia alguém no
aposento, uma presença celestial, que eu esperava convencer? Seriam tais gestos os vestígios —
genética ou socialmente programados — da fé numa divindade vigilante? Minha encenação,
assim como minha honestidade, minha inocência e meu amor-próprio, desmoronou no momento
em que enfiei o grampeador no bolso mas não saí do escritório, continuando, em vez disso, a
remexer nos papéis empilhados na escrivaninha.
Claro que não podia mais negar o que estava fazendo. Disse comigo que agia assim para
desfazer nós, para trazer luz e compreensão às trevas do não falado. Tratava-se de uma dolorosa
necessidade. Eu salvaria Clarissa dela própria, enquanto me salvava de Parry. Renovaria os
laços, o amor que nos fizera vicejar durante anos. Se minhas suspeitas fossem infundadas, mais
vital ainda que as descartasse. Abri a gaveta onde ela guardava a correspondência recente. Cada
ato sucessivo, cada momento de penetração mais profunda representava um grau adicional de
vileza. Com o correr dos segundos, eu me importava cada vez menos com o fato de estar me
comportando daquele modo. Algo duro e apertado — uma tela, uma carapaça — se formava para
me proteger de minha consciência. Minhas racionalizações se cristalizaram em torno de um
conceito parcial de justiça: eu tinha o direito de saber o que distorcia as reações de Clarissa com
respeito a Parry. O que a impedia de tomar meu partido? Algum estudantezinho barbudo de pósgraduação
metido a fodedor? Peguei um envelope, posto no correio três dias antes. O endereço
havia sido escrito em itálico, letras pequenas e artisticamente irregulares. Tirei dali uma única
folha. A saudação por si só me deu um aperto no coração. Querida Clarissa. Mas não era nada.
Uma velha amiga do ginásio dando notícias da família. Escolhi outra: seu padrinho, o eminente
professor Kale, nos convidando para almoçar num restaurante no dia do aniversário dela. Já
sabia disso. Olhei de relance para uma terceira carta, de Luke, e depois para uma quarta, uma
quinta, e a inocência cumulativa de toda a correspondência começou a me dar náuseas. Passei a
vista por três outras. Eis aqui uma vida, elas sugeriam, a vida da mulher que você diz amar, ativa,
inteligente, bondosa, complexa. Que está fazendo aqui? Tentando nos manchar com seu veneno!
Saia! Comecei a abrir a última carta, porém mudei de ideia. Estava me sentindo tão asqueroso
que, ao deixar o escritório, apalpei o bolso para confirmar — ou dar a impressão de estar
confirmando — a presença do grampeador.
Peguei um engarrafamento ao entrar na desinteressante Headington. Um ônibus de dois
andares enguiçara depois do sinal, onde a estrada já tinha sido estreitada para obras de
reparação. Cada veículo precisava esperar a vez para se esgueirar pelo espaço disponível.
Minha invasão do escritório tinha sido um marco em nosso declínio e no insidioso avanço de
Parry. Clarissa voltou à noite irradiando calor e até alegria, mas eu estava envergonhado demais
para relaxar. Mais consciência de si próprio. Agora eu realmente tinha algo para esconder dela.
Eu havia cruzado e recruzado a fronteira de minha inocência.
Na manhã seguinte, sentado sozinho no escritório, participei de um processo paralelo, a
morte de um sonho inocente, quando abri a carta do meu professor informando ser impossível
encontrar um lugar para mim na universidade. Além dos problemas relativos aos procedimentos
de admissão e do corte nos recursos dedicados à ciência pura, minha proposta de trabalhar com o
fóton virtual era redundante. “Gostaria de lhe assegurar que isso não ocorre porque já foram
encontradas as respostas, e sim porque as perguntas foram radicalmente reformuladas nos últimos
cinco anos. Você não pôde acompanhar essa redefinição. Meu conselho, Joe, é que prossiga na
vitoriosa carreira que já vem trilhando.”
Eu não estava chegando a lugar algum. Durante vinte e cinco minutos fiquei retido na
Headington High Street, esperando minha vez de passar pelo ônibus, vendo gente entrar e sair do
banco, da farmácia e da videolocadora. Dali a uns quinze minutos estaria na casa da sra. Logan e
não sabia o que queria dizer. Já não eram tão claras as razões para ter vindo. De início, desejava
lhe contar sobre a coragem de seu marido caso ninguém o tivesse feito, mas desde então os
jornais haviam publicado reportagens sobre o assunto. No telefone, ela se mostrou calma e disse
que teria prazer em me receber, o que pareceu motivo suficiente para a visita. Pensei então em
deixar a conversa seguir seu curso normal, porém agora, quase chegando lá, não estava tão
seguro. No começo da manhã, eu ficara muito feliz com a perspectiva de sair de casa e dirigir o
carro para longe da cidade. Esse gostinho já evaporara. Eu cumpria o compromisso de me
encontrar com um sofrimento genuíno, e estava confuso.
Era uma casa geminada, sufocada pela vegetação nova, no coração dos subúrbios
ajardinados do norte de Oxford. Minha teoria era que algum dia redescobriríamos a verdadeira
feiura da arquitetura residencial vitoriana, o que aconteceria tão logo houvéssemos definido qual
deveria ser a aparência de uma casa moderna bem desenhada. Até lá, como a ninguém ocorria
coisa melhor, precisávamos conviver com as casas vitorianas. Quando desci do carro, o
suprimento de sangue para meu cérebro pode ter sofrido uma pequena redução, provocando uma
derrapagem nos meus pensamentos. Não confio em mim, foi o que me veio à mente. Não depois
do ataque à privacidade de Clarissa. Parei diante do portão. Um caminho pavimentado de tijolos
e ladeado de dentes-de-leão e campainhas-azuis levava à porta de entrada. Como seria fácil
demais presumir que a tristeza irradiada pela casa era uma mera projeção de meu estado de
espírito, procurei pelos sinais externos: o jardim negligenciado, cortinas fechadas em duas
janelas do andar de cima e vidro quebrado, talvez uma garrafa de leite, nos degraus junto à porta.
Não confiava em mim. Ao tocar a campainha, pensei outra vez naquele grampeador e em quão
desonestamente somos capazes de arranjar as coisas em nosso proveito. Ouvi um movimento
dentro da casa. Não tinha vindo para falar à sra. Logan sobre a coragem de seu marido, e sim
para explicar, para estabelecer o fato de que eu não tinha nenhuma culpa, que era inocente em sua
morte.
13.
A mulher que veio à porta se surpreendeu ao me ver, e nos olhamos por uns bons dois
segundos antes que eu a recordasse apressadamente de termos marcado a visita pelo telefone. Os
olhos que me fitavam eram pequenos e secos, não avermelhados pela dor, mas fundos e vidrados
pelo cansaço. Ela parecia distante, exposta a um clima muito adverso, como um explorador
solitário no Ártico. Trouxe à porta um aroma quente, de casa mal arejada, dando a impressão de
haver dormido com as roupas que vestia. Usava um longo colar com peças irregulares de âmbar,
no qual sua mão esquerda estava enrolada de um modo pouco elegante. Durante toda a visita,
ficou girando entre o indicador e o polegar uma das peças, a menor de todas. Quando terminei de
falar, ela disse: “É claro, é claro”, assumindo heroicamente um ar de animação e abrindo a porta
de todo.
Eu conhecia o tipo de decoração do norte de Oxford pelas visitas feitas ao longo dos anos a
vários professores de ciência. Era um tipo em extinção, agora que o dinheiro não acadêmico se
apossava dos subúrbios. A última arrumação fora feita na década de 50 ou 60, quando entraram
os livros e alguns móveis — e, desde então, nada mudara. Nenhuma cor exceto marrom e creme.
Nenhum estilo ou influência artística, nenhum conforto e, no inverno, muito pouco calor. Até a luz
era amarronzada, combinando com os cheiros de umidade, pó de carvão e sabão. Provavelmente
não havia aquecimento nos quartos de dormir e, ao que parecia, a casa tinha um único telefone,
uma daquelas velharias de discar mantida no hall de entrada, longe de qualquer cadeira. Linóleo
no chão e, nas paredes, canos encardidos por onde passavam os fios elétricos. Um odor acre de
gás vinha da cozinha, na qual vidros de molhos marrons e vermelhos se enfileiravam sobre
estantes de madeira compensada fixadas por suportes de metal. Houve época em que essa
austeridade era considerada adequada à vida intelectual, combinando, sem nenhuma
sensualidade, com o despojado pragmatismo inglês dirigido às necessidades básicas, ao mundo
da universidade que se estendia além das lojas. No seu tempo, pode ter representado uma reação
incisiva contra os excessos belle époque da geração anterior. Agora, constituía um cenário
perfeito para a infelicidade.
Jean Logan me conduziu a uma atravancada salinha nos fundos, que dava para um jardim
enorme cercado de muros e dominado por uma cerejeira em flor. Abaixou-se com dificuldade
para pegar do chão uma manta em frente a um sofá de dois lugares cujas almofadas e capas
estavam amassadas e emboladas. Apertando a manta contra o estômago com ambas as mãos, me
perguntou se eu queria chá. Acho que, quando toquei a campainha, ela dormia ou repousava
coberta com a manta. Ofereci-me para ajudá-la na cozinha, mas ela soltou um risinho impaciente
e disse que me sentasse.
De tão pesado o ar, era necessário um esforço consciente para respirar. Um aquecedor a gás
queimava com uma chama amarelada e provavelmente emitia monóxido de carbono. Isso se
somava à tristeza enclausurada. Com Jean fora da sala, tentei ajustar a chama e, não conseguindo,
abri a porta-janela uns três centímetros. Só depois endireitei as almofadas e sentei.
Nada ali sugeria a existência de crianças na casa. Enfiado numa alcova, um piano de
armário sustentava pilhas de livros, revistas e publicações acadêmicas; seus castiçais continham
alguns resquícios de galhos secos, talvez os brotos do ano anterior. Os livros de um lado e do
outro da lareira eram coleções, com capas padronizadas, de Gibbon, Macaulay, Carlyle,
Trevelyan e Ruskin. Encostada a uma parede, uma espreguiçadeira de couro escuro exibia um
corte lateral, estufado com jornais amarelados. Tapetes ralos e desbotados cobriam o assoalho,
às vezes se superpondo. De frente para o maligno aquecedor e para o sofá, havia duas cadeiras
de um estilo que me pareceu datar dos anos 40, com braços altos e assentos baixos e quadrados.
Jean ou John Logan certamente herdaram a casa e a mantiveram tal e qual. Perguntei-me se a
sensação de tristeza era anterior à morte de John Logan.
Jean voltou com duas enormes canecas de chá. A essa altura eu já tinha preparado um breve
discurso de abertura, mas, tão logo sentou na beirada da inconfortável cadeira baixa, ela se pôs a
falar.
“Não sei por que o senhor veio. Espero que não seja para satisfazer sua curiosidade. Uma
vez que não nos conhecemos, se não se importa prefiro deixar de receber condolências, consolo,
esse tipo de coisas.” A tentativa de dizer isso sem emoção revelou seus sentimentos de forma
ainda mais clara devido à fala acelerada, à respiração audível. Ela buscou amenizar o efeito com
um sorriso débil, acrescentando: “Quer dizer, prefiro poupá-lo da parte desagradável”.
Concordei com a cabeça e tentei tomar um gole do chá escaldante contido no pequeno balde
de porcelana que eu precisava segurar com ambas as mãos. Para ela, sofrendo como vinha
sofrendo, aquele tipo de encontro social devia ser o equivalente a dirigir embriagada — difícil
avaliar a velocidade certa da conversa, fácil tentar compensar em excesso com manobras
imprudentes.
Era impossível a ver fora da moldura de sua perda. Será que a mancha marrom no suéter
azul-claro de caxemira, debaixo do seio direito, significava algo mais do que o desleixo causado
pelo sofrimento? Os cabelos gordurosos, puxados descuidadamente para trás, estavam presos
num coque irregular com um grosso elástico vermelho. Sofrimento também, ou algum estilo
acadêmico? Pelas histórias publicadas nos jornais, eu sabia que ela ensinava história na
universidade. Observando seu rosto, quem não a conhecesse diria que era uma pessoa sedentária,
com um forte resfriado. O nariz afilado desabrochava em tons vermelhos na ponta e em volta das
narinas devido à fricção dos lenços de papel úmidos. (Eu tinha visto a caixa vazia no chão junto
a meus pés.) No entanto, era um rosto atraente, quase bonito, quase banal, um longo oval pálido e
de traços límpidos, com lábios finos e sobrancelhas e cílios quase invisíveis. Os olhos tinham
uma cor irresoluta de areia. Ela dava a impressão de ser altivamente independente e de perder a
paciência com facilidade.
“Não sei se algum dos que estavam lá a procurou. Acredito que não. Sei que a senhora não
precisa que eu lhe diga que seu marido era um homem muito corajoso, mas talvez haja coisas que
gostaria de saber sobre o que aconteceu. A audiência da promotoria só vai ocorrer daqui a seis
semanas...”
Parei de falar, sem saber por que a promotoria viera à minha mente. Jean Logan permanecia
sentada na beirada da cadeira, debruçada sobre a caneca e soprando o vapor quente no rosto,
talvez para aliviar a ardência nos olhos. “O senhor achou que eu gostaria de repassar em detalhe
como ele perdeu a vida.”
Seu amargor me surpreendeu, fazendo com que eu a encarasse. “Podia haver alguma coisa
que a senhora quisesse saber”, retruquei, falando mais devagar do que antes. Seu antagonismo me
deixava mais à vontade que sua tristeza...
“Há coisas que quero saber”, disse Jean Logan, a raiva voltando de repente à voz. “Tenho
muitas perguntas para muitas pessoas. Mas não acredito que vão me dar as respostas. Fingem que
nem entendem as perguntas.” Fez uma pausa e engoliu em seco. Eu havia acionado uma voz que
martelava em sua cabeça, sintonizando nos pensamentos que a atormentavam durante toda a noite.
Como seu sarcasmo era teatral demais, vibrante demais, senti por trás dele o peso e o cansaço da
repetição. “É claro que eu é que sou a louca. Sou irrelevante, estou atrapalhando. Não é
conveniente responder às minhas perguntas porque elas não se coadunam com a história. Calma,
sra. Logan, calma! Não se preocupe com coisas que não têm a ver com a senhora e que, de todo
modo, não são importantes. Sabemos que se trata do seu marido, o pai de seus filhos, mas
estamos tomando todas as providências, por isso, por favor, não atrapalhe...”
Pai e filhos foram as palavras que a desmancharam. Descansou a caneca, puxou uma bola
de lenços de papel da manga do suéter e a apertou, espremeu, no espaço entre os olhos. Tentou se
levantar da cadeira, mas o assento baixo a derrotou. Senti aquele torpor que nos domina quando,
num grupo, alguém parece monopolizar toda a emoção disponível. Não havia nada que eu
pudesse fazer naquela hora senão esperar. Jean era sem dúvida daquelas mulheres que odeiam
ser vistas chorando. Nos últimos tempos, teria se acostumado com isso. Olhei mais além de onde
ela estava e, no jardim, detrás da cerejeira, vi o primeiro sinal da existência das crianças.
Parcialmente oculta por alguns arbustos, lá havia uma tenda marrom, com formato de iglu,
erguida numa área gramada. Como seus esteios tinham tombado num dos lados, a estrutura se
inclinava sobre um canteiro de rosas. Tinha uma aparência de coisa encharcada, abandonada.
Será que ele havia montado a tenda para os filhos pouco antes de morrer, ou eles a tinham
erguido para fazer contato com o espírito que gostava de esportes radicais e abandonara a casa?
Talvez necessitassem de algum lugar para fugir da penumbra de tristeza que a mãe projetava ao
seu redor.
Jean Logan continuou em silêncio. Com as mãos fortemente entrelaçadas diante de si, olhava
para o chão, precisando ainda permanecer a sós por mais tempo. A pele entre o nariz e o fino
lábio superior estava em carne viva. Meu entorpecimento desapareceu quando percebi que
presenciava uma demonstração de amor e a lenta agonia de sua destruição. Imaginando o que
significaria perder Clarissa, por morte ou por minha própria idiotice, me subiu pelas costas uma
sensação de formigamento e senti que estava sufocando na atmosfera malsã da salinha. Devia
voltar com urgência para Londres e salvar nosso amor. Não formulei nenhum plano de ação, mas
ficaria feliz se pudesse me pôr de pé e inventar uma desculpa para ir embora. Jean Logan ergueu
a vista e disse: “Desculpe. Estou agradecida pelo senhor ter vindo. Foi gentil de sua parte fazer
essa viagem até aqui”.
Dei uma resposta cortês e convencional. Os músculos de minhas coxas e de meus braços
estavam tensos, como se prontos a me empurrar para fora do sofá e me levar de volta para Maida
Vale. O que vi no sofrimento de Jean reduziu minha própria situação a alguns elementos bem
simples, uma tabela periódica de mero bom senso: quando o perder, você saberá a dádiva que
era o amor. Você vai sofrer tanto quanto ela. Por isso, volte e lute para salvaguardá-lo. Tudo
mais, inclusive Parry, é irrelevante.
“O senhor sabe, há coisas que eu gostaria de saber...”
Ouvimos a porta da frente se abrir e fechar, além de passos no hall, porém nenhum som de
vozes. Ela fez uma pausa, como se esperasse ser chamada. Então, os passos — talvez de duas
pessoas — se afastaram escada acima, e Jean relaxou. Como ela estava prestes a dizer ou
perguntar alguma coisa importante, eu não tinha como sair. Nem conseguia fazer com que minhas
pernas se descontraíssem. Queria sugerir que fôssemos conversar no jardim, sob as flores da
cerejeira, respirando o ar puro.
“Havia alguém com meu marido. O senhor reparou?”
Balancei a cabeça. “Lá estavam minha amiga Clarissa, dois trabalhadores rurais, um homem
chamado...”
“Disso eu sei. Mas havia alguém no carro com John quando ele parou. Alguém saiu do carro
junto com ele.”
“Ele veio do outro lado do campo. Só o vi quando todos corríamos na direção do balão.
Nessa hora não havia mais ninguém, tenho certeza disso.”
Jean não estava satisfeita. “Dava para o senhor ver o carro dele?”
“Dava.”
“E não viu ninguém ao lado do carro, observando o que acontecia?”
“Se houvesse alguém lá, eu me lembraria.”
Ela desviou o olhar. Não eram essas as respostas que desejava. Assumiu o tom de voz de
quem decide começar tudo outra vez. Não me importei. Eu queria sinceramente ajudar.
“O senhor se lembra se a porta do carro estava aberta?”
“Estava, sim.”
“Uma porta ou as duas?”
Hesitei. A imagem invocada por mim mostrava as duas portas abertas, mas eu não tinha
certeza e não queria induzi-la em erro. Havia algo em jogo ali, talvez uma potente fantasia. Eu
não queria alimentá-la. Todavia, por fim disse com certa relutância: “As duas. Não tenho certeza
absoluta, mas acho que eram as duas”.
“E por que o senhor acha que haveria duas portas abertas se ele estivesse sozinho?”
Dei de ombros, esperando que ela me dissesse. Jean rolou a peça de âmbar entre os dedos
mais rápido do que antes. Uma excitação dolorida ocupara o lugar da tristeza. Mesmo sem saber
de nada, entendi que a comprovação desse fato significaria ainda mais dor. Ela precisava ouvir o
que não queria saber. Mas antes tinha perguntas a fazer, de forma algo brusca, no tom de um
advogado agressivo. Naquele momento, eu substituía o objeto de seu amargor.
“Me diga uma coisa. Qual é a direção de Londres saindo daqui?”
“Para leste.”
“Em que direção ficam as Chilterns?”
“Na direção leste.”
Ela me encarou como se uma prova cabal houvesse sido produzida. Mantive a expressão
neutra de quem só quer ajudar. Ela estava sendo obrigada a me levar pela mão até o centro de seu
tormento. Guardara aquilo por tanto tempo na mente que lhe era difícil esconder a irritação ao
formular as perguntas. “Londres fica a que distância daqui?”
“Mais ou menos noventa quilômetros.”
“E as Chilterns?”
“Pouco mais de trinta.”
“O senhor dirigiria de Oxford para Londres passando pelas Chilterns?”
“Bem, a autoestrada corta direto toda a região.”
“Mas o senhor iria para Londres passando por Watlington e pegando todas as estradinhas
que há por lá?”
“Não.”
Jean Logan olhou fixamente para o gasto tapete persa sob seus pés, absorta no raciocínio,
mergulhada numa infelicidade que jamais poderia ser resolvida numa confrontação com o
marido. Ouvi passos no aposento do andar de cima, assim como uma voz de mulher ou de
criança. Passados dois ou três minutos, perguntei: “Ele era esperado em Londres naquele dia?”.
Ela fechou os olhos e fez que sim com a cabeça. “Numa conferência”, sussurrou, “uma
conferência médica.”
Pigarreei baixinho. “Provavelmente há uma explicação inocente para tudo isso.”
Com os olhos ainda cerrados, sua voz assumiu um tom grave e monocórdio, como se ela
houvesse sido hipnotizada para poder falar acerca daquele dia indescritível. “Quem trouxe o
carro foi o sargento de polícia da delegacia local. Veio num guincho porque eles não
conseguiram achar as chaves. Elas deviam estar no carro ou no bolso de John. Por isso olhei
dentro do carro. Então perguntei ao sargento se eles tinham feito uma busca no carro, se tinham
procurado por impressões digitais. E ele disse que não fizeram busca alguma nem procuraram
por impressões digitais. Sabe por quê? Porque não tinha havido nenhum crime...”
Ela abriu os olhos para se certificar de que eu havia entendido a importância de suas
palavras, todo o impacto do absurdo que elas representavam. Acho que eu não tinha, e abri os
lábios para repetir a palavra, porém ela a pronunciou antes, agora em voz bem alta.
“Crime! Não tinha havido nenhum crime!” De repente, ela se pôs de pé e, atravessando a
sala, pegou um saco plástico num canto onde havia livros empilhados até a altura da cintura.
Voltou e o entregou a mim. “Veja. Vamos. Diga-me o que é isso.”
Era um saco branco, decorado com figuras de crianças dançando em meio às letras do nome
de um supermercado, que continha no fundo algo bem pesado. Tão logo o peguei, senti o cheiro
que exalava, o odor desagradável e penetrante de carne apodrecendo.
“Pode continuar. Não vai mordê-lo.”
Prendendo a respiração, abri o saco e, por um momento, seu conteúdo não fez sentido. Dava
para ver folhas de plástico envolvendo uma pasta acinzentada, uma esfera de papel de alumínio,
uma massa marrom sobre um pedaço de papelão quadrado. Mais ao fundo, parcialmente
encoberto por papéis, divisei um vidro arredondado de um vermelho bem escuro. Era uma
garrafa de vinho, motivo por que o saco estava tão pesado. E por fim tudo ficou claro. Vi duas
maçãs.
“É um piquenique”, eu disse. Senti uma ligeira náusea que não se devia inteiramente ao
cheiro.
“Estava no chão do carro, junto ao banco do passageiro. Ele ia fazer um piquenique com
ela. Em algum lugar do bosque.”
“Ela?” Talvez a pergunta pudesse parecer retórica, mas achei que devia continuar a resistir
ao poder de sugestão de sua fantasia. Jean puxava algo do bolso da saia. Pegou o saco de minha
mão e o substituiu por um pequeno lenço de seda com listas de zebra estilizadas em preto e cinza.
“Cheire”, ela ordenou, repondo cuidadosamente o saco no canto da sala.
Tinha um cheiro salgado, de lágrimas ou ranho, se é que não era do suor da mão fechada de
Jean.
“Mais fundo”, ela disse. Estava curvada sobre mim, rígida e feroz no desejo de obter minha
cumplicidade.
Levantei o pedaço de seda até a altura do rosto e cheirei de novo. “Desculpe”, eu disse.
“Não sinto nenhum cheiro especial.”
“É água de rosas. Não sente o cheiro?”
Tomou o lenço de minhas mãos. Eu já não merecia segurá-lo. “Nunca usei água de rosas em
minha vida. Achei isso no banco de passageiro”, ela disse. Sentou-se e deu a impressão de que
aguardava um comentário meu. Será que achava que, como homem, eu de alguma forma
participara da transgressão de seu marido, que eu ali o representava e devia abrir o jogo,
confessando tudo? Continuei calado e ela acrescentou: “Olhe, se o senhor viu alguma coisa, por
favor, não pense que deve me proteger. Eu preciso saber”.
“Sra. Logan, não vi ninguém com seu marido.”
“Pedi que eles tirassem as impressões digitais no carro. Eu poderia descobrir quem era essa
mulher...”
“Só se ela tivesse uma ficha na polícia.”
Jean não me ouviu. “Preciso saber quanto tempo isso durava, que significado tinha. O
senhor compreende, não?”
Concordei com um gesto da cabeça, pois realmente estava convencido de que a
compreendia. Ela necessitava avaliar a extensão de sua perda, saber qual o tamanho de seu
pesar. Precisava saber tudo e sofrer por conta do que soubesse, antes de ter alguma paz. A
alternativa era a tortura do desconhecimento eterno e uma vida feita de suspeitas, intuições
melancólicas, pensamentos negativos.
“Sinto muito”, comecei a dizer, mas ela me interrompeu.
“Simplesmente preciso encontrá-la. Tenho de falar com ela. Ela deve ter visto a coisa toda.
E então fugiu. Confusa, enlouquecida. Quem sabe?”
“Acho que existe uma boa chance de que ela entre em contato com a senhora. Talvez não
resista à tentação de visitá-la.”
“Se ela chegar perto desta casa”, Jean Logan disse sem afetação, enquanto a porta atrás de
nós se abria e duas crianças entravam na sala, “eu mato essa mulher. Deus me perdoe, mas eu
faço isso.”
14.
Era com uma ponta de tristeza que Clarissa às vezes dizia que eu poderia ser um pai
maravilhoso. Explicava que eu tinha um jeito especial de lidar com as crianças, me comunicando
facilmente com elas sem a menor condescendência. Como nunca cuidei de nenhuma criança por
períodos mais longos, jamais enfrentei os verdadeiros testes do sacrifício paternal, porém acho
que sou bom em matéria de ouvir e de conversar. Conheço bastante bem os sete afilhados dela. Já
os recebemos durante os fins de semana, levamos alguns para passar férias no exterior e
cuidamos devotadamente por uma semana de duas meninas — Felicity e Grace — que fizeram
xixi na cama enquanto seus pais se estraçalhavam nas audiências sobre o divórcio. Dei uma boa
ajuda ao afilhado mais velho de Clarissa, um tempestuoso garoto de quinze anos inebriado pela
cultura pop e pelas normas imbecis que regem a credibilidade entre seus pares. Levei-o para
beber comigo e o convenci a não abandonar o colégio. Quatro anos depois, ele ia muito bem nos
estudos de medicina em Edimburgo.
Apesar disso, sempre tenho de esconder um pequeno desconforto ao encontrar uma criança.
Vejo-me pelos olhos dela e me lembro como considerava os adultos quando era pequeno. Eles
me pareciam umas criaturas cinzentas, que gostavam demais de ficar sentadas e bater papo,
acostumadas demais a não ter nenhuma ambição. Meus pais, seus amigos, tios e tias, todos
pareciam ter conformado suas vidas às prioridades de pessoas remotas e mais importantes. Para
uma criança, naturalmente, se tratava apenas de uma impressão muito limitada. Anos depois,
descobri em certos adultos dignidade e vibração; mais tarde ainda, essas qualidades, ou ao
menos a primeira, foram manifestadas com clareza por meus pais e pela maioria dos que os
cercavam. Entretanto, quando eu era um ativo e petulante garoto de dez anos, me sentia culpado
ao entrar numa sala cheia de adultos, procurando cortesmente ocultar a alegria que desfrutava
fora dali. Se uma pessoa idosa se dirigia a mim — todos eram idosos —, ficava preocupado por
não saber se meu rosto expressava toda a pena que eu sentia.
Por isso, ao me voltar na direção dos filhos de Logan, eu me vi pelos olhos deles: mais um
estranho sem graça entre os muitos que ultimamente desfilavam pela casa, um sujeito grandalhão
num terno azul de linho amassado, no topo da cabeça a rodela de calvície visível de onde eles se
encontravam. O que ele tinha vindo fazer ali era algo incompreensível que não lhes competia
saber. Acima de tudo, era outro homem, mas não o pai deles. A garota devia ter dez anos, o
menino dois a menos. Atrás deles, ainda no hall, vinha a babá, uma jovem de rosto alegre
vestindo um training. As crianças me encararam e eu as encarei de volta, enquanto a mãe delas
pronunciava sua ameaça de morte. Ambos usavam calças jeans, tênis e suéteres com personagens
de Disney. Tinham um jeitão meio desarrumado que era bastante simpático, e não me pareceram
arrasados.
“É muito feio matar alguém”, disse o menino sem tirar os olhos de mim. Sua irmã soltou uma
risadinha tolerante e, como Jean estava dando instruções à babá, eu disse ao garoto: “É só uma
maneira de falar. É o que a gente diz quando não gosta de alguém”.
“Se é feio matar alguém”, ele respondeu, “então também é feio dizer que vai matar.”
“Você já ouviu alguém dizer: ‘Estou com tanta fome que sou capaz de comer um cavalo’?”
Ele refletiu cuidadosamente. “Eu mesmo já disse isso”, admitiu.
“E não é feio comer um cavalo?”
“É feio aqui”, disse a menina. “Mas não na França. Lá eles comem cavalos o tempo todo.”
“É verdade”, concordei. “Mas, se alguma coisa é feia aqui, não entendo por que fica certa
quando se atravessa o canal da Mancha.”
Ainda lado a lado, os dois chegaram mais perto de mim. Após o que se passara, era um
imenso alívio ter uma discussão sobre o relativismo moral.
A menina disse: “Em cada país as pessoas têm ideias diferentes. Na China, é uma coisa fina
arrotar depois da refeição”.
“Verdade”, comentei. “Quando estive no Marrocos, me disseram para nunca dar um tapinha
carinhoso na cabeça das crianças.”
“Odeio gente que faz isso”, disse a menina, sendo interrompida pela voz excitada do irmão:
“Papai viu eles cortarem a cabeça de um bode na Índia”.
“E eram sacerdotes”, a menina acrescentou. A menção ao pai não causou nenhuma mudança
aparente, nenhum remorso. Ele era ainda uma presença viva.
“Então”, perguntei, “será que o mundo não poderia chegar a um acordo e aceitar algumas
regras?”
O garoto teve seu momento de triunfo: “Não matar ninguém”. Olhei para a menina, que
concordou. E, ao ouvir o som da porta se fechando, todos nos voltamos na direção de Jean, que
terminara de falar com a babá.
“Essa é a Rachael e esse é o Leo. E esse é o senhor...”
“Joe”, completei.
Leo sentou-se no colo da mãe, que entrelaçou as mãos fortemente em torno de sua cintura.
Rachael caminhou até a janela e olhou para o jardim. “Aquela tenda...”, disse consigo, baixinho.
“Tenho de encontrá-la.” Jean Logan retomou nossa conversa de forma pragmática. “Pena
que o senhor não a viu. Mas talvez ainda possa me ajudar. A polícia é inteiramente inútil. Um dos
outros pode ter visto alguma coisa. Eu mesma não posso falar com eles, mas, se o senhor não se
importar...”
“Do que você está falando, mamãe?”, Rachael perguntou da janela. Pelo tom ansioso e
protetor da pergunta, feita de forma hesitante, pude sentir o quanto a menina vinha sofrendo.
Devia ter havido cenas cuja repetição ela temia e precisava evitar.
“Nada, querida. Nada que interesse a você.”
Por mais que quisesse, não consegui pensar numa desculpa para me negar a atender seu
pedido. Será que minha vida ia ficar subordinada totalmente às obsessões dos outros?
“Tenho os números de telefone dos empregados das fazendas”, ela disse. “Não deve ser
difícil achar o do rapaz. Tenho o endereço dele. Chama-se Parry. Três telefonemas, é tudo que
lhe peço.”
Era complicado demais recusar. “Está bem”, eu disse, “vou fazer isso.” No instante mesmo
em que concordava, percebi que poderia censurar a informação recebida e, assim, talvez poupar
maiores tristezas à família. Será que Rachael e Leo concordariam que há momentos em que é
correto mentir? O menino escorregou do colo da mãe e se juntou à irmã. Tendo me agradecido
com um sorriso, Jean alisou a saia com as palmas das mãos, sugerindo com aquele gesto que já
era hora de eu ir embora. “Vou copiar os números para o senhor.”
Fiz que sim com a cabeça e disse: “Olhe, sra. Logan. Seu marido era um homem muito
decidido e corajoso. A senhora não deve perder isso de vista”. Rachael e Leo estavam brincando
perto da janela e fui obrigado a levantar a voz. “Ele estava decidido a salvar aquele menino e
lutou até o final. As linhas de alta-tensão eram um perigo muito sério. O garoto podia muito bem
morrer. Seu marido simplesmente não largou a corda, e envergonhou todos nós que estávamos
lá.”
“Vocês todos estão vivos”, ela retrucou, fazendo uma pausa e franzindo o cenho quando Leo
soltou um guincho atrás das longas cortinas que ladeavam a porta-janela. Sua irmã fazia cócegas
nele por cima do tecido. Jean ia lhes dizer que parassem com o barulho, porém mudou de ideia.
“Não pense que isso não está passando pela minha cabeça o tempo todo. John era montanhista,
explorador de cavernas e um bom marinheiro. Mas também era médico. Participava de equipes
de resgate e era muito, muito cauteloso.” A cada “muito” apertava a mão ainda com mais força.
“Nunca correu riscos bobos. Costumavam brincar com ele nas escaladas porque estava sempre
considerando as possibilidades de uma mudança no tempo, pedras soltas ou perigos que ninguém
nem imaginara. Era o pessimista do grupo. Alguns achavam até que era medroso. Mas John não
se importava. Nunca correu riscos desnecessários. Logo que Rachael nasceu, ele abandonou as
escaladas mais difíceis. E é por isso que essa história não faz sentido.” Ela começou a se voltar
na direção das crianças, que agora faziam mais barulho do que antes, porém queria acabar de me
contar tudo aquilo e a algazarra lhe garantia maior privacidade. Voltou a me encarar. “Esse
negócio de se agarrar à corda... O senhor entende, pensei muito nisso e sei o que o matou.”
Finalmente havíamos chegado ao cerne da questão. Eu ia ser acusado, e tinha de interrompêla.
Queria antes contar minha versão. À guisa de encorajamento, me ocorreu a imagem de algo,
alguém, caindo um instante antes que eu soltasse a corda. Mas também me lembrava do
ensinamento acautelatório dos tempos distantes em que trabalhava no laboratório: ver é crer.
“Sra. Logan”, eu disse. “A senhora talvez tenha ouvido alguma coisa de um dos outros, não sei.
Mas posso lhe dizer com toda a honestidade...”
