terça-feira, 11 de junho de 2013

Uma questão de posse!

Bad Boys in Black Tie Morgan Leigh Pode um homem destruir o coração e a vida de uma mulher? Tess Braeden sempre vivera sozinha, e para se manter contava cada moeda de suas poucas economias. Quando ficou sem emprego e sem casa para morar, decidiu viver em uma cidade do interior, em um velho casarão que herdara de seu avô. Para isso, precisava saldar os impostos atrasados antes que o casarão fosse desapropriado pela prefeitura. Mas bastou um telefonema para descobrir que o prefeito da cidade não estava disposto a ajudá-la. Graham era o homem mais arrogante, insensível e... Irresistivelmente sexy que já vira! Depois de conhecê-lo, a posse do casarão se tornou uma questão de honra para Tess. Entretanto, ela não sabia que lutava para conquistar mais do que um lugar no mundo. O destino lhe reservara o desafio de adquirir a posse do casarão e de herdar o amor do homem de seus sonhos!
Digitalização: Nina
Revisão: Geórgia
CAPÍTULO I Tess Braeden olhou no relógio e suspirou. Passava das duas horas da madrugada e estava exausta. Quando o táxi virou a esquina e ela avistou o sobrado branco com janelas azuis, sorriu aliviada como se houvesse chegado a um oásis em meio ao deserto. Entregou duas notas de dez dólares ao motorista do táxi e esperou enquanto ele retirava a bagagem do porta-malas. A turnê da banda de blues na qual era vocalista deveria terminar suas apresentações apenas no dia seguinte, mas o líder do grupo havia se desentendido com o empresário, e a última apresentação fora cancelada, antecipando sua volta para Nova York. Ao abrir o portão, Tess foi recebida por um furacão de pêlos que quase a derrubou. — Marvin! — Riu ao receber a efusiva demonstração de afeto e afagou o pêlo macio de seu cão labrador. — O que está fazendo no jardim? Paul se esqueceu de colocá-lo para dentro? Abriu a porta da frente e o cão entrou em disparada, subindo a escada que levava ao piso superior. Ela o seguiu, achando graça na reação do animal. A princípio, não identificou o ruído abafado vindo do corredor, mas, à medida que se aproximava, os gemidos que feriram seus tímpanos não deixaram dúvida. Abriu a porta lentamente e vislumbrou a cena mais inesperada com a qual poderia se deparar: Uma garota seminua nos braços do marido, em sua própria cama! Na certa, era uma de suas alunas, a julgar pela pouca idade que aparentava. Tomada pelo choque, permaneceu paralisada enquanto o casal tentava se recompor. Quando conseguiu reagir, desceu correndo a escada e apanhou as chaves do carro. Deixou que Marvin pulasse para o banco de passageiros e saiu, ignorando os gritos do marido para que esperasse. Abalada demais para raciocinar, dirigiu sem destino pelas ruas da cidade até ser vencida pelo cansaço. Então, seguiu pela Quinta Avenida e rumou para Manhattam, procurando o único abrigo que lhe restava. Estacionou diante do sobrado com um gracioso terraço de jardineiras floridas onde moravam Richard e Kevin, os melhores amigos que alguém poderia ter. Custava-lhe acreditar que havia morado naquela casa havia sete anos, antes de conhecer o marido... Apoiou a cabeça no volante, tentando se acalmar antes de entrar. As imagens da noite em que encontrara Paul pela primeira vez se desenrolaram em sua mente como um filme em câmera lenta. Conhecera Richard e Kevin na Universidade de Artes de Nova York, quando cursava Música. Richard pertencia a uma família rica e tradicional, e gastava até o último centavo da generosa mesada que recebia dos pais. Quando a convidaram para
morar com eles e dividir as despesas, aceitara prontamente. Desde então a amizade se tornara sólida e, quando Richard oferecera uma festa aos colegas e professores da universidade naquela casa, fora ali que Tess conhecera o marido. O professor de Economia chamara sua atenção em meio aos convidados, a maioria gays assumidos. Passaram a se encontrar com freqüência e, pouco tempo depois, mudara-se para a casa do namorado mesmo contrariando as advertências de Richard e Kevin. Os amigos insistiam em afirmar que Paul não a considerava como companheira, e sim como alguém que poderia ser dispensada quando atrapalhasse os interesses dele. Nunca haviam escondido que não concordavam com a união e tentaram dissuadi-la de tal idéia desde o princípio. Porém, estava apaixonada e se recusara a ouvir os conselhos. __ Vocês estavam certos, rapazes — murmurou, abrindo a porta do carro. Sentindo-se em casa, retirou a chave que ainda guardava na bolsa e entrou com Marvin atrás de si, tomando o cuidado de não acordar os amigos. Depois de se servir de uma taça de vinho, deitou-se no sofá da sala, mergulhada na penumbra, e somente então deixou que o pranto fluísse até se esgotar. O latido insistente de Marvin chamou sua atenção, e só então percebeu que os dois rapazes desciam a escada. __ Meu Deus, Tess, o que aconteceu? — Richard se sentou na beirada do sofá e lhe acariciou os cabelos sedosos. — Você não aparece há meses e, de repente, surge em plena madrugada? — Desculpe pela invasão, mas eu não tinha para onde ir. — Ela se sentou e enxugou as lágrimas. — Você é sempre bem-vinda nesta casa, querida — Kevin assegurou, beijando-a na testa. — Conte-nos que houve. — Na certa, aquele troglodita a magoou, não é? — Rick! Pare com isso! Não vê que ela está em frangalhos? — Oh, você sabe tão bem quanto eu que Paul não é o homem mais gentil do mundo! No mínimo, ela está assim por causa dele. — Você tem razão, Rick — Tess viu-se obrigada a concordar. — O que ele fez desta vez? — Kevin se sentou na poltrona à frente dela e tomou-lhe as mãos. Uma torrente de lágrimas a impediu de falar. Preocupado, Richard foi até a cozinha e voltou momentos depois com uma garrafa de vinho. — Vamos, beba um pouco de vinho — ofereceu, estendendo-lhe a taça. — Prometo que vai fazer com que se sinta melhor. Ela aceitou a bebida e começou a contar o que acabara de acontecer, com as palavras entrecortadas pelos soluços. — Querida, não seja tão dramática! Você pode não acreditar, mas foi melhor assim. — Rick!
— Ora, Kev, pare de me reprimir! — protestou Richard, passando o braço pelos ombros de Tess. — Não é a primeira vez que Paul se encanta com uma de suas alunas. — É verdade — ela admitiu com pesar. — Confesso que meu casamento estava com os dias contados. Depois de cinco anos, Paul e eu nos transformamos em dois estranhos. Sei que ele já teve casos com alunas, desde que estamos juntos, apenas nunca pude comprovar. — Eu bem que disse isso! — Rick exclamou com um sorriso vitorioso. — Esse homem sempre foi um empecilho em sua vida, meu bem. Sua carreira como solista e compositora teria deslanchado se ele não fizesse tantas objeções. Em minha opinião, Paul tem inveja do seu talento! — Talvez você tenha razão, mas o fato é que eu o amava... — Tess, você nunca amou esse homem — Kevin afirmou com convicção. — A única coisa que importa agora é virar a página e seguir em frente. De hoje em diante, considere-se uma mulher livre para fazer o que bem entender! — Ótimo! Isso merece uma comemoração! — Richard bateu palmas, tentando dar um tom entusiasmado à voz. — Kev, abra uma garrafa de champanhe e traga uma tigela de leite para Marvin! Vamos festejar o nascimento da nova estrela do blues. Tess engoliu as lágrimas e sorriu, contagiada pelo ânimo dos amigos. — Obrigada, rapazes. Vocês são maravilhosos! — Não, meu bem. Você é maravilhosa, e merece alguém que saiba valorizá-la. — Richard puxou-a para si e beijou-a na testa. Momentos depois, após beber duas taças de champanhe, Tess foi envolvida por uma deliciosa sensação de conforto. Deitou-se no sofá, relaxou enquanto conversavam e quase nem percebeu que o dia havia amanhecido. — Querida, por que não vai para casa apanhar seus pertences? — Richard sugeriu em meio a um bocejo. — Paul já deve estar na universidade e você não correrá o risco de encontrá-lo. Traga tudo para cá e fique conosco até decidir o que fazer. — O quarto no fim do corredor ainda lhe pertence — Kevin comunicou com um sorriso. — E agora, se me derem licença, preciso tomar um banho e ir para o ateliê. Minha exposição de óleo sobre tela será em uma semana e ainda preciso acertar muitos detalhes. __ Está bem. Por favor, cuidem de Marvin até eu voltar. __ Fique tranqüila — Richard assegurou enquanto a acompanhava até a porta. — E quando voltar, trate de ser discreta e silenciosa para não atrapalhar meu sono, sim? — ele pediu com simpatia. Tess se despediu e voltou para a casa onde vivera por cinco anos ao lado de Paul. Abriu a porta com cuidado e entrou somente após se certificar de que não havia ninguém. Ao fechá-la, notou o envelope em papel pardo no chão com o timbre Stansfield, Stansfield e Cooper, Justice, Carolina do Norte. Virou-o para ter certeza de que estava realmente endereçado a ela e o abriu, começando a ler a carta em voz alta: Cara srta. Braeden, informamos que a senhorita é a única beneficiária do testamento de Roy Braeden, seu avô paterno, falecido há dois anos...
Tess cobriu a boca com a mão, perplexa. Avô paterno? Nunca soubera da existência dele! Depois da morte do pai em um trágico acidente de carro, nove anos antes, julgara que não lhe restavam familiares vivos. Olhou mais uma vez o destinatário para confirmar que não havia engano algum. Sim, o nome dela estava escrito em letras claras e legíveis. Durante a leitura soube que os advogados haviam levado dois anos para conseguir localizá-la, pois a única informação de que dispunham além do nome era que estava com cerca de trinta anos e provavelmente residia em Nova York. Depois de uma exaustiva pesquisa em todas as universidades da região, um de seus professores se dispusera a revelar o endereço. Tess sentou-se no sofá e apoiou o rosto nas mãos, levando alguns segundos para registrar o sentido das palavras. Ela acabara de receber uma herança de alguém que nem sequer conhecia! Julgava que aquilo só acontecia em filmes. Depois de recobrar o equilíbrio, pegou o telefone e discou os números impressos no envelope timbrado. Uma voz feminina atendeu na segunda chamada. — Por favor, poderia passar a ligação para o Sr. Stansfield? — Sr. Carl Stansfield ou sr. William Stansfield? — indagou a voz impessoal. — Qualquer um dos dois — respondeu com impaciência. — Diga que é a srta. Braeden. — Srta. Braeden? Vou chamá-los imediatamente! A surpresa na voz da secretária a intrigou e, um segundo depois, ela ouviu uma voz masculina do outro lado da linha. — Srta. Braeden? Sou William Stansfield, responsável pelo testamento de seu avô. É um prazer falar com a senhorita! — Obrigada, mas ainda estou confusa com a carta que acabo de receber. — Posso imaginar. Mas, agora que conseguimos encontrá-la, poderemos esclarecer todas suas dúvidas. — Ótimo! Para começar, gostaria de saber exatamente o que eu herdei. — Bem, seu avô não possuía muitos bens e ficou em uma situação difícil depois da morte do único filho. — Depois da morte do meu pai? — perguntou, confusa. — Sim. Sem a quantia mensal que recebia do filho, Roy Braeden acumulou muitas dívidas. — O advogado fez uma pausa, como se estivesse se preparando para dar a notícia seguinte. — A senhorita herdou um magnífico casarão vitoriano, uma verdadeira relíquia... Porém, em virtude dos impostos atrasados, o imóvel está em risco de ser desapropriado pela prefeitura. Tess suspirou. Era bom demais para ser verdade, pensou com desgosto. __ Bem obrigada pela informação, mas creio que não estou interessada. O longo silêncio que se seguiu a fez pensar que a ligação houvesse caído, até que a voz masculina se fez ouvir novamente. __ Srta. Braeden, sei que deve estar decepcionada, mas o casarão é um patrimônio histórico da era vitoriana e, se os impostos não forem pagos no prazo
máximo de dois meses, ele será transformado na sede do novo quartel de Justice — o advogado disse pausadamente, enfatizando as palavras. —Isso quer dizer que será reformado para se transformar em uma propriedade pública. __ Sinto muito, mas não tenho recursos para assumir despesas desse porte — disse, lembrando-se de que estava desempregada e sem lugar para morar. __ Talvez o prefeito Graham possa fazer um acordo para estender o prazo, ou possa parcelar a dívida... — Agradeço a sugestão, mas não posso me... — Por favor, srta. Braeden — a voz do outro lado soou como uma súplica. — Seu avô era um homem respeitado e querido por todos os habitantes da cidade, e o maior orgulho dele era o velho casarão. Outro momento de silêncio se seguiu, desta vez mais tenso e pesado. Tess estava determinada a esquecer o assunto, mas sentiu-se mal por decepcionar o advogado. — Está bem, vou tentar falar com o prefeito — ouviu-se dizer, sem acreditar em suas próprias palavras. Desligou o telefone, furiosa consigo mesma por ter concordado em assumir mais um problema além dos que já possuía. Antes de arrumar a bagagem porém, decidiu ligar para o prefeito de Justice para encerrar aquela história de uma vez por todas. Então diria ao advogado que havia tentado mas que não fora possível resolver o assunto e dormiria com a consciência tranqüila. Discou o número que anotara em um pedaço de papel, pensando na ironia do destino. Havia poucos minutos que recebera inesperadamente uma herança, o que poderia ser a solução imediata para suas dificuldades financeiras mas, a seguir, ficar sabendo que herdará uma dívida que acrescentava mais um item em sua lista de problemas. — Prefeitura de Justice. — A voz feminina tirou-a de seus pensamentos. — Alô? — Por favor, gostaria de falar com o prefeito Graham. Ele está? — Sim. Espere um momento. A música monótona, típica de espera de telefone, soou do outro lado. — Quem quer falar com ele? — Tess Braeden, de Nova York. Ela ouviu a mesma música por mais alguns minutos até que a mesma voz a interrompeu. — O prefeito Graham não está na sala dele. Gostaria de deixar recado? — Mas você disse que ele estava aí! — Sim, eu disse, mas... — A hesitação deixou claro que mentia. — Ele está em uma reunião e não pode ser interrompido. — Ouça, não sei por que o prefeito não quer me atender, mas diga-lhe que tenho um assunto importante para tratar com ele. — Oh, eu sei. É sobre o casarão de Roy Braeden. — Como sabe? — Bem, todos na cidade sabem que o velho Roy deixou-o para a neta.
— Ótimo! — exclamou com ironia. — Por favor, anote o número em que ele poderá me encontrar. Tess desligou o telefone com a estranha sensação de que alguma coisa estava errada. Por que ele teria se recusado a atendê-la? Intrigada, subiu para o quarto que ocupara até o dia anterior para recolher tudo que lhe pertencia. Ao menos, a surpresa da herança inesperada afastara o sentimento de dor e humilhação que Paul lhe causara. Retirou todas as roupas do armário para jogá-las dentro da imensa mala de viagem aberta sobre a cama, sem se importar em amassá-las. Em outra sacola, colocou os CDs e livros de música e levou tudo para o carro. Voltou para apanhar os sapatos e objetos pessoais e passeou pela casa, certificando-se que não se esquecera de nada importante. Para seu espanto, em vez de se sentir a pior das mulheres e mergulhar em um poço de sofrimento, estava relaxada como se houvesse tirado um imenso peso dos ombros. Seus amigos tinham razão, pensou com um sorriso. Nunca amara Paul. Talvez houvesse se apaixonado um dia, mas a chama da paixão apagara-se havia muito tempo. Aquela casa nunca lhe pertencera. Paul não permitia nem sequer que opinasse sobre a decoração. Ela fingia não se importar, dedicando-se à carreira e dizendo a si mesma que era uma mulher de sorte. Refletiu que seus amigos também estavam certos ao dizerem que Paul a impedia de crescer profissionalmente. Por diversas vezes, deixara de acompanhar a banda nas turnês pelo país, cedendo aos apelos do marido para que ficasse em casa. Seu maior sonho era dedicar-se à composição de letras de canções, mas ele não se cansava de dissuadi-la de tal idéia, alegando que não havia futuro possível para tal atividade. Ela percorreu o olhar pelas paredes, e um misto de espanto e tristeza a invadiu ao perceber que não havia qualquer laço afetivo que a prendesse àquela casa. Durante os anos em que vivera com o marido, recusara-se a admitir que a única razão para permanecer ali era a ilusão de que ele lhe daria o lar que nunca tivera. Pela primeira vez em todos aqueles anos, ficou feliz por não terem filhos e por Paul nunca ter consentido em legalizar a união, alegando que um casal moderno não necessitava de formalidades inúteis para consolidar um casamento. Com um suspiro profundo, pegou a mala que permanecia intocada desde o dia anterior, quando voltara da turnê, e trancou a porta da frente. Por um segundo, pensou em deixar um bilhete agradecendo Paul por ter lhe aberto os olhos. Depois do impacto do que vira na noite anterior, a verdade se revelara com uma clareza cristalina. Porém decidiu que ele não merecia nem mais um segundo do seu tempo. Jogou a chave pela fresta da porta e seguiu com passos firmes, consciente de que aquele era o início de uma fase feliz e promissora de sua vida. — Não é possível! — Tess gritou depois de desligar o telefone. — Aquele cretino se recusa a me atender! — De quem você está falando, meu bem? — Richard ergueu os olhos da revista
que estava lendo para fitá-la. — Estou falando do prefeito de Justice! Aposto que ele é um velho frustrado que se julga muito importante por ser o prefeito de uma cidade perdida no mapa! — Calma, querida — ele a advertiu enquanto afagava o pêlo macio do cachorro deitado ao lado dele no sofá. — Ficar irritada não faz bem à pele. — Como posso manter a calma? Estou tentando falar com ele há uma semana! Não é possível que uma cidade tão pequena o ocupe tanto! — Talvez seja melhor ir até lá e acampar na porta da prefeitura. Ela franziu a sobrancelha e refletiu por alguns segundos. De súbito, seus olhos se iluminaram e ela deu um pulo da poltrona, fazendo com que Marvin erguesse o focinho em expectativa. — É isso! Rick, você é genial! Ele observou-a com expressão de curiosidade por alguns momentos e ergueu os ombros, voltando à leitura. Tess apanhou o telefone e ligou para a telefonista de Justice. Esperou enquanto ela atendia sua solicitação e fez várias anotações no bloco de notas. A seguir, discou o primeiro número da relação e esperou que atendessem. — Alô? — Boa tarde. Por favor, eu gostaria de falar com o proprietário do estabelecimento. — Sou eu. — Oh... O senhor é o proprietário do bar Last Call? — Sim. Jonathan Cooper, a seu dispor. _ Sr. Cooper, pode parecer estranho, mas gostaria de saber se o bar oferece possibilidade de contratação para novos cantores. Richard ergueu os olhos da revista, espantado. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas ela colocou o indicador sobre os lábios, pedindo que não dissesse nada. __ Escute, moça, esta cidade é pequena demais para dar oportunidades para novos cantores — ele frisou a palavra com ironia. __ O Last Call é o único bar da cidade que oferece música ao vivo e mal posso arcar com os custos. — Bem, sou cantora e compositora, e estou sem contrato no momento. Pensei em enviar-lhe uma fita para que avalie meu trabalho, caso esteja interessado. Tess podia ouvir a respiração do outro lado da linha e já esperava uma sonora gargalhada quando ele indagou: — E por que razão você estaria interessada em vir cantar em Justice? Ela hesitou, incerta sobre falar a verdade. Não estava habituada a revelar detalhes de sua vida pessoal, especialmente em se tratando de estranhos, mas precisava oferecer uma razão plausível para justificar seu pedido. — Sr. Cooper, meu nome é Tess Braeden, de Nova York. Sou neta de Roy Braeden e acabo de descobrir que herdei a casa em que ele vivia em Justice. Sei também que os impostos da casa estão atrasados e há o risco de que seja penhorada. — Ela suspirou, decidida a revelar toda a verdade. — Não consigo falar com o prefeito para negociar os prazos de pagamento. Ele simplesmente se recusa a me receber! Então, pensei que
se tivesse uma fonte de renda em Justice, poderia me mudar para tentar resolver de perto os problemas do casarão. — Entendo... — A voz pausada revelava que seu interlocutor processava o que acabara de ouvir. — Então, você pretende sanar a dívida junto à prefeitura? — Sim. Mas preciso ter um trabalho para que... — Meu Deus, isso é ótimo! — ele a interrompeu com entusiasmo. — Srta. Braeden, terei o maior prazer em avaliar seu trabalho! — É mesmo? Mas você disse que... — Eu disse que só há um bar com música ao vivo em Justice, e se uma cantora de Nova York vier para cá, todos vão querer conhecê-la. Em uma cidade pequena como esta, qualquer novidade atrai público por semanas. — Nesse caso, espero seu telefonema o mais breve possível. — Srta. Braeden! — ouviu-o chamar antes que colocasse o fone no gancho. — Está mesmo pensando em se mudar para cá? — Há uma grande possibilidade... — Tess respondeu de forma vaga. — Eu a aconselho a vir. Justice é uma ótima cidade e há uma casa a sua espera. Isto é, se conseguir o emprego. — Ele se deteve, refreando o entusiasmo. — No que depender de mim, farei tudo que for possível para ajudá-la. — Obrigada. Enviarei a fita ainda hoje. Quando desligou o telefone, Richard a fitava com os olhos arregalados, surpreso. — Por favor, diga que não é o que estou pensando! — Mas foi você mesmo que sugeriu que eu me mudasse para lá! — Tess, eu não estava falando sério! — ele quase gritou. — Você perdeu o juízo? — Querido, raciocine comigo... Estou sem emprego e sem casa... — Não é verdade! Você pode morar conosco a vida toda, se quiser! — Eu sei, e serei eternamente grata. — Ela sorriu com ternura. —Mas preciso cuidar da minha vida. Então, por que não aproveitar a oportunidade que o destino me reservou? — Mas você nem sabe onde fica... Como é mesmo o nome da cidade? — Justice. É verdade, mas posso consultar um mapa. — E vai viajar até a Carolina do Norte sozinha? Você sabe o perigo que isso representa! — Não vou sozinha. — Tess ergueu o queixo, indicando o cachorro. — Vou com o melhor companheiro que alguém poderia ter. Não é, Marvin? Ele ergueu o focinho e latiu, como se houvesse entendido o significado das palavras. — Mas, Tess, como espera que um labrador que nao mata nem sequer uma mosca possa protegê-la? _ Rick, não vamos nos precipitar. O dono do bar com quem falei pareceu animado com a idéia, mas ainda não disse que vai me contratar. Além disso, posso voltar para Nova York a qualquer momento. _ Claro que sim! Você sabe que sempre terá um lugar nesta casa. _ Obrigada, querido. — Ela beijou o amigo na testa. — E agora, só me resta enviar
uma fita com minhas canções e esperar que os ventos continuem a soprar a meu favor... CAPÍTULO II Não se preocupe, Marvin. Estamos quase chegando. É só uma questão de tempo. Tess afagou o pêlo macio do cachorro que estava no banco de passageiros e reduziu a marcha do carro. Segundo a informação da placa à beira da estrada, teria de andar vinte quilômetros para chegar à cidade mais próxima. Porém, não havia a menor indicação de que seguia na direção certa. Saíra de Nova York naquela manhã de domingo para seguir pela Costa Leste do país em direção ao sul. Depois de abastecer o carro em Lexington e estudar mais uma vez o mapa da região, continuara pela rodovia principal e percorrera centenas de quilômetros. Estava exausta, faminta e a única coisa que desejava naquele momento era chegar a Justice, uma pequena cidade da qual nunca ouvira falar, no interior da Carolina do Norte. Desolada, parou no estacionamento e apoiou a cabeça no volante. — Detesto admitir, Marvin, mas estamos completamente perdidos! O labrador latiu e voltou-se para ela, pondo-se lhe lamber o rosto em uma demonstração de solidariedade. — Pare com isso! — Afastou-o delicadamente e abriu a porta do carro. — Venha, vamos andar um pouco antes de prosseguirmos.19 Tess desceu e olhou ao redor, à procura de alguém. O último carro que cruzara meia hora antes seguia na direção oposta a sua. Avistar a face de outro ser humano nunca lhe parecera tão desejável! Apanhou a sacola térmica no carro e retirou uma garrafa de água mineral. Encheu a vasilha de Marvin e se recostou no capo, observando-o matar a sede. Seu olhar perdeu-se nas montanhas selvagens que circundavam a estrada. Nunca poderia imaginar que sua vida sofreria uma mudança tão radical! Enquanto esperava que Jonathan Cooper ouvisse suas canções, havia entrado em contato com vários empresários. Seu maior sonho era conseguir ser representada por Tom Calinguay, o maior e mais famoso empresário do país. Porém, nem mesmo seus insistentes telefonemas haviam sido respondidos. A secretária do agente chegara a lhe pedir que não telefonasse mais, tamanha fora sua insistência. O mesmo acontecera com o prefeito de Justice. Depois de uma semana, desistira
de tentar falar com ele. A única resposta que obtivera fora uma carta onde ele esclarecia a situação do imóvel e afirmava que não havia como ajudá-la. Quando o proprietário do Last Call ligara para confirmar o contrato e a estimulara a se mudar para a cidade, garantindo que a ajudaria no que ela precisasse, Tess não precisou pensar duas vezes para reafirmar sua decisão. Colocara toda bagagem que coubera no pequeno sedan vermelho, estudara exaustivamente o mapa da Carolina do Norte, despedira-se dos amigos e partira de Nova York com o coração repleto de esperanças. Porém, agora ao olhar para o relógio no painel do carro e ver que já passava das três horas da tarde, estava preocupada e não tinha a mínima noção de como chegar a Justice. Sentou-se no banco de passageiros e abriu o mapa sobre o colo. Talvez houvesse perdido alguma entrada... Mas como poderia saber? Sua única salvação seria encontrar alguém que conhecesse bem a região. De súbito, o ronco de um motor chamou sua atenção. Voltou-se e se deparou com uma picape vermelha que se aproximava lentamente, até parar a seu lado. — Venha, Marvin! — chamou, julgando que estaria mais protegida com a presença dele. O cachorro foi para perto dela e se pôs a latir quando o rapaz alto desceu da caminhonete. Para desespero de Tess, ele correu em direção ao homem para saudá-lo efusivamente. Traidor! pensou para si, desejando que seu cão não tivesse uma índole tão pacífica. E se aquele homem fosse um criminoso procurado pela polícia, ou um assassino em série, ou um... Interrompeu os pensamentos trágicos ao ver um lindo sorriso curvar os lábios mais sensuais que poderiam existir. — Olá, rapaz! O estranho se agachou para afagar o focinho do animal, e então ela pôde observá-lo com mais atenção. Seu olhar foi atraído para as pernas musculosas sob a calça jeans. Usava camisa de mangas longas arregaçadas até os cotovelos, e os ombros largos e os músculos vigorosos lhe emprestavam um aspecto de força e virilidade. Ele se ergueu, e Tess soube naquele instante que estava diante de um dos homem mais bonitos que já vira. Os cabelos da cor de trigo maduro caíam com displicência sobre a testa, e os olhos de um verde profundo pareciam refletir a cor do mar. Antes que pudesse prosseguir com a análise meticulosa dos traços viris, ele sorriu e mediu-a de alto a baixo, fazendo com que se sentisse atraente e sensual. — Boa tarde, moça. Há algo que eu possa fazer para ajudá-la? — Estou perdida. — Ela ergueu os ombros, como se tal fato não tivesse a menor importância. — Para onde está indo? — Para Justice. — Justice? — Ele ergueu a sobrancelha, surpreso. — Sim. Você conhece?
