quarta-feira, 19 de junho de 2013

Inocente ou sedutora?

SABRINA- 1509- INOCENTE OU SEDUTORA?
LORI DEVOTI
Só de pensar em você... Quando o chefe de Del Montgomery a encarregou de ir para o sul do Missouri em busca de um legendário vaso de cerâmica, ela não podia imaginar que uma tarefa tão simples, pudesse causar uma reviravolta em sua vida. Afinal, qual a dificuldade em pegar o carro, enfrentar uma estrada, comprar a peça por uma bagatela e depois voltar triunfante para Chicago? Sam Samson, o leiloeiro mais famoso da região, seria a pessoa perfeita para ajudá-la... Ele só não podia suspeitar de seu plano, caso contrário, passaria de atraente colaborador a perigoso concorrente. Tudo o que dizia respeito a Del deixava Sam fascinado. Os modos extrovertidos, os decotes provocantes, o charme com que ela franzia o nariz cada vez que inventava uma mentira. Embora as mentiras fossem constantes, Sam estava convencido de que ela tinha algum motivo para contá-las, um motivo que ele estava disposto a descobrir. Porque uma garota como Del, ele não deixaria escapar... TÍTULO ORIGINAL: Love is ali You Need DIGITALIZAÇÃO E REVISÃO: MARINA
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Capítulo I Eu não acredito! Você quer que eu viaje ainda hoje por causa de um porco? — Del Montgomery levou a mão ao colar do qual nunca se separava desde o momento em que o recebera. Mais do que o valor material, ela o prezava pelo significado que continha. Também desenvolvera o hábito de tocar as pérolas em situações de tensão como se a jóia tivesse o poder de acalmá-la. — Não se trata de um porco qualquer, mas do porco! O porco Unruh. — Seu patrão, Benjamin Porter deu enfoque especial ao termo. A impressão que dava era que o tal porco poderia ser um monumento nacional, tipo a Estátua da Liberdade! Não que Del não estivesse acostumada a esses rompantes. Como dono e fundador da Casa de Leilões Porter, o estabelecimento de maior prestígio do Meio Oeste, seu chefe outorgava-se o direito de ser arrogante e prepotente. — Ah, sim, o porco Unruh. — Del vasculhou sua memória em busca de alguma eventual menção a um objeto em formato de porco na história da olaria mais famosa de todos os tempos. A olaria de Unruh tivera uma curta existência no início do século passado. Sua fama se deveu à excentricidade criativa de seu fundador pelas peças singulares que produziu. Ela já tivera chance de encontrar e de comercializar algumas delas. Mas jamais ouvira falar de algo que lembrasse um porco. — Está se referindo a uma peça criada antes que a fábrica sofresse o segundo incêndio, não está? — Uma pergunta admissível. Todos os objetos de valor desenvolvidos em Unruh datavam do período anterior a sua segunda restauração. — Eu tinha certeza de que poderia confiar que você, mais do que qualquer pessoa, não me decepcionaria a esse respeito. Sorte dela. Dessa vez escapara das observações sarcásticas de Porter. Com o colar ainda enrolado nos dedos, ela prosseguiu. — Quem foi que você disse que lhe deu a dica de que o porco estava de volta em circulação? O chefe inclinou o corpo avantajado sobre a escrivaninha e a fitou por cima dos óculos. — Eu não disse. Del conteve um suspiro. Virou uma folha do bloco e se preparou para anotar as diretrizes de sua nova caça ao tesouro. — Ou seja, você quer que eu suba em meu carro e parta para uma investigação sobre o paradeiro da obra, e a compre a qualquer custo para que você a ofereça a seus clientes no próximo leilão? — Exatamente — o chefe concordou e voltou a recostar na cadeira de couro como se essa atitude marcasse o encerramento da conversa. Mas Del se manteve impassível. Com a caneta parada sobre o papel, ela continuou no aguardo de mais informações até que o bom senso a fez perceber que elas não chegariam. Era preciso tentar uma outra tática. — A peça por acaso foi encomendada por algum cliente especial? Mais à vontade com esse tópico, o chefe afastou a cadeira e cruzou as pernas. — Não. Eu pretendo fazer um leilão aberto exclusivo com produtos Unruh. A dica sobre o porco me foi dada por uma pessoa amiga, como um favor pessoal em troca de serviços prestados. Del esperou que Porter continuasse a falar. O silêncio que se fez lhe disse para desistir de tentar lhe arrancar mais alguma dica.
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Tudo bem. Ela não fazia parte do clube dos desesperados. Seu faro por antigüidades sempre a levara às fontes certas. — Essa pessoa lhe forneceu alguma pista mais concreta de onde o porco se encontra no momento? Essa pergunta, ele teria de responder. A menos que esperasse que ela tivesse uma bola de cristal. Começando a dar mostras de impaciência, Del se pôs a bater a caneta contra o tampo da mesa. Porter resolveu escolher justamente aquele momento para checar as mensagens em seu celular. Quando terminou a consulta, olhou para ela como se tivesse esquecido de sua presença. — Você estava dizendo...? Del forçou um sorriso. —Estava imaginando onde o porco poderia estar agora. Essa pessoa lhe forneceu algum endereço ou ao menos o nome de seu contato e telefone? — Não. Só que o porco deve estar em algum lugar ao sul de Missouri. Del poderia ter se transformado em uma estátua. Seus movimentos virtualmente congelaram. — Alguma chance de ele ter mencionado uma referência onde eu possa iniciar a busca? — Condado de Allen. Foi lá que os rumores começaram e é para lá que você deverá se dirigir assim que sair daqui. Del sentiu o ar lhe faltar. — Você tem certeza de que sou a pessoa certa para essa missão? David tem mais experiência do que eu com aquisições, e essa é de grande relevância. — Normalmente ela disputaria essa chance de galgar mais um degrau na escalada para o sucesso. Mas agora daria qualquer coisa para fugir a essa empreitada. — Eu não quero puxar o tapete de ninguém. Porter se levantou. — Puxe todos os tapetes que forem necessários, mas me traga o porco. Quero oferecer o maior número possível de peças da coleção Unruh no próximo evento que pretendo realizar daqui um mês. Esse é o prazo que lhe dou para encontrar a peça. — Mas David... — Eu me encarrego dele. David estaria tão fora de seu ambiente em Missouri como um vaso Loetz em uma banca de feira. Obrigada pela parte que me toca. O chefe se levantou dando a entrevista por encerrada. Del fez uma última tentativa para escapar dessa atribuição. — Seu contato realmente não disse mais nada? Um condado inteiro é uma vasta área a percorrer. — Não tão vasta quanto você está pensando. O lugar não passa de um ponto insignificante no mapa. A população não chega a cinco mil habitantes. O que não deixa de ser conveniente para nós. — Conveniente? — Del repetiu com um fio de voz. — Claro que sim. Se o porco realmente estiver por lá, você talvez possa comprá-lo por uma bagatela. Duvido que em um lugarejo nos confins da civilização exista al-guém com gabarito para reconhecer uma obra de arte valiosa. Sam Samson avaliou a pequena multidão reunida em frente à loja. Nada de novo. O mesmo tipo de pessoas, o mesmo tipo de mercadorias. Ele vinha seguindo essa ro-tina havia anos. Nesse compasso, nunca conseguiria juntar o dinheiro necessário
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para pagar a hipoteca de sua casa e abrir uma filial em Springfieíd como era seu sonho. Seu amigo, Kenny, estava trazendo a última caixa dos fundos da loja para que Sam pudesse dar início ao leilão. A maioria das caixas continha peças usadas de veículos e velhas ferramentas. Mas também havia objetos de casa, como louças e enfeites, e também roupa de cama, banho e mesa. — Você viu Charlie? — Sam perguntou enquanto ajudava o amigo a abrir essa última caixa. Kenny cocou a cabeça e vasculhou os arredores. — Lá está ela, no meio daquelas mulheres. Charlie era uma senhora que ajudava Sam na realização desses eventos ocasionais. Ela já havia conferido a mercadoria e sua expressão desconsolada deixou Sam ainda mais desanimado. — A oferta está fraca. Não há nada de realmente interessante neste lote. Não, não havia. Sam concordou, cabisbaixo. O rendimento daquele dia, mais uma feira ou liquidação de garagem, do que um leilão, não alcançaria mil dólares. Sua parte ficaria em cerca de trezentos dólares, descontadas as despesas e a repartição dos lucros com Charlie e Kenny. A única saída para melhorar aquela vida medíocre seria encontrar um produto extraordinário. Algo que despertasse o interesse de colecionadores. Talvez da imprensa. Ainda mais desconsolado com essa idéia, Sam chutou a terra com suas velhas botas de caubói. Del parou na frente de um café chamado A Toca do Coelho e pensou que ele combinava com seu carro. Tão pequeno quanto. Ela o comprara no mesmo fim de semana que Porter lhe dera o colar de pérolas como gratificação por uma peça rara que ela havia conseguido em um mercado de pulgas. A esperança de que um aumento no salário fosse acompanhar o presente morreu no instante em que ela recebeu o holerite ao término do mês. Agora estava passando quase a pão e água para pagar as prestações. O que precisava para resolver seu problema era encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris. E o porco Unruh poderia ser esse pote. Apenas ela preferiria continuar a míngua a fazer aquela viagem. Um suspiro seguiu ao pensamento. As chances de sucesso eram mínimas. Seria como procurar uma agulha em um palheiro. Com prazo marcado. Não havia outra palavra para descrever seu chefe a não ser maluco. Como pudera jogá-la em uma estrada, querendo que voltasse em trinta dias, com algo que ninguém tinha realmente certeza de que existia? Ela desceu do carro, batendo a porta de indignação. Era cedo. Os ponteiros de seu relógio de pulso ainda não marcavam onze horas. A freguesia ainda não havia chegado para o almoço e era tarde demais para ela encontrar a turma do café da manhã. Na certa não conseguiria nenhuma informação dos desocupados reunidos nas mesas por não terem nada de melhor para fazer a não ser matar o tempo. Antes de entrar, contudo, Del resolveu apelar para uma atitude mais positiva. Colocou um sorriso no rosto e desabotoou um botão a mais de sua blusa. — Bom dia! Em que posso lhe servir? — cumprimentou-a, solícita, uma jovem mulher de avental branco com o nome Becca bordado no bolso. — Gostaria de uma xícara de café descafeinado com uma rosquinha de creme — Del respondeu, sentando-se em uma banqueta junto ao balcão, ao lado de um senhor de uns setenta anos que empurrou o chapéu para trás em cumprimento. Ciente de que nunca se perdia uma oportunidade para demonstrar apreço pelas
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pessoas, ela retribuiu a saudação. O café estava tão gostoso que, por alguns segundos, Del esqueceu os problemas. Em seguida, ao morder a rosquinha, teve de fechar os olhos para desfrutar da sensação de estar no paraíso. Não se lembrava de ter comido nada de tão bom havia anos. — Você não é daqui. — A observação trouxe Del de volta para o presente. — Ninguém se veste assim por estas bandas — Becca explicou, fazendo um sinal para a blusa de seda e para a saia de corte reto e clássico. Del demorou alguns instantes para responder. Ela própria não entendia porque escolhera um traje tão formal. Estava em uma viagem de negócios, mas a um lugarejo simples. O que estava tentando provar e a quem? A ela? Ou a Porter? Ao reparar no rosto sorridente da garçonete e no avental que apresentava uma nódoa, Del percebeu que havia cometido um erro. Não estava ali para provar nada. Viera em busca de um porquinho de cerâmica e sua missão era encontrá-lo e levá-lo para Chicago. Se quisesse ajuda nessa caça ao tesouro precisaria conquistar a confiança dos moradores, não colocar uma barreira entre eles mostrando o quanto era diferente. — Não. Mas minha cidade não fica muito longe. Apenas fazia um longo tempo que eu não vinha para estes lados. — Gostaria de comer mais uma rosquinha? — a moça ofereceu com um novo entusiasmo ao identificar o sotaque interiorano com que Del deu a resposta. O mesmo sotaque que ela se esforçava por eliminar desde que saíra de sua terra sete anos antes. — Não, obrigada. Del se virou para o homem sentado duas banquetas depois ao vê-lo abrir o jornal na seção dos classificados. Não podia perder nenhuma chance de fazer contatos. — Como estão as ofertas? Ele a fitou como se fossem velhos amigos. — Fracas. Costuma ser sempre assim depois de uma feira como a que tivemos no último fim de semana. Ela estava com sorte! Sua vontade era se levantar e dar um abraço no desconhecido pela grata notícia. — Que tipo de feira? — Foi um leilão, na verdade. Eu arrematei a oferta mais disputada. — O homem deu uma risada de orgulho. Del mal podia acreditar. Do modo como os acontecimentos estavam se precipitando, logo poderia voltar para casa. — O leiloeiro é daqui ou de fora? — Sam? Sam é nosso patrimônio. Um grande sujeito. Todos o conhecem nesta região. A senhorita se interessa por leilões? Talvez ele promova outro em breve. — Por que não? Eu estarei nestas vizinhanças por algum tempo. — Você trabalha nesse ramo? — a garçonete pegou Del de surpresa ao se aproximar com uma jarra de café, tornando a encher a xícara. — Não exatamente — Del mentiu. — Eu sou uma colecionadora. — Nesse caso, Sam é a pessoa que poderá ajudá-la — afirmou a moça enquanto apanhava uma pilha de cardápios. — Não existe nada neste lado do mundo que ele não saiba. Quer pedir mais alguma coisa? Faltam poucos minutos para o pessoal começar a chegar para o almoço. A propósito, meu nome é Becca. E o seu? Del se apresentou e aproveitou para pedir um filé de frango com purê de batatas. A
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julgar pela rapidez com que as coisas estavam acontecendo, ela poderia se permitir algumas calorias a mais. Talvez pudesse retornar a Chicago antes de uma semana. — O que você coleciona? — Becca quis saber enquanto anotava o pedido. Del hesitou e encolheu os ombros. — Porquinhos. Eu coleciono porquinhos. Sam tirou um dos sacos de ração do carrinho e equilibrou-o sobre os ombros antes de depositá-lo na carroceria da caminhonete ao lado de dois outros sacos de ração para cães. Ele não se importava de ajudar o amigo, dono do maior depósito de produtos para animais da cidade, em seu tempo livre. A tarefa não era das mais elegantes, mas era naquele local que ele mantinha seu escritório e guardava suas mercadorias. O dia estava ensolarado. Ele afastou o chapéu para enxugar a testa. O tempo estava perfeito para uma venda ao ar livre. Seria uma pena ter de esperar mais algumas semanas para marcar um novo evento. Mas o que era aquilo? Sam apertou os olhos contra o sol. Não se lembrava de já ter visto aquele Honda azul circulando pela cidade. Nem uma cena tão extraordinária! De costas, a mulher era magnífica! Ajoelhada no assento, Del procurava as sandálias novas de saltos altos na mala sobre o banco de trás. Não era o tipo de calçado adequado para usar em uma loja de implementos agrícolas e rações para animais, mas pelas informações que lhe deram, era ali que Sam Samson costumava ser encontrado quando não estava promovendo seus leilões. Ao sentir a textura de uma tira de couro, Del suspirou de alívio e retomou seu lugar ao volante. Olhou ao redor e tornou a suspirar ao se certificar de que não havia nin-guém por perto. Ergueu a saia nesse momento e tirou a meia-calça. Aquela operação requeria um ataque direto, de pernas nuas e sorrisos insinuantes. Ainda não satisfeita com a aparência, Del tirou o blazer e jogou-o por cima do ombro. Em seguida desabotoou mais outro botão para reforçar a sensualidade de sua aparência. Abriu a porta, então, apoiou os pés sobre os cascalhos e marchou com determinação para o campo de batalha. Ela hesitou, contudo, à entrada da loja. Estaria no endereço certo? O escritório de Sam Samson dividia espaço com comidas para animais? Uma placa acabou com sua dúvida. Dizia que o leiloeiro podia ser encontrado nos fundos. O lugar parecia escuro após a exposição à claridade solar. Seu cheiro a remeteu ao passado, por volta de seus sete anos, quando acompanhava o pai a lojas como aquela. Ele adorava cães. Embora sua família às vezes quase não tivesse o que comer, ele nunca deixava faltar ração aos animais. Del balançou a cabeça para espantar aquelas lembranças. Agora nada lhe faltava. E ela esperava que assim continuasse. Seu emprego, atualmente, estava na depen-dência de um porco! Ou, talvez, de um loiro alto e sério atrás do balcão. Com seu melhor sorriso, Del se encaminhou para ele. Então a garota resolvera entrar! Sam deu uma pequena risada ao relembrar a pose em que a flagrara. Estava atrás de uma coluna e aproveitou para examiná-la sem ser visto. Ela era alta e elegante. Caminhava pela loja como se estivesse desfilando em uma passarela. Sua silhueta era perfeita, recortada contra a luminosidade que vinha de fora. A julgar pela roupa que estava usando, não entrara na loja para comprar ração. E se não era para comprar ração, ela deveria estar à procura dele. Mas em vez de ir ao encontro da moça, Sam recuou para os fundos e se sentou
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atrás da escrivaninha. Abriu rapidamente uma pasta para dar a impressão de estar ocupado. Dois minutos depois ouviu os passos pesados das botas de Kenny seguidos pelo tilintar dos saltos. — Boa tarde. — Sam fez um sinal para que ela se sentasse e depositou a caneta sobre o tampo da mesa. Cabelos loiros, olhos cor de chá e seios que pareciam clamar por liberdade. Sam precisou ouvi-la pigarrear para se lembrar de atendê-la. — A senhorita ligou para marcar um horário? — Não — ela respondeu. — Devo voltar outro dia? Sam se apressou a mudar de atitude ao vê-la ensaiar uma retirada. — Não será necessário. Afinal eu estou aqui. Em que lhe posso ser útil? Ou você a mim? Del cruzou as pernas com movimentos lentos. Sam foi atraído pelos pés de sua visitante como se eles fossem imãs. Um pensamento lhe ocorreu. Que aquelas sandálias bastavam como indumentária. Talvez ele abrisse uma única exceção para o colar de pérolas. Ela tossiu. — Desculpe. Eu me distraí. — Deu para perceber — ela declarou séria, mas sorriu em seguida e projetou o corpo para frente de modo a revelar mais um ou dois centímetros do decote. — Em que posso ajudá-la? — ele tornou a dizer dessa vez obrigando-se a manter os olhos na altura das adoráveis maçãs do rosto, salpicadas de pequenas sardas douradas. — Estive na Toca do Coelho há pouco. Talvez deva conhecê-lo. Lógico que Sam conhecia o estabelecimento. Como não conhecê-lo se a cidade não contava com mais de meia dúzia de restaurantes? Além disso, ele pertencia a sua prima. — Acho que sei ao qual se refere. Ela torceu o nariz como Samantha, no famoso seriado A Feiticeira. Sam precisou se obrigar a respirar profundamente. — Enquanto estive lá, conversei com algumas pessoas e lhes contei que coleciono diversos tipos de obras de arte. Elas me forneceram seu endereço e comentaram sobre seu leilão no último sábado. — Então Becca lhe falou a meu respeito — ele declarou sucinto. — O que coleciona em especial? Antes de responder, Del agitou a mão diante do rosto como se ela fosse um leque. Depois segurou a gola da blusa e afastou-a. — Está quente aqui. E possível conseguir algo para beber? Ela precisou falar duas vezes. Porque Sam ficou completamente atordoado com o movimento do tecido. — Claro que sim. Pode ser uma coca-cola? — Dietética, por favor. Sam apanhou duas moedas na gaveta e se dirigiu ao salão onde Kenny dispunha de uma máquina. O amigo o encarou de rosto franzido, sem dizer nada. Sam encolheu os ombros e voltou para o escritório com uma lata para ela e outra para ele. Antes de entrar, rolou-a pela testa e pela nuca. A garota estava de pé. Parecia ainda mais acalorada. Alguns fios de cabelos haviam se soltado da fivela prateada que os prendia em um rabo-de-cavalo. — O que disse que coleciona?
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Ao segurar a lata, as unhas pintadas de vermelho se confundiram com a embalagem. — Porquinhos. O modo como ela o encarou ao responder indicava defesa. O que ela esperava? Que ele fosse caçoar de seu hobbyl — Poderia ser mais específica? Seriam objetos em formato de porquinhos, como cofres? Desenhos animados com porquinhos? Pendentes de correntes ou pulseiras? — Todos os tipos. No momento, estão me faltando porquinhos de decoração. Em especial os de cerâmica. — Porquinhos de cerâmica. — Sim. Algo estava errado na atitude daquela mulher. Sua história era tão duvidosa quanto promessas de políticos. Ele tornou a pegar a caneta e se preparou para preencher uma ficha. — Seu nome? — Del. Del Montgomery. — Não é daqui, eu presumo. Na verdade, aquela garota o confundia. Embora seu modo de se apresentar sugerisse procedência de uma grande cidade, sua fala combinava mais com a simplicidade do interior. Ela também não questionara o local impróprio em que ele recebia as pessoas com quem negociava. — Não. Alguma informação animadora sobre minha busca? — Del perguntou sem mais preâmbulos. — Talvez. Se puder me deixar seu endereço e telefone, eu entrarei em contato assim que tiver alguma novidade. Cobro normalmente uma taxa de trinta por cento do valor da mercadoria por meus serviços. Como este é um caso especial, terei de estipular um preço mínimo. Calculo inicialmente que mil dólares seria um valor razoável. Del pestanejou e seus dedos procuraram as pérolas em ação reflexa. — Eu acho justo. Poderá me encontrar na pousada O Rancho. Ficarei hospedada lá nos próximos dias. Só depois que Del Montgomery se foi, Sam se lembrou de que ela não havia lhe dito de onde era. A mulher estava cercada de mistérios. Ele mal podia esperar para desvendá-los. Capítulo II Del se dirigiu ao carro resmungando consigo mesma. Por pouco não comprometera todo o negócio. Sam Samson não era em absoluto o tipo de homem que ela esperava encontrar. Chegara a desabotoar a blusa para provocá-lo. Fizera um papelão. Embora ele tivesse um jeito direto de falar e de olhar, jamais poderia chamá-lo de inconveniente. Talvez estivesse lhe faltando prática. Houvera uma época em que esse truque funcionava à perfeição. No entanto, ela quase se tornara vítima de seu próprio truque. Se ele tivesse retornado dois segundos antes com as latas de refrigerante, a teria surpreendido com a mão na botija. Mais propriamente, no arquivo. Tinha certeza de que o deixara desconfiado com seu comportamento. Agora estava presa a ele, quisesse ou não. Não poderia mais indagar sobre o tal porco pelos
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lugares ou sua atitude chegaria aos ouvidos dele. Colecionadora de porquinhos! Só de pensar nisso, sua cabeça doía. Quem em são consciência colecionaria porquinhos? Cansada, acalorada e furiosa consigo mesma, Del tirou as sandálias e girou a chave do motor. Em seguida se obrigou a se acalmar antes de pisar com o pé descalço no acelerador. Ao menos as pessoas pareciam gostar de Sam Samson e seu contato com ele poderia lhe abrir algumas portas. Quem sabe encontraria o famoso porco atrás de uma delas? Sam cumprimentou os fregueses de um modo geral ao entrar no café. — Olá. — Ele se fez anunciar à prima, que estava de costas, puxando seu cabelo. — Ei — ela respondeu sem se virar. E antes que Sam reagisse, a moça colocou um pano na mão dele e mandou que terminasse de limpar a mesa e levasse para a cozinha a louça suja sobre o balcão. Era sempre assim. Becca se comportava como se ele fosse seu empregado. O pior era que ele obedecia. Talvez em retribuição às inúmeras vezes em que ela o salvara de apuros quando eram crianças. Daquela vez, no entanto, ele quis brincar e devolver o pano. Não esperava que Becca fosse reagir com mau humor. — O que houve? Como Becca não respondesse, Sam a segurou pelo braço. Ela finalmente o fitou e seu olhar abatido o surpreendeu. — O que houve, Becca? — ele insistiu, preocupado. — Estou exausta. A renda não é suficiente para contratar mais empregados e faz seis meses que Bud não me manda o dinheiro da pensão. — Ele ainda está morando em Festus? — Que eu saiba, sim. No mês passado ele mandou, ao menos, um cartão de aniversário e uma nota de cinco dólares para Clay. —Vai dar tudo certo — Sam tentou incentivar a prima, como sempre fazia. — Por falar em dinheiro, consegui um novo trabalho. — Resolveu abandonar os leilões? — ela perguntou, estarrecida. — Não. Trata-se de um pequeno negócio paralelo. Uma mulher me procurou esta tarde. Ela coleciona porquinhos. Soube que esteve aqui. Ao mencionar a forasteira, Sam se preparou para ouvir a costumeira ladainha da prima sobre estar na hora de ele se casar e ter sua própria família. Becca continuou séria. — Sim. Ela entrou para tomar um café e acabou ficando para o almoço. Nós conversamos e ela perguntou se eu sabia de alguém que pudesse ajudá-la a encontrar um objeto para sua coleção. Sam estreitou os olhos. — Então ela não mencionou meu nome? — Não que eu me lembre. Como também não me lembro de ter lhe fornecido seu endereço. Deve ter sido o Sr. Daniels. Ele estava sentado perto dela. Por quê? — Por nada. — Sam hesitou. — Parece estranho que uma mulher como ela se interesse por esse tipo de coleção. — Uma mulher bonita e atraente como ela, você quer dizer — a prima voltou ao comportamento de praxe, empurrando-o pelo ombro. — Você não vai mudar nunca, Sam Samson? Nenhuma mulher jamais lhe escapa? — Essa garota é diferente, Becca. Não é apenas a beleza dela, mas o modo como se veste e se comporta que chamam minha atenção. Algo não está se encaixando nessa história que ela contou.
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— Conheço você, meu primo. Em questão de encaixes, você é perito. Contra sua vontade, Sam corou ao comentário. Talvez por Becca ser como uma irmã, ele não se sentia à vontade em lhe falar sobre assuntos de sexo. Del tirou a tomada do telefone e ligou o laptop. Enquanto esperava pela conexão com a Internet, aproveitou para desfazer a bagagem. A pousada não mereceria mais do que duas estrelas em categoria de hospedagem, mas o quarto estava limpo e a recepcionista fora simpática no atendimento. Em uma cidade do tamanho de Allentown era mais, aliás, do que ela ousara esperar. Colocadas as blusas de seda em cabides no armário, Del cogitou onde teria estado com a cabeça no momento que arrumara a mala. Porque as únicas peças adequadas para o uso naquelas paragens eram os shorts e a camiseta que ela trouxera para dormir e que decidiu vestir enquanto o computador dava sinais de que a conexão estava sendo completada. Del se sentou, em seguida, e se preparou para aumentar seu cabedal de conhecimentos. Porque em sua personificação de uma colecionadora de objetos de arte em formato de porcos, ela era uma nulidade. Duas horas depois, já poderia se considerar uma expert nesse campo. Estava confessamente impressionada com a quantidade de artistas que escolhera os porcos como veículo de propaganda: cartazes, painéis, objetos. Porcos art deco\ Talvez ela própria começasse a servir os temperos da salada em um galheteiro de porquinhos, se encontrasse um igual ao exibido em sua tela. O celular tocou no instante em que Del tirou o fio da tomada, decidida a sair para comprar algumas mudas de roupas. — Novidades? — soou a voz de seu chefe do outro lado. — Nenhuma sobre o paradeiro do objeto, mas já encontrei alguém para me ajudar na busca — ela respondeu, levando os dedos imediatamente ao colar. — Ele é de confiança? A inferência de que o alguém era um homem irritou-a. Mais ainda pelo fato de Porter estar certo. — Como qualquer um — Del respondeu sem se comprometer. — O que você disse a ele? — Vozes do outro lado a fizeram adivinhar que seu chefe lhe dedicava a mesma atenção em pessoa quanto a oitocentos quilômetros de distância. Ela esperou que a outra pessoa parasse de falar com ele antes de responder. — Nada. Ele pensa que eu coleciono porquinhos. — Tenha em mente que o leilão de peças Unruh está marcado para daqui a um mês. Se você trouxer o porco, seu nome estará em todos os créditos. Caso contrário, eu nomearei David para conduzir o evento. A conversa foi encerrada. Del demorou alguns segundos para pressionar a tecla que desligava o aparelho. Estava aturdida e indignada. Antes ele a fizera crer que David estava fora da jogada. Agora ameaçava ignorá-la. Mas Porter não perderia por esperar. Ela não estava disposta a perder aquela luta. Del acordou com a campainha do telefone na manhã seguinte. — Bom dia! — a voz de Sam Samson soou amistosa. — Pronta para começar a caçada? Seus olhos se recusaram a focalizar o relógio sobre a mesinha-de-cabeceira. Forçou-os, e quase disse um palavrão ao descobrir que eram apenas seis horas. — Alô? — ele insistiu diante do silêncio prolongado. — Estava dormindo?