Ela balançava a cabeça enquanto eu falava. “Não, não. O senhor precisa me ouvir. O senhor
estava lá, mas sei mais sobre o que aconteceu do que o senhor. John tinha outra faceta,
compreende? Ele sempre queria ser o melhor, mas não era mais o atleta excepcional que foi um
dia. Já tinha quarenta e dois anos. Isso o machucava. Era uma coisa que ele não conseguia
aceitar. E, quando os homens começam a sentir isso... Nunca soube nada sobre essa mulher. Não
suspeitava de nada, nunca me ocorreu essa possibilidade, nem sei se ela foi a primeira, mas de
uma coisa estou certa. Ela estava observando John e, sabendo disso, ele precisava se exibir para
ela, tinha de provar que era o primeiro a pegar a corda e o último a largá-la, em vez de fazer
como de costume — dar uma parada e decidir qual a melhor linha de ação. É o que ele teria feito
sem ela, e isso é patético. Estava se mostrando para uma mulher, sr. Rose, e agora todos nós
estamos sofrendo por causa disso.”
Essa era uma teoria ou uma variante que somente a infelicidade, a demência da dor, poderia
conceber. “Mas a senhora não pode ter certeza disso”, protestei. “É tão extraordinário, tão
elaborado. Não passa de uma hipótese. A senhora não pode se permitir acreditar nela.”
Ela me lançou um olhar de pena antes de se voltar para as crianças. “Assim já é demais!
Não podemos nem conversar!” Então se levantou, impaciente. Leo se enroscara na cortina,
deixando apenas os pés visíveis. Rachael saltitava em torno dele, cantarolando alguma coisa e o
cutucando, enquanto ele reagia também cantando. A menina se afastou alguns passos enquanto sua
mãe desenrolava o irmão. O tom de Jean Logan não era de reprimenda, e sim de uma mera
advertência carinhosa. “Desse jeito você derruba a vara da cortina outra vez. Já te disse isso
ontem e você me prometeu.”
Leo reapareceu corado e feliz. Trocou um olhar com a irmã, que deu uma risadinha. Depois
se recordou da minha presença e pediu desculpas à mãe sabendo que eu o ouviria: “Mas aqui é
nosso palácio, eu sou o rei e ela é a rainha, e só posso sair quando ela dá o sinal”.
Leo continuou a falar e Jean o censurou de forma muito amena. No entanto, eu já não ouvia
mais nada. Era como se uma renda delicada se reparasse sozinha por força de sua própria
complexidade. Tudo veio de um golpe, parecendo impossível que eu houvesse esquecido: a
grande residência era o palácio de Buckingham, o rei era Jorge v, a mulher do lado de fora do
palácio era francesa, tudo se passando pouco após a Primeira Grande Guerra. Ela viajou para a
Inglaterra várias vezes a fim de se postar diante dos portões do palácio na esperança de ver o rei,
por quem estava apaixonada. Nunca o havia encontrado e nunca o encontraria, mas ele
monopolizava todos os seus pensamentos.
Já de pé, reparei que Rachael me dizia alguma coisa que não entendi, embora eu
concordasse com a cabeça o tempo todo.
A tal mulher estava convencida de que toda a sociedade londrina comentava seu caso de
amor com o rei, que estava muito perturbado. Numa das visitas, não achando vaga em nenhum
hotel, concluiu que o rei usara de sua influência para impedir que ela permanecesse em Londres.
Entretanto, tinha certeza absoluta de que o rei a amava. Ela correspondia a seu amor, conquanto
também se queixasse amargamente dele. Jorge v a rechaçava, embora nunca deixasse de
alimentar suas esperanças. Enviava-lhe sinais que só ela compreendia, fazendo-a saber que —
por mais inconveniente, embaraçoso e inapropriado que fosse aquilo — ele a amava e sempre
amaria. Mergulhada nas trevas do delírio, acreditava que o rei usava as cortinas do palácio de
Buckingham para se comunicar com ela. Seu amor desesperado e amargurado foi identificado
como uma síndrome pelo psiquiatra francês que a tratou, cujo nome passou a representar aquele
tipo de paixão mórbida: De Clérambault.
Quando Jean Logan me viu de pé, presumiu que eu estivesse de partida e, indo até uma
escrivaninha, anotou nomes e números num pedaço de papel.
As crianças se aproximaram de novo e Rachael disse: “Lembrei de outra”.
“É mesmo?”, perguntei. Era difícil concentrar-me nela.
“A professora disse que em quase todo o mundo as pessoas não têm lenços e, por isso, não é
feio assoar o nariz assim.” Pinçou o nariz com o indicador e o polegar, afastou os outros dedos
da narina, e fez um barulhão ao soprar o ar para fora. Seu irmão soltou um grito de alegria.
Peguei o papel dobrado que Jean me ofereceu e, todos juntos, passamos da sala para o hall
marrom a caminho da porta de entrada. Antes mesmo de alcançá-la, eu já voltara a pensar em De
Clérambault. Na síndrome de De Clérambault. O nome soava como um toque de clarim me
convocando para minhas próprias obsessões. Agora eu tinha uma pesquisa a fazer e sabia
exatamente por onde começar. Uma síndrome oferecia um referencial de predição e certo alívio.
Eu estava quase feliz quando ela abriu a porta e nós quatro nos amontoamos no caminho
pavimentado de tijolos para dizer adeus. Era como se finalmente eu houvesse sido convidado por
meu velho mestre para reassumir a função de pesquisador.
Jean Logan me agradeceu pela visita e eu disse que telefonaria tão logo houvesse feito as
chamadas. Agora que me preparava para sair, as crianças se distanciaram. Eu voltava a ser um
estranho. Pinçando o nariz, produzi uma versão bem-comportada do som de Rachael.
Condescendentes, eles me retribuíram com sorrisos forçados. Obriguei-os a apertar minha mão.
Caminhando em direção à rua, não pude deixar de sentir que minha partida os devolveria à
ausência do pai. A família estava agrupada diante da porta, as mãos de Jean pousadas nos
ombros das crianças. Tendo chegado ao carro e aberto a porta, me voltei para dar o último adeus,
porém os três já haviam entrado em casa.
15.
Na volta, saí da autoestrada e rumei para o sul, onde se erguem as Chilterns, seguindo até o
campo. Estacionei exatamente onde Logan o fizera, com o carro meio inclinado no acostamento
gramado. De pé, ao lado da porta do passageiro, ela teria tido uma visão desimpedida de todo o
drama, do balão arrastando a cesta pelo campo até a luta com as cordas e a queda, embora não
pudesse ter visto o ponto onde ele se chocara contra o solo. Imaginei-a bonita, com vinte e
poucos anos, frenética, subindo desesperada a estrada até a cidadezinha mais próxima. Ou teria
tomado a direção oposta, descendo para Watlington. Fiquei lá no lugar dela, pensando nos
telefonemas e bilhetes secretos que teriam precedido o piquenique. Talvez se amassem. Será que,
como honrado chefe de família, ele foi torturado pela culpa e pela indecisão? E que reviravolta
violenta ela sofrera, do esperado encontro com o homem que adorava para o pesadelo, o
momento em torno do qual sua vida passaria a girar. Malgrado o horror, antes de começar a
correr ela se lembrou de arrancar algumas coisas do carro — o casaco e a bolsa, mas não o
material do piquenique e o lenço de pescoço. Eu compreendia perfeitamente que ela não tivesse
se apresentado. Ficou em casa, jogada sobre a cama, lendo os jornais e chorando sem parar.
Sem nenhum propósito claro, comecei a atravessar o campo. Tudo parecia diferente. Em
menos de duas semanas, as sebes e árvores que o circundavam tinham ficado mais encorpadas à
medida que avançava a primavera, enquanto a relva dava sinais da pujança futura. Como numa
reconstituição policial, tomei a trilha que Clarissa e eu havíamos percorrido e cheguei ao local
onde nos protegêramos do vento. Era como se retornasse a algum lugar vagamente lembrado dos
tempos de criança. Estávamos tão felizes com o reencontro, tão à vontade um com o outro — e
agora eu não era capaz de imaginar o caminho de volta para aquele estado idílico.
De lá, fui lentamente para o centro do campo e refiz o trajeto pelo qual dias antes correra.
Tendo chegado ao ponto em que nossos destinos convergiram, caminhei até a borda da escarpa
seguindo o rumo que o vento imprimira ao balão. Lá embaixo podia ver a vereda que trouxe
Parry para dentro de minha vida. Atrás de mim, onde eu parara o carro, Logan havia estacionado.
Daqui todos nós acompanhamos sua queda, mas foi também nesse lugar que meu olhar e o de
Parry se cruzaram, nascendo ali sua paixão por mim, uma paixão cuja morbidez eu agora estava
impaciente para pesquisar.
Foram essas as estações da minha via-sacra. Desci a colina, entrando no campo para chegar
à parada seguinte. As ovelhas haviam sumido e a estradinha do outro lado da cerca viva era mais
próxima do que eu me recordava. Procurei uma reentrância no solo, porém só vi o começo de
uma formação de urtigas que chegava bem perto da porteira que o policial tinha pulado. Foi aqui
que Parry quis rezar, e aqui iniciei minha caminhada de volta naquele dia. Repeti os movimentos,
tentando entender como ele vira rejeição em minha postura.
A subida da colina foi mais penosa do que na vez anterior, quando a adrenalina dera força
às minhas pernas e acelerara meus pensamentos. Agora havia uma profunda relutância nos
músculos das coxas, o coração martelava nos ouvidos. Parando no topo para recuperar o fôlego,
olhei a meu redor: por volta de quarenta hectares de campos e um declive acentuado. Agora que
estava aqui, tinha a sensação de nunca haver partido de verdade, pois esse era o palco, o pano de
fundo pintado de verde de minhas preocupações — e eu não teria me surpreendido muito caso se
aproximassem de mim, vindos de diferentes direções, Clarissa, John e Jean Logan, a mulher sem
nome, Parry e De Clérambault. Imaginando isso, vendo que formavam um semicírculo a fim de
me empurrar para a beira da escarpa, não tive dúvida de que vinham me acusar coletivamente —
mas de quê? Se soubesse, não ficaria tão exposto a ser denunciado. Uma lacuna, uma deficiência,
uma falha mental tão difícil de descrever quanto a primeira aula de cálculo diferencial. Eu
sempre escutaria Clarissa, embora atualmente um não confiasse no julgamento do outro, porém
naquele momento quem me fascinou foi o francês que usava um jaquetão.
Comecei a atravessar o campo em direção ao carro. Era de fato uma ideia simples, mas o
autor de uma teoria sobre o amor patológico, à qual dera seu nome como um noivo no altar,
certamente deveria revelar, mesmo involuntariamente, a natureza do próprio amor. Para existir
uma patologia, deve haver um conceito de saúde, ainda que não explicitado. A síndrome de De
Clérambault era um espelho escuro e deformador que refletia, parodiando, um mundo mais
luminoso onde é saudável a entrega impetuosa dos amantes. (Caminhei mais depressa. Meu carro
se encontrava a uns quatrocentos metros de distância e, repassando na memória o que vira
naquele dia, tive certeza de que as portas da frente estavam totalmente abertas, como asas.)
Doença e saúde. Em outras palavras, o que eu poderia aprender sobre Parry que me levasse de
volta a Clarissa?
O tráfego estava pesado na entrada de Londres e só duas horas depois estacionei diante de
nosso prédio. No caminho havia pensado que ele poderia estar lá, mas, quando desci do carro e o
vi esperando por mim, meu coração deu um salto. Parei antes de atravessar a rua. Parry se
posicionara na entrada de tal forma que eu teria de passar bem rente a ele. Usava roupas formais
— terno preto, camisa branca abotoada até em cima, sapatos pretos de verniz estalando de
brilho. Olhava fixamente para mim, porém sua expressão não me dizia nada. Caminhei
rapidamente em sua direção, imaginando que passaria raspando nele e entraria no edifício, mas
Parry se plantou no meio do caminho, me obrigando a parar ou empurrá-lo. Dava a impressão de
estar tenso, talvez enraivecido. Segurava um envelope.
“Você está bloqueando meu caminho”, eu disse.
“Você recebeu minha carta?”
Decidi tentar evitá-lo passando o mais rente possível à cerca de alfeneiros que ladeava o
caminho, mas ele fechou a brecha e eu não queria tocá-lo.
“Deixe-me passar senão chamo a polícia.”
Ele balançou a cabeça energicamente, como se houvesse me ouvido convidá-lo para tomar
um drinque. “Mas quero que você leia isso antes”, ele disse, “é muito importante.”
Peguei o envelope com a esperança de que, depois disso, ele sairia da frente. Mas não foi o
suficiente. Tinha algo a me dizer. Primeiro, olhou por cima do ombro para a criatura invisível
que o acompanhava. Falou com uma voz ofegante, o coração claramente disparado. Ele havia se
preparado para aquele momento.
“Paguei um pesquisador e ele me arranjou todos os seus artigos. Li tudo ontem de noite,
trinta e cinco ao todo. Também tenho seus livros.”
Limitei-me a olhar para ele e aguardei. Algo se alterara em sua atitude. O desejo
permanecia lá, mas havia também certa dureza, uma mudança em volta dos olhos. Eles pareciam
menores.
“Eu sei o que você está tentando fazer, mas não vai conseguir nunca. Nem que escreva um
milhão de artigos e eu leia todos, você nunca destruirá o que eu tenho. Isso não pode ser
arrancado de mim.”
Ele parecia esperar que eu o contradissesse, porém cruzei os braços e continuei à espera,
concentrando minha atenção no corte que ele havia feito com a gilete ao se barbear, uma mera
linha negra na bochecha, tão fina quanto um fio de cabelo. O que ele disse a seguir me pareceu
naquele momento uma referência à facilidade de contratar um pesquisador, embora eu não
estivesse cem por cento certo. Mais tarde, refletindo cuidadosamente sobre suas palavras,
comecei a pensar que talvez fosse uma ameaça. No entanto, era fácil me sentir ameaçado, e
acabei sem saber com certeza do que se tratava.
O que ele disse foi o seguinte: “Você sabe que sou bastante rico. Posso arranjar gente para
fazer as coisas por mim. Tudo que eu quiser. Há sempre alguém precisando de dinheiro. O
surpreendente, sabe, é como sai barato alguma coisa que você mesmo não faria?”. Sua
pseudopergunta ficou suspensa no ar enquanto ele me observava.
“Tenho um telefone no carro. Se você não me deixar passar, chamo a polícia agora mesmo.”
Recebi o mesmo olhar caloroso que costumava receber anteriormente. Sua dureza se desfez
quando ele aceitou, agradecido, o afeto que entendera existir em meu aviso. “Está bem, Joe. De
verdade. Também é difícil para mim. Eu o compreendo tão bem quanto você me compreende.
Pode se abrir comigo. Não precisa esconder tudo usando esses códigos, realmente não precisa.”
Dei um passo para trás e me voltei na direção do carro, dizendo: “Não há código nenhum.
Seria melhor se você admitisse que precisa de ajuda”.
Nem terminara e ele riu, ou melhor, soltou uma gargalhada enquanto batia com as mãos nas
coxas, no melhor estilo dos caubóis americanos. Deve ter visto nas minhas palavras um apelo
amoroso. Estava quase gritando, de tão alegre. “Isso mesmo! Tudo e todos estão do meu lado!
Está acontecendo como eu quero, Joe, e não há nada que você possa fazer!”
Apesar da loucura do que dissera, ele se afastou e me deixou passar. Haveria em tudo
aquilo alguma premeditação? Eu não podia confiar nem mesmo na insanidade dele, e por esse
simples motivo fiquei feliz de encerrar a conversa e entrar em casa. Além disso, era óbvio que a
polícia não ajudaria. Nem procurei saber se ele ia ficar esperando. Não queria lhe dar a
satisfação de ver que isso me incomodava. Enfiei o envelope no bolso de trás da calça e subi as
escadas de dois em dois degraus. Era como um analgésico, a distância e a altura que eu abri entre
nós em quinze segundos. Eu conseguia tolerar, e até mesmo apreciar, o estudo de Parry com
referência a uma síndrome, mas o encontrar outra vez na rua, especialmente depois de ler sua
primeira carta, me assustara. Meu medo lhe daria um grande poder. Eu já podia me imaginar
preferindo não voltar para casa. Chegando diante da porta do apartamento, me perguntei se de
fato ele havia feito uma ameaça: se era fácil contratar um pesquisador, também seria fácil pagar
alguns marginais para me dar uma surra e me deixar à beira da morte. Talvez eu estivesse
exagerando na interpretação. A ambiguidade alimentava meu medo — em matéria de ameaça, a
dele possuía muitos matizes.
Era o que eu pensava ao abrir a porta e entrar no hall. Fiquei lá por alguns instantes,
recuperando o fôlego, lendo o silêncio e a qualidade do ar. Embora sua bolsa não estivesse no
chão junto à porta nem seu casaco pendurado na cadeira, senti na pele que Clarissa voltara do
trabalho e que havia algo errado. Chamei seu nome e, não ouvindo nada, passei para a sala de
visitas, que tem a forma de um L. Precisei entrar alguns metros na sala a fim de me certificar de
que ela não estava lá. Pensei ouvir um som no hall, de onde acabara de sair, e chamei seu nome
de novo. Como os edifícios têm seus próprios arquivos de sons, estalidos e cliques geralmente
produzidos por pequenas variações de temperatura, achei normal não encontrar ninguém lá
quando voltei, embora continuasse certo de que Clarissa estava no apartamento. Entrei no quarto
de dormir, imaginando que ela podia estar tirando um cochilo. Os sapatos que usava para
trabalhar estavam lado a lado no chão, e as cobertas da cama tinham uma marca côncava onde ela
se deitara. Não havia sinal de que usara o banheiro. Dei uma busca rápida nos outros aposentos
— a cozinha, o escritório dela, o quarto das crianças — e verifiquei a tranca na porta que dava
para o telhado. Foi então que, mudando de ideia, concebi uma sequência lógica: ela chegara em
casa, tirara os sapatos, deitara na cama por algum tempo, calçara outros sapatos e saíra. Ansioso
após o encontro com Parry, eu simplesmente lera errado o ar do apartamento.
Fui à cozinha para encher a chaleira. Depois caminhei sem pressa até meu escritório, onde a
encontrei. Era tão óbvio, mas foi um tremendo choque. Eu a vi como se pela primeira vez. Ela
estava descalça, largada em minha cadeira giratória, de costas para a escrivaninha e de frente
para a porta. Com tudo que acontecera naquele dia, eu devia ter adivinhado. Devolvi seu olhar
enquanto entrava no escritório e perguntei: “Por que não me respondeu?”.
“Achei que este era o primeiro lugar em que você olharia.” Quando franzi a testa, ela
continuou: “Você não pensou que eu remexia em sua escrivaninha enquanto está na rua? Não é
assim que a coisa funciona entre nós ultimamente?”.
Sentei-me extenuado no sofá. Estar assim tão inteiramente errado era uma forma de
liberação. Nenhuma necessidade de lutar, nenhuma razão para desfilar argumentos.
Ela estava calma, e com muita raiva. “Estou sentada aqui há meia hora, tentando me
convencer a abrir uma dessas gavetas e dar uma lida nas tuas cartas. E sabe de uma coisa? Não
consegui ficar suficientemente curiosa. Isso não é terrível? Não me interesso por teus segredos e,
se você não tem nenhum, isso também não importa. Se você tivesse pedido para ler minhas
cartas, eu teria dito que sim, vá em frente. Não tenho nada a esconder de você.” Sua voz, trêmula,
subiu um tom. Nunca a tinha visto tão furiosa. “Você até deixou a gaveta aberta para que eu
soubesse ao chegar. É uma afirmação, uma mensagem, de você para mim, um sinal. O problema é
que não sei o que significa. Talvez esteja sendo muito burra. Por isso, me explique agora, Joe. O
que é que você está tentando me dizer?”
16.
Querido Joe,
O estudante que contratei tocou minha campainha às quatro da tarde de ontem e fui encontrálo
no portão. Dei-lhe quinhentas libras pelo trabalho de uma semana e ele me passou o maço de
papéis por entre as grades. As fotocópias de trinta e cinco artigos seus. Foi embora feliz, mas... e
eu? Naquele momento, eu não sabia o que me esperava de noite. Talvez tenham sido as piores
horas da minha vida. Foi uma tortura, Joe, me defrontar com seus pensamentos tristes e
ressequidos. E pensar nos idiotas que lhe deram um bom dinheiro pelos artigos, e nos leitores
inocentes que tiveram seu dia poluído por eles!
Sentei-me na sala que minha mãe chamava de biblioteca, embora as estantes estivessem
sempre bem vazias, e li cada palavra, na verdade as ouvi em minha cabeça, ditas por você
diretamente para mim. Li cada artigo como uma carta enviada por você para o futuro onde nós
dois estaríamos juntos. Fiquei me perguntando o que é que você estava tentando fazer comigo.
Ferir-me? Insultar-me? Testar-me? Eu o odiei por aquilo, mas nunca esqueci que também o
amava — e por isso continuava a ler. Ele precisa de minha ajuda, eu me dizia quando estava
prestes a desistir, ele precisa que eu o libere de sua pequena gaiola da razão. Houve momentos
em que duvidei se havia entendido corretamente o que Deus queria de mim. Será que me cabia
entregar em Suas mãos o autor daqueles escritos odiosos contra Ele? Talvez minha missão fosse
mais simples e mais pura. Quer dizer, eu sabia que você escreve sobre assuntos científicos e
estava preparado para me sentir perplexo ou entediado, porém não sabia que você escrevia
movido pelo desprezo.
Você provavelmente não se lembra mais do artigo que escreveu quatro anos atrás para a
New Scientist sobre os últimos recursos tecnológicos empregados nos estudos bíblicos. E daí,
quem se interessa pela datação por carbono do Santo Sudário de Turim? Você acha que as
pessoas abandonaram sua crença ao saber que se tratava de uma fraude medieval? Você acha que
a fé depende de um pedaço de tecido apodrecido? Mas foi outro artigo, onde você escreve sobre
Deus, que realmente me chocou. Talvez fosse uma piada, mas isso seria até pior. Você faz de
conta que sabe o que ou quem Ele é — um personagem literário, você diz, como os que a gente
encontra num romance. Diz também que os melhores cérebros nesse campo estão prontos a dar
um “palpite bem fundamentado” sobre a pessoa que inventou Jeová: os indícios apontam para
uma mulher que viveu por volta do ano 1000 a.C., Bathsheba, a hitita que dormiu com Davi. Uma
romancista inventou Deus! Os melhores cérebros prefeririam morrer a ter a ousadia de saber uma
coisa dessas. Você está lidando com poderes que nem você nem ninguém na Terra são capazes de
conceber. Não contente com isso, diz que Jesus Cristo também foi um personagem, inventado
sobretudo por são Paulo e “quem quer que tenha escrito” o Evangelho segundo são Marcos.
Rezei por você, rezei para ter forças de voltar a vê-lo, para continuar a amá-lo sem ser
aniquilado. Como é possível amar a Deus e o amar ao mesmo tempo? Só por meio da fé, Joe.
Não por meio de fatos, ou supostos fatos, ou da arrogância intelectual, mas confiando na
sabedoria e no amor de Deus como uma presença permanente em nossas vidas, o tipo de
presença que nenhum ser humano, e muito menos um personagem literário, jamais poderia ter.
Suponho que fui ingênuo de pensar, naquela primeira onda de sentimento que tive por você,
que tudo daria certo só porque eu queria tanto que isso acontecesse. Quando o dia nasceu, ainda
me faltava ler dez artigos. Tomei um táxi até sua casa. Você dormia, desconhecendo sua própria
vulnerabilidade, indiferente à proteção que você desfruta de uma fonte cuja existência nega. A
vida lhe tem sido muito boa, e acho que, enquanto eu esperava lá, comecei a me dar conta do
quanto você é ingrato. Talvez nunca lhe ocorra agradecer pelo que tem. Tudo aconteceu por mero
acaso? Você construiu tudo? Preocupo-me por você, Joe. Preocupa-me o que sua arrogância
pode atrair sobre você. Atravessei a rua e encostei a mão na cerca viva. Dessa vez não havia
nenhuma mensagem. Por que você iria falar comigo quando não precisa? Você acha que tem tudo,
acha que pode satisfazer todas as suas necessidades por conta própria. Mas, sem ter a
consciência do amor de Deus, você está vivendo num deserto. Se ao menos entendesse
inteiramente o que estou lhe oferecendo! Acorde!
Você pode ter ficado com a impressão de que odeio a ciência. Nunca fui muito bem na
escola e não tenho nenhum interesse pessoal pelos últimos avanços, porém sei que se trata de
algo maravilhoso. O estudo e a mensuração da natureza nada mais são na verdade que uma
oração prolongada. Uma celebração da glória do universo criado por Deus. Quanto mais
aprendemos sobre a complexidade de Sua criação, mais entendemos quão pouco sabemos e como
somos pequenos. Ele nos deu nossos cérebros, nos concedeu o esplendor da inteligência. Acho
muito triste e infantil que alguém use esse dom para negar a realidade divina. Você diz que nosso
conhecimento atual da química nos permite especular sobre como a vida começou na Terra.
Pequenas poças de minerais aquecidas pelo sol, reações químicas, cadeias de proteínas,
aminoácidos etc. A sopa primal. Deus foi expulso dessa história, você disse, e empurrado para o
último refúgio, em meio às moléculas e partículas dos físicos quânticos. Mas isso não leva a
lugar nenhum, Joe. Descrever como a sopa é feita não é o mesmo que saber por que ela foi feita,
ou quem é o chef. Trata-se de um palavreado vazio e insignificante contra um poder infinito. Suas
arengas contra Deus escondem uma súplica para que alguém o salve das armadilhas de sua
própria lógica. Seus artigos são um grito lancinante nascido da solidão. Não há felicidade em
toda essa negação. O que ela poderá lhe oferecer no final?
Sei que você não me ouvirá — ainda. Sua mente está fechada, suas defesas ativadas. É útil
para você, e o protege, achar que eu sou louco. Socorro! Há um homem do lado de fora me
oferecendo seu amor e o amor divino! Chamem a polícia, chamem uma ambulância! Não há
nenhum problema com Joe Rose. Seu mundo está no lugar, tudo bem ajustado, e quem tem
problemas é Jed Parry, o idiota paciente que se posta na rua como um mendigo, esperando ver de
relance o ser amado para lhe oferecer seu amor. O que devo fazer para que você comece a me
ouvir? Só a oração pode responder a essa pergunta, só o amor trará a solução. Mas meu amor por
você não é mais do tipo suplicante. Não fico sentado junto ao telefone esperando que você me
diga palavras gentis. Você não está acima de mim decidindo meu futuro, não tem o poder de me
obrigar a fazer o que bem quiser. Meu amor por você é sólido e arrebatado, não se satisfará com
um não, e está se movendo constantemente em sua direção, para tomar posse de você e salvá-lo.
Em outras palavras, meu amor — que é também o amor divino — é o seu destino. Suas negativas
e recusas, todos os seus livros e artigos, são como o bater de pé de uma criancinha cansada. É só
uma questão de tempo, e você ficará grato quando o momento chegar.
Você entende? Ler seus artigos durante toda a noite me fez mais forte. Isso é obra do amor
divino. Se você começa a se sentir desconfortável, é porque já estão se processando as mudanças
em sua alma, e algum dia você terá prazer em dizer: “Salve-me da futilidade”. Haverá um tempo
em que rememoraremos com ternura nossas trocas de mensagens, pois então já saberemos aonde
elas nos conduziam e vamos rir ao pensar na força que tive de fazer para movê-lo do lugar, como
você lutou para me manter à distância. Por isso, quaisquer que sejam seus sentimentos agora, por
favor, não destrua essas cartas.
Quando cheguei aí de manhã cedinho, eu o odiava pelo que você havia escrito. Queria ferilo.
Talvez até mais do que isso. Algo pior, eu pensei, e Deus me perdoará. No táxi, a caminho,
imaginei que você me diria com toda a frieza que Deus e Seu Filho Único eram meros
personagens, como James Bond ou Hamlet. Ou que você mesmo podia criar a vida num tubo de
ensaio caso dispusesse de um punhado de elementos químicos e alguns milhões de anos. Não é
apenas o fato de negar Deus — você quer tomar o lugar Dele. Esse tipo de orgulho pode destruílo.
Há mistérios em que não devemos tocar, precisamos aprender a ser humildes. Odiei-o, Joe,
por sua arrogância. Você quer ter a última palavra em tudo. Sei bem, depois de ler trinta e cinco
artigos seus. Não há uma dúvida, uma hesitação, uma única admissão de desconhecimento. Você
está sempre apresentando a última verdade sobre bactérias, partículas, agricultura, insetos, os
anéis de Saturno, harmonia musical, a teoria do risco, migração de aves... Meu cérebro parecia
uma máquina de lavar roupa — girando e revirando sua roupa suja. Você pode me criticar por
odiá-lo ao ver as coisas que enchem sua cabeça — satélites, nanotecnologias, biocomputadores,
motores a hidrogênio? Não passa de um comércio. Você compra tudo, elogia tudo, é pago para
fazer propaganda das mercadorias de outras pessoas. Em quatro anos de jornalismo, nem uma só
palavra sobre as coisas verdadeiras, como o amor e a fé.
Talvez eu esteja zangado por causa da impaciência com que aguardo o início de nossa vida
em comum. Lembro-me de que, numas férias de verão, fui com minha turma fazer caminhadas na
Suíça. Certo dia, passamos uma manhã chatíssima subindo uma trilha pedregosa. Todos nós
reclamamos — fazia tanto calor e aquele esforço parecia inútil, mas o professor nos obrigou a
seguir em frente. Pouco antes do almoço, chegamos a um prado alpino, uma imensa área
ensolarada coberta de flores e gramíneas, com musgos de um verde elétrico enfeitando as
margens de um riacho. Tratava-se de um lugar milagroso. Éramos um grupo de garotos
barulhentos, porém de repente todos se calaram. Alguém disse num sussurro que era como se
estivéssemos entrando no paraíso. Foi um grande momento em minha vida. Penso que, quando
superarmos nossas dificuldades, quando você vier para cá e estivermos juntos, será como chegar
naquele prado. Nunca mais subiremos trilhas pedregosas! Diante de nós, muita paz e todo o
tempo para desfrutá-la.
Há uma última coisa que devo lhe dizer. Irrompi em sua vida, assim como você irrompeu na
minha. É natural que você deseje que isso não houvesse acontecido. Sua vida está prestes a virar
de pernas para o ar. Você precisa dizer isso a Clarissa, precisa tirar suas coisas daí, se é que não
prefere se livrar de quase tudo. Você terá de se explicar perante todos os amigos, não apenas por
mudar de endereço, mas pela revolução em suas crenças. Dor e incômodo, coisas que você não
quer. Em certos momentos você desejará que eu nunca houvesse perturbado sua vida ordenada e
prazerosa. Desejará que eu não existisse. Isso é compreensível, não se sinta culpado. Ficará com
raiva e tentará me enxotar porque eu represento o choque, a comoção. Mas é assim que tem de
ser. É a trilha íngreme e pedregosa! Você deve pôr para fora tudo que sente. Xingue-me, jogue
pedras na minha cabeça, me bata — se tiver coragem para tanto. Porém há uma coisa que não
deve jamais fazer enquanto estivermos a caminho de nosso prado — e isso é me ignorar, fingir
que nada esteja acontecendo, negar a dificuldade, a dor ou o amor. Não passe por mim como se
eu não estivesse lá. Nenhum de nós pode ser enganado. Nunca negue minha realidade, porque no
final negará a si mesmo. O desespero que senti diante de sua rejeição de Deus tinha algo a ver
com meu sentimento de que você também estava me rejeitando. Aceite-me, e você se verá
aceitando Deus sem nenhum problema. Por isso, me prometa. Mostre-me sua fúria ou amargor.
Não me importo. Nunca o abandonarei. Mas jamais, jamais tente fingir para si próprio que eu não
existo.
Jed
17.
Não sei como aconteceu, mas estávamos deitados na cama, de rostos colados, como se não
houvesse nada errado. Talvez se devesse apenas ao cansaço. Já era tarde, bem depois da meianoite.
O silêncio, de tão denso, parecia visível, tendo o brilho e a espessura de tinta fresca. Esse
episódio de sinestesia certamente decorria de minha desorientação, pois era bastante comum eu
estar sujeito ao magnetismo dos olhos verdes de Clarissa e sentir o toque sedoso de seus braços
delgados. Mas também era muito inesperado. Não estávamos em guerra, porém tudo entre nós se
encontrava num estado de suspensão. Como exércitos que se defrontam detrás de um labirinto de
trincheiras. Imobilizados. O único movimento era dado pelas acusações mudas que tremulavam
acima de nossas cabeças como estandartes. Para ela, eu perdera o juízo, possuído por uma
obsessão perversa e, pior ainda, invadira seu espaço privado. Para mim, ela era desleal e
irracionalmente suspicaz, me faltando com seu apoio numa hora de crise.
Não havia brigas e nem mesmo escaramuças, como se soubéssemos que qualquer
confrontação nos separaria para sempre. Mantínhamos um nível mínimo de interlocução,
conversinhas fiadas sobre coisas do trabalho, compras, o que comer, reparos na casa. Clarissa
saía todos os dias úteis para dirigir seminários, dar aulas ou lutar com a administração. Eu
produzi uma resenha longa e tediosa sobre cinco livros que tratavam da consciência. Quando
comecei a escrever sobre assuntos científicos, aquela palavra era mais ou menos tabu nas
matérias de cunho técnico. Não constituía um tema de discussão. Agora, lá estava, competindo
com os buracos negros e Darwin, quase mais importante que os dinossauros.
Preservávamos nossa rotina cotidiana porque ela era a única coisa totalmente clara. O afeto
já se fora, o carinho mútuo evaporara, tínhamos esquecido todos os truques do amor e nem
sabíamos como começar a falar disso. Dormíamos na mesma cama, porém não nos abraçávamos.
Usávamos o mesmo banheiro, porém já não nos víamos nus. Tratávamo-nos de maneira
escrupulosamente informal por saber que qualquer coisa a menos, por exemplo, uma polidez fria,
revelaria o jogo e nos conduziria ao conflito que buscávamos evitar. O que antes parecia natural
— fazer amor, ter longas conversas ou partilhar o silêncio — dava agora a impressão de ser tão
difícil de conceber quanto o Quarto Relógio Marítimo de Harrison, cuja recriação seria
impossível e anacrônica. Quando eu a via escovando o cabelo ou se abaixando para pegar um
livro do chão, me lembrava de sua beleza como de um fato aprendido em algum manual escolar.
Verdadeiro, embora irrelevante no momento. E eu era capaz de me ver pelos olhos dela como um
sujeito grandalhão e desajeitado, um aríete programado biologicamente, um pólipo gigantesco de
lógica comezinha com quem ela havia se associado por engano. Quando lhe falava, minha voz
soava monótona e enfadonha dentro do meu crânio, e cada frase, de fato cada palavra, era
mentirosa. Eu vivia mergulhado numa raiva muda e num inarredável desprezo por mim mesmo.
Quando nossos olhos se encontravam, era como se uma parte ruim de nós, uma presença maligna
e insidiosa, erguesse as mãos diante de nossos rostos para bloquear qualquer possibilidade de
entendimento. Mas nossos olhares se cruzavam muito raramente e, quando isso acontecia, em um
ou dois segundos fugiam, medrosos. Aqueles seres que antes se amavam nunca nos entenderiam
ou perdoariam, mas a verdade é que o sentimento dominante e não reconhecido em nossa casa era
então a vergonha.