— Como a palma da minha mão! Ela sentiu uma onda de alívio relaxar seus músculos. Estava alva! Precisou conter o ímpeto de abraçá-lo ao ver um sorriso iluminar o rosto másculo. Aquele era um homem perfeito! Os traços marcantes, a pele bronzeada, o porte atlético e viril... Tudo nele era pura perfeição! __ Justice não está longe. — A voz máscula tirou-a do encantamento. — Por que não me segue? Estou indo para lá. Um suspiro involuntário escapou dos lábios de Tess. Seria capaz de segui-lo até o fim do mundo, se ele pedisse... De súbito, lembrou-se das recomendações de Richard e Kevin para que tomasse cuidado. Antes de sair de Nova York, naquela manhã, tivera de prometer aos amigos que não deixaria que estranho algum se aproximasse, e eles chegaram ao extremo de colocar um tubo de spray paralisante na bolsa dela para o caso de ser abordada. Eles tinham razão, pensou, esforçando-se para não se deixar envolver pelo fascínio que aquele estranho exercia sobre ela. Havia inúmeras histórias de assassinatos pelas estradas do interior do país e não sabia nem sequer o nome daquele homem. E se a levasse para uma estrada deserta, onde mais ninguém pudesse encontrá-la? Embora confiasse no veredicto de Marvin, havia muitos psicopatas que gostavam de animais. A aparência solícita e gentil poderia esconder um monstro! — Não, obrigada — disse por fim, avaliando a distância entre sua mão e a bolsa no banco de detrás do carro. — Não quero atrasá-lo. Eu mesma posso encontrar o caminho. O estranho franziu o cenho, e um brilho divertido iluminou os olhos verdes. — Ah... Entendo! Você teme que eu seja um estuprador! Então, ele inclinou a cabeça e riu, e o som grave ecoou pelo ar como uma melodia. Ainda com um sorriso nos lábios, esticou o pescoço para ver a placa do sedan. — Humm... Nova York. — Meneou a cabeça com vigor. — Vocês, nova-iorquinos, acham que são muito espertos, não é? Julgam que só vocês sabem o que é certo ou errado, e qualquer estranho parece ser um assassino em potencial. — Desculpe se causei tal impressão, mas o que deveria fazer? — ela tentou justificar, constrangida ao vê-lo se ofender. — Não sei nem sequer o seu nome! — E julga que o fato de saber meu nome resolve o problema? Assassinos também têm nome e sobrenome. — Tem razão — admitiu, cada vez mais constrangida. — Eu não tive intenção de ofendê-lo. — Sobre o que tenho razão? Sobre assassinos terem nome ou sobre a arrogância dos nova-iorquinos? Tess mordeu o lábio, sentindo uma onda de fúria crescer em seu peito. O fato de ser o homem mais atraente da face da Terra não lhe dava o direito de ser tão prepotente! — Obrigada por oferecer ajuda, mas posso me virar sozinha. — Endireitou os ombros e seguiu com passos firmes para o carro.
— Venha, Marvin! Para seu espanto, o cão deu-lhe as costas e deitou-se aos pés do estranho. — Marvin! — Chocada, caminhou até ele e agarrou-o pela coleira. — Vamos embora! Porém, seus esforços foram inúteis. Ele se recusava a se mover. — Obedeça a sua dona, rapaz! Ao ouvir a voz masculina, ele se ergueu como em um passe de mágica e correu para o carro, sentando-se no banco da frente. Ela olhou para o rosto másculo à procura de algum traço de provocação e apertou os lábios ao ver o brilho de triunfo irradiando-se dos olhos verdes. Engoliu o orgulho ferido, empinou o queixo e deu-lhe as costas, seguindo para o carro sem olhar para trás. Não precisava de mais um aborrecimento em sua vida! Bateu a porta com uma força maior do que pretendia e girou a chave na ignição. Olhou pelo espelho retrovisor e viu que o estranho caminhava na direção do carro. Antes que pudesse dar a partida, ele se debruçou na janela, tão próximo dela que podia lhe sentir o hálito doce e morno. — Se pretende ir para Justice, aconselho-a a seguir para lá. — Apontou para trás por sobre o ombro. _ Obrigada, mas não preciso dos seus conselhos. E agora, se me der licença... — Como quiser. Ele recuou um passo e observou o sedan se afastar até quase desaparecer, seguindo na direção oposta à cidade. Aquela mulher tinha estilo, pensou com um sorriso. Gostava de mulheres com atitude e amor-próprio. __ Nós ainda vamos no encontrar um dia, moça — murmurou para si mesmo com convicção. Tess sentia que estava se afastando cada vez mais de seu destino, mas não daria àquele homem um ponto de vantagem nem que precisasse voltar à Nova York para encontrar alguém que lhe ensinasse o caminho! Furiosa com a humilhação a que ele a submetera, acelerou e seguiu pela estrada deserta. De súbito, percebeu com admiração que tudo que vivera com Paul parecia ter ficado a muitos quilômetros de distância. Era curioso como o homem que acabara de encontrar despeitara emoções muito mais fortes e vividas do que as que experimentara com o ex-marido... Aquele estranho parecia desafiá-la, instigando-a a lutar para fazer com que sua vontade prevalecesse. Talvez fosse exatamente desse tipo de desafio que precisava para conseguir realizar o sonho que acalentava desde criança, quando acompanhava o pai às intermináveis turnês pelo país. Joseph Braeden não fora um pianista famoso, mas era o melhor dentre todos que ela conhecera. Embora nunca houvessem faltado propostas de trabalho e convites de gravadoras famosas, ele sempre optara por tocar em bares noturnos, com os músicos que o acompanhavam desde a formação da banda de blues. Com dezesseis anos, Tess
fizera sua primeira apresentação como vocalista da banda e se orgulhava de ter aprendido tudo o que sabia com o pai. O brilho metálico de um carro à frente tirou-a de seus pensamentos, e pisou fundo no acelerador para alcançá-lo. Buzinou freneticamente para que parasse e desceu às pressas ao ver o veículo estacionar no acostamento. O casal de meia-idade explicou com detalhes o trajeto que levava a Justice. Ela agradeceu e voltou para o carro, sentindo-se vitoriosa por conseguir se localizar sem a ajuda do estranho. Fez o retorno e dirigiu por mais meia hora até encontrar a pequena entrada, quase escondida pela vegetação. — Ótimo! Viu só, Marvin? Quem disse que precisávamos da ajuda daquele cretino? — exultou, reduzindo a marcha para evitar os buracos da estrada. Ao entrar na rua principal de Justice, avistou um sobrado de esquina pintado de vermelho escuro, com um amplo estacionamento aos fundos e um letreiro em néon na fachada onde se lia Last Call em letras manuscritas. — Vamos fazer a primeira parada em nosso novo endereço! Ela estacionou, desceu e tocou a campainha enquanto o cachorro desceu para explorar o ambiente. Um rapaz loiro, ligeiramente calvo e com olhos muito azuis abriu a porta. — Olá! Sou Jonathan Cooper, e você deve ser Tess Braeden — saudou, cumprimentando-a com um caloroso aperto de mão. — Prazer em conhecê-lo, sr. Cooper. — Chamou Marvin com um assovio. — Este é meu cachorro. — Que belo animal! — exclamou, abraçando-o quando ele pulou com as duas patas em seu peito. — E não precisa me chamar de sr. Cooper. Acho que nem mesmo eu saberei que está falando comigo! Ela riu, simpatizando com seu novo patrão desde o primeiro instante. — Venha conhecer a casa—convidou, fazendo um gesto amplo para que entrasse. — Marvin pode vir junto? — Claro! — Esperou que o cão entrasse e fechou a porta. — Tomara que você goste do lugar. — Estou certa de que vou gostar. A decoração é maravilhosa! Tess olhou ao redor, apreciando o amplo salão com mesas redondas para acomodar quatro pessoas, cobertas por toalhas impecavelmente brancas, com uma pista de danças ao centro. A decoração simples revelava bom gosto, dando um aspecto aconchegante ao ambiente. Fotografias em preto e branco mostrando intérpretes de blues e jazz ornamentavam as paredes pintadas de amarelo escuro, e um magnífico lustre de ferro pendia do teto. Ela caminhou até o pequeno palco ao fundo do salão, onde havia um piano de cauda e um violoncelo. Acariciou as teclas e caminhou pelo piso de madeira. __ A acústica é excelente!—exclamou satisfeita.—Não pensei que fosse tão grande! O que há no andar de cima? — Há o apartamento onde moro. __ Puxa, deve ser bom poder descer apenas uma escada para
chegar ao trabalho! — comentou com bom humor. — E quando poderei começar? — Por mim, começaria hoje mesmo, mas aos domingos o bar oferece música country, e a agenda para esta semana já está confirmada. Que tal no próximo sábado? — Perfeito! — Ótimo! Gostaria de beber alguma coisa enquanto acertamos os detalhes, srta. Braeden? — Água, por favor. E pode me chamar de Tess. — Sentou-se ao balcão e apanhou a garrafa de água mineral. — A que horas a casa abre? — As oito da noite, mas a música ao vivo começa às dez horas e só termina quando fecho o bar, por volta das duas da madrugada. Você terá intervalos a cada meia hora e deverá se apresentar de quinta a sábado. Enquanto ouvia, ela concordava com meneios de cabeça. Quando ele mencionou o generoso salário que lhe pagaria semanalmente, Tess não conteve uma exclamação de surpresa. — Você costuma pagar tão bem a seus empregados? — Confesso que há outra razão além do seu talento — Cooper admitiu com um sorriso. — Quando revelou ser a neta do velho Roy e que estava disposta a pagar os impostos atrasados para salvar o casarão, decidi que a contrataria mesmo que fosse a pior cantora do planeta! — Quer dizer que não gostou das minhas canções? — Ao contrário, depois de ouvi-las, achei que havia tirado a sorte grande! Só o fato de anunciar uma cantora de Nova York já é uma atração e tanto, e quando ela é talentosa e bonita, significa o mesmo que achar uma mina de ouro! — Ele tocou-a nas mãos e sorriu. — O fato é que não aprovo a idéia de ver o prédio transformado em sede do quartel. O velho Roy foi como um pai para mim. Todos os garotos da minha idade passaram a infância comendo maçãs no pomar do casarão. O maior sonho dele era que fosse restaurado e jamais deixasse de ser um lar. — Entendo. E eu represento a oportunidade de realizar esse sonho. — Exatamente. — Bem, mas se eu não conseguir negociar o prazo com o prefeito de Justice, não poderei fazer nada para salvá-lo. — Ela suspirou, desanimada. — Ele simplesmente se recusa a falar comigo! Tentei todos os dias antes de vir para cá, desde a manhã até o anoitecer e, por incrível que pareça, ele nunca estava disponível para falar comigo! — O prefeito é um homem muito ocupado—Cooper comentou sem muita convicção. — Muito ocupado? Ora, a estrada está cheia de buracos, e não vejo como uma cidade tão pequena pode exigir tanto trabalho! — Ela meneou a cabeça com o olhar fixo em algum ponto invisível. — Quando eu encontrá-lo, ele vai ouvir umas boas verdades! — Bem, Tess, preciso abrir o bar em poucos minutos, e você deve estar cansada... — Oh, sim! Venha, Marvin! Tess seguiu para a porta acompanhada de seu cachorro e se despediu de Cooper com um efusivo aperto de mão. Antes de sair, ele explicou-lhe como fazer para chegar ao casarão e indicou o melhor supermercado da cidade. Ela seguiu por uma avenida arborizada que levava ao centro da cidade, admirada
por não avistar um único edifício. As residências eram, em sua maioria, construções antigas e sólidas, com cercas de madeira e amplos jardins. Todas pareciam ter sido construídas na mesma época e aparentavam ser espaçosas e confortáveis. Enquanto seguia, observou a limpeza e a ordem que reinava por ali. Porém, a sensação de paz e tranqüilidade não se devia apenas às ruas desertas e silenciosas. Havia algo quase tangível no ar, como se naquele lugar não houvesse perigos. Ao chegar ao centro, deparou-se com uma imensa praça onde havia uma igreja majestosa, um coreto, diversos bancos de madeira e canteiros de flores coloridas. Várias crianças corriam pelo gramado, outras andavam de bicicleta e alguns senhores idosos conversavam tranqüilamente, sentados nos bancos sob as árvores. — Veja, Marvin! Prometo que vou trazê-lo para passear aqui todas as tardes. O supermercado localizava-se diante da praça. Ela parou o carro no estacionamento deserto e abriu a porta para que o cão saísse. Observou-o atravessar a rua e correr pelo gramado da praça como se já o conhecesse. Apanhou a bolsa e entrou, decidida a comprar apenas o necessário para passar uma semana. Não sabia se no casarão havia fogão, geladeira ou microondas, e decidiu comprar alimentos que não necessitassem de preparo. Seguiu para a sessão de frutas e verduras e escolheu papaias, laranjas e maçãs. Acrescentou dois pés de alface americana e completou sua lista de compras com muitos pacotes de pão integral, cereais, leite, café e queijo branco, refletindo que poderia voltar quando precisasse. Priorizou os produtos de limpeza, lembrando-se que o imóvel estava fechado havia dois anos. Caminhou pelos corredores vazios com a deliciosa sensação de que sua vida seria perfeita dali para diante. Parou diante da prateleira de ração para cães, escolheu a marca favorita de Marvin e seguiu para o caixa, pensando em como seria seu novo lar. A imagem de um adorável sobrado com um jardim exuberante e uma cadeira de balanço na varanda veio-lhe à mente, e um sorriso discreto brotou em seus lábios. Ter recebido uma casa de herança parecia um verdadeiro milagre. Mesmo que precisasse de uma reforma e de móveis, era a primeira vez na vida que possuía algo realmente seu, sem contar com o velho automóvel, o único bem que o pai lhe deixara. Seguiu para o caixa tentando ignorar a curiosidade que sua presença despertava. — Você não é da cidade, certo? — a funcionária indagou enquanto registrava a mercadoria. — Não — respondeu simplesmente, evitando dar maiores explicações. — Oh... Nesse caso, recomendo que vá ao Jolly's Diner, na próxima esquina, e prove as deliciosas panquecas. A especialidade da casa é a de maçã. — Ela aproximou o rosto, como se fosse revelar algum segredo. — Joey, meu noivo, trabalha lá. — Não vou me esquecer disso. Tess guardou a mercadoria em um imenso saco de papel com o logotipo do supermercado e entregou uma nota de cem dólares para pagar as compras. Apanhou o troco e saiu, ansiosa para conhecer seu novo lar. Guardou as compras e atravessou a rua para chamar Marvin. Ao avistar a lanchonete que a jovem do caixa havia mencionado, decidiu ir até lá para comprar
algumas panquecas. Estava faminta e ansiosa por uma refeição quente. Ao abrir a porta dupla, seu coração perdeu um compasso. O estranho que encontrara na estrada estava sentado ao balcão, segurando uma xícara de café. Parou no extremo oposto, ignorando a reação imediata de seu corpo, e chamou a garçonete com a maior naturalidade que pôde. — O que vai querer, moça? — a adolescente indagou, medin-do-a de alto a baixo. — Omelete de queijo e panquecas de maçã... para viagem — acrescentou, desistindo da idéia de comer ali. — Pois não. Espere um minuto. Um minuto era tempo demais para permanecer próxima àquele homem, pensou com aflição. Manteve o olhar fixo no espelho ao fundo do balcão, mas, para seu azar, seus olhares se encontraram, e isso lhe provocou uma onda de arrepios pelo corpo. __ Pelo que vejo, você conseguiu encontrar o caminho — comentou no mesmo tom de provocação que ela já conhecera. __ Parece que sim, não é? — respondeu sem se voltar. __ Ótimo. Fico feliz em saber. — Ele sorveu um gole de café e a encarou. — Onde está Marvin? — Na praça — respondeu friamente, esperando que ele entendesse que não estava disposta a conversar. — Ao menos ele está disposto a fazer novos amigos... Tess ignorou o comentário sarcástico. Pegou a refeição, pagou e saiu rapidamente, dizendo um breve "até logo" por sobre o ombro. Suas mãos tremiam tanto que quase derrubou as embalagens. Assoviou para chamar Marvin e entrou no carro, ansiando desesperadamente chegar ao casarão, ou a qualquer lugar onde se sentisse protegida do efeito devastador que aquele estranho provocava. CAPÍTULO III Oh, não! Tess apoiou a cabeça no volante, contendo-se para não chorar. Sua primeira reação foi girar a chave na ignição e voltar para Nova York. Esforçando-se para resistir ao impulso de ir embora, desceu do carro e deteve-se diante do prédio em ruínas. Antes de seguir para lá, passara no escritório dos advogados para pegar as chaves e ficara sabendo que não poderia realizar benfeitoria alguma até legalizar a situação. William Stansfield era um jovem advogado que ainda conservava a empolgação típica dos recém-formados, mas seu pai, Carl Stansfield, fora mais sensato ao alertá-la
sobre as condições do imóvel. — As contas de água e de energia elétrica estão com dois anos de atraso. O casarão está às escuras, e embora possua um velho poço artesiano, não há uma só gota de água nas torneiras. Talvez seja melhor se hospedar no hotel da cidade por esta noite — ele aconselhara com sabedoria. Porém, ela tinha pouco dinheiro e não queria despesas extras. Segura de que, com Marvin a seu lado, saberia enfrentar uma noite às escuras, seguira as instruções do advogado e rumara para a casa. O imenso casarão de dois andares localizava-se em um terreno que mais parecia uma chácara. Era afastado da cidade e não havia um só vizinho nas imediações. Passava das seis horas da tarde, e a penumbra do crepúsculo tornava o cenário ainda mais sombrio. Tess permaneceu apoiada no portão por longos minutos, refletindo sobre o que fazer. Por fim, decidiu que seria impossível entrar no casarão às escuras e decidiu dormir no carro. Depois de alimentar Marvin e de comer a refeição que comprara no Jolly's Diner, reclinou o banco de passageiros e acomodou-se o melhor que pôde, certa de que não conseguiria pregar os olhos. Relaxou as pálpebras para descansar e, sem perceber, adormeceu profundamente. Acordou com a claridade da manhã ofuscando-lhe a visão. — Bom dia, Marvin! — saudou, recebendo uma calorosa lambida como resposta. À luz do dia, o cenário não lhe pareceu tão assustador. A construção sólida resistira à força da natureza como uma fortaleza inabalável. Tess abriu o portão e deixou que o cão entrasse primeiro, confiante de que ele a alertaria se houvesse algum intruso. Com um gesto involuntário, enfiou a mão dentro da bolsa e segurou o tubo de spray paralisante. Entrou com cautela e olhou ao redor. O mato havia tomado conta dos canteiros e, com exceção de duas árvores frondosas que permaneciam viçosas e imponentes, não havia mais nada que pudesse revelar que aquilo fora um jardim. Por sorte, o caminho de cascalho que levava à varanda permanecera livre da invasão das ervas-daninhas. Depois de se convencer de que uma cidade com pouco mais de cinqüenta mil habitantes não oferecia os mesmos perigos que Nova York, subiu os degraus de pedra e caminhou pela ampla varanda. O piso de lajotas de cerâmica vermelha estava conservado como que por milagre. Avaliou o estado da velha cadeira de balanços e se sentou, observando Marvin explorar o ambiente. Armando-se de coragem, apanhou a chave e abriu a porta da frente. O rangido das dobradiças enferrujadas provocou-lhe um arrepio. — Uau! — exclamou, maravilhada com o que viu. Nem mesmo o estado deplorável em que se encontrava obscurecia a esplêndida arquitetura vitoriana do casarão. Gigantescas teias de aranha pendiam do teto e uma grossa camada de poeira cobria o chão, mas ela pôde entrever o magnífico piso xadrez em mármore preto e branco. Admirou-se por não encontrar um só vidro quebrado das imensas janelas,
embora estivessem tão sujos que mal permitiam a entrada da luz. A sala de estar não possuía móveis e a pintura desbotada das paredes revelava as marcas do tempo. Próximo dali, havia um lavabo em péssimas condições e um escritório amplo, com janelas para a lateral da casa. Na sala de estar, Tess encontrou mesa e cadeiras de mogno maciço, além de uma magnífica cristaleira. A escadaria de mármore e os corrimões de ferro entalhado precisavam de uma boa limpeza, mas estavam intactos. Subiu os degraus para o segundo piso e Marvin a acompanhou. Havia mais quatro quartos vazios e dois banheiros no piso superior além de uma imensa suíte. Aquele era o único aposento que ficara intocado, e possuía uma imensa cama com dossel e duas cômodas, além de um quarto de vestir e um banheiro anexos ao aposento. Abriu a porta dupla e saiu para a sacada com vista para o jardim, imaginando como seria adorável permanecer ali quando os canteiros estivessem floridos. Respirou fundo ao imaginar o trabalho que teria pela frente e caminhou para a cozinha. Para sua surpresa, não estava em tão mau estado quanto o restante da casa. Possuía uma pia de mármore branco que ocupava toda a parede envidraçada no lado oposto à porta pela qual acabara de entrar. Através do vidro das janelas, pôde ver o enorme quintal com árvores frutíferas e uma edícula ao fundo, com uma garagem. Estava equipada com uma geladeira antiga e um fogão de seis bocas. Aproximou-se para observá-lo melhor e concluiu que se tratava de uma relíquia. O revestimento de ágata branca estava intacto, assim como a pintura de flores e frutas em relevo que decorava a tampa do forno. Tess meneou a cabeça, satisfeita. O piso e os azulejos de ladrilhos hidráulicos deviam datar da construção do imóvel e denotavam o bom gosto de quem construíra aquela casa. A mesa de madeira maciça mostrava marcas e ranhuras no tampo, revelando os anos de uso, e seis cadeiras de palhinha dispostas ao redor completavam o conjunto. Um imenso armário de madeira, como os que ela vira apenas em antiquários, ocupava uma das paredes. Estava vazio e repleto de pó, como os demais móveis do casarão. Ela abriu a porta para que o cão saísse e se sentou à mesa, pondo-se a imaginar como teria sido a vida dos moradores daquela residência. Quase pôde vislumbrar a imagem do pai sentado à mesa, antes de ser expulso de casa. Ele fora um homem determinado e, por mais que houvesse sofrido por se separar dos pais, optara por não abrir mão de seus ideais. Por que nunca lhe contara sobre seu passado? pensou com tristeza. Tess nem sequer sabia onde ele nascera! O único detalhe que conhecia do pai é que não aceitara seguir a tradicional carreira de advogado, como todos os homens da família. Talvez ele próprio não houvesse superado as mágoas, e não quisesse tocar no assunto para não revolvê-las, refletiu. Quanto ao avô, estava quase certa de que a nomeara herdeira universal em uma tentativa de reparar o erro que cometera com o filho... Tess suspirou fundo e se levantou, concluindo que não havia como esclarecer os
fatos do passado. Apenas o futuro importava, e havia muito trabalho a ser feito para que o casarão se tornasse habitável. Foi para o quintal e encontrou a bomba manual do poço artesiano. Encheu dois baldes que encontrou na lavanderia e levou-os para o banheiro para tomar o banho mais inédito de sua vida, agradecendo à sorte pelo clima quente. Depois de retirar as malas do carro e vestir roupas limpas, esquematizou um plano de ação e decidiu que o primeiro passo seria cuidar dos reparos básicos para que o casarão se tornasse habitável. Precisaria pagar as contas de água, energia elétrica e telefone e contratar alguém para limpar o jardim e o quintal. Por sorte, recebera uma boa soma de dinheiro no último show e, se soubesse como administrá-lo, poderia se manter até o primeiro pagamento do novo trabalho. Sentindo-se bem melhor depois do banho, tomou o café da manhã e voltou à cidade para pedir ajuda a Cooper. Tocou a campainha e esperou mais de dez minutos sem obter resposta. Estava a ponto de ir embora quando ouviu o tilintar de chaves na porta da frente. — Oh, sinto muito! Não imaginei que estivesse dormindo — desculpou-se ao perceber que ele acabara de sair da cama. — Não tem importância. — Ele abriu a porta e fez um gesto para que entrasse. — Onde está Marvin? — Eu o deixei tomando conta do casarão. Minha bagagem está lá, além das compras que fiz ontem, e não há fechadura na porta da cozinha. — Pelo que me lembro, nunca houve fechadura naquela porta — Cooper comentou, seguindo em direção à máquina de café expresso que havia por detrás do balcão. — Seu avô nunca trancou as portas daquela casa. — É mesmo? Para mim, isso é surpreendente. Ainda não estou ambientada à vida em uma cidade pequena. — Pois eu não sei como conseguiu se ambientar em uma cidade como Nova York! É inacreditável que alguém se acostume a conviver com tanta violência e poluição. — Você tem razão. Tess sentou-se e observou-o preparar duas xícaras de café. — Açúcar ou creme? — Açúcar, obrigada. Tomaram o café em silêncio, enquanto ela pensava em como a vida parecia ser mais simples naquele lugar. — Ah, agora podemos conversar! — Cooper retirou as xícaras da mesa com um sorriso satisfeito. — Não consigo nem sequer dizer meu nome antes de tomar um bom café. — Sei como é isso. Tess riu, simpatizando cada vez mais com ele. Com exceção de Richard e Kevin, ela nunca tivera amigos. Mal conhecia o proprietário do Last Call e, no entanto, sentia-se à vontade com ele como se fosse o irmão que nunca tivera. — Diga-me o que a traz aqui a esta hora da madrugada. — Cooper, não seja exagerado! São nove horas da manhã!