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— Não — Del mentiu. —Estou desamarrando meu tênis. — Sério? — Sam pareceu surpreso. — Não pensei que fosse do tipo saudável que madruga para se exercitar antes de ir para o trabalho. — Por que não? — Não consigo imaginar alguém que usa saltos correndo ao redor de uma praça. Então ele notara as sandálias! — Pois se enganou. Sam pigarreou. — De volta ao assunto, o que acha de nos encontrarmos na Toca do Coelho para um café em uma hora? Del tomou um banho e vestiu a roupa mais barata que comprara nos últimos sete anos. Uma calça jeans desbotada e agarrada. Talvez devesse usar tênis para dar crédito a sua história, mas não os colocou por dois motivos: não tinha tênis e não gostava de tênis. Também porque o sucesso de seu plano dependia em parte do modo como ela afetaria a libido do atual parceiro. Ao abrir a porta de vidro, Del ouviu uma sineta. Era uma espécie de alarme para marcar a entrada e a saída das pessoas. E um sinal para que todos os olhares se voltassem para ela. Para disfarçar o constrangimento, Del resolveu apelar para o antídoto da timidez: a exibição. Sacudiu os cabelos platinados sobre os ombros e seguiu direto para o homem que a esperava sentado à primeira mesa. Na tarde anterior, ela não tivera tempo para examinar detidamente sua figura. Agora, sob as luzes fluorescentes, seria impossível não fazê-lo. A camiseta básica envolvia cada músculo dos braços e do peito. A cor preta realçava a pele bronzeada. Ele se levantou e tirou o chapéu. Esperou que ela se acomodasse, antes de tornar a se sentar e fazer um sinal para que fossem atendidos. — Quanto você correu? A pergunta a pegou desprevenida. — Alguns quilômetros. — Então deve ter passado pela loja, mas eu não a vi. — Eu sou rápida — Del mentiu e se apressou a mudar de assunto. — Já sabe por onde deveremos iniciar nossa busca? Becca trouxe uma bandeja com café e rosquinhas. Del pegou uma de geléia e adoçou o café com açúcar. Não se importava com o sabor dos adoçantes artificiais em refrigerantes e chá, mas gostava de açúcar no café. — Parece que você não se preocupa com seu peso. Del quase engasgou. O que ele estava insinuando? Que ela estava gorda? — Está querendo dizer que eu devo? Sam ficou tão atrapalhado que derramou metade da xícara. — Não. Em absoluto. Depois disso, eles comeram em silêncio. Sam não parava de reprovar a si mesmo pela falta de tato. O que dera nele para falar aquilo? Não sabia que todas as mulheres odiavam ter o peso acima da tabela? Apesar de que Del não tinha nenhum motivo para se lamentar. Seu corpo era perfeito. E se havia alguns gramas a mais, eles estavam nos lugares certos. — Consegui boas dicas — Sam finalmente conseguiu dizer, na esperança de que isso consertasse o equívoco. — Mas você terá de trocar essas sandálias por algo mais confortável. Seguiremos por uma rota de buracos e a última coisa que desejo é ter de levá-la para um hospital para engessar o tornozelo.
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A impressão de Del era de que seriam necessários mil banhos para que ela voltasse a se sentir limpa. O que havia com Sam que insistia em dirigir com o vidro aberto? Não que fosse de todo mal. Ao menos a impedia de aspirar o perfume cítrico de loção após barba que o deixava ainda mais tentador. — O vento a incomoda? — ele perguntou ao vê-la tirar uma folha do decote. Ela estava com os cabelos presos, mas mal conseguia respirar por causa do pó. — Não. Eu adoro o ar do campo — ela se forçou a responder. Em seguida foi a escolha da estação de rádio. Sam sintonizou em uma música que Del abominava. Tentou pedir delicadamente que ele mudasse de estação. Chocado que ela não soubesse apreciar uma boa música, Sam insistiu para que ela prestasse atenção à letra e se pôs a assobiar em acompanhamento. O que Del poderia fazer exceto se obrigar a ter calma, embora tivesse vontade de esticar a mão e desligar o aparelho? Ao final do dia, ela tinha ímpetos de gritar de frustração. — Esta será nossa última parada — Sam informou-a ao se aproximarem de uma construção de madeira com aparência de abandonada. Ela jamais vira algo igual, a leste ou a oeste do Mississipi. Como alguém poderia ter esperanças de encontrar um objeto de arte naquela espelunca? Del ouviu as tábuas rangerem sob seus pés ao subir o degrau. Restava saber se ali vendiam objetos realmente antigos, ou simplesmente velhos e gastos. — Que lugar é esse? — Del questionou, horrorizada. A impressão que dava era que o teto desabaria a qualquer instante. Sam apontou para uma placa. — Você certamente já deve ter ouvido falar no velho Izzy. Ele é muito conhecido na região. — Sam a olhou de esguelha. — Mas você nunca disse de onde era, não é verdade? Aquele seria o momento ideal para Del morder o lábio, ou mexer nos cabelos. Em vez disso, ela olhou para Sam como se quisesse fulminá-lo. Estava cansada e apreensiva. Talvez devesse inventar uma desculpa para poder entrar sozinha na loja. Se conseguisse convencer Sam a esperá-lo na caminhonete, não correria o risco de ser reconhecida pelo dono. O homem era realmente conhecido da região. Seu pai costumava fazer negócios com ele. Nos últimos tempos, ele havia desaparecido do mercado. Jamais lhe ocorrera que pudesse encontrá-lo justamente naquele momento. De repente, o salto da sandália, que ela se recusara a trocar, ficou preso entre uma tábua e outra. Del forçou o pé para livrá-lo e se desequilibrou. Ao cair de joelhos, deixou escapar uma palavra que normalmente só dizia quando estava sozinha. — Nossa! Não pensei que mulheres também usassem esse tipo de vocabulário! O sarcasmo do tom afetou-a. Ela teria de se controlar mais ou seu esforço acabaria indo por água abaixo. A ocasião clamava por uma mudança de estratégia. Se Sam queria guerra, ela lhe daria munição. Ele estava parado e não fazia nenhum movimento para ajudá-la a levantar. Ela se inclinou de modo proposital para que ele visse seus seios sob o decote e tirou a sandália. Sem que Sam esperasse, ela apoiou o pé descalço na perna dele e atirou a sandália diretamente em sua mão. Sam agarrou a sandália por puro reflexo. O que havia com aquela mulher? Ela era capaz de se transformar de inocente em sedutora em um piscar de olhos. O modo com que estava pressionando sua coxa, perto da virilha, estava lhe tirando o fôlego. Ele não sabia se saltava sobre ela ou se fugia em disparada. Ou melhor, ele sabia o
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que deveria fazer. Sempre gostara de viver perigosamente. Por que Sam estava sorrindo daquele jeito para ela? Seu instinto de preservação mandou que afastasse o pé, mas como se antecipasse seu movimento ele o segurou pelo tornozelo. — Pensei que quisesse que eu a ajudasse — Sam alegou enquanto largava a sandália e se punha a lhe massagear a panturrilha. — Não sofreu nenhum estiramento dos músculos, eu espero. O coração de Del bateu mais forte. Uma sensação estranha se apoderou de seu peito. Se tivesse escolha, gostaria que ele continuasse fazendo aquilo. Não estava acostumada a usar saltos. Exceto em festas ou em situações que a obrigavam a esbanjar seu charme feminino. Aquele toque estava simplesmente maravilhoso. E a estava fazendo imaginar o que aquelas mãos eram capazes de fazer em outras partes de seu corpo... Del gemeu sem perceber, mas detectou instantaneamente a centelha que brilhou nos olhos dele. — Alguém se machucou? — O vozeirão de Izzy Malone os trouxe de volta ao presente. Sam estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Incapaz de se equilibrar em um só pé, Del tombou sobre ele e agradeceu por seus cabelos terem se soltado da fivela e caído em seu rosto. Ao menos por aquele momento ela estava salva. — Não o reconheci, Sam — disse o dono. — Com você curvado sobre a moça. Eu a conheço? Del soube que estava perdida quando Izzy a encarou. Antes que pudesse acabar com seu disfarce, estendeu sua mão para ele. — Sou Del Montgomery. Prazer em conhecê-lo. O homem olhou para a mão de Del, depois para seus olhos e finalmente para Sam. — O prazer é meu — ele respondeu após o que pareceu a Del uma eternidade. Suspirou sem deixar que os dois percebessem. Sabia que teria de pagar um preço ao velho amigo de seu pai por esse favor, mas qualquer coisa seria melhor do que Sam descobrir sobre seu passado, e rumores sobre sua volta chegassem aos ouvidos do xerife e de seus pais. — Foi bom você ter passado por aqui, Sam. Recebi novas mercadorias que não são exatamente novas, como você já deve ter adivinhado. — Izzy fez um sinal de aquiescência ao sorriso de gratidão que Del lhe deu às escondidas. — Por que não dá uma olhada nas prateleiras enquanto eu preparo um bule de chá? Del já estava seguindo Izzy em direção ao vagão de trem, atrás do barracão, que deveria servir de moradia para o velho homem, ou teria visto o queixo de Sam vir-tualmente cair. — O que você anda aprontando desta vez, Lilah Mont? — E antes que Del respondesse, ele tirou uma chaleira do fogão e despejou-a sobre um saquinho de chá preto. — Seu pai tem idéia de que você está aqui? — Já pensou em pintar o vagão por fora, de vermelho? — Del mudou de assunto. — Ficaria bonito. — Faz tempo que eu não o vejo — Izzy continuou como se não a tivesse escutado. — Mas encontrei sua mãe um dia desses. Você está incrivelmente parecida com ela. — Onde a encontrou? — Del não queria falar sobre si mesma, mas notícias dos pais, particularmente de sua mãe, a interessavam.
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— Em Henning. Foi a primeira vez que eu a vi em um leilão em vinte anos. Del fechou os olhos por um instante. Então sua mãe resolvera entrar no esquema de seu pai para forçar um aumento nos lances. Bastava alguém demonstrar interes-se em arrematar uma oferta, sua mãe ergueria o braço e se disporia a pagar mais. A pessoa subiria o preço e então sua mãe desistiria convenientemente da compra. Como seu pai mandava que ela fizesse, quando era mais nova. Com um novo suspiro, agora às claras, Del resolveu ir direto ao ponto. — O que eu terei de fazer para você esquecer que me viu aqui? Izzy levou um longo tempo para tornar a falar. — Eu estava cogitando exatamente por que motivo você teria vindo para cá, se continua avessa à idéia de voltar para casa. Dizer a verdade não era uma opção. Del encolheu os ombros. — Fiquei entusiasmada com algumas peças que comprei cerca de um ano atrás e resolvi montar uma coleção. Sam Samson está me ajudando na caça de objetos. — E quanto a seu nome? Por que o mudou? Em um gesto instintivo de proteção, Del tocou as pérolas no pescoço. Se rumores daquela conversa chegassem aos ouvidos de seu pai, ele se apresentaria diante de Benjamin Porter e ela seria sumariamente demitida. — Quero esquecer sobre meu passado. — Mudar o nome não altera os fatos. Além disso, eu não me lembro de você ter feito algo de que possa se envergonhar. Mas, afinal, o que você está colecionando? Del encolheu os ombros. Sentia-se ridícula cada vez que precisava repetir aquela mentira. — Porquinhos. — Não é de admirar — ele declarou, para surpresa de Del. — Você andava com aquele seu leitão Hampshire pela coleira como se ele fosse um cachorro. — Você tem alguma peça nesse formato para vender? — Del mudou abruptamente de assunto. Izzy cofiou a barba. — Acho que tenho alguma coisa. Os olhos de Del faiscaram ao notar uma pequena jarra de cerâmica. A etiqueta marcava duzentos dólares. Em um leilão de peças, o objeto seria arrematado com facilidade por setecentos. Um ruído indicou que Sam havia terminado sua investigação e que estava rumando para o vagão para encontrá-los. Del sentiu pena ao vê-lo. E também uma súbita vontade de rir. O pobre homem estava coberto de pó. De seu chapéu pendia uma teia de aranha como se fosse um véu. — Encontrou algo de bom? Um olhar glacial foi a resposta de Sam e um agora inevitável sorriso a dela. — Alguma coisa o interessou, filho? — Pode me mandar o lote inteiro em consignação que eu tentarei vendê-lo para você no próximo leilão. — Sam fez uma pausa deliberada e seus olhos se fixaram em Del e em Izzy como se quisessem trespassá-los. — Sobre o que vocês estiveram conversando? — Sobre peças antigas — disse Izzy enquanto despejava água quente em uma outra caneca para dar a Sam. —A moça estava me dizendo de sua predileção por porcos de cerâmica. Quanto a sua oferta, depois conversaremos sobre os detalhes. Sam ergueu uma sobrancelha. Decidida a acabar com aquele ar de suspeita que impregnava o ambiente, Del foi
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até Sam e surpreendeu-o ao se aproximar como se fosse beijá-lo. Ele fez menção de recuar. Ela, então, pediu que ele não se movesse para que pudesse tirar a teia de aranha de seu chapéu. — Vocês vêm comigo? — Izzy perguntou, colocando um fim ao constrangimento, e já andando em direção à loja. O que aquela mulher estava querendo fazer com ele? Sam estava a ponto de explodir. Além de provocá-lo a todo instante, tinha certeza de que ela estava mancomunada com Izzy de alguma forma. A velha raposa nunca lhe entregara nenhuma peça em consignação. Ele era um homem, afinal, como qualquer outro. Não podia culpá-lo por ter se encantado por Del e dado um jeito de ficar a sós com ela. Algo lhe dizia, porém, que não era exatamente no corpo de Del que ele estava interessado. Teria de redobrar sua vigilância, se não quisesse ser passado para trás. Alguns minutos depois, a desconfiança de Sam se dissolveu em diversão. Talvez estivesse sendo maldoso, mas não conseguia resistir à vontade de rir de Del, que acabara resolvendo tirar as sandálias, e tropeçava a cada instante pelos cantos escuros e amontoados de velharias. No meio da sala, Izzy parou para mostrar uma jarra em formato de um porco. Del interessou-se de imediato pela peça e eles estavam negociando um abatimento sobre o preço da etiqueta quando algo pendurado em uma viga chamou a atenção de Sam. — O que é aquilo? — Wilbur — Izzy respondeu, olhando por cima do ombro para seu morcego de estimação. Sam se lembrou, naquele exato momento, que precisava verificar algo com urgência na caminhonete e se despediu. Estava disposto a esperar o tempo que fosse necessário até que Del resolvesse encerrar sua visita ao antiquário com trezentos dólares a menos na carteira e cerca de uma dúzia de porcos a mais para carregar na bagagem. O resultado fora positivo ao final do roteiro de compras. Del estava satisfeita. A certeza de ter lucrado era absoluta. E o que era mais importante, pechinchara até conseguir o preço que queria. Negociar era fator de orgulho em sua família. Seu pai nunca fechava uma compra na primeira, nem na segunda, nem na quinta tentativa. Essa era uma das poucas características que ela apreciava no pai e que gostava de ter herdado. — Pensei que você tivesse se perdido sob uma pilha de porcos. Por que demorou tanto? — Sam indagou enquanto a ajudava a colocar os pacotes no banco de trás. — O que deu em você para sair em disparada? — Del quis saber assim que entrou na caminhonete. — Nada. Sam ligou o motor e voltou para Allentown em silêncio. Del não tentou forçá-lo a falar. Que bicho, afinal, o havia mordido? — A que horas amanhã? — ela se limitou a perguntar quando Sam parou na frente do restaurante da prima. — Pretende continuar depois de tudo isso que comprou? — ele reagiu como se ela tivesse dito um absurdo. — Claro que sim. Hoje você só me levou em lojas. Não foi para isso que o contratei. — Está se queixando? — Não, mas isso eu poderia ter feito sozinha. Becca me disse que você conhece
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gente ligada a esse tipo de negócio. Eu quero visitar colecionadores. Se eu precisasse apenas de um motorista, teria feito questão de algum conforto, pelo menos. No instante que Del se viu impossibilitada de soltar o cinto de segurança, ela soube que teria de responder pelo ataque. Sam se inclinou sobre ela com ar ameaçador. Colocou uma das mãos sob o cinto como se quisesse afrouxá-lo, mas só conseguindo prender os dedos contra a cintura dela. Que foram subindo mais e mais, obrigando-a a prender a respiração. — Não acha que a falta de conforto poderia ser chamada de dispositivo de segurança extra? — ele insinuou. De repente tímida, ou simplesmente sem palavras, Del baixou os olhos. Não esperava que Sam fosse segurá-la pelo queixo, fazê-la encostar a cabeça no banco e se apoderar de seus lábios sem lhe dar escolha. Capítulo III O primeiro pensamento de Del foi empurrar Sam contra o painel. De todos os homens que já conhecera, ele ganhava o troféu dos insolentes. Mas em questão de segundos, sua indignação dissolveu como açúcar em água. Ele beijava bem demais. E, na verdade, ela não podia ser drástica em suas acusações. Porque tampouco era um modelo de honestidade. Abraçou-o pelo pescoço e se entregou ao prazer do momento. Não havia nada mais sexy do que um homem musculoso. Com as mãos deslizando pelas costas amplas, ela não conteve um suspiro. Entusiasmado com o som de concordância, Sam desafivelou o cinto e procurou tocá-la por baixo da blusa. A um novo suspiro, as mãos, a princípio hesitantes, adquiriram confiança. Um arrepio percorreu todo o corpo de Del. Ela o abraçou com mais força. Queria sentir a rigidez daqueles músculos contra a maciez de sua pele. No mesmo instante, Sam a posicionou contra a janela. E antes que ela tentasse adivinhar suas intenções, ele a surpreendeu com toques de língua ao longo do pescoço e em volta da orelha, fazendo-a arquear o corpo de excitação. — Por que você me contratou? — A pergunta soou tão descabida nas circunstâncias que Del o empurrou para poder encará-lo. De que Sam estava falando? O brilho zombeteiro de seus olhos a fez entender que o jogo tinha invertido.
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Era ela quem deveria estar dando as cartas! Antes em ebulição, seu sangue passou a gotejar nas veias. Ninguém se divertia a custa de Del Montgomery. Mas no instante que decidiu colocar um fim no interlúdio, sentiu a intensidade do desejo que se apoderara de Sam e mudou de idéia. — Por que acha que eu o contratei? — Ela sorriu com malícia e passou um dedo sobre o contorno dos lábios dele. Ao vê-lo arfar e os olhos escurecerem, ela se sentiu recompensada. Sam permaneceu uns bons trinta minutos atrás do volante depois que Del foi embora. Ele não podia aparecer em público no estado em que se encontrava. Aproveitaria para refletir sobre tudo o que vinha lhe acontecendo desde que conhecera Del Montgomery. Ela estava mentindo, disso ele não tinha dúvida. Era tão bonita e atraente, contudo, que ele preferia relevar o mistério que a envolvia. Cometera um erro ao subestimar sua rival. Ou Del colecionava porquinhos, como dissera, a julgar pela quantidade que arrematara de Izzy, ou dispunha de bastante dinheiro para usar como cortina de fumaça. O que, afinal, uma mulher como Del, poderia querer com ele? Se havia um motivo escuso por trás dessa busca supostamente inocente, qual seria? Um súbito pensamento ricocheteou pela mente de Sam enquanto ele batia com os dedos contra o volante. Ela teria sido enviada por Armstrong? Fazia um ano que seu concorrente não promovia um leilão no condado de Allen. Teria ouvido rumores de que Sam tinha planos de expandir seu negócio? Estaria tomando medidas para impedir que isso acontecesse? A idéia de que Del poderia estar trabalhando para aquele crápula lhe doeu como um soco no estômago. Mas não conseguia atinar com mais ninguém que pudesse querer prejudicá-lo. O homem tinha má fama. O fato de ter sido obrigado a se retirar da cidade para não acabar preso ou coisa pior deveria tê-lo afastado em definitivo. De qualquer modo, Sam não via problemas com armadilhas. Gostaria apenas que a isca não fosse tão sedutora. Mulheres não lhe faltavam. Mas Del estava mexendo com ele como nenhuma outra. Com aqueles seus saltos impossíveis, ela lhe virará a cabeça. Culpá-la de estar em conluio com Armstrong, ele não poderia sem provas. Se quisesse obtê-las teria de se armar de paciência. Fingir-se de tolo. Recursos indispensáveis em sua profissão. Com sua experiência, mais cedo ou mais tarde ele acabaria tirando de Del a informação de que necessitava. Bastaria se lembrar de tocar as teclas certas, na hora certa. Quando Sam finalmente resolveu descer da caminhonete e olhou para a entrada do restaurante, estranhou que as luzes estivessem acesas, mas que as mesas esti-vessem vazias. Viu Becca de longe, colocando bichinhos feitos de crochê em um cesto de vime. Deveria estar preparando uma nova decoração para a vitrine. Ela não o viu à porta. Ele bateu e lhe fez sinal para que viesse abrir. Becca fez um sinal de que não seria possível. Ele insistiu e dessa vez a prima o atendeu. — O quê? — ele perguntou, espantado. — Você também agora deu para colecionar porquinhos? Onde foram parar os coelhos que dão nome ao estabelecimento? Becca sorriu. Estava de bom humor para variar. — Uma mulher de Daisy Creek esteve aqui ontem e me contou que nunca falta a seus leilões. Ela estava vendendo estes porquinhos feitos à mão e eu não resisti.
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Achei que deveria aproveitar o preço e diversificar. Um estrondo na cozinha os impediu de continuar. Becca largou os enfeites e se pôs a correr. Clay, o filho de seis anos, surgiu coberto de farinha. Duas lágrimas escorriam por suas faces. — Foi um acidente. — Meu Deus, Clay, quantas vezes eu lhe disse para não mexer em nada que esteja dentro dos armários? Alimentos são como dinheiro. Não foram feitos para brincar. Sam tocou no ombro do garoto, que chamava de sobrinho, e procurou confortá-lo. — Venha. Eu o ajudo a limpar a bagunça. Mas nada poderia ter preparado Sam para a cena com que se deparou. Não apenas a pia e as panelas estavam soterradas sob uma nuvem branca. O piso de cerâmica também estava imundo. — Minha mãe está louca da vida comigo — O menino soluçou enquanto levantava uma outra nuvem com a vassoura. Com infinita paciência, Sam tirou a vassoura das mãos dele e substituiu-a por um pano molhado. Que também retirou de suas mãos ao vê-lo enrolar uma bola com a massa que se formou. — Por que não pega uma cadeira e se senta? Eu lhe dou um biscoito para se distrair. A paz foi restaurada depois que Becca terminou de arrumar a vitrine com seus novos artesanatos e Sam de limpar a cozinha. Clay teve permissão para se levantar e voltar a brincar, desde que prometesse se comportar. — Aposto um dólar com você que assim que virarmos as costas ele abrirá novamente o armário. — Está falando sério? — Sam suspirou. — Não — Becca respondeu com desalento. — Eu não disponho de um dólar para gastar em apostas. — A situação continua tão difícil assim? A prima confirmou. — E não adianta fazer seu invariável discurso de otimismo. Estou com vinte e cinco anos, mas me sinto como se tivesse cem. Se não fosse por Clay, eu venderia este restaurante e tentaria uma nova vida em outro lugar. Estou tão cansada que às vezes penso em desistir da luta. Ao se despedir, Sam estava triste e melancólico. Ajudaria Becca se tivesse condições. Ela era esforçada, mas as despesas eram maiores do que seu empenho em ganhar para pagá-las. Principalmente estando sozinha com um filho para criar. E o pouco que ele conseguira economizar estava comprometido em um fundo de investimento para a compra de um local onde pudesse montar o próprio negócio. Nos últimos tempos, os lucros não estavam bastando nem sequer para saldar as prestações mensais da casa que ele herdara do pai e que precisara hipotecar. A vida não estava fácil para os Samson. De volta à pousada, Del chutou as sandálias para o alto assim que entrou no quarto, e tirou a calça jeans. Onde estava com a cabeça quando resolvera comprá-la? De tão apertada, deixara marcas em suas pernas. Jogou-se na cama e cruzou as mãos sob a nuca. Olhou para o teto como se ele pudesse ajudá-la a decidir que roupa colocar entre a limitada escolha que o armário oferecia. Não era justo! O que ela estava fazendo ao sul de Missouri quando poderia estar em Chicago, vestida de seda, onde sua única preocupação era vender mais do que David? Não que sua vida em Chicago fosse de causar inveja a alguém. Porque a verdade
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era que ela sentia falta da paisagem verde das colinas, do modo mais afável com que as pessoas tratavam umas às outras nas cidades pequenas, e, embora não gostasse de admitir, de sua família. A menção de Izzy à sua mãe a deixara com um nó na garganta que ainda não se desfizera. Fazia sete anos que não a via, desde que resolvera mudar de vida e de cidade. Não que se arrependesse de ter saído de casa. Estaria levando uma existência medíocre. Talvez estivesse, inclusive, atrás das grades. Porque seu pai nunca conseguira entender que havia coisas mais importantes do que fechar um negócio. A gota d'água fora o atrevimento dele em vender a única peça de valor que ela possuía, tanto material quanto sentimental. O colar de rubis que sua avó lhe deixara. Algum tempo depois, o pai a procurou e admitiu o erro. Ofereceu-se para ajudá-la em seu emprego de compradora de uma casa de leilões. Ela sempre lamentaria sua ingenuidade em ter acreditado que ele estivesse sendo sincero. Foi quando prometeu nunca mais voltar para o sul do Missouri. E lá estava ela! Sam Samson seria outro grande erro em sua vida, se continuasse investindo naquela relação. Precisava ser forte. Precisava ter em mente que seu único interesse no momento era encontrar o porco Unruh. Sam revirou-se na cama mais da metade da noite, tentando encontrar uma solução para o problema financeiro que o afetava. Mais do que isso. Tentando se preparar para passar mais um dia em companhia de Del. Se não descansasse ao menos algumas horas, como dirigiria por aquelas estradas poeirentas e cheias de buracos? Foi para o escritório, sonolento. Mais tarde, foi despertado de um cochilo por Kenny, com uma batida seca à porta. — Acorde! Você tem visita. Sam esfregou os olhos vermelhos e inchados e pestanejou, aturdido, ao ver a figura de Izzy a sua frente. — Estava esperando alguém? — caçoou Izzy, sentando-se pesadamente. — Em que posso servi-lo? — Sam perguntou formal, como se não tivesse ouvido a observação do outro. — Depende. Talvez seja você quem esteja precisando de meus favores — Izzy respondeu, enigmático. — O que você tem para beber? — Café, água, e uma máquina de coca-cola. — Nada mais forte? Surpreso com o pedido, às sete da manhã, Sam tirou uma garrafa de gim da gaveta e serviu uma dose. Para si próprio optou por preparar uma xícara de café solúvel. — Tem levado a garota a muitos lugares? — Izzy perguntou à queima-roupa. — Alguns. — O que ela tem comprado além de porcos? Sam estreitou os olhos. Qual a razão de tanto interesse? — Nada. — Ela procura algum tipo especial? De cerâmica, talvez/ Ele não estava entendendo o objetivo daquele interrogatório. Ouvira uma parte da conversa entre Del e Izzy e porcos de cerâmica tinham sido mencionados. Por que Izzy estava fingindo desconhecimento? — Não que eu saiba — Sam mentiu. — Então ela não o encarregou de procurar nada específico?
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— Não. E a você? O velho negociante deu uma risada. — Você é um sujeito desconfiado. — Por que não me diz de uma vez o que o trouxe aqui? — Sam resolveu ser direto. — Tenho um palpite e raramente me engano quando sigo meu instinto. Ele tem me salvado quando os negócios vão mal. O que você estaria disposto a fazer por mim para que eu lhe contasse? — Primeiro preciso saber de que se trata. O homem demorou alguns instantes para responder, como se estivesse refletindo sobre a exigência. Sam não estava olhando para ele, mas sentia seu escrutínio du-rante todo o tempo. — Existe um boato circulando por estas partes há quase trinta anos. Não acha estranho que essa garota tenha aparecido agora, justamente em busca de porcos de cerâmica, que é de que trata a história? Uma lenda local. Sam recostou na cadeira e aguardou que o outro se explicasse. — Conte-me. — Parece que existiu uma olaria a leste daqui muito tempo atrás. As peças eram feitas à mão. Dizem que eram feias, mas que tudo que se fabricava ali, se vendia como água. Depois que a fábrica fechou, nunca mais se falou sobre as peças. Até que um dia, há cerca de trinta anos, um colecionador caiu com seu carro no rio. Buscas foram realizadas e nada foi encontrado. Depois surgiram rumores de que ele estava voltando do Arkansas onde fizera uma grande compra que incluíra um porco de cerâmica daquela antiga olaria. Colecionadores de todos os lugares afluíram à região. Vasculhou-se o rio de ponta a ponta. Todas as tentativas de encontrá-lo foram infrutíferas. Finalmente, alguém sugeriu que o porco fora levado para a toca de algum castor e aos poucos os caçadores foram se retirando até que a história caiu no esquecimento. — Izzy tomou o último gole e colocou o copo sobre a escrivaninha. — Então, o que você me diz? — Está me dizendo que Del veio de Chicago até aqui por causa de uma lenda de trinta anos atrás, da qual eu nunca ouvi falar? — Por que não? Acha mais provável que ela tenha vindo de Chicago especialmente para lhe pedir que a ajude a aumentar sua coleção? Com qualquer tipo de peça? Independentemente de seu valor e importância? Sam ficou sem palavras a essa sugestão. O que Izzy lhe contara fazia sentido. Muito mais sentido do que a desculpa banal que Del lhe oferecera. — Por que resolveu me procurar e dividir seu palpite? — Sam afastou a cadeira de modo a balançá-la sobre apenas dois pés. — O que você acha? — Dinheiro. — É por isso que eu gosto de fazer negócios com você. Sem rodeios. Minha proposta é a seguinte: eu vou atrás de descobrir mais sobre a peça e você fica de olho na garota. — E quanto a ela? — O que é que tem? — E se ela encontrar antes? — Isso não acontecerá, se fizermos nosso trabalho direito. Sam gostava de levar vantagem. Era um comerciante, afinal de contas, e disputar
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preços e mercadorias fazia parte do negócio. Mas a proposta de Izzy lhe parecia de-sonesta. Principalmente no que se referia a Del. Ela não significava nada para ele. Era uma cliente como outra qualquer. Mas aproveitar-se de seu plano e deixá-la de fora seria traição. - — Soube que você está querendo comprar um pedaço de terra — Izzy prosseguiu com ar matreiro. — As coisas não parecem tão más para seu lado. Em contrapartida, o mercado anda em baixa. Também tenho reparado no abatimento de Becca. O imprestável do marido continua atrasando os cheques da pensão? Sam cerrou os punhos por baixo da escrivaninha. Ele conseguia enxergar claramente por baixo da máscara de preocupação que Izzy colocara. Isso, contudo, não mudava o fato de que ele e a família estavam mal de finanças. E a bem da verdade, mal conhecia Del e ela tampouco fora sincera sobre o motivo que a levara a procurá-lo. Além de tudo, não aparecera naquela manhã como ficara combinado. — Como você pretende dividir o lucro? — Sessenta por cento para quem souber do porco em primeiro lugar. Era um bom acordo. Isso Sam não podia negar. Nem tampouco o gosto amargo que lhe subiu pela garganta. Izzy estava se levantando para se despedir quando a porta do escritório foi aberta. Kenny entrou sem se anunciar. — Sinto ter esquecido de avisá-lo, mas aquela moça que esteve aqui ontem me pediu para lhe dizer que surgiu uma emergência e que ela não poderia sair hoje com você, mas que o encontra amanhã no restaurante de sua prima e que lhe paga o desjejum em compensação. O gosto amargo se espalhou pela boca inteira. — A que horas ela ligou? — Por volta das seis. Você ainda não havia chegado. Sam olhou para Izzy e franziu o cenho ao sorriso maldoso. Sem dizer nada, dirigiu-se à porta, esperou que os homens saíssem e fechou-a com raiva. Dele próprio. Del desabou na cama junto com as sacolas. Passara o dia inteiro fazendo compras. Roupas, sapatos, acessórios, não antigüidades. Para ela. Não para Benjamim Porter. Alegara uma emergência porque a questão era urgente. Não poderia continuar andando por aquelas estradas e ruas esburacadas com saltos que a obrigavam a se equilibrar a cada passo para não cair. O que acabara acontecendo, apesar de todos os cuidados. Nem usando roupas que pertenciam a outra pessoa. Porque a verdade era que tudo que havia pendurado no armário não passava da personificação barata de uma mulher que não era e que nunca desejara ser. Não tornaria a vestir meias-calça, nem saias, nem o jeans que cortara seu suprimento de oxigênio de tão apertado. A única peça de que não abriria mão era seu colar de pérolas. Pelo que pudera observar no dia anterior, Sam não tinha nenhuma pista sobre a peça de cerâmica. Ele não parecia saber nem sequer de sua existência. Por seu pro-cedimento, ela começava a duvidar que fosse tão bem relacionado quanto Becca afirmara. Continuar ao lado dele só significaria distração. E antes que a cena na cabine da caminhonete se repetisse, o melhor que tinha a fazer era cortar o mal pela raiz. Faria isso durante o café. A primeira providência de Del, na manhã seguinte, foi vestir uma calça jeans que realçava suas curvas generosas sem comprometer a circulação do sangue, uma camiseta rosa-choque e calçar suas novas sandálias. Sem salto. Estava se sentindo tranqüila ao subir em seu carro e rumar para a Toca do Coelho.