E ali estávamos, entre uma e meia e duas da manhã, deitados na cama, nos olhando
fixamente sob a luz débil de um abajur, eu nu, ela numa camisola de algodão, braços e mãos se
tocando porém de forma neutra, sem compromisso. Todas as dúvidas pairavam sobre nós e,
durante algum tempo, nenhum dos dois ousou falar. Já era muito podermos nos olhar olho no
olho.
Como disse, ainda conseguíamos falar do dia a dia, mas um aspecto de nossas vidas fora
absorvido na rotina diária e sobre ele não tínhamos condições de conversar. As pessoas
frequentemente se surpreendem ao ver com que rapidez o extraordinário se transforma numa
banalidade. Penso nisso todas as vezes que dirijo numa estrada à noite ou quando o avião em que
viajo rompe a cobertura de nuvens e é banhado pela luz do sol. Somos criaturas altamente
adaptáveis. O previsível se torna, por definição, pano de fundo, permitindo que nossa atenção,
assim aliviada, se concentre nos eventos aleatórios ou inesperados.
Parry vinha enviando três ou quatro cartas por semana. Eram em geral longas e ardentes,
cada vez mais focadas no tempo presente. Com frequência, tinham como tema o próprio processo
de escrita da carta, o aposento em que ele se encontrava, as mutações de luz e clima, as variações
nos seus estados de espírito, o fato de que, ao escrever, era capaz de invocar minha presença, me
trazendo para o seu lado. Os finais eram prolongadas manifestações de tristeza quando ele se
despedia. As referências religiosas seriam uma mera formalidade caso não fossem tão
fervorosas: seu amor era como o de Deus, paciente e absoluto, cabendo a Parry me levar até Ele.
Havia comumente um quê de acusação, seja turvando todo o texto, seja concentrado numa única
passagem dolorida: eu iniciara aquele caso de amor e, por isso, deveria assumir a minha
responsabilidade. Eu brincava com ele, o enganava, mandava mensagens de encorajamento e
depois lhe dava as costas. Fazia o papel de coquete para seduzi-lo. Era o algoz que lhe aplicava
uma tortura lenta, tendo a capacidade notável de jamais admitir o que fazia. Aparentemente, eu já
não lhe enviava mensagens usando as cortinas ou a cerca de alfeneiros. Falava-lhe agora nos
sonhos. Eu aparecia diante dele radiante, como um profeta bíblico, assegurando-o de meu amor e
predizendo os dias felizes que estavam por vir.
Aprendi a ler essas cartas por alto. Demorava-me apenas nas acusações ou manifestações
de frustração, sempre procurando uma repetição da ameaça que achei que ele fizera do lado de
fora do prédio. A raiva estava lá, sem dúvida. Havia algo de sombrio em Parry, que,
inteligentemente, não era registrado nas cartas. Mas estava presente quando ele dizia que eu era a
origem de toda a sua dor, quando especulava que eu talvez nunca fosse viver com ele, quando
insinuava que tudo poderia “terminar em sofrimento e em mais lágrimas do que poderíamos
imaginar, Joe”. Eu queria que ele fosse mais longe. Desejava ardentemente algo mais. Por favor,
Jed, ponha uma arma em minhas mãos. Uma pequena ameaça seria suficiente para que eu voltasse
à polícia, porém ele me negava isso, brincava comigo e se encolhia, exatamente como me
acusava de fazer. Eu precisava que a ameaça fosse reiterada porque queria estar certo dela, e ele,
não o fazendo, mantinha viva minha suspeita de que cedo ou tarde eu seria vítima de uma
agressão. Minhas pesquisas confirmavam isso. Mais da metade dos pacientes com a síndrome de
De Clérambault havia tentado cometer alguma violência contra o objeto de suas obsessões.
Tão rotineira quanto as cartas era a presença de Parry em frente ao prédio. Ele vinha quase
todos os dias e se postava do outro lado da rua, parecendo haver encontrado um equilíbrio entre
sua disponibilidade de tempo e as exigências da obsessão. Se não me visse, ficava por lá cerca
de uma hora antes de ir embora. Caso eu saísse, me seguia durante parte do trajeto, se mantendo
na calçada oposta, até virar numa rua transversal e partir sem olhar para trás. Esse contato seria
suficiente para manter aceso seu amor e, pelo que sei, ele ia dali para sua casa em Hampstead a
fim de iniciar nova carta. Uma delas começava assim: “Compreendi seu olhar hoje de manhã,
Joe, mas acho que você estava errado...”. No entanto, nunca mencionou sua decisão de não falar
mais comigo — o que me deixou frustrado porque, se não me ameaçava por escrito, eu esperava
ter a chance de registrar suas palavras numa fita magnética. Eu carregava no bolso um pequeno
gravador e o microfone sob a lapela. Em certa ocasião, enquanto Parry observava, me demorei
ao lado da cerca de alfeneiros e passei a mão pelas folhas para deixar uma mensagem, virandome
depois na direção dele e o olhando fixamente. Mas ele não se aproximou e nem mesmo se
referiu àquele momento na carta que escreveu no mesmo dia. Seu comportamento amoroso não
era ditado por fatores externos, ainda quando originados por mim. O mundo de Parry era
construído de dentro para fora e movido por uma necessidade íntima, podendo assim permanecer
intacto. Nada poderia comprovar que ele estava errado, assim como ele não precisava de nada
para provar que tinha razão. Se eu lhe houvesse escrito uma carta de amor, isso não faria a menor
diferença. Parry vivia acocorado numa cela que ele próprio construíra, captando mensagens no
ar, impregnando de traços dramáticos de esperança e desapontamento conversações inexistentes,
esquadrinhando sem cessar o mundo físico — com as configurações aleatórias e combinações
caóticas de sons e cores — à procura de correlações com seu estado emocional a cada momento
e encontrando sempre algo que o satisfazia. Iluminava o mundo com seus sentimentos, e o mundo
lhe oferecia uma confirmação onde quer que tais sentimentos o levassem. Ele só sentia desespero
se o lesse no negror das nuvens ou se a mudança no chilrear de algum pássaro significasse que eu
o desprezava. As causas de sua alegria eram totalmente inesperadas — uma mensagem carinhosa
recebida de mim num sonho, uma intuição que brotara dentro dele enquanto orava ou meditava.
Essa era a prisão de um amor autorreferenciado, mas, na alegria ou no desespero, eu não
conseguia fazer com que ele me ameaçasse, ou ao menos falasse comigo. Três vezes atravessei a
rua indo em sua direção com o microfone oculto ligado, porém ele não permaneceu parado.
“Então vá embora de vez!”, gritei para a figura que se afastava. “Pare de ficar rondando por
aqui! Pare de me aborrecer com suas cartas idiotas!” Volte e fale comigo, era o que eu de fato
desejava. Volte e enfrente a inutilidade de sua causa, faça ameaças abertas. Ou as transmita pelo
telefone. Deixe-as na minha secretária eletrônica.
Naturalmente, o que gritei naquela manhã não afetou o tom da carta recebida no dia seguinte,
toda feita de alegria e esperança. Ele era inviolável em seu solipsismo, o que me deixava muito
nervoso: a lógica que poderia num salto o levar do desespero ao ódio ou do amor à destruição
era privada, fortuita, e não haveria pré-aviso caso ele decidisse me atacar. Ultimamente, eu
fechava com cuidado as portas do apartamento antes de dormir. Sozinho na rua, especialmente à
noite, procurava ver se alguém me seguia. Passei a andar mais de táxi e sempre olhava a meu
redor ao descer. Não sem alguma dificuldade, consegui marcar uma entrevista com um inspetor
na delegacia do bairro. Comecei a fantasiar o que usar para me defender. Um spray contra
assaltantes? Um soco-inglês? Uma faca? Imaginava confrontos violentos em que sempre saía
vencedor, embora em meu coração lógico — esse órgão onde reside o bom senso — soubesse
que ele não me atacaria de frente.
Pelo menos, Clarissa parecia ter desaparecido dos pensamentos de Parry. Ele não se referia
a ela nas cartas e nunca tentou contatá-la. Na verdade, ele a evitava claramente. Eu ficava
observando da janela da sala de visitas toda vez que ela saía. Tão logo a via através da porta de
vidro do vestíbulo, já no último degrau da escada, Parry subia a rua às pressas antes mesmo que
ela saísse do prédio, retornando a seu lugar depois que Clarissa se afastava. Será que, na sua
interpretação dos fatos, com isso ele protegia os sentimentos dela? Ou imaginava que eu lhe
havia explicado tudo, para todos os efeitos a eliminando da equação? Ou que ele próprio tivesse
feito isso? Ou a coerência não precisava fazer parte da história?
Estávamos deitados em silêncio fazia dez minutos. Ela estava apoiada sobre o lado
esquerdo e pensei ouvir os iambos arrastados de sua pulsação em meu travesseiro. Talvez fosse
meu próprio ritmo. Era lento, e eu estava certo de que se tornava ainda mais lento. Não havia
nenhuma tensão naquele silêncio. Olhávamo-nos diretamente nos olhos e depois nossos olhares
passeavam por outras feições do rosto, dos olhos para os lábios, de volta aos olhos. Como se
fizéssemos uma longa e demorada rememoração; a cada minuto que passava sem nos falarmos,
nossa recuperação ganhava força sem sacrifício da tranquilidade. Sem dúvida, o poder inercial
do amor, as horas, semanas e anos passados harmoniosamente em conjunto superavam as
circunstâncias do presente. Não é verdade que o amor gera suas próprias reservas? A última
coisa que deveríamos fazer agora, pensei, seria nos enredarmos numa troca de explicações
pacientes. Na popularização da psicologia, foi dada uma importância exagerada aos benefícios
de discutir um relacionamento até os últimos detalhes. Os conflitos, como qualquer organismo
vivo, têm uma duração natural. O truque estava em saber quando os deixar morrer. No momento
errado, as palavras podem agir como as descargas elétricas de um desfibrilador. A criatura pode
ressuscitar numa forma patogênica, regenerada febrilmente por uma nova formulação
interessante, ou por um “novo olhar” mórbido dirigido a esse ou aquele pormenor. Movi a mão e
aumentei ligeiramente a pressão de meus dedos no seu braço. Os lábios se abriram, o
descolamento sensual acentuado por um levíssimo som explosivo. Tudo que precisávamos fazer
era nos olharmos e nos lembrarmos. Fazer amor, deixando que o resto se resolvesse por conta
própria. Os lábios de Clarissa emolduraram meu nome sem que deles escapasse um som ou
mesmo um sopro. Eu não conseguia afastar meus olhos de seus lábios. Tão flexíveis, tão
lustrosamente ricos em cores naturais. O batom foi inventado para que as mulheres pudessem
exibir uma versão piorada de lábios como aqueles. “Joe...”, os lábios disseram de novo. Outra
razão para não discutir agora nosso problema é que seríamos forçados a trazer Parry para nosso
quarto, para nossa cama.
“Joe...” Dessa vez ela sussurrou meu nome por entre os belos lábios entreabertos, e depois,
franzindo a testa e respirando fundo, deu a suas palavras um tom grave e vibrante: “Joe, tudo
acabou. É melhor admitirmos isso agora. Acho que está tudo terminado entre nós, não é
mesmo?”.
Quando ela disse isso, não tive a sensação de atravessar uma linha além da qual tudo
devesse ser repensado, nem me pareceu que o chão ou a cama estivessem desaparecendo sob
mim, embora sem dúvida eu tenha penetrado num espaço em que podia observar essas coisas não
acontecendo. Como é óbvio, me encontrava num estado de negação. Não sentia nada, coisíssima
nenhuma. Não falei nada, não porque houvesse perdido a fala, mas porque simplesmente não
sentia nada. Em vez disso, meus pensamentos, como um batráquio de sangue frio, deram alguns
saltos até chegarem a Jean Logan, com quem Clarissa agora compartilhava um endereço neural,
uma categoria em minha mente de mulheres que se acreditavam traídas e esperavam algo de mim.
Tentei ser zeloso. Sentei-me à escrivaninha com o pedaço de papel da sra. Logan e dei os
telefonemas. Chamei primeiro Toby Greene em Russell’s Water e fui atendido por uma vigorosa
senhora de idade, com uma voz crepitante, que devia ser sua mãe. Perguntei cortesmente sobre o
tornozelo fraturado de seu filho, mas ela me interrompeu.
“E o que o senhor quer com ele?”
“É sobre o acidente, o acidente com o balão. Só queria perguntar a ele...”
“Olha, um monte de jornalistas já esteve aqui, por isso acho melhor o senhor não aporrinhar
a gente.”
Ela não podia ser mais clara, e nem mesmo havia perdido a calma. Deixei passar algumas
horas antes de tentar outra vez, e então fui logo dizendo meu nome e me identificando como um
dos sujeitos que ficaram pendurados nas cordas com seu filho. Quando Toby Greene por fim
chegou mancando ao telefone, não pôde me ajudar. Tinha visto o carro no outro lado do campo,
porém estava ocupado com o reparo da cerca e depois correndo na direção do balão, não tendo
por isso a menor ideia se Logan estava sozinho ou não. Foi difícil manter Greene focalizado no
assunto. Ele queria falar sobre o tornozelo ou quanto receberia durante a licença médica. “Já
fomos falar três vezes com o pessoal que cuida dos pagamentos...” Ouvi durante vinte minutos
seu relato sobre as confusões e a condescendência dos burocratas, até que sua mãe o chamou e
ele interrompeu a ligação sem se despedir.
Seu amigo de Watlington, Joseph Lacey, só devia voltar para casa no dia seguinte, por isso
telefonei para James Gadd, o dono do balão, em Reading. Atendeu sua mulher, que tinha uma voz
suave e bondosa.
“Diga a ele que sou uma das pessoas que arriscaram a vida tentando impedir que o neto dele
fosse levado embora.”
“Vou fazer o possível”, ela respondeu. “Mas ele não gosta muito de falar sobre isso.”
Ouvi a voz do apresentador do noticiário da televisão e a de Gadd, em tom mais alto. “Tudo
que eu tenho a dizer vai ser dito na audiência da promotoria.” A sra. Gadd voltou ao telefone e
repassou a mensagem com um misto de resignação e ligeiro desapontamento, como se ela também
estivesse sofrendo devido à recusa dele em falar.
Quando por fim consegui contatar Lacey, ele comprovou ter uma mente mais ordenada.
“O que é que eles querem? Não devem precisar de mais testemunhas.”
“É para a viúva. Ela acha que havia alguém com ele.”
“Se esse alguém existe, deve ter uma boa razão para não se apresentar. Melhor não mexer
em casa de marimbondos, essa é minha opinião.”
Como a resposta parecia ter sido rápida e segura demais, decidi ser direto com ele. “Ela
acha que era uma mulher. Encontrou no carro coisas de piquenique e um lenço de seda. Acredita
que ele estava tendo um caso. É uma tortura para ela.”
Ele deu um estalido com a língua, seguido de um longo silêncio.
“Ainda está me ouvindo, sr. Lacey?”
“Estou pensando.”
“Então o senhor viu a mulher?”
Após nova pausa, ele respondeu: “Não vou falar sobre isso por telefone. Se o senhor vier a
Watlington, então veremos”. Deu-me o endereço e marcamos um encontro.
Quando perguntei a Clarissa, ela disse ter a impressão de que as duas portas do carro de
Logan estavam abertas, talvez até três, porém não havia visto mais ninguém além dele. Com isso,
só faltava Parry. Segundo minha recordação, a trilha que ele percorrera o tinha posto mais perto
do carro que qualquer um dos outros. Seria possível me aproximar dele com o gravador oculto,
fazer as perguntas devidas e depois incitá-lo a me ameaçar? Se isso já parecia absurdo, mais
fantástico ainda era pensar que ele fosse capaz de oferecer informações factuais. Seu mundo era
feito de emoção, invenção e desejo, algo saído de um pesadelo — a tal ponto que era difícil o
conceber executando tarefas triviais como fazer a barba ou pagar contas. Era quase como se ele
não existisse.
Porque eu não havia dito nada, porque fora incapaz de me motivar a responder, Clarissa
falou de novo. Ainda nos olhávamos fixamente. “Você está sempre pensando nele. Não para
nunca. Agora mesmo estava pensando nele, não é verdade? Vamos, me diga com toda a
sinceridade. Diga.”
“Sim, estava.”
“Não sei o que está acontecendo com você, Joe. Eu estou te perdendo. É assustador. Você
precisa de ajuda, mas não acho que ela possa vir de mim.”
“Vou ver um sujeito da polícia na quarta-feira. Talvez eles possam...”
“Estou falando da tua cabeça.”
Sentei-me. “Não há nada de errado com a minha cabeça. Ela funciona muito bem. Querida,
ele é realmente uma ameaça, pode ser perigoso.”
Ela sentou com esforço. “Ah, meu Deus, você não quer compreender”, ela disse, começando
a chorar.
“Escute, estou pesquisando isso cuidadosamente.” Pousei a mão em seu ombro, porém ela
se desvencilhou. Continuei a falar assim mesmo: “Pelo que eu li, as pessoas com a síndrome de
De Clérambault se dividem em dois grupos...”.
“Você acha que pode resolver isso lendo.” De repente, a raiva foi maior do que a vontade
de chorar. “Você não entende que está com um problema?”
“Claro que entendo. Mas escute um pouco. É bom saber. Em alguns pacientes, os sintomas
fazem parte de um distúrbio psicótico generalizado. É muito fácil os reconhecer. Outros, que
apresentam uma forma pura da doença, são completamente obcecados pelo objeto do seu amor,
embora funcionem de modo perfeito em outros campos de atividade.”
“Joe!”, ela gritou. “Você diz que ele está lá fora, mas, quando eu saio, não vejo ninguém.
Ninguém, Joe.”
“Quando ele vê você atravessando o vestíbulo, sobe a rua e se esconde atrás de uma árvore.
Não me pergunte por quê.”
“E as cartas, a caligrafia...” Ela me olhou, deixando pender o lábio inferior. Algo lhe passou
pela mente e a fez hesitar.
“O que têm as cartas?”, perguntei.
Ela balançou a cabeça. Levantou-se da cama e recolheu as roupas de que precisaria no dia
seguinte. Parou na porta, segurando-as. “Estou assustada”, ela disse.
“Eu também. Ele pode ficar violento.”
Ela não estava me olhando, e sim para um espaço acima de minha cabeça. Sua voz se
tornara gutural. “Vou dormir esta noite no quarto das crianças.”
“Clarissa, por favor, fique aqui.”
Mas ela se foi, e no dia seguinte levou suas coisas para o outro quarto. Como costuma
acontecer, uma decisão impulsiva se transformou num arranjo permanente. Continuamos a viver
sob o mesmo teto, porém eu sabia que agora estava por minha conta e risco.
18.
Na quarta-feira era o aniversário de Clarissa. Quando lhe dei um cartão, ela me beijou na
boca. Agora que se convencera de que eu estava abilolado, agora que me dissera que tudo estava
acabado, ela parecia exultante e generosa. Uma nova vida iria começar e ela nada tinha a perder
se fosse carinhosa. Alguns dias antes, sua exuberância me inspiraria suspeitas ou ciúmes, porém
agora só servia para confirmar minha convicção de que ela não pesquisara o assunto nem pensara
nele. O estado de Parry não podia permanecer inalterado. Uma vez que seus sonhos não seriam
realizados, o amor se transformaria em indiferença ou ódio. Clarissa achava que suas próprias
emoções eram o melhor guia, que ela saberia intuitivamente chegar à verdade, quando o
necessário era ter informação, capacidade de previsão, planejamento preciso. Sendo assim, era
natural — embora desastroso para nós dois — que ela me considerasse louco.
Tão logo ela saiu para o trabalho, fui para meu escritório e embrulhei o presente que lhe
daria durante o almoço que havíamos combinado ter com seu padrinho, o professor Kale. Reuni
todas as cartas de Parry, as ordenei cronologicamente e guardei numa pasta com fecho. Recosteime
na espreguiçadeira e repassei lentamente página por página, desde o começo, pinçando e
assinalando os trechos mais significativos. Digitei essas passagens, com as referências de data
entre parênteses. No final, tinha quatro páginas de extratos que imprimi em três cópias,
colocando-as em pastas transparentes. Essa atividade paciente me fez cair numa espécie de
transe organizacional, a ilusão do administrador de que todos os males do mundo podem ser
resolvidos com uma boa digitação, uma impressora a laser decente e uma caixa de clipes.
Eu estava tentando compilar uma coleção de ameaças e, embora não possuísse exemplos
incontestáveis, colhi alusões e rupturas lógicas cujo efeito cumulativo não escaparia à
compreensão de um policial. Era necessária a habilidade de uma crítica literária, como Clarissa,
para ler entre as linhas das declarações de amor, mas eu sabia que ela não me ajudaria. Após
mais ou menos uma hora, compreendi que era um erro me concentrar nas manifestações
ostensivas de frustração e desapontamento — que eu iniciara tudo, que o manipulava, o atraía
com falsas promessas, descumpria o compromisso de ir viver com ele. Essas afirmações, antes
inquietadoras, em retrospecto eram meramente patéticas. As verdadeiras ameaças, comecei a
entender, estavam alhures.
Por exemplo, um relato de como se sentia só sem mim foi interrompido por uma reflexão
acerca da solidão em que ele rememorava as férias que, aos catorze anos, passou no campo com
seu tio. Certo dia, Parry tomou por empréstimo uma espingarda calibre 22 e foi caçar coelhos.
Movendo-se furtivamente ao longo das sebes, cem por cento alerta, concentrado na tarefa — era
essa a solidão que ele adorava. A descrição seria bastante inofensiva caso ele não tivesse
revivido com tamanha ênfase os prazeres da execução — “poder de morte que saltou de meus
dedos, Joe, poder à distância. Posso fazer isso! Posso fazer isso!, eu costumava pensar.
Acertando a criatura na corrida, vendo-a dar alguns saltos-mortais antes de cair no solo em
contorções, tremelicando. Depois se imobilizava e eu chegava perto, me sentindo como o
mensageiro do destino embora amasse o pequeno ser que acabara de destruir. O poder da vida e
da morte, Joe. Deus o tem, mas nós, que somos feitos à Sua imagem, também o temos”.
Copiei três frases de outra carta: “Queria feri-lo. Talvez até mais do que isso. Algo pior, eu
pensei, e Deus me perdoará”. Numa carta recente havia um eco do comentário feito por ele no
dia em que voltei de Oxford. “Você começou tudo isso e agora não pode simplesmente sair
correndo. Posso arranjar gente para fazer coisas por mim — você já sabe disso. Neste exato
minuto, enquanto escrevo, dois sujeitos estão reformando o banheiro! Antigamente, eu mesmo
faria isso, tendo ou não dinheiro. Mas agora estou aprendendo a delegar.” Meditei sobre essas
frases um bom tempo. Qual era a conexão precisa entre minha incapacidade de fugir e a
possibilidade de que as coisas fossem feitas para ele por outras pessoas? Faltava um elo. Na
última carta, a propósito de nada: “Visitei ontem a Mile End Road — você sabe, onde vivem os
bandidos de verdade. Procurando por outros trabalhadores!”.
Em outros trechos havia invocações assustadoras da faceta sombria de Deus. “O amor
divino”, ele escreveu, “pode tomar a forma da ira. Pode se revelar a nós mediante uma
calamidade. Essa é a difícil lição que levei a vida inteira para aprender.” E, relacionado a isso:
“O amor divino nem sempre é doce. Como poderia ser, quando tem de perdurar, quando você não
pode jamais se desfazer dele? É um calor que pode queimá-lo, Joe, que pode consumi-lo”.
A correspondência de Parry continha pouquíssimas citações bíblicas. Como sua religião era
sonhadoramente vaga no que concerne aos elementos específicos da doutrina, ele parecia não se
afiliar a nenhuma igreja em particular. Sua crença tinha contornos muito pessoais, se vinculando
em geral à perspectiva de avanço e realização individuais. Eram comuns as referências à
Providência Divina, a seu “caminho” e como nada o impediria de segui-lo, ao destino — o dele e
o meu estando indissoluvelmente ligados. Frequentemente se confundiam os conceitos de Deus e
do seu próprio eu. O amor de Deus pela humanidade e seu amor por mim não eram categorias
distintas. Como sem dúvida Deus estava “dentro” dele e não nos céus, sua crença na divindade
permitia que ele atendesse os chamados da intuição e da emoção. Uma estrutura tão perfeitamente
amorfa era ideal para uma mente perturbada. Não havia restrições impostas por filigranas
teológicas ou normas religiosas, nenhuma coação social ou exigência sectária a respeitar,
nenhuma das molduras morais que tornam as religiões viáveis por mais falhas que sejam suas
cosmogonias. Parry só ouvia a voz interna de seu Deus particular.
Sua única concessão a uma fonte externa eram algumas referências à história de Jó, e mesmo
nesse caso não era certo que ele houvesse lido os textos originais. “Você parecia
desconfortável”, escreveu certa vez sobre o fato de me ver na rua. “Parecia até estar com alguma
dor, porém isso não deve levá-lo a duvidar de nós. Lembre-se de quanta dor Jó sentiu, embora
Deus nunca tivesse deixado de amá-lo.” Mais uma vez, a premissa implícita era que Deus e Parry
constituíam uma unidade, podendo entre eles acertar a questão de nossos destinos comuns. Outra
referência suscitava a possibilidade de que eu fosse Deus. “Estamos ambos sofrendo, Joe, ambos
atormentados. Caberia saber qual de nós dois é Jó.”
Parry não estava do lado de fora quando saí, no final da manhã, levando um envelope pardo
com os extratos meticulosamente documentados e o presente de Clarissa no bolso. Parei para
olhar à minha volta, imaginando que ele poderia surgir de trás de uma árvore. A mudança na sua
rotina me deixava preocupado. Eu não o via desde a manhã do dia anterior. Agora, tendo lido
tudo sobre a síndrome e compreendendo seu potencial, eu preferia que ele estivesse num lugar
onde pudesse vê-lo. A caminho da delegacia, olhei para trás algumas vezes a fim de verificar se
ele me seguia.
Era uma hora calma do dia, mas mofei por um tempão na sala de espera. Ali onde a
necessidade de ordem do ser humano bate de frente com sua propensão a causar tumultos, onde a
civilização se choca contra os descontentes, há muita fricção, muito desgaste. Isso era visível nos
linóleos esfarrapados diante de cada porta, na rachadura sinuosa que subia pelo vidro fosco atrás
do balcão de recepção, no ar quente e cansado que obrigava os visitantes a tirar seus paletós e os
policiais a só andar em mangas de camisa. Era também visível na postura encurvada dos dois
rapazes que vestiam blusões pretos e olhavam para os pés, se odiando mutuamente a tal ponto
que nem conseguiam se falar, bem como nas palavras gravadas a canivete no braço da cadeira em
que eu me sentara, num frouxo desafio ou numa ansiedade crescente: merda merda merda. E o vi
também na palidez fluorescente do rosto balofo e redondo do inspetor Linley quando ele por fim
me conduziu letargicamente a uma sala de entrevistas. Dava a impressão de que só de raro em
raro saía à luz do dia. E não era mesmo necessário, já que toda a confusão acabava desfilando
por ali.
Segundo um amigo que trabalhara por três anos na seção policial de um tabloide
sensacionalista, eu só conseguiria fazer com que eles se interessassem minimamente pelo meu
caso se registrasse uma queixa formal contra o tratamento dado até então ao assunto. Assim eu
seria capaz de ir além da mulher de óculos que tomava conta do balcão da recepção. Como a
queixa teria ao menos de ser processada, eu poderia explicar meu problema a alguém situado um
pouco mais acima na pirâmide hierárquica da delegacia. Mas esse amigo me alertou para que não
esperasse muito: meu interlocutor estaria de olho na aposentadoria e numa vida tranquila. Sua
missão consistia em abafar as queixas enquanto dava a impressão de cuidar delas.
Linley me indicou uma das duas cadeiras de metal do tipo que se pode empilhar. Encaramonos
por cima de uma mesa de fórmica decorada com círculos de café. Toda a superfície fria de
minha cadeira parecia estar coberta com uma fina camada de gordura. O fundo serrado de uma
garrafa de Coca-Cola servia como cinzeiro. Ao lado, um saquinho de chá usado se equilibrava
em cima de uma colher. A sujeira transmitia um desafio lacônico: a quem eu a denunciaria?
Registrada a queixa, Linley me telefonara para saber do que se tratava. Naquela ocasião,
fiquei na dúvida se ele era bem esperto ou uma besta quadrada. Tinha uma dessas vozes
estranguladas que os comediantes às vezes usam para caracterizar os burocratas. A de Linley
sugeria certo grau de imbecilidade. Por outro lado, ele não havia falado muito. Mesmo agora, ao
abrir a pasta, nenhum “bom dia” ou “onde estávamos” nem grunhidos. Apenas o silvo eletrônico
do ar passando por seus pelos nasais. Em meio a silêncios como aquele, pensei, os suspeitos e as
testemunhas acabavam falando mais do que queriam. Por isso, também fiquei calado enquanto ele
folheava as páginas cobertas da caligrafia inclinada com que fizera as anotações.
Linley ergueu os olhos sem me encarar. Olhava para meu peito. Só quando respirou mais
fundo, antes de começar a falar, é que seus olhos cruzaram de relance com os meus. “Quer dizer
que o senhor vem sendo molestado e ameaçado por esse indivíduo. O senhor deu parte disso e
não foi atendido corretamente.”
“Exato.”
“O molestamento consiste em...?”
“Como lhe disse antes”, comecei, tentando ler de cabeça para baixo o que ele escrevera.
Será que não me ouvira? “Ele me manda três ou quatro cartas por semana.”
“Obscenidades?”
“Não.”
“Sugestões libidinosas?”
“Não.”
“Insultos?”
“Na verdade, não.”
“Então são coisas de cunho sexual.”
“Não parece ser sobre sexo. É uma obsessão. Ele está totalmente fixado em mim. Não pensa
em outra coisa.”
“Ele telefona para o senhor?”
“Não mais. Agora são só as cartas.”
“Ele está apaixonado pelo senhor.”
“Ele sofre de uma enfermidade, a síndrome de De Clérambault. É uma forma de delírio.
Acha que eu comecei tudo, está convencido de que o encorajo com sinais secretos...”
“O senhor é psiquiatra, sr. Rose?
“Não.”
“Mas é homossexual.”
“Não.”
“Como se encontraram?”
“Já lhe disse. O acidente com o balão.”
Ele pinçou uma página de suas anotações. “Acho que não tenho nenhum registro disso.”
Fiz um breve relato do acidente enquanto ele apoiava nas mãos a cabeça pesada e simétrica,
ainda pouco propenso a tomar nota da história. Quando acabei, perguntou: “E como começou?”.
“Ele me telefonou naquela noite.”
“Ele disse que o amava e o senhor desligou. Isso deve tê-lo deixado muito preocupado.”
“Fiquei perturbado.”
“E então conversou sobre o assunto com sua esposa.”
“Na manhã seguinte.”
“Por que a demora?”
“Estávamos muito cansados e estressados depois do acidente.”
“E como ela vem reagindo a tudo isso?”
“Está aborrecida. Essas coisas têm causado muita tensão entre nós.”
Linley olhou para o lado e fez questão de franzir os lábios vagarosamente. “Ela fica zangada
com o senhor por causa disso? Ou o senhor com ela?”
“Isso vem criando dificuldades em nosso relacionamento. Sempre fomos muito felizes.”
“O senhor já teve algum problema psiquiátrico, sr. Rose?”
“Nenhum.”
“Complicações no trabalho, esse tipo de coisas?”
“Nada disso.”
“Mas o jornalismo é um negócio duro, não é mesmo?”
Concordei com a cabeça. Estava começando a odiar Linley e seu curioso rosto de lua cheia.
Quebrei a pausa que se seguiu: “Tenho boas razões para crer que esse sujeito vai se tornar um
perigo. Vim aqui em busca de ajuda”.
“Perfeitamente”, disse Linley. “Eu faria o mesmo. Tudo indica que a lei sobre esse tipo de
coisa vai ser endurecida. Quer dizer que ele se planta em frente à sua casa e o incomoda quando
o senhor sai.”
“Costumava fazer isso. Agora, só fica lá, parado. Se tento falar com ele, se afasta.”
“Então ele não está realmente...” Deixou a frase inconclusa e examinou, ou fingiu examinar,
as anotações. Balbuciou: “Temos aqui o molestamento, hum...”. E então, numa voz animada, me
perguntou: “E a questão das ameaças?”.
“Copiei algumas passagens. Elas não são óbvias. É preciso ler com atenção.”
O inspetor Linley se acomodou na cadeira para ler e, enquanto ele mantinha os olhos baixos,
estudei seu rosto. O repelente não era a palidez, mas sua redondeza sobre-humana. Um círculo
quase perfeito, tendo ao centro o nariz em forma de botão, englobava tanto a cúpula branca e
calva como a curva do queixo adiposo. E esse círculo estava inscrito na superfície de uma esfera
também quase perfeita. Sua testa era protuberante, as bochechas se projetavam abaixo dos
olhinhos cinzentos e a curva era retomada na área azulada e sem covinhas que separava o nariz
do lábio superior.
Ele deixou cair minhas folhas sobre a mesa, entrelaçou as mãos atrás da cabeça e
contemplou o teto por alguns segundos, olhando finalmente para mim com um toque de pena. “Em
matéria de predadores, sr. Rose, ele é um gatinho. O que o senhor quer que nós façamos? Que o
prendamos?”
“O senhor tem de compreender a intensidade de sua obsessão e a frustração que está se
acumulando. Ele precisa saber que não pode fazer o que quiser...”
“Não há nada aqui de ameaçador, ofensivo ou insultuoso nos termos da lei.” Linley agora
falava mais depressa. Queria me ver pelas costas. “Nada que fira nenhuma norma. Não
poderíamos nem ao menos o advertir. Ele ama a seu Deus e, lamentavelmente, também ama o
senhor, mas não violou a lei.” Pegou as folhas e as deixou cair de novo. “Quer dizer, onde está
realmente a ameaça?”
“Se o senhor ler com atenção e raciocinar de forma lógica, vai entender a insinuação de que
ele é capaz de arranjar alguém, contratar alguém, para me dar uma surra.”
“Não convence. O senhor devia ver o que nos aparece aqui. Ele não arrebentou seu carro,
arrebentou?, nem brandiu uma faca na sua cara, nem derramou a lata de lixo na entrada da sua
casa. Nem mesmo o xingou. Será que o senhor e sua esposa já pensaram em convidá-lo para
tomar um chá e conversar?”
Eu estava apreciando minha capacidade de manter a calma. “Olhe, é um caso clássico.
Síndrome de De Clérambault, erotomania, molestamento, chame do que quiser. Venho estudando
isso com cuidado. Os trabalhos sobre o assunto mostram que, quando ele se dá conta de que não
vai conseguir o que deseja, existe um risco real de violência. O senhor poderia ao menos mandar
alguns homens à sua casa para ele saber que está registrado na polícia.”
Linley se pôs de pé, mas permaneci obstinadamente sentado. Ele já estava segurando a
maçaneta. Sua demonstração de paciência era uma forma de zombaria. “No tipo de sociedade que
nós temos, ou desejamos ter, sem falar na falta de pessoal, não podemos mandar policiais à casa
do cidadão A só porque o cidadão B leu alguns livros e decidiu que há um cheiro de violência no
ar. Nem podem os meus homens estar em dois lugares ao mesmo tempo, observando esse sujeito
e protegendo o senhor.”