— Para mim, ainda é madrugada. — Ele se sentou ao lado dela e a fitou com curiosidade. — E, por falar nisso, como foi a noite em seu novo lar? — Bem, excluindo o fato de que meu último banho decente foi em Nova York e de ter dormido no carro, até que não foi mal. — Você dormiu no carro? Oh, como sou estúpido! Claro que não poderia passar a noite no casarão! Eu deveria ter oferecido meu apartamento para... — Não se preocupe, estou acostumada. Já dormi em um estádio de futebol em uma das turnês com meu pai. — Deve ter sido emocionante... — Cooper meneou a cabeça com um sorriso nostálgico. — Quando seu pai foi embora de Justice, eu tinha apenas quatro anos, mas seu avô sempre falava dele. Tess ergueu as sobrancelhas e apoiou o rosto nas mãos, interessada em ouvir. — Ele sabia de todos os passos de Joseph, mas nunca revelou como se orgulhava do filho. O velho Roy era um homem orgulhoso e obstinado. Mesmo amargurado pelo remorso, jamais diria que agiu errado. — Conte-me mais sobre ele. — Sua avó morreu no parto, e ele não quis se casar novamente. Creio que amou a esposa até o dia da morte dele. — É curioso como eram parecidos... Meu pai também ficou só e foi um homem romântico — ela analisou, sentindo a saudade oprimir seu peito. — Ele nunca mais voltou a Justice, mas o velho Roy encomendava jornais de Nova York e Las Vegas para saber do paradeiro do filho. Seu pai telefonou uma vez, creio que você deveria ter por volta de dezoito anos. Talvez ele tenha percebido a situação difícil do velho Roy, e o fato é que soube perdoar e passou a enviar-lhe uma quantia mensal. — Até que papai morreu, e então meu avô não teve mais recursos para cuidar do casarão. É por isso que está quase em ruínas. — Exatamente. E ter deixado a propriedade para você é a maior prova de que perdoou ao filho. — É uma história comovente. Eu só espero conseguir pagar as dívidas que ele deixou — Tess comentou com expressão preocupada. — Por falar nisso, preciso de sua ajuda para resolver alguns problemas... — Claro! Farei tudo que puder para ajudar. Não quero ver o velho casarão transformado na sede do quartel. Do que precisa? — Bem, para começar, preciso pagar as contas atrasadas e falar com o prefeito para que a água e a energia elétrica sejam reativadas ainda hoje. O problema é que ele se recusa a falar comigo! — Não se preocupe, eu cuidarei disso — Cooper se apressou em dizer. — Pague as contas e vá para casa. Dou minha palavra que encontrará água na torneira quando chegar. — Ótimo. Mas, antes de ir, preciso que me indique alguém para cuidar do jardim e de alguns reparos básicos, como instalar um chuveiro novo e colocar algumas lâmpadas. — Certo. Vou telefonar para Gary Williams, o rapaz que faz os reparos do bar
sempre que é preciso. — Obrigada, Cooper. — Ela se levantou e apanhou a bolsa. — Agora, preciso ir. Há muito trabalho a minha espera. Uma hora mais tarde, Tess entrou no quarto principal munida de baldes, vassouras, um velho e potente aspirador de pó que encontrara no armário da lavanderia e de todos os produtos de limpeza disponíveis, decidida a se dedicar primeiro ao aposento que ocuparia. Para seu alívio, Cooper cumprira a promessa, e ela encontrara água nas torneiras, energia elétrica e o antigo telefone na parede da cozinha funcionando perfeitamente. Surpresa pela presteza com que conseguira, imaginou que o homem mais inacessível da cidade abria exceções apenas para os moradores da cidade. — Mãos à obra, garota! — ordenou para si mesma, enchendo-se de coragem. A construção vitoriana fora se deteriorando desde quando seu avô morrera e depois da demora de dois anos para que os advogados a localizassem, o lugar tornara-se quase inabitável. Não se tratava apenas de reparos de manutenção, como pintura e jardinagem. Não havia uma só torneira na casa que estivesse em boas condições! Tess, porém, não podia mudar absolutamente nada enquanto não regularizasse o pagamento dos impostos atrasados. O casarão somente lhe pertenceria legalmente depois de quitar todas as dívidas públicas que haviam se acumulado por mais de dois anos, somando uma pequena fortuna. Ela se sentia uma intrusa em sua própria casa, como se estivesse em uma espécie de limbo. Precisava pagar os débitos, e tinha apenas dois meses antes que a hipoteca fosse executada. O prazo final se aproximava com rapidez, e ela ainda não formulara um plano para conseguir a soma e quitar a dívida. Saber que corria o risco de perder a única casa que um dia tivera a deixava aflita e, para fugir da angústia, dedicou-se à faxina com afinco, parando apenas quando a campainha soou três horas mais tarde. Olhou pela janela do quarto e viu um rapaz franzino ao portão, carregando um carrinho de mão com equipamento de jardinagem. Marvin já fora recebê-lo e fazia festa para ele como se fossem velhos conhecidos. Tess desceu a escada correndo, sem se importar com o estado deplorável em que se encontrava. — Boa tarde. Sou Gary Williams. Cooper pediu que eu viesse cuidar do jardim do casarão. Ao se aproximar para abrir o portão, ela teve a impressão de que o rapaz era ainda menor e mais magro do que quando o vira da sacada de seu quarto, e duvidou que tivesse forças para realizar o serviço pesado. — Ótimo — disse sem muita convicção. — Se você conseguir deixá-lo limpo, já será maravilhoso. Marvin gosta de brincar no jardim e receio que seja picado por algum inseto perigoso. — É verdade... — O rapaz meneou a cabeça e olhou ao redor. — Eu não me espantaria se encontrasse alguma cobra por aí. — Oh! — Tess colocou a mão sobre a boca, horrorizada.
— Não se preocupe, senhorita. O jardim estará livre de todo o mato ao final da tarde. Ela lhe pediu para instalar o chuveiro e algumas lâmpadas antes de qualquer coisa. Também o instruiu sobre o que deveria fazer no jardim, decidida a não cultivar nada até que tivesse certeza de que o casarão seria seu. E se todo aquele trabalho fosse em vão? pensou com tristeza. Depois de conhecer alguns dados da tradição de sua família, começara a se apegar àquela casa. O casarão passara a significar mais do que um bem material. Ali, dentro daquelas paredes, persistiam as marcas de uma história que também era sua. Se não conseguisse pagar as dívidas que o avô deixara, perderia a chance de reatar o fio que unia o passado ao futuro em um elo contínuo e ininterrupto. Tinha a certeza de que aquela fora a intenção do avô ao deixá-la como única beneficiária em seu testamento. Nomeá-la como herdeira do imóvel significava que ela herdara também um lugar naquela família, e pretendia fazer daquele casarão o seu lugar no mundo. Tess subiu a escada para o segundo andar e voltou à faxina, mergulhando novamente no trabalho na tentativa de se esquecer dos problemas. Quando deu por si, o sol já estava se pondo. Tess terminou de secar a cozinha e olhou em volta, orgulhosa do trabalho. Para sua alegria, a velha geladeira funcionava perfeitamente. Guardou os itens que comprara no dia anterior e fez uma lista mental para providenciar toalha de mesa e panos de prato quando fosse à cidade. Sentou-se à mesa e, depois de refletir por alguns segundos, decidiu que compraria um forno de microondas. mesmo que contrastasse com o estilo original da cozinha. Embora pretendesse restaurar o imóvel para preservá-lo exatamente como fora construído, alguns itens da vida moderna haviam se tornado imprescindíveis na sua vida. Ligeiras batidas à porta da frente chamaram sua atenção. Estava tão absorta em suas divagações que havia se esquecido do jardineiro. Ao abrir a porta, não conteve uma exclamação de surpresa ao ver o jardim completamente limpo. Gary Williams tivera o cuidado de colocar todo o mato que retirara em sacos de lixo. Ela caminhou por entre os canteiros, observando pela primeira vez o piso de pedras rústicas, e deteve-se ao lado de um tanque circular, imaginando que um dia fora usado para a criação de carpas. — Parabéns, sr. William! O senhor fez um ótimo trabalho! O rapaz olhou para o chão, constrangido com o elogio. — Voltarei amanhã para cuidar do quintal. Depois de se despedir, Tess se pôs a passear pelo jardim, encantada com o espaço. Já podia vislumbrar os canteiros cheios de flores! Imaginou como o tanque ficaria quando estivesse repleto de plantas aquáticas e peixes ornamentais, e um sorriso largo curvou seus lábios. Sim, aquele seria seu lar, nem que precisasse trabalhar até se esgotarem todas as suas forças!
No decorrer da semana, Tess se dedicou à limpeza do casarão com afinco. Planejou a tarefa de forma que, na quarta-feira, todo o andar superior ficou impecável, do piso ao teto. À medida que via o resultado do trabalho, sentia-se com ânimo redobrado para continuar. Na quinta-feira à tarde, ela acabou de lustrar os vidros das janelas da sala e deitou-se no chão impecavelmente limpo. Se não estivesse tão cansada, seria capaz de gritar de alegria por ter terminado a faxina. Depois de descansar alguns minutos, foi à cozinha e se serviu de um copo de suco de laranja. Merecia uma recompensa pelo dia árduo de trabalho, pensou com satisfação. Sentou-se à varanda com Marvin a seus pés e respirou fundo, usufruindo a deliciosa sensação de paz que a envolveu. Fizera tudo que fora possível para que o casarão se tornasse habitável. Claro, o prédio necessitava de pintura, o telhado estava a ponto de ruir e as janelas e portas teriam de ser trocadas. Além disso, a fiação elétrica representava um risco e, na certa, não havia um só cano que não estivesse enferrujado. Mesmo assim, a faxina havia conferido outro aspecto à residência. Embora a maioria dos quartos estivesse vazia, ela havia reorganizado os móveis para que os amplos espaços fossem preenchidos. A sala de estar estava absolutamente nua, mas a sala de jantar já estava arrumada do modo como ela imaginava que fora em sua decoração original. Restava apenas comprar louças para a cristaleira vazia e dar vida ao ambiente. O jardineiro havia retirado o mato do quintal e podado a cerca viva que o delimitava. Mesmo tendo lhe dito que decidira não cultivar a horta antes de ter certeza de legalizar a posse do imóvel, ele deixara os canteiros adubados e preparados para o plantio. Tess pagara o valor que ele havia estipulado e acrescentara uma nota de cinqüenta dólares pela qualidade do serviço, combinando com Gary Williams que o contrataria quando fosse a dona oficial do casarão. O jardim ainda não estava como desejava, mas aceitara a sugestão do jardineiro e permitira que enchesse os canteiros com mudas de flores diversas, com exceção de uma. Ela própria planejava cultivar petúnias para avistá-las quando saísse à sacada do quarto. Sempre sonhara com a possibilidade de mexer na terra com suas próprias mãos, acompanhando o desenvolvimento das sementes até florescerem, e sorriu ao pensar que um de seus sonhos estava prestes a se realizar. — Seremos felizes aqui, Marvin — murmurou, com coração cheio de esperança. CAPÍTULO IV
Fletcher se recostou no balcão e apoiou os cotovelos na madeira polida. Seu olhar cruzou o salão do bar como um raio laser com o poder de atravessar a densa nuvem de fumaça de cigarros que pairava no ar, para pousar no extremo oposto. A mulher que ocupava o pequeno palco era o centro das atenções, mas parecia não perceber que era capaz de despertar os instintos mais selvagens de um homem. Avaliou o rosto arredondado, com traços perfeitos e suaves. Os cabelos castanho-escuros caíam em cachos largos sobre os ombros e os olhos pequenos permaneciam semicerrados enquanto ela cantava. A boca bem desenhada, com lábios grossos e, provavelmente, macios, movia-se com sensualidade para modular a voz que mais parecia uma carícia em seus ouvidos. Prendeu a respiração ao observar as formas do corpo escultural. O vestido azul-turquesa com uma fenda pronunciada no joelho era um modelo comum, como já vira em incontáveis cantoras nos bares em que freqüentara. Porém, ganhava uma originalidade única no corpo daquela mulher, como se fosse uma segunda pele com o efeito de provocar mais fantasias do que se estivesse nua. Seu olhar passeou lentamente pelas curvas primorosas, detendo-se na saliência do busto. O pingente de topázio do colar repousava no vale dos seios fartos, despertando-lhe a insana necessidade de tocá-los. Com esforço, desviou o olhar para percorrer o desenho da cintura e o contorno arredondado dos quadris. Respirando fundo, Fletcher olhou ao redor, receando que os freqüentadores do bar percebessem a reação evidente de seus hormônios diante daquela deusa. Para seu alívio, os homens presentes pareciam estar tão fascinados quanto ele. Ao menos, era o que revelava os olhares de cobiça que convergiam para o palco. Lobos famintos, grunhiu em tom quase inaudível, sentindo um súbito e inexplicável ciúme ao imaginar quantos homens já teriam cobiçado aquela mulher. Refreando a necessidade urgente de arrastá-la para longe daquele palco, tentou se concentrar na música. Porém, o blues entoado em voz sensual, ligeiramente rouca, contribuiu para aumentar ainda mais o efeito devastador sobre seus sentidos. Quando ouviu os primeiros acordes de sua canção favorita ao piano, uma estranha sensação o invadiu. Ela cantava uma melodia que ele gostava de cantarolar quando não havia alguém por perto. Como um incorrigível apreciador da música de raízes americana, em sua coleção de CDs não faltavam clássicos do blues, jazz e baladas comoventes de soul. De súbito, sentiu-se transportado para um lugar distante, quase inatingível, como se não estivesse em Justice. A desconhecida e pacata cidade da Carolina do Norte onde nascera pareceu-lhe pequena demais para conter a grandiosidade do sentimento que aquela mulher despertara. Sem conseguir tirar os olhos dela, observou as mãos delicadas fazerem uma curva no ar, acompanhando o ritmo lânguido da música. Fantasias que não revelaria nem ao melhor amigo preencheram sua imaginação.
Podia quase visualizar suas mãos acariciando a pele acetinada, seus lábios capturando a boca macia e sensual... Seus hormônios responderam de pronto à imagem erótica, obrigando-o a virar-se de frente para o balcão. Se alguém o visse naquela condição, não havia dúvida de que o Daily Justice do dia seguinte noticiaria em primeira página a reação do ilustre prefeito diante de uma desconhecida cantora de blues... — Coop! — chamou com um gesto discreto, sem tirar os olhos do palco. Cooper guardou o maço de notas que acabara de contar voltou-se para ele. — Pelo que vejo, você aprovou a nova cantora que contratei. — Como não aprovaria? Ela tem muito talento. Talento não era a expressão mais apropriada para definir o que ele sentia. Embora já tivesse ouvido muitas versões da música que ela cantava naquele momento, o modo como pronunciava as palavras era um convite sensual, irresistível e único. Observou os lábios se moverem suavemente, a ponta da língua tocando os dentes brancos e perfeitos, e uma onda de calor fez com que minúsculas gotículas de suor brotassem em sua testa. As mesmas palavras, pronunciadas por qualquer outra pessoa, assumiam uma conotação diferente na voz daquela mulher. — Eu a encontrei na estrada, alguns dias atrás, e a vi na cidade na mesma tarde. Quem é ela? — indagou com uma veemência que revelava mais do que simples curiosidade. — Em que planeta você estava, Fletch? O prefeito da cidade não toma conhecimento do que acontece em seu próprio território? Fletcher encarou o amigo com expressão hostil e voltou-se para o palco. Estivera ocupado em resolver problemas do condado e permanecera ausente da cidade na maior parte do tempo naquela semana. Porém, conhecia o amigo bem o bastante para saber que era mais obstinado do que ele próprio e nada faria com que falasse. Não valia a pena insistir no assunto. Segundos depois, olhou de soslaio na direção dele, contendo a curiosidade em perguntar sobre a ficha completa da nova cantora. Voltou-se para observar a cantora e sentiu o sangue ferver nas veias quando os olhares se encontraram. Como não percebera que era tão sexy no dia em que a vira pela primeira vez? Ela estava tão envolvida pela melodia que dificilmente o notaria, mas, por uma fração de segundo, julgou ter visto um brilho de desejo refletir-se nos olhos cor de mel. Seus lábios se curvaram em um sorriso involuntário enquanto ela sussurrava a melodia sensual com a boca encostada ao microfone. — Droga, Coop, você não pode fazer isso comigo! — reclamou, irritado. — Já não basta encabeçar o movimento contra o prefeito? — Espere um pouco! Nunca encabecei movimento contra o prefeito, e sim, contra uma decisão absurda que pretende destruir um valioso bem da minha cidade natal. — Você sabe que não posso evitar, Coop. — E você sabe que não posso aceitar, Fletch. — Está bem, vamos deixar essa discussão para depois. Agora, só quero que me diga quem é ela.
— Acredite, você não gostará de saber — Cooper respondeu, lembrando-se da antipatia de Tess pelo prefeito da cidade. — O que há de errado? — Fique longe dela, ou trate de encomendar seu funeral — respondeu com expressão divertida, colocando uma cerveja gelada sobre o balcão. — Oh, não me diga que vocês... — Não se preocupe, não estou interessado nela — Cooper lhe assegurou enquanto enchia o copo com a bebida. — Eu apenas não quero mais interferir em sua vida amorosa. Nem que eu viva cem anos poderei me perdoar por ter tido parte no desastre que foi seu casamento! Fletcher semicerrou os olhos, relembrando a história que ainda o magoava. Seu melhor amigo fora responsável por apresentá-lo à ex-esposa logo que voltou para casa depois de terminar o curso de Engenharia Mecânica. Haviam acabado de comprar o Last Call e estavam entusiasmados pelo sucesso que se transformara em poucos meses. Certa noite, a irmã de Cooper fora ao bar em companhia de uma amiga da Califórnia que fora passar o fim de semana na cidade. Fascinado pela beleza da jovem, Fletcher se apaixonara desde o primeiro instante em que a vira. O romance tornara-se sério e se casaram seis meses depois. Jane Alison era uma jovem acostumada ao luxo e ao conforto proporcionados pela família. A primeira exigência dela fora que alugassem uma casa na cidade, em vez de morar na sede da fazenda de Fletcher como ele pretendia. A magnífica fazenda que herdara do avô materno era seu maior orgulho. Dedicava-se à criação de cavalos de raça, e seu haras era conhecido pela excelência dos animais. Antes do casamento, não tivera tempo para reformar a casa principal, uma esplêndida mansão construída pelos avós, e aquela fora a justificativa da esposa para se recusar a ir. Nem mesmo os insistentes pedidos para que reconsiderasse a decisão tiveram efeito, e, embora não concordasse, acatara a opinião dela esperançoso de que mudasse de idéia ao longo do tempo. A princípio, as diferenças não eram tão óbvias, mas após alguns meses de convivência, Fletcher descobriu que cometera o que considerava ser o maior erro de sua vida. Jane não se adaptara à vida pacata da cidade pequena. As queixas diárias provocavam discussões cada vez mais acaloradas. Acusava-o de não lhe proporcionar o conforto com o qual estava habituada e, para fugir da rotina tediosa, Jane sempre viajava para a Califórnia para visitar os pais. Sua ausência tornara-se cada vez mais comum até que, certa manhã, ao chegar em casa depois de viajar por duas semanas, anunciara que estava grávida... mas o pai do bebê não era ele! Ambos haviam concordado com o divórcio e nem mesmo o fato de saber que o poder aquisitivo do futuro marido de Jane era maior que o dele serviu como consolo. Após alguns meses, percebeu que tudo não passara de mera atração física. Porém, a experiência deixara marcas que o fizeram prometer a si mesmo que nunca mais se
envolveria com uma mulher que não fosse nascida em Justice. Recriminara-se duramente pela escolha que fizera e agradecera à sorte por não terem tido filhos. Embora seu maior desejo fosse constituir uma família grande, a frustração e o sofrimento que vivera haviam sido decisivos para fazê-lo desistir de seus sonhos. Ele pegou o copo sobre o balcão e sorveu um longo gole. As dolorosas recordações do passado fizeram-no refrear os impulsos eróticos despertados pela adorável cantora de blues. Voltou a se concentrar na melodia, imaginando como seria a vida daquela mulher. Ela parecia ter cerca de trinta anos e, a julgar pela qualidade da apresentação, havia se dedicado a estudar música e a se aprimorar em técnicas de canto. Na certa, passara muitas noites sobre o palco de bares e boates, trabalhando para ganhar a vida. A comparação entre a perturbadora desconhecida e sua ex-esposa foi inevitável, mas não havia a menor similaridade entre elas. Enquanto Jane se interessava apenas por prestígio social e dinheiro, a mulher a sua frente demonstrava classe e determinação. — O que há de errado com ela, Coop? — insistiu, apanhando um punhado de amendoins salgados da terrina sobre o balcão. — Ela cometeu algum crime e veio se esconder em Justice? — Não se trata do que há de errado com ela, e sim do que pode haver se ela descobrir quem você é — Cooper advertiu, estendendo o indicador no ar. — Será melhor que ambos mantenham o anonimato. — O que você quer dizer? — Fique longe dela. Ele encarou o amigo, intrigado. Todos os moradores de Justice sabiam quem era o prefeito da cidade. Manter sua identidade em segredo seria o mesmo que tentar impedir que o sol nascesse na manhã seguinte. Porém, o conselho que acabara de ouvir instigou-o ainda mais a desvendar o mistério que envolvia a cantora. A música cessou por alguns instantes, e ele a observou conversando com o pianista enquanto sorvia pequenos goles de água. Uma necessidade imperativa de falar com ela o assaltou, porém refreou o impulso ao ver sua imagem refletida no espelho ao fundo do balcão. Avaliou a calça jeans surrada e as botas de caubói mais confortáveis que possuía, desgastadas pelo tempo de uso. A camiseta estava muito distante da brancura que tinha quando a vestira antes de sair de casa naquela manhã, tendo adquirido diversas manchas de graxa. Durante a tarde, dedicara-se à restauração de um carro antigo que comprara em um leilão para deixá-lo na condição original, e os vestígios do trabalho eram evidentes em suas roupas. Mesmo depois de se tornar prefeito de Justice, Fletcher dedicava-se à mecânica de carros. Embora houvesse cursado uma das melhores universidades do país, havia guardado o diploma para se dedicar ao que realmente gostava de fazer e era conhecido como o melhor mecânico da cidade.