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Sentou-se em uma banqueta junto ao balcão porque todas as mesas estavam ocupadas. A mulher a seu lado, vestida com uma calça verde-limão, lhe deu um sorriso e ela retribuiu o gesto. A mulher estava comendo uma rosquinha de geléia que lhe trouxe água à boca. Mas estava determinada a resistir ao doce. Precisava se obrigar a fazer refeições mais saudáveis. — Está divina — a mulher contou. — Acha cedo demais para pedir sorvete de acompanhamento? — Del brincou e se esqueceu do que estava dizendo ao ver Sam entrar, pegar uma pilha de pratos sujos e desaparecer em direção da cozinha. — Nunca é cedo demais quando vale a pena.—A mulher deu uma piscada e fez um movimento com a cabeça indicando Sam. — Eu a vi conversando com ele o outro dia. Estivesse em Chicago, Del não responderia ao atrevimento de uma desconhecida, mas ali não era Chicago. E quanto mais contatos conseguisse, maiores seriam suas chances de descobrir uma pista. — Sim. Becca me apresentou a ele. — Engraçado. Deu-me a impressão de que vocês já se conheciam. Talvez o modo como ele olhava para você. A conversa estava se tornando mais e mais constrangedora. Del olhou para as rosquinhas na vitrine e decidiu pedir uma. Becca estava anotando o pedido de uma mesa no fundo. Talvez ela não se importasse se Del tomasse a liberdade de pegar o doce sem esperar para ser atendida. — O que a trouxe aqui? — a mulher perguntou no instante que Del resolveu se levantar. — Quero aumentar minha coleção de objetos em formato de porquinhos. — Nunca ouvi falar de alguém que colecione porcos. — A mulher deu de ombros. — Mas sei de uma história que trata sobre um vaso de cerâmica nesse formato. Você a conhece? Del sentiu o fôlego lhe faltar. — Que história? Becca se aproximou, naquele momento, serviu uma xícara de café a Del, e completou a da mulher. — Eu me chamo Tilde — ela disse. — E você? — Del Montgomery. — Montgomery? Você tem algum parente no Líbano? Del mal conseguia conter a ansiedade. Precisava fazer a mulher voltar ao assunto. — Não faz muito tempo que comecei minha coleção. Gosto de porquinhos desde criança. Tive um de verdade. Eu o enrolava em um cobertor na hora de dormir e o alimentei com mamadeiras quando a mãe o rejeitou. — Você fez dele seu animal de estimação. Mas eu estava falando de um porco de porcelana que está perdido há mais de trinta anos. Ninguém sabe dizer o que houve com ele. Del se obrigou a conservar o semblante calmo. O que aquela mulher estava dizendo era uma prova de que ela estava no lugar certo. Agora, só teria de fingir natura-lidade. Principalmente porque Sam estava voltando da cozinha e ela não queria que ele participasse daquela conversa.
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— Olá! — ele cumprimentou-a e à mulher. — Olá, filho. Trabalha aqui? Del precisou disfarçar um sorriso ao perceber que a mulher conseguira desconcertar o Sam Samson aparentemente tão seguro de si. — Dou uma mão a Becca de vez em quando. — Um gesto simpático de sua parte. Acha que poderia pegar uma rosquinha de geléia igual a minha para esta moça a meu lado? Ela também está precisando de uma mãozinha. Del sentiu que corava. Que mulher indiscreta! E como se não bastasse, ela cochichou em seu ouvido, enquanto Sam se abaixava para pegar o doce, para que não o deixasse escapar. — Pronta para darmos prosseguimento à caça aos porcos? — Sam brincou, mas se calou, surpreso, ao ouvir Del dizer que mudara de idéia e lhe pedir para colocar uma bola de sorvete sobre a rosquinha. Aproveitando que ficara novamente a sós com a mulher, Del aproveitou para convidá-la para almoçarem mais tarde de modo a continuarem aquela conversa sobre seu tesouro perdido. Jamais poderia esperar que a mulher fosse declinar do convite. — Sinto, mas tenho um outro compromisso. Por que não me deixa seu telefone e eu ligo para marcar um outro dia? Del escreveu o número da pousada e também de seu celular em um guardanapo. Por um instante tivera esperanças de que a desconhecida fosse lhe dar a dica de que precisava para resolver a situação com Sam antes que pudesse se arrepender- de tê-lo conhecido, e voltar em triunfo para Chicago. A mulher o guardou na bolsa e aproveitou a caneta de Del para rabiscar algo em outro guardanapo que colocou sobre o balcão junto com o pagamento. Sam voltou com o sorvete no momento exato em que ela se levantou para sair. Ao vê-lo estender a mão para apanhar o dinheiro, Del se apressou a pegar o guardanapo e guardá-lo no sutiã. — O que era aquilo? — Sam perguntou curioso. — Nada — Del respondeu, mergulhando a colher no sorvete e levando-a aos lábios com deliberada provocação. Sam, como ela esperava, esqueceu completamente sobre o guardanapo. Del sentiu o peito arfar de excitação. E antes que também pudesse esquecer seu propósito, inventou uma desculpa de que estava voltando para o hotel por causa de uma terrível dor de cabeça. Já fazia algum tempo que Del se fora, sem que Sam se lembrasse do episódio do guardanapo. Del estava às voltas com algum plano misterioso e ele queria descobrir o que era. Tinha quase certeza de que ela havia conversado com a mulher de calça verde sobre sua coleção e resolvera perseguir alguma pista. Sozinha. Mas se Del estava pensando que podia se livrar dele com aquela facilidade, deveria se preparar para uma revanche. Porque o modo como ela estava se comportando o convencera de que Izzy estava certo. Ela não estava na caça de porcos em geral, mas de um em particular. E deixaria de ser Sam Samson se ele não lhe tomasse a frente naquela disputa. Decidido a seguir Del, Sam se dirigiu à saída. Lamentava por Becca. Gostaria de poder ficar mais algum tempo para ajudá-la, mas seu orgulho e sua reputação profissional estavam em jogo. Estava colocando a mão sobre a maçaneta quando cerca de vinte mulheres o
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antecederam. Faziam parte do clube feminino da cidade e estavam se reunindo na Toca do Coelho pela primeira vez ao que ele sabia. Becca ficou tão estupefata e feliz com a novidade que trombou em uma mesa no afã de recepcionar o grupo. Ele hesitou, mas não retrocedeu em sua decisão. A prima sorriu ao ouvir a desculpa sobre o compromisso urgente e disse que entendia, assim como esperava que todas aquelas mulheres fossem entender o motivo da lentidão no atendimento, e que lhe dessem uma nova chance por ocasião de seu próximo encontro. Sem dizer nada, Sam começou a ajudá-la a juntar as mesas para acomodar as mulheres. Capítulo IV Assim que chegou na pousada, Del desamassou o papel e viu, com espanto, que a mulher havia escrito o nome de um rancho de criação de porcos. Não era, em absoluto, o que tinha em mente, mas incapaz de recusar uma dica, qualquer que ela fosse, voltou para o carro. E se fosse lá que o porco Unruh estivesse? Só havia um jeito de descobrir: ir ao local e conferir pessoalmente. Depois de passar por dois postos de gasolina sem encontrar uma lista telefônica para se orientar sobre a localização da Fazenda Hollywell, Del manobrou o carro e retornou à cidade. Deveria haver uma lei proibindo nomes repetidos. Até que ela descobrisse qual Hollywell era dono de um rancho de porcos, Porter já a teria excluído de sua folha de pagamento e nomeado David seu único assistente. Estava perdendo um tempo precioso. A essa altura, Sam já deveria estar tão desconfiado de suas intenções, que acabaria colocando-a contra a parede. O que de fato estava precisando era de alguém que pudesse levá-la até o Hollywell certo. A loja de rações e artigos para animais parecia ser a mais indicada como posto de informações. Mas da mesma forma que ela não confiava em Izzy, não poderia esperar que o amigo de Sam se calasse sobre o motivo de sua visita. Ou seja, ela não tinha escolha. Só lhe restava torcer para que Sam não estivesse na loja e que ela já estivesse longe dali no momento que Kenny lhe contasse que ela fora procurá-lo para pedir uma informação. Del estacionou o carro e se mirou no espelho retrovisor para se certificar de que a maquilagem e os cabelos estavam em ordem. Vestira a calça jeans que comprara no dia anterior e estava se sentindo atraente e feminina ao caminhar em direção ao jovem loiro que estava virado de costas para ela, carregando um saco de ração. — Olá. — Sam não está — o rapaz disse assim que a reconheceu. — Eu vim aqui, na verdade, na esperança de que você pudesse me ajudar — Del explicou, apoiando-se de maneira provocante em uma pilha de sacos. — É mesmo? — Kenny a imitou, sem humor. O que havia com os homens de Allentown para serem tão desconfiados? — Estou precisando de orientação para chegar a um endereço — Del resolveu ser direta. O quanto antes se afastasse de Allentown, maiores seriam suas chances de encontrar a peça e ir embora. — Já tentou comprar um guia ou parar em um posto de gasolina? — O que há com você? — Del franziu o rosto.
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— Eu acho que você veio aqui com segundas intenções — ele respondeu, franco. — Sam já tem problemas o bastante. Del mordeu o lábio. Que falta de sorte a dela! Viera bater à porta de um sujeito ainda mais desconfiado do que Sam. — Você nem sequer me conhece. Como pode me julgar? Afinal de contas, eu só lhe pedi uma informação. O quanto antes você a fornecer, mais rapidamente poderei deixá-lo em paz. — Por hoje ou em definitivo? — Para sempre — Del respondeu. Ele tirou o chapéu, girou-o nas mãos e suspirou. — O que quer saber? Ao pisar no acelerador, à saída do estacionamento, Del levantou uma nuvem de poeira. Estava certa de que ao voltar, seu carro teria mudado de cor. Segundo Kenny, ela teria de viajar cerca de cinqüenta quilômetros por estradas de terra e buracos. Que homem ranzinza. Se ela tivesse mais tempo, tentaria descobrir o nome da mulher que o deixara naquele estado. Sam acabou ajudando no restaurante até que as senhoras resolvessem dar o encontro por encerrado. Seu humor estava péssimo. Agradeceu mentalmente por não ter de conduzir nenhum leilão nos dias que seguiriam. Sua paciência esgotara no atendimento àquelas mulheres. Mas pior do que isso, era a certeza de ter sido passado para trás. Aquela altura, Del estava duas horas a sua frente. Mas só para ter certeza de que ele não a estava julgando mal, foi até a pousada conferir se o carro dela estava no estacionamento. Com uma imprecaução, ele desceu e se dirigiu à recepção. Como imaginava, Del tinha mentido. Ela provavelmente já havia localizado a peça e naquele instante estava regressando a Chicago. Surpreendentemente, a recepcionista o informou de que Del Montgomery ainda não havia encerrado sua conta. Sem ter o que fazer a não ser aguardar notícias, Sam agradeceu pela informação e rumou para o escritório. Entrou pelos fundos em silêncio para não atrapalhar Kenny que estava diante da tela do computador, concentrado em bater nas teclas com apenas dois dedos. Deixou-se cair na cadeira atrás da escrivaninha, entrelaçou os dedos e colocou-os sob a nuca em posição de relaxamento. Estava começando a desanimar. Se não tomasse providências ur-gentes, acabaria perdendo a maior chance de salvar seu negócio e o de Becca. Restava descobrir que providências precisariam ser tomadas! Eventualmente, Kenny acabou se levantando e entrando na sala de Sam. — Até que enfim você resolveu dar o ar da graça! Sam estranhou o tom sarcástico, mas relevou. Kenny talvez tivesse algo importante para lhe dizer e ele não podia se arriscar a começar uma discussão. — Ei! Eu avisei que deveria ficar fora o dia inteiro. Cheguei faz alguns minutos. O que houve? — Aquela garota que você tem carregado a tiracolo. — Eu estou sendo pago para levá-la aos lugares. Por que você está assim? — Porque ela está usando você. Será que não percebe? Sam estreitou os olhos. — Já deu para entender que ela esteve aqui. Alguma chance de você me dizer onde ela foi? Por acaso ela mencionou algum nome ou algum endereço? — Você sabe em que está se metendo ao se envolver com ela? — Kenny retrucou. — Eu não estou me metendo em nada — Sam resmungou.
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— Mas desconfio que Del não me contou a verdadeira razão que a trouxe para estes lados e que seria de minha vantagem descobrir de que se trata. O amigo pareceu respirar um pouco mais aliviado. Sam lamentou por ele. Ao que tudo indicava Kenny ainda não havia conseguido superar o rompimento do noivado. Era preciso ter paciência. — Você não precisa se preocupar. Del não é nenhuma Mata Hari e eu não trabalho para o Serviço Secreto. — Ao ver o amigo dar de ombros, Sam lhe cobrou uma res-posta. — Então? Ela disse para onde estava indo? — Se eu fosse você, desistiria dela. Mas como o problema é seu, não meu, ela perguntou como deveria fazer para chegar à fazenda Hollywell. Eu tentei convencê-la a desistir da idéia, mas não adiantou. A essa altura, ela já deve ter atolado aquele carro feito para andar pelas ruas da cidade, e estourado as tiras de suas sandálias de festa. Del parou e cogitou da prudência de atravessar a ponte. O nível do rio estava alto por causa do degelo. Dava impressão que seria fácil pisar no acelerador e chegar à outra margem, mas as notícias se repetiam todas as primaveras sobre algum tolo ter sido arrastado pela correnteza ao tentar desafiar a força das águas. Por outro lado, era uma ironia chamar de ponte aquele pedaço de concreto construído sobre o canal. Bastava chover algumas horas a mais para o local se tornar intransitável. E o tempo havia mudado consideravelmente nas últimas horas. Má sorte a dela. Seria impossível atravessar a ponte de carro. Haveria alguma chance de arregaçar as calças jeans novas e chegar até o outro lado, em vez de ir parar no Arkansas, onde o rio desaguava? Sam diminuiu a marcha ao avistar o veículo azul parado a poucos metros da ponte. Era um alívio saber que Del tivera a sensatez de adivinhar que o motor do carro não tinha nem a altura nem a capacidade necessária para transportá-la até o outro lado. O céu estava cinzento e o vento frio. As águas deveriam estar geladas. Não seria nada agradável ter de enfrentar o mau tempo para ajudar alguém a recuperar um carro. Mesmo que esse alguém fosse uma mulher que estava começando a lhe parecer mais importante do que uma oportunidade de fazer um bom negócio. Assim que estacionou a caminhonete, Sam desceu e foi até o carro de Del, preparado para bater no vidro e surpreendê-la. Mas foi ele quem se surpreendeu ao encontrá-lo completamente vazio. De ambos os lados da pista, o mato crescia até a altura da cintura. Sam se recusava a acreditar que Del fosse andar por aquelas terras, onde não se via sinais de vida humana. Restava pensar apenas que ela estava tão obcecada por investigar o paradeiro da peça que fechara os olhos e a mente ao perigo e abandonara o carro para prosseguir a pé. Invadido por uma súbita apreensão, Sam entrou na água e avançou. Faltava mais ou menos um metro para ele alcançar a outra margem quando algo brilhou com a claridade que se fizera momentaneamente entre as nuvens. Ele se deteve e tentou identificar o que era. Seu coração quase parou de bater ao reconhecer a sandália que Del estava usando aquela manhã. Sem pensar em mais nada, se atirou na água para apanhá-la em meio a um arbusto. Deus, ali estava a prova de que Del tentara enfrentar a correnteza e fora levada por ela. O choque da descoberta o fez estremecer. Movido pela angústia e pelo
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desespero, ele ignorou o frio que já estava começando a entorpecer seus pés e pernas, apanhou um galho de árvore como apoio e se pôs a procurá-la. Ele gritava o nome de Del à medida que avançava. Ela não respondia. O único ruído a quebrar o silêncio vinha do rio que o enregelava. Uma onda de pânico o assaltou. Ele fechou os olhos por um instante e rezou para que Del não tivesse se afogado. — O que você está fazendo? Ficou maluco? — a voz de Del penetrou pelas camadas de aflição que o envolviam. Ele ergueu a cabeça para se certificar de que não estava sendo vítima da imaginação. Olhou ao redor e a viu. Del estava parada perto do carro, descalça, segurando apenas um pé de sandália. A gratidão por vê-la viva foi uma das emoções mais fortes que já sentira. E também a raiva que a seguiu. Ele realmente deveria ter ficado maluco. Estragara um par de botas caras e perfeitas por duas tiras de couro enfeitadas com contas de vidro. Para não mencionar a ameaça de morte por afogamento nem a possibilidade ainda maior de pegar uma pneumonia. Del não conteve um sorriso ao ver Sam se agarrar a um galho baixo de um velho carvalho que crescia à margem para sair do rio. O que dera naquele tolo para querer tomar um banho de roupa e tudo com aquele tempo horrível? No momento que ela entrara no rio e sentira os pés enrijecerem de frio, tratara imediatamente de procurar uma rota alternativa. Havia perdido uma sandália na tentativa, mas não faria a tolice de tentar recuperá-la e acabar perdendo também a vida no processo. Não queria acreditar que Sam tivesse entrado no rio por causa de algo que lhe custara apenas vinte e nove dólares e noventa e nove centavos. A menos que... O modo como Sam a estava encarando funcionou como uma explicação muda. Sam atribuíra a perda da sandália a um acidente tenebroso. Havia pensado que ela fora arrastada pela correnteza. Sam temera por sua vida... Uma sensação de aconchego, de intensa ternura a invadiu. Teve ímpetos de correr para abraçá-lo. Em vez disso, colocou uma das mãos sobre o coração e a outra sobre a fronte. — Que cena impagável! O cavaleiro veio salvar a donzela em perigo! Um longo silêncio caiu sobre eles. Sam continuou andando. De repente, Del se deu conta de que havia exagerado na dose. Fechou os olhos ao adivinhar o que Sam pretendia fazer quando se virou novamente para o rio. Tornou a abri-los no exato instante em que ele devolveu a sandália ao lugar de onde a tirara. — Sinto muito, princesa. Você se enganou de história. Del perdeu a voz. Acompanhou os passos dele, estupefata, e quis gritar de frustração ao vê-lo subir na caminhonete e ligar o motor. Ao calor da descoberta seguiu-se uma frustração imensa ao cogitar se Sam seria capaz de abandoná-la do lado errado do rio, só para lhe dar uma lição. —Quer vir comigo, ou prefere esperar por uma abóbora? O que responder? Resmungando entre os dentes, Del subiu na caminhonete e cruzou os braços. — Afinal, o que você veio fazer aqui? — Engraçado. Eu estava pensando em lhe fazer essa mesma pergunta. Quando Kenny me contou que você queria visitar uma fazenda de criação de porcos, eu achei que ele estava zombando de mim. Depois me lembrei que você os coleciona e resolvi vir perguntar se você estava precisando de mim. — Sam respirou profundamente e deu um grunhido. — Ora, Del, faça-me o favor! Que palhaçada é essa? E agora? Como se sairia dessa enrascada?
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— Eu me interesso por porcos! — Del protestou. — Qual o problema de eu querer verificar como eles são criados? — Está se referindo à engorda e ao abate? Se a conversa não está agradando, mude-a\ — Você ainda não me disse o que veio fazer aqui. Sam encolheu os ombros. — Na falta de algo melhor com que me distrair, resolvi dar um passeio. Pensei que, de repente, poderia encontrar uma garota com uma forte dor de cabeça, perdida no meio do nada. — Eu não estava perdida — Del protestou. — Se eu quisesse, poderia ter voltado. — Mas não o fez. Ainda está inconformada pela falta de condições em prosseguir? Del suspirou. Sam não podia se calar e deixá-la em paz? Evidentemente, seu olhar ameaçador não surtiu o efeito que desejava. Sam fitou-a e insistiu que ela lhe dissesse o verdadeiro motivo que a levara a querer visitar o rancho sem ele. Mas logo ficou óbvio que pressionar Del Montgomery era perder tempo. Ela apenas sorriu. —A chuva tinha parado e eu quis aproveitar para apreciar a vista. Depois de ela dizer aquele disparate, não tornaram a falar até chegarem à fazenda. Sam pulou da caminhonete com uma agilidade assombrosa. Del ficou olhando en-quanto ele abria a porteira. Seus músculos sobressaíam sob a camiseta justa. Ele era um homem e tanto. No momento que terminou a tarefa, limpou as mãos nas pernas, e sorriu para ela com dentes que pareceram ainda mais brancos em contraste com a pele bronzeada. No mesmo instante, Del se obrigou a saltar. Para o chão. Antes que perdesse o controle, e se atirasse sobre ele. — Eu fecho a porteira. Del contou até dez para acalmar sua respiração enquanto Sam entrava no rancho. Sam olhou de esguelha para Del. Ela não falava uma palavra desde a entrada na fazenda. Mas o sol havia vencido as nuvens e seu mau humor havia se dissipado como elas. Não havia nada como respirar o ar puro e saber que estava na trilha certa para um bom negócio para promover a tolerância e o perdão. Além disso, suas botas logo secariam. Não estavam perdidas como as sandálias de sua esperta parceira. Mal podia esperar para encontrar o por-quinho raro e se apoderar da peça bem debaixo do nariz empinado de Del. Poderia ter sido diferente se Del não o tivesse traído. Como seu nariz a traíra. Ao contrário da atriz, no seriado A Feiticeira, que o movia para fazer suas mágicas, Del o movia antes de dizer uma grande mentira. Mas, apesar de tudo, ela era fascinante .Del mexia com ele mais do que qualquer outra mulher. Ficava excitado só de pensar nela. Quanto mais quando a tinha a seu lado. Encarou-a para provar a si mesmo que estava em controle. Mas naquele exato momento, ela respirou profundamente e seus seios incharam. Não houve tempo para conter o grunhido que lhe subiu à garganta. Fez de conta que não viu o modo aturdido com que ela se virou e continuou a andar. Estavam chegando finalmente a seu destino. Uma casa típica de fazenda surgiu ao longe. Uma ampla varanda, feita de pedras vermelhas, a circundava. Colunas brancas a sustentavam. As paredes, porém, estavam desbotadas e descascadas. Del sentiu os pés afundarem na terra arenosa. Que bela maneira de se apresentar a estranhos! Para chamar ainda mais a atenção sobre si, só se estivesse grávida! A idéia fez seus lábios distenderem. Esse risco ela não corria. Não saía com ninguém havia quase um ano. Não que não tivessem surgido homens em seu
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caminho na grande cidade. Apenas nenhum despertara seu interesse. Jantar em restaurantes caros e dançar em clubes escuros ao som de músicas eletrônicas não fazia seu gênero de diversão. Sentia falta dos encontros aos moldes antigos, em um barzinho, ao som de canções românticas e de rock and roll, com um copo de cerveja. Sam se adiantou em suas passadas. Ela o examinou de costas e mais uma vez teve de sorrir ao notar a água que escorria das botas. Sam poderia preencher seus requisitos de um homem atraente. Apenas ele era country e ela era rock and roll. Perdida em seus pensamentos, Del continuou acompanhando-o, mas parou, como se tivesse se transformado em uma estátua, ao ouvir um zumbido. — O que houve? — Sam se voltou alguns metros adiante ao perceber que ela não o estava acompanhando. — Uma abelha. Eu sou alérgica. — Muito alérgica? — Por que quer saber? — Del retrucou, assustada e irritada. O importante era ele tentar fazer algo para ajudá-la. Não ficar fazendo perguntas. — Porque uma abelha está ameaçando procurar o néc-tar dentro de seu decote. Del olhou para baixo sem mover a cabeça. Sam não exagerara. O demônio preto e amarelo estava pousado em seu peito. Ela sentiu que empalidecia. Fechou os olhos por um instante e se obrigou a permanecer calma e imóvel. — Pare de olhar para meus seios e espante-a! Se Del não estivesse paralisada de pânico, ele aproveitaria o ensejo para provocá-la. Nas circunstâncias, se apressou a atendê-la. Nunca ouvira um suspiro mais pro-fundo de alívio. — Se você é alérgica, não deveria ficar andando descalça por aí. Há mais trevos nesse gramado do que pintinhas em ovo de perua. — Não tenho muita escolha no momento, não acha? Antes que Sam pudesse responder, um homem surgiu de trás da casa, vestido com um macacão. — Ei, Sam, o que faz por estes lados? Deveria ser o Hollywell que ela procurava. Instintivamente, Del afastou uma mecha de cabelos para trás da orelha e alisou a roupa. — Pai, quem é aquela moça? Parece a Dolly Parton. Só que aquela moça parece ter cabelos naturais e minha avó disse que a cantora usa peruca. Del deu um sorriso para a garotinha que viera correndo atrás do homem e o abraçara pelas pernas. Mas não respondeu quando ela se pôs a contar sobre as fotos da famosa cantora sertaneja e atriz americana que vira em uma exposição. Em vez disso olhou para Sam em busca de socorro. — Bill, esta é Del Montgomery. Ela está interessada em aprender sobre suinocultura. A menina olhou para Del como se ela acabasse de descer do Olimpo. — Você gosta de porquinhos? Eloise teve sete filhotes. Mas ela está brava e não deixa que ninguém chegue perto. Nós estamos dando mamadeiras para alimentá-los. Entendendo que Eloise era o nome da mãe dos porquinhos, Del se abaixou, enternecida, para conversar com a criança. — Sim, eu gosto de porquinhos. Tenho uma coleção deles. Você adoraria. Eu poderia lhe dar um banquinho cor-de-rosa, no formato de um porco, se você também quiser iniciar uma coleção.