Eu ia responder, porém Linley abriu a porta e saiu. Falou-me do corredor. “Mas eu lhe digo
o que vou fazer. Vou mandar nosso guarda do quarteirão lhe fazer uma visita na próxima semana.
Ele tem dez anos de experiência em problemas comunitários e estou certo de que fará sugestões
úteis.” Foi-se embora e o ouvi dizer em voz alta, supostamente para os rapazes com os blusões
pretos na sala de espera: “Quê? Fazer queixa? Vocês dois? Brincadeira! Agora, escutem. Façam
o favor de desaparecer da minha frente, porra, ou dou um jeito de perder aquele prontuário”.
Como estava atrasado para o almoço, subi a rua com passadas rápidas, olhando por cima do
ombro à procura de um táxi. Eu devia estar furioso ou alarmado, porém, de algum modo, o chega
pra lá de Linley fora instrutivo. Eu havia feito duas tentativas de interessar a polícia. Não
precisava me chatear outra vez. Talvez tenha sido o peso do presente de Clarissa no bolso que
trouxe meus pensamentos de volta a ela — e a toda a nossa infelicidade. Eu não podia levar a
sério sua insistência em que estava tudo acabado entre nós. Sempre me parecera que nosso amor
era do tipo que duraria para sempre. Agora, andando às pressas pela Harrow Road, motivado
também por uma frase pronunciada pelo inspetor Linley, me descobri relembrando seu
aniversário anterior, quando celebramos sem um pingo de complicação em nossas vidas.
A frase era “em dois lugares ao mesmo tempo”, e a memória era de uma manhã bem cedo.
Eu a havia deixado dormindo e desci para fazer o chá. Provavelmente recolhi a correspondência
no chão do hall e, separando os cartões de aniversário, os coloquei numa bandeja. Enquanto
esperava que a água esquentasse, passei os olhos no material que gravaria à tarde para um
programa radiofônico. Lembro-me bem porque depois o usei como primeiro capítulo de um
livro. Poderia haver uma base genética para a crença religiosa, ou era apenas agradável imaginar
que isso fosse verdade? Se a fé conferisse uma vantagem seletiva, haveria um grande número de
meios para garantir sua efetivação, embora nenhum deles capaz de ser comprovado. Suponhamos
que a religião desse status, especialmente para a casta de sacerdotes — daí adviria uma grande
vantagem social. E se a fé transmitisse força na adversidade, o poder da consolação, a
possibilidade de sobreviver aos desastres que destruiriam quem não contasse com o amparo
divino? Talvez ela oferecesse aos crentes uma convicção apaixonada, a força bruta da
perseverança.
Possivelmente isso se aplicaria tanto aos grupos como aos indivíduos, gerando coesão e
identidade, bem como o sentimento de que você e seus companheiros tinham razão, até mesmo —
ou especialmente — quando estavam errados. Com Deus ao seu lado, estimulado por uma
unidade tresloucada, armado de uma certeza horripilante, você arremete contra a tribo vizinha,
matando e estuprando, e sai da refrega imbuído de sua retidão moral, glorificado pela vitória que
seus deuses lhe haviam prometido. Repita-se isso cinquenta mil vezes em cada mil anos, e o
intrincado conjunto de genes que determinam a convicção incomprovada tem tudo para se
espalhar pela população. Essas ideias ficaram entrando e saindo da minha cabeça até que a água
ferveu e preparei o chá.
Na noite anterior, Clarissa juntara o cabelo numa trança amarrada com uma fita de veludo
preto. Quando cheguei com o chá, os cartões de aniversário e o jornal da manhã, ela estava
sentada na cama, desfazendo a trança e ajeitando os cabelos. Estar na cama com a pessoa amada
é uma coisa boa, mas retornar a ela com o calor acumulado durante toda a noite é ainda mais
doce. Brindamos com o chá, lemos os cartões e começamos a agarração de aniversário. Clarissa
pesa uns trinta e cinco quilos menos do que eu e às vezes gosta de começar por cima. Ela se
embrulhou nos lençóis, como se eles fossem a cauda de um vestido de noiva, e montou em mim
ainda sonolenta. Naquela manhã, fizemos uma brincadeira. Fiquei deitado de costas fingindo que
lia o jornal. Enquanto ela me atraía suspirando, se remexendo e tremelicando, fiz de conta que
nem notara sua presença, virando as páginas e franzindo a testa ao ler uma matéria. Ela sentiu
alguma excitação masoquista ao ser ignorada, como se não fosse vista, como se não estivesse lá.
Aniquilada! Logo depois, se dedicou a destruir minha concentração no jornal, me arrastando da
agitada arena pública para um universo mais denso, feito só dela. Agora era eu que precisava ser
obliterado e, juntamente comigo, tudo que não era ela.
Entretanto, nessa ocasião ela não teve êxito porque, durante um breve período, eu consegui
o que Linley havia declarado ser impossível para seus policiais. Apesar de excitado, na verdade
continuei a ler sobre a Rainha, que iria visitar uma cidade chamada Yellowknife nos remotos
Territórios do Noroeste do Canadá — uma região do tamanho da Europa com cinquenta e sete
mil habitantes, a maioria dos quais, aparentemente, bêbados e arruaceiros. Enquanto Clarissa
saracoteava em cima de mim, o que chamou minha atenção foi um parágrafo acerca do horrível
clima do Território, em especial duas frases desconectadas do resto do texto: “Recentemente,
uma tempestade de neve se abateu sobre um campo de futebol ao norte de Yellowknife. Incapazes
de escapar para um lugar seguro, os dois times morreram congelados”. “Escute isso”, disse a
Clarissa. Mas ela me olhou, e parei por ali. Eu pertencia a ela.
O ato de ler e compreender ativa algumas funções do cérebro que são distintas mas se
superpõem, enquanto a região que comanda a função sexual se insere num nível mais baixo e
mais antigo em termos evolucionários, compartilhado com um grande número de organismos,
conquanto ainda capaz de operar juntamente com funções superiores, tais como a memória, a
emoção e a fantasia. Lembro-me tão bem daquela manhã do aniversário de Clarissa — cartões e
envelopes rasgados espalhados pela cama, a luz do sol se intrometendo por uma abertura entre as
cortinas — porque aquela nossa brincadeirinha pela primeira vez na vida me propiciou a
experiência de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Excitado por Clarissa, totalmente aceso e
agradecido, eu estava concomitantemente envolvido na tragédia que se escondia detrás da
pequena notícia do jornal, os dois times dispersados em meio à partida pelas violentas rajadas
de vento para morrer com as chuteiras no pé num campo agora tornado invisível pela neve que
caía. Durante a cópula, todas as criaturas são vulneráveis ao ataque, mas a seleção natural, ao
longo dos milênios, deve ter provado que o êxito reprodutivo era favorecido por uma atenção
concentrada. Melhor que um ou outro casal fosse eventualmente devorado em pleno êxtase do que
diluir um vigoroso impulso de procriação. Mas o fato é que, durante muitos segundos, eu
desfrutei salutar e simultaneamente de dois prazeres antagônicos e adoráveis: ler e foder.
“Você não acha”, perguntei a Clarissa mais tarde, no banheiro, “que eu sou um bom exemplo
de onde a evolução ainda pode levar o ser humano?”
Clarissa, a especialista em Keats, estava sentada num tamborete forrado de cortiça, nua,
toda encurvada, pintando as unhas do pé — parte das comemorações do aniversário. “Não”, ela
respondeu. “Você está é ficando velho, e seja como for” — e imitou nesse ponto alguém que
costumava participar de muitos programas radiofônicos — “a mudança evolucionária, a
especiação, é algo que só pode ser conhecido em retrospecto.”
Um ano depois, a congratulei internamente pelo uso correto do linguajar técnico e, quando o
táxi parou, me dei conta de quão intensamente eu ressentia a perda de nossa vida em comum, sem
saber como poderíamos recuperar aquele amor, aquela intimidade espontânea e divertida.
Clarissa achava que eu estava doido, a polícia achava que eu era um idiota, e uma única coisa
era clara: a tarefa de nos colocar de volta onde antes tínhamos estado seria minha e só minha.
19.
Cheguei com vinte minutos de atraso. O lugar estava entupido de gente e, quando entrei
vindo da rua, a algazarra era tamanha que tive a impressão de estar caminhando em meio a uma
tempestade. Parecia haver um só tópico de conversa — o que se tornaria realidade dali a uma
hora. O professor já estava sentado, embora Clarissa continuasse de pé. Mesmo do outro lado da
sala, dava para ver que ela permanecia eufórica e vinha criando certa agitação ao seu redor. De
joelhos aos seus pés, como se rezasse, um garçom calçava a mesa, enquanto outro lhe trazia uma
nova cadeira. Ao me ver, ela saltitou em meio à barulheira, tomou minha mão e me conduziu à
mesa como se eu fosse cego. Atribuí sua animação aos eflúvios comemorativos, porque não
celebrávamos apenas o aniversário dela: o professor Jocelyn Kale, padrinho de Clarissa, fora
nomeado para uma posição honorária no Projeto Genoma Humano.
Antes de sentar, beijei Clarissa. Ultimamente, nossas línguas nunca se tocavam, mas naquele
momento o fizeram. Jocelyn fez menção de se levantar da cadeira e apertou minha mão. No
mesmo instante foi trazido à mesa um balde com champanhe e regulamos o tom de nossas vozes
em função do alarido geral. O balde de gelo, pousado sobre uma toalha branca, estava
enquadrado por um retângulo de luz solar, e as altas janelas do restaurante exibiam retalhos de
céu azul entre os prédios vizinhos. O beijo me deixou de pau duro. A crer na memória, foi tudo
alegria, claridade, algaravia. A crer na memória, todas as comidas que nos trouxeram de início
eram vermelhas: a brachola, os gordos pimentões assados sobre um leito de queijo de cabra, o
radicchio, a tigelinha de porcelana cheia de rabanetes. Quando mais tarde me lembrei de como
nos havíamos inclinado para a frente e urrado, parecia estar rememorando um evento
subaquático.
Jocelyn tirou do bolso um pacotinho de papel de seda azul. Fizemos um silêncio imaginário
em nossa mesa enquanto Clarissa desembrulhava o presente. Talvez tenha sido então que olhei de
relance para a mesa à nossa esquerda. Um homem, que vim a saber se chamar Colin Tapp, estava
lá com a filha e o pai. Ou talvez tenha reparado neles depois. Se notei naquele momento o freguês
solitário que, de costas para mim, ocupava uma mesa a seis metros de distância, não ficou
registro na memória. Retirado o papel azul, surgiu uma caixinha preta e, dentro dela, numa nuvem
de algodão, um broche de ouro. Ainda em silêncio, ela o tirou da caixa, permitindo que o
examinássemos na palma de sua mão.
Dois fios de ouro se entrelaçavam numa dupla hélice. Os filamentos eram unidos por
minúsculos degraus de prata em grupos de três que representavam os pares de bases, o alfabeto
de quatro letras que, graças a uma série de permutações, codifica todas as coisas vivas.
Gravados nos fios helicoidais havia desenhos esféricos que sugeriam os vinte aminoácidos
mapeados pelos códons de três letras. Com a luz refletida pela toalha, o broche parecia, na mão
de Clarissa, mais do que uma simples representação. Podia ser a própria coisa, pronta a gerar
cadeias de aminoácidos que se misturariam nas moléculas de proteína. Poderia se dividir ali
mesmo, na mão dela, para dar origem a outro presente. Quando Clarissa murmurou o nome de
Jocelyn, o fragor do restaurante voltou a nos envolver.
“Ah, meu Deus, que beleza!”, ela exclamou, lhe dando um beijo.
Os olhos fracos e de um tom azulado de amarelo de Jocelyn estavam úmidos. “Era de
Gillian, você sabe. Ela teria gostado muito que agora fosse seu.”
Eu estava impaciente por mostrar meu próprio presente, mas permanecíamos sob a aura do
presente de Jocelyn. Clarissa pregou o broche na blusa de seda cinza.
Será que eu agora me lembraria da conversa caso não soubesse o que aconteceu depois?
Começamos com a piada de que o Projeto Genoma distribuía essas joias às dúzias. Depois,
Jocelyn falou sobre a descoberta do dna. Talvez tenha sido então que me virei na cadeira para
dizer a um garçom que nos trouxesse água e reparei nos dois homens com a menina. Bebemos o
champanhe e demos cabo das entradas. Não me lembro do que pedimos como prato principal.
Jocelyn começou a nos contar sobre Johann Miescher, o químico suíço que identificou o dna em
1868. Essa era considerada uma das maiores oportunidades perdidas na história da ciência.
Miescher havia obtido, de um hospital local, um suprimento regular de curativos empapados de
pus. (Ricos em glóbulos brancos, Jocelyn explicou a Clarissa.) Miescher estava interessado na
química dos núcleos das células, onde encontrou fósforo — uma substância improvável, que não
se enquadrava nos conceitos da época. Descoberta notável, porém o estudo em que a expunha foi
retido por seu professor, que passou dois anos repetindo e confirmando as experiências do aluno.
Embora eu conhecesse a história de Miescher, não foi por enfado que deixei de prestar
atenção em Jocelyn, mas por inquietação, pela impaciência resultante do sentimento de liberação
que me viera após a entrevista. Eu teria gostado de contar meu encontro com o inspetor Linley, o
apimentando e extraindo alguma graça do relato, mas sabia que isso nos levaria de volta às
questões que me separavam de Clarissa. Na mesa ao lado, a menina estava sendo ajudada a
examinar o menu pelo pai, que, como eu àquela altura da vida, precisava empurrar os óculos para
baixo a fim de ler as letras pequenas. A garota se apoiava carinhosamente no braço dele.
Enquanto isso, Jocelyn, desfrutando o triplo privilégio da idade, da eminência e de ter
trazido o presente, continuou com sua história. Miescher não desistiu. Reuniu uma equipe e se
pôs a estudar o que chamou de ácido nucleico. Foi então que descobriu as substâncias que
compõem o alfabeto de quatro letras em cujo idioma toda a vida está escrita — adenina e
citosina, guanina e timina. Isso não significava nada. E foi se tornando ainda mais estranho com o
correr do tempo. O trabalho de Mendel sobre as leis da hereditariedade haviam tido aceitação
geral e os cromossomos foram identificados no núcleo das células, suspeitando-se que ali se
localizasse a informação genética. Sabia-se que o dna estava nos cromossomos, cuja estrutura
química fora descrita por Miescher — que, em 1892, especulou numa carta para seu tio que o dna
podia conter o código da vida, da mesma forma que o alfabeto continha os códigos para a
linguagem e os conceitos.
“Estava na cara deles”, disse Jocelyn, “mas não podiam ver, não conseguiam ver. O
problema, obviamente, é que os químicos...”
Era duro falar em meio à gritaria. Esperamos enquanto ele bebeu um gole d’água. A história
estava sendo contada a Clarissa para dar maior brilho ao presente. Durante o tempo em que
Jocelyn descansou a voz, houve um movimento às minhas costas e fui obrigado a puxar a cadeira
para dar passagem à menina. Ela seguiu na direção dos banheiros. Quando a vi novamente, já
estava de volta em seu lugar.
“Os químicos, você sabe, são muito poderosos, muito cheios de si. O século xix foi uma
idade de ouro para eles. Adquiriram grande autoridade, porém eram tremendamente rabugentos.
Veja, por exemplo, o Phobus Levine, do Instituto Rockefeller. Ele estava totalmente convencido
de que o dna era uma molécula tediosa e irrelevante que continha sequências aleatórias daquelas
quatro letras, acgt. Desprezou a coisa toda e, então, na melhor tradição do ser humano, isso se
transformou numa questão de fé para ele, fé inabalável. Ele sabia o que sabia, e a molécula era
insignificante. Nenhum dos pesquisadores mais novos conseguiu superar seu poder. O tema teve
de esperar muitos anos, até os estudos de Griffith sobre bactérias na década de 20. Que foram
retomados por Oswald Avery em Washington — claro, após Levine haver saído de cena. As
pesquisas de Oswald se arrastaram por um tempão, até os anos 40. Veio então Alexander Todd,
trabalhando em Londres nas ligações de fosfato e sacarose, e, em 1952 e 1953, Maurice Wilkins
e Rosalind Franklin, seguidos por Crick e Watson. Você sabe o que a pobre Rosalind disse
quando os dois lhe mostraram o modelo que haviam feito da molécula de dna? Que era
simplesmente bonito demais para não ser verdade...”
A referência a nomes cada vez mais acelerada e seu assunto de estimação, a beleza na
ciência, fizeram Jocelyn mergulhar num estado de muda reminiscência. Ficou remexendo no
guardanapo. Tinha oitenta e dois anos. Conhecera todos eles como alunos ou colegas. E Gillian
havia trabalhado com Crick, após a grande descoberta, na molécula adaptadora. Gillian, assim
como Franklin, tinha morrido de leucemia.
Fui um pouco lento na jogada, mas Jocelyn tinha me dado um belo passe. Meti a mão no
bolso do paletó e não pude resistir à citação famosa: “A beleza é a verdade, a verdade, a
beleza...”. Clarissa riu. Já devia ter desconfiado que ganharia um livro de Keats, porém jamais
sonharia com o que estava agora em suas mãos, envolto num ordinário papel pardo. Antes mesmo
de acabar de desembrulhá-lo, ela o reconheceu e soltou um gritinho. A menina na mesa ao lado se
virou na cadeira para ver o que estava acontecendo, até que o pai lhe deu uma cutucada no braço.
Um in-oitavo em formato almaço com capas pardas e rótulo negro. Mau estado de conservação,
reparos, ligeiro dano causado por água. Uma primeira edição de sua primeira coletânea, Poems,
de 1817.
“Que presentes!”, disse Clarissa. Levantou-se e passou os braços por meu pescoço. “Deve
ter custado milhares...” Encostou então a boca no meu ouvido, como em outros tempos. “Você é
um menino muito mau para gastar esse dinheirão todo. Vou te obrigar a me foder a tarde inteira.”
Não era verdade, mas deixei correr e disse: “Ah, está bem, se isso vai te fazer se sentir
melhor”. Era o champanhe, sem dúvida, além da mera gratidão, mas não deixei de me sentir
contente.
Nos dias seguintes fiquei tentado a inventar ou enfeitar detalhes sobre a mesa ao lado,
forçando a memória a fornecer o que nunca havia registrado, porém vi o homem, Colin Tapp,
pousar a mão no braço de seu pai enquanto lhe falava, o acalmando. Também se tornou difícil
separar do que senti naquele momento o que descobri depois. Tapp de fato era dois anos mais
velho do que eu, sua filha tinha catorze anos, seu pai, setenta e três. Não especulei sobre a idade
deles — a essa altura eu já estava bem mais concentrado, estávamos nos divertindo em minha
própria mesa —, porém devo ter feito suposições sobre a relação entre os três sem me
conscientizar disso, usando aquela linguagem pré-verbal que opera no interior da mente. A
menina foi quem mais pude observar, ainda que de relance. Ela mantinha as costas bem retas,
naquela pose adotada por alguns adolescentes para transmitir uma imagem de autocontrole e
sofisticação, embora com isso causem o efeito exatamente oposto. Tinha pele morena e cabelos
negros cortados bem curtos, a nuca mais pálida revelando que o corte fora recente. Ou quem sabe
observei esses detalhes mais tarde, em meio ao caos ou até depois. Outro exemplo das confusões
a que está sujeita a memória: consegui inserir na recordação da cena a figura do homem que, de
costas para mim, almoçava sozinho. Embora só o tivesse visto no último momento, não fui capaz
de excluí-lo das reconstituições posteriores.
Em nossa mesa, Clarissa voltara a sentar e a conversa passou para os jovens oprimidos,
coartados ou de alguma forma bloqueados por homens mais velhos, pais, professores, mentores
— ou mesmo seus ídolos. O ponto de partida havia sido Johann Miescher e seu mestre, Hoppe-
Seyler, que impedira a publicação da descoberta feita pelo pupilo acerca da presença de fósforo
no núcleo das células. Acontece que Seyler era também o editor da revista à qual fora submetida
a comunicação de Miescher. Dali, de Miescher e Hoppe-Seyler — e eu tive tempo mais tarde de
reconstruir a conversa de trás para a frente —, chegamos a Keats e Wordsworth.
Clarissa era agora nossa fonte de informações, conquanto Jocelyn, além de dominar sua área
de atuação profissional, soubesse um pouco de quase tudo. Assim, tendo lido a biografia escrita
por Gittings, ele conhecia a famosa história da visita feita pelo jovem Keats ao poeta que
reverenciava. Eu sabia da visita porque Clarissa havia me contado. Em fins de 1817, Keats
passou um tempo numa hospedaria chamada Fox and Hounds, perto de Box Hill, em North
Downs, onde terminou o longo poema Endymion. Lá ficou durante uma semana, caminhando
pelas colinas de calcário num transe de excitação criativa. Tinha vinte e um anos, acabara de
escrever um sério e bonito poema sobre a paixão e, ao voltar para Londres, estava exultante.
Soube então, com imensa alegria, que seu herói, William Wordsworth, se encontrava na cidade.
Keats tinha lhe enviado um exemplar do Poems com a dedicatória: “A W. Wordsworth, com a
sincera Reverência do Autor”. (Era esse o livro que eu devia dar a Clarissa, mas ele pertencia à
Biblioteca da Universidade de Princeton e, segundo ela, muitas de suas páginas ainda estavam
unidas umas às outras, nunca tinham sido abertas.) Keats se nutrira da poesia de Wordsworth,
tendo caracterizado The excursion como “uma das três coisas que nos dão alegria nos dias de
hoje”. Colhera em Wordsworth a ideia da poesia como uma vocação sagrada, a mais nobre
missão. Depois de persuadir seu amigo, o pintor Haydon, a arranjar um encontro, os dois saíram
a pé do ateliê em Lisson Grove para visitar o grande gênio na Queen Anne Street. Em seu diário,
Haydon observou que Keats manifestara “o maior e mais puro prazer” com relação à entrevista.
Wordsworth, então com quarenta e sete anos, era conhecido por seu temperamento
casmurro, mas foi bastante cordial com Keats e, após alguns minutos de conversa banal, lhe
perguntou no que estava trabalhando. Haydon se adiantou e respondeu por Keats, pedindo que
este declamasse a ode a Pã constante do Endymion. Ao que Keats, caminhando de um lado para
outro na frente do grande homem, recitou em “seu estilo quase de cantochão (e muito
emocionante)...”. Foi nesse ponto que Clarissa, lutando contra o clamor do restaurante, citou:
Seja ainda o refúgio inimaginável
Dos pensamentos solitários, aqueles que nos escapam
Até os confins do céu,
Depois deixando o cérebro vazio:
E, quando o inflamado jovem terminou, Wordsworth, aparentemente incapaz de suportar por
mais tempo sua adoração, quebrou o silêncio com um chocante veredicto de repúdio ao dizer
com secura: “uma peça de paganismo bem bonitinha”. Segundo Haydon, a frase “foi insensível e
indigna de um grande gênio com relação a quem o adorava tanto como Keats — que ficou
profundamente ferido” e jamais o perdoou.
“Mas dá para confiar nessa história?”, perguntou Jocelyn. “Acho que no livro do Gittings se
diz que não devemos acreditar nela.”
“E não devemos mesmo”, retrucou Clarissa, começando a enumerar as razões para tal.
Se eu houvesse me levantado enquanto ela falava e me virado na direção da porta do
restaurante, teria visto, por cima de uma multidão de cabeças falantes, dois homens entrarem e
conversarem com o maître. Um deles era alto, mas não creio que eu teria notado isso. Soube
depois, porém um truque da memória me forneceu a imagem como se eu estivesse de pé naquela
hora: o recinto apinhado, o homem alto, o maître balançando afirmativamente a cabeça e
gesticulando de forma vaga na nossa direção. E então, no reino da fantasia, o que é que eu
poderia ter feito para convencer Clarissa e Jocelyn, bem como os estranhos da mesa ao lado, a
abandonarem suas refeições e correrem comigo escada acima a fim de encontrar um caminho
alternativo que nos levasse à rua? Durante várias noites de insônia voltei para implorar que
saíssem. Olhem, digo para os vizinhos de mesa, vocês não me conhecem, mas venho de um futuro
contaminado e sei o que está para acontecer. Trata-se de um erro, não precisa acontecer.
Poderíamos escolher outro desenlace. Descansem na mesa seus garfos e facas e me sigam,
depressa! Não, por favor, confiem em mim! Basta confiar em mim! Vamos!
Mas eles não me veem ou ouvem. Continuam a comer e a falar. Assim como eu.
“Seja como for, a história é mantida viva. O famoso fora”, comentei.
“É”, Jocelyn disse com entusiasmo. “Não é verdade, mas precisamos disso. Uma espécie de
mito.” Olhamos para Clarissa. Em geral ela se mostrava reticente com respeito àquilo que
conhecia realmente bem. Anos antes, numa festa, depois de alcançar um razoável grau de
intoxicação etílica, eu tivera de me pôr de joelhos para conseguir que ela recitasse de cor “La
belle dame sans merci”. Mas agora, como estávamos ao mesmo tempo celebrando e tentando
esquecer, era melhor seguir falando.
“Não é verdade, mas espelha a verdade. Wordsworth era arrogante ao ponto de ser
extremamente desagradável com outros escritores. Gittings coloca bem a questão ao dizer que ele
estava na segunda e difícil metade dos quarenta. Depois de fazer cinquenta anos, se acalmou,
ficou menos macambúzio, todos à sua volta puderam respirar. A essa altura Keats já tinha
morrido. Há sempre alguma coisa deliciosa no fato de jovens gênios serem rechaçados pelos
poderosos. Vocês lembram do sujeito da Decca que rejeitou os Beatles. Sabemos que Deus, sob
a forma de história, se vingará...”
Os dois homens provavelmente estavam se esgueirando entre as mesas em nossa direção.
Não tenho certeza disso. Escarafunchei esses últimos trinta segundos e só tenho certeza de duas
coisas: uma é que o garçom nos trouxe os sorbets; a outra é que comecei a sonhar acordado.
Coisa que faço com frequência. Quase por definição, não fica vestígio dos devaneios, eles na
verdade escapam ao conhecimento até os confins do céu e depois deixam nossos cérebros vazios.
Mas retornei tantas vezes àquele momento que o recuperei ao lembrar que tivera início com a
afirmação de Clarissa de que “a essa altura Keats já tinha morrido”.
As palavras, o memento mori, me fizeram entrar em órbita. Ausentei-me por alguns
instantes. Vi-os juntos, Wordsworth, Haydon, Keats, numa sala da casa de Monkton na Queen
Anne Street e imaginei a soma de cada sensação e pensamento dos três, e depois todo o resto, o
caimento das roupas, o ranger das cadeiras e assoalhos, a ressonância de suas vozes nos próprios
peitos, o calorzinho do renome, o conforto ou desconforto dos sapatos, as coisas nos bolsos, o
impacto de seus passados recentes sobre os diferentes futuros, as molduras existenciais cada vez
maiores e mais frágeis de cada um naquela fase de suas vidas — tudo isso tão luminosamente
evidente quanto o agitado e barulhento restaurante, e tudo isso finito, acabado, assim como Logan
sentado em meio ao capim.
O que leva um minuto para ser descrito não tomou mais do que dois segundos de minha
atenção. Voltei da viagem e, para compensar a breve ausência, contei a Clarissa e Jocelyn uma
história que também girava em torno de um gênio desprezado. Um editor aposentado, casado com
uma física amiga minha, me disse que, na década de 50, rejeitara um romance intitulado
Estranhos de dentro para fora. (A essa altura os dois homens deviam estar a uns três metros de
distância, bem atrás de nossa mesa. Creio que nem chegaram a nos ver.) Quanto ao editor, o dado
interessante é que ele só descobriu o erro trinta anos depois, quando apareceu uma velha pasta no
lugar onde trabalhava. Ele não se lembrava do nome do autor no texto datilografado — lia
dezenas a cada mês — nem lera o livro quando publicado. Ou, pelo menos, logo que saiu. O
autor, William Golding, além de reintitulá-lo O Senhor das Moscas, havia eliminado o longo e
enfadonho capítulo inicial que desencorajara meu amigo.
Preparava-me para expor minha retumbante conclusão — que o tempo nos protege de nossos
piores erros —, porém Clarissa e Jocelyn já não me ouviam. Bem que eu notara algum
movimento ao lado. Agora, seguindo a direção de seus olhares, me voltei para trás. Os dois
homens, que haviam parado junto à mesa vizinha, pareciam ter sofrido queimaduras em todo o
rosto. A pele deles exibia uma coloração rosada, sem brilho, típica de bonecas ou ataduras
médicas, mas nada que se encontrasse em seres humanos. Compartilhavam uma expressão vazia,
de robôs. Mais tarde soubemos se tratar de máscaras de látex, mas naquele instante eram uma
visão chocante, antes mesmo de eles entrarem em ação. A chegada do garçom com nossas
sobremesas em tigelinhas de aço inoxidável propiciou um alívio passageiro. Os dois homens
usavam casacos pretos, que lhes davam a aparência de padres. Havia algo de cerimonioso na
imobilidade de ambos. Meu sorbet era de lima-da-pérsia, de um verde tão pálido que quase
poderia passar por branco. Eu já tinha pegado a colher, sem chegar a usá-la. Todos em nossa
mesa olhavam desavergonhadamente para a outra mesa.
Os intrusos ficaram lá parados, observando nossos vizinhos, que por sua vez os olhavam,
intrigados, esperando. A menina olhou para o pai e voltou a encarar os homens. O mais velho
descansou o garfo e, embora desse a impressão de que iria falar, continuou calado. Uma série de
possibilidades desfilou rapidamente diante de mim: uma brincadeira de estudantes; vendedores;
o homem, Colin Tapp, era médico ou advogado e aqueles eram pacientes ou clientes dele; alguma
nova versão do telegrama animado; gente louca da família vinda para causar confusão. O
vozerio, que diminuíra em nossas imediações, tinha retomado o nível anterior. Quando o mais
alto dos dois homens tirou do casaco um objeto preto, uma vara de condão, me inclinei pela ideia
do telegrama animado ou coisa parecida. Mas o que fazia seu companheiro ao se virar lentamente
para trás e examinar o salão? Não se deteve em nossa mesa, que estava tão próxima. Seus olhos,
lembrando os de um porco dentro dos buracos da pele artificial, nunca cruzaram com os meus. O
mais alto, se preparando para executar sua mágica, apontou a vara de condão na direção de Colin
Tapp.E o próprio Tapp de repente se adiantou um segundo a todos nós. Suas feições mostraram o
que não havíamos compreendido sobre a mágica. Seu pasmo, congelado num ricto de terror, não
teve tempo de encontrar palavras para nos dizer o que só ele sabia. A bala silenciada atravessou
sua camisa branca no ombro e o ergueu da cadeira, o atirando contra a parede. O impacto de alta
velocidade lançou uma nuvem de borrifos de sangue em cima da toalha de nossa mesa, em cima
de nossas sobremesas, de nossas mãos, de nossas vistas. Meu primeiro impulso foi simples e
defensivo: não acreditei no que via. Os lugares-comuns têm fundamento na realidade: não
acreditei nos meus olhos. Tapp desabou sobre a mesa. Seu pai ficou petrificado, nenhum músculo
de seu rosto se moveu. Quanto à menina, ela fez a única coisa possível — desmaiou, sua mente se
fechando diante da atrocidade. Escorregou de lado na cadeira em direção a Jocelyn, que — num
gesto instintivo para um antigo esportista — estendeu a mão e a agarrou pelo braço. E, se não
impediu que ela caísse, evitou que batesse com a cabeça.
Enquanto ela caía, o homem levantou a arma de novo e apontou para o topo da cabeça de
Tapp, no que seria sem dúvida o tiro fatal. Mas foi então que o indivíduo que comia sozinho
pulou da cadeira e, soltando o que soou como um ganido, se lançou de braço esticado na direção
da arma. Desviando o cano a tempo, fez com que a segunda bala se alojasse no alto da parede.
Muito embora ele tivesse cortado o cabelo bem curto, como pude deixar de reconhecer Parry?
Em nossa mesa, ninguém foi capaz de se mover ou de falar. Os dois homens partiram rumo à
porta. O mais alto enfiou o revólver e o silenciador dentro do casaco enquanto corria. Não vi
Parry ir embora, porém ele deve ter seguido em outra direção, escapando por uma das saídas de
emergência. Só duas mesas haviam assistido ao evento. Delas talvez tenha escapado um grito,
seguido por muitos segundos de paralisia. Mais além, ninguém ouviu nada. A algazarra, o tilintar
de talheres nos pratos continuaram imbecilmente sem pausa.
Olhei para Clarissa. Um dos lados de seu rosto estava avermelhado. Ia lhe dizer algo
quando compreendi tudo, o entendimento me chegando por inteiro e sem esforço, naquele
relâmpago neurológico de pensamento pré-verbal que num átimo engloba a relação e a estrutura,
que sabe a conexão entre as coisas melhor do que as próprias coisas. O refúgio inimaginável.
Nossas duas mesas — sua composição, o número de pessoas, os sexos, as idades relativas.
Como Parry teria sabido?
Tinha sido um erro. Nada pessoal. Um contrato, e dera errado. Era para ter sido eu.
Mas não senti nada, nem ao menos a sensação de triunfo ao ver confirmadas minhas
suspeitas. Tudo havia acontecido antes da invenção das emoções, antes da ramificação dos
pensamentos, antes do pânico e da culpa, antes de todas as escolhas. Por isso continuamos
sentados lá, imóveis, em estado de choque, enquanto à nossa volta a balbúrdia da hora do almoço
amainava à medida que a compreensão do que acontecera foi se espalhando em círculos
concêntricos a partir de nosso silêncio. Dois garçons corriam em nossa direção, seus rostos
distorcidos pelo espanto, e eu sabia que só quando eles chegassem onde estávamos é que a
história poderia prosseguir.
20.
Pela segunda vez naquela tarde, e também a segunda em toda a minha vida, eu estava
sentado numa delegacia de polícia — agora na Bow Street — esperando para ser ouvido. Os
estatísticos chamam isso de agrupamento aleatório, uma forma útil de lhe negar significação.
Além de Clarissa e Jocelyn, havia sete outras testemunhas na sala — quatro fregueses de duas
mesas próximas, dois garçons e o maître. Esperava-se que o sr. Tapp fosse capaz de depor, no
dia seguinte, do seu leito no hospital. A menina e o senhor de idade ainda estavam chocados
demais para falar.