Os aplausos que irromperam pelo ambiente seguidos dos primeiros acordes de uma canção romântica tiraram-no de seus devaneios. Por um breve instante, imaginou que ela cantava apenas para ele. Ao perceber que Cooper o fitava com expressão preocupada, desviou o olhar do palco e puxou a vasilha com amendoins para mais perto, servindo-se de outra porção. — Quando você a contratou? — perguntou, tentando disfarçar o interesse. — Há alguns dias. Hoje é o dia da estréia. Fletcher refletiu alguns segundos, avaliando a melhor estratégia para obter informações. — Você acha que ela e Jane têm alguma coisa em comum? — Você deve estar brincando! Essa mulher tem mais orgulho e amor-próprio na unha do dedinho do que Jane tem no corpo todo. — Então, o que há de errado com ela? — perseverou, voltando à questão original. — Quem disse que há algo errado com ela? — É o que parece, já que está fazendo tanto mistério sobre sua identidade. — Basta que saiba que ela representa apenas problemas. Fletch, estou falando sério. Tenha cuidado. — Você está me deixando ainda mais curioso. Fletcher colocou uma nota de dez dólares sobre o balcão, mas Cooper empurrou-a de volta. — Este bar também é seu, parceiro. — Aceite pelo conselho, embora não tenha dito nada de interessante ou lógico. — Olhou para o palco mais uma vez antes de sair e voltou-se para o amigo. — Você está tentando protegê-la? — Estou tentando protegê-lo, prefeito. — Está bem. Veremos. Fletcher despediu-se com um gesto de cabeça. Estava cansado demais para decifrar as mensagens em código que o amigo lhe enviava. Necessitava de ar puro e de um pouco de silêncio para refletir. A imagem da cantora de blues estava fora do alcance de seus olhos, mas a voz ainda o acariciava, vibrando por todo seu corpo como uma onda de eletricidade. Abriu a porta do bar e recebeu o golpe de ar quente e úmido da madrugada. Por que Cooper se recusara a contar quem era aquela mulher?, pensou enquanto seguia para o carro. Haviam crescido juntos e passado por todas as fases da vida, da infância à idade adulta, compartilhando momentos dos melhores aos mais difíceis, como verdadeiros irmãos. Aquela era a primeira vez em que o amigo lhe ocultava uma informação. Intrigado, seguia com passos lentos em direção à caminhonete, parada a poucos metros do bar, quando notou o carro com placa de Nova York estacionado do outro lado da rua. Ele deteve-se com as chaves do carro na mão. Sem conter o impulso, atravessou a rua em direção ao sedan coberto de poeira. Contornou-o, tentando identificar os objetos jogados no banco de detrás.
Havia uma escova de cabelos, revistas de decoração, um mapa, várias embalagens de chocolate, um patinho de borracha... Nada que pudesse revelar a identidade da dona do carro. Antes que pudesse refletir, deu meia-volta, entrou pela porta dos fundos e foi para o banheiro anexo ao escritório que dividia com Cooper. Molhou as mãos e tentou ajeitar os cabelos em desalinho, arrependendo-se por não ter ido ao barbeiro naquela tarde. Lavou o rosto e os braços com o sabonete líquido do recipiente sobre a pia, e entendeu o porquê das queixas dos funcionários do bar; O forte aroma de pinho permanecia impregnado à pele, por mais que se lavasse com água corrente. Não havia o que fazer com relação às roupas, mas conseguiu um bom efeito depois do banho improvisado. Fletcher entrou no escritório e vasculhou os papéis sobre a escrivaninha, sem encontrar nada que pudesse fornecer qualquer pista sobre a identidade da cantora. Para ocupar o tempo, organizou a papelada, olhando no relógio a cada minuto. A imagem dela estava tão vivida em seu pensamento que o fizera esquecer momentaneamente dos problemas. Na semana anterior, tivera uma das piores discussões de sua vida com o pai. O general reformado era um homem autoritário e ríspido, mas Fletcher sabia que o amava a seu modo. Mesmo depois de se reconciliarem, como sempre faziam a cada vez que divergiam sobre qualquer assunto, ele continuava a se sentir aborrecido. O tema da discussão fora a exigência do general para que ele, na função de prefeito, reduzisse o prazo para o pagamento dos impostos que já estavam atrasados desde antes da morte de Roy Braeden. Sua obstinada insistência em transformar o casarão, quando fosse desapropriado pela prefeitura, na sede do quartel de Justice provocara conflitos constantes com o filho. Fletcher era contra a idéia de destruir um prédio que representava o símbolo de uma geração, mas seus poderes como prefeito eram limitados para impedir que o Conselho de Segurança determinasse tal medida. E, para piorar a situação, Cooper liderava o movimento que se opunha à ocupação do imóvel pelo quartel. Ele havia organizado passeatas diante da prefeitura e usado todos os meios possíveis para chamar a atenção da opinião pública sobre o que considerava ser "crime contra um patrimônio da humanidade". Como se não bastasse ter de confrontar seu melhor amigo publicamente e enfrentar os conflitos com o pai, havia ainda a neta de Roy Braeden. Desde que ela descobrira que era a única beneficiária do testamento, havia transformado sua vida em um inferno. Nas semanas anteriores, não houvera um só dia em que ela não telefonasse de Nova York para pedir que ele renegociasse a dívida. Embora não fosse do seu feitio, recusara-se a atender as ligações. Não seria uma jovem arrogante de Nova York, que nunca pisara em Justice, que o faria tomar atitudes que nem mesmo seu melhor amigo conseguira. Na certa, ela supunha que o fato de ser de uma cidade grande a tornava superior aos caipiras de Justice. Além disso, não havia o que lhe dizer. Diante da exaustiva persistência da jovem,
escrevera-lhe uma carta explicando a situação legal do imóvel e o limite do prazo de pagamento. Não precisava que lhe dissessem como administrar a cidade, especialmente se tratando de uma nova-iorquina prepotente e orgulhosa. O curioso era que a cantora de blues também era de Nova York, mas parecia ser a mulher mais doce do planeta! Fletcher se aproximou da janela e observou enquanto o último cliente ia embora. Viu quando a cantora caminhou para o balcão e se sentou, conversando animadamente com Cooper. Ele permaneceu ali por alguns minutos, admirando os movimentos suaves das mãos delicadas enquanto ela falava. Seria capaz de dar a vida para senti-las em sua pele, pensou com uma desconfortável sensação na virilha. Desde que se divorciara, havia tido encontros quando viajava para resolver assuntos da prefeitura ou da fazenda, mas nunca duraram mais que uma noite. Sabia que eram apenas para satisfazer suas necessidades físicas, mas o vazio que sentia depois o convencera de que não valia a pena ter um relacionamento baseado apenas em atração física. No entanto, abriria uma exceção para a cantora de blues, refletiu ao vê-la levar o copo de água aos lábios. Uma só noite com aquela mulher valeria por toda uma vida! Ao vê-la se levantar e caminhar para a porta, seu olhar deteve-se no movimento sensual dos quadris. Então, deixou o prédio pela mesma porta por onde entrara, saindo sorrateiramente para não ser visto, e caminhou até o sedan vermelho. Encostou-se estrategicamente na porta de forma a bloquear a entrada. Não havia como não encontrá-la se permanecesse ali, e esperaria pacientemente até que ela aparecesse. Se Cooper não estava disposto a revelar o segredo, descobriria por ele mesmo o mistério que envolvia aquela mulher. CAPÍTULO V Tess Braeden observou discretamente enquanto o homem mais sexy que já vira atravessava o salão com a naturalidade típica de quem sabe que pertence àquele lugar. Já tivera oportunidade de conhecê-lo no dia em que chegara a Justice, e sabia que era prepotente e autoritário... No entanto, o fascínio que ele exercia transcendia qualquer defeito de caráter. As roupas manchadas de graxa e a barba por fazer conferiam-lhe uma nota de displicência que parecia aumentar ainda mais o charme dele. Ela quase perdeu o compasso da melodia diante da força devastadora da presença
poderosa. Mas se recuperou e entoou o estribilho da canção romântica como se pudesse acariciar com a voz os músculos vigorosos do tórax largo. Estimulada pela admiração que iluminava os olhos claros, entregou-se à música, satisfeita por perceber que o agradava. Sua voz melodiosa era seu maior orgulho, mas a maioria dos homens raramente reconhecia tal qualidade. Observou-o se recostar ao balcão para fitá-la com intensidade, fazendo seu coração pulsar em um ritmo desenfreado. O desejo que a invadiu enquanto encerrava a primeira parte do show quase a fez se esquecer da letra da música. Deliberadamente colocou mais sensualidade nas palavras, e uma onda de prazer a preencheu ao perceber que ele a desejava. Enquanto cantava, imaginou os lábios sensuais colando-se aos dela, excitando-a enquanto faziam amor. Um misto de decepção e alívio a invadiu ao vê-lo conversar com Cooper e sair. Embora frustrada, a presença daquele homem estava destruindo sua capacidade de concentração. Se ele ficasse encarando-a por mais um segundo, seria capaz de largar o microfone e correr para os braços dele! Depois de cantar a última música do repertório daquela noite, sentou-se ao balcão e sorriu para Cooper, observando-o terminar de contar as notas do caixa. — Você esteve ótima — ele elogiou com um sorriso. — Gostaria de tomar um drinque? — Quero apenas um copo de água sem gelo, por favor. — Apanhou o copo que ele colocara a sua frente e estendeu-o para que a servisse. — Quem era o homem com quem estava conversando? — Você se refere ao rapaz com a roupa suja de graxa? Ela assentiu com um gesto de cabeça. — Fletcher, meu melhor amigo e sócio do Last Call — respondeu, omitindo propositadamente que era também o prefeito de Justice. — Oh, é mesmo? Eu julguei que ele fosse mecânico, ou algo parecido. — Bem, além da sociedade no bar, ele também é... — Cooper calou-se, pensando na melhor forma de definir a profissão sem revelar a verdade. — Ele presta serviços para a comunidade. Tess meneou a cabeça, sem perceber o constrangimento de Cooper. — Não sabia que você tinha sociedade no bar. — Ele atua nos bastidores, cuidando do estoque e da contabilidade, e eu tomo conta do balcão e dos funcionários. — Cooper abriu uma cerveja e tomou um gole no gargalo. — Não sei se é uma divisão justa. Afinal de contas, enquanto eu me divirto, ele negocia com os fornecedores e com o gerente do banco. — Bem, parece estar funcionando. — Tess sorveu um gole de água e indagou no tom mais casual que pôde: — Vocês fizeram essa divisão para que ele fique em casa à noite com a esposa e filhos? — Oh, não! Fletcher não é casado. Tess mordeu o lábio inferior, reprimindo o sorriso de satisfação. Aquilo era tudo de que precisava saber no momento. Despediu-se com um aceno e saiu. Se ele era um dos sócios do bar, era quase certo que o veria novamente.
Contornou a esquina e seguiu para o estacionamento. Ao ver um vulto recostado em seu carro, prendeu a respiração ao reconhecê-lo. Notou que os cabelos louro-escuros estavam molhados e, ao se aproximar, um forte aroma de pinho invadiu suas narinas. Os braços vigorosos estavam cruzados sobre o peito e ele permaneceu recostado na porta do carro, bloqueando-lhe a possibilidade de entrar. A boca sensual curvou-se em um movimento quase imperceptível à medida que ela se aproximava. Tess sorriu secretamente ao pensar que ele havia tentado ficar mais apresentável. Porém, concluiu que nem mesmo se estivesse usando um smoking pareceria tão perigosamente sexy. Em um gesto involuntário, jogou uma mecha de cabelos para trás da orelha e parou ao lado dele. — Por favor, poderia me dar licença, sr. Fletcher? — pediu, tentando dar neutralidade à voz. Ao tomar consciência de que usara um tom sedutor, ficou irritada consigo mesma. Não queria deixar que ele percebesse a reação violenta de seus instintos diante da poderosa masculinidade que exalava por todos os poros do corpo viril. Nunca sentira nada parecido antes, e a atração despertada por aquele homem fazia parecer que todo o ar havia sido drenado do planeta. Uma chama iluminou os olhos claros, e foi o que bastou para destruir qualquer defesa que ela pudesse armar. Ignorando o sinal de alarme que soou em sua cabeça, justificou sua fraqueza dizendo para si mesma que nenhuma mortal seria capaz de ignorar o apelo sexual que emanava daquele homem. — Você sabe meu nome! A voz grave provocou uma onda de calor que a percorreu dos pés à cabeça. — Cooper me disse. — É mesmo? E o que mais ele lhe contou? — Apenas que são sócios do Last Call, mais nada. Mas posso deduzir que, além do bar, você trabalha em uma oficina mecânica. Seria impressão ou um brilho divertido iluminara os olhos claros? — É verdade. — Fletcher deu um passo à frente e a encarou. — Você já sabe tudo a meu respeito, e não é justo que eu saiba apenas o nome do seu cachorro. Ela sentiu a pulsação se acelerar quando os olhos claros percorreram seu corpo de alto a baixo. — Meu nome é Tess Braeden... Ela se calou ao observar todos os músculos do corpo viril se retesarem ao ouvir seu nome, e o brilho sedutor deu lugar à surpresa. A expressão de choque foi como um balde de água fria sobre ela. — Qual é o problema? — Tess Braeden? Neta de Roy Braeden? A moça que... — ele se calou sem saber o que dizer. Tess continuou por ele, dizendo: — ...gastou uma fortuna em telefonemas para a prefeitura, quase implorando para
que o prefeito a atendesse? Aquela que, segundo a definição da secretária dele, estava importunando o ilustre senhor? Sim, sou eu mesma. Pelo que vejo, minha reputação me precede. Tess já ouvira falar que as notícias corriam depressa em uma cidade pequena, mas ficou surpresa ao perceber que até o mecânico sabia seu nome. Com exceção de Cooper, que a contratara sem restrições, ela não parecia ter muito prestígio na cidade. — Aquele homem deve ser um fantasma! Não sei como uma cidade tão acolhedora pôde eleger um prefeito que se coloca em um pedestal e age como se fosse superior a nós, simples mortais! — continuou Tess em desabafo. Fletcher conteve o impulso de retrucar. Aquela mulher atormentara sua vida no último mês, mas não era o momento certo para esclarecer a situação. — Na verdade, eu estava para dizer que você é a herdeira do casarão em ruínas do velho Roy, mas aceito sua resposta. Podemos discuti-la, e... — Não, obrigada. E agora preciso voltar para o casarão em ruínas — frisou as últimas palavras, encarando-o com expressão de censura. — Sinto muito, não quis ofendê-la, mas aquele casarão pode ruir a qualquer momento. Ela abriu a boca para responder, mas reconheceu que ele estava certo. Não havia como argumentar sobre as condições daquela construção. O mais curioso era que, se qualquer outra pessoa ousasse falar mal da velha casa do avô, seria capaz de armar uma guerra. Porém, qualquer coisa que ele dissesse provocava apenas um efeito sobre ela: aumentava seu desejo físico, em sua forma mais pura e irracional. — A responsabilidade por encontrar o prédio em ruínas não é minha. Se o ilustre prefeito da cidade não fosse tão intransigente e concordasse em falar comigo, ficaria sabendo que só tenho boas intenções. — E o que gostaria de falar com ele? — Se ele se dignasse a me ouvir, poderíamos negociar os prazos de pagamento para que eu consiga pagar a dívida. — Ela se calou, irritada ao pensar em seus problemas. — Não sei por que estou falando tudo isso para você! — Bem, talvez eu tenha alguma influência sobre os atos do prefeito... — Não vejo por que ele ouviria o mecânico da cidade! — resmungou, fitando-o em desafio. — E, mesmo que o ouvisse, qual seria seu interesse em me ajudar? — Não entendo vocês, nova-iorquinos... Por que julgam que alguém que oferece ajuda sempre esconde segundas intenções? — Eu não disse que você tem segundas intenções! — vociferou por entre os dentes, furiosa com a capacidade daquele homem em perturbar seu raciocínio. — Eu disse apenas que... Ora, deixe para lá! — Não. Prefiro esclarecer todos os pontos agora. Na certa, vamos nos encontrar com freqüência, já que você trabalha em meu bar — frisou com ironia. — E o fato de ser meu patrão lhe dá o direito de me ofender e humilhar? — Humilhá-la? E o que dizer do seu comportamento, quando desconfiou que eu fosse um marginal? Ela quis responder, mas não encontrou argumentos. Constrangida por ter tido
atitude tão preconceituosa no dia em que o encontrara na estrada, decidiu reconsiderar. — Desculpe, eu não quis ofendê-lo. Estava sozinha e perdida em um lugar desconhecido. Minha reação foi natural, dadas as circunstâncias. Ele a fitou por um longo momento e então sorriu. — Está bem. Aceito suas desculpas. — Ótimo. E agora, se me der licença... — Onde está Marvin? — ele interrompeu, ignorando o pedido. — Ele ficou em casa. — Você sempre o deixa sozinho? — Ele está acostumado. Quando eu viajava em minhas turnês, costumava ficar com Paul... — Ela se calou, arrependida por ter falado mais do que devia. — Quem é Paul? — Não importa. Ele é parte do meu passado — disse simplesmente, surpresa com a veracidade da afirmação. — Preciso voltar para casa. Marvin deve estar se sentindo solitário. Por favor, deixe-me entrar no carro. — Eu também tenho uma fêmea dessa raça — Fletcher informou, em uma evidente tentativa de impedi-la de ir embora. — Que interessante! — comentou com falso interesse, começando a ficar aflita. Aquele homem tinha o poder de irritá-la, mas o pior era que tal sentimento não sobrepujava a atração selvagem que despertava. Ao contrário, a emoção vivida e quente parecia excitá-la ainda mais... Se não fosse embora imediatamente, seria capaz de se atirar nos braços dele! — Sandy tem dois anos e está comigo desde que era bebê — ele continuou, ignorando a aflição dela. — Há poucos cães dessa raça em Justice e creio que ela e Marvin serão bons amigos. — Aposto que sim — comentou com desinteresse, aproximando-se um passo. — Sr. Fletcher, eu realmente preciso entrar no carro. — Está bem. Vou permitir que vá embora. Tess sentiu o hálito doce e quente quando ele se inclinou com uma reverente mesura para se colocar à frente dela e fitá-la em desafio. Quem aquele homem pensava que era para supor que suas ações dependiam da permissão de alguém? Não admitia se submeter à autoridade de quem quer que fosse, especialmente em se tratando de um mecânico rude e machista. Tess porém conteve o ímpeto de discutir. Seu prestígio não era dos melhores, depois das ameaças de chamar a imprensa e processar o prefeito por se recusar a atendê-la. Além disso, em uma cidade pequena como Justice, as notícias espalhavam-se com a velocidade da luz. Não estava disposta a arcar com mais rumores e especulações sobre ela. Estava consciente de que o interesse da maioria dos clientes do bar não se resumia a apreciar seu talento musical. Todos os moradores, sem exceção, estavam curiosos para ver quem era a garota da cidade que reclamava seus direitos em seu pequeno pedaço de mundo. Quando sentiu o toque delicado dos dedos firmes tocando-a de leve para traçar a
linha do queixo, sua capacidade de raciocinar foi reduzida a zero. A indignação deu lugar ao mais puro desejo. — Não tente negar a atração que há entre nós, Tess. Eu soube no momento em que a vi, e isso não acontece todos os dias. Ela engoliu um gemido e forçou suas pálpebras a se manterem abertas. A simples proximidade dele provocava ondas de eletricidade que percorriam seu corpo com o efeito de um raio. Ele despertara a força primitiva do desejo com uma intensidade que deixava seus músculos doloridos. Com esforço sobrehumano, desviou o olhar dos lábios sensuais. — Sr. Fletcher, não sei quais são as regras em sua adorável cidade, mas não pode me impedir de transitar livremente. Nem mesmo o pretensioso prefeito de Justice poderia me impedir. Ele se afastou bruscamente, como se houvesse levado um banho de água fria. — Você não parece disposta a perdoar, não é? — Como poderia? Ele agiu como um verdadeiro prepotente. — Gosto de sua determinação, mas não vejo como o prefeito poderia fazer qualquer coisa por você. — Do que está falando? — Tess ergueu o queixo, colocando uma capa de indiferença sobre seu desejo e obrigando-se a se concentrar. Detestava a idéia de ficar parada na rua vazia, tarde da noite, pronta para realizar suas fantasias mais secretas com um desconhecido. Não estava habituada a discutir seus problemas pessoais, especialmente com homens atraentes e perigosos. A única razão para revelar a Cooper alguns dados pessoais fora pela necessidade de preencher o contrato de trabalho. Com exceção dele, nunca permitira que alguém invadisse sua privacidade. — Você não tem idéia do que o prefeito pode fazer por mim, sr. Fletcher — murmurou, afastando-se da tentação de mergulhar o rosto no peito largo. — E quando encontrá-lo, vai descobrir o que eu posso fazer por ele! Fletcher sentiu os músculos tornarem-se rígidos e apertou os dentes, contendo a fúria. Então, ela achava que poderia seduzir uma autoridade pública para conseguir favores pessoais? Sentimentos que não vivenciava desde que a esposa destruíra sua vida voltaram a aflorar, deixando um gosto amargo em sua boca. Ele teve de se recobrar rapidamente para não cometer algum ato do qual poderia se arrepender depois. Não era o momento certo para dizer que era o homem que ela estava desesperada por encontrar. — Espero que você não esteja insinuando o que entendi, srta. Braeden — disse em tom áspero. — O que quer dizer? — Seduzir alguém para obter favores não é apenas ilegal. É imoral, indecente e baixo. Espero que você tenha respeito e amor-próprio. Ela o fitou com os olhos arregalados, chocada com o que acabara de ouvir. Levou alguns segundos para registrar e concluiu que não passava de uma brincadeira de mau gosto. Como um homem que ela mal conhecia poderia dizer tamanho absurdo?
Encarou-o e ficou ainda mais perplexa. Ele parecia tão calmo e controlado que julgou ter se enganado. Não, não havia dúvidas. Ele insinuara que se tornaria amante do prefeito em troca do pagamento das dívidas do casarão! Amante... A simples palavra representava o maior insulto que já ouvira em toda sua vida! — Você deve estar maluco! Suponho que tirou tal idéia a partir do convívio com as mulheres que conhece! — Engano seu, srta. Braeden. As mulheres que conheço jamais teriam tal comportamento. — Ele sorriu com ironia e cruzou os braços sobre o peito. Tess sentiu-se a ponto de entrar em desespero. Ergueu o queixo e sustentou-lhe o olhar, aparentando uma calma que estava longe de sentir. — Sr. Fletcher, eu... — Fletcher apenas, por favor — ele interrompeu no mesmo tom irônico. — Fletcher, você acaba de dizer que eu seria capaz de dormir com o prefeito para conseguir negociar a dívida que meu avô deixou. Tem idéia do insulto que se esconde por detrás dessas palavras? — Antes que ele pudesse responder, ela estendeu o dedo indicador e o fitou com firmeza. — Como ousa pensar que eu seria capaz de tamanha falta de escrúpulos? Em primeiro lugar, não pretendo discutir com um estranho. Em segundo, com exceção dos faróis vermelhos que atravessei, nunca fiz nada de ilegal em toda minha vida. E não foi por falta de oportunidade, considerando os lugares onde já estive! Ele ouvia sem dizer palavra, fascinado pelos olhos cor de mel. Sua imaginação antecipou o sabor dos lábios acetinados. Na certa, guardavam a mesma doçura do mel que havia nos olhos, e a simples idéia de prová-los incendiou os seus sentidos. Não podia negar que ficara aliviado com a demonstração evidente do forte caráter daquela mulher. Ao mesmo tempo em que a reação explosiva havia acalmado sua fúria, lamentou secretamente ter se enganado. A verdade era que desejava ser seduzido por ela. — Sr. Fletcher? A voz macia, ligeiramente rouca, atirou-o em um redemoinho de fortes emoções. — E por último, sr. Fletcher, saiba que eu... Porém, as palavras foram interrompidas por um beijo quase selvagem. Tess ordenou a todos os músculos que reagissem, mas só conseguiu ficar paralisada enquanto seu próprio corpo a traía covardemente. Trêmula, não conseguiu evitar que um gemido abafado escapasse de sua garganta quando as mãos experientes percorreram suas costas, puxando-a de encontro ao peito másculo. — Não negue a atração que há entre nós — ele sussurrou, interrompendo o contato por um instante. Tess abriu os olhos como se estivesse despertando de um sonho. Contendo o desejo violento que fez seu corpo reagir com a força de uma explosão, recuou um passo e pestanejou. — Tem razão, sr. Fletcher. Há uma forte atração entre nós — admitiu, passando a ponta da língua nos lábios enquanto estendia a mão para abrir a porta do carro.