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Os olhos da menina faiscaram. — Eu tenho um vaso na forma de um porco que uso para guardar minhas pedras. Agora foram os olhos de Del que faiscaram. Com a respiração em suspenso, olhou para Sam para saber se ele havia ouvido a criança, mas ele parecia entretido em sua conversa com o pai. — Se quiser vir comigo, eu lhe mostro — a menina ofereceu, já estendendo a mão para Del. — Para onde você está levando a moça, Jenny? Mais do que depressa, Del respondeu que a garotinha queria lhe mostrar os filhotes. Sam lembrou-a sobre os trevos, mas ela dispensou a advertência com um aceno. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar. E seu último pensamento antes de desmaiar foi o de que deveria ter esmagado a abelha logo depois de ser picada na planta do pé. Sam conseguiu amparar Del a tempo de impedir que ela batesse com a cabeça no chão. A imagem da sandália flutuando ao sabor da correnteza lhe voltou à mente. Ao examinar a palidez mortal que lhe cobrira o rosto, a culpa o atingiu com o impacto de uma punhalada. Não havia tempo a perder. Era preciso dar a ela uma medicação de defesa. Enquanto o proprietário tentava conseguir um anti-alérgico, Sam tirou seu cinto e amarrou-o como um torniquete para que o veneno não se espalhasse pela circulação enquanto ele providenciava a retirada do ferrão. Nada mais importava naquele instante. Sua capacidade se restringira a dois movimentos. Verificar se Del continuava respirando e olhar em direção da casa, em pânico com a demora do sr. Hollywell em voltar com o socorro. Estivesse na cidade, já teria chamado o resgate. Mas o que estava esperando? Sam reprovou-se por sua falta de iniciativa. Por que não carregava Del para o carro e a levava ao hospital mais próximo? Estava desperdiçando minutos preciosos. Com extrema delicadeza, ele a abraçou como se esse gesto fosse garantir-lhe a sobrevivência. Del parecia um anjo em seu colo. Acariciava seus cabelos e suas faces como faria com uma criança. Os jornais sempre divulgavam o fato de pessoas morrerem em conseqüência de picadas de abelhas. Por que, então, ele não conseguia tomar uma atitude? Saberia, no fundo, que desespero só pioraria a situação? Que assim que o Sr. Honeywell desse um comprimido a ela, o problema estaria resolvido? Ocorreu-lhe, naquele súbito momento de lucidez, que talvez Del trouxesse na bolsa um medicamento próprio para essas eventualidades. Jenny, a seu lado, aguardava em silêncio. No momento que ele se preparou para pedir que a menina fosse buscar a bolsa de Del na caminhonete, a cena do encontro no rio lhe voltou à mente. Del deveria ter esquecido a bolsa no carro. A única coisa que ela segurava era um pé de sandália. Tão pálido quanto Del àquela altura, Sam suspirou de alívio ao ver que Hollywell finalmente estava saindo da casa. A seu lado estava uma mulher com um telefone sem fio e um copo d'água que entregou a Sam junto com dois comprimidos. — Minha esposa está com o médico na linha — informou Hollywell. — Ele disse para levarmos Del para a clínica se ela não recobrar a consciência nos próximos segundos. Sam despejou um pouco de água na mão e borrifou algumas gotas no rosto de Del com um movimento brusco dos dedos. Murmurou uma prece. Não lhe deu a
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medicação por receio de sufocá-la. Repetiu o procedimento com a água e agradeceu a Deus ao ver as pálpebras tremerem em um sinal de que Del estava voltando a si. Nesse instante, passou um braço sob seus ombros e a ajudou a levantar a cabeça para poder engolir os comprimidos. Pela primeira vez desde que se conheceram, Del fez o que ele mandava sem contestações. Não disseram nada um ao outro por um longo tempo. Ele se limitou a ficar ali, segurando-a nos braços. Não se lembrava de ter vivido uma experiência tão gratificante antes. Del queria que o chão se abrisse para tragá-la. Ela deveria ter se prevenido. Os médicos sempre a alertaram para o perigo de uma picada de abelha. A cada episódio, a reação tenderia a aumentar até levá-la ao colapso. Recomendaram que carregasse um antídoto permanentemente na bolsa para casos de emergência. Ela não acreditara. Já havia sido picada algumas vezes e nunca lhe ocorrera nada de mais grave. Agora estava tão envergonhada que não encontrava coragem para abrir os olhos e se desculpar pelo transtorno que causara. Odiava demonstrar fraqueza. Mais ainda cometer uma tolice imperdoável como aquela. Além disso, não se lembrava de ter gostado tanto de ficar aninhada nos braços de um homem. O cheiro de Sam a inebriava. O toque cítrico da loção após barba era simplesmente delicioso. Sem perceber, ela pressionou o rosto contra a maciez da camiseta que ele estava usando. — Del, você está me ouvindo? Del, você está bem? — A preocupação impregnava a voz masculina. Ela teve medo de abrir os olhos e se pôr a chorar. Ou de não resistir e beijá-lo. — Del? — Ele a sacudiu de leve. Não havia escolha. Era preciso enfrentar a situação. E ela lhe pareceu pior do que esperava. Porque no momento que seus olhos encontraram os dele, o resto do mundo deixou de existir. Ninguém jamais se preocupara com ela como Sam. Seus pais lhe ministraram os cuidados básicos, mas sempre a ensinaram a se virar sozinha com os problemas. Saber que alguém realmente se importava com ela a ponto de ficar a seu lado para o que desse e viesse despertou emoções desconhecidas. Era terrível e ao mesmo tempo maravilhoso. Uma gota de suor deslizou pela testa de Sam. Ela ergueu a mão e secou-a com o polegar. Antes que pudesse se preparar para interromper aquele momento mágico, Sam lhe deu um sorriso e beijou-a de leve como se temesse quebrá-la. — Moça? Agora que você acordou, podemos ir ver os porquinhos? — a pequena Jenny quis saber. — Não, Jenny. Ela ainda não está bem para se pôr a andar por aí. Del ouviu o que a mulher, certamente a mãe da menina, estava dizendo e se apressou a tentar se levantar. Não havia notado o cinto enrolado em seu tornozelo e vacilou. Certamente teria caído outra vez se Sam não fosse rápido e tornasse a ampará-la. — Sim, eu já estou bem. — Ainda assim, eu acho que deveria consultar um médico — Sam aconselhou. Talvez ela pudesse aproveitar e tirar vantagem da situação. Mas a verdade era que o mal-estar havia passado e ela se sentiria a última das criaturas se abusasse da bondade daquelas pessoas. Em especial de Sam. —Ao menos descanse por mais alguns minutos — disse a sra. Honeywell. — Procure não fazer nenhum esforço.
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— Já sei! — Jenny deu um lindo sorriso. — Se ela não pode ir até os porquinhos, eu vou trazê-los aqui para ela ver. Del desejou que o porquinho de cerâmica estivesse incluído nessa apresentação. A cada dia o perigo de ela se apaixonar por Sam estava aumentando. Por outro lado, isso significaria se afastar dele para sempre. Era o que realmente desejava? Não deveria ter passado mais de um minuto até que Jenny retornasse de trás da casa. Ela trazia um leitãozinho aos guinchos em um dos braços e carregava um objeto no outro. Del reconheceu a peça de imediato. Era um porquinho de cerâmica pintado com calça jeans e camisa verde, também de uma marca famosa, mas jamais a Unruh. Deveria valer uns trinta dólares, não a fortuna que seu patrão pretendia conseguir em seu próximo leilão. Devagar e olhando por onde pisava, Del foi até a casa apoiada no braço de Sam e se sentou no primeiro degrau da varanda. A visita à fazenda se revelara infrutífera. De qualquer forma, restava o consolo de ela não ter de se separar de Sam tão rápido. — Você gostou do meu cofrinho? — Jenny o entregou a Del. — E muito bonito. — Eu o dou a você, se quiser comprar o porquinho de verdade. — Diante da expressão de surpresa de Del, a menina se apressou a explicar. — Meu pai disse que era para eu não me apegar aos filhotes. Mas eu não pude evitar. Este é o meu preferido. Não suportaria que ele fosse parar em um açougue. Del sentiu um nó fechar sua garganta. Sabia exatamente como a menina estava se sentindo. Acontecera o mesmo com ela. Fora obrigada a crescer engolindo frus-trações até que chegara ao limite de não tolerar a idéia de continuar vivendo em uma fazenda. — Por quanto o senhor me vende o porquinho? — Del perguntou sem titubear. — Ele não está à venda. Jenny ganhou-o de presente — o pai respondeu. — Não estou me referindo ao brinquedo. — Está falando sério? — o homem questionou. — Quer comprar um porco de verdade? Tem onde criá-lo? Del pensou em seu apartamento minúsculo em Chicago. Alguns prédios proibiam animais de estimação. Seria o caso de seu condomínio? As regras estabelecidas seriam as mesmas para cães e gatos? Mas esse era um detalhe que não vinha ao caso no momento. Mais tarde pensaria nisso. Na pior das hipóteses, sempre poderia se mudar. Chicago contava com prédios de apartamentos aos milhares. — Sim. Sam não queria acreditar em seus ouvidos. Del estaria em seu juízo perfeito? Ele teria de levar na caminhonete não um porco de barro que resolveria todos seus problemas, mas um animal sujo que só lhe traria problemas? Quem poderia entender as mulheres? A menina havia soltado o leitão. Como se tivesse entendido que ganhara uma nova dona, o animalzinho se aproximou de Del e começou a farejá-la. Entusiasmada, Del quis se levantar para pegá-lo. Deixou escapar um gemido de dor e tornou a se sentar. Sam amparou-a. — Seu pé está inchado. Vou levá-la ao médico assim que sairmos daqui. — Tolice. Eu estou bem. Era de esperar que meu pé inchasse. Amanhã eu já estarei boa. — Mas seu pé está três vezes maior do que o normal! A um novo protesto de Del, Sam pegou-a no colo e sem
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dizer nada começou a andar em direção da caminhonete. Ela o lembrou sobre o porquinho. Como Sam se recusasse a voltar pára buscá-lo, ela lhe deu um soco no braço. Apenas nesse instante, com um urro de dor, ela notou que o inchaço também havia se apoderado de sua mão. — Outra picada? — Sam perguntou assustado. Ela moveu a cabeça negativamente. — Faz parte do processo. Sam tentou prosseguir, ainda mais depressa, rumo ao veículo. Del o golpeou no peito com a outra mão. — Eu não vou sair daqui sem Toadstool. Nesse momento, Sam entendeu o quanto aquele porquinho era importante para ela. Deveria ter algo a ver com sua infância. Que mal haveria, afinal de contas, em atendê-la? Se o leitão sujasse o carro, bastaria limpá-lo depois. — Então vamos fazer o seguinte — Sam propôs. — Eu a deixo na caminhonete e volto para buscar seu porco. — Toadstool. Ele se chama Toadstool. — Está bem. Eu a deixo na caminhonete e volto para buscar Toadstool. O sorriso que Del lhe deu compensaria o trabalho de ele levar mil porcos para Allentown. Chegou a esquecer onde estava. — Preciso lhe pedir mais um favor. Na confusão, eu esqueci minha bolsa no carro. Você me empresta o dinheiro? Sam? Ele pestanejou ao ser trazido de volta para o presente. Sem dizer nada, estendeu a mão e pegou o talão de cheques no painel. Quando foi endireitar o corpo, Del segurou o rosto dele beijou-o delicadamente nos lábios. — Obrigada. Fico lhe devendo esta. Sam se afastou, aturdido. Algo muito sério estava acontecendo com eles. Não confiavam um no outro, mas uma força maior parecia atraí-los. Ou toda aquela doçura não passava de fingimento dela? Capítulo V Del segurou o filhote no colo. Mesmo que tentasse, não conseguiria descrever o que estava sentindo naquele momento. Estava sozinha. Encarregara Sam de voltar ou-tra vez e devolver o porquinho de cerâmica que Jenny lhe mandara conforme prometera. Uma forte emoção inundou seu peito ao pensar que a garotinha se dispusera ao sacrifício de entregar algo de sua estima por amor a um pequeno animal. Toadstool estava dormindo nos braços de Del quando Sam retornou e ligou o motor. — Você saberá o que fazer com ele? — ele perguntou, tocando o filhote com inesperada ternura. — Acho que sim. — Por quanto tempo? — Para sempre. Não se pode abandonar uma criatura indefesa depois de se determinar a criá-la. — Duas lágrimas assomaram aos olhos de Del. — Além disso, eu não costumo cometer duas vezes o mesmo erro. — Eu nunca tive um animal de estimação — Sam confidenciou. — Por quê? Ele encolheu os ombros. Toadstool acordou e se levantou, querendo olhar pela janela. Del e Sam trocaram um sorriso. Subitamente, uma sombra desceu sobre os
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olhos dele. — Eu encontrei um coelho branco uma vez e o levei comigo para casa. Meu pai o soltou. Del apertou o braço de Sam em um gesto de conforto. Aparentemente, ela não fora a única a ter problemas com os pais. Del o levara de volta ao passado. Sam tinha deixado aquele trauma em seu subconsciente. Acreditava tê-lo esquecido. Aos oito anos de idade, o episódio fora terrível. Ele havia tentado recuperar o coelho. Correra pelo bosque durante horas. Não queria voltar mais para casa. Era muito tarde, mais de meia-noite, quando se obrigou a enfrentar a realidade. Levaria uma surra se continuasse teimando em encontrar o coelho. Consolara-o não ter encontrado pistas. Quis acreditar que outro menino o encontrara e poderia criá-lo porque seus pais o permitiriam. Assim mesmo, passara o verão inteiro à procura do bichinho. Porém, nunca mais o viu. Agora, vinte e quatro anos mais tarde, a dor parecia ter permanecido intacta. — Sam! — Del o chamou com súbita urgência. — Acho que Toadstool está passando mal! Sam olhou para o lado e viu o porquinho se debatendo como se quisesse que Del o soltasse. De repente ele pulou para o chão e o que houve a seguir o fez suspirar e balançar a cabeça. Um minuto depois, teve de parar no acostamento para limpar o estrago. Por sorte estavam quase chegando ao trecho do rio onde Del deixara seu carro. — Sam? — Del só voltou a falar depois que eles retomaram o trajeto. — Eu estou preocupada com Toadstool. Ele ficou estranho. Não parece mais o mesmo que pegamos no rancho. Preciso levá-lo a um veterinário. O que havia com ele? Bastava Del lhe falar naquele tom de voz para que perdesse a capacidade de raciocinar? — Kenny certamente nos indicará algum. Vamos falar com ele assim que chegarmos. Quatro horas depois, Sam estava recostado em sua cadeira de carvalho, servindo-se de uma dose de gim. Jurou a si mesmo nunca mais transportar um porco na cabine da caminhonete. Del tinha insistido para levá-lo consigo em seu carro. Ele, o gentil cavalheiro, quisera impressioná-la, dizendo que não valeria a pena. Que ele, de qualquer forma, teria de lavar a caminhonete quando chegassem. Precisara de duas horas para remover o cheiro da cabine. Mais duas até que o porco fosse examinado e declarado saudável. A bebida desceu queimando por sua garganta. Ele empurrou o copo. Nunca gostara de beber. O que dera nele para pegar a garrafa que reservava para os clientes? O telefone tocou no momento que se levantou para buscar uma lata de coca-cola. — Você está bem? — A voz de Del estava doce como mel. Ele se colocou imediatamente em alerta. — Já estive melhor. — Sinto realmente pela sujeira que Toadstool fez na caminhonete. Não sei o que teria sido dele e de mim se não fosse por você. Sam fechou os olhos. Del estava jogando pesado. No minuto seguinte ela estaria pedindo para que lhe prestasse um novo e urgente favor. — Eu acabo de voltar com Toadstool de um passeio pelo estacionamento. Pensei que ele fosse estranhar a coleira que compramos, mas não houve problema. Ele parecia um cachorrinho. Você precisava ter visto. Sam chegou a ouvir o tique-taque da bomba-relógio antes da explosão.
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— A dona da pousada me viu com ele. Ela concordou que Toadstool era uma graça, mas disse que não aceitava hóspedes com animais. Eu tentei convencê-la a abrir uma exceção para nós, mas não adiantou.—Fez-se uma pausa. — Sam, daria para você cuidar dele por mim até que eu encontre outro lugar para ficar? Seria apenas por um ou dois dias. Sam não respondeu. Porco raro de cerâmica ou não, ele não estava disposto a chegar a esse extremo para consegui-lo. Já bastava o que o porco de verdade fizera com sua caminhonete e com seu chapéu. Porque quando Del passou para o outro carro, e Toadstool ficou solto, resolveu se deitar justamente sobre o chapéu que ele deixara inadvertidamente sobre o banco. Os prejuízos estavam somando. A dona dele também era culpada pelo estrago de suas botas. E de comprometer-lhe o sossego. — Vou começar a procurar um novo lugar agora mesmo, embora eu mal consiga andar e mover minha mão. Aquele foi o golpe de misericórdia! — Estarei aí em uma hora o mais tardar. — Obrigada, Sam. Estarei a sua espera. Sem perceber, ele tomou o último gole que ficara no copo e ficou com mais raiva ainda de si mesmo ao sentir a garganta em fogo. Deveria ter perdido o juízo. Sobrevivera por vinte e quatro anos sem um animal de estimação. E justo com qual resolvera começar a conviver? Um porco! Del fez questão de acompanhá-lo até em casa para ajudá-lo a acomodar Toadstool. Preparou uma mamadeira e enquanto alimentava o porquinho, Sam cochilou no sofá sem perceber. Ele resmungou ao sentir que o tocavam no ombro e abriu os olhos com evidente esforço e contrariedade. Ao ver Del a sua frente, recuperou instantaneamente a consciência. — Você perguntou se Kenny tem o tipo de ração que o veterinário recomendou? Sam endireitou as costas e esfregou os olhos. — Perguntei. Na ocasião eu ainda não sabia que isso também sobraria para mim. — Você está enganado. Eu não tenho como levá-lo comigo para o hotel, mas poderei perfeitamente alimentá-lo, se você me trouxer aqui ao menos duas vezes por dia ou' me emprestar uma cópia de sua chave. — Você esqueceu que por enquanto é preciso continuar com a mamadeira? Que a ração só poderá ser introduzida daqui duas semanas? Del mal conseguiu conter um sorriso. Apesar da falta de humor, Sam se preocupara com Toadstool. O esquema funcionaria melhor do que ela imaginara. — Bem, espero encontrar um hotel que aceite animais. Espero encerrar minha conta no Rancho amanhã. — Encontro-a na Toca do Coelho às sete. Imagino que não tenha desistido de sua coleção por um porco vivo. A resposta que ela gostaria de dar ficou atravessada na garganta. Quisesse ou não, estava dependendo de Sam para ambos os tipos. Agora entendia o que significava o dito popular: "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Livre da tentação loura, Sam olhou para seu novo companheiro. Ele estava deitado sobre o que elegera como seu travesseiro favorito: o chapéu dele. Abaixou-se e pegou-o no colo, com chapéu e tudo. — Fique com ele. Não creio que possa voltar a usá-lo de qualquer maneira — disse Sam como se Toadstool pudesse entendê-lo.
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Na manhã seguinte, Sam acordou com uma agradável sensação de calor. Abriu os olhos e viu, com espanto, que Toadstool estava encostado em suas pernas. Como ele conseguira subir na cama? Colocara-o para dormir em seu quarto, é verdade, mas em uma caixa de papelão. Jamais imaginaria que ele fosse capaz de sair da caixa, quanto mais de escalar a cama. Sem refletir sobre o que estava fazendo, Sam se surpreendeu acariciando as costas do filhote para acalmá-lo. Toadstool deveria estar tendo um pesadelo porque pelo movimento das patas e pelos pequenos grunhidos ele parecia estar fugindo de algo ou de alguém. Assim que o porquinho voltou à tranqüilidade do sono, Sam se levantou para preparar o café. Ao abrir a geladeira, viu um pacote fechado de bacon. Olhou para ele por um longo momento. Depois olhou em direção ao quarto e jogou o pacote no lixo. Estava terminando de comer uma tigela de cereais com leite quando o telefone tocou. — E da casa de Sam Samson? — Quem deseja saber? — Um colega de Del Montgomery — respondeu uma voz masculina. — Poderia me dizer se está trabalhando com ela? — Que tipo de colega? — Sam indagou, seco. — Vocês estão trabalhando juntos? — insistiu o homem. — Sim — Sam admitiu. — Agora diga quem é e o que está querendo? — Estou querendo ajudá-lo. Seis horas e Del já estava acordada. Isso não era normal. Ela rolou para o outro lado da cama e enfiou a cabeça por baixo do travesseiro. Se ao menos tivesse sido acordada por um moreno alto que a excitava com um simples olhar! Mas era a imagem dele que estava lhe tirando o sono e isso a incomodava, em vez de entusiasmá-la. Mais do que nunca, era preciso exercitar sua concentração. Viera para o sul do Missouri para encontrar o porco Unruh e praticamente se esquecera dele nos últimos dias. Montar um plano tornara-se essencial. Por causa de Toadstool, ela necessitava de Sam e por causa de sua li-bido, necessitava evitá-lo. Que situação! Del tornou a se virar sobre o colchão e dessa vez deitou sobre o travesseiro para poder fixar o teto. O que poderia fazer para matar o tempo? Sam estipulara o horário do encontro. Ou seja, ela ainda teria de esperar uma hora e meia para sair. Chegar antes dele estava completamente fora de cogitação! Por outro lado, não conseguia parar de pensar em Toadstool e em como ele passara sua primeira noite longe da mãe, dos irmãos e de Jenny. Tirou o fone do gancho e hesitou. Homens não precisavam se levantar com muito tempo de antecedência porque conseguiam se arrumar em poucos minutos. Não eram como as mulheres com suas maquilagens. Seria uma in-delicadeza de sua parte acordá-lo, depois de ele ter aceitado cuidar de Toadstool sem reclamar. Mas assim que devolveu o fone ao gancho, ele tocou. Ela atendeu, ansiosa. Porque só poderia ser Sam do outro lado da linha e se estava ligando tão cedo, seu porquinho provavelmente passara mal outra vez. — Sam? O que houve com Toadstool? — Sam? Não, não é nenhum Sam que está falando — respondeu uma voz feminina. — Desculpe se a acordei. O sotaque da mulher não era estranho. Por outro lado, nenhum de seus conhecidos
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ou familiares sabia que ela estava em Allentown. A não ser que fosse... — Tilde? — Del fez uma pausa para dar à mulher uma chance de corrigi-la. Como ela não se manifestou, a identificação foi feita. — Não, você não me acordou. Eu já estou pronta para começar meu dia. — Ainda bem. — A voz soou abafada por um instante, dando a Del uma impressão de que a mulher não estava sozinha. — Eu liguei para saber se aquele convite para o almoço ainda está de pé. Soube de algo que talvez possa interessá-la. O batimento do coração de Del acelerou. — Pode me adiantar de que se trata? — Não dá para falar pelo telefone. Seria melhor que você visse com seus próprios olhos. — Tudo bem. Onde e a que horas? — Hoje eu tenho um compromisso em Mountain View. Pode ser na sexta-feira? Aquela não era uma situação para se fazer de indisponível. Esse tipo de importância só se dava aos homens. — Sim, eu estou a sua disposição. Onde quer que nos encontremos? — Na Toca do Coelho. Gosto de Becca e sei de sua luta para arcar sozinha com a educação do filho. Del também gostara de Becca desde o primeiro momento. O problema seria um almoço de negócios na presença do abelhudo do primo dela. — Por que não marcamos em outro lugar? — Você tem algo contra Becca? — De modo algum. Apenas gostaria de variar. Eu tenho feito todas minhas refeições na Toca. Escolha outro a seu critério. As despesas serão por minha conta. — Soube de uma inauguração recentemente. Você gosta de peixe? Del suspirou de alívio à notícia. Ficou acertado o encontro para a uma hora da tarde da sexta-feira seguinte. A ligação para Sam foi feita assim que a linha ficou liberada. Mas o telefone dele estava ocupado. Estranho. Com quem Sam poderia estar falando às seis e vinte da manhã? Levantou-se para preparar uma xícara de café. Dez minutos tornou a tentar um contato, mas o telefone continuava ocupado. O tal colega de Del estava irritando Sam. Ele temia perder as estribeiras a qualquer momento. — Está querendo me ajudar? — Sam resmungou. — Ajudar em quê? — Digamos que podemos ajudar um ao outro — o sujeito respondeu após uma breve hesitação. — O que Del lhe disse exatamente sobre o porco? Então Izzy estava certo. Del viera ao Missouri em busca do legendário porco. — Nada mais do que disse a você, eu acho. — Ela lhe disse quanto está autorizada a pagar por ele? Autorizada? Pelo jeito, Del estava trabalhando para alguém. Ela mentira todo o tempo sobre ser uma colecionadora. — Ela não mencionou uma quantia específica. Imagino que esteja disposta a pagar o que for preciso. Você tem condições de estabelecer uma cifra? O homem pigarreou. — O que eu posso lhe garantir é que estou preparado para lhe pagar mais do que Del. Se você tem uma pista de onde o porco Unruh pode ser encontrado, fique certo de que ganhará mais se mudar para meu lado.
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Porco Unruh. Sam já ouvira falar esse nome. Nunca vendera nenhuma peça dessa antiga e descontinuada fábrica de cerâmica, mas estava ciente do alto valor alcan-çado pelos lotes remanescentes. — Quanto eu ganharia nessa transação? — Sam resolveu entrar no jogo. — Dez por cento é o pagamento de praxe. — A praxe por estes lados é de vinte por cento. Sam podia visualizar o homem fazendo cálculos mentais. — Acredito que possamos chegar a um acordo. — Em qual leilão a peça deverá ser exibida? A voz do outro lado se tornou impregnada de desconfiança. —Você disse que estava trabalhando com Del. Deveria estar a par dos detalhes. Ele precisava pensar rápido. Se estivesse trabalhando com Del, obviamente não teria feito aquele tipo de pergunta. — Estou trabalhando com ela, mas você ainda não me disse quem é nem para quem trabalha. — Sou David Curtis. — De onde conhece Del? Se a capacidade de tolerância de Sam estava esgotando, o mesmo estava acontecendo com a do outro. — Nós trabalhamos para Benjamim Porter. Se não estivesse sentado, Sam cairia para trás. Del era compradora de uma das mais famosas casas de leilão do país? — Então — o outro prosseguiu —, já conseguiu alguma pista de onde encontrar o porco? — A pista está esquentando — Sam mentiu. — Por que não me deixa seu número e eu ligo assim que tiver alguma novidade? Sam foi buscar lápis e papel. Ao retomar a ligação, o outro recomendou que ele não contasse a Del sobre aquela conversa. Sam concordou que não valeria a pena criar confusão e se despediu. Del tentou ligar para.Sam umas vinte vezes. Ele deveria ter antecipado que ela ficaria ansiosa por saber sobre Toadstool. Poderia ao menos ter lhe telefonado antes de se ocupar com quem quer que fosse que tivesse grudado em seu telefone! Sem alternativa, ela subiu no carro e rumou para o endereço dele. Eram quase sete horas e a caminhonete ainda estava estacionada na frente da casa. O que poderia ter acontecido para Sam ainda não ter saído? Dessa maneira, ele chegaria atrasado para o desjejum! Ou Sam estava com planos de faltar ao encontro sem avisá-la? Indignada com a última possibilidade, Del apertou a campainha com força. Esperou e ninguém veio atendê-la. Os ruídos que vinham lá de dentro eram prova de que Sam estava lá. — O que houve com você? — Sam esbravejou ao terceiro toque. — Está querendo quebrar minha campainha? Del o empurrou e entrou sem responder. Procurou na sala e no quarto. De repente ela o viu. Toadstool estava vindo da cozinha. — Ele está bem? — Eu estava lhe dando leite quando você nos interrompeu — Sam respondeu, pegando o porquinho no colo. — Para onde você o está levando? — Del protestou. — De volta para a cozinha. Não espera que ele termine de comer em meu sofá,
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espera? Del o seguiu, calada. Se fosse sincera consigo mesma, admitiria que Sam estava certo. Ela estava se portando como uma tola. Como uma mulher ciumenta, na verdade. Sam fez um sinal para a cafeteira elétrica. — Sirva-se. Acabei de fazer. Ao se afastar da pia, Del deparou com uma cena linda. Sorriu, fascinada ao ver Sam dando a mamadeira a Toadstool. — Pensei que fôssemos nos encontrar na Toca. — Você não foi ao encontro. — Já são sete horas? — Ele pareceu genuinamente surpreso. — Perdi a noção do tempo. O que poderia ter desviado o pensamento de Sam a ponto de se esquecer de que ela o estaria esperando? Del se achava no direito de saber. — Eu conheço o motivo. Tentei ligar para cá, mas acabei desistindo. Sam terminou de dar a mamadeira e se levantou. — Preciso levá-lo para fora antes que ele faça alguma sujeira aqui. Del pretendia acompanhá-lo até o quintal, mas um papel amarelo ao lado do telefone atraiu-a como um imã. Ela se encostou com fingida casualidade no batente da porta e tomou um gole do café. Esperou que Sam saísse e correu para verificar se havia algo escrito. Ao reconhecer o telefone de seu chefe e o ramal de David quase deixou escapar um grito. E mais outro ao ouvir um ruído a suas costas que a fez correr de volta e se virar para a pia de modo que Sam não pudesse perceber sua contrariedade. — Parece ter gostado de meu café — Sam observou. Ela fez que sim e aproveitou a deixa para se servir de outra xícara. As possibilidades ricocheteavam por sua mente. Porter resolvera traí-la? Ele era o único que sabia não apenas sobre seu paradeiro, mas principalmente sobre o motivo que a levara ao Missouri. Como David conseguira localizá-la? Se Porter se cansara de esperar por suas notícias, por que não entrara simplesmente em contato e lhe dissera o que pensava de sua demora? Porque Benjamim Porter e David eram iguais. Dois miseráveis sem escrúpulos. Ela detestava ter de seguir suas regras. Detestava ter de disputar o tal porco com David pelo prestígio de levá-lo a Chicago. Deveria lavar suas mãos e fazer as malas. Acima de tudo, deveria mudar de emprego. Sam estava limpando as patas de Toadstool com uma toalha. Del sentiu o peito apertar ao presenciar a tocante cena. Era a primeira vez que ela via um homem tratar um animal com tanta delicadeza. E nesse instante ela decidiu ficar. Não daria a David o gosto da vitória. Não deixaria Allentown sem o porco Unruh. Sam jogou a toalha em cima da mesa do telefone e a viu cair sobre sua anotação. De repente entendeu o motivo pelo qual Del lhe parecera afobada havia poucos instantes. Teria visto o número do telefone? De qualquer maneira, ela não apresentava a expressão de alguém cujo segredo acabara de ser desvendado. Por outro lado, ela tampouco parecia guardar algum segredo. Del trabalhava no ramo dos leilões. Era sua concorrente e o estava usando. Ele deveria acabar com a parceria. Precisava incrementar seus negócios se não queria acabar com um processo de falência. E salvar Becca da penúria. Mas sua única saída seria chegar antes dela ao tesouro.
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Capítulo VI Sam decidiu conquistar Del. Ela era esperta. Precisaria montar sua armadilha com cuidado. Para ela não desconfiar de seu plano, precisaria se mostrar mais vulne-rável a seus encantos. A idéia de levarem Toadstool em uma caixa plástica partiu dele. — Você já esteve em um leilão? — ele perguntou assim que subiram na caminhonete. No mesmo instante, o nariz de Del começou a cocar. — Uma ou duas vezes. — Soube que haverá um hoje, a poucos quilômetros daqui. Pensei que poderíamos aproveitar e dar uma olhada. — Sabe se oferecerão algo de meu interesse? — E provável. — De que tipo? — Não desse seu. — Sam fez um sinal em direção a Toadstool. — Ainda não entendo o que deu em você para comprá-lo. Del sorriu. — Eu vi como você o tratou. Tenho certeza de que voltará ao rancho para comprar um também no dia que ele e eu formos embora. Sam se obrigou a prestar mais atenção à estrada. No dia que o porco Unruh fosse encontrado, Del voltaria para sua vida em Chicago. Ela estava certa. Sentiria falta de Toadstool. Era bom ter alguém que dependia de seus tratos, de sua estima e que retribuía sua devoção. Mas de quem ele realmente sentiria saudade era de Del. Estava se acostumando a presença dela. E até mesmo às batalhas que travavam. Ela não era a única mulher interessante que já conhecera, mas a única que queria no momento. Del se sentiu tensa ao examinar a multidão que se encaminhava para o local onde o leilão seria realizado. O risco de ela encontrar algum conhecido era grande. Pior ainda se fosse de sua família. Seu pai não costumava freqüentar eventos em cidades distantes, mas sempre poderia haver uma primeira vez. Ela não participava de um leilão no campo desde que se mudara. Estava empolgada apesar de tudo. Arrumara-se com capricho. Não resistira, inclusive, à tentação de calçar sandálias de salto. Que a teriam levado ao chão, ao tropeçar na raiz de uma árvore, se Sam não a amparasse. —Você acabará quebrando o pescoço com sua teimosia. Para surpresa de Sam, Del tirou as sandálias. —Posso confiar que não as atirará no rio mais próximo? Sam as guardou na caminhonete sem responder. Faltava pouco para o leilão começar. Sam seguiu na frente para fazer sua inscrição e de Del. Ela não tinha pressa. Conduzia Toadstool por uma guia e ele estava aproveitando para fazer o reconhecimento do local. O dia estava ensolarado. O ar cheirava a grama recém-cortada. Ela não se sentia tão feliz havia anos. Adorava seu trabalho. Em poucos minutos estaria participando de um leilão onde pessoas simples se reuniam para fazer bons negócios. Talvez ela estivesse prestes a disputar o famoso porco Unruh. Talvez não. Se fosse sincera consigo mesma, admitiria que não era a chance de encontrá-lo e comprá-lo que a estava fazendo se sentir tão bem.