Poucas horas haviam se passado e já figurávamos na manchete do jornal da tarde. Um dos
garçons saiu para comprar um exemplar e, reunidos à sua volta, nos sentimos estranhamente
honrados ao ver que nossa experiência era traduzida em expressões do tipo “atrocidade no
restaurante”, “pesadelo no almoço” e “banho de sangue”. Inclinando ligeiramente a cabeça numa
demonstração profissional de respeito, o maître chamou nossa atenção para uma frase em que eu
era descrito como “o conhecido escritor científico” e Jocelyn como “o eminente cientista”,
enquanto Clarissa era simplesmente caracterizada como “bonita”. Soubemos pelo jornal que
Colin Tapp era subsecretário no Ministério de Indústria e Comércio. Homem de negócios antes
de entrar para o Parlamento, tinha “muitas conexões, assim como muitos inimigos, no Oriente
Médio”. Especulava-se sobre “um corajoso freguês” que salvara a vida de Tapp e desaparecera
misteriosamente. Nas páginas internas havia material de análise acerca do fato de Londres ser
“um parque de diversões de fanáticos” e um comentário acerca do fim “da vida inocente e
pacífica de outrora”. Embora incrivelmente instantânea, a cobertura parecia muito familiar, como
se a matéria houvesse sido preparada com antecedência e o evento que testemunháramos
encenado apenas para justificar o que já fora escrito.
Dois policiais deviam tomar os depoimentos das testemunhas, mas demoraram a se
organizar. Passada a excitação do jornal, voltamos a nossos lugares e se instalou um pesado
silêncio. Os frequentes bocejos eram seguidos de sorrisinhos sem graça em reconhecimento de
seu poder de contágio. Por fim os policiais se declararam prontos, chamando de início Clarissa e
Jocelyn. Ela saiu vinte minutos depois e sentou a meu lado, esperando pelo padrinho.
Desembrulhou o livro de Keats e o abriu para cheirar as páginas. Pegou depois minha mão e a
apertou, aproximando a boca de meu ouvido. “É um presente fabuloso.” E então: “Olhe, Joe, trate
de contar só o que você viu, está bem? Não entre naquele outro assunto”.
Por algo que me dissera anteriormente, eu já sabia que Clarissa não havia reconhecido
Parry. Não ia discutir isso com ela agora. O problema era só meu. Limitei-me a fazer que sim
com a cabeça e perguntei: “Você vai levar Jocelyn até a casa dele?”.
“Vou. Te espero lá em casa.”
Ele saiu, trocamos um aperto de mão e os dois se foram. Acomodei-me para esperar,
preparando o que queria dizer. O maître saiu e um dos fregueses entrou, seguido por um garçom.
Penúltimo a ser chamado, fui levado à sala de entrevistas por um jovem cortês que se apresentou
como detetive Constable Wallace.
Antes mesmo de sentar, fui falando: “Acho melhor lhe dizer logo que sei o que aconteceu. A
bala que atingiu o sr. Tapp era dirigida a mim. O homem que estava almoçando sozinho e
interveio é alguém que anda me incomodando. Seu nome é Parry. Na verdade, me queixei dele à
polícia hoje mesmo, mais cedo. Gostaria que o senhor entrasse em contato com o inspetor Linley
na delegacia da Harrow Road. Eu até disse a ele que achava que Parry era capaz de contratar
alguém para me fazer mal”.
Enquanto eu falava, Wallace me observava atentamente, embora, pensei, sem demonstrar
grande surpresa. Indicou uma cadeira quando terminei. “Muito bem. Vamos começar do começo”,
passando a anotar meu nome, endereço e tudo que aconteceu desde que cheguei no restaurante. O
processo era necessariamente detalhista e Wallace vez por outra se interessava por coisas
irrelevantes: queria saber sobre o que havíamos conversado em nossa mesa, me pedindo a certa
altura que descrevesse o estado de espírito de meus companheiros; também indagou sobre a
comida e quis que eu avaliasse o serviço. Perguntou-me duas vezes se tinha ouvido Parry ou os
homens encasacados gritarem. Quando terminamos, leu em voz alta minhas declarações,
pronunciando cada frase como se fosse um item numa lista de mercadorias. Era o tipo de prosa
que me deu vontade de repudiar imediatamente. Quando chegou ao ponto: “Havia um homem
almoçando sozinho numa mesa não muito distante da mesa em que almoçávamos e reconheci que
esse homem era...”, tratei de interrompê-lo. “Desculpe, não foi isso que eu disse.”
“O senhor não reparou nele?”
“Eu o vi, mas de início não percebi quem era.”
Wallace franziu a testa. “Mas o senhor o tem visto um bocado, postado em frente à sua casa,
em outras ocasiões...”
“Ele cortou o cabelo e estava de costas para nós.”
Wallace fez uma correção e leu até o final. Enquanto eu assinava, ele disse: “Se o senhor
não se incomodar de ficar mais algum tempo aqui na delegacia, sr. Rose, gostaria de revê-lo
daqui a pouco”.
“Não me incomodo de esperar”, respondi. “Tem um homem lá fora que quer me matar.”
Wallace assentiu com a cabeça e sorriu — ou melhor, esticou os lábios sem os abrir.
Todas as testemunhas do restaurante haviam ido embora e agora eu dividia a sala de espera
com um grupo de turistas americanos furiosos cuja bagagem, segundo entendi, fora roubada ao
ser posta num ônibus em frente ao hotel. Uma jovem mulher, sentada à parte, balançava a cabeça
num gesto de muda descrença e tentava, em vão, conter as lágrimas.
Enquanto esperava ao lado de Clarissa, eu havia decidido não pressionar demais a polícia.
Os fatos, por si só, seriam suficientes. Minha queixa anterior estava registrada, a cena no
restaurante era uma confirmação irrefutável. Parry teria de ser acusado da tentativa de
assassinato e, até que isso ocorresse, eu necessitava de proteção. Agora que era o único freguês
do restaurante ali presente, agora que a excitação se dissipava, senti por inteiro meu isolamento e
minha vulnerabilidade. Eu estava cercado por Parry de todos os lados. Tratei de sentar de frente
para a porta e longe da única janela. Cada vez que alguém entrava, sentia uma pontada fria no
estômago. A paranoia me forneceu uma imagem dele, na calçada oposta à delegacia, flanqueado
pelos homens em seus casacos pretos. Cheguei à porta da delegacia e olhei em volta. Não senti
surpresa ou alívio por não vê-lo ali. Táxis e limusines de aluguel traziam dezenas de amantes da
ópera. Eram quase sete e quinze. Ocorrera uma dobra no tempo. As pessoas alegres que
passavam por mim a caminho de suas casas ou dos bares e cafés gozavam a bênção de uma
liberdade de que não tinham consciência e que eu não possuía. Não carregavam um peso sobre
elas, não tinham ninguém que as quisesse matar.
Uma amiga erroneamente diagnosticada com um câncer terminal certa vez me falou sobre a
solidão que sentira ao sair do consultório do médico. A compaixão dos amigos apenas deixou
claro que seu destino seria diferente do deles. Conhecendo gente que já morrera, sabia muito bem
como a vida continuaria sem ela. As águas correriam sobre sua cabeça, os amigos ficariam
penalizados mas se recuperariam, um pouco mais sábios, e os dias de trabalho, as festas, os
jantares seguiriam seu curso rotineiro. Foi assim que me senti ao entrar de novo na delegacia.
Não se tratava de autocomiseração, embora houvesse um quê disso; era mais como se eu
estivesse me encolhendo, me fechando no âmago de meu próprio ser tão profundamente que tudo
mais — os turistas irritados, a mulher infeliz — parecia se encontrar do outro lado de um grosso
painel de vidro. Retornando à sala de espera, meus pensamentos nadavam sem rumo em seu
pequeno aquário; ninguém tinha o que eu tinha; que bom seria se eu pudesse trocar minhas
aflições por uma entrada para a ópera, ou mesmo por uma mala perdida ou o que quer que
atormentava a jovem mulher.
Quase colidi com Wallace, que estivera me procurando. Ele se mostrou menos cortês e bem
mais animado do que antes. “Por aqui”, ele disse, me conduzindo ao longo do corredor para a
sala de entrevistas. Ao sentar, fiquei contente quando vi sobre a mesa algumas páginas de fax
contendo as anotações do inspetor Linley.
Wallace me olhava com renovado interesse. Já não se tratava da transcrição rotineira do
depoimento de uma testemunha. “Muito bem. Tive uma conversinha com o inspetor Linley.”
“Ótimo. Ficou sabendo das coisas.”
Ele sorriu. Estava quase exultante. “Achamos que sim. O senhor não gostará disso, sr. Rose.
Mas vou lhe pedir que repasse o que ocorreu.”
“Todo o depoimento? A troco de quê?”
“Podemos começar do começo? O senhor foi o último do seu grupo a chegar. Conte-me seus
movimentos esta manhã, digamos, a partir das nove horas.”
Talvez eu tenha tido um desenvolvimento mental muito lento, porém já tinha bem mais de
quarenta anos quando compreendi que não é necessário aceder a um pedido só porque ele é
razoável ou razoavelmente formulado. A idade nos libera dessas coisas. A gente pode fazer o que
quer e dizer não. Cruzei os braços e lhe dei um sorriso artificial. Minha recusa foi amistosa.
“Desculpe, mas não vou ser capaz de melhorar o depoimento. Preciso saber o que o senhor
pretende fazer.”
“A srta. Mellon saiu para trabalhar às oito e meia? Nove?”
“O senhor mandou um carro à Frognal Lane?”
“Por favor, uma coisa de cada vez. O que o senhor fez depois? Chamadas telefônicas?
Escreveu um artigo...?”
Com grande esforço evitei aumentar o tom de minha voz. “Acho que o senhor não
compreendeu. Esse homem é perigoso.”
Resmungando, Wallace procurou algo em meio aos papéis na sua frente, tanto nas folhas de
Linley quanto nas suas. “Há uma anotação aqui.”
“Ele não vai parar na primeira tentativa. Eu gostaria de saber que o senhor está fazendo algo
mais do que tomar um depoimento pela segunda vez.”
“Cá está”, disse Wallace animado, pegando uma folha cortada ao meio.
Minha voz continuava sob controle. “A menos que o senhor me diga que é mera
coincidência o fato de que o homem de quem eu me queixei à polícia ao meio-dia estava sentado
a alguns metros de distância enquanto...”
“Keats e Wordsworth?”, perguntou Wallace.
Fiquei momentaneamente desnorteado. Nos seus lábios, os nomes soavam como se
pertencessem a suspeitos, dois malfeitores, companheiros de tragos num bar local.
“O senhor conversou sobre eles durante o almoço.”
“Sim, conversei...”
“Um dos dois estava esnobando o outro, não é? Quem era quem?”
“Wordsworth menosprezando Keats — ou é o que se diz.”
“Mas não é verdade?”
Não tinha jeito. Ele desviara totalmente minha atenção. “Bem, o único relato de que
dispomos não é confiável.” Podia ver agora que no pedaço de papel de Wallace constava uma
lista numerada.
“Isso deve ser muito pouco comum”, ele disse.
“O quê?”
“Ah, o senhor sabe, gente instruída como o senhor, escritores e tudo. Eles não escrevem
diários? Era de imaginar que, se alguém é capaz de registrar as coisas corretamente, eles
fizessem isso melhor do que ninguém.”
Não fiz nenhum comentário. Eu estava sendo conduzido para algum lugar. Melhor que ele
me levasse até lá sem resistência.
Wallace consultou a lista. “Escute isto”, ele disse. “É muito interessante. Item número um: o
grupo do sr. Tapp chegou meia hora depois do senhor...” Ele ergueu o dedo para sustar minha
negação. “Quem disse isso foi o professor Kale. Item dois, também do professor: o sr. Tapp foi
ao banheiro, e não sua filha. Item três: o professor Kale diz que não havia ninguém sentado
sozinho perto da sua mesa. E a srta. Clarissa Mellon diz que um indivíduo estava sentado sozinho
perto da sua mesa mas que ela nunca o viu antes. Revelou-se bastante segura disso. Item quatro:
segundo a srta. Mellon, a arma já estava à vista quando os dois homens se aproximaram da mesa
da família Tapp. O número cinco é de todas as testemunhas com exceção do senhor: um dos
homens falou alguma coisa numa língua estrangeira. Três acham que era árabe, um acha que era
francês, os outros não têm certeza. Nenhum dos três fala árabe. O que disse que era francês não
fala essa língua nem nenhuma outra. Item seis...”
Wallace mudou de ideia sobre o item seis. Dobrou o papel e o enfiou no bolso de cima do
paletó. Inclinou-se para a frente, com os cotovelos sobre a mesa, e falou num tom confidencial,
com uma pontinha de pena. “Vou dizer uma coisa para seu governo. O sr. Tapp sofreu um
atentado dezoito meses atrás no vestíbulo de um hotel em Adis Abeba.”
Houve um silêncio durante o qual pensei que era muito injusto que o homem atingido por
engano tivesse sido anteriormente alvejado de propósito. Numa hora dessas só me faltava mesmo
uma coincidência irrelevante.
Wallace pigarreou baixinho. “Não precisamos repetir tudo. Vamos conversar sobre os
sorvetes. O garçom disse que estava trazendo os sorvetes para a mesa quando os tiros
começaram.”
“Não é o que me lembro. Começamos a tomar os sorvetes e, logo depois, eles ficaram
cobertos de sangue.”
“O garçom diz que o sangue chegou até ele. Os sorvetes estavam respingados de sangue
quando ele os pôs sobre a mesa.”
“Mas eu me lembro de tomar umas duas colheres.”
Senti um desapontamento que não me era estranho. Ninguém se punha de acordo sobre nada.
Vivíamos num nevoeiro de percepções pouco confiáveis e só parcialmente compartilhadas, as
informações que os sentidos nos passavam vinham distorcidas por um prisma de desejo e opinião
que também deformava nossas memórias. Víamos e lembrávamos em benefício próprio e nos
persuadíamos no processo. A objetividade implacável, em especial sobre nós mesmos, sempre
foi uma estratégia social fadada ao fracasso. Descendemos dos indignados e apaixonados
contadores de meias verdades que, a fim de convencer os outros, ao mesmo tempo convenciam a
si próprios. Ao longo dos séculos fomos sendo selecionados pelo sucesso e, com o sucesso, veio
nosso defeito, fundamente vincado em nossos genes como sulcos de carroça nas estradas de terra:
quando não é de nosso interesse, somos incapazes de concordar com o que está diante de nossos
olhos. Crer é ver. Por isso há divórcios, disputas de fronteira e guerras, por isso a estátua da
Virgem Maria verte lágrimas de sangue e a de Ganesha bebe leite. E é por isso que a ciência e a
metafísica são empreendimentos tão corajosos, invenções tão impressionantes, mais importantes
do que a roda e a agricultura, criações humanas que contrariam características essenciais da
própria natureza humana. A verdade pela verdade. Mas isso não é suficiente para nos salvar de
nós mesmos, os sulcos são fundos demais. Não se pode encontrar a redenção privada na
objetividade.
Mas exatamente que interesses meus eram servidos pelo relato que fazia do almoço no
restaurante?
Wallace repetia pacientemente uma pergunta: “Qual era o sabor do sorvete?”.
“Maçã. Se o sujeito disser que era qualquer outra coisa, então estamos falando sobre dois
garçons diferentes.”
“Seu amigo, o professor, disse que era baunilha.”
“Só me diga uma coisa. Por que o senhor não interroga o Parry?”
Um músculo se contraiu ao longo da mandíbula de Wallace e suas narinas se dilataram
quase imperceptivelmente. Ele sufocava um bocejo. “Está em nossa lista. Vamos chegar lá.
Nossa prioridade no momento é encontrar os pistoleiros. Mas, sr. Rose, se não se importa, vamos
continuar a tratar do sorvete. Maçã ou baunilha?”
“Isso vai ajudá-lo a encontrar os pistoleiros?”
“O que ajuda é saber que nossas testemunhas estão dando o melhor de si. Tudo reside nos
detalhes, sr. Rose.”
“Então foi maçã.”
“Qual dos homens era mais alto?”
“O que carregava a arma.”
“Qual o mais magro?”
“Diria que os dois não eram nem gordos nem magros.”
“O senhor se lembra de alguma coisa sobre as mãos deles?”
Não lembrava, mas fiz a encenação completa, franzindo a testa, inclinando a cabeça,
fechando os olhos. Os neurocientistas dizem que pacientes sujeitos a um exame de ressonância
magnética apresentam intensa atividade no córtex visual quando solicitados a rememorar alguma
cena. No entanto, a memória oferece uma imagem muito pobre, pouco mais do que uma sombra,
quase invisível, o eco de um sussurro. Não é possível examinar tal imagem em busca de novas
informações. Ela se desfaz ao ser examinada de perto. Vi as mangas dos longos casacos pretos
tão turvas quanto daguerreótipos borrados e, sob elas, nada. Coisa nenhuma. Mãos, luvas, patas,
cascos. “Não lembro nada sobre as mãos deles.”
“Continue a tentar, por favor. Havia um anel, por exemplo?”
Invoquei mentalmente uma mão parecida com a minha e a enfeitei com o anel que Clarissa
me dera, de ouro e prata, o bom gosto transparecendo no formato elegante e no tamanho pequeno.
Ela teve de passar manteiga no nó de meu dedo para colocá-lo. Houve tempo em que nos dava
prazer o fato de eu não ser capaz de tirá-lo com facilidade. “Não consigo me lembrar”, eu disse,
acrescentando logo depois, ao me pôr de pé: “Estou indo embora”.
Wallace levantou-se também. “Gostaria que o senhor ficasse para nos ajudar.”
“E eu gostaria que o senhor me ajudasse.”
Ele contornou a mesa. “Parry não está por trás disso, acredite em mim. Embora isso não
signifique que o senhor não precisa de ajuda.” Enquanto falava, remexeu no bolso do paletó.
Tirou de lá um envelope prateado com pílulas, que brandiu diante de meu rosto. “Sabe o que é
isto? Tomo duas antes do café da manhã. Quarenta miligramas. Dose dupla, sr. Rose.”
Enquanto eu caminhava às pressas pelo corredor, me veio de novo aquela sensação de que
estava encolhendo, cada vez mais isolado. Talvez fosse mesmo autocomiseração: um louco
estava tentando me matar e tudo que os defensores da lei podiam fazer era sugerir que eu tomasse
Prozac.
Já estava escuro quando desci do táxi na entrada da rua e comecei a andar em direção ao
nosso prédio usando os plátanos para não ser visto. Ele não estava no lugar usual ou mais
adiante, onde se ocultava quando Clarissa saía. Nem se encontrava às minhas costas ou numa das
ruas transversais, ou mesmo atrás da cerca de alfeneiros, ou do outro lado do edifício. Entrei no
vestíbulo e parei para ouvir. De um dos apartamentos do andar térreo veio um abafado clímax
sinfônico, banal e exagerado, talvez Bruckner; de algum lugar acima, ao longo do teto, chegou o
ruído de água correndo no cano. Subi as escadas devagar, me encostando à parede externa nas
curvas. Não achava que ele havia encontrado uma maneira de entrar no prédio, mas os rituais de
cautela eram reconfortantes. Entrei e passei a tranca na porta. Soube imediatamente, pelo ar
parado, que Clarissa já estava dormindo no quarto das crianças, o que foi confirmado pelo
bilhete que ela deixara sobre a mesa da cozinha. “Morta de cansaço. Falo contigo de manhã.
Amor, Clarissa.” Olhei para a palavra amor, tentando extrair algum significado, ou esperança, do
A maiúsculo. Verifiquei as trancas das claraboias e fui de aposento em aposento acendendo as
luzes e me certificando de que as janelas estavam bem fechadas. Feito isso, me servi de uma boa
dose de grapa e fui para o escritório.
Sempre tive dois cadernos de endereços. O pequeno, de capa dura, é o que uso diariamente
e levo nas viagens. Nos últimos vinte anos, o esqueci duas ou três vezes em quartos de hotéis e,
uma ocasião, numa cabine telefônica em Hamburgo, sendo obrigado a substituí-lo. O outro é um
caderno grande, já todo amarfanhado, que mantenho desde os vinte anos e nunca sai do escritório.
Obviamente, serve de reserva quando perco o pequeno, mas ao longo do tempo ganhou em
importância ao representar uma história pessoal e social. Ele traça a explosiva complexidade dos
próprios números de telefone: o código de área de Londres, com três letras, tem um quê de belle
époque. Endereços abandonados mapeiam a mobilidade horizontal ou vertical de muitos amigos.
Há nomes que seria inútil transcrever: pessoas que morreram, saíram da minha vida, se
desentenderam comigo ou simplesmente perderam sua identidade — há dezenas de nomes que
hoje não significam nada para mim.
Acendi o abajur junto à espreguiçadeira e me acomodei com a grapa e o caderno aberto na
primeira página, começando a virar as páginas repletas de anotações, examinando o palimpsesto
na esperança de encontrar alguma conexão criminal. Afinal de contas, talvez eu tivesse vivido
uma vida muito limitada, porque não conhecia ninguém mau, ou mau de uma forma organizada.
Em H, encontrei um conhecido que vendia carros de segunda mão pouco confiáveis. Ele morrera
de câncer. Em K, um velho amigo de escola de temperamento depressivo que trabalhara por
algum tempo num cassino. Desapareceu de vista tragado por um casamento rancoroso, e sua
mulher, psiquiatra de profissão, foi quem arranjou que ele se submetesse a um tratamento de
eletrochoques. Mais tarde foram morar na Bélgica.
Continuei a repassar os amigos e várias gradações de conhecidos, a maioria dos quais bem
decentes. Quem sabe um ou dois mentirosos, um preguiçoso, um fanfarrão e um megalômano, mas
ninguém com tentáculos na ilegalidade, nenhum marginal de verdade. Na altura do N, esbarrei
numa moçoila inglesa que conheci no outono de 1968 quando dividimos um saco de dormir em
Cabul e em Mazar-i-Sharif. Alguns anos depois, de volta à Inglaterra, ela se interessou pelo furto
sistemático de lojas, mas terminou como diretora de uma escola em Cheltenham. Absoluta falta
de tenacidade. Também na letra N encontrei John Nolan, acusado vinte anos antes de...
assassinato. Durante uma festa regada a álcool, ele havia jogado um gato do segundo andar, o
qual caíra em cima da grade pontiaguda de um parque. Devidamente acionado pela Sociedade
Protetora dos Animais, teve de pagar uma multa de cinquenta libras, porém não perdeu seu
emprego como fiscal de impostos.
Esse repositório de relacionamentos humanos e breves posses, que eu vinha ampliando e
revendo por mais de um quarto de século, continha uma única história de maldade moderna. Os
outros figurantes eram selecionados demais, peculiares demais em seus defeitos de caráter para
atrair o interesse do sistema de justiça criminal. O alfabeto de meu grupo social descrevia um
grau limitado de fracasso e uma bela dose de sucesso, tudo ocorrendo dentro de uma faixa
estreita de educação e renda. Em geral, nenhuma riqueza extraordinária, mas o suficiente para
uma vida confortável. Simplesmente não havia a menor necessidade de tomar o dinheiro dos
outros. Talvez a criminalidade da classe média seja um fenômeno essencialmente mental ou algo
que aconteça mais na cama e em volta dela. Agressão, sequestro, estupro e assassinato
constituem o objeto de fantasias sombrias quando apropriado. Mas é algo menor do que um
imperativo moral que nos impede de praticar essas coisas, e sim o bom gosto, uma forma de
polidez. Clarissa me dera a conhecer a observação de Stendhal: “Le mauvais goût mène aux
crimes”.
Cada vez mais frustrado, continuei a folhear meu compêndio existencial, ignorando
lampejos de curiosidade ou a vaga culpa causada por certos nomes, até chegar às áreas
desérticas e longínquas que vão de U a Z e englobam o oásis das derradeiras possibilidades
oferecidas pelo W. Em meio aos bucólicos e esmaecidos Wood, Wheatfield, Water e Warren,
escritos a lápis numa caligrafia elaborada que já não era minha, constava o nome de Johnny B.
Well, não um criminoso segundo minha definição, mas, a meu juízo, com tantas conexões quanto
um neurônio.
Seu nome era John Well, o B tendo sido tomado emprestado por ele, ou para ele, do jovem
herói de Chuck Berry, que tocava guitarra com a facilidade de quem toca uma campainha. Se bem
me lembro, nada foi tão fácil para nosso Johnny na época em que, usando apenas os meios de
transporte público, rodava por todos os subúrbios do norte e do sul de Londres fazendo entregas
de maconha e haxixe nos apartamentos daqueles que não queriam se dar ao trabalho de sair à rua.
De qualquer ângulo que se veja a questão, ele não passava de um traficante de drogas, mas o
termo era duro demais, ignominioso demais porque Johnny B. Well fazia mais o tipo dono de
loja, um dedicado comerciante de vinhos finos ou o atarefado proprietário de uma mercearia de
alto padrão. Ele não exagerava nos preços, só lidava com artigos da mais alta qualidade e tinha
um conhecimento exaustivo de seus produtos. Era também de uma honestidade a toda prova —
cuidadoso e exato ao contar as notas de cinco libras, ostensivamente escrupuloso ao devolver o
adiantamento quando uma transação fracassava. Inofensivo e discreto, podia frequentar qualquer
ambiente. Nos seus infindáveis e cansativos deslocamentos — porque todas as vendas iniciais
eram seladas ou precedidas por uma cachimbada da paz —, ele poderia sair de um chá com um
especialista em oftalmologia para um banho na casa de um advogado amigo dele, daí para um
jantar com a corriola de um cantor de rock, passando depois a noite num ninho de enfermeiras.
Ele tinha um apartamento minúsculo, pouco mais do que um depósito de vassouras, em
Streatham. Certa noite, Johnny abriu a porta para quatro indivíduos que usavam máscaras
sorridentes de Jimmy Carter — faz mesmo um tempão! — e traziam pés de cabra. Não falaram
uma única palavra e não o tocaram. Afastando-o para o lado com os ombros, destroçaram o
apartamento — o que terá tomado uns cinco segundos cravados — e se foram. O crime
organizado estava ocupando o lugar dos hippies.
Foi dos primeiros casos de racionalização do mercado. Até então, a importação e a
distribuição ficaram a cargo de empreendedores com espírito aventureiro, figuras solitárias e
supostamente impregnadas das doutrinas filosóficas orientais que carregavam todo o seu oloroso
estoque em volumosas mochilas. Os homens de terno e os pés de cabra tornaram o sistema mais
enxuto e democrático, reduzindo a linha de produtos ao haxixe de terceira categoria oriundo do
Paquistão e o fazendo chegar aos bares, arquibancadas de campos de futebol e prisões.
Durante alguns meses pareceu que Johnny B. Well seria obrigado a arranjar outro emprego,
até que a mesma organização que destruíra seu apartamento lhe ofereceu proteção. Um pequeno
salário e comissão de vendas. Foi então que ele se viu forçado a alargar sua rede de contatos,
motivo pelo qual eu acreditei que podia me ajudar agora. Alguns ambiciosos rapazes que
ocupavam uma chambre séparée nos fundos do bar The Dog, em Tulse Hill, passaram a ser seus
empregadores. Eles tinham muitos amigos e lhe deram numerosas incumbências. Os bandidos o
tomaram pelo comerciante honesto que ele era, permitindo que Johnny circulasse entre eles sem
ser molestado ou tratado com escárnio. Ao mesmo tempo, ele foi capaz de continuar a abastecer
sua velha e exigente clientela com a linha de artigos especiais — folhas costuradas em forma de
cartucho da Nigéria, bastões tecidos de Natal ou da Tailândia, novas variedades sem sementes
do condado de Orange, folhas levíssimas e douradas do Líbano. Sob o novo regime, um dia
típico de Johnny podia exigir uma degustação de cerveja com gente moderninha no almoço e, com
os grã-finos que os esnobavam, um chá vespertino.
Era uma vida solitária e dura, bem mais dura do que tocar uma campainha. E Johnny B. Well
nunca ficou rico. Ele era zeloso demais, honesto demais, drogado demais. Nunca pegava táxis.
Que outro traficante esperaria trinta e cinco minutos por um ônibus calçando sapatos tão velhos?
Ele mantinha uma fé simples e inebriante em sua condição de filantropo, convencido de que
certas resinas e folhas, uma vez queimadas e inaladas, estavam pouco a pouco melhorando o
astral da humanidade, e que as lutas públicas e privadas cessariam à medida que bons fluidos
prevalecessem e as almas se abrissem para receber a luz. Enquanto isso, com a chegada da
década de 80, os homens de terno que portavam pés de cabra, assim como os advogados,
especialistas e cantores de rock, cuidavam apenas de ganhar dinheiro.
Em meu escritório, o círculo de luz dentro do qual eu estava sentado parecia ter ficado
menor e mais claro. A grapa fora consumida, conquanto eu não me lembrasse de haver bebido os
últimos goles. Olhei para o nome de Johnny na caligrafia elaborada e para os sete dígitos que o
acompanhavam. Quem poderia me dar ajuda melhor? Por que não tinha pensado nele antes? Por
que não tinha pensado nele imediatamente? A resposta era que eu não o via fazia onze anos.
Como muitos antes de mim, eu chegara lentamente à conclusão de que o álcool é a mais
recomendável substância estimulante para uma pessoa de meia-idade que sofre as pressões
inevitáveis de quem tem êxito na vida. Legal, aceito socialmente, seu vício moderado passa
facilmente desapercebido em meio a igual vício de tantas outras pessoas. Em suas infinitas e
engenhosas manifestações, o drinque que seguramos — tão colorido, tão delicioso ao paladar —
triunfa por sua própria forma: como líquido, pertence ao mesmo domínio do leite, do chá, do
café, da água e consequentemente da vida. Beber é algo natural, enquanto inalar a fumaça de uma
planta em combustão está muito distante do simples ato de respirar, tanto quanto a ingestão de
pílulas se distancia da alimentação, não existindo nenhuma penetração natural que se pareça com
a de uma agulha (se excetuarmos a picada de um inseto). Um uísque de malte com água pura, uma
taça de Chablis na temperatura correta talvez só melhorem de maneira modesta sua visão do
mundo, mas não lhe afetarão a integridade pessoal e a continuidade das libações no futuro.
Obviamente, cumpre considerar a embriaguez, com tudo que ela implica em matéria de grosseria,
vômitos e violência, assim como o vício desenfreado, com sua carga de abandono físico e mental
a caminho de uma morte degradante e angustiosa. Mas essas são simplesmente as consequências
do abuso, que decorrem da fraqueza humana, dos defeitos de caráter, tanto quanto um bom
bordeaux flui da garrafa. Não se pode culpar a substância. Até biscoitos de chocolate causam
suas vítimas, e tenho um velho amigo que, durante trinta anos, levou uma vida útil e satisfatória
com um suprimento regular de heroína não batizada.
Parei na semiobscuridade do hall e apurei os ouvidos: só os estalidos da madeira e do metal
ao se contraírem e, no mais fundo das instalações hidráulicas, um fio de água em fuga. Da
cozinha, os sussurros da geladeira e, mais ao longe, o ronronar tranquilizante da cidade
adormecida. De volta ao escritório, me sentei com o telefone no colo, refletindo sobre aquele
momento, o ponto sem retorno. Eu estava prestes a sair do espaço iluminado pelo medo e por
fantasias meticulosas rumo a um mundo de duras realidades. Sabia que cada ação e cada
acontecimento levaria a outros, até que o trem não estivesse mais sob meu controle. Se eu tinha
dúvidas, essa era a hora de recuar.
Johnny atendeu no quarto toque e eu lhe disse meu nome. A resposta não tardou um segundo.
“Joe! Joe Rose. Ei, como é que você anda?”
“Bem, mas estou precisando de ajuda.”
“É mesmo? Tenho aqui um material muito interessante...”
“Não, Johnny. Não se trata disso. Preciso de sua ajuda. Preciso de um revólver.”
21.
Na manhã seguinte, fui de carro com Johnny visitar uma casa em North Downs. No bolso de
trás da calça levava uma bolada de setecentas e cinquenta libras em notas de vinte. Por algum
motivo, as de cinquenta libras não eram aceitáveis.
Ao nos arrastarmos pela sufocante mediocridade de Tooting, ele ainda estava às voltas com
o controle elétrico do assento, resmungando enquanto apertava os botões da luz para ler mapas e
do computador usado nas viagens. “Quer dizer que você se deu bem... É, sempre achei que você
acabaria numa boa.”
Praticamente deitado, ele me deu uma aula sobre a etiqueta em questões ligadas ao tráfico
de armas. “É como nos bancos, nunca se fala em dinheiro. Ou nas agências funerárias, ninguém
fala em morte. Com essa gente, não se fala em armas. Só os babacas que veem tv falam em
tresoitão e pau de fogo. Se puder, evite mencionar a palavra revólver. Fale em material,
encomenda, produto.”
“Eles também fornecem as balas?”
“Claro, claro, mas tem que chamar isso de alimento.”
“E alguém vai me mostrar como funciona.”
“Não, porra! Não ia pegar bem. Você vai para um bosque e aprende sozinho. Eles fazem a
entrega, você enfia no bolso.” Johnny trouxe o assento de volta à posição inicial. “Tem certeza
que deve andar por aí com uma arma?”
Eu não disse nada. Estava pagando a Johnny para ter sua ajuda. Não explicar as razões era
um modo de proteger os dois. Ainda estávamos presos no tráfego. No rádio, o jazz havia sido
desonestamente seguido por um programa de música atonal, uma agitada sucessão de pios e
pancadas que estava dando nos meus nervos. Desliguei e disse: “Conte mais sobre essa gente”.
Já sabia que eram antigos hippies, enriquecidos no comércio de cocaína. Tinham saído da
clandestinidade na década de 80 para operar no mercado imobiliário. Agora, como as coisas não
iam bem, ficaram felizes em poder me vender uma arma a um preço inflacionado.
“Comparados com o resto”, disse Johnny, “são uns intelectuais.”
“Como assim?”
“Têm livros por toda parte. Gostam de discutir as grandes questões. Pensam que são o
Bertrand Russell ou sei lá quem. Você certamente vai odiar todos eles.”
Já odiava.
Ao chegarmos à autoestrada, Johnny já retornara à horizontal e caíra no sono. Em geral,
nunca se levantava antes do meio--dia. A estrada, bem reta, estava calma e tive tempo de lhe dar
uma boa olhada. Ele ainda usava um bigode daqueles que só se veem em filmes de faroeste, com
as pontas (agora grisalhas) voltadas para baixo, quase entrando na boca. Será que, ao beijá-lo, as
mulheres sentiam um toque da virilidade de Johnny ou o gosto do prato da cozinha indiana que
ele comera na véspera? Trinta e cinco anos sorrindo e apertando os olhos em meio à fumaça
tinham gerado rugas que chegavam a meio caminho das orelhas. As linhas do riso, ligando as
narinas às extremidades dos lábios, eram sulcos aprofundados pelo desapontamento. Excetuada a
inconstante clientela e uma nova companheira, nada mudara para Johnny. Mas a vida de marginal
já havia perdido a originalidade, a falta de posses desejáveis não era mais uma forma de leveza,
a mensagem universal vinda dos ossos e nervos estava estampada na pele e refletida no espelho.
Johnny seguia em frente com seus sapatos estropiados, vivendo como um estudante, como alguém
que trabalha para uma instituição de caridade, preocupado com a possibilidade de que a
supermaconha cultivada por um sistema hidropônico em Amsterdam fosse forte demais e fizesse
mal ao coração.
Ao sairmos da autoestrada, Johnny acordou com a mudança de tom dos pneus no asfalto.
Ainda deitado, pescou um baseado bem fininho do bolso de cima do paletó e o acendeu. Duas
tragadas depois, apertou o controle do assento e surgiu magicamente no meu campo de visão já
soltando uma baforada. Não passou o baseado. Era algo privado, o primeiro do dia, que fumava
junto com o chá e a torrada.