Ele deu um passo para trás observou-a sentar-se no banco do carro e fitá-lo através do vidro aberto. Em seguida, girou a chave na ignição e sorriu com um brilho de desafio nos olhos. — Mas você terá de trabalhar para que a atração não provoque uma reação que poderá frustrá-lo. Fletcher precisou de alguns segundos para entender o que acabara de acontecer. De súbito, uma inesperada sensação de vazio invadiu seu coração. Ela o rejeitara! Um sorriso brotou em seus lábios até que se transformasse em uma sonora risada. Aquilo nunca lhe acontecera antes! — Está bem, não vou me esquecer — disse por fim, contendo o riso. — Nós nos veremos amanhã. —Não creio. Amanhã é meu dia de folga. As noites de domingo são reservadas para a música country no Last Call. Ele meneou a cabeça e deu uma palmada no capo do carro antes de se afastar. Não precisou olhar para saber que ela o observava. Podia sentir o olhar queimando através da nuca enquanto caminhava em direção à caminhonete. Sim, ele a veria no dia seguinte, e em todos os dias de sua vida, até que desvendasse todos os mistérios daquela mulher. — Tess Braeden... — murmurou ao girar a chave na ignição. — Por que tinha de ser você? Lembrou-se do beijo que transformara seus nervos em um feixe de terminais que convergiam para um único ponto e sorriu ao pensar que fora um simples prelúdio do que poderia viver com ela se soubesse como agir. CAPÍTULO VI O corpo de Tess ardia como se estivesse em chamas. Podia sentir a textura quente e macia das mãos deslizando sobre sua pele, fazendo-a incendiar em lugares secretos. Sentiu o fecho do sutiã ser desabotoado e deslizar lentamente por suas costas e prendeu a respiração quando dedos ágeis contornaram-lhe a cintura. Podia ouvir a respiração de Fletcher abafando as batidas do coração, e desejou que as mãos dele encontrassem logo seus refúgios mais secretos. Seus olhos se iluminaram com um brilho de fogo quando seus olhares se cruzaram. — Faça amor comigo — implorou com um sussurro. Ele apertou o rosto no vale dos seios, e sugou um dos mamilos com volúpia, para
depois procurar a boca úmida e quente, para um beijo apaixonado. A urgência de ser tocada nos recantos mais secretos fez com que Tess mergulhasse os dedos nos cabelos fartos e o conduzisse, em um convite mudo. Ao sentir o toque hábil da língua, achou que fosse enlouquecer, desfrutando de um prazer que nunca experimentara antes. As carícias ousadas a levaram ao delírio e, puxando-o para si, enlaçou-o pela cintura, implorando para que a possuísse. As mãos experientes moveram-se com lentidão por sobre a pele arrepiada do ventre. Em um movimento involuntário, ela arqueou a coluna e suspendeu o quadril, ansiando pelo toque tão desejado. Quando ela julgou que chegara ao limite do êxtase, começou a ouvir um ruído abafado que a desconcentrou. O som tornou-se mais alto e persistente, fazendo com que abrisse os olhos. Tess levou alguns segundos para registrar o quarto iluminado pelos raios de sol que invadiam as frestas da janela. Então se sentou e esfregou os olhos. Tudo não passara de um sonho! Com as imagens ainda na cabeça, pôs-se de pé e olhou para o relógio sobre o criado-mudo. Quem teria a ousadia de bater à porta às sete horas da manhã de domingo? Apoiou-se no corrimão e desceu a escada com Marvin a seu lado. As batidas vinham da porta da cozinha. Quando Tess a abriu, quase não acreditou no que viu. Estreitou os olhos, julgando que a claridade da manhã a enganara. Apesar da irritação por ter sido tirada da cama em plena madrugada, a inesperada visita provocou-lhe uma onda de excitação e prazer. — Bom dia! A voz de Fletcher soou como uma linda melodia. Ela fitou-o de alto a baixo enquanto ele permanecia parado à sua frente. Usava camiseta e calça jeans impecavelmente limpas e a deliciosa fragrância amadeirada mexeu com seus hormônios. Por alguns segundos, julgou que ainda não acordara por completo e que a visão da figura imponente ainda fizesse parte do sonho que tivera naquela manhã. — Pelo que vejo, você não acorda de bom humor. — Ele acariciou o focinho de Marvin e deu espaço para que ele saísse. — Não vou me esquecer disso. — Fico péssima logo após acordar, especialmente antes de ter pelo menos quatro horas de sono, e somente desperto depois de duas xícaras de café. O que você quer tão cedo? Ela pestanejou e colocou a mão para proteger os olhos, sem conseguir focalizá-lo com o sol da manhã incidindo sobre seu rosto. Fletcher notou e sentiu-se grato. Ao menos, ela não poderia testemunhar o estado em que se encontrava. A reação resultava do impacto que sofrerá ao vê-la naquela camisola branca transparente, perfeitamente ajustada às curvas suaves do corpo escultural. A fina peça era presa aos ombros por duas minúsculas alças de cetim, e foi inevitável que,
imaginasse seus dedos rompendo-as para que a camisola caísse ao chão, revelando a nudez que somente insinuava. O decote sugeria seios firmes e bem feitos e a pele alva e macia do colo era um convite para vários beijos. Percorreu-a de cima a baixo, detendo-se nas pernas bem torneadas, e subiu os olhos lentamente para o sensual desenho dos quadris. Nem mesmo sua imaginação fora capaz de antecipar tanta perfeição! Assim que conseguiu respirar novamente, notou que ela dizia alguma coisa. — Desculpe, eu me distraí... O que disse? — Você ainda não me explicou o que veio fazer aqui. — Oh, o que vim fazer aqui? — ecoou, tentando se concentrar. — Vim oferecer ajuda para consertar o telhado. Não se deixe enganar pelo céu azul. A previsão do tempo anuncia chuva iminente. Então, achei que seria melhor começar cedo para estar tudo pronto quando a tempestade chegar. Calou-se de súbito, sentindo-se estúpido como um adolescente. Tess não parecia convencida de sua boa intenção, mas ele não a deixaria impedi-lo de se aproximar. — Vamos ver se entendi: você veio me acordar às sete horas da manhã do domingo para consertar o telhado? — Ela franziu o cenho. — Honestamente, não há o menor sentido nisso! — Como não? O clima da Carolina do Norte muda com a mesma facilidade de um camaleão. E foi ótimo ter vindo, porque... — Porque... — Porque você está incrivelmente sexy nesta manhã. Os olhos de Tess se arregalaram. Só então percebeu que estava vestida com a camisola que mal cobria a calcinha. Horrorizada, cruzou os braços sobre os seios tentando se esconder. — Espere! — Fletcher gritou, erguendo as mãos em um gesto ágil. Porém, antes que pudesse impedir, a porta se fechou com estrondo, deixando-o do lado de fora. Ouviu os passos apressados sumirem no interior da casa e praguejou em voz baixa, arrependendo-se por ter falado mais do que devia. Tess subiu a escada com a respiração ofegante e entrou no quarto, batendo a porta atrás de si. Onde estava com a cabeça ao atender a porta de camisola? Justificou-se dizendo a si mesma que ninguém tinha o direito de visitá-la àquela hora do dia, quando ainda não conseguira despertar completamente. Além disso, não podia sustentar nada além de um modesto ventilador na casa, e o clima estava quente demais para dormir com qualquer roupa mais pesada do que a camisola que estava vestindo. O calor a fizera desejar dormir nua, mas a velha casa precisava de uma reforma completa na parte elétrica. Mesmo não sendo eletricista, era esperta o bastante para saber que aquele lugar poderia pegar fogo a qualquer momento, e seria melhor que estivesse vestida para o caso de ter de sair às pressas. — Sua estúpida! — censurou-se, odiando-se por se expor daquela forma. Porém, a responsabilidade pelo fiasco não era somente sua. Se Fletcher tivesse tido a delicadeza de esperar algumas horas, seus pensamentos não estariam tão confusos e teria se lembrado de vestir o robe. A culpa era dele!
Ao conhecer aquele homem, soubera desde o primeiro instante que ele representava problemas. Escovou os dentes rapidamente e vestiu bermuda de lycra e camiseta, sem se preocupar com os cabelos. Prendeu-os em um rabo-de-cavalo e voltou correndo para a cozinha. Estava tão ansiosa para saber a verdadeira razão da visita de Fletcher ao casarão àquela hora do dia que não se importou com a aparência. Podia ouvi-lo cantarolar na cozinha e, por mais que achasse estranho alguém que acabara de conhecer ficar tão à vontade em sua casa, gostou de saber que ele estava lá. Deteve-se à porta para observá-lo. Ele estava de costas, quebrando alguns ovos em uma tigela sobre a pia. Marvin permanecia sentado ao lado dele, atento à atividade. De tempos em tempos, ganhava uma fatia de queijo e agradecia abanando o rabo. A maleta de couro desgastado ao lado da porta chamou sua atenção. Não a havia visto momentos antes. Não era para menos, pensou. A presença dele a distraíra demais para que notasse qualquer outra coisa além do corpo atlético. Teria ele ido até lá realmente para consertar o telhado? Sorriu com ternura ao refletir que não havia nada mais cativante em um homem do que a dedicação ao lar. Ele parecia ser do tipo que gostava de trabalhos manuais, e ela podia apostar que o trabalho era tão natural para aquele homem quanto respirar. A atração que sentia por aquele quase desconhecido crescia com uma força avassaladora, que não podia ser detida mesmo que tentasse. O curioso era que sempre que estava diante de um homem atraente, os alarmes indicando perigo soavam em sua cabeça como os ruidosos sinos de uma catedral, mas desde a noite anterior, eles permaneciam em silêncio. Ela apoiou-se no batente, mergulhada em seus pensamentos. Desde quando se importava com o perigo? Seus instintos eram sensíveis para tudo que dizia respeito à música, porém, quando se tratava de homens, tornava-se a mais completa idiota. Paul a enganara e nem mesmo o pressentimento de que a traía impedira que se livrasse do sofrimento. Ao menos, ela se sentia mais autoconfiante para a próxima vez que se envolvesse com um homem. A cafeteira já estava ligada, e ela inalou o delicioso aroma de café fresco. Permaneceu ali enquanto Fletcher preparava omelete de queijo com uma habilidade que a surpreendeu. Quando ele se voltou para apanhar um prato no armário, deteve-se para olhar os papéis que ela esquecera sobre uma cadeira. Tess cobriu a boca com as mãos, arrependendo-se por ter sido tão descuidada. Na noite anterior, estava excitada demais para ir dormir e fora para a cozinha tentar escrever a letra de uma canção, inspirada pelo beijo que ainda queimava seus lábios. Imagens difusas misturavam sonho e realidade, e estava tão envolvida pelo que acabara de acontecer que rabiscara frases desconexas sobre o papel. A imagem do homem poderoso perturbava-lhe todos os sentidos e não conseguira colocar duas palavras juntas, quanto mais formar versos... Observou a expressão perplexa enquanto ele lia, esforçando-se para entender o
significado do que estava escrito. Um sorriso curvou seus lábios, e ela prendeu a respiração, lembrando-se da exata impressão que ele provocara-lhe na noite anterior. Nunca um simples beijo fora tão carregado de erotismo! Não fora para menos que sonhara que estavam fazendo amor... Aquele era o homem que a levara ao êxtase durante o sono e a fizera acordar tão aturdida que fora abrir a porta praticamente nua. Fletcher desistiu de entender a poesia e voltou a atenção para a arrumação da mesa, cantarolando a melodia que ela executara na noite anterior enquanto ele a fitava, recostado ao balcão. Quando se virou para colocar os pratos sobre a mesa, os olhares se cruzaram e ele sorriu. — Bom dia! —saudou-a alegremente, puxando uma cadeira para que ela se sentasse. — Que tal se começássemos tudo de novo? — Está bem. Desculpe por bater a porta com tanta força. Eu represento um perigo real quando acabo de acordar. — Eu já percebi! — Serviu-a com uma porção de omelete e uma caneca dupla de café. — Veja se os ovos estão com sal suficiente. Ela experimentou e meneou a cabeça com satisfação. — Está uma delícia! Não sabia que você gostava de cozinhar. — Eu gosto de cozinhar, mas gosto ainda mais de consertar telhados — provocou com um sorriso encantador. — É mesmo? E onde aprendeu a fazer isso? No curso de mecânica de carros? — Humm... Eu diria que sim, considerando que não fiz curso nenhum de mecânica de carros. — Oh! E os clientes da sua oficina sabem disso? — Nunca contei a nenhum deles, e nunca me perguntaram — respondeu, erguendo os ombros. — Mas não acho justo que somente eu revele detalhes sobre minha vida. — Quais detalhes? A verdade é que não sei nada a seu respeito. — Basta saber que estou aqui para ajudá-la. — Ofereceu uma torrada para Marvin e comentou em tom casual: — Gostei mais da roupa que você usava antes. Ela enviou-lhe um olhar gelado como resposta. — Estou certa de que sim. Troquei-me porque costumo usá-la apenas para o carteiro... — provocou com bom humor. — Gosto de proporcionar-lhe um pouco de emoção logo pela manhã. — Interessante. Mas tome cuidado. Embora Justice seja uma cidade pequena, ocasionalmente aparecem alguns vândalos e pervertidos por aqui. — A maioria dos vândalos não bate à porta, Fletcher. Gary Williams colocou uma fechadura nova na porta da cozinha e, se eu não a houvesse destrancado, você não teria chance de entrar. Certifico-me de que tudo esteja bem fechado antes de dormir. Essa sempre foi uma importante técnica de sobrevivência na cidade grande. — Certo. Sinto muito. Sei que você é adulta, mas se outro homem tivesse visto o que vi, não teria conseguido controlar seus instintos mais primitivos.
— Você conseguiu — ela comentou com um sorriso vitorioso. A forma como Fletcher a fitava revelou que não fora fácil tal proeza. — Se você não houvesse fechado a porta a tempo, talvez eu não pudesse refrear meu lado selvagem. Além disso, tem sorte por eu ser um homem honrado. Uma insinuação como essa pode colocá-la em problemas. — Que tipo de problema? Se você tentar alguma coisa, posso correr para meu quarto, trancar-me com meu celular e ficar tranqüilamente esperando a chegada do xerife para levá-lo para cadeia. Invasão de propriedade é ilegal. — Eu só estava tentando protegê-la e alertá-la para possíveis perigos — foi o comentário em tom sereno e calmo. O sorriso que iluminou os olhos verdes a emocionou. Apesar de ser uma mulher independente, acostumada a cuidar de si mesma desde a adolescência, o fato de encontrar um homem que estivesse preocupado em protegê-la a comoveu. Havia algo em Fletcher que a deixava tensa e, ao mesmo tempo, calma e segura, como se nenhum mal pudesse atingi-la enquanto ele estivesse por perto. Tudo naquele homem parecia perfeito e bom e até o clima de provocação da conversa a agradava. A tensão sexual que pairava no ar revelava-se em meias palavras e olhares sedutores, o que tornava a companhia dele ainda mais interessante. — Vou buscar a escada na caminhonete — ele anunciou, erguendo-se de súbito ao sentir receio de não conseguir mais controlar os próprios impulsos. — Prometo que a ajudarei a lavar a louça depois de consertar o telhado. Ela assentiu, observando Marvin seguir alegremente seu novo amigo. Nem mesmo seu cão resistia ao magnetismo daquele homem! Um imenso vazio invadiu-lhe a alma. Como se não bastasse ter quebrado o delicioso clima de erotismo, Fletcher a deixara na mais detestável solidão. Momentos depois, ele voltou com uma escada dobrável e colocou-a ao lado da maleta de couro. — Preciso da sua ajuda para subir no telhado — pediu enquanto ajeitava a alça da maleta nos ombros. Seguiram para o jardim, e ele estendeu a escada para apoiá-la na cobertura da varanda. — Você fez um ótimo trabalho — comentou, olhando ao redor. — Gary Williams fez tudo sozinho. — Ele deixou um canteiro vazio. — Eu pedi que deixasse porque pretendo cultivar petúnias. Ele meneou a cabeça e sorriu com satisfação. — O velho Roy ficaria orgulhoso se a visse. — Obrigada. Eu poderia fazer muito mais se legalizasse a posse do casarão, mas o prefeito continua inacessível. Se ele concordasse em estender o prazo do pagamento dos impostos, poderia hipotecar o casarão e ele seria praticamente meu. — Ela ergueu os ombros, desolada. — Não entendo por que ele me evita. Fletcher sentiu o peito se apertar. Como explicar a difícil situação em que se encontrava? Ceder ao pedido dela era o mesmo que declarar guerra ao próprio pai!
— Bem, vamos ao trabalho! — exclamou como que para si mesmo, fugindo dos pensamentos conflituosos. — Tenha cuidado! — Tess advertiu ao vê-lo escalar a treliça até o topo. Tess ouviu passos cuidadosos pelo telhado, acompanhados por uma seqüência de ruídos abafados que se confundiam com os latidos de Marvin. — Há muitas telhas quebradas por aqui! — ele gritou do alto do telhado. — Por favor, vá até a caminhonete e traga todas as peças para cá. — Você sempre carrega telhas na carroceria da caminhonete? — ela indagou ao voltar. — Sempre! — Fletcher respondeu com uma risada. — Mas há uma explicação para isso. Reformei o telhado do meu sobrado e guardei as telhas que sobraram. Ao vir para cá hoje de manhã, lembrei-me de pegar algumas. Achei que poderiam ser úteis. Ele desceu até a cobertura da varanda e olhou para as telhas ao lado de Tess. — Jogue-as para mim — pediu, posicionando-se para apanhá-las. — Não são exatamente do mesmo estilo, mas devem servir. Tess atendeu-o e, enquanto ele trabalhava, aproveitou para arrancar algumas ervas daninhas que já começavam a brotar nos canteiros. Duas horas mais tarde, Fletcher desceu do telhado com um sorriso vitorioso no rosto. — Pronto! Deve agüentar a próxima tempestade sem problemas. — Vamos para a cozinha. Você merece uma limonada gelada depois desse trabalho todo. Deixaram Marvin dormindo na porta da frente e entraram. Fletcher lavou as mãos e se sentou à mesa enquanto ela preparava o suco. Tess encheu os dois únicos copos que possuía e colocou-os sobre a mesa. Beberam em silêncio, ouvindo apenas o tilintar dos cubos de gelo de encontro ao vidro. — Não sei como agradecê-lo pelo que fez hoje. — Ela rompeu o silêncio, fitando-o nos olhos. O contato visual provocou uma onda de calor que percorreu todo o seu corpo. Os olhos profundamente verdes pareciam hipnotizá-la. — Um beijo seria uma boa forma de agradecer — Fletcher sugeriu em tom provocante. Sem conseguir desviar os olhos, ela se levantou, aproximou-se e mergulhou os dedos nos cabelos macios, ansiosa por sentir os carinhos dele mais uma vez. Cada músculo do seu corpo foi estimulado quando os lábios se encontraram. Tess foi capturada pela intensidade da paixão e correspondeu ao beijo como se quisesse saciar a sede de toda uma vida. Sem interromper o contato, Fletcher se levantou e colocou-a sobre a mesa. Afastou as pernas e encaixou-a junto de si, intensificando a intimidade do abraço. Mergulhando os dedos nos cabelos sedosos, inalou o perfume suave e feminino, enquanto sua língua explorava a doce umidade da boca macia. Um gemido rouco escapou dos lábios de Tess ao sentir as mãos ágeis sob a camiseta, acariciando suas costas com delicadeza. Nos braços daquele homem, sentia sua feminilidade desabrochar com uma naturalidade que jamais experimentara.
A intensidade da paixão quase selvagem que brotava dos recantos mais secretos de seu corpo quase a assustou, tamanho o desejo, até então desconhecido. Fletcher se afastou ligeiramente para deslizar os lábios pelo pescoço, fazendo-a gemer mais alto. — Você está me deixando louco — ele balbuciou com a respiração ofegante. Porém, ela não o ouviu, pois a excitação que sentia a levara para outra dimensão. O êxtase que vivera no sonho que tivera à noite parecia quase nada diante do que sentia nos braços dele. Em um gesto impensado, cruzou as pernas por detrás do quadril estreito, sentindo a aspereza do tecido da calça jeans roçando a pele. O simples contato provocava uma sensação que antecipava o clímax. De súbito, as mãos se afastaram, fazendo com que ela caísse no vazio de um abismo sem fim. — O que estamos fazendo? A voz de Fletcher parecia vir de um lugar muito distante. Ela abriu os olhos, e a realidade se abateu sobre seus ombros com o peso de séculos. Ele havia se afastado e permanecia de costas, como se houvesse cometido o maior erro de sua vida. Sentia-se o pior homem do planeta, não conseguia nem sequer se desculpar por ter perdido o autocontrole. — O que houve? Você se arrependeu? — ouviu-a perguntar, desapontada. Recriminava-se pela impulsividade, mas odiou-se mais ainda por magoá-la. Passou os dedos pelos cabelos, tentando encontrar as melhores palavras para explicar por que não podiam fazer amor. Como ela reagiria ao saber que ele e o prefeito de Justice eram a mesma pessoa? Permaneceu calado, como se todas as palavras de seu repertório houvessem sido esquecidas. O que estava esperando?, pensou com aflição. Uma intervenção divina que reparasse o erro que acabara de cometer? Seus olhares se encontraram, e ele observou as marcas que deixara na pele alva. — Não, não me arrependi. Acho apenas que fui rápido demais. Tess respirou aliviada, alheia ao esforço de Fletcher para conter o desejo que quase explodia seu peito. Estava a ponto de dizer alguma coisa, mas deteve-se com a boca aberta. Apontou para a calça dele e começou a rir. Só então ele percebeu a mancha escura no tecido. Olhou para o chão e seguiu o rastro até a mesa, chegando à jarra de limonada caída, com todo o conteúdo espalhado em sua calça... CAPÍTULO VII
Eu já volto! Tess correu para o quarto, para voltar momentos depois com uma calça de moletom. — Não é nova, mas está seca e limpa. Costumo usá-la quando está frio e é a única peça que serve em você. Pode vesti-la enquanto lavo sua calça. — Não é preciso. Vou ficar bem. — Vamos, não seja teimoso. — Estendeu o moletom para ele. — Não vou precisar até o inverno. Até o inverno?, Fletcher indagou para si mesmo com uma ponta de esperança. Estavam em pleno verão, o que significava que ela pretendia ficar na cidade. — Você ficará confortável, e nós teremos chance de conversar enquanto a máquina de lavar trabalha. A ocasião parecia perfeita. Fora até lá para ajudá-la a consertar o telhado. Cooper dissera que a casa estava cheia de goteiras e parecia uma cachoeira em dias de chuva. Mas esperar enquanto a calça era lavada era a desculpa ideal para se aproximar e saber o que estava planejando. Era uma oportunidade que não podia perder. Ainda não dissera quem realmente era e pretendia fazê-lo assim que encontrasse uma boa oportunidade. Talvez ela não ficasse tão furiosa se soubesse como convencê-la de seus motivos... Sem hesitar, apanhou o moletom e entrou na despensa para se trocar. Mesmo que quase tivessem feito amor na mesa da cozinha momentos antes, sentiu-se constrangido por se despir diante dela. Entregou-lhe a calça manchada e tratou de limpar o chão enquanto ela foi para a lavanderia. Ouviu o ruído abafado do motor da máquina de lavar seguido de passos suaves em direção à cozinha. — Pronto! — Tess sorriu e se sentou à frente dele. — Agora, tudo que temos a fazer é esperar. — Ótimo. Não estou com pressa. — O que você costuma fazer aos domingos de manhã, além de consertar telhados? — Normalmente vou com os rapazes para o campo de futebol e, às vezes, passamos o dia todo lá. Fico na oficina consertando carros, eu e Cooper vamos pescar... Você sabe, diversões típicas de quem mora em uma cidade pequena. — Oh, parece maravilhoso! — Você acha? Pensei que gostasse de opções mais interessantes. — Como o quê, por exemplo? — Bem, como ir ao cinema, teatro, shows, parques... — Acredite, você pode achar que a vida em uma cidade pequena não oferece muitas opções, mas a realidade é que quem mora em uma metrópole como Nova York, por exemplo, quase não sai de casa atualmente. Todos têm medo da violência das ruas e se isolam cada vez mais. — É uma pena — foi o comentário lacônico.
Um silêncio constrangedor pairou no ar até que ele o quebrou. — Sinto muito pelo que acaba de acontecer entre nós. Espero que não aconteça novamente. Ela assentiu, e Fletcher perdeu-se nos olhos aveludados, doces e vividos. Cooper tinha razão. Aquela mulher e sua esposa eram tão diferentes quanto o dia e a noite. Sua ex-esposa não teria se preocupado em ter uma atitude como a dela. Jane jamais pensaria em salvá-lo do constrangimento de caminhar pela cidade com a roupa manchada, e menos ainda estaria preocupada com o seu bem-estar. Olhou-a de soslaio e sorriu discretamente ao notar os cabelos presos em um rabo-de-cavalo, o rosto bonito sem o menor traço de maquiagem e as unhas curtas cobertas por um esmalte transparente. Jane nunca permitira que ele a visse sem arrumar os cabelos ou se maquiar. Gostava da espontaneidade de Tess. A verdade era que ela o agradava mais e mais a cada minuto. Por alguma razão inexplicável, tal constatação o deixou perturbado. Apaixonar-se não estava nos seus planos, especialmente por uma mulher que estava na cidade apenas de passagem. Embora ela achasse interessante a vida pacata e monótona, estava vendo os fatos na condição de turista. Uma mulher independente e dinâmica como ela não se adaptaria à rotina tediosa de Justice. — Estive pensando e acho que você tem razão... Fletcher encarou-a, curioso. — Do que está falando? — Não foi muito inteligente da minha parte atender a porta de camisola. Serei mais cuidadosa na próxima vez. — Você viu as conseqüências de seu ato impensado — ele comentou com bom humor, apontando para a mesa da cozinha. — Oh, não seja tolo! Isso jamais aconteceria se eu não... — Se eu não estivesse apaixonada por você, quase completou, mas se calou a tempo antes de terminar a frase. — Se você não...? — ele quis saber, fitando-a com interesse. — Não importa. — O que você quer de mim, Tess? Ela ergueu as sobrancelhas, surpreendida com a pergunta. — Gosto de você. Acho que eu não poderia ter sido mais óbvia, depois do que acabou de acontecer nesta cozinha... Pela primeira vez em muitos anos, ele sentiu o rosto corar. Olhou pela janela e observou as nuvens acinzentadas escondendo o sol. — Eu também gosto de você e creio que também fui óbvio. — É verdade. Mas acho que deseja realmente saber o que quero com o prefeito da cidade, não é? Ele engoliu em seco, torcendo para que Tess não notasse seu constrangimento. Odiava-se por mentir, mas ainda se sentia inseguro para revelar a verdade. — Não se preocupe, não tenho planos de assassiná-lo — ela explicou. — Sei que os habitantes de Justice o elegeram e devem adorá-lo, a julgar pelo que ouvi de Gary
Williams, e já notei que você também faz parte desse grupo. — Tem razão — comentou laconicamente. — Quero deixar bem claro que não tenho intenção de usá-lo para me aproximar do prefeito, se é isso que o preocupa. — Nunca achei que você pudesse me usar! — exclamou, sentindo-se cada vez mais culpado. — No entanto, talvez eu possa ajudar se me contar por que tem tanta urgência em falar com ele. — Vou lhe mostrar o porquê — disse, levantando-se para apanhar uma valise na sala de jantar. Fletcher não conseguiu tirar os olhos da silhueta esguia e elegante. Ela caminhou com a graça de uma bailarina e colocou a valise sobre a mesa para depois se sentar à frente dele. Parecia não perceber como era sensual quando colocava os cabelos por detrás da orelha, como acabara de fazer naquele momento. — Aqui está a carta que recebi do prefeito quando estava em Nova York. Ele foi categórico em dizer que não havia nada mais a ser feito e se mostrou pouco disponível para me ajudar a encontrar saídas para a situação. Ela estendeu a folha sobre a mesa, e Fletcher sentiu uma violenta contração no estômago ao ver sua própria assinatura, G. F. Granam, ao final da página. Por sorte, era conhecido apenas pelo nome do meio, pensou com alívio. — Depois de descobrir que o casarão estava penhorado e o prazo para pagar as dívidas estava se esgotando, tentei me comunicar com ele por todos os meios possíveis... Ou melhor, quase todos os meios. Decidi que a única alternativa que me restava seria mudar-me para cá e tentar resolver o assunto pessoalmente. Cooper tem grande responsabilidade na minha decisão. Ele me incentivou a vir, além de propor um salário que está bem acima do que eu imaginava. Fletcher respirou fundo. Cooper estava metido naquilo até o pescoço! Fez uma nota mental para ter uma boa conversa com seu Cupido de plantão e voltou a atenção para Tess. — Sei que o prefeito é um homem ocupado, mas, agora que estou em Justice, tenho mais chances de vê-lo. Mas ainda acho que ele está me evitando. Fletcher se inquietou na cadeira, contendo a urgência de revelar a verdade. — Eu soube que o pai do prefeito é líder do Conselho de Segurança de Justice e que formou um comitê para defender a posse do casarão para o novo quartel. — Humm... Cooper lhe contou isso, não é? — indagou, indeciso entre socar o amigo no estômago ou desafiá-lo para um duelo. — Sim. Ele tem sido maravilhoso comigo. Ele não conteve um sorriso secreto ao pensar na armadilha que Cooper havia preparado. Não havia a menor dúvida de que ele estimulara a vinda de Tess para Justice prevendo que poderiam se envolver... Seu melhor amigo era o principal oponente da transformação do casarão em sede do quartel e sabia que encontraria nela uma forte aliada. E ele não se enganara. Aquela mulher era como uma brisa fresca em sua vida. Nunca vivera nada parecido.