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Queria esquecer Porter e David, e o motivo que a fizera conhecer Sam. Ela queria ser igual aos outros. Comer sanduíches com refrigerantes, participar dos lances quando o leiloeiro oferecesse algo de seu interesse, e fazer do conta que Sam e ela estavam juntos apenas porque gostavam da companhia um do outro. Sam não perdia nem sequer um movimento de Del. Ela examinava cada peça de cerâmica disposta sobre a mesa, mas nenhuma parecia lhe chamar uma devida atenção. Até ela encontrar um pote para biscoitos no formato de um porco. — O que você acha? Não está lascado nem trincado. — Ao ver Sam encolher os ombros, ela franziu o rosto. — Qual o problema? E cerâmica Shawnee, de boa qualidade. Sam continuou em silêncio. O brilho que ele viu nos olhos dela o confundiu. O interesse de Del parecia autêntico. Mas ela a largou e passou para a peça seguinte. Seus olhos estreitaram e ela tocou imediatamente as pérolas ao redor do pescoço ao ver uma outra mulher examinar o pote. — Fique calma. O leilão ainda não começou. — Por que você acha que eu estou nervosa? — Você está segurando o colar. O leilão estava acontecendo havia três horas. Del não se enganara. O porco Shawnee era uma das melhores peças do lote. Estimava seu valor em mil e duzentos dólares. Queria arrematá-lo. Mas para isso precisava participar da disputa. Onde estaria Sam para ela poder deixar Toadstool sob seus cuidados? Fazia vinte minutos que ele desaparecera de sua vista. Estaria em busca de informações sobre a peça Unruh? Mesmo que estivesse, ela não poderia desprezar essa chance de disfarce. Tinha de conseguir o próximo item a ser leiloado. De qualquer jeito! Sam não deixara transparecer nenhum sinal de que fora com David que conversara pela manhã. Mas mesmo que David o tivesse contactado, talvez não tivesse lhe con-tado nada a respeito dela e do real motivo de sua visita a Allentown. — Ei, moça! Fez-se um repentino silêncio. Del sentiu os punhos fecharem ao redor da guia de Toadstool. Todos pareciam istar olhando em sua direção. — Está falando comigo? — Sim. O que houve com Sam Samson? Imagino que saiba que eu levo meu trabalho a sério. Se ele está pensando que pode sair disfarçadamente e deixá-la como sua espiã, meu conselho é que desista. Del sentiu o sangue lhe subir ao rosto até a última gota. () que aquele leiloeiro imbecil estava dizendo? Como podia acusá-la de trapaceira diante de cinqüenta testemunhas, sem nenhuma prova? Sem nem sequer conhecê-la? Ela ficou tão furiosa que desistiu da compra. Apenas fez questão de acusar o leiloeiro, antes de sair, de que ele estava tentando vender uma falsificação! Sam estava comendo um cachorro-quente quando viu Del deixar o recinto, batendo os pés. Não fazia idéia do que poderia ter acontecido lá dentro, mas deveria ser algo sério para ela estar tão indignada. E Del realmente estava soltando fumaça pelo nariz. Ela não saberia dizer com quem estava mais zangada. Com o sujeito que a ofendera ou com Sam por tê-la abandonado à mercê de seu ofensor. Porque Sam deveria ter alguma noção do que o outro pensava dele. Seria de esperar que ele a tivesse preparado para a possibilidade de um fiasco como aquele. Ela subiu na caminhonete, colocou Toadstool no banco a seu lado e chutou a caixa
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plástica para fora. Um minuto depois, viu Sam se aproximando do veículo, segurando uma bandeja de papelão com comida. Sua mão direita tocou no colar como se tivesse vida própria. Ela a afastou como se tivesse sido picada por uma cobra. Ou uma abelha. E colocou-a debaixo da perna para garantir. O sorriso de Sam desapareceu ao reconhecer a caixa jogada a poucos metros da caminhonete. Abaixou-se e recolheu-a. O sorriso estava de volta quando se apoiou na janela e ofereceu a comida. — Com fome? O estômago de Del roncou à visão dos dois hambúrgueres com batatas fritas. Sua mão se soltou e se apoderou de um sanduíche. Comeu-o com apetite. E sem dizer nadu, se apoderou do outro. — O que houve para você estar assim? — Sam franziu o rosto e pareceu ficar ainda mais surpreso ao vê-la atacar as batatas. — Foi aquilo que eu disse sobre as pérolas? — Del resmungou algo que ele não entendeu. — Aconteceu alguma coisa lá dentro? Você parecia brava quando saiu. Pensei que tivesse resolvido comprar aquele pote. Ao terminar de comer a última batata, Del amassou o guardanapo e colocou-o na bandeja junto com os outros. Em seguida atirou tudo em Sam. Ele olhou, abismado, para a camiseta preta, agora suja de catchup e mostarda. — Você poderia ao menos me dizer o que foi que eu fiz? Não tenho como saber o que houve durante o leilão. — Exato — Del respondeu. — Daria para explicar? — Sam jogou a bandeja no chão, contagiado agora pela agressividade de Del. — Fui humilhada. Foi isso que aconteceu. Aquela imitação de leiloeiro me acusou de estar a seu mando. Sam deu uma risada. — Esse foi o grande insulto? —Ninguém nunca me acusou de trapacear. A não ser... — Anão ser...? Mudar o rumo da conversa era urgente e fundamental. Del olhou para Sam e confessou a si mesma que ele a atraía mais do que qualquer outro homem que já conhecera. Era igual a ela. Alegre, esperto e desconfiado. Também gostava das mesmas coisas. Mas naquele momento, em que ela mais pensava era em seu jeito sexy. — Del — ele a chamou quando o silêncio começou a se arrastar —, você tem alguma coisa para me contar? Ela o fitou com fingida inocência e enlaçou-o pelo pescoço. — Não. E você? Sam não conseguiu reagir por um segundo ou dois. Depois seus lábios encurtaram a distância que os separava. Ele já havia ouvido falar nas desculpas mais estapafúr-dias para evitar um confronto, mas aquela estratégia ganhava o prêmio. E que prêmio. Ele estava beijando a boca mais macia e sedutora ao sul do Missouri. Ou melhor, sendo beijado. Era bom demais se entregar à iniciativa da mulher mais irresistível que já conhecera. Uma voz lá no fundo dizia que não deveria permitir que ela o dominasse. O problema era que ele não estava com vontade de lutar. Não naquele momento. Um murmúrio escapou do beijo. E ele o acompanhou com um gemido. A partir desse instante, Sam não conseguiu manter a passividade. Segurou Del pelos
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ombros e puxou-a ao encontro do peito. Mas não conseguiu apertá-la em seus braços porque um alto protesto de Toadstool os afastou. — Cuidado! — Del empurrou-o e se apressou a socorrer o porquinho. O modo como o segurou no colo fez Sam perceber que sua oportunidade fora perdida. Com um suspiro, ele agarrou o volante e esperou que a respiração e o corpo voltassem ao normal. — Por que não me contou que trabalha para um leiloeiro? — Sam perguntou à queima-roupa. Del cogitou o que dizer e o que fazer. Os porquinhos amontoados no quarto da pousada haviam sido comprados à toa. Sua mentira fora descoberta. Para completar, ela continuava no escuro sobre a localização de seu objeto de desejo. ímpetos de abrir a porta e fugir a assaltaram. Toadstool quis esconder o focinho sob seu braço e ela sorriu apesar de tudo. E também por causa de Sam e apesar dele. Como Sam era bonito! Não se cansava de olhar para ele, invariavelmente vestido de preto. Não se falou sobre a carreira de Del no trajeto de volta. Nem sobre o motivo de sua vinda a Allentown. Nem sobre a forma com que o telefone de David fora parar no bloco de anotações de Sam. — Fale-me sobre Becca — Del resolveu quebrar o silêncio ao ver Sam esticar a mão para pegar um de seus horríveis CDs. — Fomos criados quase como irmãos — Sam respondeu, retomando o volante. — Becca tinha dois anos quando a mãe morreu. O pai tentou afogar a dor na bebida e acabou se esquecendo de que tinha uma filha. Becca ficava o dia todo em minha casa. Só voltava para a casa dela à noite, para dormir. — Ela teve sorte em contar com você e sua família. — Na verdade, aconteceu o contrário. Minha mãe foi embora quando eu ainda era bebê. Becca ajudou meu pai a me criar. — Sam deu um pequeno sorriso. — Você deve estar estranhando que Becca tenha colaborado em minha criação, sendo quatro anos mais nova do que eu. Mas não é exagero. Becca já nasceu responsável e segura de si. Por maior o peso que a afunde, ela volta rapidamente à superfície. Ela me deu o carinho que faltou em meu pai. Del suspirou. Becca gostaria que seus pais também tivessem se dedicado mais a ela. Os dois estavam sempre ocupados com seus afazeres. Sua mãe era carinhosa. Sempre lhe dava rosquinhas caseiras. Mas o pai... — E quando vocês cresceram? — Becca se casou, como minha mãe, aos dezoito anos. Engravidou no primeiro mês, mas perdeu o bebê. Clay nasceu alguns anos mais tarde. Uma semana depois, o marido a deixou, mas continuou por perto. No ano passado, mudou-se para o norte, e os cheques da pensão desapareceram com ele. — Você nunca mais viu sua mãe? Sam negou com a cabeça, o olhar fixo na estrada. — Ela tentou voltar quando eu tinha cinco anos, mas meu pai não lhe permitiu a entrada. Del tentou se colocar no lugar de uma inocente criança de cinco anos, vendo o pai impedir que ele conhecesse a própria mãe. Por mais que Sam quisesse lhe provar que estava recuperado do trauma, ela sabia que ele jamais conseguiria provar essa teoria a si mesmo. — E se ela voltasse agora, com você mais velho e mais capaz de entender se.u gesto?
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— Essa chance deixou de existir no ano passado quando ela faleceu. Del fechou os olhos. Os sinais de uma enxaqueca eminente estavam se avolumando. Apertou as têmporas e as pálpebras. Sempre que o assunto era família acontecia isso. No desejo de amenizar a dor que Sam estava sentindo, ela lhe tocou o braço. Sam fixou o olhar nos dedos alvos em contraste com o bronzeado de sua pele. Depois o mergulhou nos olhos dela com curiosidade a princípio e uma pitada de tristeza. Mas algo aconteceu nesse instante e uma onda de calor se formou entre eles. Del tentou romper o magnetismo que se criara, mas não conseguiu. Porque em seu íntimo Del queria que aquele elo permanecesse para sempre. O som estridente de uma buzina os trouxe para a realidade. Com um resmungo, Sam abriu espaço para uma picape branca ultrapassá-lo. Na manhã seguinte, Sam acordou com um sopro quente em seu pescoço. Inconscientemente, estendeu o braço para se aconchegar. Abriu os olhos, sobressaltado, ao se lembrar de que não era um corpo de mulher que estava a seu lado. Fazia muito tempo que não tinha ninguém. Demasiado tempo. Levantou-se de um salto e esfregou o pescoço. — Isso precisa acabar, meu amigo. Você tem sua cama. Esta aqui é minha. Sam vestiu o jeans e sem se importar em calçar os sapatos, fói para a cozinha. Alguns minutos depois, pela segunda vez naquela semana, foi interrompido em seu desjejum. — Estou falando com Sam Samson? — Sim. — E David Curtis. Já localizou o porco? — Há porcos de todas as espécies por estas bandas. Poderia ser mais específico? — Se aquele sujeito sabia ser arrogante, ele poderia lhe dar algumas lições. Seu dia não havia começado como ele gostaria. Talvez melhorasse se dividisse seu mau-humor. — Não se faça de engraçado, Samson. Sabe perfeitamente de que porco eu estou falando. — Faz menos de vinte e quatro horas que você ligou. Esperava um milagre? — Talvez você se apresse em arrumar um à ameaça de perder sua parte no negócio. Porque eu consegui um outro contato e ele está confiante de que poderá me trazer a prenda antes do final desta semana. Sam estava terminando de preparar a mamadeira. — Pode me dizer o nome desse seu novo contato? David Curtis deu uma gargalhada. — Para você negociar com ele nas minhas costas? Nada disso. Apenas considere esta ligação como um gesto de cortesia por você ter sido a primeira pessoa para quem eu liguei. Sam bateu o telefone. Era capaz de farejar um rato a quilômetros de distância. Embora, sem o saber, o miserável lhe fizera um favor. Assim que alimentasse Toadstool, daria uma escapada até a casa de Izzy. Tinha dois negócios a salvar: o dele e o de Becca. Não podia se deixar dominar por emoções. Logo Del estaria partindo e levando Toadstool consigo. E ele ficaria sozinho outra vez. — Sam não virá hoje? — Del se surpreendeu ao ouvir a informação. — Deve haver algum engano. Ele está com meu porco. — Eu só estou transmitindo o recado que ele deixou — disse Kenny. — Sam teve de viajar de repente. Não adianta ir procurá-lo. Ele também não está em casa. — Ele não pode ter levado Toadstool — Del insistiu. Kenny deu de ombros e voltou
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aos afazeres, como se ela não existisse. Como Sam se atrevera? Del estava com tanta raiva que bateu a porta do escritório com toda sua força ao sair. Sam conseguira uma dica de onde estava a legendária peça. Poderia apostar que sim! Ele estava se divertindo a sua custa. Mas precisava ter levado Toadstool em sua caça ao tesouro? No carro, ela verificou a hora. Oito e trinta. Pensara em deixá-lo esperando mais trinta minutos só para ele aprender quem estava sob as ordens de quem. Sua tática, porém, dera a ele trinta minutos adicionais de vantagem. O feitiço virará contra o feiticeiro. A menos que contratasse a ajuda de cães farejadores, jamais o alcançaria. Sam franziu o rosto ao verificar a guia que Del comprara para Toadstool. Com listras, imitando uma zebra. Izzy cairia em sua alma quando visse de quem ele entraria acompanhado em sua loja. — Pensei que estivesse interessado em outro tipo de porco. Sam olhou ao redor. Não havia notado que Izzy estava sentado à sombra, perto do vagão de trem. — Deixe este comigo. — Não quero ver nenhuma sujeira pelo quintal depois que você se for. — Não se preocupe. — Afinal, você veio aqui por alguma razão, ou simplesmente apreciar a vista? O que está esperando para me contar o que descobriu? — Pensei o mesmo de você. — De mim? — Izzy balançou a cabeça. — Continuo sem saber de nada. Sam estreitou os olhos. — Eu ouvi uma versão diferente. O velho homem cruzou os braços sobre o peito. — Com quem esteve falando, filho? — Com alguém que espero não ter de tornar a falar. — Eu também não. A resposta foi significativa. Fez Sam pensar que os dois talvez tivessem sido procurados pela mesma pessoa. Mas antes que pudesse manifestar sua opinião, precisou afastar Toadstool de um amontoado de bolotas que haviam caído das árvores. — Deixe que coma. Não lhe fará nenhum mal. — E quem limpará a sujeira se algo acontecer? — Parece que aquela mulher o pegou de jeito. O sangue subiu ao rosto de Sam ao ouvir isso. Porque um súbito pensamento lhe ocorreu. — Como soube que Toadstool pertence a Del? — Interessante! Foi esse o nome que ela deu a ele? Mas voltando ao nome do sujeito que o procurou... — Você não respondeu! Quem lhe disse que este porco é de Del? — Foi você, pelo que me lembro. — Pelo que me lembro, eu não lhe disse nada. — Que bicho o mordeu, filho? Está assim apenas por causa daquele sujeito de Chicago? Sam percebeu que seria mais sábio desistir do que tentar ganhar de alguém com
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trinta anos de experiência a mais do que ele. — Ele é um descarado! — E você? Em que está mais interessado? Em descobrir o paradeiro do tal porco ou na garota? Sam sentiu uma vontade incontrolável de tossir. Izzy tinha informações para lhe passar e estava disposto a isso. — Eu quero encontrar o porco, mas tenho uma certa curiosidade em descobrir sobre ela. — Uma certa curiosidade? — Izzy se levantou e afagou a cabeça do porquinho. — Você está caído pela moça e não quer admitir. Para saber mais a respeito dela, faça uma pequena viagem até Docia e terá uma surpresa. Mas se fazer um bom negócio for mais importante, continue por aqui. A peça poderá aparecer a qualquer momento. Bastou o cenário do restaurante para a boca de Del encher de água. As mesas estavam dispostas na calçada e cobertas com toalhas xadrez de vermelho e branco. As tábuas que forravam a calçada faziam toda a diferença. Ela prometeu a si mesma que não pensaria na escapada de Sam e no rapto de Toadstool até que o almoço terminasse. Mas assim que se levantasse de uma daquelas mesas, sairia em seu encalço e o faria se arrepender da traição. Algo a obrigou a interromper o plano de vingança. Sua mão subiu automaticamente à testa ao sentir um pequeno impacto. — Quanto tempo mais pretende ficar aí parada, batendo o pé no chão? Até fazer um buraco na madeira ou perceber que eu estou aqui a sua espera? — caçoou Tilde, a responsável pelo arremesso de uma bolinha de papel. Del viu finalmente a mulher e seguiu em sua direção. — O que há com você, menina? — Nada — Del mentiu e disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça. — Estava cogitando se fiz bem em comprar uma coleira para meu porquinho que imita as listras de uma zebra. — Você comprou um porco? — Tilde pareceu apreciar a novidade. Tanto que colocou sua mão sobre a de Del e lhe deu parabéns. Del sorriu. — Sim. Branco e preto. Da raça Hampshire. Ele é uma fofura. Mas o que foi que você descobriu sobre o outro, de cerâmica? — Primeiro o almoço, querida. Obrigada a conter sua ansiedade, Del se dispôs a aproveitar o momento para relaxar. Aliás, como já havia se prometido anteriormente. — Acho que vou pedir uma salada verde — disse Del sem abrir o cardápio. Tilde fez um movimento negativo com a cabeça. — Não aqui onde servem o melhor peixe que eu já provei. Os filés são servidos com batatas. Para acompanhar eles oferecem feijão e salada de repolho com molho de maionese. Comida para ninguém botar defeito. Trinta minutos depois, Del recusou a sobremesa porque simplesmente não poderia engolir mais nada. — Eles fazem uma torta de maçã inigualável — Tilde tentou convencê-la. — Fica para uma próxima vez. — Bem, ao menos você parece mais calma agora. Quer me contar o que houve? Sam. Antes ela estava furiosa com ele. Mas Sam, afinal, estava cuidando de Toadstool e não chegaria à cerâmica Unruh antes dela porque Tilde ficara de informá-la sobre seu paradeiro após o almoço.
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— Nada de importante. E você, pode me contar agora o que descobriu? Sem hesitar, a mulher apanhou a bolsa e tirou de dentro um recorte de jornal. — Encontrei isto no outro dia, quando fui a Mountain View. Estava folheando um livro antigo e ele caiu em minha mão. Achei que poderia interessá-la. Del desdobrou o pedaço de jornal amarelecido em cima da mesa. Datava de julho de 1975 e mostrava um grupo de homens trabalhando no resgate de um carro afundado pela metade em um rio. O motorista havia morrido por afogamento. —Você acredita que seja o mesmo acidente de que trata a história? — A placa do carro, ao menos, não é do Missouri. Naquela época todas as placas eram vermelhas e essa é branca. Del examinou a foto com redobrada atenção. Embora estivesse apagada, ela reconheceu um dos homens. Deveria ter adivinhado que seu pai e seus amigos estavam envolvidos no desaparecimento do objeto. — Onde você disse que o acidente ocorreu? — Eu não me lembro de ter contado, mas foi nas proximidades de Docia. Sabe onde fica? Sim, ela sabia. E como! O problema era que Docia também a conhecia e não como a sofisticada Del Montgomery. Bastaria colocar os pés na cidade para alguém ir correndo avisar seu pai, sua mãe ou o xerife. A um novo exame, Del teve quase certeza de reconhecer o local do acidente. — Você sabe se esse trecho do rio fica perto da casa dos Howe? Tilde, que abrira o estojo de pó para se mirar ao espelho e retocar o batom, fechou-o abruptamente. — Você já esteve em Docia? — Não. Estava me lembrando de um outro lugar. Esqueci que você tivesse mencionado essa cidade. — Alguém nessa foto lhe parece familiar? — a mulher prosseguiu. — Não posso dizer que sim. — Pena. Porque quem estava lá naquele momento poderia ser seu melhor informante. Quinze minutos depois, Del pagou a conta e se despediu, levando o recorte de jornal bem guardado em sua bolsa. Que sorte madrasta a dela! O maior achado do século estava submerso, provavelmente, a poucos quilômetros de sua casa. O único lugar no mundo para onde ela não queria ir. Sam forrou a caixa com o cobertor que comprara de Izzy. O animal precisava ficar confortável durante a viagem para Docia. Ele se decidira a visitá-la, não por estar pessoalmente interessado em saber mais sobre Del, mas porque o sabichão o aconselhara a permanecer em Allentown. Ele conhecia bem aquela velha raposa para saber que sempre deveria fazer o contrário do que ele recomendava. Além disso, seria bom para seus negócios se informar melhor sobre seu concorrente. A cidade a que ele chegou, duas horas depois, seria chamada mais propriamente de aldeia. Só havia praticamente uma rua. Poucas construções podiam ser vistas ao seu redor. Ele diminuiu a marcha e foi lendo placas e cartazes. Pisou no breque assim que viu uma loja de antigüidades. Se existia alguém capaz de lhe dar informações sobre Del, ele a encontraria ali. Ao estacionar a caminhonete, Sam notou uma segunda placa no prédio. Pertencia ao centro de informações turísticas do local. Ele sorriu consigo mesmo. Perfeito. Era a primeira vez que visitava o lugar e precisava de informações.
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Restava decidir o que fazer a respeito de Toadstool. Por mais que lhe aprouvesse deixá-lo trancado no veículo, o bom senso lhe dizia para levá-lo consigo. — Veio aproveitar nossa liquidação? — perguntou um homem corpulento, de boné e macacão, à porta da loja. Depois de levar Toadstool dar uma volta, Sam estava examinando a vitrine quando o sujeito lhe fez o convite. — Se as ofertas forem boas — Sam concordou. — Aposto que o animal é de sua namorada — caçoou o homem. Para seu próprio espanto, Sam não se sentiu ofendido. — Acertou. Estou servindo de babá. — Eu logo vi. Sou casado, mas minha memória ainda está boa o bastante para eu me lembrar do que era capaz de fazer por minha mulher, quando éramos namorados. Sam aproveitou o momento de descontração para se apresentar. — Sam Samson. — Jed. Jed Mont. Sam parou de respirar até o homem mencionar seu sobrenome. Por um instante ele acreditou que sua busca encerraria naquele endereço. — Em que posso ajudá-lo? — Jed prosseguiu. E agora, o que ele deveria dizer? Não podia simplesmente perguntar se o sujeito conhecia uma garota chamada Del Montgomery. Antes precisaria demonstrar in-teresse por alguma mercadoria. — Você tem algum enfeite em formato de um porco? — Um só não basta? — o homem se pôs a rir. — E brincadeira. Não me leve a mal. Quem andava pelas ruas com um porco de verdade a tiracolo não podia se dar ao luxo de exigir respeito da parte das outras pessoas. Sam encolheu os ombros. — Tenho um jogo de temperos. Enquanto o lojista embrulhava o saleiro e a pimenteira, Sam tentava se decidir entre perguntar ao homem sobre Del ou sobre o artefato Unruh. — Ouvi dizer que um rico colecionador veio de longe para comprar um porco de cerâmica nesta região. Estava tão empolgado com sua descoberta que não conseguiu esperar até chegar em casa para avisar os amigos. Durante o trajeto de volta, ele teve a infelicidade de passar por uma ponte em época de cheia e as águas o arrastaram. Soube que ele morreu afogado e que a peça nunca foi encontrada. — Não é nenhum boato. Aconteceu aqui perto — disse Jed ao entregar o pacote. — Trinta anos passaram, mas eu me lembro como se tivesse sido ontem. Eu estava lá quando retiraram o carro do rio. Sam quase deixou cair o embrulho. Izzy o mandara diretamente para a fonte, sem o saber. Ou ele não teria quase garantido que o porco estava para aparecer em Allentown a qualquer instante. — Então a peça se perdeu? — Provavelmente. Eu mesmo acompanhei as buscas. Tudo que conseguiram encontrar foram duas pontas de flechas. — Talvez alguém a tenha encontrado antes e levado embora? — Difícil saber. O objeto pode ter quebrado e os pedaços se confundido com as pedras no leito do rio. Essa teoria já havia ocorrido a Sam, mas ele se recusara a acreditar nessa possibilidade. Devia haver alguma razão especial para Del estar atrás dela. Algo mais sólido do que uma lenda de trinta anos antes. — Dá para alcançar o local a pé? — Sam perguntou.
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— Não. Por quê? — Por nada. Curiosidade apenas. Quanto mais Del se aproximava de Docia, mais apertado ficava seu peito. Estava seguindo por uma rota alternativa para evitar contratempos. A estrada principal dava diretamente na rua onde ficava a casa de seus pais Sua mãe, tinha um sexto sentido apurado e poderia ir ao seu encontro ou, o que era pior, mandar que o pai fosse buscá-la. Sempre fora assim. Del podia sentir, até mesmo pelo telefone, quando se falavam, que a mãe sabia que ela estava mentindo sobre o lugar onde vivia e o que fazia para ganhar o próprio sustento. Se chegasse aos ouvidos da família que ela estava nos arredores, todos seus esforços em construir uma nova vida para si mesma se perderiam. Cinco minutos depois, contudo, Del precisou parar o carro e tentar se controlar. Respirou profundamente. Não era mais a garota que fugira de casa sete anos antes. Agora tinha sua própria identidade. Ninguém a julgaria com base no procedimento de seu pai de sempre tentar tirar vantagem dos outros. Principalmente porque nin-guém que fazia parte de sua vida atual precisaria saber quem seu pai era. Ela já havia passado vergonha que bastasse. Havia comprado uma capa com capuz e galochas de borracha de cano alto. Percorreria o rio a partir da ponte em sentido sul e antes que alguém pudesse reconhecê-la, já estaria de volta a Allentown. O sol estava quase se pondo. Sam colocou a cama de Toadstool no chão da caminhonete, ajeitou-o para dormir e trancou a porta, deixando um pequeno espaço da janela sem fechar para que não faltasse oxigênio. Em seguida, munido de uma lanterna, foi em direção ao rio. Em menos de uma hora seria noite. Talvez devesse ter esperado que amanhecesse para examinar o local, mas não tinha feito planos de pernoitar fora. As sombras começaram a cair antes do que ele esperava. Já havia examinado a ponte sem encontrar nada de extraordinário. Agora, ao dirigir a lanterna para a outra margem, tudo que viu foi um sapo que pulou para a água com medo da luz. Continuou andando até localizar um amontoado de metais retorcidos. Não podia ser o carro. O veículo certamente fora retirado dali. Intrigado, Sam continuou a caminhar por entre as sarças que cresciam ao longo das margens. Seu palpite sobre o carro foi confirmado, mas a menos que o rico colecionador fosse dono de um Gremlin 1972, aquele não podia ser o veículo que afundara com ele. E não era. Após uma inspeção mais detalhada, Sam teve certeza de que o dono do carro simplesmente o abandonara no local pela falta de um ferro-velho. Que perda de tempo! Chutou o pára-choque e estava se abaixando, arrependido, para recolher a peça enferrujada que se soltara e caíra na água, quando ouviu um disparo seguido por um grito. Del. Ele não parou para pensar porque sua intuição estava dizendo que fora Del quem gritara. Livrou-se da sucata e correu em direção às árvores de onde viera o som, chamando por ela. Um fio de suor lhe escorreu pela testa e um arrepio percorreu suas costas ao encontrar apenas o silêncio à medida que se embrenhava na escuridão. Na pressa de acudir Del, ele havia se esquecido de pegar a lanterna que largara ao lado do carro enquanto recolhia o pára-choque que havia caído no rio. Maldição! Como se isso não bastasse, um novo tiro foi disparado. — Não atire! — ele implorou. — Estamos desarmados. Após o que pareceu uma eternidade, ele percebeu um som abafado a sua esquerda.