Deu outra tragada e, como nos velhos tempos, falou sem expelir a fumaça. Que figuraça!
“Vire à esquerda. Siga as indicações até Abinger.” Logo começamos a descer, deixando para trás
ramos e troncos retorcidos, atravessando sombrios túneis de vegetação numa estradinha estreita,
de margens elevadas. Acendi os faróis. Era necessário encostar o carro em certos pontos mais
largos para deixar passar os que vinham em sentido contrário. Os motoristas trocavam muitos
sorrisos amarelos e acenos de cabeça fingindo que não se importavam com o insulto da falta de
espaço. Estávamos numa área rural encravada num subúrbio distante. A cada duzentos ou
trezentos metros passávamos por portões feitos com tijolos e grades de ferro da década de 20 ou
por porteiras com cinco tábuas e lanternas de carruagem. Surgiu de repente uma clareira nos
bosques, uma encruzilhada com um pub de paredes de madeira e cem carros estacionados do
lado de fora, cozinhando suas diferentes cores no calor da manhã. Um saquinho de plástico vazio,
num voo sonhador, se ergueu na luz do sol e veio tocar o limpador de para-brisa. Dois cães
alsacianos olhavam para o chão. Voltamos ao túnel enquanto a fumaça tomava conta do carro.
“É bom sair da cidade”, disse Johnny. Baixei o vidro da minha janela. Não queria ser vítima
do fumo passivo. O bolo de notas fazia pressão na minha nádega e tudo parecia enfático demais,
como se grafado invisivelmente em itálico. Talvez fosse o medo.
Dez minutos depois enveredamos por um caminho esburacado, com ervas daninhas varando
o asfalto que se desintegrava.
“Incrível a força das coisas vivas”, Johnny comentou. “Não é mesmo, despontando assim,
de qualquer jeito?” Tratava-se de uma grande indagação, certamente um bom treino para o grupo
que em breve iríamos encontrar. Eu teria tentado formular uma resposta só para acalmar os
nervos. Mas nesse justo instante vimos uma feia casa em falso estilo Tudor e as palavras
morreram em minha garganta.
A entrada em curva nos levou até uma garagem para dois carros feita de blocos de cimento e
pintada de violeta, a tinta desbotada aqui e ali. A porta basculante enferrujada estava trancada a
cadeado. Na frente, em meio ao capim alto e às urtigas, viam-se as carcaças e entranhas de meia
dúzia de motocicletas. Lugar ideal para cometer um crime com absoluta segurança. Presa a uma
argola de ferro na parede da garagem, havia uma longa corrente mas nenhum cachorro na ponta.
Ali paramos e descemos. As urtigas iam até a porta da frente, em estilo georgiano. Da casa vinha
o som de um baixo elétrico, um acorde de três notas repetido de forma hesitante.
“E então, cadê os intelectuais?”
Johnny fez uma careta e um movimento com as mãos para baixo, como se querendo enfiar
minhas palavras numa garrafa. Falou quase num sussurro ao nos aproximarmos da porta. “Vou lhe
dar um conselho que você ainda haverá de me agradecer. Não brinque com esses caras. Eles não
tiveram as vantagens que você teve na vida e não são, ah, muito estáveis.”
“Devia ter dito isso antes. Vamos embora.” Puxei a manga de Johnny, mas com a mão livre
ele já estava tocando a campainha.
“Não tem problema”, ele disse. “É só ir de mansinho.”
Dei um passo para trás e me virei de lado, pensando em voltar a pé para a estrada, mas
nesse momento a porta se abriu de um golpe e a cortesia habitual me deteve. Um forte cheiro de
comida queimada e amoníaco escapou, ou explodiu, da casa, enquadrando por alguns segundos a
silhueta da figura postada no umbral.
“Johnny B. Well”, disse o homem. Sua cabeça era raspada com navalha e ele exibia um
pequeno bigode encerado e tingido com hena. “O que você está fazendo por aqui?”
“Telefonei ontem à noite, lembra?”
“Lembro, mas marcamos para o sábado.”
“Hoje é sábado, Steve.”
“Nada disso. É sexta, Johnny.”
Ambos me olharam. Eu tinha procurado me informar sobre o ataque no restaurante e os
jornais estavam no carro, espalhados no banco de trás. “Na verdade, é domingo.”
Johnny balançou a cabeça. Sua expressão era a de quem houvesse sido traído. Steve me
encarou com asco. Desconfiei que não foi pelos dois dias perdidos, e sim pelo meu “na
verdade”. Ele tinha razão, não soou bem ali, mas o encarei de volta. Ele cuspiu algo branco nas
urtigas e disse: “Você é o cara que quer comprar uma arma e algumas balas”.
Johnny localizara um objeto interessante no céu. Disse: “Vai nos convidar para entrar ou
não?”. Steve hesitou. “Se é domingo, tem gente vindo para o almoço.”
“É. Nós.”
“Isso era ontem, Johnny.”
Fizemos um esforço para rir. Steve deu um passo para o lado, permitindo que entrássemos
no malcheiroso hall.
Quando a porta se fechou, ficamos praticamente no escuro. À guisa de explicação, Steve
disse: “Estávamos fazendo torradas e o cachorro cagou no chão todo da cozinha”. Seguimos a
silhueta de Steve rumo ao interior da casa. Não sei como, mas a informação sobre o cachorro fez
a arma parecer muito cara por setecentas e cinquenta libras.
Desembocamos numa grande cozinha. Uma nuvem de fumaça azulada pairava à altura do
ombro, iluminada pelas porta-janelas da extremidade oposta. Um homem de macacão e botas de
borracha lavava o chão com o detergente não diluído que retirava de um balde de zinco.
Cumprimentou Johnny o chamando pelo nome e a mim com um aceno de cabeça. Não havia sinal
de cachorro. Diante do fogão, uma mulher mexia uma panela. Seus cabelos lisos caíam até a
cintura. Veio em nossa direção com movimentos lentos e ondeantes, e logo reconheci seu tipo. Na
Inglaterra, a era hippie tinha sido dominada pelos rapazes. Um tipo de moças quietas sentava de
pernas cruzadas nas margens das rodinhas, tomava as suas e trazia o chá. E então, assim como a
Primeira Grande Guerra acabou com a criadagem nas mansões, essas moças desapareceram da
noite para o dia quando soou a primeira fanfarra do movimento feminista. De repente, não eram
mais vistas em lugar nenhum. Mas Daisy tinha ficado. Ao chegar junto a mim, se apresentou.
Obviamente, ela sabia o nome de Johnny e o pronunciou quando tocou no seu braço.
Calculei que tinha uns cinquenta anos. Os cabelos lisos e compridos eram a última amarra
que a prendia ao cais de sua juventude. Enquanto o fracasso se refletira sob a forma de rugas no
rosto de Johnny, no de Daisy estava presente na curva para baixo de sua boca. Ultimamente,
tenho notado essas bocas em algumas mulheres da minha idade. Uma vida inteira de serviços
sexuais sem receber nada em troca. Os homens eram uns filhos da puta, o contrato social era
injusto e a própria biologia, uma inconveniência. O peso de todas essas frustrações contorcia
suas bocas, as forçando para baixo, Cupido deixando pender a cabeça em pesar. À primeira vista
parecia ser um sinal de desaprovação, mas as bocas contavam uma história mais profunda de
tristeza, conquanto suas proprietárias não soubessem o que estava sendo dito sobre elas.
Disse a Daisy meu nome. Ela manteve a mão pousada no braço de Johnny, embora se
dirigisse a mim. “Estávamos tomando o café da manhã mais tarde. Tivemos que começar de
novo.” Minutos depois nos encontrávamos sentados em volta da comprida mesa da cozinha, cada
qual com sua tigela de mingau de aveia e uma torrada fria. Na minha frente estava Xan, o sujeito
que antes limpava o chão. Seus imensos e carnudos antebraços não tinham pelos. Deu a
impressão de não ir com a minha cara.
Tendo sentado na cabeceira, Steve juntou as mãos em prece, ergueu a cabeça e fechou os
olhos, inspirando profundamente pelo nariz. No fundo de alguma caverna nasal, o acaso modelara
o ranho disponível na forma de flautas de duas notas, cuja melodia fomos obrigados a escutar.
Ele prendeu a respiração por um tempo inconfortavelmente longo, soltando depois o ar sem
pressa. Tratava-se de uma demonstração de respiração controlada, ou meditação, ou uma prece
de ação de graças.
Impossível deixar de olhar para seu bigode, totalmente diferente do de Johnny. Vividamente
tingido de uma cor de laranja queimada, era reto como um lápis, terminando em pontas
prussianas enceradas com esmero. Levei a mão à boca para encobrir um sorriso. Sentia-me meio
febril, flutuando no ar. O choque do tiroteio de ontem, aquela compra temerária, o medo como
pano de fundo — tudo se combinava para me dar a impressão de que eu não estava realmente ali,
e correndo assim o risco de fazer ou dizer algo idiota. Meu estômago dava cambalhotas e eu me
sentia inquieto, com vontade de rir, reforçando a sensação de estar aprisionado naquela mesa.
Deve ter sido o fumo passivo no carro. Eu não era capaz de conter a torrente de comparações
suscitadas pelo bigode de Steve. Dois pregos enferrujados despontando de suas gengivas. Os
mastros pontudos de um barco a vela que montei quando garoto. Cabides para toalhas.
Não brinque com esses caras... Eles não são muito estáveis. Tão logo me lembrei das
advertências de Johnny, tão logo me ocorreu que eu não podia rir, tive certeza de que estava
perdido. Ocultei a primeira explosão de ar pelo nariz sob a forma de uma fungada reversa,
erguendo a colher com o mingau para reforçar a manobra. Mas ninguém tinha começado a comer
e ninguém estava falando. Todos esperavam por Steve. Quando seus pulmões se encheram a
ponto de estourar, ele baixou a cabeça raspada e expirou, fazendo tremer as pontas do bigode
como se fosse um roedor excitado. De onde eu me encontrava, a aparência humana parecia
abandonar o navio naufragante de seu rosto. Um trem de imagens não solicitadas da infância
entrava e saía de minha espiral de ansiedade e hilaridade. Tentei enxotá-las, mas o poder
evocativo do ridículo bigode varria tudo na sua frente: um levantador de peso da era vitoriana
numa tampa de lata de biscoitos, o parafuso no pescoço de Frankenstein, um despertador barato
com um mostrador pintado indicando quinze para as três, o Dormidongo no chá do Chapeleiro
Maluco, o Rato numa encenação escolar da peça O sapo da Mansão Sapo.
Era esse o homem que estava me vendendo uma arma.
Não havia nada que eu pudesse fazer. A colher em minha mão tremia. Depositei-a
cuidadosamente sobre a mesa, cerrei os maxilares e senti o suor brotando no lábio superior. O
riso começava a sacudir meu corpo, diretamente situado na linha de visão do desconfiado Xan. O
ranger vinha de minha cadeira, o cacarejar abafado vinha de mim mesmo. Tendo expelido tanto
ar dos pulmões, eu sabia que faria uma barulheira ao inspirar, porém minhas escolhas estavam
agora limitadas ao embaraço ou à morte. O tempo se tornou mais lento à medida que eu cedia ao
inevitável. Girei na cadeira, cobri o rosto com as mãos e fiz uma inspiração estrepitosa.
Enquanto meus pulmões se enchiam, ficou evidente que o frouxo de riso não pararia por ali.
Ocultei o seguinte por meio de um espirro tonitruante. Eu agora já estava de pé, assim como
todos os demais. Uma cadeira caiu com estrondo.
“É o detergente”, ouvi Johnny dizer.
Ele era um amigo de verdade. Ali estava o pretexto. Mas, andando trôpego em meio à
confusão, eu ainda tinha de derrotar a imagem do bigode de Steve. Atravessei a cozinha bufando
e tossindo, quase cego pelas lágrimas, rumo a uma das porta-janelas que pareceu se abrir à minha
chegada. Desci aos tropeções os degraus de madeira até me ver num gramado de terra ressequida
e alguns dentes-de-leão.
Observado por todos, me virei de costas para a casa e cuspi antes de respirar fundo.
Quando por fim me acalmei, ergui a cabeça e vi, bem na minha frente, preso por um fio elétrico
ao esqueleto enferrujado de uma cama, um cachorro, sem dúvida o que havia emporcalhado o
chão da cozinha. Ele se pôs de pé com alguns arrancos espasmódicos e inclinou a cabeça para o
lado, balançando o rabo de um modo tentativo, quase apologético. Que outro animal, além de nós
e dos primatas, é capaz de sentir por algum tempo uma vergonha tão abjeta? O cachorro me olhou
e eu o olhei, sentindo que ele queria me atrair para algum tipo de cumplicidade entre espécies
diferentes. Mas eu não estava disposto a deixar isso acontecer. Dei meia-volta e caminhei com
passos firmes de regresso à casa, dizendo em voz alta: “Desculpe! Amoníaco! Alergia!”. E o cão,
desprovido de uma gramática criativa e dos recursos de velhacaria de que eu dispunha, se deixou
cair de novo no seu espaço de terra nua à espera do perdão.
Logo estávamos outra vez sentados ao redor da mesa, com as portas e janelas abertas de par
em par, e o tema da conversa eram as alergias. Xan dava a suas assertivas um tom de verdade
inquestionável ao adorná-las com a palavra basicamente.
“Basicamente”, ele disse, me encarando, “sua alergia é uma forma de desequilíbrio.”
Quando retruquei que aquela era uma afirmação tecnicamente infalsificável, ele ficou
satisfeito. Comecei a crer que talvez não me detestasse. Ele lançava sobre o mingau de aveia o
mesmo olhar hostil com que antes me distinguira. O que imaginei ser uma expressão facial era de
fato sua fisionomia em repouso. Eu tinha sido enganado pela curvatura do lábio superior, que
algum acidente genético congelara num ricto semelhante ao dos animais quando mostram os
dentes em ameaça.
“Basicamente”, ele continuou, “toda alergia tem uma razão, e as pesquisas mostram que, em
mais de setenta por cento dos casos, suas raízes podem remontar basicamente às necessidades
frustradas na primeira infância.”
Fazia tempo que eu não ouvia aquele tipo de alegação, uma percentagem tirada do nada, a
pesquisa sem fonte, a mensuração do imensurável. Era um argumento muito juvenil.
“Eu faço parte dos menos de trinta por cento”, respondi.
Daisy se levantara para servir mais mingau. Falou na voz baixa de quem sabe a verdade mas
não se dispõe a lutar por ela. “Há um aspecto planetário dominante especialmente ligado aos
sinais terrestres e à décima casa.”
A essa altura, Johnny se animou. Ele se mantivera tenso desde que nos sentamos de novo,
provavelmente preocupado com a possibilidade de que eu me comportasse mal. “Foi a
Revolução Industrial. Antes de 1800 ninguém tinha alergia, ninguém nem tinha ouvido falar de
febre do feno. Aí, depois que começaram a jogar toda essa merda química na atmosfera, e depois
na água e na comida, o sistema imune das pessoas foi pras picas. Não fomos feitos para engolir
essa titica toda...”
Johnny estava esquentando os motores quando Steve o interrompeu. “Me desculpe, Johnny.
Mas isso é uma tremenda babaquice. A Revolução Industrial mudou nossa cabeça, e é daí que
vêm as doenças todas.” Virou-se de repente para mim. “E qual é a sua opinião?”
Eu era de opinião que alguém devia pegar a arma. “Comigo sem dúvida tem a ver com a
cabeça. Quando estou me sentindo bem, o amoníaco não me faz mal nenhum.”
“Você está infeliz”, disse Daisy. Ela franziu a boca revirada para baixo e bastante infeliz.
“Posso ver um bocado de amarelo sujo em sua aura.” Se a mesa fosse mais estreita, ela teria
tentado pegar minha mão.
“É verdade”, eu disse, vendo aí minha chance. “É por isso que estou aqui.” Olhei para
Steve, que desviou a vista. Fez-se um silêncio que ficou mais denso enquanto eu esperava.
Johnny estava acompanhando tudo com aquele ar desesperançado que lhe era característico: será
que ele havia cometido um erro?
O silêncio tinha a ver com quem falaria primeiro. Foi Xan. “Não somos basicamente o tipo
de gente que teria uma arma em casa.”
Como não prosseguiu com o raciocínio, Daisy o ajudou. “Nos doze anos que está conosco,
nunca foi usada.”
Steve entrou rápido, dizendo algo que ela já devia saber muito bem. “Mas foi oleada e
limpa com frequência.”
Ao que ela lhe disse, embora também para meu governo: “É, mas não porque esperássemos
usá-la”.
Houve uma pausa confusa. Ninguém sabia onde estava. Xan começou de novo. “O negócio é
que não aprovamos essa arma...”
“Nem nenhuma arma”, disse Daisy.
Steve esclareceu: “É uma pistola Stoller 32, produzida antes que a fábrica fosse vendida
pelos noruegueses de volta para o conglomerado holandês e alemão que desenvolveu o projeto
original. Tem um mecanismo de disparo de ação dupla, feito de carbureto, que...”.
“Steve”, disse Xan em tom paciente. “Basicamente, esse troço chegou em nossas mãos numa
outra época, quando tudo era maluco e diferente, quando talvez pudéssemos precisar dele.”
“Em legítima defesa”, complementou Steve.
“Estivemos falando um bocado sobre isso antes de vocês chegarem”, disse Daisy. “Não
gostamos da ideia de que ela vai ser simplesmente levada por alguém e, sabe como é...”
Como Daisy parou por ali, perguntei: “Vocês vão vender ou não?”.
Xan cruzou os poderosos antebraços. “Não é bem assim. E não é por causa do dinheiro.”
“Bom, espera aí”, interrompeu Steve. “Isso também não é verdade.”
“Jesus!”, retrucou Xan com um toque de irritação. Ele não conseguia engatar seus
pensamentos com palavras, era difícil, as pessoas ficavam interrompendo. Sua atitude começava
a se compatibilizar com a fisionomia. “Olha”, ele disse, “houve um tempo em que o dinheiro era
tudo. Só se pensava no dinheiro. Pode-se dizer que era quase simples. Não estou dizendo que
estava errado, mas veja o que aconteceu. Não saiu nada como as pessoas queriam. Não se pode
pensar nisso separado do resto. Não se pode pensar em nada isoladamente. Tudo está
relacionado, hoje sabemos disso, ficou claro, é uma sociedade. É basicamente holístico.”
Steve se debruçou na direção de Daisy e disse, em tom teatral, detrás da mão: “Qual é a
dele?”.
Daisy dirigiu-se a mim. Talvez ela ainda estivesse pensando em minha infelicidade. “É
simples. Não somos contra a venda, mas queremos saber o que você pensa fazer com a arma.”
“Vocês ficam com o dinheiro, eu fico com a pistola”, respondi.
Johnny voltou a entrar em ação. O negócio que ele tinha intermediado podia estar indo por
água abaixo. “Olhe, Joe precisa ser discreto. Tanto para o bem dele como para o nosso.”
Não gostei que ele houvesse repetido meu nome. Podia ficar pairando no ar daquela cozinha
durante semanas, como tudo mais, e depois ser usado.
“Mas escute...”, Johnny tocou meu braço. “Você podia dizer alguma coisa para tranquilizar
nossos amigos.”
Todos me olhavam fixamente. Através da porta-janela escancarada ouvimos o vira-lata
ganir, um som apertado que ele parecia estar tentando suprimir. Agora eu só queria ir embora —
com ou sem pistola. Olhei ostensivamente para o relógio e disse: “Vou dizer em quatro palavras
e chega. Alguém quer me matar”.
No silêncio que se seguiu, todo mundo, inclusive eu, conferiu o número de palavras.
“Então é em legítima defesa”, disse Xan, a esperança ressoando em sua voz.
Dei de ombros numa espécie de afirmativa. Seus rostos expressavam a indecisão. Queriam
o dinheiro e queriam a absolvição. Embora aqueles traficantes de cocaína, aqueles agentes
imobiliários fraudulentos estivessem empobrecidos, algumas concepções vagas os incitavam a
assumir uma postura moral — e eles queriam que eu os ajudasse. Comecei a me sentir melhor.
Quer dizer que eu é que era o malfeitor. De repente, fui liberado. Peguei a bolada e pus na mesa.
Qual a utilidade de barganhar?
“Por que vocês não contam?”, perguntei.
Ninguém se moveu de imediato, e então, num relampejar, a mão de Steve ganhou da de Xan
por uma fração de segundo. Daisy seguia tudo com atenção. Era para valer. Talvez eles
estivessem vivendo na base de mingau e torrada.
Steve contou as notas em alta velocidade, como um funcionário de banco. Ao terminar, pôs
tudo no bolso e me disse: “Está certo. Agora, Joe, você pode ir pra casa do caralho!”.
Para não perder a compostura, participei da risada nervosa que tomou conta da mesa.
Reparei então que Xan não estava rindo. Ele esperava com os braços cruzados, as feições
ferozes não dando nenhuma indicação sobre o que faria. No antebraço direito, um músculo (que
eu não tinha) se contraía ritmicamente a compasso com um movimento invisível da mão. Quando
o riso cessou, ele falou, embora não na voz com que antes defendera a tese do holismo. O tom era
agora mais agudo e áspero, a língua batendo secamente no céu da boca. Ele permanecia imóvel,
porém eu podia ver a agitação debaixo de sua pele, a pulsação na base do pescoço. Meu sangue
passou a correr mais rápido. “Steve, põe o dinheiro na mesa e vai buscar a pistola”, disse Xan.
Steve se ergueu, acompanhado a cada centímetro pelo olhar de Xan. “Muito bem”, ele disse
baixinho, começando a se afastar da mesa.
Xan pulou da cadeira. “Esse dinheiro não vai para a caixinha.”
Sem se virar e continuando a andar, Steve respondeu com igual certeza: “Estão me
devendo”.
O objeto mais próximo de Xan era a tigela vazia de mingau. Pegando-a com o polegar e o
indicador como se fosse um frisbee, ele a atirou com força, mantendo a mão esquerda estendida e
aberta para conservar o equilíbrio. A tigela não acertou o pescoço de Steve por alguns
centímetros, indo se espatifar contra a moldura da porta.
“Não!”, gritou Daisy. Havia algo da mãe impaciente e cansada naquele grito. Sem outra
palavra, ela saiu da cozinha. Vimos as costas que se afastavam, os cabelos balançando na altura
da cintura. Ouvimos seus passos na escada. Johnny olhou para mim. Sabia o que ele estava
pensando. Agora a responsabilidade pela briga era toda nossa. Na verdade, toda minha, porque
Johnny, acomodado na cadeira, enrolava um baseado, mexendo a cabeça e suspirando ao ver
como seus dedos tremiam.
Steve dera meia-volta e retornava à mesa. Xan caminhou na direção dele e, o pegando pela
frente da camisa, tentou empurrá-lo contra a parede. “Não começa”, ele disse com a respiração
ofegante, “põe o dinheiro na mesa.” Mas não era tão fácil empurrar Steve. Ele tinha um corpo
duro e compacto, uma expressão cruel. Os dois homens ficaram no meio da cozinha, se
empurrando um ao outro, ambos respirando com dificuldade. Estavam tão próximos que uma luz
especial parecia iluminar seus rostos.
“A casa me deve, vocês dois me devem”, disse Steve. “Agora tira essa porra dessa mão de
cima de mim.” Mas não esperou que a ordem fosse cumprida. Sua mão esquerda voou na direção
da garganta de Xan e a apertou. Xan puxou o braço livre para trás num grande arco e, de mão
aberta, atingiu o rosto de Steve. O som da pancada foi semelhante ao do estouro de uma bola de
encher e a força do impacto os separou. Por um instante permaneceram petrificados, se atirando
depois um contra o outro e se engalfinhando. O animal de quatro pernas balançou e se deslocou
de lado na direção da mesa. Johnny e eu ouvíamos apenas os grunhidos sufocados. Cabeças
baixas, olhos fechados, lábios repuxados mostrando os dentes, eles se agarravam e abraçavam
como dois amantes.
Alguém tinha de ceder. Xan encaixou a mão embaixo do queixo de Steve e começou a forçar
a cabeça dele para trás. Nenhuma musculatura de pescoço poderia resistir àquele braço
horrivelmente poderoso, mas foi um esforço enorme, as carnes tremendo, porque Steve
enganchara o polegar numa narina de Xan e tentava atingir o olho. Obrigado a afastar o corpo,
Xan chegou ao limite do alcance do braço. Como a cabeça de Steve continuava a se inclinar para
trás, Xan aproveitou para lhe dar uma gravata com o braço direito, a mão esquerda puxando o
outro pulso para apertar o nó. Avancei na direção deles. Steve aos poucos tombava de joelhos.
Ele gemia e suas mãos faziam movimentos erráticos, batendo de leve nas pernas de Xan.
Dei dois tapinhas com as costas da mão no rosto de Xan e me abaixei para falar perto de seu
ouvido. “Você vai matar ele. É isso mesmo que você quer?”
“Não se mete. Isso já vem de longe.”
Tentei puxá-lo pela orelha para que me olhasse. “Se ele morrer, você vai ficar em cana o
resto da sua vida.”
“Estou cagando pra isso!”
“Johnny”, gritei. “Você tem que ajudar!”
Daisy entrou de novo na cozinha. Segurava com as duas mãos uma caixa de sapatos, dando a
impressão de estar exausta. Sua boca retorcida para baixo era um apelo para que víssemos o que
ela era obrigada a suportar — os homens de sua vida lutando para obter a vantagem mecânica
que permitiria a um deles quebrar o pescoço do outro.
“Pega”, ela sussurrou. “Pega, pega!”
Endireitei o corpo e a tomei da mão de Daisy. Era pesada, tive de usar ambas as mãos para
sustentar a frágil caixa de papelão. Steve gemeu de novo e olhei para Johnny. Ele me lançou uma
expressão de súplica e fez um sinal com a cabeça na direção da porta. “É isso mesmo”, disse
Daisy com firmeza, “melhor vocês irem embora.”
O esgotamento que ela transmitia me fez pensar se aquilo não era alguma espécie de ritual
doméstico ou um prelúdio excessivamente ensaiado para uma complexa aliança sexual. Por outro
lado, achei que devíamos tentar salvar a vida de Steve.
Johnny me puxou pela manga. Afastamo-nos alguns passos. Ele murmurou em meu ouvido:
“Se acontecer alguma coisa, não quero ser testemunha”.
Como ele tinha razão, cumprimentamos Daisy com um aceno de cabeça e, dando uma última
olhada na direção da cabeça de Steve submetida ao torno tremelicante do antebraço de Xan,
atravessamos às pressas o lúgubre hall rumo à porta.
Tão logo entramos no carro, Johnny puxou um baseado e o acendeu. Era a última droga que
eu desejaria àquela altura. Muito melhor parar para tomar um uísque em algum lugar e recobrar a
calma. Liguei o motor e retornei pelo caminho esburacado.
“É gozado, sabe”, disse Johnny em meio à fumaça. “Já estive aqui outras vezes e tivemos
umas discussões muito interessantes.”
Peguei a estrada e estava prestes a responder quando o telefone tocou. Eu o tinha deixado
carregando no isqueiro do carro.
Era Parry. “Joe, é você?”
“Sim, sou eu.”
“Estou aqui no seu apartamento, sentado ao lado de Clarissa. Vou passar para ela, está bem?
Está me ouvindo? Joe? Está me ouvindo?”
22.
Tive a impressão de haver perdido a consciência por um ou dois segundos. O rugido em
meus ouvidos, compreendi, era o motor do carro. Estávamos a sessenta e eu tinha esquecido de
mudar de marcha. Passei da segunda para a quarta e reduzi a velocidade.
“Estou ouvindo”, eu disse.
“Agora escute com atenção”, disse Parry. “Ela vai falar.”
“Joe?” Soube imediatamente que ela estava assustada. Sua voz tinha um tom agudo. Ela
estava tentando manter o controle.
“Clarissa. Você está bem?”
“Você tem de voltar direto para cá. Não fale com ninguém. Não fale com a polícia.” A
entonação monótona tinha por objetivo me fazer saber que as palavras não eram dela.
“Estou em Surrey, vou levar ainda umas duas horas.”
Ouvi-a repetir isso a Parry, mas não a resposta dele.
“Trate de voltar logo”, ela insistiu.
“Me diga o que está acontecendo aí. Você está bem?”
Ela falava como se fosse um robô. “Venha direto para cá. Não traga ninguém. Ele vai te ver
da janela.”
“Vou fazer exatamente como ele quer, não se preocupe.” E então acrescentei: “Eu te amo”.
Ouvi o fone mudar de mãos. “Você entendeu tudo? Não vai me decepcionar agora, vai?”
“Escute, Parry”, eu disse. “Vou fazer o que você quiser. Chego aí em duas horas. Não vou
falar com ninguém. Mas não machuque ela. Por favor, não machuque Clarissa.”
“Só depende de você, Joe”, ele disse, desligando o telefone.
Johnny olhava para mim. “Problemas em casa”, murmurou solidário.
Abri a janela e respirei fundo algumas vezes. Estávamos passando em frente ao pub e
entrando nos bosques. Saí da estrada e percorri um caminho de terra por uns dois quilômetros até
que ele terminou numa pequena clareira, junto a uma casa em ruínas. Havia sinais de que a
propriedade estava sendo restaurada — uma betoneira, tábuas para andaime, pilhas de tijolos —,
porém não se via ninguém por perto. Desliguei o motor e peguei a caixa de sapatos no banco de
trás. “Vamos dar uma conferida no material.”
Levantei a tampa e dei uma olhada. Nunca havia usado e nem mesmo visto uma pistola, mas
o objeto parcialmente embrulhado numa camisa branca rasgada parecia bastante familiar de tanto
que eu o vira no cinema. Só ao pegá-lo me surpreendi. Era mais leve do que eu pensava, e mais
seco, sem passar a sensação fria do metal. Oleoso, frio e pesado, era o que eu tinha imaginado.
Ao apontá-lo através do para-brisa, nem senti que irradiasse uma aura de letalidade. Era só outro
desses equipamentos inertes que a gente desembrulha em casa ao voltar das compras — telefone
celular, dvd, micro-ondas — e se pergunta se será difícil lhe dar vida. A ausência de um manual
de instruções de sessenta páginas parecia um bom começo. Virei a pistola de um lado para outro,
procurando um lugar de entrada. Johnny remexeu na camisa rasgada e pescou uma caixa compacta
de papelão vermelho, que tratou de abrir.
“É de dez tiros”, ele disse. Tomando a arma de minha mão, soltou um dispositivo na base da
coronha e enfiou o carregador. Com um dedo indicador amarelado, apontou para a trava de
segurança. “Empurre para a frente até ouvir o clique.” Olhou através da mira. “É uma boa arma.
Steve estava de sacanagem. É uma Browning de nove milímetros. Gosto dessa coronha de
poliamida. Até melhor que a de nogueira.”
Saímos do carro e Johnny me entregou a pistola.
“Não sabia que você conhecia esses troços”, eu disse. Passamos pelos fundos da casa sem
teto a caminho do bosque.
“Andei trabalhando com armas por algum tempo”, ele disse com ar sonhador. “Naquela
época, o negócio estava indo para esse lado. Quando estive nos Estados Unidos, fiz um curso no
Tennessee. Rancho Cougar. Acho que alguns dos caras lá eram nazistas. Sei lá. Mas, seja como
for, exigiam que a gente obedecesse a duas regras táticas. Primeiro, ganhe sempre. Segundo,
trapaceie sempre.”
Em outro momento eu poderia me sentir tentado a dissertar sobre a perspectiva
evolucionária, derivada da teoria dos jogos, segundo a qual, para qualquer animal social, a
estratégia de sempre trapacear conduzia inevitavelmente à extinção. Mas agora eu estava me
sentindo péssimo. Pernas fracas, intestinos liquefeitos. Ao pisar nas folhas secas e crepitantes
embaixo das bétulas, tive de fazer um esforço constante e consciente para manter fechado meu
esfíncter. Sabia que não podia perder tempo. Devia estar voando para Londres. Mas precisava
me certificar de que saberia o que fazer com a pistola. “Aqui está bem”, eu disse. Mais um passo
e teria me borrado nas calças.
“Use as duas mãos”, disse Johnny. “Se você não está acostumado, é um tremendo coice.
Afaste os pés e distribua o peso igualmente entre as pernas. Solte o ar lentamente na hora de
apertar o gatilho.” Estava seguindo todas as instruções quando a arma disparou e se empinou nas
minhas mãos. Caminhamos até a bétula e demoramos um pouco para encontrar o orifício de
entrada. A bala era quase invisível, encravada uns cinco centímetros no tronco liso. Caminhando
de volta para o carro, Johnny disse: “Uma coisa é na árvore, mas tudo muda de figura quando
você aponta a arma para alguém. Basicamente, está lhe dando a permissão para que mate você”.
Deixei-o esperando no banco dianteiro enquanto pegava algumas folhas de jornal e voltava
para o bosque, abrindo uma pequena vala com o salto do sapato. Agachado, com as calças ao
redor dos calcanhares, tentei me acalmar afastando as velhas folhas quebradiças e apanhando um
punhado de terra. Algumas pessoas procuram apreender o universo da perspectiva das estrelas e
galáxias; eu prefiro a escala bem terrestre do biológico. Aproximei do rosto a palma da mão e
olhei com cuidado. No rico solo, negro e friável, vi duas formigas pretas, um colêmbolo e uma
criatura de um vermelho escuro, semelhante a um verme, com um bom número de patas marromclaras.
Esses eram os poderosos gigantes daquele submundo, pois pouco acima do limite da
visibilidade vinha o populoso domínio dos nematelmintos — que se alimentavam dos restos dos
colossos e que pareciam enormes se comparados aos habitantes do reino microscópico, os fungos
parasitas e as bactérias —, talvez dez milhões naquele punhado de terra. A cega compulsão
desses organismos para consumir e excretar tornava possível a riqueza do solo e
consequentemente das plantas, das árvores e das criaturas que vivem naquele habitat, entre as
quais já nos incluímos no passado. Imaginei que pudesse ser acalmado pela percepção de que,
malgrado nossas elevadas preocupações, éramos ainda parte dessa dependência natural — pois
os animais que comemos pastam as gramíneas que, tal como nossas verduras e frutas, se nutrem
do solo formado por esses organismos. Mas, mesmo enquanto, agachado, eu contribuía para
enriquecer a superfície do bosque, não podia acreditar na importância primacial desses grandes
ciclos. Logo além das árvores emissoras de oxigênio estava meu veículo emissor de veneno,
dentro do qual se encontrava minha arma; cerca de sessenta quilômetros adiante, ao longo de
estradas congestionadas, se erguia a enorme cidade em cujo lado norte ficava o apartamento onde
um louco, um portador da síndrome de De Clérambault fixado em mim, me esperava ameaçando a
mulher da minha vida. O que, disso tudo, era necessário para o ciclo de carbono ou a fixação do
nitrogênio? Nós já não pertencíamos à grande corrente. Nossa própria complexidade nos
expulsara do Jardim. Estamos mergulhados numa confusão criada por nós mesmos. Levantei-me,
afivelei o cinto e, depois, com o zelo de um gato doméstico, empurrei a terra com o pé, tapando a
vala.
Às voltas com meus problemas, me surpreendi ao encontrar Johnny dormindo de novo.