— O que mais ele lhe disse? — perguntou com interesse. — Que os moradores de Justice não querem ver o casarão vitoriano transformado em uma repartição pública. — Você tem razão. Porém, se os impostos atrasados não forem pagos, o casarão passará a ser patrimônio público e não haverá nada que o prefeito possa fazer para evitar a realização do projeto. Se ela soubesse da guerra em família que ele quase provocara por defender a integridade do imóvel... Porém, sua autoridade como prefeito não era suficiente para sobrepujar a decisão do Conselho de Segurança. Fletcher permaneceu em silêncio e sua atenção foi capturada pelo movimento sensual dos lábios macios. Sabia que era uma idéia insana, mas desejava fazer amor com aquela mulher lentamente, explorando cada centímetro do corpo bem-feito. Quando deu por si, estava perdido em suas fantasias eróticas e não entendeu o que ela acabara de dizer. — Desculpe, o que você disse? Eu me distraí por um momento... — Eu notei — ela resmungou, aborrecida. — Prometo que vou prestar atenção a partir de agora. — Eu estava dizendo que as dívidas acumuladas se transformaram em uma pequena fortuna, e não tenho dinheiro para pagá-las. Lamento que os advogados de meu avô tenham demorado dois anos para me encontrar. Isso fez com que os impostos ficassem ainda mais atrasados. — E o que pretende fazer para conseguir o dinheiro? Todos sabem que o velho Roy morreu sem ter um tostão. — Bem, eu tentei um empréstimo no banco, mas como não tenho mais do que mil dólares em minha conta, o pedido não foi aprovado. O maior limite do meu cartão de crédito não chega nem perto do valor da dívida... — Ela suspirou, desolada. — Conheci muitos empresários quando trabalhei em Las Vegas e enviei várias fitas com algumas de minhas canções para alguns deles, mas não obtive resposta. — Las Vegas? — Sim. Já trabalhei lá, em um cassino. Acredite, nenhum lugar no mundo oferece tanta chance de se conseguir dinheiro em pouco tempo. Fletcher sentiu o sangue gelar nas veias. Seu maior temor se confirmava: ela desejava ser uma cantora, ganhar dinheiro e ter prestígio e reconhecimento. Poderia usar a voz primorosa para se transformar na estrela que sabia que poderia ser. Ele era uma simples aventura! Estava começando a se tornar óbvio que não o desejava para um papel efetivo em sua vida. Sem que pudesse evitar, a lembrança da ex-esposa voltou a assombrá-lo. Jane representava seu pior pesadelo, enquanto Tess era o mais belo sonho. Porém, era um sonho que nunca se tornaria realidade. Como pudera se enganar tão facilmente? — Ei! Você está aí? Tess movimentou a mão diante dos olhos dele. — Sim. Preciso ir embora — disse com mau humor, levantando-se da cadeira. — Por favor, leve minha roupa para o Last Càll amanhã à noite.
Ela se levantou, colocando-se à frente dele para impedir-lhe a passagem. — Ah, agora entendo... Você não queria nada além de uma aventura passageira, não é? Assim que descobriu que pretendo ficar em Justice, ficou apavorado com a possibilidade de ter uma mulher cobrando algum tipo de compromisso! Fletcher encarou-a, atônito. — Espere... O que você disse? — Não importa. Vá embora! Já percebi que forasteiros não são bem-vindos por aqui. Posso imaginar por que o prefeito se recusa a me receber... No mínimo, ele deve pensar que a garota da cidade grande vai perturbar a paz de seu pequeno paraíso! Ele se esforçou para não deixar que sua amargura a magoasse ainda mais, mesmo sabendo aonde aquela insensatez o levaria. Precisava saber que seus ouvidos não estavam lhe pregando uma peça. Tinha de ter certeza que ela pretendia ficar em Justice. Desde o primeiro minuto em que a vira, imaginara aquela mulher como parte de seu futuro, e a garantia de que queria ficar na cidade era tudo que precisava saber. — Você não vai para Las Vegas? — Claro que não! Eu pretend... Antes que ela pudesse terminar a frase, um beijo apaixonado a silenciou. Ela sorriu quando as bocas se encontraram. Estava tão feliz que se entregou totalmente nos braços dele e só vários minutos depois é que se afastou, ainda com o gosto adocicado nos lábios, lembrando-se de respirar. — Pretendo ficar em Justice para sempre — Tess afirmou com firmeza. Uma risada musical preencheu o ar enquanto Fletcher a puxava para um abraço envolvente. — Quero ficar em Justice, mas isso só será possível se puder pagar a dívida que meu avô deixou. — Ela afastou-se e o fitou. — Enviei algumas fitas para algumas gravadoras, mas não tive resposta ainda. Fui muito insistente com algumas — repetiu o que já havia dito. — Posso imaginar. Já percebi que você é uma mulher obstinada — comentou com bom humor. — Oh, como gostaria que Tom Calinguay ouvisse minhas canções! — exclamou. — Tom Calinguay? — Sim. É um dos mais respeitados empresários do meio artístico. Talvez você já tenha ouvido falar dele... Ele meneou a cabeça de forma vaga. — Eu o conheci em Las Vegas e entreguei-lhe uma fita. Ele pareceu entusiasmado com minha apresentação e cheguei a pensar que me procuraria. — E por que quer que ele ouça seu trabalho, se pretende ficar em Justice? — Não preciso sair daqui para me consagrar como compositora. — Tem certeza de que é isso que quer? — insistiu para testá-la. — É claro que se for para Las Vegas, estará exposta, alguém poderá ouvi-la cantar e lhe oferecer um contrato de gravação. — Não é isso que importa. — Então, o que é?
— Até hoje, dediquei-me a estudar música e a cantar. Já trabalhei em clubes de todo o país desde que era adolescente. Meu pai era pianista e não ficava mais do que seis meses em uma mesma cidade. Eu o acompanhava e já dormi em motéis, no carro e em lugares que você não pode imaginar... Nunca gostei disso! Na verdade, eu odiava não ter uma casa, um endereço fixo, amigos e tudo que uma adolescente normal tem. Fletcher a ouvia atentamente e sua admiração por ela crescia a cada segundo. — Sei que sou uma cantora razoável... — Mais que razoável, Tess. Você é ótima! — Obrigada, mas canto apenas para conseguir me sustentar. — Você não sonha em ser rica e famosa? Ser uma artista poderá proporcionar-lhe tudo isso, com o talento que tem. — Oh, não! Claro que quero ter dinheiro para viver com algum conforto, e quanto a ser famosa... — Ela sorriu com ar sonhador. — Certa vez, em Nova York, apresentei-me na abertura do show de uma banda famosa. Um empresário ofereceu-me um contrato para assinar, mas quando eu disse que não tinha interesse em seguir carreira como intérprete, ele ficou furioso! Fletcher se pôs a imaginar a cena, lembrando-se do efeito devastador que ele próprio vivenciara na noite anterior. — Então, pretende ser compositora — comentou, sentando-se diante dela. — Sim. Adoro compor e prefiro que outros artistas cantem minhas músicas. Justice é a chance que tenho de ter minha própria casa e é por isso que quero ficar aqui para sempre. — É difícil acreditar que você realmente queira trocar o glamour de Nova York pela monotonia de Justice. — Creia, não tenho boas recordações daquela cidade. — Por quê? — Um dos motivos que me fez vir para cá foi ter me separado depois de uma união de cinco anos. — É mesmo? O que aconteceu? — Bem, meu ex-companheiro não era do tipo fiel. Paul é professor na Universidade de Nova York e tem uma atração incontrolável por suas alunas. Creio que ocupar a posição de professor lhe dá ascendência sobre as garotas e ele não resiste quando elas solicitam aulas particulares... — Ela ergueu os ombros e tentou sorrir. — Certa noite, cheguei em casa antes do previsto e encontrei-o em minha própria cama com uma jovem que tinha idade para ser filha dele! — Sinto muito. — Fletcher tocou-a de leve no ombro. Podia imaginar como ela se sentia, afinal também fora traído. No entanto, o que mais o incomodou ao ouvi-la foi o sufocante ciúme que oprimiu seu peito ao pensar que ela já vivera com outro homem. — Talvez tenha sido a melhor coisa que poderia acontecer — ponderou, pensando na própria experiência. — Acredite, esse homem não a merecia. — Richard e Kevin me diziam o mesmo. Fletcher franziu o cenho, curioso. — Eles são os melhores amigos que alguém pode ter. Naquela noite, eles me
acolheram e me consolaram. — Tess sorriu com ternura ao se lembrar. — Para falar a verdade, descobri que não amava Paul no momento em que saí daquela casa. — Você disse que essa foi uma das razões para ter decidido se mudar... Qual foi a outra? — Bem, eu vivi em turnês minha vida toda. Quero um lugar que possa ser meu lar. Graças a meu avô, Justice é esse lugar. Estou aqui há apenas uma semana, mas já aprendi a gostar da vida calma e sossegada, sem contar que tenho muitos planos para o casarão. Um deles é transformar a edícula em um estúdio de som. Você já viu o tamanho daquele espaço? É perfeito! Pesquisei as opções da região e descobri que não há nada parecido em um raio de duzentos quilômetros. — Ela parou para respirar, ofegante. — Ufa! Você deve estar entediado de tanto me ouvir falar. — Ao contrário, estou muito interessado. — Mas não é justo! Você já sabe da minha vida toda, e não sei nem sequer seu primeiro nome. Ele prendeu a respiração. Sabia que aquele momento chegaria. — Na verdade, Fletcher é meu sobrenome. Meu primeiro nome é George — afirmou, incapaz de acreditar que mentia com tanta facilidade. Julgou ter visto um lampejo de reconhecimento no belo rosto e torceu para que ela não associasse o nome a sua assinatura. Por sorte, ela sorriu e ele pôde respirar aliviado. — Vou continuar a chamá-lo de Fletcher. — Obrigado. Meu pai também se chama George, e ninguém me conhece por meu primeiro nome. — Ele tentou sorrir, sentindo as gotículas de suor cobrindo-lhe a testa, e mudou de assunto rapidamente. — Assim como você, eu também já fui casado, mas minha ex-esposa me trocou por um homem rico o suficiente para satisfazer todos os caprichos dela. Tess o fitou longamente, receando encontrar algum traço de sofrimento nos olhos verdes. Porém, eles demonstravam a mais pura indiferença. Aliviada, ponderou que já esquecera a ex-esposa, assim como ela havia apagado Paul de sua vida. — Você pode achar estranho, mas algo me diz que posso confiar em você. Sei que sou uma romântica incorrigível, mas o que posso fazer? Eu sou assim. Tais palavras fizeram-no se sentir o pior homem do mundo. Tentou se justificar dizendo a si mesmo que não mentira. O fato de não dizer seu nome completo fora apenas uma pequena omissão. Percebeu logo que estava tentando enganar a si próprio. Mentiras ou omissões, não importava o nome, revelavam a covardia de um homem, e odiou-se por sua atitude. Descobriu com desgosto que era mais egoísta do que imaginara ser. O ruído da máquina de lavar cessou subitamente, e Tess correu para a lavanderia. Ele respirou fundo, agradecendo ao céu por tê-lo salvado. — Coloquei a calça na secadora — ela anunciou ao voltar. — Estará seca em vinte minutos. — Obrigado. Você está sendo muito gentil. — Ora, imagine! É o mínimo que posso fazer, depois que trabalhou a manhã toda
consertando o telhado. — Gostaria de sair para comer alguma coisa? — perguntou de súbito, motivado pela necessidade imperativa de sair dali. Precisava distrair a si mesmo para não encarar a culpa que crescia a cada minuto. — Oh, eu adoraria! Estava pensando exatamente nisso — ela respondeu com animação. — Ótimo! Por que não troca de roupa enquanto minha calça acaba de secar? — Combinado. Dê-me quinze minutos. Preciso de um banho também. — Antes de sair, ela disse sobre o ombro: — Por favor, coloque água e comida para Marvin. O saco de ração está no armário da lavanderia. Fletcher fez o que ela havia pedido e se sentou à mesa da cozinha para esperá-la. Refletiu sobre a conversa com Tess e sobre tudo que ela lhe revelara. Aquela era a mulher mais decente e honrada que conhecera. Se quisesse ter dinheiro, teria aceitado o contrato do empresário de Las Vegas, entretanto havia optado por ser fiel aos seus sonhos. Seu coração bateu mais rápido no peito enquanto uma idéia começou a ganhar corpo em sua cabeça. Tom Calinguay fora seu colega na universidade. Durante o período em que estiveram juntos, costumavam sair para noitadas e acabaram se tornando amigos. A compleição pequena e franzina de Tom não combinava com seu gênio intempestivo, e havia perdido a conta de quantas vezes o salvara de apuros. Mesmo depois de muitos anos, mantinham a amizade e se viam com freqüência. Claro! Se falasse com o empresário sobre Tess, estava certo de que o atenderia. Ele não estaria usando sua influência pessoal para nada além de chamar a atenção do amigo para um grande talento. Se não gostasse das canções, paciência, não queria nem podia intervir na decisão dele. Lembrou-se de que havia um cartão do empresário no arquivo do escritório. Animado com a possibilidade que acabara de se abrir, telefonou para Cooper para obter a informação de que precisava. Quando ouviu a voz sonolenta do outro lado da linha, Fletcher não lhe deu chance de dizer uma palavra. — Você me paga, Cooper! E eu acreditei que você nunca mais se meteria em minha vida amorosa! — Isso foi antes de descobrir que vocês foram feitos um para outro. — E de onde você tirou isso? — Você vai descobrir por si mesmo, e tenho certeza de que vai me agradecer depois. — Mas não agora. Estou sentado diante da carta que enviei a Tess quando estava em Nova York. Quase tive um ataque do coração ao ver minha própria assinatura nos papéis. — O que ela sabe? — Nada. E não quero nem pensar no que vai acontecer quando ela descobrir quem eu sou!
— Então, você é o prefeito Graham... Ao ouvir a voz que não passava de um murmúrio, Fletcher se voltou lentamente. Tess estava parada à porta, com os olhos arregalados. A fúria que eles irradiavam deixava a certeza de que a tempestade que teria de enfrentar era muito mais ameaçadora do que aquela que acabara de se formar no céu. CAPÍTULO VIII Fletcher estacionou a caminhonete diante do bar vinte minutos depois de deixar a casa de Tess. Seu estado de espírito estava tão negro quanto as nuvens turbulentas que cobriam o céu de Justice. — Fletch? — Cooper ergueu os olhos do jornal sobre o balcão e acompanhou-o com o olhar. — O que houve? Ignorando o amigo, atravessou o salão com passos firmes e determinados, seguindo diretamente para o escritório. — Não vai me contar o que aconteceu? — gritou, contornando o balcão para alcançá-lo. — Eu cometi o maior erro da minha vida! — vociferou, abrindo a porta do escritório abruptamente. — Humm... Então, ela já sabe. — Sim, ela já sabe! — Seguiu para a escrivaninha e sentou-se na cadeira, cobrindo o rosto com as mãos. —Aliás, a toda a cidade já deve saber, depois do escândalo que ela fez! Você não imagina como ficou furiosa. — Você já devia esperar por isso, não acha? — Esperava que ficasse brava, mas o que vi foi muito além de qualquer expectativa. Nunca imaginei que alguém tão doce pudesse ter uma explosão como aquela. E não pense que você escapou! Ela foi bem clara quando disse que também é culpado. — Eu? — Sim, você mesmo! Você é o maior culpado nessa história. Sabia das possíveis conseqüências quando descobríssemos a identidade do outro. — Fletcher suspirou, passando os dedos pelos cabelos. — Aliás, considerá-lo como o maior culpado dessa confusão foi o único ponto com o qual Tess e eu concordamos. — Mas vão me agradecer quando tudo acabar bem e viverem felizes para sempre:— Cooper replicou, preocupado com a opinião de uma das pessoas mais importantes da sua vida. — Se ela deixar a cidade, nunca saberemos se a história teria um final feliz, não é? — Fletcher retrucou em tom cortante.