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Virou-se e uma bala quase o atravessou ao meio. Atirou-se imediatamente ao chão. O alvo agora era ele. Precisava se proteger. Sam não saberia dizer quantos metros teve de se arrastar até encontrar uma rocha onde se esconder. Del poderia estar caída em qualquer lugar, sangrando até a mor-te. E ele não podia fazer nada! Principalmente depois que tentou se sentar e um par de mãos o agarrou por trás... Capítulo VII Sam se moveu com a rapidez de um lutador de artes marciais. Defendeu-se do ataque e reverteu a situação. Derrubou seu atacante e imobilizou-o com o peso do próprio corpo. Jamais poderia ter imaginado que o agressor fosse Del. — Solte-me! O que está esperando? Ele não soltou. Primeiro porque demorou alguns instantes para registrar a identidade do assaltante. Depois porque estava gostando demais da situação. Del, em contrapartida, embora não pudesse se queixar de ter se machucado com o golpe de Sam, porque a queda havia sido amortecida por uma camada de folhas secas, estava com a nítida sensação de que algum tipo de inseto estava andando èm seus cabelos. — Você me deu um susto. — Foi tudo que Sam conseguiu dizer. Del conseguiu livrar uma das mãos e com o movimento brusco que fez para afastar o inseto, bateu em Sam. Não foi preciso repetir que ele se afastasse. Ao menos o suficiente para que ela soltasse a outra mão. — Você poderia ter se feito reconhecer. Por que não chamou por meu nome? — Del esbravejou. — Eu chamei. Mas depois precisei me calar por causa dos tiros. Temi que você tivesse sido ferida. — Eu tinha de me defender de alguma forma, não acha? — Ele parou de atirar em você quando eu cheguei. Em minha opinião, você me deve sua vida. Del preferiu não responder. A afirmação de Sam tinha lógica. Apenas ela acreditava que o atirador fosse seu pai. Ele sempre recorria a velha espingarda para afastar os intrusos. Com balas de sal, mas terrivelmente doloridas. Embora eles não tivessem ultrapassado os limites da propriedade, estavam próximos de fazê-lo. De qualquer modo, o que Sam fizera fora uma tolice. Um gesto de bravura e heroísmo também. Mas ela preferia se desviar dessa linha de raciocínio. — Até quando pretende continuar em cima de mim? — ela perguntou, mais zangada consigo mesma do que com ele, por estar gostando da posição. — Não sei. Acho que você está mais segura assim. — Sam respondeu tão perto do pescoço de Del que ela sentiu os lábios lhe roçarem a pele. Del engoliu em seco. Não estava se sentindo segura. Ao contrário. Uma onda de pânico estava começando a se levantar. — Impressão sua — Del obrigou-se a responder com frieza. Em seguida fechou os olhos e suspirou com evidente enfado. A única tática que surtiu efeito com Sam. Del não aceitou a ajuda dele para se levantar. Colocou-se imediatamente de pé, passou as mãos pelas roupas para retirar as folhas e agitou os cabelos como medida de segurança.
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— Estou indo embora. — Não acho que deva — Sam murmurou. — Alguém está atirando por aí. — A noite está escura e eu sei andar sem fazer barulho. Ele não me verá nem escutará meus passos. — Não! Ela não se lembrava de alguém ter tentado impedi-la de fazer algo com um simples não. Uma emoção estranha atingiu seu peito. Sam era um homem firme e a preocu-pação com ela não era fingimento. Sempre se orgulhara de ser auto-suficiente. Talvez fosse por essa razão que estivesse se sentindo tão bem. Porque a independência podia ser solitária de vez em quando. E ela estava cansada de ficar sozinha. — Obrigada. A mudança de atitude foi tão inesperada que o pegou de surpresa. — De quê? As sombras impediram que ela visse a expressão com que Sam lhe falara. Mas pelo tom ela adivinhou que o deixara desconfiado. — Ninguém jamais se importou comigo. O momento que seguiu carregava promessas. Como o silêncio que antecede uma tempestade de ventos. Del entendeu que algo muito grande estava por acontecer e que depois de viver aquela experiência ela nunca mais seria a mesma. Podia sentir a respiração de Sam em seu rosto. O nariz dele se colocou entre seus cabelos. E um novo tiro foi disparado. Ato reflexo, Del o puxou pelo braço. — Venha comigo. Sei de uma caverna onde poderemos nos esconder. — Uma caverna? — Sam estancou. — Sim. Precisamos nos resguardar antes que ele torne a atirar. Del estava começando a duvidar que fosse seu pai o atirador. Ele não costumava perseguir os invasores com tanta ostentação. Disparava alguns tiros para o alto apenas para afugentá-los. Aquilo estava parecendo uma emboscada. Algo premeditado. Como se soubessem que eles estavam ali e quisessem lhes mandar um recado que ela ainda não fora capaz de entender. E se não era seu pai, as balas poderiam ser de verdade. — Venha. Não podemos ficar aqui parados. — Há morcegos nessa caverna? — Que eu saiba em toda caverna há morcegos. Elas são seu habitai. Mas o que tem isso agora? — Alguém precisa ficar de vigia. Você entra e eu monto guarda. Outra bala passou raspando por eles. Aturdida, Del apelou para um gesto de emergência. Agarrou-o pelo cinto da calça e também pelos cabelos. Precisava levá-lo para um abrigo nem que fosse à força. Não acreditava que o atirador fosse segui-los. Mas se o fizesse, ao menos eles poderiam surpreendê-lo, ficando um de cada lado da entrada. No limiar, porém, Sam estendeu os braços e se segurou em uma pedra. Por mais que insistisse, ele não se movia do lugar. Estava começando a querer desistir e se dar por vencida quando resolveu fazer uma última tentativa. Encostou-se a ele e abraçou-o sensualmente com uma das pernas. Ouviu-o soltar um grunhido. No minuto seguinte era ele que a estava empurrando para dentro da caverna. Os pés afundaram em terra ou areia. Eles pararam.
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— Vamos procurar alguma pedra onde possamos subir e nos proteger — Del sugeriu. Após alguns tropeços, conseguiram escalar uma pequena elevação. O espaço era pequeno, mas ao menos daria para permanecerem juntos. — Poderemos despencar daqui a qualquer descuido — Sam murmurou, preocupado. Sentaram-se bem perto um do outro e tatearam ao redor. — Então teremos de ficar atentos a cada movimento que fizermos — Del concordou. Sam não lhe deu chance de continuar. Apoderou-se do lábios de Del com sofreguidão. Ela ouviu um gemido. Não saberia dizer se dele ou dela. Sam tornou a beijá-la, agora no pescoço e no lóbulo da orelha. Sua mão a tocou por cima da blusa, mas quase de imediato começou a deslizar pela pele macia, subindo rapidamente até se apossar de um seio. Del sentiu o corpo ir para trás e não tentou detê-lo. Sam acompanhou o movimento. Sem parar de beijá-la, repetiu o método de que ela se utilizara para convencê-la entrar na caverna. A pele era suave e macia e estava quente ao toque até ele encontrar a renda do sutiã. Torceu para que o fecho fosse frontal. Examinou a peça detidamente, sem encontrá-lo. Foi obrigado a prolongar a expectativa de acaricia- los até alcançar as costas de Del e livrá-la do obstáculo. O medo irracional que ele tinha de morcegos ameaçou perturbar o colóquio, mas o desejo avassalador por Del venceu o trauma. E também o bom senso. Era noite e as criaturas estavam fora. Elas só procuravam lugares escuros para se abrigarem quando a claridade as ameaçava. Faltavam muitas horas ainda para amanhecer. Horas que ele poderia dedicar as fantasias que o assaltavam desde que vira Del pela primeira vez. Com indescritível volúpia, Sam se apoderou dos seios com a boca e com as mãos. Eram redondos, cheios, macios e perfeitos. Ele estava no melhor lugar do mundo e não o deixaria mesmo sob a ameaça de uma arma. Sam enrijeceu. Ele não estava sozinho. Se algo lhe acontecesse, Del ficaria à mercê do atirador. Era preciso voltar à razão. E ele teria se afastado e recuperado o con-trole, talvez, se Del não tomasse a iniciativa do outro beijo. Com um gemido, ele cedeu à vontade dela. Del era ousada. Se ele quisesse prolongar aqueles momentos de intenso prazer, precisaria se lembrar de respirar. Porque ela estava introduzindo a mão pelo cós de sua calça e puxando o zíper. Diante do ímpeto com que Sam terminou de se despir, Del achou por bem não esperar que ele se ocupasse da tarefa que dizia respeito a ela. Livrou-se da própria roupa. Ficaria nua para ele. — Você está bem? Não quero machucá-la. A pedra sob suas costas a estava matando. — Estou. Você não vai me machucar. Antes que Del pudesse entender o que estava acontecendo, Sam girou o corpo de maneira a ficar por baixo dela. — Melhor agora? Atitudes falam mais do que palavras. Del segurou as mãos dele e as colocou em seus seios. Uma corrente elétrica fluiu em direção a seu baixo ventre e ela o conduziu para dentro de seu corpo. Fazia tanto tempo... Poderia atingir o clímax apenas com a penetração. Mas estava
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tão bom que queria prolongar o prazer. Tinha certeza de que estava se passando o mesmo com Sam. Sua respiração estava ofegante. Começou a se mover devagar. Até não suportar mais e acelerar as investidas. Sam sentia-se febril. Estava sob o comando de Del e não se importava. Ela era um maravilhoso contraste. Sabia ser doce e carinhosa, mas também exigente. Ele nunca sentira tanto prazer no sexo com outra mulher. — Você está bem? — ela murmurou quando finalmente se renderam ao cansaço. — Nunca estive melhor. — Suas costas devem estar doendo sobre essa pedra, sob meu peso. — Não se atreva a se mover. Você é um ótimo cobertor. — Está com frio? — Você deve estar. — Sam tentou se sentar para pegar as roupas de Del, mas ela o impediu. — Sei de outra maneira para continuarmos aquecidos — ela sussurrou sugestiva. Sam acordou algumas horas depois com uma pressão na virilha. Del estava dormindo em seu ombro e procurava uma posição melhor. Ele a afastou gentilmente e se pôs a acariciar os cabelos espalhados como uma nuvem em seu peito. Jamais se cansaria de Del. Ela era uma mulher inteligente e excitante. Um ruído quase imperceptível o fez aguçar os ouvidos. Faltava pouco para o sol nascer. Precisavam se apressar se quisessem ir embora enquanto as sombras ainda poderiam protegê-los. — Del? Ela não acordou com seu chamado, mas ele não poderia dizer o mesmo sobre os morcegos. Pelo barulho deveria haver centenas. O susto o fez virar bruscamente para o lado. E se arrepender... — Sam? — Del tateou a pedra e se sentou em pânico ao encontrar o vazio. A escuridão permanecia e o alvoroço dos morcegos aumentara com seu grito. Sam havia desaparecido. Ela procurou suas roupas e tampouco as encontrou. Desesperada, vestiu a camiseta que Sam lhe oferecera para servir de travesseiro. Deus, o que poderia ter acontecido? Se Sam tivesse resolvido ir para fora, ele certamente se vestiria antes. Ela precisava dar um jeito de descer daquela pedra e encontrá-lo. Esticou as pernas em busca de um lugar para apoiar os pés. Nesse instante, identificou o tecido grosso de um jeans e no momento seguinte o frio metálico do cinto que ele estivera usando. — Sam? — tornou a chamar com um sussurro de forma que os morcegos, talvez, não captassem as ondas sonoras. Foi com intenso alívio que Del ouviu algo que tanto poderia ser um murmúrio quanto um gemido. Escorregando pelas pedras, chegou ao chão e se pôs a rastejar. — Sam, por favor, responda — ela implorou, cada vez mais assustada. — Maldição! — ele praguejou. Um intenso alívio a fez suspirar. Finalmente o localizara. Mas ao tocá-lo, assustou-se novamente. Sam estava gelado. Dos males, o menor, ela procurou se consolar. Ao menos ele estava vivo! Cobriu-o com a calça. Seu coração batia tão forte que a obrigava a arquejar. — Você está bem? — Poderia estar melhor — Sam resmungou.
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Del esperou em silêncio que ele vestisse a calça. Jamais poderia imaginar que fosse pedir a camiseta de volta. Esse descaso ofendeu-a. Nunca admitira a idéia de ficar nua na frente de outra pessoa, a não ser no calor do sexo. — Sinto muito, mas não sei onde foram parar minhas roupas. Seria pedir demais que a deixasse comigo? — Se eu as encontrar, você devolve? — Lógico que sim. O dia estava nascendo e a claridade começava a se infiltrar pela caverna. As peças íntimas pareciam ter evaporado, mas Sam não levou mais do que um minuto para localizar a calça e a blusa que se recusou a entregar até que Del lhe devolvesse a camiseta. Protestos não funcionaram. Ela acabou se virando de costas. Sam estava tirando vantagem de sua situação. Ele não perderia por esperar. Sam exibia um largo sorriso. Del evitou encará-lo. Estava sem calcinha, sem sutiã e sem sapatos. Ele quis beijá-la, mas ela se afastou. Sam jamais entenderia as mulheres. Del ficara nua para ele na noite anterior. Ela vivia se curvando de modo que seus seios se projetassem pelo decote. Por que ficara tão zangada por ele desejar vê-la nua só mais alguns segundos antes de saírem? — Deixe-me ir primeiro — ele disse, lembrando-se do atirador, mas Del continuou seguindo à frente e ignorando seu pedido. O que o fez acelerar o passo e detê-la. Não estava preparado para uma cotovelada na barriga. O que havia com ela? Após a noite de sexo incrível ele estava calmo como não se sentia havia um longo tempo. E ela parecia uma potranca selvagem. — Solte-me! — Del quase o chutou quando ele tornou a segurá-la pelo braço, obrigando-o a pegá-la e colocá-la sobre os ombros como um saco de ração. Um saco de ração? Ele havia se esquecido completamente de Toadstool! A essa altura, o porquinho já deveria ter comido todos os bancos da caminhonete! Sam a manteve cativa até deixarem o bosque para trás e ele se certificar de estarem em segurança. Seus ouvidos não captaram nenhum som que constituísse uma ameaça. Nada além de canto de passarinhos e do burburinho das águas. — Agora você está livre — ele disse ao colocá-la no chão, e de se ser derrubado com um empurrão. — Isso foi por você ter se atrevido a mandar em mim e por ter roubado meu porquinho. Del se lembrou dos tempos em que andava descalça por aqueles terrenos. Daria qualquer coisa, contudo, para estar usando suas botas. Estava furiosa consigo mesma. Como pudera se deixar vencer pelo sono antes de se recompor? Ninguém jamais a vira nua fora de uma cama. Detestava a nudez em público. Nunca se trocara nem sequer na frente das outras meninas no vestiário da escola. A caminhonete estava estacionada no mesmo local onde Sam a deixara, aparentemente intacta. Estavam se aproximando quando Del notou o focinho de Toadstool na janela. Precisou fechar os punhos para não dar outro soco em Sam. Como ele pudera abandonar aquela criaturinha indefesa sozinha durante toda a noite? — Ele está bem? — Sam perguntou, cauteloso, para suspirar de alívio no momento seguinte. Toadstool não apenas parecia bem, como se portara bem. Del pagara um alto preço por sua desobediência de alguns minutos antes. Quando Sam a aconselhou a tirá-lo imediatamente do carro e levá-lo para passear, ela
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acatou a recomendação sem discutir. — Quem estava atirando em você ontem à noite? — Sam perguntou, de repente. — Como posso saber? — Del mentiu, ressabiada. O que mais Sam poderia ter descoberto a seu respeito? O súbito interesse do porquinho pelos frutos caídos de uma árvore interrompeu a conversa. Del estranhou a pressa de Sam em afastá-lo do local. — Qual o problema? Porcos adoram bolotas. O silêncio de Sam e sua rigidez a fizeram franzir o rosto. — O que houve? Ao se abaixar para pegar Toadstool no colo antes que ele comesse as bolotas que lhe fizeram mal no outro dia, Sam encontrara um projétil vazio feito de plástico. Ao examiná-lo, encontrou resíduos de um pó branco. — Não sou perito neste assunto — Sam declarou —, mas tenho quase certeza de que seu perseguidor estava disparando tiros de sal. Del engoliu em seco. — Ao menos eu me sinto reconfortada com a idéia de que o homem não tinha intenções de me matar. — Mas sempre existe esse risco — Sam informou sério, enquanto guardava a cápsula no bolso. — Depende do lugar atingido. Quanto mais ele refletia sobre o atentado da noite anterior, maior era sua perplexidade. Não conseguia atinar uma razão para alguém querer impedir que Del ou ele andassem por entre um aglomerado de árvores, sem cercas de delimitação. O que poderia estar por trás daquela história? — Estou pensando em ir até a cidade — disse Sam. — Onde você deixou seu carro? — Por que quer saber? — Del resmungou. — Para acompanhá-la e Toadstool até lá. Você vai querer levá-lo consigo, não vai? — Sim, mas o que o faz querer ir até a cidade? — Del perguntou apreensiva. — Alguém atirou em nós ontem à noite. Você não acha que eu devo relatar o fato à polícia? — Acho que seria perda de tempo. A pessoa atirou, afinal, com balas de sal. E nós estávamos invadindo terras, se é que você esqueceu. — Então você acha que devemos simplesmente ir embora e esquecer o assunto? — Sim — Del concordou. — Acho melhor esquecermos o que houve. Sam franziu o cenho. O que Del quisera dizer com "esquecerem o que houve"? Porque ele não queria esquecer nada. Em especial o que acontecera entre eles na caverna. — Façamos o seguinte — Sam propôs. — Você segue na frente e eu a encontro na Toca do Coelho. Sam acompanhou Del e ajudou-a a acomodar Toadstool no banco de trás. Ficou olhando o carro se afastar em uma nuvem de poeira e só então voltou para a caminhonete. Del não havia tornado a mencionar o xerife. Ele agradecera mentalmente sua sorte. Estava cada vez mais relutante em lhe mentir. Não queria nem sequer pensar sobre a conduta que teria no momento que encontrasse o porco Unruh. De volta a Allentown, Del ainda não havia conseguido pensar em uma solução para o problema da noite anterior. Ela deveria ter perdido o juízo para se permitir fazer sexo com Sam dentro de uma caverna enquanto seu pai tentava matá-la do lado de fora. Principalmente porque a única razão de sua visita a Docia não fora cumprida. O cerco estava se fechando sobre ela. Precisava dar um jeito de encontrar o porco
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Unruh e partir ou correria o risco de permanecer em definitivo ao sul do Missouri. Mas para onde ir agora? Deveria procurar Tilde? Até aquele momento, ela tinha sido a pessoa que mais a ajudara. A permanência de Sam em Docia não foi das mais agradáveis. Antes de preencher um relatório de ocorrência, o xerife lhe passou um longo sermão sobre o erro que ele havia cometido em invadir propriedade alheia. O único ponto positivo nesse esforço tinha sido a conversa que ele tivera com uma das funcionárias do posto policial. — Tudo certo? — ela perguntou com um sorriso que levou Sam a decidir aprofundar a investigação. — Espero que sim. Eu estava procurando uma erva rara perto do rio quando algum idiota começou a atirar. — Que perigo! — a mulher se aproximou com um andar insinuante. Embora estivessem separados por um balcão, Sam inclinou a cabeça para falar. Usou um tom deliberadamente baixo para simular uma confidencia. —Tive a impressão de que minha queixa dará em nada. Você tem alguma idéia de quem pode ter sido? — Ele descreveu o local em detalhes. — Oh, deve ter sido Jed Mont. Certamente foi ele. Isso acontece sempre que alguém ultrapassa a demarcação de sua propriedade. Mas ele atira apenas com sal. Embora a dor seja terrível, não mata. Jed Mont, o dono da loja de antigüidades. O sujeito sabia que Sam seguira em direção ao rio. Teria resolvido segui-lo? A um outro pensamento, Sam o descartou. Não podia ser. Mesmo que Jed Mont o tivesse seguido, outra pessoa já estava atirando em Del quando ele entrou naquele bosque. Sam já deveria ter chegado. Del detestava esperar. Principalmente por homens. Ainda mais depois de lhe enaltecer o ego conscientizando-o da formidável capaci-dade de atração. Ela tivera uma das melhores experiências sexuais de sua vida. A melhor, caso fosse capaz de admitir essa verdade. E esse era o maior alerta que po-deria receber para não se permitir um envolvimento. Já havia sofrido uma decepção afetiva que a obrigara a se mudar daquela região. Não suportaria um novo abalo emocional que a fizesse partir pela segunda vez. A última coisa que ela precisava era ter um motivo para ficar. As complicações estavam sendo tantas que Del perdeu o apetite, o que era raro acontecer. Até mesmo as rosqui-nhas que Becca lhe serviu com o café tiveram de ser oferecidas a Toadstool. Becca, aliás, fora adorável em permitir que ela entrasse com o porquinho no estabelecimento enquanto sua freguesia não chegava. — O que você fez com esse pobre animal indefeso? — Sam a surpreendeu. Ela estava tão distraída que não o viu entrar. Ele parecia outro homem desde aquela manhã. Estava, inclusive, bem barbeado. Ainda úmidos do banho, os cabelos pareciam ainda mais escuros e os olhos mais azuis em contraste. — Amarrei um guardanapo no pescoço para ele não se sujar com o recheio. Sam sorriu e balançou a cabeça. — Só vendo para crer. — Por que demorou? — Del não conseguiu calar a curiosidade. Ele olhou para a mesa, incerto onde se sentar. Del cogitou lhe abrir um espaço em seu banco, mas não se moveu. Arrependeu-se ao vê-lo se dirigir ao banco do outro lado. —Você já encontrou algum hotel que permita animais? — Sam perguntou sem
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responder. Ela fez que não. — Tentei novamente convencer a dona do Rancho de que seria apenas por uma hora ou duas, mas ela não arredou pé. Se você me prometer que não tornará a desaparecer com meu porquinho, eu acho que precisarei lhe pedir para abrigá-lo mais uma noite em sua casa. — Eu estava pensando em hospedar a dona dele também — Sam propôs com um olhar malicioso. — Você poderia cuidar pessoalmente de Toadstool e eu de você. — Quem vai cuidar de quem? — Becca quis saber antes que Del terminasse a batalha que estava travando com sua libido. Del gostou de ver Sam corar por sua causa. Isso o deixava mais charmoso. — Do meu porquinho — Del resolveu salvá-lo do constrangimento. — Ele não foi aceito no hotel. E antes que a conversa prosseguisse, Becca fez um sinal para Del avisando-a da chegada de um cliente. Capítulo VIII De camisa branca Armani e calça social cinza-grafite, David parou à entrada ao ver Del se preparando para deixar o restaurante. Sam estreitou os olhos ao adivinhar que algo estranho estava acontecendo. Del parecia querer estar em qualquer outro lugar do mundo naquele instante. — Você o conhece? — Becca perguntou. — Ele é amigo seu? — indagou Sam com fingida naturalidade. — Não exatamente. Del manteve o sorriso enquanto falava. A verdade era que David já a colocara em situações difíceis mais de uma vez. — Olá, Del. — Olá, David, o que faz por aqui? Como se ela não soubesse! — Eles deixaram você entrar aqui com um porco? — Toadstool é um caso especial — disse Becca e se afastou, com relutância, para atender um outro cliente que acabava de chegar. Cabia a Del fazer as apresentações. Ela se apressou a tomar essa providência ao interceptar um olhar de desconfiança por parte de Sam. Não queria, entretanto, se estender em pormenores. O alvo de sua missão, afinal, ainda não fora atingido. — David é um conhecido meu de Chicago. — Ela esperou que os homens se cumprimentassem. — Você não tem mandado notícias — ele comentou, sem preâmbulos. — Porter está ficando ansioso com a aproximação do grande evento. — Está tudo bem. Não há motivo para preocupação — Del tentou se controlar, embora sentisse que corava. — Não de sua parte, obviamente. — Ele deu uma piscada. — Já que estou aqui, talvez eu aproveite para tirar umas férias antes de voltar e assumir seu cargo. Porque segundo o que pude perceber, você talvez resolva ficar por aqui. Del teria voado para cima do pescoço de David, se pudesse. — Nada me prende aqui. Estarei de volta a Chicago assim que completar minha coleção. — Vou precisar de um lugar para dormir. Onde você está hospedada?
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— Ela está em minha casa — Sam respondeu. — Procure uma pousada chamada O Rancho. E a melhor da cidade. Del não retrucou. Com David, em Allentown, ela precisava de um aliado. — Vejo que não me enganei — David insistiu. — Del tem motivos para querer ficar por aqui. — Ela está em minha casa por causa do porquinho. A propósito, não está na hora de levá-lo para um passeio. Del? Ela se apressou a aceitar a deixa. Mas em vez de convidar Sam para acompanhá-la, como seria de esperar, chamou David. Queria lhe dizer uma palavra ou duas. E garantir que os dois homens não conversassem longe de sua presença. Sua estratégia, porém, não funcionou. — Confesso que prefiro ficar por aqui. Estou cansado da viagem. — Mas assim que Del se afastou, sem condições agora de chamar Sam em substituição ao outro, o tom de voz de David mudou. — Você descobriu alguma coisa? Sam encarou o sujeito. Em pessoa ele lhe pareceu ainda mais desagradável do que ao telefone. — Você não mencionou que tinha planos de vir para Allentown — Sam observou. — Quando chegou? — Esta manhã. O sujeito estava mentindo. Ninguém pegava uma estrada às três da madrugada a não ser em emergências. A não ser que ele tivesse chegado na noite anterior e não quisesse contar. Talvez por ter estado ocupado atirando em Del e nele com balas de sal? Ficara evidente que havia uma forte rivalidade entre Del e David. Até que ponto o sujeito estaria disposto a prejudicá-la para se apoderar da peça de cerâmica? Seu nome não seria mais Sam Samson caso não descobrisse. Becca trouxe café para eles naquele instante. — O que há por aqui em matéria de diversão? — David quis saber. — Há belas paisagens. O lugar é ótimo para quem gosta de caminhar e nadar. — E de praticar tiro ao alvo — Sam acrescentou. — Becca costumava praticar esse esporte alguns anos atrás. Sam viu a prima corar de prazer. — Deixei de freqüentar o clube quando meu filho nasceu. Estou surpresa que você tenha lembrado. Sam praguejou consigo mesmo. Não tivera intenção de facilitar um encontro entre os dois. Aproveitou a chegada de um novo freguês para afastá-la de David. — Se você quiser conhecer o local, eu posso apresentá-lo como meu convidado — Becca sugeriu, como se não tivesse ouvido Sam falar. — Eu teria imenso prazer em ir. Eles dispõem de armas para alugar ou ceder? — Sam poderá emprestar a dele, não é, Sam? Del tinha de concordar que a casa de Sam era simples, mas aconchegante. Depois do que ele dissera a David, hospedar-se em outro lugar estava fora de cogitação. De qualquer forma, fazia sentido. Ela poderia cuidar de Toadstool em vez de obrigá-lo a assumir essa tarefa. Além de tudo, estavam trabalhando juntos. — Aceita uma bebida? — Sam perguntou a caminho da cozinha. Del parou para pensar. Nunca bebia nada mais forte do que um copo de vinho. Outro costume que deixara no passado. Aquela noite, porém, era especial. Precisava de algo que a animasse a decidir se passaria ou não a confiar em Sam.
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Ele voltou com dois copos com suco de limão e uma garrafa de gim. — Posso preparar um para você também? — ele tornou a oferecer. Del concordou e perguntou onde poderia conseguir lençóis. Nesse instante, Sam a segurou pelo queixo e a fez encará-lo. — Estamos precisando ter uma conversa, você não acha? — A respeito? Ele fez sinal para que Del se sentasse no sofá. — Do motivo que a trouxe para esta cidade. Do lugar de onde veio. De como conheceu David. — Onde está Toadstool? — Ela tentou se levantar, mas Sam a impediu. — Ele está lá fora. Não se preocupe. Desse porco eu sei. E sobre o outro que eu gostaria que você me contasse. Del se sentiu calma pela primeira vez desde que o conhecera. Não havia mais razão para continuar com a farsa. Sam sabia de tudo. — Como você descobriu? Agora foi Sam quem ficou sem resposta. — Quer mais uma dose? — ele tentou ganhar tempo, mas Del não lhe deu folga. — Foi David quem ligou para você naquele dia? Foi apenas por uma fração de segundo, mas ela viu uma expressão de alívio passar pelos olhos que tentavam fugir de seu escrutínio. — Sim. David disse que vocês trabalham para um importante leiloeiro em Chicago. Isso é verdade? Havia mágoa na voz de San. O que ele esperava? Por acaso estava sendo honesto com ela? De qualquer modo, Del não pôde evitar uma pontada de remorso. — Somos compradores. David e eu trabalhamos para Benjamin Porter. Eu sempre consigo o que quero. Sam sorriu. — Eu não duvido. Você é inteligente, charmosa e sabe mentir com uma empáfia surpreendente. A observação causou um aperto no peito de Del e a fez decidir enveredar por um outro caminho a partir daquela conversa. Uma angustia tão forte a assaltou que ela precisou tentar mudar o pensamento. — Quanto ele lhe cobrou? — Sam perguntou algum tempo depois, para quebrar o silêncio. Del parecia distante enquanto examinava cada uma das peças que comprara de Izzy no outro dia. — Por esta jarra? — Del ergueu o objeto. — Duzentos dólares. — Quanto ela vale? — No mínimo setecentos — Del confessou com um sorriso de orgulho. Sam deu uma gargalhada. Enfim, conseguira derrubar a parede invisível que se levantara entre eles. — Tirou vantagem do velho Izzy? Tenha certeza de que foi uma das poucas pessoas a conseguir essa façanha. O momento de descontração, porém, logo reverteu para o desejo e eles praticamente se atiraram nos braços um do outro. Beijaram-se com ímpeto. Como se nada pudesse suprir a necessidade que sentiam de se tocarem. Sam enlaçou-a pela cintura e ela o envolveu pelo pescoço. Como de comum acordo, Sam desceu as mãos para sustentá-la e Del deu um pequeno salto, abraçando-o com as pernas. Fitou-o com a satisfação de uma mulher que sabia que tinha seu
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homem sob total controle. Beijou-o com delicadeza. Mas logo o beijo foi se tornando mais e mais voraz, até ela perceber que estava sendo carregada. Nesse momento, começou a beijar o pescoço e o lóbulo da orelha de Sam. Ela havia fechado os olhos, exultante com a pressa de Sam em levá-la para o quarto. Mas tornou a abri-los ao perceber que ele parará de andar. — O que houve? — perguntou surpresa. Os olhos de Sam brilhavam de desejo. Ele os fixou nos lábios dela e beijou-os como se quisesse devorá-la. Suas mãos procuravam tocá-la por todas as partes. Del pensou que explodiria ao sentir que ele se apoderava de seus seios e começava a sugar seus mamilos. — Sam! — Agora? — A voz dele soou brusca e rouca. — Agora — ela concordou sem fôlego. Em três passadas, ele a deitou na cama, e com movimentos enérgicos se despiu. Ainda estava claro. Del tentou puxar a colcha sobre o corpo quando Sam lhe tirou a blusa, mas ela o impediu. — Deixe-me olhar para você. — Ele deslizou as mãos pelos seios e pelo abdômen como se obedecesse a um ritual e se pôs a repetir o quanto ela era linda até livrá-la das outras peças. As carícias se tornaram mais e mais ousadas até Del clamar pela consumação do ato. Precisava sentir Sam dentro dela, movimentando-se, para aliviar a pressão que se agigantava mais e mais em suas entranhas. Os últimos raios do sol se infiltravam pelas frestas da janela causando uma espécie de dança sobre os corpos entrelaçados. Mas o que poderia ser interpretado como um cenário romântico fez a magia ter fim. Del tentou se levantar, mas Sam a impediu. — Seu lugar é aqui comigo. O tom brincalhão desfez a onda de timidez. Com Sam talvez ela conseguisse superar sua dificuldade de encarar o futuro. Como se não houvesse nada de que se envergonhar no passado e no presente. Mais tarde, enquanto Del dormia, Sam pensou que ela deveria ser uma exímia profissional no ramo leiloeiro. Um sorriso voltou a seus lábios à lembrança do que ela conseguira fazer com um sujeito ladino como Izzy. Del era uma mulher linda e segura de si. Não dava para entender o porquê de seu constrangimento em se mostrar nua. — Precisamos nos levantar — ela disse, trazendo-o de volta para a realidade. — Precisamos — ele concordou. Mas nenhum dos dois se moveu. Na cama, eles eram amantes. Não precisavam pensar em disfarces nem em trapaças. Porque permanecia o fato de que cada um pretendia encontrar e se apoderar da peça de cerâmica rara com exclusividade. Del para cumprir sua missão. Ele para salvar seu negócio e o de Becca. — Até quando pretende me fazer esperar para contar o que a trouxe para Allentown? — Preciso ser mais clara? Sam quis esquecer sobre seus problemas financeiros, quis esquecer sobre o resto do mundo. Mas o tempo estava passando e era preciso encarar sua situação. O modo como ele a encarou, fez Del finalmente entender que ele estava falando sério. — Meu chefe me mandou para cá — Del respondeu, por fim. — Para conseguir o porco Unruh para ele? Ela assentiu.