Acordei-o e expliquei que iria voando para casa. Se ele quisesse, eu poderia deixá-lo na estação
da estrada de ferro mais próxima. Ele disse que não se importava. “Mas olhe, Joe. Se você bater
em algum carro e a polícia aparecer, eu não tenho nada a ver com a Browning, certo?” Dei um
tapinha no bolso direito do paletó e liguei o motor.
Com todos os faróis acesos, disparei pela estrada de pista única sem fazer a menor
concessão aos carros que vinham em sentido contrário. Alguns motoristas tiveram de dar marcha
a ré à minha frente, me fuzilando com o olhar ao serem forçados a voltar a um ponto que dava
passagem. Quando chegamos à autoestrada, Johnny acendeu seu terceiro do dia. Mantive uns
cento e quinze por hora, atento ao retrovisor para ver se aparecia algum carro de patrulha. Tentei
telefonar para o apartamento, mas não obtive resposta. Pensei em chamar a polícia. Ótimo — se
eu conseguisse achar alguém que enviasse um grupo de elite para descer com cordas do telhado e
surpreender Parry, o subjugando antes que ele fizesse algum mal. O que eu conseguiria, na melhor
das hipóteses, era falar com Linley, Wallace ou outro burocrata cansado.
Parei na Streatham High Street para pagar a Johnny a quantia combinada e o deixar perto de
casa. Ele se debruçou na porta aberta ao se despedir. “Quando você não precisar mais da arma,
não fique com ela nem a venda. Jogue no rio.”
“Obrigado por tudo, Johnny.”
“Estou preocupado com você, Joe, mas fico feliz em pular fora.”
Como o tráfego do meio da tarde no centro de Londres estava surpreendentemente leve,
entrei na minha rua uma hora e meia após a chamada telefônica. Peguei outra rua antes de chegar
ao prédio e estacionei nos fundos. Ali, onde eram postas as latas de lixo, havia uma saída de
incêndio que só os moradores podiam abrir com as chaves de que dispunham. Entrei e subi, sem
fazer ruído, até o telhado. Não tinha ido lá desde a manhã seguinte ao acidente de Logan e ao
primeiro telefonema de Parry. A mesa ainda guardava uma mancha de meu café matinal. Devido à
luminosidade, para ver pela claraboia fui obrigado a me ajoelhar e unir as mãos em concha sobre
o vidro. Dali descortinava o hall e uma parte da cozinha. Dava para ver a bolsa de Clarissa, e
nada mais.
A segunda claraboia me oferecia um ângulo de visão oposto ao da primeira, do hall para a
sala de visitas. Por sorte, a porta estava inteiramente aberta. Clarissa se encontrava sentada no
sofá, voltada na minha direção, conquanto eu não fosse capaz de distinguir a expressão em seu
rosto. Diretamente em frente a ela, Parry ocupava uma cadeira de madeira trazida da cozinha; ele
estava de costas para mim, e presumi que estivesse falando. Como menos de dez metros nos
separavam, fantasiei a possibilidade de lhe dar um tiro naquela hora mesmo, embora ele
estivesse próximo demais de Clarissa e eu não confiasse em minha pontaria, além de não
entender o suficiente sobre armas para saber como o vidro da claraboia mudaria a direção da
bala.
Essa fantasia tinha pouco a ver com a realidade da pistola que começava a pesar no meu
bolso. Voltei para o carro, estacionei na frente do prédio e toquei a buzina antes de descer. Parry
veio à janela e se ocultou parcialmente atrás da cortina. Olhou para baixo e trocamos um rápido
olhar, invertendo nossa perspectiva habitual. Ao subir as escadas, apalpei a pistola, localizei a
trava de segurança e treinei como desativá-la. Toquei a campainha e abri a porta com minha
própria chave. Podia ouvir as batidas do coração por baixo da camisa, e a forte pulsação fazia
latejar meu campo de visão. Quando chamei Clarissa, minha língua, pastosa, engrolou o c e o l.
“Estamos aqui”, ela respondeu, acrescentando num tom ascendente de alerta: “Joe...”. Mas
foi interrompida por um “psiu” vindo de Parry. Caminhei devagar até a sala de visitas e parei na
porta. Temia provocar uma reação súbita. Ele afastara a cadeira e sentara no sofá com Clarissa à
sua esquerda. Eu e Clarissa nos entreolhamos e ela fechou os olhos por meio segundo, o que para
mim significava que a coisa estava feia, ele é mau, tome cuidado. Parry parecia mais jovem e
desajeitado com o cabelo curto. Suas mãos tremiam.
Reinava um silêncio absoluto desde que eu chegara. Para rompê-lo, comentei: “Preferia o
rabo de cavalo”.
Ele olhou de relance para a direita, na direção daquela presença invisível aboletada em seu
ombro, antes de me encarar. “Você sabe por que estou aqui.”
“Bom...”, eu disse, dando alguns passos para dentro da sala.
A voz dele se fragilizou num registro agudo. “Não chegue mais perto. Eu disse a Clarissa
para não se mexer.”
Eu examinava suas roupas, procurando por uma arma. Ele certamente tinha uma. Não viera
me matar com as próprias mãos. Poderia facilmente ter tomado emprestado ou comprado um
revólver dos homens que contratara. Não havia nenhuma protuberância óbvia no paletó de
algodão bege, embora, sendo este bem largo, não fosse possível ter certeza absoluta. A ponta de
alguma coisa preta, talvez um pente, se projetava do bolso de cima. Como ele usava botas de
couro cinza e calças jeans apertadas, o que quer que trouxesse se encontrava no paletó.
Encostado em Clarissa, mantendo a perna esquerda colada à perna direita dela, ele a imprensava
contra o braço do sofá. Totalmente imóvel, com as palmas das mãos pousadas nos joelhos,
Clarissa irradiava repugnância e terror ao ser tocada por ele. Sua cabeça estava ligeiramente
voltada na direção de Parry, pronta a reagir a qualquer coisa que ele fizesse. Apesar de Clarissa
estar imóvel, a tensão visível nos músculos e tendões de seu pescoço mostrava que, como uma
mola retesada, ela poderia escapar a qualquer momento.
“Agora que estou aqui”, eu disse, “você não precisa de Clarissa.”
“Preciso dos dois”, ele retrucou rapidamente. Suas mãos tremiam tanto que as entrelaçou. O
suor despontava na sua testa e dele vinha um odor entre o acre e o adocicado. O que quer que
Parry tivesse em mente estava prestes a acontecer. Apesar disso, agora que ele se encontrava
diante de mim, a ideia de lhe apontar uma arma parecia ridícula. E eu queria me sentar, de
repente senti tanto cansaço que desejei deitar em algum lugar e descansar. Fui traído pela
adrenalina, que deveria me manter alerta. Não pude evitar um bocejo, o que lhe terá feito pensar
que eu estava totalmente à vontade.
“Você invadiu o apartamento”, eu disse.
“Eu amo você”, ele disse simplesmente, “e isso destruiu minha vida.” Olhou de relance para
Clarissa, como se pedisse desculpas pela repetição. “Jamais quis nada disso, você sabe muito
bem, não é mesmo? Mas você nunca me deixou em paz e eu pensei que devia haver um propósito
naquilo. Você precisava ter alguma razão para me dar tantas esperanças. Você tinha sido
chamado por Deus e lutava contra isso, parecia estar pedindo minha ajuda...” Ele fez uma pausa,
olhando por cima do ombro em busca do pensamento seguinte. Não relaxei minha atenção, a
proximidade entre ele e Clarissa me deixava mais e mais ansioso. Por que ele não permitia que
ela se movesse? Lembrei-me de um momento na visita à casa de Logan, quando entendi o que
significaria perdê-la. Será que eu deveria fazer alguma coisa agora? Lembrei-me também da
advertência de Johnny. Tão logo eu empunhasse a arma, estaria dando a Parry a autorização para
matar. Talvez uma conversa dissipasse o perigo. Eu só sabia ao certo que não devia contradizêlo.
Clarissa falou numa voz baixa e calma, arriscando-se ao tentar conversar logicamente com
ele. “Tenho certeza de que Joe jamais quis fazer nenhum mal a você.”
O suor agora escorria pelo rosto de Parry. Ele estava a ponto de fazer alguma coisa. Soltou
uma risada artificial. “Isso é muito discutível!”
“Na verdade, ele tinha muito medo de você, postado na frente do prédio, e todas aquelas
cartas. Não sabia nada sobre você, e de repente lá estava você...”
Parry sacudiu violentamente a cabeça de um lado para outro. Era um espasmo involuntário,
uma intensificação do olhar nervoso que costumava dar por cima do ombro, e naquele instante
vislumbrei a essência de sua doença: ele precisava bloquear os fatos que não se encaixavam no
seu esquema mental. “Você não compreende. Nenhum dos dois compreende, mas você em
particular.” Virou-se na direção dela.
Enfiei a mão direita no bolso do paletó e procurei pela trava de segurança, mas meus dedos
estavam agitados demais e não consegui encontrá-la.
“Você não faz ideia do que aconteceu. Nem podia mesmo. Mas não vim aqui para conversar
sobre isso. Já ficou para trás. Não vale a pena discutir, não é, Joe? Tudo acabou para nós, não é
mesmo? Todos nós.” Passou o dedo pelas sobrancelhas para afastar o suor e deu um suspiro
audível. Esperamos. Ele ergueu a cabeça e olhou para mim. “Não vou ficar falando sobre isso.
Não é por isso que estou aqui. Vim para lhe pedir uma coisa. Acho que você sabe o que é.”
“Talvez eu saiba”, menti.
Parry respirou fundo. Estávamos chegando ao ponto. “Perdão?”, ele disse numa entonação
interrogativa. “Por favor, me perdoe, Joe, pelo que fiz ontem, pelo que tentei fazer.”
Fiquei tão surpreso que não consegui falar imediatamente. Tirei a mão do bolso e disse:
“Você tentou me matar”. Queria ouvir sua confirmação. Queria que Clarissa ouvisse.
“Fui eu que planejei e paguei por tudo. Já que você não retribuía meu amor, preferi vê-lo
morto. Foi loucura, Joe. Quero que me perdoe.”
Eu ia lhe pedir outra vez que deixasse Clarissa ir embora, mas ele se voltou na direção dela
e tirou do bolso de cima do paletó uma faca de lâmina curta, que brandiu num movimento
semicircular. Não tive tempo de me mexer. Ela ergueu as duas mãos para cobrir o pescoço, mas
esse não era o alvo de Parry. Ele encostou a ponta afiada bem embaixo do lobo de sua própria
orelha e a manteve ali. A mão que segurava a faca tremia, mas apertava com força a lâmina
contra a pele. Ele se voltou para a direita a fim de mostrar a Clarissa, e depois me mostrou.
Suplicou num tom lamuriento, um som insuportável: “Você nunca me deu nada. Por favor,
me dê o que estou pedindo. Vou fazer isso de qualquer jeito. Deixe que eu tenha ao menos isso de
você, Joe. O perdão. Se você me perdoar, Deus também me perdoará”.
A surpresa estava me deixando abobalhado, o alívio confundia minhas reações. O fato de
que ele não estava prestes a atacar a mim ou a Clarissa era tão extraordinário, uma mudança tão
radical, que só muito lentamente me dei conta de que ele iria cortar a garganta diante de nós.
Consegui dizer: “Largue essa faca e vamos conversar”.
Ele fez que não com a cabeça e deu a impressão de apertar a lâmina com mais força. Um
filete de sangue escorreu verticalmente da ponta da faca.
Clarissa também parecia paralisada. Mas então estendeu a mão na direção do pulso dele,
como se pudesse fazê-lo desistir com o toque de um dedo.
“Agora”, ele disse. “Por favor, Joe. Agora.”
“Como posso perdoar você se você é louco?”
Visei o lado direito dele, o mais longe possível de Clarissa. No espaço fechado, a
detonação apagou todos os demais sentidos e a sala relampejou como uma tela em branco. Logo
depois vi a faca no chão e Parry caído para trás no sofá segurando o ombro espatifado, seu rosto
pálido e a boca aberta refletindo o choque.
Num mundo em que a lógica fosse o motor dos sentimentos, aquele deveria ser o instante em
que Clarissa se poria de pé, em que cairíamos nos braços um do outro trocando beijos, com
lágrimas, murmúrios conciliatórios, palavras de perdão e de amor. Deveríamos ter sido capazes
de dar as costas a Parry, cujos pensamentos haveriam se condensado num ponto fulgurante de
dor, assim como a sua ulna e seu rádio destroçados (seis meses depois encontrei uma lasca de
osso embaixo do sofá), deveríamos ter sido capazes de deixá-lo para trás; e, depois que o
pessoal da polícia e da ambulância o houvesse levado, depois que tivéssemos conversado, nos
acariciado e bebido dois bules de chá, deveríamos ter seguido para o quarto a fim de nos
deitarmos de rostos colados, nos permitindo voltar ao espaço tão puro e familiar. E então
poderíamos ter começado ali mesmo a reconstruir nossas vidas.
Mas tal lógica seria sobre-humana. Razões imediatas e de fundo explicam por que o clímax
da tarde não poderia ser aquela felicidade. A compressão característica do processo narrativo,
especialmente no cinema, nos ilude com seus finais felizes e nos faz esquecer que a tensão
prolongada corrói os sentimentos, embota nossa sensibilidade. Não era tão fácil desfrutar
daqueles momentos felizes de alívio. Nas últimas vinte e quatro horas, Clarissa e eu havíamos
testemunhado um assassinato e um suicídio fracassados. Clarissa passara a tarde sob a ameaça da
faca de Parry. Enquanto falava comigo no telefone, ele havia mantido a lâmina encostada no rosto
dela. Do meu lado, além da tensão, o acúmulo de certezas horríveis, confirmadas pelos
acontecimentos, não me trouxe uma sensação de vitória ao revelar que eu tinha razão. Em vez
disso, eu me sentia confinado por um sentimento angustiante de injustiça. Era uma raiva
desapaixonada, mais difícil de suportar ou expressar porque eu intuía que, nesse caso, ter razão
significava também ser contaminado pela verdade.
Além disso, não há um sistema único de lógica. Por exemplo, a polícia, como sempre, viu as
coisas de modo diferente. O que quer que pensassem fazer com Parry, quando chegaram ao
apartamento, vinte minutos após o disparo, eles já sabiam como me enquadrar: posse ilegal de
arma de fogo e tentativa premeditada de homicídio. Enquanto Parry seguia numa maca, um
inspetor e um sargento da polícia me deram voz de prisão, embora quase se desculpassem por
fazê-lo. Contrariando o procedimento habitual quando se tratava do uso de arma de fogo,
permitiram que eu descesse sem ser algemado. Na escada, cruzamos com o fotógrafo e com o
legista. Mera rotina, me asseguraram, no caso de um de nós mudar sua versão da história. Minha
terceira visita a uma delegacia em vinte e quatro horas, a terceira em minha vida. Mais
agrupamento aleatório. Clarissa foi convidada a ir também como testemunha. O inspetor Linley
não estava de serviço, mas meu prontuário foi trazido e lido, e todos me trataram com bastante
cortesia. Não obstante, fiquei detido aquela noite numa cela vizinha à de um bêbado chorão; na
manhã seguinte, após um longo depoimento, paguei uma fiança e fui instruído a retornar dali a
seis semanas. Como soube mais tarde, uma carta escrita por Linley para o diretor da Promotoria
Pública fez com que eu nunca fosse acusado de coisa alguma.
Assim, não houve carícias naquela noite, nenhuma conversa na mesa da cozinha ou na cama
como a que nos uniu após a morte de Logan. Pior ainda foi a imagem que me perseguiu durante a
noite insone que passei na cela e por muitos outros dias. Via a faca no chão, via Parry jogado
para trás no sofá segurando o braço — e então via a expressão no rosto de Clarissa. De pé, ela
olhava para a arma na minha mão com tamanho asco e surpresa que pensei que jamais
superaríamos aquele instante. Ultimamente, minhas piores suspeitas vinham se confirmando.
Estava acertando da pior maneira possível. Um escore deprimentemente alto. Talvez tudo
estivesse de fato acabado para nós.
23.
Querido Joe,
Sinto muito por termos brigado. Não estou sendo sardônica — é verdade, realmente lamento
muito. Sempre nos orgulhamos de não ter as brigas ocasionais que outros casais nos diziam
serem necessárias e terapêuticas. Odiei o que aconteceu na noite de ontem. Odiei ter ficado com
raiva e me assustei com a sua raiva. Mas o que foi dito não pode ser apagado. Você insistiu em
que eu te devo muitas desculpas por não lutar “ombro a ombro” com você contra Jed Parry, por
duvidar da sua sanidade mental, por não acreditar na sua racionalidade, nos seus poderes de
dedução, na cuidadosa pesquisa sobre a doença dele. Acho que pedi desculpas por tudo isso
diversas vezes ontem à noite e peço de novo agora. Pensei que Parry fosse um doidinho patético
e inofensivo. Na pior hipótese, achei que era uma invenção sua. Nunca imaginei que ele se
tornasse tão violento. Eu estava inteiramente errada e sinto muito, muito mesmo.
Mas o que também tentei dizer ontem foi o seguinte: o fato de você ter razão não é uma coisa
assim tão simples. Não consigo abandonar a ideia de que o desenlace teria sido menos
assustador caso você houvesse se comportado de modo diferente. Independentemente disso, não
há dúvida de que a experiência toda custou muito caro para nós, por mais certo que você
estivesse. Ombro a ombro? Você fez tudo sozinho, Joe. Desde o começo, antes de saber qualquer
coisa sobre Parry, você ficou tão intenso e estranho, tão mobilizado por ele! Lembra-se do
primeiro telefonema que ele te deu? Você levou dois dias para me falar dele. Um dia depois você
se enredou naquela velha história de voltar a “fazer ciência”, quando já havíamos concordado
que isso não fazia sentido. Vai me dizer que isso não teve nada a ver com Parry? Naquela mesma
noite você saiu do apartamento batendo a porta na minha cara. Nada parecido tinha acontecido
conosco antes. Você foi ficando mais e mais agitado e obcecado. Não queria falar comigo sobre
nenhuma outra coisa. Nossa vida sexual praticamente desapareceu. Não quero insistir nessa
questão, mas aquilo de você bisbilhotar a minha escrivaninha foi uma traição terrível. Que razão
eu havia dado para você ter ciúme de mim? À medida que essa coisa do Parry cresceu, vi você a
cada dia se fechar mais e se afastar de mim. Você ficou alucinado, transtornado, muito solitário.
Você estava empenhado até os cabelos numa missão. Talvez em substituição à ciência que tanto
queria fazer. Você pesquisou, fez as inferências lógicas e acertou uma porção de coisas, mas, no
caminho, esqueceu de me levar com você, esqueceu de me contar o que se passava na sua cabeça.
Há outra coisa que eu quis te dizer ontem à noite mas que você, aos berros, se recusou a
ouvir. Na noite do acidente, pelas coisas que você falou, ficou evidente sua enorme preocupação
com a possibilidade de ter sido o primeiro a soltar a corda. Era óbvio que você precisava
enfrentar essa ideia, rejeitá-la, fazer as pazes com ela — o que quer que fosse. Pensei que íamos
conversar sobre isso outra vez. Achei que poderia te ajudar. Para mim, você não tinha nenhum
motivo de se envergonhar. Pelo contrário, foi muito corajoso naquele dia. Mas o que sentiu
depois do acidente também foi muito real. Será que Parry não te ofereceu uma maneira de
escapar ao sentimento de culpa? Você parecia estar transferindo sua agitação para o novo
problema, fugindo às suas ansiedades com os ouvidos tapados, quando deveria aplicar a si
próprio esses poderes de análise racional de que tanto se orgulha.
Concordo que Parry é louco de um jeito que eu nem poderia imaginar. Apesar disso, posso
entender por que ele pensou que você o estava atraindo. Ele provocou alguma coisa em você.
Desde o primeiro dia você o viu como um adversário e se dedicou a derrotá-lo, e por isso pagou,
e nós dois pagamos, um alto preço. Talvez, se tivesse compartilhado mais comigo, ele não teria
chegado ao estágio em que chegou. Você se lembra como eu sugeri bem no começo — na noite
em que você, num acesso de fúria, me largou sozinha — que nós o chamássemos para uma
conversa? Você se limitou a me olhar com uma expressão de descrença, mas tenho certeza
absoluta de que, àquela altura, Parry não sabia que algum dia iria querer ver você morto. Juntos,
nós poderíamos tê-lo desviado do rumo que tomou.
Você seguiu em frente, lhe negou tudo, permitindo que florescessem suas fantasias e por fim
seu ódio. Você perguntou ontem à noite se eu me dei conta de que salvou minha vida. No sentido
mais imediato, sem dúvida é verdade. Sempre te serei agradecida. Você demonstrou coragem e
espírito de iniciativa. Na realidade, foi brilhante. Mas não concordo que foi inevitável a decisão
de Parry de contratar assassinos ou o fato de que eu terminasse sendo ameaçada com uma faca.
Sempre achei que era mais provável ele fazer mal a si próprio. Como eu errei e acertei! Você
salvou minha vida, mas talvez a tenha antes posto em risco — ao atrair Parry, ao ter reações
exageradas o tempo todo, ao adivinhar os movimentos dele como se o estimulasse a dar cada
passo. Um estranho invadiu nossas vidas, e a primeira coisa que aconteceu foi que você se tornou
um estranho para mim. Você deduziu que ele tinha a síndrome de De Clérambault (se isso é
realmente uma doença) e percebeu que ele podia ficar violento. Você estava certo, agiu com
decisão e tem motivos para se sentir orgulhoso. Mas e quanto ao resto? Por que isso aconteceu,
como te transformou, como poderia ter sido diferente, o que representou para nós — essas coisas
estão aí agora e temos de pensar sobre elas.
Acho que precisamos de um tempo separados. Ou, pelo menos, eu preciso. Luke me
ofereceu seu antigo apartamento em Camden Square até encontrar novos inquilinos. Não sei
aonde isso nos levará. Fomos tão felizes juntos. Nós nos amamos com paixão e lealdade. Sempre
pensei que nosso amor era daqueles que duram para sempre. Talvez ainda dure. Simplesmente
não sei.
Clarissa
24.
Dez dias depois do tiro fui a Watlington para me encontrar com Joseph Lacey. No dia
seguinte, passei a manhã no escritório tomando providências pelo telefone e, à tarde, fui a pé à
loja de comida italiana do bairro comprar os ingredientes para nosso piquenique. Quase igual ao
outro: uma bola de mozarela, ciabatta, azeitonas, tomates, anchovas e, para as crianças, uma
pizza margherita tradicional. Na manhã seguinte, acondicionei a comida numa mochila, junto com
duas garrafas de Chianti, água mineral e seis latinhas de Coca-Cola. O dia estava nublado e um
pouco frio, mas uma faixa estreita de azul avançava do oeste, dando credibilidade à previsão de
que estava para chegar uma onda de calor que duraria mais de uma semana. Dirigi até Camden
Town para pegar Clarissa. Na véspera, quando lhe contei a história de Lacey, ela insistiu em ir
comigo a Oxford. A seu ver, nós tínhamos vivido juntos aquela história e, apesar do mal que esta
nos causara, ela queria estar presente na hora da conclusão.
Ela devia estar olhando pela janela, porque, tão logo estacionei, a vi descendo as escadas
do lado de fora do apartamento de seu irmão. Desci do carro e a observei se aproximar, me
perguntando como nos cumprimentaríamos. Não nos encontrávamos desde a noite em que me
recusei a ajudá-la a levar para o táxi as malas com roupas e livros. Encostado à porta aberta do
carro enquanto o dia clareava visivelmente, senti uma dor repentina — misto de desolação e
pânico — ao verificar a rapidez com que aquela companheira, aquela figura tão íntima, estava se
transformando numa outra pessoa. O vestido estampado era novo, como também as alpargatas
verdes. Até mesmo sua pele parecia diferente, mais pálida, mais lisa. Nós nos demos um “alô” e
trocamos um desajeitado aperto de mão — melhor do que beijinhos hipócritas no rosto. A
familiaridade do perfume não me reconfortou. Fez com que os novos toques fossem ainda mais
dolorosos.
Talvez ela estivesse sentindo algo semelhante porque, quando liguei o motor, exclamou num
tom excessivamente alegre: “Gostei do paletó novo!”.
Agradeci e fiz um comentário simpático sobre seu vestido. Eu estava preocupado em saber
como iríamos nos comportar durante a viagem. Não queria outra confrontação, embora também
não pudesse ignorar nossos pontos de atrito. Mas, na verdade, a semana de separação nos
forneceu um bom suprimento de tópicos neutros. Primeiro, minha entrevista com Joseph Lacey em
seu jardim, e depois os arranjos que eu fizera para aquele dia — esses dois assuntos nos levaram
até os limites dos subúrbios no rumo oeste. Mais tarde falamos sobre nossos trabalhos. Surgira
uma nova pista na busca pelas últimas cartas de Keats. Ela se comunicara com um professor
japonês que alegava haver lido, doze anos antes na Biblioteca Britânica, uma correspondência
inédita escrita por um parente distante de Severn, o amigo de Keats. Lá constava a referência a
uma carta dirigida a Fanny que o poeta nunca tencionou lhe enviar, “uma proclamação de amor
eterno não maculada pelo desespero”. Clarissa passara todas as horas livres tentando em vão
descobrir a conexão Severn. A transferência da biblioteca para King’s Cross havia complicado a
busca e agora ela contemplava a possibilidade de ir a Tóquio a fim de examinar as anotações do
professor.
Quanto a mim, eu estivera em Birmingham para, a pedido de um jornal de domingo, testar
um carro movido a eletricidade. Devia voar para Miami a fim de fazer a cobertura de uma
conferência dedicada à exploração de Marte. Descrevi com alguns toques de exagero cômico o
horror do pessoal de relações públicas quando o protótipo elétrico não se dignou andar, porém
Clarissa não sorriu. Talvez ela estivesse pensando na geografia centrífuga — Maida Vale e
Camden Town, Miami e Tóquio — que nos separava cada dia mais. Enquanto descíamos das
Chilterns para o vale de Oxford, quebrei o silêncio falando sobre a colonização de Marte.
Aparentemente, talvez fosse possível plantar formas simples de vida, tal como liquens, e depois
árvores resistentes, permitindo que ao longo dos milênios se desenvolvesse uma atmosfera com
base no oxigênio. As temperaturas subiriam e, com o tempo, o planeta poderia se embelezar.
Clarissa olhava através do para-brisa para a estrada que corria sob nossos pés e, nas laterais,
para os campos cada dia mais verdejantes e os cerefólios que despontavam sob as sebes. “Para
quê? Nosso planeta é bonito e ainda assim nós somos tristes.”
Não perguntei a quem se referia o “nós”. Receava muito uma conversa pessoal num espaço
tão exíguo. Nossa briga fora horrível e arrastada, e, embora eu não tivesse chegado nem perto de
berrar (como ela afirmou em sua carta), tinha levantado a voz — ambos o fizemos — e andara de
um lado para outro da sala de visitas numa tremenda agitação. Além das manchas de sangue no
tapete, essa havia sido a herança de Parry — uma orgia de acusações mútuas, uma autópsia que
nos levou, exaustos e amargos, para camas separadas às três da manhã. A carta de Clarissa
apenas nos apartou ainda mais. Quinze anos antes eu poderia tê-la considerado seriamente,
suspeitando que incorporasse alguma sabedoria, uma delicadeza que eu não apreendia por conta
de meu jeito abrutalhado. Poderia ter achado que era meu dever, parte de minha educação
sentimental, aceitar sua reprimenda. Mas os anos nos endurecem para fazer de nós o que somos, e
a carta me pareceu simplesmente injusta. Não gostei do tom moralista de quem se sente ferido, da
pegajosa lógica emocional, das certezas que se ocultavam sob uma memória altamente seletiva.
Um louco pagou para me matarem num restaurante. O que significava “compartilhar” sentimentos
em comparação com aquilo? E fixado, transtornado, sem tesão? Quem não ficaria? Ali estava
uma má consciência implorando para ser absolvida. Não pedi para ficar solitário. Ninguém me
ouvia. Ela e a polícia forçaram meu isolamento.
Eu havia dito tudo isso no telefone na manhã em que sua carta chegou, e, obviamente, minhas
palavras não serviram para nada. Agora estávamos num espaço confinado, de fato ombro a
ombro, porém não era possível suscitar nossos conflitos. Dei uma olhada de relance para ela e a
achei bonita e triste. Ou a tristeza era toda minha?
Fomos batendo papo até Headington e o centro de Oxford. Estacionei em frente à casa dos
Logan no mesmo lugar onde havia parado na outra vez. As árvores que ladeavam a rua tranquila
formavam um túnel verde salpicado de pontos reluzentes e, ao descer, refleti sobre o tipo de
vida, enfadonha mas produtiva, que se podia ter ali. Peguei a mochila e caminhamos juntos até a
porta de entrada como um casal convidado para o almoço. Clarissa chegou mesmo a fazer um
comentário elogioso sobre o jardim da frente. Esse interregno de trivialidades se rompeu quando
a porta foi aberta e Leo surgiu diante de nós nu em pelo, embora seu peito e o nariz estivessem
canhestramente cobertos de listras tigradas. Ele me olhou sem me reconhecer e disse: “Não sou
um tigre, sou um lobo”.
“Tudo bem, você é um lobo”, eu disse. “Mas onde está sua mãe?”
Ela apareceu atrás de Leo no sombrio corredor que dava para a cozinha e veio em nossa
direção. O tempo não contribuíra em nada para sua recuperação. O mesmo nariz afilado, a mesma
vermelhidão acima do lábio superior. Talvez seu rosto estivesse mais duro, talvez a raiva
estivesse se infiltrando nos ossos. Trazia um lenço embolado na mão direita, que transferiu para
a esquerda a fim de apertar nossas mãos. A sra. Logan perguntou se queríamos esperar no jardim
de trás enquanto limpava e vestia Leo, e foi lá que encontramos Rachael, de short, tomando sol
deitada de bruços na grama. Quando nos ouviu, se virou rápido e fingiu que dormia ou estava em
transe. Clarissa se ajoelhou e com um talo fez cócegas embaixo de seu queixo.
Protegendo os olhos contra a luz, Rachael falou numa espécie de guincho: “Eu sei quem
você é, por isso não pensa que vai me fazer rir!”. Mas, quando não aguentou mais, ela sentou e
deu de cara com Clarissa — e não comigo.
“Você não sabe quem eu sou, por isso posso fazer você rir”, disse Clarissa. “E só vou parar
quando você adivinhar meu nome.” As cócegas continuaram até que Rachael gritou:
“Rumpelstiltskin!”, e pediu a ela que parasse. Quando me voltei para entrar na casa, ela havia
tomado a mão de Clarissa para lhe mostrar o jardim. Notei que a tenda, desmoronada de vez,
tinha sido pisoteada.
Encontrei Jean Logan no hall, de joelhos, afivelando a sandália de Leo. “Você já está grande
o suficiente para fazer isso sozinho”, ela estava dizendo. Ele passava a mão na cabeça da mãe.
“Mas eu gosto quando você faz isso”, ele retrucou, sorrindo para mim com uma expressão
triunfante de posse.
Dirigi-me a ela: “Quero que a senhora ouça essa história contada sem intermediários. Por
isso, preciso saber onde vamos fazer o piquenique”.
Ela se levantou suspirando e descreveu um local na margem do Tâmisa perto de Port
Meadow. Depois me mostrou o telefone ao pé da escada. Esperei que ela e Leo fossem para o
jardim antes de telefonar para a universidade e pedir para falar com o professor emérito de
lógica.
Chegava-se ao prado após uma caminhada de menos de cinco minutos. Leo, com ciúme da
nova amiga de sua irmã, estava agarrado ao braço livre de Clarissa e cantava trechos de todas as
canções que conhecia dos Beatles — tudo para cortar a conversa das duas. Rachael
simplesmente falava mais alto. Jean Logan e eu seguíamos alguns passos atrás do barulhento trio.
Jean disse: “Ela é muito boa com eles. Aliás, vocês dois são”. Descrevi as várias crianças em
nossas vidas e o quarto que mantínhamos para elas no apartamento. Na verdade, o quarto de
Clarissa, e agora nem isso.
Ao atravessarmos uma passarela sobre a estrada de ferro, de repente se abriu diante de nós
o prado pontilhado de botões-de-ouro. “Eu sei que pedi para ouvir isso, mas não tenho certeza se
consigo levar a coisa adiante, sobretudo com Rachael e Leo aqui”, disse Jean Logan.
“Consegue, sim. E, de qualquer maneira, agora não há alternativa.”
Seguidos por um bando curioso de bezerros, cruzamos o campo em meio aos botões-de-ouro
rumo ao rio, que subimos por uns cem metros. Montamos o piquenique no local onde a margem,
erodida pelo gado que vinha beber, formava uma pequena praia. Jean abriu no chão uma grande
lona comprada dos estoques do exército. Enquanto eu tirava a comida da mochila, me ocorreu
que a lona deveria ter pertencido a John Logan, que a usara em expedições das quais nunca
saberíamos nada. Servi vinho às mulheres. Leo e Rachael tinham entrado na água e me
desafiavam para que eu entrasse também. Tirei os sapatos e as meias e, depois de enrolar as
calças, fui atrás dos dois. Havia muitos e muitos anos não fazia uma coisa daquelas, sentindo o
lodo entre os dedos dos pés, aspirando o forte cheiro de terra e água que subia do rio. Enquanto
Clarissa e Jean conversavam, alimentamos os patos, fizemos pedras saltar na superfície e
construímos um morrinho de lama circundado por um fosso. Durante uma pausa na brincadeira,
Rachael chegou perto de mim e disse: “Lembro quando você veio e tivemos aquela conversa”.
“Também lembro.”
“Então vamos ter outra conversa.”
“Está bem”, respondi. “Sobre o quê?”
“Você começa.”
Refleti por um momento, e depois apontei para o rio. “Imagine a menor quantidade de água
que pode existir. Tão pequena que ninguém pudesse ver...”
Ela fechou os olhos, como tinha feito no gramado. “Uma gotinha bem pequenininha.”
“Muito menor. Nem com um microscópio daria para ver. É quase nada. Dois átomos de
hidrogênio, um de oxigênio, unidos por uma força misteriosamente poderosa.”
“Consigo ver”, ela exclamou. “É feita de vidro.”
“Está bem”, eu disse. “Agora pense em bilhões, trilhões delas, empilhadas uma em cima da
outra e se espalhando em todas as direções até quase o infinito. E agora pense no leito do rio
como um escorregador raso e comprido, como um tobogã sinuoso e coberto de lama, com mais
de cem quilômetros, indo até o mar...”
Não fomos adiante. Leo, até então ocupado na margem, percebeu que algo se passava sem
ele. Chegou correndo, pronto a me molhar todo se eu não o incluísse.
“Tenho ódio de você”, Rachael gritou. “Vá embora!”
Nesse justo instante fomos chamados para comer, mas, antes de sairmos da água, Rachael
beliscou meu braço para me fazer saber que ainda não havíamos terminado.