— Tess não vai embora. — Como pode ter tanta certeza? — indagou, admirado com a confiança sólida que o amigo demonstrava. — Você agiu corretamente ao dizer a verdade. Acredite, depois que a raiva passar, ela nunca mais vai querer deixá-lo. Fletcher massageou as têmporas. Sua cabeça estava a ponto de explodir. — E qual é a sugestão do meu sábio conselheiro para que eu consiga tal feito? — É muito fácil e simples. — Cooper ignorou o tom irônico. — Transforme os sonhos dela em realidade. — Era o que estava tentando fazer quando telefonei para você! Precisava de um número de telefone e liguei para pedir que o encontrasse para mim. — Encarou o amigo, sentindo que sua paciência estava chegando ao fim. — Foi quando Tess ouviu nossa conversa, e então... Bem, você sabe o que aconteceu depois. — Sim, você desligou o telefone e me deixou falando sozinho. — Cooper sentou-se no braço da cadeira à frente da escrivaninha. — Você não devia ter comentado sobre a assinatura da carta sem ter certeza de que estava sozinho. — Meu maior erro foi não ter sido honesto desde o começo. E não adianta culpá-lo, Coop. Eu sei que a responsabilidade é exclusivamente minha. — Eu também assumo minha parcela de culpa. — Ergueu as duas mãos, com expressão constrita. — Talvez tudo tivesse sido diferente se eu... — Agora é tarde para ficarmos nos atormentando. Mas há algo que você pode fazer para aplacar sua culpa... — O quê? — Conte-me tudo que sabe a respeito dela. — Bem, não sei muito... Há cerca de um mês, recebi um telefonema de Tess. Ela se apresentou como a neta de Roy Braeden e disse que consultara a lista telefônica para encontrar os bares de Justice que ofereciam música ao vivo. Como o Last Call é o único da cidade, entrou em contato para saber se haveria oportunidade para uma nova cantora. Fletcher ouvia com interesse, meneando a cabeça de tempos em tempos. — Ela enviou uma fita cassete com algumas canções. Lembra-se de quando eu o chamei para conhecer o trabalho da cantora de Nova York que pretendia contratar? — Sim, eu estava de saída para uma reunião na prefeitura. — Você disse que confiava em minha capacidade de julgamento. Pois então, a cantora era Tess Braeden. Depois de ouvi-la, telefonei imediatamente e, duas semanas depois, ela se mudou para Justice. — Humm. O que mais? — Bem, ela é uma mulher reservada, mas mantivemos contato por telefone por um bom período. Descobri que o pai de Tess morreu há alguns anos e era pianista. Percorria o país tocando em bares de cidade em cidade. Ela não mencionou nada sobre a mãe, mas suponho que também tenha morrido. Pude perceber que é solitária e, quando soube que herdara o velho casarão, decidiu que havia chegado a hora de criar
raízes. — E encontrou em você o estímulo de que precisava — Fletcher concluiu em tom crítico. — Fletch, você saber melhor do que ninguém que sou contra a reforma do casarão. Há muitos terrenos vagos para a construção da nova sede do quartel e não é justo que a cidade perca um de seus maiores bens arquitetônicos. E posso imaginar como se sente a respeito disso, considerando a situação delicada em que se encontra no momento. Fletcher se calou, sabia que Cooper tinha razão. — Tess representa uma aliada fundamental para evitar que isso aconteça. Se conseguir a posse do casarão, ele será preservado para sempre. E, acredite, não precisei me esforçar para convencê-la a vir para cá. — Não? Você apenas garantiu a subsistência dela oferecendo-lhe o emprego! — Você mesmo disse que confiava em minha capacidade de julgamento. Além disso, não sugeriu ainda há pouco que não adianta ficarmos nos culpando? Fletcher respondeu com um grunhido mal-humorado e abriu o arquivo de endereços colocado sobre a escrivaninha. — Certo, prometo que nunca mais o acusarei. — Há alguma coisa que possa fazer para ajudá-lo? — Não, prefiro que fique fora disso — comunicou, olhando no relógio de pulso. — Vou agir do meu modo daqui para frente. — Certo. Estarei no balcão se precisar de mim. — Não vou precisar — Fletcher respondeu, apanhando o receptor do telefone. Observou o amigo fechar a porta enquanto discava o número impresso no cartão que acabara de pegar do arquivo. — Alô? — A voz masculina se fez ouvir depois do terceiro toque. Ele respirou aliviado. Se o plano que tinha em mente desse certo, Tess não só ficaria na cidade como resgataria o casarão em menos tempo do que havia imaginado. Depois da explosão de fúria incontida, Tess expulsou Fletcher da cozinha e correu para o quarto. Julgava-se com todo o direito de estar furiosa e não se arrependia de uma só palavra que dissera. O que aquele homem fizera para mascarar sua mentira fora a pior traição que já lhe acontecera. Não pretendia ouvir a conversa, mas, ao descer do quarto depois de se trocar, ouviu-o mencionar a assinatura no papel que lhe mostrara momentos antes. Então, ficou curiosa e se aproximou em silêncio, detendo-se à porta da cozinha. Ele estava de costas e falava ao celular com Cooper. Ao ouvi-lo dizer que a assinatura era dele, levou alguns segundos para registrar o sentido das palavras. Então, a verdade caiu sobre ela com um peso avassalador. Fletcher e o prefeito Graham eram a mesma pessoa! A descoberta fez com que o sangue fervesse em suas veias, e uma fúria crescente se espalhou por todos os nervos do seu corpo, impedindo-a de raciocinar. Não se lembrava com precisão das palavras que dissera, mas sabia que não haviam sido nada agradáveis. Nem mesmo Cooper havia sido poupado. Por que não lhe contara a
verdade na noite anterior, quando insistira para saber quem era o rapaz com quem conversara durante sua apresentação? — Estúpida! Estúpida! Estúpida! — recriminou-se, andando de um lado para outro do quarto. Como pudera ser tão tola a ponto de quase se entregar para um desconhecido? O homem com quem quase fizera amor momentos atrás era o mesmo havia ignorado suas persistentes tentativas de contatá-lo para resolver a questão da herança! Tess se sentou na beirada da cama e cobriu o rosto com as mãos. Não conseguia entender a razão pela qual Fletcher não revelara ser o prefeito de Justice. Porém, ponderou que não lhe dera oportunidade de se explicar... A confusão de sentimentos despertava uma complexa gama de emoções, que oscilavam entre a mais pura ira ao desamparo absoluto. Mergulhou o rosto no travesseiro e deixou que as lágrimas brotassem em seus olhos. Lembrou-se de quando perdera o pai. Naquela ocasião, julgara que mais nada poderia magoá-la tanto, mas descobriu em pouco tempo que estivera completamente enganada. Joseph Braeden era um homem sensível e sonhador e sua ausência de ambição sempre fora motivo das freqüentes brigas domésticas. Sua mãe não perdoava o marido por não lhe oferecer a segurança de um lar efetivo e queixava-se à exaustão sempre que mudavam de cidade até que, um dia, decidiu não acompanhá-lo. Tess estava com treze anos e optara por ficar com o pai. O contato com a mãe tornara-se cada vez mais distante. A ultima vez que a vira fora aos dezoito anos, em uma turnê pela Costa Oeste, quando era vocalista de uma banda com o pai. Ficara sabendo anos depois que ela havia se casado com um engenheiro que lhe proporcionava a segurança e estabilidade que seu pai nunca seria capaz de oferecer. Desde então, Tess nunca permanecera na mesma cidade por mais de seis meses. Considerava quase um milagre ter conseguido terminar os estudos básicos e ingressar na Universidade de Artes de Nova York. Ao perder o pai em um trágico acidente de carro, já era responsável pelo próprio sustento, trabalhando como vocalista. Ele não lhe deixara nenhum bem material além do velho sedan, mas Tess sabia que seu talento musical era sua maior herança. - Reviu na memória o rosto sereno e o olhar carinhoso do pai. Como desejava que estivesse a seu lado! Talvez fosse o único homem em quem poderia confiar dentre todos do planeta. No entanto, ele também havia omitido fatos de sua história. Quando descobriu ser a única beneficiária do testamento do avô paterno, não pôde evitar uma acusação silenciosa por nunca ter revelado a existência de Roy Braeden, tirando-lhe a oportunidade de conhecer o único membro da família que lhe restava. O sentimento de desamparo e solidão provocou um pranto convulsivo que deu lugar à raiva, renovando suas energias. Levantou-se e se pôs a andar pelo quarto, pensando em alternativas para pagar as dívidas. Apropriar-se daquele casarão havia se tornado uma questão de honra! Embora
fosse sua última escolha, poderia ir para Las Vegas... Não, seria tolice. Não conseguiria o montante necessário para pagar as dívidas em tão pouco tempo. A única saída seria que Tom Calinguay ouvisse suas canções e aceitasse representá-la. Mesmo que levasse algum tempo para ter retorno financeiro, duvidava de que algum banco se recusasse a conceder-lhe um empréstimo ao saber o nome de seu empresário! Porém, ele nem sequer sabia da sua existência! Por mais que pensasse, não conseguia encontrar uma solução. Estava tensa demais para raciocinar, e decidiu que precisava se acalmar. Apanhou o celular e foi para a sacada. Precisava falar com Richard ou Kevin antes que enlouquecesse. — Alô? A voz familiar do outro lado da linha foi um bálsamo para seus ouvidos. — Rick! Oh, você não imagina como eu gostaria que estivesse aqui! — exclamou, sentindo as lágrimas rolarem pelo rosto. — Querida, o que houve? — Você não vai acreditar!—balbuciou, com a voz entrecortada pelos soluços. — Não sei por onde começar... — Que tal começar pelo princípio? Tess, então, contou-lhe tudo que acontecera na última semana, desde o encontro com o atraente desconhecido na estrada até a descoberta de que ele era o prefeito de Justice. — Oh, meu bem... Você deve estar arrasada! — Arrasada? Estou furiosa! Odeio George Fletcher Graham! — Humm... Odeia mesmo? — Rick, pare com isso! Você sabe o que quero dizer. — Claro que sei! Você está perdidamente apaixonada! — Não! Eu me recuso a sentir qualquer coisa por ele que não seja ódio! — Tess, não seja tão severa. A menos que esse homem seja um vigarista, ele deve ter bons motivos para ter mentido. — Ele é um vigarista! — Não creio. Em primeiro lugar, ele foi eleito pela maioria dos votos, segundo o que você mesma disse. E depois, é amigo de alguém que você tem na mais alta conta. — É verdade, Cooper é maravilhoso, mas também mentiu para mim. — Eu não disse? Deve haver um motivo muito forte para isso. — Nada justifica a atitude dele. — Está bem, eu desisto. Mas lamento que você não aproveite a oportunidade de encontrar o amor de sua vida. E uma história tão romântica... — Não vejo nada de romântico em ser enganada! — Oh, e por falar em ser enganada... Paul esteve aqui para trazer o restante de seus pertences. Ele estava abalado com a separação e disse que seria capaz de fazer qualquer coisa para que você voltasse. — Nunca! — Tess quase gritou, e a menção do ex-marido aumentou ainda mais a sua fúria. — Você não disse nada sobre meu novo endereço, não é? — Bem, você sabe como eu sou... Quando dei por mim, havia mencionado o nome da
cidade, e... — Oh, Rick! Por que fez isso? — Não se preocupe, ele não sabe nem sequer que Justice se localiza na Carolina do Norte! — Obrigada por não lhe dar meu telefone — ela disse com ironia. — Querida, eu jamais faria isso! — ele reclamou, ofendido. — Mas não me surpreenderia se ele aparecesse por aí... — Oh, meu Deus! Era só o que me faltava! Já tenho problemas demais para me preocupar com Paul. — Como está o casarão? — Rick indagou, em uma tentativa evidente de mudar de assunto. — Bem, depois de quase me matar em uma faxina que só acabou na sexta-feira, já está habitável. Não posso mexer na estrutura do prédio, mas o jardim está começando a ficar bonito. Você e Kev precisam vir aqui! — Claro que iremos! Não vejo a hora de conhecer seu novo lar. — O prédio é uma verdadeira obra de arte, sem falar em alguns móveis que meu avô deixou. O quintal é um sonho! Há um pomar com várias árvores frutíferas e um espaço fechado por uma cerca de madeira para a horta. E há uma edícula gigantesca nos fundos. Vou transformá-la em um estúdio de som. — Tess, que idéia fantástica! — Estou com muitos planos, Rick. Nunca me senti tão bem em toda minha vida. Você não imagina como estou feliz por ter uma casa para poder transformar em um lar! — Ela suspirou. — Só espero conseguir pagar as dívidas. Não posso nem pensar em perder o casarão, especialmente por saber que será transformado na sede de um quartel. — Isso seria um crime! O povo de Justice não tem a menor noção sobre a necessidade de conservar o patrimônio cultural da cidade. — Não culpe os moradores daqui. A culpa é daquele mentiroso, cretino, bastardo... — Chega, Tess! Não estou disposto a ouvir seu repertório de palavrões! — Desculpe. É que não consigo me conter quando me lembro do que Fletcher fez comigo! — Está bem, mas vamos mudar de assunto. Conte-me sobre Marvin. — Oh, ele está ótimo! Adorou a mudança para cá. — Ela olhou pela porta da sacada, tentando avistá-lo no jardim. — Acho que vou dar uma volta com ele. — Faça isso. Uma boa caminhada fará com que se acalme. Tess se despediu sentindo-se um pouco melhor. Desceu a escada e foi à lavanderia apanhar a coleira de Marvin. Chamou-o diversas vezes, sem o menor sinal dele. Foi ao jardim, notou que o portão estava entreaberto e imaginou que saíra para dar uma volta. Ela ergueu os ombros, frustrada, e voltou para o interior da casa entediada por não ter o que fazer. Passava das duas horas da tarde, e o tempo parecia se arrastar. Decidida a fazer alguma coisa para se ocupar, foi para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Ao menos, enquanto cortava os legumes, podia extravasar a raiva que George Fletcher
Graham fizera brotar em seu peito. Fletcher apanhou uma cerveja gelada e sentou-se na cadeira de balanço da varanda com Sandy a seus pés. Mesmo após a separação com Jane, optara por continuar na casa que havia alugado depois do casamento. Embora houvesse reformado a magnífica sede da fazenda com intenção de se mudar para lá, as atribuições como prefeito o obrigavam a se manter o mais perto possível dos acontecimentos de Justice. Não se importava em pagar o aluguel, especialmente porque contava com uma garagem grande o bastante para abrigar todo o equipamento de sua oficina mecânica. Se aquele fosse um domingo comum, era lá que deveria estar. Porém, depois da explosão de Tess ao descobrir que mentira sobre sua identidade, não conseguia se concentrar em nada que exigisse o funcionamento de mais de dois neurônios. Ajeitou-se na cadeira e estendeu os pés sobre a amurada da varanda. O pôr-do-sol estava especialmente bonito naquela tarde, depois da tempestade que caíra sobre Justice. Ele riu com amargura, pensando no contraste entre o exuberante entardecer e seu estado de espírito. Tess Braeden... Quem diria que o velho Roy tinha uma neta tão atraente? As lembranças do beijo que haviam trocado naquela manhã invadiram sua memória, porém ele refreou o curso dos pensamentos. Não queria alimentar o sentimento que brotara em seu coração, mesmo sabendo que não havia como esquecer aquela mulher estonteante. E pensar que ele próprio era o culpado pela confusão em que sua vida se transformara! Se houvesse atendido aos telefonemas de Tess, ela não teria se mudado para Justice... E ele não teria se apaixonado! Mas sabia que não havia mais como voltar atrás. De um jeito ou de outro, ela transformaria sua vida em um inferno. Se negociasse a dívida, haveria uma chance remota de que lhe perdoasse, mas ele teria de se haver com o Conselho de Segurança e, especialmente, com o pai. Se não negociasse... Bem, se não negociasse, poderia esquecer Tess de uma vez por todas. Forçando-se a mudar o curso de suas idéias, se pôs a refletir sobre o telefonema que fizera antes de sair do Last Call. Se o que estava planejando desse certo, seus problemas poderiam se resolver antes de se transformarem em uma catástrofe irreparável. Não queria que o velho casarão deixasse de ser o orgulho de Justice, retratando a beleza vitoriana e mantendo viva uma antiga tradição da cidade. Com um suspiro desolado, ajeitou-se na confortável cadeira e bebeu lentamente a cerveja gelada. A ironia de tudo era ter de brigar com o próprio pai para preservar as memórias da cidade onde nascera. Na qualidade de prefeito, havia adiado ao máximo o momento de desapropriar o imóvel, mesmo antes de Tess entrar em sua vida. — Tess — murmurou baixinho, como se o som daquele nome fosse uma doce carícia. Se ela fosse embora, sua vida nunca mais seria a mesma. Tal pensamento fez com que um estranho sentimento de solidão o invadisse, como se algo grande e profundo
pudesse se perder para sempre. Estava absorto em seus pensamentos quando ouviu latidos ao portão e Sandy se pôs de pé, em alerta. Caminhou até lá e se deparou com Marvin abanando o rabo alegremente. — Olá, companheiro! O que faz aqui? — Abriu o portão e deixou que o cão entrasse. — Você veio me visitar? Sua dona sabe disso? O cão passou por ele sem se deter e foi ao encontro de Sandy. Fletcher riu ao ver os dois se farejarem para, a seguir, saírem correndo pelo gramado. — Amor à primeira vista... Eu sei como é isso, rapaz — comentou com bom humor. — Aconteceu o mesmo comigo. Só espero que tenha mais sorte do que eu. Voltou a se sentar para terminar de tomar a cerveja quando a campainha do telefone soou. Minutos depois, voltou para a varanda com um sorriso de satisfação nos lábios. Acabara de confirmar que a primeira parte do plano daria certo... Só restava convencer Tess a participar desse plano. CAPÍTULO IX Tess foi para a varanda e respirou o ar fresco da noite. Chamou Marvin mais uma vez, sem obter resposta. Não o via desde aquela manhã, e a comida dele permanecia intocada na vasilha. Embora Justice fosse uma cidade pequena e ele usasse coleira com identificação, começou a se preocupar. Talvez estivesse perdido, ou então, poderia ter acontecido um acidente... Ela meneou a cabeça, afastando tal idéia. Não podia nem sequer pensar em perder seu cachorro de estimação. Tentou se convencer de que estava passeando pela cidade e deixou a porta da cozinha aberta para que ele entrasse ao chegar. Quando os primeiros raios de sol invadiram o quarto, ela se pôs de pé e correu para a cozinha, na expectativa de encontrá-lo. Para sua decepção, ele não estava lá. Tess voltou para o quarto e começava a se vestir, disposta a sair para procurá-lo. O ronco de um motor chamou sua atenção e ao ouvir o latido familiar quando o motor silenciou, deu um grito de alegria. — Marvin! Abriu a porta dupla da sacada e observou a caminhonete estacionada diante da casa. Porém, em vez de um, eram dois os cachorros na carroceria. Marvin saltou para o chão e correu para o gramado com o outro cão atrás de si. Ansiosa para recebê-lo, ela calçou as sandálias e vestiu-se às pressas, penteando os longos cabelos com os dedos enquanto descia a escada. Não conhecia aquela caminhonete, mas seria capaz de dar um beijo na pessoa que trouxera seu cão de volta para casa. Ao abrir a porta da frente, surpreendeu o homem do outro lado no exato
instante em que ele erguia a mão para bater. — Bom dia! Ela prendeu a respiração ao se deparar com Fletcher. Ainda não estava preparada para vê-lo, e seu corpo reagiu violentamente diante da presença poderosa. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Marvin entrou como um furacão e, com um salto ligeiro, colocou duas patas nos seus ombros, saudando-a com uma profusão de lambidas no rosto. — Oh, querido, eu também estava morrendo de saudade! Nunca mais faça isso comigo! — ela murmurou, agachando-se para abraçá-lo. — Por onde você andou? Como se tivesse entendido a pergunta, ele virou o focinho na direção do jardim e começou a latir. — Esta é a cadela da qual lhe falei — Fletcher anunciou quando Sandy apareceu na varanda. — Oh! Venha cá, deixe-me cumprimentá-la. Você é um doce! — exclamou, acariciando-a. — Linda! Estou encantada com você, princesa! — Creio que Marvin concorda com você. — O que quer dizer? — indagou, pondo-se de pé. — Ele apareceu em minha casa ontem à tarde. Creio que farejou meu rastro depois que saí daqui — disse em tom de explicação, erguendo os ombros. — Então, conheceu Sandy e foi amor à primeira vista. Acontece que ela estava no cio, e... Bem, o resto você pode imaginar. — Meu Deus! Não me diga que eles cruzaram! Fletcher meneou a cabeça em afirmativa com ar de cumplicidade. — Oh... E você não se importou? — Claro que não. Marvin é um animal magnífico e este é o terceiro cio de Sandy. Ela já está madura para cruzar, e seria muito difícil encontrar um macho da mesma raça nesta região. — Que malandro — murmurou, rindo ao vê-lo correr pelo jardim com a nova namorada. — Parece que eles se entenderam muito bem! E eu aqui, morrendo de preocupação, enquanto ele namorava... — Eu não quis trazê-lo ontem antes que terminassem a lua-de-mel. — Claro. Seria muita crueldade. — Tess cruzou os braços sobre o peito, evitando encará-lo. — De quem é a caminhonete? — É minha. Costumo usá-la apenas para ir à fazenda, mas não quis encher a picape nova de pêlos dos cães. Ela meneou a cabeça sem dizer nada. Olhou para os animais correndo alegremente e respirou aliviada. Sabia que devia agradecer a Fletcher por ter cuidado de Marvin e o levado para casa, mas a raiva que ainda sentia não deixava espaço para gratidão. — Você ainda está brava comigo ou está só sob o efeito do mau humor matinal? — ele indagou, tentando quebrar o clima tenso. — Ambos — declarou ela, fechando ainda mais a expressão. — Tess, quanto ao que aconteceu ontem... — Pare, por favor! — Ela ergueu a mão em um gesto autoritário. — Se pensa que o
fato de ter deixado Marvin namorar sua cadela e de trazê-lo para casa é o suficiente para lhe perdoar, está muito enganado! — Não peço que me perdoe. Peço apenas que me ouça. — Não vou ouvi-lo! — Tess, por favor... Dê-me uma chance, em nome do velho Roy. Ela se forçou a conter a fúria e refletiu que ele não desistiria enquanto não conseguisse sua atenção. O melhor a fazer seria deixar que falasse tudo que quisesse. Ouviria com atenção, diria adeus e nunca mais pensaria em George Fletcher Graham em toda sua vida, concluiu por fim. — Está bem, fale. Você tem cinco minutos — anunciou, com o olhar fixo em um ponto invisível no céu. — Ótimo! É mais do que suficiente. — Ele respirou fundo, rememorando o discurso que havia decorado durante a noite de insônia. — Bem, não vou pedir desculpas por ter mentido para você. Fui egoísta e covarde, admito, e não há nada para alegar a meu favor. Ela concordou enfaticamente com um meneio vigoroso da cabeça. — Certo, sou réu confesso, mas ontem, depois que você me expulsou da sua casa... — E da minha vida! — ela completou com rancor. — Sim, e da sua vida, fui para o bar e tratei de tomar providências para reparar meu erro. Tess o fitou pela primeira vez desde que ele chegara. A doçura dos olhos cor de mel quase o desconcentrou, mas Fletcher se manteve firme ao propósito de esclarecer todos os mal-entendidos. — Você sabe que mesmo sendo o prefeito não tenho o poder de tomar decisões sozinho. Adiei a apropriação deste imóvel ao máximo, mas há leis na cidade, e não posso simplesmente ignorá-las. — Sim, mas pode negociá-las. — Não posso, Tess. Se eu fosse segui-las rigidamente, o velho casarão já teria sido tomado há mais de um ano. Vali-me da Sociedade Histórica da Carolina do Norte para adiar as medidas legais, mas o prazo chegou ao limite. Se as dívidas não forem pagas dentro de pouco mais de um mês, não há mais nada que eu possa fazer. — Oh, meu Deus! Por que não me disse antes que não há mais nada a fazer e que não pode me ajudar? — Bem, porque ainda há uma saída, e eu posso ajudá-la. — Como? Ao vislumbrar os olhos de mel se iluminarem com um brilho dourado, o peito de Fletcher se encheu de alegria. — Que tal se entrássemos e tomássemos um café enquanto eu lhe conto todos os detalhes? — Fletcher sugeriu, aproveitando para ganhar tempo. Quem sabe se, depois de uma boa xícara de café, só restasse a irritação pela atitude dele?, pensou esperançoso. Ao menos, teria uma redução de cinqüenta por cento, considerando que metade da indisposição em ouvi-lo devia-se à falta de cafeína. Tess refletiu por alguns segundos, e o interesse em saber qual seria a saída foi
mais forte do que a mágoa. — Está bem, mas não pense que esqueci tudo que me fez passar! Fletcher ergueu os ombros e a seguiu para o interior da casa, desejando que ela aceitasse sua proposta. Tess ligou a cafeteira elétrica e se sentou na cadeira à frente dele. — Estou ansiosa para ouvir o que tem a dizer — anunciou com expressão fechada. — Bem, como você mencionou que gostaria que Tom Calinguay conhecesse seu trabalho, tomei a liberdade de ligar para ele e... — Você conhece Tom Calínguay? — Sim. Fomos colegas na universidade e nos tornamos amigos. O fato é que falei com ele ontem e o convidei para vir até aqui. — O quê? Ele sabe onde fica Justice? — Sim. Ele costuma vir para cá no meu aniversário. — Quando é seu aniversário? — Foi há um mês, mas isso não vem ao caso. O convite é para que venha especialmente para conhecê-la. — Você deve estar brincando! — Nunca falei tão sério em toda minha vida! Ele está a caminho. Vou fazer uma pequena reunião em minha casa hoje à noite, e Tom estará presente para ouvi-la cantar. Tess levantou-se para servir o café, sem acreditar no que acabara de ouvir. Suas mãos tremiam tanto que quase derrubou a jarra com a bebida fumegante. Encheu duas xícaras e estendeu uma para Fletcher, recostando-se na pia. — Você tem idéia do que isso representa? — perguntou depois de um longo silêncio. — Sim. Representa a solução dos nossos problemas. — Nossos? — Se você conseguir sanar as dívidas do casarão, a prefeitura não poderá desapropriá-lo. Eu não terei de entrar em confronto com meu pai, já que não haverá mais nada a fazer, e Justice também sairá ganhando por não perder um marco da era vitoriana. — Entendo... Então, a verdade é que não está fazendo isso para me ajudar! Você só quer se livrar de sua própria crise familiar — Tess pronunciou as palavras lentamente, como se ela própria precisasse entendê-las. — Seu egoísta! E cheguei a pensar em lhe perdoar! — Tess, não é nada disso! Por favor, não deixe que o ressentimento atrapalhe seu julgamento. Ela colocou a xícara com tanta força sobre a pia que por pouco não a quebrou. Pôs-se a andar pela cozinha, tentando conter o turbilhão de emoções que a confundia. Se Tom Calinguay gostasse de suas canções e aceitasse ser seu empresário, era quase certo que conseguiria resgatar o casarão. Fletcher tinha razão, pensou com esforço. Não podia permitir que a mágoa que oprimia seu peito destruísse seu futuro. — Está bem — disse por fim, sem demonstrar entusiasmo.
— Ótimo! Passarei aqui às sete horas da noite para pegá-la. — Ele se levantou e seguiu para a porta, detendo-se com a mão na maçaneta. — Sandy poderia ficar aqui até à noite? — Claro. Não é justo atrapalhar o romance dos dois. — Obrigado. Até mais tarde. Tess não disse nada, observou-o se afastar sem saber se ria ou se chorava. No dia anterior, havia jurado a si mesma que jamais falaria com ele novamente, e menos de vinte e quatro horas depois, era obrigada a agradecê-lo por tentar salvar seu futuro! Mas nada a obrigava a confiar novamente em Fletcher! Se ele esperava ser absolvido para que ela se atirasse em seus braços, estava muito enganado! E pensar que estivera a um passo de fazerem amor... Nunca se perdoaria por ter se exposto tanto; e nem por se apaixonar tão intensamente. — Não! Não estou apaixonada! — gritou, tentando se convencer. Porém, a verdade insistente que ecoava em sua cabeça não podia mais ser ignorada. Amava Fletcher Graham com toda a sua alma! Fletcher sentiu-se ridículo por estar agindo como um adolescente no primeiro encontro. Alisou o tecido da camisa e olhou mais uma vez para seu reflexo no espelho. Apanhou a loção pós-barba e aplicou mais algumas gotas no rosto. — Não é um encontro — disse em voz alta ao sair do quarto. Depois de sair da casa de Tess naquela manhã, havia passado no café Jolly's Diner para falar com Molly. A cozinheira sempre se incumbira dos pratos das festas em sua casa. Combinaram o cardápio, que incluiria canapês, três tipos de salada, galinha e torta de chocolate. Ao chegar em casa, sentara-se ao lado do telefone para convidar os amigos mais íntimos para a reunião e colocara todo o estoque de vinho de que dispunha para gelar. Ao final da tarde, depois de buscar Tom Calinguay no aeroporto de Lexington, estava tão exausto que mal podia se manter em pé. Porém, tudo que importava era salvar o velho casarão e seu amor-próprio, pensou enquanto descia a escada. Antes de sair, passou pela cozinha para se certificar de que os preparativos estavam adiantados e instruiu Molly a receber os convidados enquanto ele não chegasse. Pediu que acordasse Tom Calinguay em dez minutos e saiu. O familiar sentimento de apreensão voltou a incomodá-lo quando parou o Mercedes conversível diante do casarão. Marvin e Sandy correram para recebê-lo e deteve-se alguns minutos para dar atenção aos cães. — Não posso dizer que não tive uma recepção calorosa — disse para si com um sorriso de ironia. Tocou a campainha e se sentou nos degraus da varanda. Respirou fundo ao ouvir o rangido da porta se abrindo, levantou-se e se preparou para o impacto que a simples visão daquela mulher costumava provocar. Porém, quando viu Tess nem mesmo um exército seria capaz de conter a explosão de seus hormônios. — Boa noite.