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— Alguém lhe disse que a peça deveria se encontrar por estes lados. Um grande leilão está marcado para breve. David, obviamente, entrou na disputa. Quem conse-guir levar a peça para ele será promovido como leiloeiro oficial. Apesar de minha experiência, eu só consegui ser chamada até hoje como substituta em pequenos eventos. — Nunca pensou em montar seu próprio negócio, como eu? — Porter tem prestígio — Del explicou. — Todos o valorizam por lá. — Todos me valorizam por aqui — Sam procurou fazê-la raciocinar ao modo dele. — Eu cheguei aqui sem nenhuma pista concreta a seguir. Trombei com você por acaso, graças a sua prima. — Fico feliz que tenha trombado comigo — Sam caçoou. Del sorriu apesar das circunstâncias. — Agora é sua vez de me contar. Como soube que eu estava procurando pelo porco Unruh? Sam olhou para o teto enquanto se vestia. Se contasse sobre o trato que fizera com Izzy, ela descobriria que ele também estava atrás da peça. — David ligou para mim e despertou minha curiosidade. Minhas pesquisas revelaram que aquele antigo artefato vale uma pequena fortuna. Del concordou com a cabeça. — David lhe ofereceu uma percentagem no negócio? — Vinte por cento — Sam respondeu, lutando contra si mesmo para não confessar toda a verdade. Porque sua intenção, ainda antes de o sujeito aparecer, era conservar a peça para vendê-la pessoalmente em um próximo leilão quando ofereceria a Izzy uma pequena parte do lucro. Del olhou para ele enquanto terminava de se vestir. — E se eu lhe pagar trinta? — sugeriu, afoita. Ela estava tão aliviada por Sam ter mencionado um valor dentro do plausível, que não questionou a eventualidade de Porter vir a recusá-lo. — Acho que devemos dar uma olhada em Toadstool. Já faz tempo que ele está lá fora. Uma fisgada de apreensão comprometeu o entusiasmo de Del, mas só por um instante. — Trinta por cento é uma divisão justa, você concorda? — Sim, eu concordo. Del fechou os olhos e sorriu consigo mesma ao ouvir a porta dos fundos ser aberta e Toadstool andar pela cozinha. Não precisaria mais mentir. Sam já sabia sobre seus negócios e sobre Porter. Sam abriu a torneira para encher o pote. O porquinho estava parado aos pés dele, esperando para beber água. Uma onda de emoção o assaltou. Del também confiara nele. Não podia decepcioná-la. Não queria decepcioná-la. Ao contrário. Sentia necessidade de cuidar dela. Sua primeira atitude nesse sentido, aliás, seria resolver aquela questão sobre o atirador. — Estou com sede — Del entrou na cozinha, descalça e despenteada. Sam sentiu ímpetos de esquecer tudo em troca de mais uma hora de paixão, mas se conteve. — Tem chá na geladeira. Del serviu um copo para ele e outro para ela. Sentou-se em uma cadeira e tomou um gole. — Por onde vamos começar?
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Sam preferiria que ela tivesse perguntado onde eles acabariam. Forçou-se a lembrar que havia um grande negócio em jogo. — Pelo atirador — Sam afirmou. — Quem imagina que possa desejar a prenda o suficiente para tirar você do caminho a bala? — Ninguém. — Del encolheu o ombro. — Deve ter sido uma coincidência. O que ela estaria escondendo agora? — Eu falei com o xerife a respeito... — E? — Não ajudou muito. — Seria impressão dele ou sua resposta provocara um suspiro de alívio? — Mas a funcionária mencionou um nome. Jed Mont. Você o conhece? — Não que eu me lembre. Sam ficou atento ao nariz de Del. Se ele estava cocando, ela não o deixou perceber. — Ele tem uma loja de antigüidades em Docia. Você não a notou quando passou pela cidade? — Eu não fui até a cidade. — Como conseguiu chegar até a ponte? — Da mesma maneira que você — ela respondeu. — Por que a procurou? — Porque foi lá que a história começou, com um acidente de carro. — Como descobriu isso? — Uma mulher me contou. Sam esfregou o queixo. — Então ela sabia que você estaria lá. —: Sim, mas se Tilde não quisesse que eu fosse até o local, por que me daria essa informação? O que me leva a cogitar sobre quem lhe forneceu esses dados. Sam hesitou. Ainda não estava pronto para contar a Del sobre Izzy. A bem da verdade, o velho matreiro o manipulara. Aconselhara-o para ficar em Allentown certo de que ele faria exatamente o contrário. Mas, como Del concluíra a respeito de Tilde, por que Izzy o mandaria para Docia se não o quisesse por lá? — Quem mais está ciente do motivo de sua vinda para cá? —Ninguém. Exceto David. Mas ele só chegou aqui hoje. — Talvez sim. Talvez não. Ele pode perfeitamente ter passado antes por Docia. — Você contou a ele sobre o carro que caiu da ponte? — Sam fez que não. — Como pode ter certeza de que as balas eram para mim e não para você? Sam ainda não havia pensado nessa possibilidade. Mas quem poderia querer amedrontá-lo? Armstrong, seu maior concorrente? Eles viviam disputando as melhores mercadorias para oferecer em leilões, mas daí a atirarem um no outro? Isso levou Sam de volta ao começo. O atirador teria de saber que encontraria Del e ele naquele bosque. Apenas quatro nomes formavam a lista: Izzy, Tilde, Jed Mont e David Curtis. A única maneira de Sam descobrir se David sabia sobre o acidente, seria falando novamente com Izzy. — Mas, afinal, por que estamos nos preocupando com esses detalhes? — Del interrompeu a reflexão de Sam. — No momento que encontrarmos a cerâmica, nada mais terá qualquer importância. Sam teve de admitir que Del estava certa. Eles precisavam concentrar seus esforços na localização do objeto. O resto ficaria para depois.
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— Talvez você devesse ligar para seu chefe e tentar obter mais informações. Ele disse quem foi que lhe deu a dica? — Não. Eu perguntei, mas ele não falou. Se o homem queria que Del tivesse sucesso na empreitada, por que não facilitou sua tarefa? — Quem você está pensando em procurar antes? Tilde ou David? Ou voltará a Docia para averiguar? Sam não tinha dúvidas de que procuraria Izzy na primeira oportunidade e que daria um jeito de lhe arrancar todas as informações necessárias. Enquanto isso, Del tentava decidir. David, Tilde ou Docia? Docia estava fora de qualquer cogitação, e ela não acreditava que Porter tivesse dado maiores informações a seu colega. Restava Tilde. Pensando bem, tanta generosidade dava pára desconfiar. Não era estranho que ela tivesse lhe presenteado com aquele antigo recorte de jornal a troco de nada? — Tilde. Preciso dar um jeito de descobrir o telefone dela. — Você a conheceu na Toca do Coelho, não foi? Becca deve saber o número. Eu a deixo lá, se quiser. — Está pensando em sair? — Sim, preciso resolver algumas pendências. A explicação soou plausível, mas o temperamento desconfiado de Del levou a melhor. — Não se prenda por mim. Vou ficar mais um pouco com Toadstool e depois irei com meu carro. Dez minutos depois, Del estava tirando o carro da garagem. Como Sam resolvera dar um telefonema, eles acabaram saindo juntos. Ao se despedirem, ela virou para a direita, enquanto ele foi para a esquerda. Mas deu a volta no quarteirão para acompanhá-lo à distância. Sam estava de olho no espelho retrovisor. Del aceitara a desculpa dele com demasiada facilidade. Alguns instantes depois, ele sorriu consigo mesmo ao descobrir que não se enganara. Um par de faróis se fez notar quando ele deixou os limites da cidade. De propósito para despistar Del, ele parou em um bar na estrada. Se tivesse sorte, encontraria sua amiga Charlie atrás do balcão. O pai dela era o dono do lugar. Ainda era cedo para confusões. Del poderia entrar e tomar um drinque em segurança. Ou desistir de esperá-lo e voltar para a cidade. — Importa-se de trocarmos de carro? — ele perguntou após as saudações. Charlie tirou o chaveiro do bolso e entregou-o. — Algum problema com o seu? — Não. Com uma loira que deverá entrar pela porta e perguntar por mim. — O que devo dizer a ela? — Que estou lá dentro em reunião e que devo demorar uma hora ou duas. Charlie estreitou os olhos. — Acha que dará certo? — Sim, se você fizer o que estou lhe pedindo — Sam afirmou e se dirigiu à cozinha onde ficou aguardando que Del se acomodasse para sair pelos fundos. O vagão estava às escuras. Sam chamou por Izzy, mas ele deveria estar dormindo. Teve de bater para ser atendido. — Quem é? — Samson.
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— Está sozinho ou com aquela mulher? — Sozinho — Sam respondeu, impaciente. — Então entre. A porta está aberta. Foi como atravessar um portal para um mundo além da imaginação. Piso em tábuas de carvalho, armários em carvalho e móveis de carvalho em estilo vitoriano. Um velho vagão de trem por fora. Por dentro, uma casa de época. — Nunca julgue um livro pela capa, rapaz — Izzy caçoou ao notar a perplexidade do outro. — Sente-se e fale. Estou certo de que existe uma razão para esta visita fora de hora. — Você me mandou a Docia. O velho comerciante empurrou um prato de biscoitos na direção de Sam. — Pelo que eu lembro, aconselhei-o a permanecer por aqui. — Só porque queria que eu fosse para lá. — Por que eu faria isso? — E o que eu vim tentar descobrir. — Continua se encontrando com aquela moça? — Alguém atirou em nós. A expressão de Izzy permaneceu inalterável. — Foi você? — Sam acusou. O outro deu uma gargalhada e mostrou a mão. Um acidente o obrigara a colocar uma prótese. — Como eu faria isso? — Você aprendeu a usá-la no decorrer dos anos. Nunca vi nada que o impedisse de fazer tudo o que as outras pessoas fazem. Sinto no ar que está acontecendo algo por aí e que seu nome está ligado aos fatos. — Você ainda não me respondeu. Del. Ela seria o motivo daquele jogo de gato e rato? — Algo me diz que você conhece a resposta. — Você me superestima, rapaz. — Sim, eu ainda estou em contato com ela. — Você viu as peças que eu lhe vendi? — Algumas — Sam admitiu, embora apenas se lembrasse de uma em formato de uma jarra. — Verifique se ela já abriu todos os pacotes. Talvez a moça tenha deixado escapar algo de seu interesse. Sam pestanejou, atordoado. Nada daquilo fazia sentido. — Você está se referindo ao porco Unruh ou a quê? — Ao amor, rapaz. Todos os últimos acontecimentos só têm uma explicação. A confusão estava aumentando mais e mais. O que Izzy estava querendo dizer com aquela declaração enigmática? Quem poderia imaginar que ele fosse um velho romântico? Duas horas depois, Sam estava de volta ao bar. O estacionamento estava lotado. Música e vozes alcançaram seus ouvidos. Ele dobrou a esquina e entrou por trás. Ao vê-lo surgir da cozinha, Charlie fez um sinal de que precisava lhe falar. — Ela está em uma mesa de pista. Não engoliu a desculpa que eu lhe dei, mas disse que ficaria aqui a sua espera até que voltasse. Leve-a embora, Del, antes que essa moça me cause problemas. Todos os clientes a estão disputando. Sam sentiu o sangue correr mais rápido nas veias à visão de quatro homens ao redor de Del.
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Onde Sam teria ido? Del não queria acreditar que ele a tivesse despistado. Fazia mais de uma hora que estava aguardando e a cerveja já estava morna. Aquele não era um estabelecimento onde poderia pedir vinho e ela não era do tipo que resistia a bebidas mais pesadas. Estava quase se decidindo a sair e tentar fazer uma ligação direta para ir embora com a caminhonete, só para dar um susto em Sam, quando um sujeito de cabelos empastados de gel a tirou para dançar. — Sinto muito, mas estou de saída. O garoto encolheu os ombros e começou a se afastar. Apenas não conseguiu se reunir a sua turma porque trombou com Sam e ele lhe disse algo que iniciou uma briga. Del suspirou. Precisava deixar o local antes que a polícia chegasse. Entretanto não teve essa chance porque os amigos do rapaz cercaram Sam e ela teve de intervir ao ver que ele estava sendo dominado. De um salto, pulou nas costas de seu admirador. Aproveitou-se do choque dele ao descobrir que estava sendo atacado por ela e deixou-o incapacitado de continuar lutando por alguns minutos. A essa altura, Sam estava caído no chão e ela teve de ameaçar os outros dois com a garrafa de cerveja, que quebrara na quina de uma mesa. Sirenes lhe chegaram aos ouvidos. Del estendeu a mão para ajudar Sam a se levantar. — Vamos embora! — Não se preocupe. A polícia vem a este bar todas as semanas. Já é rotina. Uma onda de pânico assaltou Del. Ela não teria deixado o Missouri, afinal de contas, se não tivesse medo de ir para trás das grades. — Podemos evitar o constrangimento. Você conhece a saída dos fundos. Foi por ela que escapou de mim. Silêncio. Os policiais estavam entrando. . Sam se levantou e conduziu-a para trás do balcão. Duas viaturas fechavam a passagem da caminhonete. — E agora? — Del perguntou, apavorada. — Nós esperamos. — Sam se apoiou em uma parede. Del havia notado um velho galpão no fundo do terreno. Sem esperar por Sam, começou a andar naquela direção. Uma caminhonete da mesma marca que a dele, embora mais nova, ocupava quase todo o espaço. Del tocou no capo. Ele estava quente. — Então foi assim que você escapou. — Ela balançou a cabeça. — Onde esteve, Sam? — Eu conto se você me disser por que está com tanto medo da polícia. — Eu não estou com medo — Del tentou mentir. — Não? Você não quis registrar queixa quando atiraram em nós e agora está apavorada por causa de uma simples briga de bar. O que está escondendo de mim? Capítulo IX Del engoliu em seco. Portas estavam sendo abertas e fechadas. Os arruaceiros estavam sendo colocados nas viaturas para serem levados para a delegacia. Os car-ros foram ligados e se afastaram. Depois o silêncio. Agora ela poderia sair em segurança. Apenas Sam continuava encarando-a a espera de uma resposta. Ela estava farta de mentiras. — Há sete anos, eu resolvi trabalhar com leilões por conta própria. Você, melhor do que ninguém, sabe que as mulheres têm pouca chance nesse ramo, mas eu
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resolvi tentar e tive sorte na organização de dois eventos. Mas então eu cometi um grande erro: o de confiar em meu pai. Porque apesar de ser uma boa pessoa, ele é capaz de tudo para ganhar dinheiro. Del se deteve e fechou os olhos. Os sinais tinham sido recebidos. Ela apenas não quisera enxergar. Deveria ter desconfiado de que estava escalando rápido demais a escada do sucesso. — Um dia, eu cheguei em casa e vi todas as gavetas e armários revirados. A polícia estava lá para verificar meus livros contábeis. Eu estava vendendo mercadorias roubadas em completa ignorância. — Eles a culparam pelo crime de seu pai? — Fui conivente de certa maneira. Deveria ter previsto a situação. Apenas não quis acreditar que ele fosse capaz de me envolver em suas tramóias. Ainda me dói falar sobre isso. Mas o crime não chegou aos tribunais. Não que eu tenha conhecimento. Porque eu fugi da cidade, mudei meu nome e minha aparência. Nunca mais tinha voltado para cá, até agora. — O que aconteceu com seu pai? — Nada. Era meu nome que estava ligado à receptação de mercadorias roubadas, não o dele. — Você poderia tê-lo denunciado? — Para quê? Para irmos os dois para trás das grades? — Del retrucou, na defensiva. Não esperava que Sam fosse tomar aquele tipo de atitude. A opinião dele a seu respeito era mais importante do que a de qualquer outra pessoa. — Qual é sua situação? — Foi emitido um mandato de prisão contra mim. Eu verei o sol nascer quadrado a qualquer momento, se for pega por aqui. — Onde exatamente? Ela estava perdida. Sam poderia representar o fim da independência que ela tanta lutara para conquistar. Mas precisava confiar em alguém. Desesperadamente. — Em Docia. Eu nasci e me criei em Docia. Sam franziu o cenho. Toda aquela confusão estava começando a fazer sentido. O porquê de ele ter encontrado Del perto do rio. O porquê de ela não querer ir com ele até a cidade para fazer um boletim de ocorrência. O medo de ser levada do bar para a delegacia. — Seu pai é Jed Mont, não é? Ela fez que sim. A voz soou fraca, cansada. O tom amargo. — Sim, meu pai é o ilustre sr. Jedidiah Mont. Ele não ousou perguntar se Jed Mont tentara limpar o nome da filha que usara nas negociações ilícitas. Sua intuição dizia que não. E também a postura rígida de Del. — Você acha que foi ele que atirou em nós? — No início eu pensei que sim — Del admitiu —, mas ele costuma estar na loja naquele horário. E por que, afinal, desejaria me afastar? Fui eu que me dei mal naquela história. A não ser... — Del se deteve. — Tilde me mostrou um recorte de jornal onde um grupo de homens posou ao lado do carro que foi retirado do rio. Meu pai estava na foto. A expectativa causou um frio no estômago do Sam. — Você acha que seu pai tem o porco? — Se ele tivesse encontrado a peça, ela não teria parado em suas mãos mais de dois minutos — Del declarou convicta. As explicações soavam plausíveis. Sam a abraçou em gesto de conforto. — Você era muito jovem. Não há razão para passar o resto da vida pagando por um
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erro que nem sequer foi seu. Lágrimas deslizaram pelas faces de Del. — Eu não paguei por meu erro. Eu fugi. — Sam quis beijá-la, mas se conteve. Del estava vulnerável. Não queria que ela pensasse que ele estava se aproveitando de sua fraqueza. — Meu nome é Delilah Mont, mas todos me chamavam de Lilah. — Combina com você. Importa-se de eu chamá-la assim a partir de agora? Del conseguiu sorrir apesar de tudo. — Você não ficou decepcionado comigo? Dessa vez ele não pôde resistir. Abraçou-a e beijou-a. Foi um beijo diferente dos outros. A paixão estava presente, mas outros sentimentos o permearam. Cumplici-dade, compaixão, desejo e amor. Sam não quis se deter para investigar esse pensamento. Sam a compreendera. Del não conseguia acreditar, tamanha sua surpresa. Ele não pensara mal dela, ao contrário, ela a apoiara. Juntos conseguiriam encontrar o porco Unruh e enfrentar seu passado. Com Sam, ela seria capaz de fazer qualquer coisa. Sam espiou por uma fresta da porta. Del estava dormindo em no sofá. Parecia um anjo, ou uma sereia com seus longos cabelos espalhados sobre a almofada verde. Ele resistiu à tentação de acordá-la com um beijo e carregá-la para a cama onde fariam amor pelo resto da noite. Sua resistência tinha a ver com seus planos para o futuro próximo. Já seria difícil o que bastasse para ele agravar a situação adicionando sexo ao problema. Voltou para a cozinha, abriu a caixa das compras que Del fizera na loja de Izzy e começou a desembrulhar os pacotes. Suas mãos tremiam ao dispor a última peça em cima da mesa. Havia porcos de todos os feitios e tamanhos: molheiras, vasos e saleiros, principalmente. Nenhum deles certamente poderia ser o lendário objeto de cerâmica. O que Izzy tinha em mente? Antes de tornar a embrulhar as peças, Sam examinou-as. Nada. O galheteiro era igual ao que ele comprara para Del na loja do pai dela. Ironia do destino. Se ele soubesse o que o homem fizera a filha passar, ele teria... O que poderia ter feito? Que direito tinha de defendê-la quando ele próprio pretendia traí-la? Por pouco Sam não deixou uma peça cair e quebrar. A mais feia. Não seria uma grande perda, exceto pelo desconforto de ser flagrado mexendo em algo que não lhe pertencia. O que levara Del a comprar aquilo? A peça era disforme. Apenas o focinho fazia lembrar um porco. Mas ao virá-la, ele encontrou uma inscrição: D.M. As iniciais de Del. O motivo, ao que ele supunha, que a levara a comprá-la. Na manhã seguinte, durante o café, Sam não resistiu a perguntar: — Há quanto tempo você não vê seu pai? — Sete anos. Por quê? — É um longo tempo. Del franziu o cenho. — Pensei que você estivesse comigo para me ajudar a encontrar o porco Unruh, não para resolver meus assuntos de família. Ele hesitou, mas resolveu dizer o que estava pensando. — Na verdade, acho que seu pai é nossa melhor pista. Não estou tentando promover a paz entre vocês, se é isso que lhe ocorreu. — Bem, nada impede que você o procure. — Del encolheu os ombros. Becca aproximou-se trazendo mais café. Del notou que ela estava diferente. Mais
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alegre e mais bonita. — Bom dia. Quero agradecer a você, Sam, por ter emprestado sua arma a David. Importa-se de deixá-la com ele mais um dia? Nós combinamos de voltar ao clube esta noite. — Você mal conhece o sujeito. Tenha cuidado — Sam resmungou. — A sugestão de irmos ao clube de tiro foi sua — Becca lembrou antes de se afastar com um sorriso de satisfação. — Eu não confio no seu amigo — Sam declarou. — Tenho uma forte impressão de que pode ter sido ele a atirar em nós. — David não se arriscaria a estragar suas roupas de grife naquele bosque — disse Del. — Nem sequer para se apoderar do porco Unruh? O sorriso de Del congelou. David queria o objeto tanto quanto ela. — Quem pode ter contado a ele sobre o que houve em Docia cerca de trinta anos atrás? — Del baixou os olhos. Estaria confiando na pessoa errada outra vez? — Talvez ele tenha pesquisado a respeito e encontrado o mesmo artigo que Tilde lhe mostrou — disse Sam, esperançoso. Del olhou para Sam como se quisesse ler sua mente. O que ele teria conversado com David? — David lhe fez algum tipo de proposta? — ela resolveu perguntar. — Não. Agora Del tinha certeza de que Sam estava mentindo. David sempre tentava barganhar. Ele era capaz de tudo para convencer a pessoa com quem estava negociando, de que ele tinha opções. Fora uma tola. Quanto tempo ainda levaria para aprender a lição? Seu único consolo era não ter entregado a Sam também seu coração. O café caíra no estômago de Sam como uma bomba. Ele era pior do que o parceiro de Del. O outro ao menos não fingia. Sua única esperança era conseguir um adia-mento do banco na cobrança de sua dívida. — Como vai, Mike? — ele cumprimentou o encarregado do setor de empréstimos com entusiasmo forçado. — Bem. E você, Sam? Como vão os negócios? — Poderiam estar melhores — Sam confessou. — Esse é o motivo de minha ligação. Seria possível eu conseguir uma extensão do prazo? — Não sei, Sam — o encarregado respondeu. — Esta é sua quarta solicitação. — E quanto ao pedido de Becca? — Isso eu só posso discutir diretamente com ela. Lamento, Sam. Mas está fora de meu alcance. Se ao menos vocês nos oferecessem uma garantia...? Sam olhou para sua imagem ao espelho do sanitário masculino. Fundas olheiras marcavam seu olhar. — Estou para fechar um grande negócio. — Isso é uma boa notícia. Ligue-me assim que realizar esse negócio. Embora estivesse relutante em ligar para Tilde, Del pegou o cartão com o número do telefone e discou os números. Tilde atendeu ao primeiro toque. Del não soube o que dizer. Parecia uma principiante na arte de comprar e vender.