A comida suscitou uma conversa sobre a Itália e as viagens de férias. As crianças
contribuíram em conjunto com memórias sem dúvida confusas de uma praia onde viviam
papagaios e de um bosque de pinheiros próximo a um vulcão. Rachael se lembrou de um bote
com fundo de vidro, mas Leo duvidou da existência de tal bote. Como a embarcação fora alugada
por um dia, como a escalada do vulcão exigira uma caminhada de seis horas e Leo fora
carregado a maior parte do tempo, era possível inferir a presença dinâmica de John Logan,
embora o garoto não se tivesse referido diretamente a ele.
Depois do almoço, o vinho e o calor do sol deixaram os adultos sonolentos. Entediadas
conosco, as crianças foram dar pedaços de maçã aos pôneis. Jean começou a explicar como
Rachael sentia saudade do pai mas se recusava a conversar sobre o assunto. “Eu vi quando ela
falou com o senhor no rio. Ela se agarra a qualquer homem que chega lá em casa. Parece achar
que pode obter algo deles que nunca terá de mim. Ela se entrega tanto! Gostaria muito de saber o
que ela está buscando. Talvez seja só o som da voz de um homem.”
Observávamos as crianças enquanto Jean falava. Elas se afastaram rio acima. A certa
distância de nós, Leo olhou para trás e depois deu a mão à irmã. Jean começava a nos dizer como
as crianças se relacionavam tão bem quando, de repente, se interrompeu e exclamou: “Ah, meu
Deus! Lá está ela. Só pode ser ela”.
Sentamo-nos e nos voltamos na direção de seu olhar. Pus--me de pé.
“Sei que lhe pedi para fazer isso”, Jean disse rapidamente. “Mas não acho que sou capaz de
encontrá-la. É cedo demais para mim. E há alguém com ela. Seu pai. Ou talvez seja seu
advogado. Não quero falar com ela. Pensei que quisesse...”
Clarissa pôs a mão sobre o braço de Jean. “Vai ficar tudo bem”, ela disse.
Os dois pararam a uns dez metros de distância e, lado a lado, esperaram por mim. A moça
afastou o olhar quando me aproximei. Eu sabia que era uma estudante. Parecia ter vinte anos e
era muito bonita, a encarnação dos piores temores de Jean Logan. O homem era James Reid,
professor de lógica que ocupava a prestigiosa cadeira de Euler na universidade em que a moça
estudava. Trocamos um aperto de mão enquanto declinávamos nossos nomes. O professor era um
pouco mais velho do que eu, talvez tivesse cinquenta anos, e bastante gordo. Apresentou a moça
como Bonny Deedes e, quando dei a mão a ela, pude imaginar como um homem mais velho seria
capaz de arriscar tudo. Tinha o tipo de beleza que eu rejeitaria como um lugar-comum caso
alguém a descrevesse — a pele de pêssego, os cabelos louros e os olhos azuis que descendiam
em linha direta de Marilyn Monroe. Usava jeans cortados na altura das coxas e uma blusa cor-derosa
propositadamente esfarrapada. O professor, em contraste, vestia um terno de linho e usava
gravata.
“Bem”, ele disse suspirando, “vamos resolver logo isso?” Olhou para sua aluna, que se
concentrava nas sandálias (as unhas estavam pintadas de vermelho) e concordou
desanimadamente com a cabeça.
Conduzi-os até o local do piquenique e fiz as apresentações. Jean não olhava para Bonnie,
que, por sua vez, não tirava os olhos do professor. Convidei-os a sentar. Bonnie ajeitou-se
diplomaticamente de pernas cruzadas sobre a grama, a alguns centímetros da lona. Reid
conseguiu equilibrar dignidade e polidez plantando um joelho no chão. Olhou para mim, e fiz que
sim com a cabeça.
Ele pousou as mãos no outro joelho e baixou a cabeça por alguns segundos, ordenando os
pensamentos segundo o hábito adquirido nos muitos anos de magistério. “Viemos aqui”, disse por
fim, “para explicar e pedir desculpas.” Dirigiu-se a Jean, mas ela manteve a vista cravada nos
restos da pizza. “A senhora está vivendo uma tragédia, uma perda terrível, e Deus sabe que não
precisava ter nenhuma dor adicional. O lenço deixado no carro de seu marido pertencia a Bonnie,
não há dúvida disso...”
Jean o interrompeu. Seu olhar feroz de repente se abateu sobre a moça. “Então talvez seja
melhor que ela mesma nos diga.”
Mas Bonnie simplesmente se derreteu sob o olhar de Jean. Ela não era capaz de falar e nem
mesmo ousava erguer o rosto.
Reid continuou: “Ela realmente estava lá. Mas eu também estava. Estávamos juntos”. Ele
encarou Jean e a deixou absorver a informação. Depois prosseguiu: “Vou colocar isso da forma
mais clara possível. Bonnie e eu nos amamos. Trinta anos de diferença, uma loucura, mas é o que
é: nós nos amamos. Mantivemos isso em segredo, embora sabendo que muito em breve
enfrentaremos muitas complicações e sofrimento. Mas nunca imaginamos que nossas tolas
tentativas de ocultar os fatos poderiam causar tanta angústia, e por isso espero que, depois de
saber o que aconteceu, a senhora nos perdoe”.
Ouvimos as crianças chamando uma à outra ao longe, na margem do rio. Jean ficou calada, a
mão esquerda cobrindo a boca como se ela quisesse impedir a si própria de falar.
“Minha posição na universidade se tornou insustentável. Será um alívio pedir demissão.
Mas isso não lhe interessa.” Reid olhava para a moça, tentando atrair seu olhar, mas ela se
recusava a entrar no jogo.
“Até recentemente, Bonnie e eu seguíamos a regra de nunca sermos vistos juntos em Oxford.
Agora estamos abandonando todas as precauções. No dia em que aquilo aconteceu, havíamos
planejado um piquenique nas Chilterns. Reorganizei meu horário de aulas e peguei Bonnie numa
parada de ônibus nos limites da cidade. Menos de dois quilômetros depois, meu carro enguiçou.
Nós o empurramos para um local de estacionamento e foi então que ela me convenceu a não
desistir do passeio. Cuidaríamos do carro depois. Devíamos tentar pegar uma carona. Por isso,
me ocultei atrás de Bonnie, terrivelmente sem jeito, com medo de que alguém me reconhecesse.
Após alguns minutos, um carro parou, era seu marido a caminho de Londres. Ele se mostrou
muito simpático e prestativo. Se adivinhou nossa relação, não demonstrou nenhuma censura.
Muito pelo contrário. Ofereceu-se para sair da estrada e nos deixar em Christmas Common.
Estávamos quase chegando quando vimos o homem e o menino tendo problemas com o balão por
causa da ventania. Como eu estava no banco de trás, não consegui entender o que se passava. Seu
marido encostou o carro bruscamente e, sem dizer uma palavra, correu para ajudar. Descemos
para ver o que estava acontecendo. Não sou uma pessoa fisicamente muito ativa, e vi que um bom
número de pessoas já havia se mobilizado. Por isso, pelo menos no início, fazia sentido ficar por
ali. Não creio que eu teria sido útil. Então tudo começou a dar errado de um modo horrível e
compreendemos que era necessário tentar ajudá-los a manter o balão no solo. Saímos correndo,
mas era tarde demais, o balão tinha levantado voo — e todos sabem o que aconteceu depois.”
Reid hesitou na escolha das palavras. Baixou o tom da voz e tive de me debruçar para a
frente a fim de ouvi-lo.
“Depois que ele caiu, ficamos numa situação pavorosa. Realmente em pânico. Descemos
por uma trilha, tentando nos acalmar e pensar no que fazer. O carro foi deixado para trás e
esquecemos que nosso piquenique tinha ficado lá, bem como o lenço de Bonnie. Caminhamos
durante horas. Sinto vergonha de dizer, mas receava que, se nos apresentássemos como
testemunhas, eu teria de explicar o que fazia no meio do campo com uma das minhas alunas.
Simplesmente não sabíamos o que fazer.
“Algumas horas depois chegamos a Watlington. Entramos num pub para pedir informações
sobre os ônibus ou táxis. Diante do balcão, um homem contava para o encarregado do bar e um
grupo de fregueses o que acontecera naquela tarde. Obviamente era um dos homens que tinham se
pendurado nas cordas. Não pudemos deixar de lhe dizer que também tínhamos estado lá. Essas
coisas unem as pessoas, a gente sente necessidade de falar. Os que não tinham estado lá eram
estranhos totais. Acabamos indo para a casa desse sujeito, Joseph Lacey, a fim de conversar
mais, e foi então que lhe contei meu problema. Mais tarde, ele nos levou de carro para Oxford e,
no caminho, deu um conselho. Achava que, como havia um número suficiente de testemunhas do
acidente, nossos relatos não eram necessários. Mas disse também que, se houvesse algum
desacordo ou conflito de versões, então entraria em contato comigo e eu pensaria no caso outra
vez. E assim foi. Nunca nos apresentamos. Sei que isso lhe causou angústia, e lamento muito,
muito mesmo...”
Após essas palavras, retomei a consciência do prado, das faixas de botões-de-ouro, do
bando de cavalos e pôneis galopando na direção da aldeia vizinha, do remoto zumbido da
autoestrada, e mais perto, no rio, de um barco a vela que seguia veloz e silencioso. As crianças
caminhavam lentamente de volta, absortas numa conversa animada. Clarissa, com grande
discrição, recolhia as coisas do piquenique.
“Ah, Deus”, Jean suspirou.
“Ele era um homem extraordinariamente corajoso”, o professor fez questão de lhe dizer,
como eu fizera algumas semanas antes. “É o tipo de coragem que nós só podemos sonhar em ter.
Mas espero que a senhora nos perdoe por termos sido tão egoístas, tão descuidados.”
“Claro que perdoo”, ela disse, ainda raivosa. Havia lágrimas em seus olhos. “Mas quem vai
perdoar a mim? A única pessoa que poderia fazer isso está morta.”
Reid tentava demovê-la, dizendo que ela não devia ver as coisas assim. Jean ergueu a voz
de novo para se culpar, seus lamentos se misturando às afirmações tranquilizantes de Reid. Os
pedidos ofegantes de perdão me fizeram lembrar do Chapeleiro Maluco, porque, naquela mesma
margem do Tâmisa, Lewis Carroll, o diácono do Christ Church College, certa feita entretivera as
menininhas que eram o objeto de sua obsessão. Atraí o olhar de Clarissa e trocamos um pequeno
sorriso, como se apresentando nossos próprios pedidos de perdão mútuo ou ao menos de
tolerância, em contraponto à ardente troca de palavras entre Jean e Reid. Sacudi os ombros como
para significar que, tal qual ela na carta, eu simplesmente não sabia.
Por fim nos pusemos todos de pé. As coisas do piquenique foram guardadas, a lona
dobrada. Bonnie, que até então não abrira a boca, se afastara alguns passos e, por seus
movimentos, revelava a impaciência para partir. Ou ela era realmente pouco brilhante — um
caso genuíno de loura burra — ou desprezava todos nós. Reid, indeciso, estava ansioso para
fazer a vontade dela, mas ao mesmo tempo constrangido pelas normas de cortesia a se despedir
de modo correto. Pus a mochila nas costas e estava prestes a lhe dizer adeus, resolvendo seu
problema, quando Rachael e Leo me ladearam.
Nunca consegui resistir ao sentimento de orgulho, de plena aceitação, quando crianças me
estendem a mão. Levaram-me até a prainha lodosa onde contemplamos a água marrom que fluía
sem pressa.
“Agora”, disse Rachael, “você pode contar também para Leo. Conta outra vez, devagar,
aquela coisa sobre o rio.”
Apêndice I
Reproduzido da British Review of Psychiatry
Robert Wenn MB Bch. MRCPsych & Antonio Camia MA, MB, DRCOG, MRCPsych
uma obsessão homoerótica com conotações religiosas: uma variante
clínica da síndrome de de clérambault
Descreve-se aqui a incidência de uma forma pura (primária) da síndrome de De
Clérambault num homem cujas convicções religiosas desempenham um papel central em suas
fantasias. Periculosidade e tendências suicidas também estão presentes. O caso vem reforçar os
estudos recentes que indicam ser tal síndrome uma entidade nosológica independente.
introdução
As “fantasias eróticas”, a “erotomania” e as patologias associadas ao amor geraram um rico
e variado volume de estudos que descrevem, num extremo, comportamentos incomuns ou
ocorrências aceitáveis sem implicações psicopatológicas e, no outro, variantes estranhas
enquadradas na psicose esquizofrênica. Encontram-se as primeiras referências em Plutarco,
Galeno e Cícero; como deixa claro uma resenha da literatura feita por Enoch & Trethowan
(1979), o termo erotomania sempre se ressentiu da falta de uma definição precisa.
Em 1942, De Clérambault traçou cuidadosamente o paradigma que traz seu nome, uma
síndrome que ele caracterizou como “les psychoses passionnelles” ou “erotomania pura” para
distingui-la dos estados eróticos paranoides mais conhecidos. O “sujeito”, em geral uma mulher,
crê intensamente que é amado por um homem, o “objeto”, com frequência pertencente a um
estamento social mais alto. A paciente pode ter tido pouco ou nenhum contato com o objeto de
sua fantasia. O fato de o objeto ser casado é visto como irrelevante. Suas declarações de
indiferença ou até mesmo ódio são entendidas pela mulher como paradoxais ou contraditórias,
não alterando sua convicção de que o homem “realmente” a ama. Outros temas derivados incluem
a certeza de que, sem ela, o objeto jamais encontrará a felicidade completa e que o
relacionamento é reconhecido e aprovado por todos. De Clérambault enfatizou que, na forma
pura, a primeira manifestação da doença era precisa e repentina, até mesmo explosiva; esse é um
importante fator de diferenciação porque, segundo ele, os estados eróticos paranoides se
desenvolvem gradualmente — conclusão questionada por Enoch & Trethowan (1979).
O elemento central do paradigma de De Clérambault é o que ele chamou de “postulado
fundamental”: o paciente está “convencido de ter uma comunicação amorosa com uma pessoa de
nível social mais alto, a qual se apaixonou em primeiro lugar e fez os primeiros avanços”. Essa
comunicação pode tomar a forma de sinais secretos, contatos diretos e o uso de “recursos
fenomenais” para satisfazer as necessidades da paciente. Ela sente que está velando pelo objeto
de sua fantasia e o protegendo.
Num de seus casos iniciais e mais famosos, De Clérambault descreveu uma francesa de 53
anos que acreditava ser amada pelo rei Jorge v. A partir de 1918, essa mulher o perseguiu de
forma persistente, fazendo diversas visitas à Inglaterra.
Ela frequentemente esperava por ele do lado de fora do palácio de Buckingham. Certa vez, viu uma cortina se mover numa
das janelas do palácio e interpretou isso como um sinal do rei. Ela afirmava que todos os habitantes de Londres sabiam do
seu amor por ela, mas alegava que o rei a havia impedido de se hospedar na cidade, fazendo-a perder suas reservas nos
hotéis, além de ser responsável pelo extravio de bagagens que continham dinheiro e retratos dele [...] Ela assim resumiu, de
forma vívida, sua paixão por ele: “O rei pode me odiar, mas jamais me esquecerá. Eu nunca poderia ser indiferente a ele,
nem ele a mim [...] Ele me fere em vão [...] Fui atraída por ele do mais fundo de meu coração [...]”.
Ao longo dos anos, com a descrição de outros casos, os critérios de definição foram
alargados e refinados: a doença não afeta apenas as mulheres e não se limita à atração
heterossexual. Pelo menos um paciente de De Clérambault era homem, e desde então foram
identificados outros portadores da síndrome do sexo masculino. No levantamento que fizeram de
pacientes majoritariamente do sexo masculino, Mullen e Pathe concluíram que os homens se
revelam mais agressivos e perigosos. Casos de homossexualismo foram comentados por Mullen
& Pathe (1994), Lovett Doust & Christie (1978), Enoch e seus colaboradores, Raskin & Sullivan
(1974) e Wenn & Camia (1990).
Nessas condições, os seguintes critérios de diagnóstico da síndrome primária de De
Clérambault, tal como sugeridos por Enoch & Trethowan, devem ser bem-aceitos pelos que
endossam a tese da entidade clínica distinta: “a convicção fantasiosa de manter uma comunicação
amorosa com alguém que pertence a um nível social bem mais elevado, que foi o primeiro a se
apaixonar e a tomar a iniciativa de estabelecer contato; o início é brusco, o objeto da fantasia
amorosa se mantém indiferente, o paciente desenvolve uma explicação para o comportamento
paradoxal do objeto, a doença se torna crônica, não ocorrem alucinações ou defeitos cognitivos”.
Mullen e Pathe citam Perez (1993), segundo o qual a consciência do perigo representado
pelos portadores da síndrome de De Clérambault vem provocando um “dilúvio” de medidas
legais para proteger suas vítimas. Mullen e Pathe enfatizam a tragédia que atinge tanto os
pacientes como suas vítimas: para os primeiros, o amor “se torna uma forma de vida autística e
isoladora, na qual desaparece qualquer possibilidade de união com outra pessoa. A tragédia para
aqueles que são objeto da atenção indesejada é que, na melhor das hipóteses, sofrem
molestamentos e embaraços ou a desintegração de seus relacionamentos mais próximos; na pior
hipótese, são vitimados por manifestações violentas de ressentimento, ciúme ou desejo sexual”.
caso clínico
Um homem solteiro de 28 anos, P., foi enviado para tratamento pela Justiça após ser
acusado de tentativa de assassinato.
P. é o segundo filho de um pai idoso, que morreu quando ele tinha oito anos, e de uma mãe
que nunca lhe deu atenção suficiente, tendo voltado a se casar quando ele tinha treze anos.
Segundo sua própria descrição, P. foi uma criança intensa, solitária e sonhadora, que não fazia
amigos com facilidade. Quando sua mãe casou de novo, foi mandado para um colégio interno
onde obteve resultados acadêmicos acima da média, embora não excepcionais. Durante esse
tempo, sua irmã mais velha se mudou para o exterior e ele nunca mais a viu. Não se lembra de ter
sido objeto de ridículo ou violência por parte dos colegas, porém não criou nenhuma amizade
íntima, achando que os demais meninos o encaravam com superioridade porque “ele não tinha um
pai sobre o qual pudesse contar vantagens, como os outros faziam”. Entrou para a universidade,
onde persistiu o padrão de isolamento. P. considerava que os estudantes eram frívolos. Vinculouse
ao Movimento Estudantil Cristão e, conquanto não permanecesse por longo tempo como
membro, começou nessa época a dar mais importância à religião em sua vida. Diplomou-se em
história na universidade, com resultados bastante modestos, e nos quatro anos seguintes ocupou
diversos empregos de baixa qualificação. A essa altura, não tinha praticamente nenhum contato
com a mãe, que havia se divorciado do segundo marido e herdara da irmã uma grande casa no
norte de Londres, além de uma boa soma em dinheiro.
P. fez um curso preparatório para ensinar inglês a estrangeiros e trabalhou por um ano nessa
nova ocupação. Com a morte da mãe, se tornou o beneficiário único de seus bens, pois não foi
possível descobrir o paradeiro da irmã. Abandonando o emprego, ele se mudou para a casa, onde
tanto seu isolamento como sua crença religiosa se intensificaram. O paciente meditava sobre a
“glória divina” por longos períodos e fazia passeios no campo. Nessa época, ficou convencido
de que Deus lhe preparava um desafio diante do qual não podia falhar.
Durante um desses passeios, P. presenciou um acidente com um balão de hélio. Trocou um
olhar com R., outra pessoa que passava pelo local e ajudava a conter o balão. Segundo P., R. se
apaixonou por ele naquele instante. Já tarde, na noite do acidente, P. deu o primeiro de muitos
telefonemas para R. a fim de fazê-lo saber que o amor era mútuo. P. percebeu que a tarefa
imposta por Deus consistia em retribuir o amor de R. e “conduzi-lo a Deus”. Essa certeza
cresceu quando ele descobriu que R. era um renomado autor cujos livros e artigos sobre assuntos
científicos partiam de um ponto de vista ateísta. Em suas variadas percepções da vontade de
Deus, P. nunca teve nenhuma alucinação.
Começou então uma longa série de cartas, confrontos e vigílias nas ruas, comportamentos
muito comuns na triste literatura sobre essa doença. Num eco interessante do famoso caso de De
Clérambault, P. entendeu receber mensagens de R. mediante mudanças na disposição das cortinas
de seu apartamento. P. também recebeu informações ao tocar as folhas de uma cerca de
alfeneiros e pela leitura dos artigos publicados por R. bem antes do primeiro encontro entre os
dois. R. vivia feliz com sua companheira, M., mas em poucos dias o relacionamento foi afetado
pela investida incansável de P. Mais tarde, o casal se separou. P. em geral revelava um estado de
euforia, seguro de que, malgrado a hostilidade aparente de R., ele aceitaria seu destino e iria
morar com P. na grande casa. Acreditava que R. estava “brincando com ele” e testando sua
determinação.
Em breve, a euforia se transformou em ressentimento. Tendo roubado a agenda de
compromissos de M. em seu local de trabalho, P. soube que R. estaria em determinado
restaurante e contratou pistoleiros para matá-lo. Na tentativa de assassinato, um cliente numa
mesa próxima foi atingido no ombro. P. foi tomado pelo remorso e decidiu cortar a garganta na
frente de R. Quando esse plano também fracassou, P. foi detido e acusado tanto pelo tiroteio no
restaurante como por haver mantido M. imobilizada sob a ameaça de uma faca. O tribunal
solicitou uma avaliação psiquiátrica completa.
Ao ser entrevistado, o paciente se apresentou bem, com as reações normais de alguém que
estava detido num presídio com excesso de lotação. Havendo sido diagnosticado como
esquizofrênico num exame inicial feito a pedido de seu advogado, P. foi submetido a testes
cognitivos, físicos e de laboratório com resultados normais, o mesmo ocorrendo com o eeg. Não
se verificaram alucinações ou distúrbios na formulação dos pensamentos. Não houve indícios de
outros sintomas schneiderianos primários de esquizofrenia (Schneider, 1959). P. demonstrou
capacidade visuoespacial, abstração e concentração acima da média. Seus índices wais foram os
seguintes: verbal 130, processamento 110, total 120. No teste Benton, ele não revelou nenhuma
perda cognitiva. Na Escala de Memória de Wechsler, sua memória de curto prazo se mostrou
intacta para materiais simples e complexos.
P. afirmou saber que R. ainda o amava, o que fora comprovado pelo fato de R. haver
impedido que ele se suicidasse. Além disso, numa audiência perante o juiz sobre matéria de
procedimento, P. havia recebido uma “mensagem de amor” de R. P. lamentava ter atentado contra
a vida de R. e entendia que tudo que teria de enfrentar não passaria de um teste de sua fé em Deus
e do seu amor por R. O paciente se mostra articulado e coerente ao fazer essas afirmações. Deixa
a impressão de possuir um sistema de fantasias bem encapsulado. Foi recomendada a
quimioterapia (5 mg diários de pimozida) e uma terapia ligeiramente desafiadora e dirigida ao
insight, porém, no final de seis meses, não se verificou nenhum progresso. Posteriormente, o
tribunal decidiu que ele deveria ser mantido por tempo indeterminado num hospital psiquiátrico
dotado de segurança. P. foi examinado seis meses após a internação e, malgrado uma
modificação no tratamento quimioterápico, suas fantasias persistiam, com declarações tão
confiantes quanto no passado de que o amor de R. por ele não havia diminuído e que, graças ao
seu sofrimento, terminaria por levar R. a Deus. P. escreve diariamente a R., do hospital. Suas
cartas são recolhidas pelo corpo de enfermeiros, mas não são enviadas a fim de evitar maiores
aflições para R. O paciente continuará a ser acompanhado.
discussão
Ellis e Mellsop (1985) chegaram à conclusão de que a síndrome de De Clérambault é uma
doença etiologicamente heterogênea. As hipóteses de etiologia incluíram o alcoolismo, o aborto,
a depressão pós-anfetamina, a epilepsia, os traumatismos cranianos e problemas neurológicos.
Nenhuma dessas causas é relevante para o caso em tela. Repassando as diversas descrições
sobre a personalidade pré-mórbida nos casos puros, Mullen & Pathe indicam a existência de “um
indivíduo socialmente inepto e isolado dos outros por sua sensibilidade, suspicácia ou presumida
superioridade. Esses indivíduos tendem a levar uma vida socialmente vazia [...] o desejo por
relacionamentos é contrabalançado pelo medo da rejeição ou medo da intimidade, tanto sexual
como emocional”.
Quando o paciente recebeu por herança a casa da mãe, sua vida sofreu uma mudança
decisiva. A incapacidade de estabelecer relações íntimas durante toda a vida culminou num novo
arranjo pelo qual P., livre da necessidade de garantir seu sustento, pôde romper os contatos
remanescentes com os colegas na escola de inglês e com sua senhoria, se fechando em si mesmo.
Foi durante essa fase de maior solidão que tomou consciência de que enfrentaria uma provação.
Num passeio campestre, participou de uma comunidade incidental de pessoas que lutavam para
reter um balão atingido por fortes ventos. Tal transformação, de uma vida “socialmente vazia”
para um intenso trabalho de equipe, pode ter sido o fator decisivo que precipitou a manifestação
da síndrome, pois só quando o drama terminou é que ele “se deu conta” do amor de R.; o início
da relação fantasiosa garantiu que P. não precisaria retornar ao seu isolamento anterior. Arieti &
Meth (1959) sugeriram que a erotomania pode agir como uma defesa contra a depressão e a
solidão ao criar um mundo intrapsíquico completo.
Ao traçarem o perfil do erotômano, se afigura também relevante para Mullen & Pathe o
medo que ele tem da intimidade sexual. Indagado numa entrevista sobre suas aspirações eróticas
com respeito a R., P. se mostrou evasivo e até ofendido. Embora muitos pacientes do sexo
masculino abriguem propósitos sexuais específicos e agressivos com relação aos objetos de suas
fantasias, outros, em especial muitos do sexo feminino, têm apenas uma vaga noção do que
efetivamente desejam dos seus supostos amores, sem dúvida como uma forma de se
autoprotegerem. Enoch & Trethowan citam Esquirol (1772-1840), segundo o qual “os
erotômanos nunca ultrapassam os limites da decência, permanecendo castos”. Bucknell e Tuke,
escrevendo em meados do século xix, associavam a “erotomania propriamente dita” a
“devaneios sentimentais”.
O presente caso confirma as observações de alguns estudiosos (Trethowan, 1967; Seeman,
1978; Mullen & Pathe) acerca da importância de pais ausentes ou mortos. Não é possível ainda
saber se R., com 47 anos, representou uma figura paterna para P. ou, sendo um indivíduo exitoso
e socialmente bem integrado, um ideal a que P. aspirava.
Fortes associações entre a erotomania e a periculosidade foram demonstradas, sobretudo em
estudos recentes (Gagne & Desparois, 1995; Harmon, Rosner & Owens, 1995; Menzies,
Fedoroff, Green & Isaacson, 1995). A hospitalização pode ser necessária a fim de proteger o
objeto da fantasia de um ataque pelo paciente (Enoch & Trethowan; Mullen & Pathe). Neste caso,
em que se registraram acusações criminais, a questão da periculosidade, particularmente no
tocante ao desenlace, foi fundamental. P. estava presente num restaurante para assistir ao
assassinato de R. que ele próprio havia contratado. Quando o ataque falhou, P. tentou intervir.
Mais tarde, demonstrou remorso e, na presença de R. e M., redirecionou a violência contra si
mesmo. Enquanto a fantasia de P. permaneceu intacta, seu potencial de violência não se alterou e
foi aconselhável interná-lo num hospital dotado de segurança.
Estudando oito casos, Lovett Doust & Christie sugeriram que se pode estabelecer “uma
relação próxima entre alguns aspectos patológicos do amor e a atitude de alguns crentes perante
os ensinamentos religiosos”. É razoável presumir que as inibições impostas por certas seitas à
expressão sexual podem contribuir para determinadas patologias. Além disso, os sacerdotes
celibatários, por não estarem disponíveis, tendem a se tornar alvos preferenciais de portadores
da síndrome de De Clérambault. Outros membros da Igreja têm fantasias eróticas devido à
posição que ocupam em suas congregações (Enoch & Trethowan). No entanto, P. não pertencia a
nenhuma seita ou igreja organizada, e o objeto de sua fantasia era ateu. Embora anterior à sua
psicopatologia, a crença religiosa de P. se intensificou após a mudança para a casa herdada da
mãe e o isolamento total que se seguiu. Sua relação com Deus era pessoal, e servia de substituto
para outras relações íntimas. A missão de “conduzir R. a Deus” pode ser vista como uma
tentativa de realizar um mundo intrapsíquico integrado no qual, internalizados, o sentimento
religioso e o amor imaginário se fundiriam. Nas entrevistas, P. insistia em que nunca tinha ouvido
a voz de Deus ou visto alguma manifestação de sua presença. Ele havia tomado “consciência” da
vontade ou do propósito de Deus na forma generalizada comum a muitas pessoas intensamente
religiosas. Uma busca na literatura não revelou nenhum outro caso de erotomania pura em que o
sentimento religioso, ou o amor a Deus, haja desempenhado papel tão importante.
conclusão
A doença de P. só não satisfaz um dos critérios de diagnóstico para a forma primária da
síndrome de De Clérambault tal como sugeridos por Enoch & Trethowan e mencionados acima:
P. tem a convicção fantasiosa de estar em contato amoroso com outra pessoa, R., que se
apaixonou em primeiro lugar e tomou a iniciativa. A manifestação da doença foi repentina. O
objeto da fantasia de P. não se modifica. P. é capaz de racionalizar o comportamento paradoxal
de R. e seu comportamento adquire um caráter crônico. P. não sofre alucinações ou problemas
cognitivos. No entanto, embora se possa dizer que R. pertence a um estrato social mais alto, P.
não sabia disso quando eles se conheceram. Esse alto grau de concordância no diagnóstico, além
do fato de que P. compartilha com outros doentes diversas características pré-mórbidas,
fortalece a opinião de que a síndrome constitui uma entidade nosológica distinta.
No que concerne ao prognóstico, a maioria dos estudiosos tende ao pessimismo. De
Clérambault descreveu casos de erotomania pura que duraram, sem alterações significativas, de
sete a 37 anos. Uma visão retrospectiva da literatura posterior sugere se tratar realmente de uma
forma de amor muito duradoura, que frequentemente só termina com a morte do paciente.
As vítimas dos portadores da síndrome sofrem molestamento, tensão, ataques físicos e
sexuais, podendo até ser mortas. Neste caso, R. e M. se reconciliaram e depois adotaram uma
criança, mas outras vítimas se divorciaram ou se mudaram para o exterior, quando não
necessitaram de tratamento psiquiátrico devido às perturbações causadas pelos pacientes. Por tal
razão, é importante que se continue a aprimorar os critérios de diagnóstico, divulgando-os a
todos os profissionais desta área. Não se pode esperar que os pacientes com distúrbios desse
tipo busquem ajuda, uma vez que não se consideram enfermos. Seus amigos e familiares também
podem se mostrar relutantes em vê-los nesses termos, porque, como Mullen e Pathe observam,
“as extensões patológicas do amor se misturam e sobrepõem às vivências normais, não sendo
fácil aceitar que uma de nossas mais valiosas experiências possa degenerar num comportamento
psicopatológico”.
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Apêndice II
Carta escrita pelo sr. J. Parry no final de seu terceiro ano de internação e recolhida pelo
corpo de enfermeiros. O original consta da pasta do paciente. Fotocópia enviada ao dr. R.
Wenn a seu pedido.
Terça-feira
Querido Joe,
Acordei de madrugada. Saí da cama, vesti o robe e, sem perturbar a turma da noite, fui me
postar diante da janela que dá para o leste. Veja como eu sou afável quando você me trata bem!
Você tem razão, as árvores se tornam pretas quando o sol se levanta detrás delas. Os galhos bem
no topo se entrelaçam contra o pano de fundo do céu como fios nas entranhas de certas máquinas.
Mas eu não estava pensando nisso, porque era um dia sem nuvens e o que se ergueu acima dos
telhados, dez minutos depois, foi nada menos do que a resplandecência da glória e do amor de
Deus. Nosso amor! Primeiro, me banhando, depois me aquecendo através da vidraça. Lá fiquei,
os ombros para trás, os braços caídos ao longo do corpo, respirando fundo. As lágrimas rolando
como sempre pelo rosto. Mas que alegria! O milésimo dia, minha milésima carta, e você me diz
que está certo o que venho fazendo! De início, você não via sentido nisso e maldizia nossa
separação. Agora sabe que cada dia que eu passo aqui o aproxima um pouquinho mais daquela
luz gloriosa, de Seu amor; e você sabe hoje o que antes não sabia porque já está perto o bastante
para sentir que se volta inevitável e alegremente na direção do calor que ela emite. Não há mais
retorno, Joe! Quando você Lhe pertencer, também me pertencerá. Toda essa felicidade quase me
deixa sem jeito. Eu deveria ser um prisioneiro. Há grades nas janelas, o dormitório é trancado à
noite, passo o dia na companhia de idiotas que arrastam os pés, balbuciam palavras sem nexo,
babam nas camisas, e os que não fazem isso precisam ser fisicamente contidos. Os enfermeiros,
sobretudo os homens, são pessoas violentas que realmente mereciam estar internadas e de algum
modo escaparam para o outro lado. Fumaça de cigarro, janelas que não podem ser abertas, urina,
anúncios de tv. Este é o mundo que lhe descrevi mil vezes. Eu devia estar afundando. Em vez
disso, sinto que tenho mais razões para viver do que antes. Nunca experimentei tamanha sensação
de liberdade. Estou voando alto, sou tão feliz, Joe! Se eles soubessem o quanto eu seria feliz
aqui, teriam me mandado embora. Preciso parar de escrever para abraçar a mim mesmo. Estou
conquistando nossa felicidade dia a dia, e não me importo se isso consumir toda a minha vida.
Mil dias — esta é minha carta de aniversário para você. Você já sabe, porém tenho de dizer
outra vez que o adoro. Vivo para você. Amo você. Muito obrigado por me amar, obrigado por me
aceitar, obrigado por reconhecer o que estou fazendo por nosso amor. Mande-me uma nova
mensagem em breve, e lembre-se: na fé reside a alegria.
Jed
Agradecimentos
Acima de tudo, desejo agradecer a Ray Dolan, amigo e companheiro de caminhadas, os
muitos anos de conversa estimulante. Gostaria também de agradecer a Galen Strawson, Craig
Raine, Tim Garton Ash e o inspetor-chefe Amon McAfee. Sou igualmente grato aos seguintes
autores e livros: E.O. Wilson, On human nature, The diversity of life, Biophilia; Stephen
Weinberg, Dreams of a final theory; Steven Pinker, The language instinct; António Damásio,
Descartes’ error; Robert Wright, The moral animal; Walter Bodmer e Robert McKie, The book
of man; Robert Gittings, John Keats; Stephen Gill, William Wordsworth, a life.
Copyright © 1991 by Ian McEwan
Proibida a venda em Portugal.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título original
Enduring love
Capa
Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio
Imagem de capa
Vista de um balão sendo inflado
Stacy Gold/ Getty Images. Quebec, Canadá, s/d
Preparação
Márcia Copola
Revisão
Huendel Viana
Carmen S. da Costa
ISBN 978-85-8086-110-5
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
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