Passou por ele deixando um rastro de perfume e guardou a chave na bolsa. Ela prendera os cabelos com uma presilha no alto da cabeça, e os cachos bem-feitos caíam sobre os ombros delicados. Usava maquiagem leve, que apenas valorizava os traços perfeitos. Como se tivessem vida própria, seus olhos deslizaram pelo corpo escultural, moldado pelo vestido preto que se ajustava como uma segunda pele. Acariciou com os olhos a curva do quadril, deslizando para as pernas longas. Os pés delicados estavam calçados com sandálias de tiras finas e salto alto. — Comportem-se, crianças — ela advertiu, despedindo-se dos cachorros. Caminhou para o portão e se voltou para Fletcher, fitando-o longamente como se estivesse esperando que terminasse de avaliá-la. — E então? Minha roupa está adequada? — Está perfeita! — exclamou, surpreso por conseguir falar. Fez um gesto para que Tess seguisse à frente e fechou o portão, sentindo-se completamente aturdido pela proximidade. Esperava que ela não notasse o esforço sobre-humano que impôs a seus instintos básicos para resistir à urgência de tocá-la, quando se adiantou para abrir a porta do carro. — Oh... Mais um modelo da sua coleção — ela comentou ao ver o Mercedes. — Confesso que os carros são uma de minhas paixões. Ele se arrependeu no mesmo instante em que acabou de pronunciar as palavras. Se lhe perguntasse quais eram as outras, seria obrigado a revelar a verdade. Tess Braeden era sua maior paixão e, ao vê-la tão perto, desejou poder voltar no tempo para começar tudo de novo, sem magoá-la. — Marvin não liga mais para mim depois que conheceu Sandy — ela resmungou, olhando para trás quando o carro se afastou. — Eu não tiro a razão dele — Fletcher comentou com bom humor. — Nem eu, mas estou com ciúme. —Tess abriu o vidro e respirou o ar puro da noite. — Tom Calinguay já chegou? — Sim. Fui buscá-lo no aeroporto de Lexington hoje à tarde. — Oh, meu Deus! Então, ele está mesmo em sua casa! — Ela suspirou fundo em um esforço evidente para se acalmar. — Estou nervosa! Nunca pensei que alguém tão importante viajaria centenas de quilômetros para me ouvir cantar! Ele olhou de soslaio para a mulher confiante e independente a seu lado e subitamente viu, pela primeira vez, a fragilidade que se escondia em sua alma. Seguiram em silêncio pelas ruas quase desertas até que ele estacionou diante de um encantador sobrado, com um jardim impecável. O burburinho animado que vinha do interior deixou-a ainda mais tensa, a ponto de não conseguir mover um só músculo do rosto. — Por que está tão preocupada? — ele indagou, tocando-a de leve no ombro. — Sua voz é maravilhosa e poucos artistas têm o seu talento. — Mas a casa parece estar cheia de convidados... — Há no máximo trinta pessoas e a maioria já viu sua apresentação no Last Call sábado. — Ele tomou as mãos geladas entre as suas e disse com ternura: — Confie no
seu talento, Tess. Acredite, você pode mais do que imagina. As palavras tiveram efeito mágico sobre ela. Respirou fundo, sentindo-se mais tranqüila. Era exatamente aquela atitude que havia esperado do ex-marido, sem nunca ter conseguido uma palavra de estímulo. No entanto, um homem que mal conhecia tivera a sensibilidade e a delicadeza de fazê-lo. — Vamos entrar? Todos estão ansiosos para vê-la. — Todos? Quem está em sua casa? — Além de Tom, convidei o pianista do Last Call para acompanhá-la, os rapazes com quem jogo futebol, alguns funcionários da Prefeitura e meus pais. — Seus pais? — Não se preocupe. Mamãe é incapaz de distinguir uma só nota musical e papai está completamente surdo. Ela riu com vontade, e o som da risada soou como melodia. — Vamos entrar? — ele indagou, esperando que ela tomasse a iniciativa de sair do carro. — Vamos. Ele se apressou em descer primeiro para abrir a porta. — Sua casa é linda! — Tess comentou enquanto ele abria o portão. — Essa casa não é minha. — Eu pensei que... — Eu quis dizer que é uma casa alugada. Mudei-me para cá depois de me casar, e preferi continuar aqui quando me separei. Ela não disse nada, mas se pôs a refletir sobre o que teria acontecido para que o casamento não tivesse dado certo. Que mulher, em sã consciência, deixaria um homem como aquele? Seguiu-o para o interior da casa, desejando apenas que seu desempenho não o decepcionasse. Tess acordou com os latidos de Marvin no jardim. Espreguiçou-se lentamente, sentindo o peito estourar de alegria ao se lembrar da noite anterior. Sua apresentação fora um total sucesso! Para sua surpresa, Fletcher possuía um piano de cauda que havia herdado da avó materna e o pianista do Last Call conseguira acompanhá-la à perfeição. Os pais de Fletcher eram adoráveis. O velho general, embora fosse um homem aparentemente rígido e de poucas palavras, era extremamente educado e gentil e a tratara como se fosse membro da família. Simpatizara com a sra. Graham no instante em que a conhecera. A bela senhora com o olhar mais doce e terno que ela já vira a fizera prometer que jantariam juntas para lhe mostrar a coleção de blues de que tanto se orgulhava. Depois do magnífico jantar, os convidados se aglomeraram ao redor do palco improvisado ao centro da sala de estar. Dentre eles, o mais atento era Tom Calinguay. Tentou ignorar a presença dele, mas não pudera deixar de observá-lo enquanto cantava uma de suas canções. Notara o sorriso de aprovação assim que terminara a primeira música do repertório. Vira quando ele comentara alguma coisa ao ouvido de
Fletcher, meneando a cabeça como se estivesse aprovando o que ouvia. Ao final da apresentação, fora cumprimentá-la e se comprometera a ouvir as letras da fita que ainda guardava consigo. Fletcher a levara para casa por volta das duas horas da madrugada e o único momento frustrante da noite perfeita fora que nem sequer lhe dera um beijo de despedida. Tess esticou os braços preguiçosamente antes de se levantar, curiosa com o insistente ladrar dos cães. Olhou pela fresta da porta veneziana e ao ver o vulto parado ao portão, quase soltou um grito. — Paul! — reclamou, mal acreditando no que seus olhos viam. — Oh, Rick, você não perde por esperar! Lavou-se e se trocou sem pressa antes de descer a escada. — Olá, Tess! — Paul acenou com um sorriso largo no rosto ao vê-la abrir a porta. — O que está fazendo aqui? — Deteve-se nos degraus da escada e cruzou os braços sobre o peito. — O que há com você? Viajei a noite toda para vir encontrá-la, e sou recebido assim? Ele abriu o portão e entrou, agachando-se para saudar Marvin e Sandy. — Olá, rapaz! Você arrumou uma namorada? Que bom que ainda se lembra de mim — comentou com amargura. — Sua dona, ao contrário, parece que já esqueceu tudo que vivemos. Tess mediu-o de alto a baixo, não sentindo nada além de indiferença. — Entre — convidou, cedendo às regras de boa educação. — Puxa, que casarão macabro! — Ele olhou ao redor, assustado. — Você não sente medo por ficar sozinha? — Em primeiro lugar, este prédio é uma verdadeira obra de arte vitoriana... — Ela suspirou, desanimada. — Não sei por que estou tentando dar alguma explicação. Você nunca se preocupou com nada que não fossem seus próprios interesses! — Não seja injusta! Eu lhe ofereci uma casa e a segurança de que você precisava. — Seguiu-a até a cozinha sem se importar com a recepção fria. — Ouça, eu sinto muito pelo que aconteceu. Desde que você partiu, não paro de pensar em como fomos felizes juntos... Sem se comover com o tom de súplica, ela ligou a cafeteira e pegou o pote com torradas do armário. Sentou-se à mesa e mordiscou calmamente uma fatia. — Tess, dê-me uma nova chance! Prometo que nunca mais vou decepcioná-la! — Foi por isso que veio até aqui? — indagou, surpresa por não sentir emoção alguma. Aquele era o homem que julgara amar? — Sim! Quero que volte para Nova York comigo. Esqueça este casarão caindo aos pedaços e vamos para casa. Tess sorriu e fitou-o por um longo tempo. — Obrigada, Paul! — agradeceu por fim, alargando o sorriso. — Não há de quê! E agora, vá buscar suas roupas. Se sairmos daqui a meia hora,
estaremos em Nova York às... — Não vou com você. — Como? — Eu não o agradeci por me pedir para voltar. Sou grata a você por me obrigar a sair de sua vida. Só assim pude perceber que quero um relacionamento com paixão e companheirismo. — Olhou no relógio de pulso e indicou a porta com o queixo. — Se você sair agora, poderá chegar em Nova York para o jantar. CAPÍTULO X Tess se recostou na mureta da varanda para tirar as sandálias e massagear os pés doloridos. Passava das duas horas da madrugada e acabara de voltar do Last Call, mas não estava com sono. Sentou-se nos degraus da escada com Marvin a seus pés para observar o céu coalhado de estrelas, tentando ignorar a imensa solidão que sentia. Embora falasse com Richard e Kevin quase todos os dias e seu cão fosse o melhor companheiro que poderia ter, sentia seu coração vazio e angustiado. Não via Fletcher desde a noite em que ele oferecera a recepção para que conhecesse Tom Calinguay, havia mais de um mês. Durante suas apresentações no bar, seus olhos voltavam-se para a porta sempre que se abria para a entrada de algum freqüentador na esperança de que fosse ele, e as canções ganhavam tons de melancolia a cada dia que passava. Nem mesmo seu sucesso a animava. O talento da cantora do Last Call havia atraído visitantes de muitas cidades da região. Cooper havia contratado novos funcionários e estava exultante com o aumento dos lucros. Tess nunca vivera uma fase tão produtiva em sua vida. Durante as madrugadas insones, munia-se de lápis e papel e ia para a varanda. Em menos de dois meses, reunira o maior acervo de composições da sua vida. Eram canções tristes e românticas que retratavam a melancolia da sua alma e o desconsolo de viver um amor não correspondido. Desistira de tentar compreender o porquê da ausência de Fletcher. Não havia outra explicação a não ser a conclusão óbvia de que não a amava. No decorrer dos dias solitários, ocupava-se com o casarão, tentando ignorar a proximidade do prazo para pagar as dívidas. Sua última esperança era Tom Calinguay. Tentara falar com ele diversas vezes, mas a secretária lhe informara que entraria em contato quando houvesse alguma
novidade, deixando subentendido que o empresário não queria ser importunado. Tess sabia que havia tentado todos os recursos de que dispunha e não havia mais nada a fazer a não ser esperar. Passeou o olhar pelo jardim banhado pelo luar e uma profunda melancolia a envolveu, como se aquele fosse um olhar de despedida. Se não conseguisse saldar as dívidas, só lhe restava aceitar o destino e voltar para Nova York. Olhou para o canteiro de petúnias que ela própria cultivara, lamentando não estar ali quando florescesse. — Quase fomos felizes aqui, Marvin — murmurou, abraçando-o. — Jamais poderíamos imaginar que deixaríamos nosso coração em Justice, não é? O cão ergueu o focinho e ganiu, como se também lamentasse partir. Com gestos lentos, ela se ergueu e foi para o quarto tentar dormir, no entanto, o dia amanheceu sem que conseguisse pregar os olhos. Levantou-se, pegou roupas limpas e foi para o banheiro. Enfiou-se sob o jato forte da ducha, tentando relaxar os músculos doloridos pela tensão. Restava apenas dois dias para que expirasse o prazo para saldar a dívida com a prefeitura e somente um milagre poderia salvá-la. Depois de dez minutos, fechou o chuveiro, sentindo-se um pouco melhor. Vestiu bermuda e camiseta e penteou os cabelos úmidos do banho. Embora não estivesse com fome, precisava se alimentar, e foi para a cozinha preparar uma omelete. Sentou-se para comer e ia levar a primeira porção à boca quando ouviu a campainha do telefone. Olhou para o relógio de pulso, curiosa sobre quem telefonaria às oito horas da manhã. — Alô? — Bom dia, srta. Braeden. Tess reconheceu a voz de William Stansfield, o advogado responsável pelo testamento de seu avô. — Desculpe por ligar tão cedo, mas tenho a desagradável missão de informá-la de que amanhã expira o prazo para pagar a dívida com a prefeitura... — Eu sei — balbuciou, sem forças para articular as palavras. — Infelizmente, não há mais nada que possamos fazer. O prefeito Graham estendeu o prazo ao limite máximo, mas sem o pagamento, o casarão será desapropriado. — Sei disso também, mas somente um milagre poderá salvá-lo, sr. Stansfield... Ela passou a mão pelos cabelos com a sensação de que tudo estava perdido. Relutara em admitir que aquele momento chegaria. Entretanto, não havia mais como se enganar. O montante que conseguira com o trabalho no bar totalizava apenas um décimo da dívida. Desolada, colocou o telefone no gancho e mal teve tempo de se sentar quando a campainha soou novamente. — Tess Braeden? — Sim, sou eu — respondeu, tentando identificar a voz masculina do outro lado da linha. — Aqui é Tom Calinguay.
O coração de Tess começou a bater descompassado no peito. Seria verdade que milagres realmente aconteciam? — Preciso de mais composições com urgência! Lilly Montgomery está maluca com as letras que lhe mostrei. — O... o quê? — balbuciou, lembrando-se de respirar. Ela beliscou o braço para se certificar de que estava acordada. Mal acreditou que ouviria sua música na voz da maior intérprete de blues do país. — Tess? Você está aí? — Sim. Desculpe, estou surpresa por você ligar. Achei que havia se esquecido de mim. — Esquecê-la? Você deve estar brincando! Ficaria espantada ao saber como o mercado é escasso de compositores talentosos. Há artistas que não conseguem encontrar uma boa canção até mesmo às vésperas do lançamento do CD. — É mesmo? — Tess se surpreendeu, lembrando-se das tentativas do ex-marido para dissuadi-la da carreira. — Eu disse a Fletcher quando esteve aqui na semana passada que... — Fletcher foi para Nova York? — interrompeu, admirada. — Sim. Ele fez questão de estar presente na reunião com Lilly Montgomery — o empresário mencionou casualmente. — Como eu dizia, comentei com Fletcher que tive muita sorte por ninguém tê-la descoberto antes. Eu pessoalmente prefiro administrar a carreira de uma talentosa compositora a representar artistas excêntricos. Compositores dedicam-se apenas à música sem se preocupar com exigências de hotéis luxuosos e outras excentricidades depois que se tornavam famosos. Quando o empresário lhe propôs contrato de exclusividade, Tess aceitou prontamente. Ao saber do valor que receberia pela venda de quatro composições, quase gritou de alegria. O montante seria suficiente para pagar os impostos do imóvel, além de lhe proporcionar uma renda razoável pelos direitos autorais. — E isso é só o começo — Tom Calinguay garantiu. — Vou enviar uma cópia do contrato via fax para o Last Call daqui a alguns minutos. Assim que assiná-lo, envie de volta para que eu possa depositar o cheque com seu pagamento. Se tudo correr bem, amanhã você terá o dinheiro em sua conta. Tess desligou o telefone e se pôs a rodopiar pela cozinha. Estava salva! Com o peito explodindo de alegria, foi para a sala vazia e olhou as paredes nuas. Já podia ver o casarão completamente restaurado, com um jardim exuberante, repleto de flores. O sonho de ter uma casa para se dedicar com amor poderia finalmente se realizar. Não esperava que fosse tão grande nem tão majestosa, e agradeceu à sorte por ter um avô que se lembrara dela. Voltou para a cozinha e tentou terminar a refeição, mas estava excitada demais para comer. Suas emoções oscilavam na mais completa confusão. De súbito, ela se sentiu corroída pelo remorso ao se lembrar da manhã em que descobrira que Fletcher era o prefeito de Justice. Sabia que seria contratada por ter talento, mas se ele não interviesse junto a Tom Calinguay, nada daquilo seria possível. Ela expulsara seu salvador da cozinha, despejando sobre ele toda a sua fúria!
Reviu mentalmente a expressão desolada nos olhos verdes enquanto a ouvia sem retrucar. Ele nem sequer reagira quando viu seu aparelho celular despedaçado ao ser atirado com toda violência ao chão. Depois de ser quase reduzido a pó, ele fora para casa e telefonara para o amigo. E o que mais a impressionara fora a rapidez com que o empresário movimentara a fabulosa engrenagem do meio artístico. Ele havia conseguido falar com pessoas que eram inacessíveis para a maioria dos mortais. Tess abriu a geladeira e pegou a jarra de suco de laranja. Encheu o copo e bebeu lentamente, esperando até que a excitação se abrandasse. Lamentou o fato de não ter com quem conversar. Gostaria de compartilhar tudo que estava sentindo, mas àquela hora da manhã, Richard e Kevin ainda estavam dormindo. — Oh, papai, por que você não está aqui? — murmurou para as paredes. — Devo tudo isso a você! Ao pensar que sua maior aspiração estava próxima de se tornar realidade, uma estranha e desconhecida sensação invadiu seu peito em um misto de euforia e apreensão, como se o sonho pudesse escapar por entre seus dedos como um punhado de areia fina. Sim, estava perto de conseguir um lar... mas uma casa como aquela somente seria completa com o aroma do jantar sendo preparado na cozinha e a risada de crianças brincando no jardim. Tess olhou no relógio e deu um pulo. Estivera tão absorta em suas reflexões que não percebera a passagem do tempo. Subiu correndo os degraus para o segundo piso, trocou-se em tempo recorde e seguiu para o Last Call. A rapidez com que tudo aconteceu deixou Tess aturdida. Depois de receber o fax de Tom Calinguay, assinara o contrato e o enviara de volta. No dia seguinte, fora ao banco e retirara o dinheiro para pagar a dívida, contendo-se para não gritar de alegria enquanto atravessava a praça em direção ao prédio da prefeitura. Ao se deter no guichê do Departamento de Finanças e retirar o envelope com o dinheiro da bolsa, suas mãos tremiam tanto que mal conseguira contar as cédulas. Quando recebeu o comprovante de pagamento, os funcionários do setor irromperam em estrondoso aplauso, felicitando-a pela conquista. Ao final da tarde, depois de acertar todos os detalhes para a legalização da posse do imóvel, Tess fora para casa com a impressão de que seria capaz de vencer qualquer outro desafio. Estacionou o sedan diante do casarão e demorou-se alguns minutos para descer do carro. A casa destacava-se nas sombras do entardecer, em uma imagem que parecia de sonho... E era sua! Entrou pelos fundos e ligou a cafeteira elétrica. Antes de sair da cidade, passara no café Jolly's Diner para comprar panquecas. Enquanto esperava que o café ficasse pronto, foi à lavanderia verificar as vasilhas de água e comida de Marvin e encontrou-as intactas. Ele não havia dormido em casa, mas Tess acabara se acostumando com os longos passeios do seu animal de estimação e
deixara de se preocupar. Comeu mesmo sem apetite enquanto olhava pela janela, observando os pássaros cantando alegremente no quintal. A terra fértil da horta estava pronta para receber as sementes. Decidiu que começaria a plantá-las no dia seguinte, logo pela manhã. Gary Williams fornecera-lhe sementes de cenoura, tomate e alface e a instruíra sobre como proceder. Tess avaliou os azulejos desgastados pelo tempo e decidiu que aquela casa só guardaria memórias felizes, mesmo que o homem que roubara seu coração não correspondesse ao seu amor. Chegara a pensar que Fletcher pudesse amá-la, ao se lembrar do modo como a tocava, o brilho que se refletia nos olhos verdes, revelando os desejos mais secretos, os beijos que haviam trocado... Nunca alguém a fizera sentir tantas emoções. No entanto, ele desaparecera em uma demonstração evidente de que não a amava. Tess se ergueu, decidida a não pensar mais naquele homem. Tinha tudo que precisava para ser feliz e o futuro sorria para ela, cheio de promessas. Naquela noite, não conseguiu dormir. Imagens confusas embaralhavam-se em sua cabeça, misturando sonho e realidade. A felicidade por ter conseguido vencer o desafio e saldar as dívidas deixadas pelo avô misturava-se à dor de ter descoberto o sentido do verdadeiro amor sem que pudesse usufruí-lo. Desistindo de tentar dormir, levantou-se da cama antes que o dia amanhecesse. Enquanto se vestia, pensou em aproveitar a tranqüilidade da manhã para compilar as letras que compusera nas últimas semanas. Desejava enviá-las a Tom Calinguay o mais breve possível. O próximo desafio seria restaurar o casarão e precisava vender mais algumas letras para conseguir realizar o projeto que já planejara meticulosamente. Ao descer a escada, teve a impressão de ter ouvido o ronco de um motor à frente da casa. Olhou pela janela da sala e seu coração começou a bater desenfreado no peito. Fletcher! O que estaria fazendo lá em plena madrugada? Não esperou que ele batesse à porta para abri-la. — Bom dia — ele saudou com um sorriso contagiante. — Ou deveria dizer boa noite? Ela acompanhou o movimento suave das mãos másculas indicando o céu começando a se tingir de alaranjado com o alvorecer. — O que você está... — Não diga nada. Quero apenas que venha comigo. Ao dizer isso, tomou-a pela mão para conduzi-la para a calçada. — Fletcher, não vou a lugar algum com você antes de saber para onde está me levando! Eu acabei de acordar e preciso de uma xícara de café antes de qualquer coisa. — E eu ainda não dormi — ele comunicou sem interromper o passo. — Vamos até minha casa. Pega de surpresa, ela não teve como reagir. Entrou na caminhonete e se manteve em silêncio durante todo o trajeto. Havia mil perguntas em sua mente, mas não era o momento certo para fazê-las. Ele estacionou a caminhonete e saiu sem nem tirar a chave da ignição.
— Venha — chamou, depois de abrir a porta para ela. Seguiu-o para os fundos da casa, cada vez mais intrigada. Mal colocou os pés na cozinha, Marvin correu na direção dela e quase a derrubou ao pular sobre seus ombros. — Seu fujão! Então você estava... Fletcher tocou-a de leve no braço e colocou o dedo indicador sobre os lábios, pedindo silêncio. Ergueu o queixo e apontou para um canto ao lado do armário. Tess seguiu a direção que ele indicara e cobriu a boca com as mãos para não deixar que uma exclamação escapasse de seus lábios. Sandy descansava dentro de um imenso cesto de vime, rodeada por doze filhotes recém-nascidos. Marvin acomodou-se ao lado dela e se pôs a lamber-lhe o focinho, orgulhoso da nova família. — Meu Deus, nunca vi nada tão lindo em toda minha vida! — murmurou com lágrimas nos olhos. — Foi por isso que não dormiu esta noite? — Sim. Eu e o papai orgulhoso ajudamos no parto, e ela foi muito valente. — Marvin ajudou? — perguntou, envaidecida. — Claro! Não é mesmo, parceiro? Quando o cão latiu e abanou o rabo confirmando, ambos começaram a rir. — Não vejo a hora de pegar um filhotinho no colo! — exclamou, agachando-se para acariciar a fêmea. — Boa garota! Você vai ser uma ótima mamãe! — Vamos deixá-la descansar. Ela esteve em trabalho de parto desde ontem ao anoitecer e deve estar exausta. Tess observou o carinho com que afagava a cadela e o respeito mútuo que havia entre eles. A admiração que sentia por aquele homem aumentava a cada dia, e não se devia apenas ao fato de estar apaixonada. — Que tal uma boa dose de cafeína? — ele ofereceu, indicando que se sentasse à mesa. — Seria ótimo, obrigada. Acomodou-se na cadeira e esperou que ele preparasse o café. — Então, era por isso que Marvin não ficava em casa... — comentou, aceitando a bebida que ele oferecia. — Você não pode negar que foi por uma causa justa. — Tem razão! — Ela riu, mas o sorriso congelou em seus lábios quando os olhares se encontraram. — Parabéns por ter conseguido saldar as dívidas do casarão — Fletcher cumprimentou-a, recostando-se na pia. — Eu não teria conseguido se não fosse por você. — Não é verdade. Não fui eu quem compôs as canções que encantaram Tom Calinguay. — Sim, mas se você não houvesse criado a chance de encontrá-lo, ele jamais saberia da minha existência. — Ela se armou de coragem e fitou-o diretamente nos olhos. —Por que você me evita, Fletcher? Ele sustentou-lhe o olhar, mantendo-se em silêncio por um longo tempo. — Eu não queria procurá-la até ter certeza de que ficaria definitivamente em
Justice — disse por fim, escolhendo as palavras. — Quando minha ex-esposa me deixou, jurei para mim mesmo que nunca mais me envolveria com uma mulher que não tivesse nascido e crescido em Justice. Sei que a vida aqui não oferece opções e que não tenho o direito de exigir que gostem da cidade como eu, mas a verdade é que eu não sobreviveria em outro lugar... e nem suportaria outra decepção como a que já tive. Tess ouvia quase sem respirar, refletindo sobre cada palavra. — Depois de assinar o contrato e se tornar uma compositora famosa, seria inevitável que percebesse que a vida nesta cidade não é tão interessante como a de Nova York ou Las Vegas. — Não sou uma compositora famosa. Eu não... Ele ergueu a mão em um gesto firme, impedindo-a de falar. — Deixe-me terminar. Se eu não abrir meu coração agora, não sei se terei coragem de falar depois. Sim, você não é famosa ainda, mas com seu talento e tendo Tom Calinguay como seu empresário, isso é só uma questão de tempo — prosseguiu, sem deixar de fitá-la. — Eu precisei me afastar de você, Tess. — Por quê? — Porque julgava que, se não a visse, seria capaz de esquecê-la. Eu acreditava que estando longe de você, meu coração se endureceria como uma pedra. — Ele passou os dedos pelos fios emaranhados dos cabelos. — Como fui tolo! Quanto mais o tempo passava, mais sua ausência me feria. Serei eternamente grato a Marvin por me dar a oportunidade perfeita para procurá-la. — Fletcher, você está querendo dizer que sentiu minha falta? — ela balbuciou, receando que suas palavras rompessem a mágica do momento. — Meu Deus, Tess, você não percebe? Estou querendo dizer que a amo e estou pedindo que... Não, estou suplicando que fique em Justice. — Não é preciso, meu amor! Ficar aqui é tudo o que mais quero! —Tess não conseguiu evitar as lágrimas. — Ter herdado o casarão foi a melhor coisa que me aconteceu. Sem saber, meu avô me proporcionou a realização de meu maior sonho. Sempre quis criar raízes, e não poderia haver lugar melhor do que Justice. — Justice? — Ele franziu o cenho. — Por quê? — Porque você está aqui, meu amor! Sentindo o peito estourar de felicidade, ergueu-se da cadeira de um ímpeto e se atirou nos braços fortes. O beijo apaixonado que selou as bocas sedentas de paixão significou mais que mil palavras. — Eu a amo como nunca amei alguém em toda minha vida! — sussurrou ele, interrompendo o contato. — Você não pode imaginar como sofri por não poder ajudá-la a reaver o casarão. Entenda, eu não podia deixar que interesses pessoais interferissem em minhas atribuições como prefeito. — Confesso que fiquei furiosa com você, mas compreendo perfeitamente que fez o que deveria ser feito. — E acha que pode me perdoar por ter mentido sobre minha identidade? Ela sorriu com ternura, sentindo-se leve e feliz. — Acho que sim... desde que você se case comigo e vá morar no casarão!
— O pedido de casamento não é prerrogativa do noivo? — ele reclamou com falsa indignação. — Não quero arriscar que você fuja de mim mais uma vez, meu amor... — O que mais eu poderia esperar de uma nova-iorquina? — Fletcher riu e abraçou-a. — Sim, eu quero me casar com você e morar no casarão com Sandy, Marvin e os filhotes, até que cada um deles siga seu próprio destino... E até que nossos filhos cresçam e também sigam seu destino, para que possamos nos sentar na cadeira de balanço da varanda e rir com a alegria dos nossos netos brincando no jardim. Tess aninhou-se no peito largo, deixando que lágrimas de felicidade molhassem seu rosto. Ao lutar para ter direito sobre a herança que recebera, havia conquistado mais do que um lugar para morar. Sua maior conquista estava guardada no coração, pleno de amor e de felicidade, ao lado do homem que amava.

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