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— Olá. Você se lembra daquela conversa que tivemos sobre a cerâmica Unruh? Eu gostaria de perguntar se você, talvez, tem mais alguma coisa a me dizer a respeito? — Mais alguma coisa, como o quê? Você foi até Docia? — Fui ao local que você me indicou pelo retrato — Del respondeu na defensiva. O tom da outra mudou. — Está me dizendo que foi até lá e não falou com ninguém? — Embora estivesse ao telefone, Del percebeu que a mulher ficara irritada com ela. — O que espera conse-guir de boca fechada? Eu fiz a minha parte. O resto é com você. Se é que deu para entender, trate de voltar para o lugar de onde acaba de vir. Tilde desligou sem se despedir. O que ela quis dizer com "eu fiz a minha parte"? — Mais alguma dica? — Sam perguntou, ansioso. — Não tenho certeza — Del murmurou, perturbada. — Ela disse que eu preciso voltar para Docia e falar com as pessoas. — Exatamente o que eu penso — Sam concordou. O silêncio foi total durante todo o trajeto. Del estava ocupada tentando engendrar um plano de entrar e sair da cidade antes que os rumores sobre sua volta pudessem se espalhar. Pegara um chapéu emprestado de Sam e não tiraria seus óculos escuros nem sequer por um segundo. Faria de conta que era uma atriz de cinema evitando ser reconhecida pelos jornalistas. Com a diferença de que seus perseguidores estariam munidos de insígnias e algemas, não de microfones e câmeras. Mas precisava reconhecer que Sam estava certo. De todas as fontes, seu pai era a mais promissora. E ela merecia que ele a conduzisse à vitória depois de tudo que a fizera passar. Ela, afinal, fora obrigada a partir da cidade como uma fora-da-lei por causa dele. O mínimo que Jed Mont deveria fazer para recompensá-la era levá-la ao porco, se soubesse onde encontrá-lo. A menos, é claro, que ele estivesse por trás da espingarda que lhe atirara balas de sal. Olhou para Sam. Ele estava sério. Não parecia estar disposto a conversas. Ela fechou os olhos e recostou no banco. Seria capaz de suportar tudo. Inclusive uma nova traição de seu pai. Mas estava temerosa do que poderia haver por trás daquela atitude de seu parceiro. E se ela não significasse nada para ele além de um modo fácil de resolver seus problemas financeiros imediatos? — Estamos quase chegando — Sam disse, por fim. Del abriu os olhos. Sua cabeça doía, mas isso não importava. Antes a cabeça do que o coração! Era preciso se concentrar na confrontação iminente. — Del? — O que foi? — Ela olhou na direção que Sam apontava e viu o carro do xerife estacionado na frente da loja de seu pai. Ficou surpresa quando Sam fez uma manobra no estacionamento do banco. — O que você está fazendo? — Voltando para casa. Nenhum tesouro vale o risco de você ir para a cadeia. Um raio de esperança brilhou para Del. Sam se importava com ela. Ele estava disposto a abrir mão de um bom dinheiro a vê-la atrás das grades. Ao passarem pela loja, Del viu dois homens e uma mulher. Embora não conseguisse distinguir as feições, ela reconheceu a mãe pela postura. Lágrimas lhe assomaram aos olhos. Por mais que tentasse detê-las, elas teimavam em deslizar por suas faces. Saudade. Por mais tranqüila que fosse sua nova vida em Chicago, ela sentia falta da mãe. Da família. Dos amigos. Del chegou deprimida. O fato de Sam não contestar sua decisão de dormir no sofá a
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deixou irritada. No escuro, sozinha consigo mesma e com sua angústia, ela chorou até não poder mais. Sua vida estava em cheque. Ao aceitar a missão, tudo lhe parecera simples e perfeitamente planejado. Agora porém, ela percebeu que não se sentiria feliz mesmo que levasse a antigüidade para Chicago como um troféu. Porque continuaria se escondendo de si mesma em sua incapacidade de enfrentar os fantasmas do passado. A verdade, por mais difícil que fosse admitir o fato, era que ela estava cansada de ser Del Montgomery. Queria voltar a ser Delilah Mont. Também precisava parar de se enganar. Sam não a amava. Ele estava fingindo que se importava com ela apenas para poder usá-la. No momento que o tesouro fosse encontrado, ele certamente a deixaria e cuidaria de resolver os próprios problemas. Ela deveria se levantar, pegar sua mala e ir embora. Del afundou a cabeça no travesseiro e o perfume cítrico de Sam a envolveu. Sem forças para tomar uma atitude, ela preferiu se agarrar à tênue esperança de que tudo daria certo no final. Sozinho na cama que partilhara com Del havia menos de vinte e quatro horas, Sam travava uma batalha consigo mesmo. Parecia incrível que Del estivesse a poucos passos de distância, triste e melancólica, e ele não conseguisse ir até lá para confortá-la. Se fosse honesto, admitiria que sentiu alívio quando ela manifestou sua preferência por dormir no sofá. Sabia que mais uma noite com ela em seus braços, ele estaria completamente perdido, como também seus negócios e os de Becca. Contudo, por mais que ele quisesse se convencer de que fora melhor assim, o fato era que o sono se recusava a chegar. Decidido, levantou-se e foi até a sala apenas para se certificar de que Del estava bem. Assim, quem sabe conseguiria dormir depois. Descalço, para não fazer barulho, ele parou à porta. Del estava deitada de costas, com o braço sobre o rosto. Imóvel. Ele foi até o sofá nas pontas dos pés e se ajoelhou para examiná-la mais de perto. A respiração estava suave e tranqüila. Ele precisou conter um suspiro de alívio. Del estava bem e continuaria bem. Ela não precisava de dinheiro tanto quanto ele. Vol-taria para Chicago e continuaria levando a vida como antes. Talvez não conseguisse a promoção que esperava, mas isso seria apenas uma questão de tempo. De repente, o braço de Del escorregou e seu rosto pôde ser visto. Estava pálido e marcado de lágrimas. A sensação que ele teve foi a de levar um soco no peito. A situação não poderia mais permanecer como estava. Tinha de convencê-la a voltar para Chicago. Essa seria a única maneira de prosseguir com seu plano. Del acordou com a claridade do sol em seus olhos. O dia estava lindo. Uma sombra, porém, insistia em acompanhá-la, impedindo-a de esquecer sobre a situação em que se encontrava. — Del? Ela se sentou no sofá e o lençol resvalou por seu corpo. A faísca no olhar de Sam fez com que puxasse a coberta e se digladiasse com uma questão. Afinal, do que ela estava se escondendo? Não bastavam sete anos de camuflagem? Com um movimento firme, empurrou o lençol e se colocou de pé. Sam já a tivera nos braços. Que ele aproveitasse a última chance de vê-la de camisola antes de sua partida. Estava farta de fazer o papel de vítima. Sam, seu pai e o misterioso atirador que se preparassem para uma surpresa se ainda tinham planos de se aproveitarem de sua ingenuidade. Ouviu-o chamá-la, mas não se voltou. Abriu o armário da cozinha, pegou uma caneca e se serviu de café. Sam se pôs a falar, embora ela não o tivesse encorajado
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a isso. — Diante do que você me contou e do que houve ontem à noite, eu acho que você deveria voltar para Chicago o quanto antes. Hoje, se possível. Ele queria se ver livre dela. Um aperto no peito a fez vacilar, mas apenas por um instante. Foi até a geladeira e inclinou o corpo de propósito, fingindo estar examinando as prateleiras. Só endireitou as costas depois que ouviu Sam dar um grunhido. Nesse momento, levou o pão e a manteiga para a mesa, sentou-se e cruzou as pernas. — Você ouviu o que eu disse? Ela mordeu o pão e uma migalha caiu no decote. Afastou o tecido para pegá-la. Quando tornou a erguer os olhos, Sam estava com o cenho franzido. O que era bem feito! A campainha soou, aliviando a tensão de ambos. — É seu colega David — Sam anunciou. — E melhor você vestir uma roupa. Del suspirou, mas acabou colocando um jeans por baixo da camisola. Pensou em ir ao banheiro para acabar de se vestir. Mas então se lembrou da promessa que fizera a si mesma de não mais se esconder. Ergueu os braços para terminar de se despir e pediu que Sam a ajudasse com o sutiã. Foi preciso David tocar novamente a campainha para ela e Sam despertarem do transe. Enquanto ele se encaminhava para a porta, Del vestiu uma camiseta. David e Becca recuaram quando a porta abriu. Não foi difícil adivinhar o que os dois estavam fazendo enquanto esperavam para serem atendidos. Sam e Del, contudo, não gostaram que a dupla também adivinhasse o que eles não haviam feito durante a noite, pela evidência dos lençóis sobre o sofá. — O que os trouxe aqui tão cedo? — Sam perguntou, contrariado. — Trouxe um recado de Porter — David anunciou. — Por que ele não me ligou? — Del quis saber, ainda mais contrariada. — Ele tentou, mas seu celular estava desligado. Del sentiu que corava. Nunca antes ela havia esquecido de carregar a bateria. Fazia uma semana que não tomava uma providência nesse sentido. O acessório que representava uma espécie de cordão umbilical que a conectava ao trabalho finalmente havia sido cortado. Ela descobriu, naquele momento, que sua preocupação em encontrar a peça de cerâmica mais importante nos últimos trinta anos, significava uma conquista pessoal, mais do que uma escalada ao sucesso profissional. — E qual é o recado? — Que esquecêssemos as rixas e que uníssemos nossos esforços. Em resumo, ele quer que trabalhemos juntos. Del não entendia, em primeiro lugar, por que se empenhara tanto em fazer parte da equipe daquele homem insuportável. A idéia de nunca mais voltar para Chicago estava tomando forma cada vez mais concreta em sua mente. — Como estão suas investigações? — Del perguntou. — Por que não me conta sobre as suas? — David retrucou. Sem responder, ela foi até a cozinha e começou a desembrulhar as peças que havia comprado de Izzy. Queria verificar a jarra em especial. Tinha certeza de que a co-locara por cima das outras, não o galheteiro. — O que vai fazer? — Sam indagou em tom conspira-tório. — Dar uma olhada em minhas compras. Por quê? — Eu me referi a seu colega. Del estreitou os olhos.
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— Pensei que ele fosse mais seu colega do que meu. — Absurdo. Não vou com a cara desse sujeito. — Então você está totalmente comigo? — Claro que estou! Como pôde pensar que eu não estaria? Sam parecia sincero, mas ela não se permitiria baixar a guarda. Sua intuição continuava dizendo para que se mantivesse alerta. Mais ainda ao dar por falta da jarra. Ao chegar ao fundo da caixa, ela espiou e só então percebeu que as peças não estavam embrulhadas do modo como as deixara. — Você mexeu aqui? — ela se virou para Sam, mais surpresa do que zangada. Sam foi poupado de uma resposta imediata pela chegada de Becca e David que tinham se demorado na sala, provavelmente se beijando. David se colocou ao lado de Del e pegou uma das peças sem a menor cerimônia. Del o encarou com tanta reprovação que ele devolveu a peça à caixa sem discutir. O objeto era pesado e disforme. Certamente não fora criado por um artesão experiente. Del, em contrapartida, o examinou com renovada atenção. Não saberia explicar porque não o havia notado antes entre os outros, nem porque ele lhe parecia tão familiar. Casualmente girou-o entre os dedos e viu, então, duas letras gravadas na base. Suas iniciais. Uma lembrança vaga lhe veio à mente. Aquele vasinho costumava ficar no parapeito da janela da cozinha de sua velha casa. Como o objeto fora parar na loja? — O que houve? — Sam a segurou pelo braço. — Você ficou estranha de repente. A voz de Sam a trouxe de volta ao presente. — Vou voltar para Docia. Sam custou para convencer David e Becca a permanecerem em Allentown. Del não mencionara por qual motivo queria voltar a sua cidade natal. Parecia alheia a tudo que se passava ao seu redor com exceção ao vaso que havia comprado. Izzy revelara a ele, em sua última visita, que a chave do enigma estava no lote que ele tinha vendido a Del. E certamente a resposta para tudo só poderia estar naquela horrível peça que Del estava segurando. Os pensamentos ricocheteavam pela cabeça de Del. Se ela tivesse imaginado que sua missão ao sul do Missouri a obrigaria a se confrontar com o pai após sete anos, nunca teria saído de Chicago. Se pelo menos tivesse ido sozinha... Mas deixara Sam acompanhá-la. Precisava saber de uma vez por todas o que ele representava em sua vida. A começar pelo fato de eleja conhecer seu pai a quem cumprimentou como a um velho amigo. Por um momento, Del se encolheu e desejou estar em qualquer outro lugar que não fosse ali. Seu pai continuava o mesmo. Ainda usava chapéu, mas trocara o macacão por uma calça jeans com suspensórios vermelhos. — Dessa vez você trouxe consigo a jovem que coleciona porcos? — Jed perguntou a Sam. Del desceu do carro naquele instante e viu o sorriso do pai congelar. — Lilah, é você? — a voz soou rouca. Se Del não o conhecesse bem, acreditaria que o pai se importava com ela e que se emocionara ao vê-la. — Eu mesma, pai. — Deus, como você está parecida com sua mãe... — Ele não caçoou de suas roupas como costumava fazer. — Por onde andou todo
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esse tempo? Sentimos muito a sua falta. Uma pontada de remorso a fez mudar de assunto. Deveria ter adivinhado que o tentaria colocar a culpa sobre seus ombros. — Lembra-se disto? — Ela mostrou o pequeno vaso, mas Jed sequer olhou para o objeto. — Você vai ver sua mãe? Ela morrerá de desgosto se souber que você esteve aqui e não foi até nossa casa. Del pestanejou, mas não se deixou convencer pela demonstração de saudade paternal. — Pai, você sabe como Izzy conseguiu este vaso? Jed Mont finalmente atinou para o motivo da visita. Pegou a peça da mão dela e examinou-a. — Parece que aquele velho tratante conseguiu enganá-la. Quanto ele lhe cobrou por isto? Del fechou os olhos e contou mentalmente até dez. Estava perdendo o controle. — Tem falado com o xerife? A súbita mudança de assunto pareceu surpreender Jed. — Na verdade, sim. Sua mãe o chamou um dia desses. — Também tem atirado com seu rifle? — Del continuou com as perguntas, depois de esperar em vão que o pai contasse o motivo do chamado. — O xerife me fez essa mesma pergunta. Disse que um homem alto e moreno... — Jed Mont interrompeu a explicação para olhar para Sam. — Era a você que ele estava se referindo? — E a um sinal positivo de Sam, o pai quis saber se Del o acompanhava na ocasião. Em vez de responder, ela tomou o vaso das mãos dele. — Eu reconheci as balas de sal. — E achou que eu estava atirando em você. — Não foi uma pergunta, mas uma declaração impregnada de dor. — Deus, Lilah, por que eu faria uma coisa dessa? — Por causa disto. — Ela ergueu o vaso à altura dos olhos do pai. — Pode me dizer agora como ele foi parar nas mãos de Izzy? — Você sabe de que ela está falando? — Jed tornou a se virar para Sam. — Porque para mim não faz nenhum sentido. Del se dividiu entre a vontade de gritar um protesto e chorar de exaustão. — Fui eu que moldei este vaso em argila, mas você não se lembra. Embora ele tenha feito parte de nossa cozinha durante dez anos, você o esqueceu. Del desabou em uma cadeira e o pai se agachou ao lado dela. Sua voz soou suave e gentil como se estivesse tratando com uma criança. — Não fui um pai exemplar, Lilah. Arrependo-me de não ter acompanhado seu crescimento mais de perto, mas você não pode esperar que eu me lembre de todas as coisas que fez. Você gostava de moldar o barro e de pintar os objetos que criava. Você pintava, aliás, quase tudo que via pela frente. Inclusive as pedras. — Mas por que este vaso? Por que ele foi parar justamente na loja de Izzy? Jed Mont estendeu as mãos como se quisesse tocar nos cabelos da filha. Mas a um segundo pensamento, levou-as para os suspensórios. — Não tenho resposta para nenhuma de suas questões. Com a respiração suspensa, Del tornou a mostrar o vaso. — Você não acha que ele pode ser uma cópia do porco Unruh? O pai recuou de modo a encarar a filha e seu amigo ao mesmo tempo.
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— Então é disso que se trata? Daquele antigo objeto de cerâmica que se perdeu? Seu pai era bom. Era preciso admitir que ele sabia se fingir de inocente como ninguém. — Onde você o guardou durante todo esse tempo? Na caverna? Foi por essa razão que nunca permitiu a aproximação de ninguém? Que nos espantou do bosque a tiros na outra noite? —Recuso-me a acreditar que pense isso de mim. Minha própria filha coloca o xerife ao meu encalço. Como se eu já não tivesse problemas que bastassem. Foi a gota d'água. — Está me acusando? Depois de fazer com que eu vendesse mercadorias roubadas? Onde estava quando o xerife invadiu meu escritório me acusando de fraude? Por que fugiu em vez de assumir sua culpa? Você destruiu todo meu trabalho. Sua vida continuou, mas e a minha? Eu tive de deixar minha casa, minha família e meus amigos. Minha carreira aqui estava encerrada. Mesmo que eu ficasse e pagasse meu tributo à sociedade, não poderia retomar meu negócio porque ninguém mais confiaria em mim. O pai a ouviu em silêncio e continuou em silêncio quando ela, incapaz de prosseguir, se dirigiu à saída. Fora um erro procurá-lo. Como pudera ter pensado que seria uma boa idéia? Assim que Sam se dispusesse a retomar o volante, ela se afastaria do pai e de Docia em definitivo. Abriria mão de tudo que dissesse respeito a seu passado. Incluindo o porco Unruh. E Sam. Porque por mais que desejasse o contrário, tinha certeza de que a única coisa que interessava a ele era o porco Unruh. Ela representara para Sam apenas um meio de obtê-lo. A chegada de uma viatura interrompeu suas divagações. — Lilah Mont? — o xerife a chamou antes mesmo de descer do carro. — Recebi uma ligação avisando que você estava na cidade. Uma intensa palidez cobriu as faces de Del. A história se repetia. Sam viu o pai de Del tirar um lenço azul do bolso e enxugar o suor da testa. — Èu nunca pensei que ela me odiasse tanto. Minha mulher me alertou sobre isso, mas eu não quis acreditar. Jed Mont desabou na cadeira em que a filha estivera poucos minutos antes. Sam não soube o que dizer. Em sua opinião não era ódio que Del sentia do pai, mas in-dignação e mágoa. — As acusações dela têm fundamento? —Não fui eu quem atirou em vocês — o homem afirmou com um fio de voz. — E sobre as mercadorias roubadas? Dessa vez ele se mostrou ofendido. — Eu não tive nada a ver com aquilo! Acha que eu seria capaz de armar contra minha própria filha? Sam ignorou a agressividade do protesto. — Como, então, as mercadorias foram parar no leilão que ela estava conduzindo? Por que as pessoas a taxaram de embusteira? — Confesso que me empolguei demais tentando ajudá-la a ganhar dinheiro. Eu deveria ter desconfiado que aquelas mercadorias estavam abaixo do preço real. Acho que eu não quis enxergar a verdade. Foi isso. — Jed suspirou como se estivesse cansado. — Agora eu percebo. Não me atrevo, contudo, a procurá-la hoje e pedir perdão. Lilah é como a mãe. A poeira precisa baixar antes. Sam bateu no ombro do velho homem em um gesto de solidariedade. — Eu concordo. Dê-lhe algum tempo para se acalmar. Del elevou uma prece de agradecimento ao céu. Estava sentada de frente para o xerife, mas não fora forçada a acompanhá-lo. Chegara a ter pesadelos com algemas.
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— Talvez possamos acelerar o processo se você me disser o que acha que está fazendo aqui. — Eu não tenho o direito de me consultar antes com um advogado? — Você acha que precisa de um? Capítulo X Sam pressentia que estava a um fio de cabelo de sua salvação. Deixara a loja de Jed Mont sem saber para onde ir. Dirigira a esmo, esperando que o destino o guiasse. E ele o levou a uma casa, três quilômetros além do lugar onde o acidente ocorrera. A casa que ele descobriu ter sido o lugar onde Del nascera e passara sua infância e juventude. Onde a história deveria terminar. Uma cerca de ferro delimitava a propriedade. O nome Mont, na caixa de correio, lhe deu a certeza de ter chegado ao endereço certo. A casa era pequena. Não devia contar com mais de dois dormitórios. Havia um celeiro nos fundos, mas parecia abandonado. Algumas galinhas ciscavam pelo terreno. Quatro cães surgiram de trás da casa e deram o alarme. Apenas o menor dos cães, da raça beagle, se aproximou do portão. Sam estendeu a mão e tentou brincar com ele, mas a visão de dois caninos e um ronco feroz o fez recuar. — Os pequenos e os baixinhos são sempre os mais enfezados. Nunca ouviu falar? Sam ficou olhando para a mulher que saíra por uma porta de tela e protegia os olhos do sol com a sombra da mão. Sem afastar os olhos dos guardiões, com receio de que eles escapassem e o pusessem para correr, Sam a cumprimentou com uma inclinação de cabeça. — O senhor deve ter algo importante para fazer aqui ou não teria saltado da caminhonete para vir ao meu portão — observou a mulher. — Pode entrar. Os cães ladram, mas não mordem. Embora Sam preferisse continuar conversando por trás da segurança do portão de ferro, ele não teve chance de retrucar. A mulher desapareceu pela mesma porta de onde saíra, obrigando-o a segui-la. O lugar estava forrado de quinquilharias, revistas e livros usados, do piso ao teto. Em um canto estava apoiado um rifle de cano duplo. — A senhora sabe atirar? — Sim. Mas a arma é de meu marido. Sente-se. Acabo de fritar uma porção de rosquinhas. Minha filha adora. Não sei por que está demorando tanto. — Apresentar-se formalmente parecia inútil. A Sra. Mont passou duas rosquinhas por uma mistura de açúcar com canela e colocou-as na frente de Sam em um prato de sobremesa. Ele hesitou. O que se dizia à mãe da mulher que entrara na vida dele poucos dias antes, mas que poderia fazer parte de seu futuro pelo muito que lhe interessava? — Coma enquanto estão quentes. Coma quantas quiser. Se Lilah não veio com você, é provável que não venha mais. Ao menos hoje. — A senhora sabe quem eu sou? — Sam indagou, aturdido. — Claro que sei! — Ela deu um sorriso significativo. — Acha que eu permitiria que minha filha passasse a noite em uma caverna com qualquer um? — Então foi a senhora que atirou em nós? — Sam ficou absolutamente atônito com a informação.
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— Não me olhe assim. — A mulher continuou falando como se, tosse normal sair por aí atirando nas pessoas. — Não soü louca. Não eram balas de verdade. — Sim, mas por que... — Lilah não me deixou muita escolha. Minha filha sempre foi teimosa. Não me conformo que ela tenha mudado o nome que lhe dei. Se ele fosse feio, não haveria problema. Mas trocar Lilah por Del? Sam cruzou os braços, preparando-se para ouvir o outro lado da história. — Durante anos eu tentei convencê-la a voltar para casa, a resolver suas pendências com a justiça, a se entender com o pai. Tudo que fiz foi inútil. Então eu tive uma idéia: descobrir o que ela mais queria e armar um plano que a obrigasse a fazer uma viagem para cá. Era montar a armadilha e esperar. Lilah, porém, como eu deveria ter previsto, se recusou a seguir as pistas que lhe dei. Contratou-o em vez disso e se embrenhou pelo bosque quando eu esperava que fosse procurar o pai e falar diretamente com ele. — A mulher suspirou. — Percebe agora minha intenção? Eu não tive escolha. Atirei nela porque tinha certeza de que a raiva a impulsionaria a fazer o que o bom senso não conseguiu. Mas quando o vi descer sozinho da caminhonete, há poucos instantes, tive de me render à evidência. Lamento admitir a mim mesma, mas eu fracassei. Sam sentiu pena ao ver a desesperança que se apoderou da mãe de Del. Mas a frustração dele não era menor. Não havia nenhum porco Unruh. Tudo não passara de uma armadilha para atrair Del de volta para casa. Após a tempestade, porém, veio a bonança. Sam sentiu algo se quebrar dentro dele, libertando-o. Porque se o tesouro não passava de uma lenda, ele não teria de roubá-lo de Del. Talvez perdesse sua casa e Becca o restaurante que a sustentava e ao filho, mas... O desânimo tornou a invadi-lo. — A senhora pode me contar a história do começo? — Eu conheço Benjamin Porter desde criança e resolvi ligar para ele e lhe falar sobre a descoberta de uma peça de cerâmica rara por estes lados. Ele ficou imediatamente interessado, mas eu impus uma condição. Disse que não admitiria que ele mandasse nenhum outro comprador para realizar o negócio, a não ser Lilah. Essa foi a parte mais difícil. Porque Porter sempre foi impaciente e eu sabia que minha filha precisaria ficar por aqui por algum tempo para reavivar suas lembranças. Sam balançou a cabeça. Tanto trabalho para nada. — Eu esperava que ela se acercasse de meus velhos amigos quando chegou — a sra. Mont prosseguiu. — No entanto, ela procurou você. Ocorreu-me, então, que sua aproximação poderia me ajudar em vez de atrapalhar. A companhia de um homem atraente ligado ao mesmo tipo de negócio poderia ser extremamente benéfica no sentido de estimulá-la a ficar por aqui. — A mulher encarou Sam. —Ainda não sei se eu acertei ou errei em minha suposição. Sam não pôde evitar uma pontada de constrangimento. Ninguém jamais o submetera a uma análise como aquela. — O porquinho está bem? — A súbita mudança de assunto o fez lembrar o modo como Del se comportava. Ele quase deixou escapar um sorriso ao comparar a filha com a mãe. — Soube que ela lhe deu o nome de Toadstool, o mesmo do porquinho que ela teve quando era pequena. Jed o vendeu na ocasião, brigamos muito por causa disso. — Sim, ele está.
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A mulher precisou enxugar as lágrimas. Seus olhos eram iguais aos de Del. — Meu coração encheu de esperança quando Tilde me contou que Lilah voltou da fazenda Hollywell com o porquinho. Mais ainda quando lhe deu o nome de Toadstool. — A senhora conhece Tilde? — O espanto de Sam aumentava a cada revelação. — E sabia sobre a visita que ela fez a uma fazenda de criação de porcos? — Sim, eu a conheço. Tilde é uma de minhas melhores amigas. Nós temos conversado todos os dias para eu lhe passar as instruções. Como também tenho feito com Izzy. Eu sabia que Lilah não o procuraria espontaneamente, mas com você ao lado dela, eu tive certeza de que ela acabaria indo até lá uma hora ou outra. Pedi a ele, portanto, para que colocasse o vasinho em formato de porco ue a própria Lilah moldou quando era criança, no meio as outras mercadorias. Imaginei que minha filha fosse ficar indignada ao reconhecê-lo e procurar o pai para culpá-lo pelo descaso com que vendera um objeto de estimação. Eu até avisei Jed e o xerife para ficarem atentos. — A mulher tornou a suspirar. — Como pude me enganar tanto? — A senhora não se enganou. Nós estivemos aqui, mas demos meia volta ao encontrarmos uma viatura policial na frente da loja de seu marido. A sra. Mont ficou em silêncio por um longo tempo. — O senhor tampouco conseguiu o que queria, não é verdade? Porque o que realmente lhe interessava era o porco Unruh. Ou é minha filha quem mais lhe importa? Sam parou de respirar. Eleja havia feito essa pergunta a si mesmo uma porção de vezes. Mas nunca chegara a respondê-la. Deveria dizer agora que nunca se importara tanto com uma mulher? Mas que embora gostasse dela, estava pronto para usá-la em seu próprio benefício e de sua prima? O telefone tocou naquele instante. A mãe de Del olhou para ele, esperando a resposta, antes de ir atender ao chamado. — Você a está retendo? — Sam aguçou os ouvidos ao notar a agitação da Sra. Mont ao telefone. — Obrigá-la a ficar cogitando sobre o que poderá acontecer agora, não lhe fará nenhum bem. Apenas seja firme quando falar com ela. O coração de Sam estava batendo tão forte que dificultava sua respiração. O que significavam aquelas palavras? Ele não tinha dúvida de que era sobre Del que ela estava se referindo. — Você não respondeu minha pergunta. Gosta de minha filha ou está apenas atrás do tesouro? Sam tentou, mas não conseguiu sustentar o olhar da mulher que parecia ter o poder de penetrar em sua mente. — Era o que eu temia — ela murmurou e após alguns minutos de silêncio o chamou para que a acompanhasse até a despensa com prateleiras repletas de vidros de ge-léia e compotas e uma velha geladeira abandonada em um canto. — Não acumulei muitas riquezas em minha vida. O maior de todos os meus bens eu perdi há sete anos e seria capaz de qualquer coisa para reavê-lo. — Ela abriu a geladeira e apanhou uma pequena caixa. — Estou lhe dizendo isto para que entenda o que eu considero de real valor na vida. Del contou meia dúzia de rosquinhas na caixa. Escolheu uma de chocolate. Depois uma de creme. Estava terminando de comer a última, de geléia de amora, quando o xerife retornou à sala. — Você está livre para ir embora.
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Del encarou-o sem entender. Deslocou-se para a beirada da cadeira e apoiou os cotovelos na mesa. — Para onde? — Del questionou certa de que o xerife estava pensando que ela conhecia o caminho para a cela. — Para casa. Para onde você quiser. — Mas as acusações...? — As queixas foram retiradas. — Quando? — Faz alguns anos. Del voltou a recostar na cadeira. As queixas haviam sido retiradas anos antes e ninguém lhe contou? — Minha mãe sabe disso? — Sabe. Ela me encarregou de lhe dizer que terá de procurá-la se quiser explicações. — Como? Eu estou sem carro e... — Seu pai está esperando por você na outra sala. Del baixou o vidro da velha picape de seu pai e aspirou o cheiro de terra, poeira e sol como se tivesse aberto um frasco do mais caro perfume francês. — Eu vi seu porquinho q outro dia. Sua mãe me contou que você lhe deu o nome de Toadstool. — o pai quebrou o silêncio que se fizera desde o encontro na delegacia. — Ele é parecido com o que tive, não é? Com a diferença de que não servirá de almoço para ninguém. O pai não respondeu. Del sentiu que ele estava olhando em sua direção, mas fez de conta que não havia percebido. — Sei que você gosta de ouvir música, mas o rádio não pega nesta estrada e o toca-fitas quebrou. De qualquer modo, você sempre detestou minhas fitas. Seu pai também gostava de música country. Como Sam. Ela fechou os olhos como se isso fosse bloquear a imagem dele em seus pensamentos. Queria esquecer Sam. Queria esquecer que o conhecera. Precisava aprender a confiar em seus instintos. Jamais poderia se recuperar do golpe de saber que Sam desaparecera da cidade assim que ela fora levada para a delegacia. — Sobre o primeiro Toadstool, o que eu fiz foi imperdoável. — A confissão foi tão inesperada que Del sentiu o ar lhe faltar. Não era do feitio do pai admitir um erro. A humildade dele ameaçou romper as comportas de suas emoções represadas durante longos anos. — Eu era o chefe da família. Era meu dever sustentar você e sua mãe. Os negócios andavam mal e eu tive medo que fosse faltar comida em nossa mesa. Sou um homem rude. Jamais me ocorreu que teria sido melhor passarmos um pouco de fome a privá-la de seu porquinho de estimação. Del se dividiu entre a vontade de chorar e de gritar. Olhou para o pai com desconfiança. Poderia acreditar que ele estava sendo sincero? Fazer um bom negócio sempre fora mais importante para ele do que o ar e a água. A antiga revolta ainda estava presente. Não estava em condições de perdoá-lo, mesmo ciente de que ele fora criado para encarar os animais como alimento para o homem. — Por que você não me defendeu quando eu fui acusada de comercializar mercadorias roubadas? Por que não disse ao xerife que eu não sabia sobre a procedência delas? Que eu era inocente? O olhar que Jed lhe dirigiu exibia franca surpresa. — Eu estaria admitindo, então, que tínhamos feito algo errado. Você não entende?
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Do jeito que aconteceu, nada ficou provado. Del recostou no banco e fechou os olhos. Nunca encarara o problema sob essa perspectiva. As galinhas se encarregaram do bota-fora como os cães lhe deram as boas-vindas. Sam se encaminhou rapidamente para a caminhonete antes que alguma delas cis-masse em bicar suas pernas. A impressão dele era que todos mal podiam esperar para se verem livres de sua presença. Ele também estava aliviado por deixar aquela casa. O modo como a mãe de Del olhara no fundo dos olhos dele fora a maior provação que já havia passado. Fizera com que se sentisse o último dos homens. Mas a culpa que o atormentava, isso ele teria de carregar consigo aonde fosse. Não poderia deixá-la para trás. Antes de subir na caminhonete, Sam colocou a caixa que a sra. Mont lhe dera debaixo do assento do passageiro. Ali estava a solução para todos seus problemas e os de Becca. Seu negócio estava salvo. Sua casa estava salva. A Toca do Coelho estava salva. Del estava perdida. A sra. Mont lhe dera o porco Unruh. Ele não deveria estar se sentindo o maior crápula sobre a face da Terra. Não a forçara a entregá-lo a ele, nem nada. Del acabaria entendendo que ele não tivera escolha. A imagem de Jed Mont lhe veio à mente com os olhos cheios de lágrimas. Era preciso encarar os fatos. Del não era do tipo que perdoava. A casa amarela onde Del nascera parecia menor e mais velha, mas continuava incrustada no alto da colina, banhada em sol, como um pote de ouro no fim do arco-íris. Apenas de olhar para ela, Del sentiu o peito apertar e os olhos marejarem. Sem que esperasse, seu pai apertou sua mão. Os soluços irromperam. Incapaz de continuar se fechando em mágoa, ela se atirou nos braços dele. Desonesto ou não, aquele era seu pai. — Eu sinto muito, Lilah, por tudo que fiz de errado. Prometo que tentarei fazer melhor de agora em diante. — Eu também errei. Eu também tive culpa. Deveria ter ficado e lutado por aquilo que queria, em vez de fugir. O pai a abraçou com tanta força que ela quase não pôde respirar. Ao soltá-la, suas faces estavam úmidas. — Vá logo ver sua mãe antes que ela me expulse de casa por retê-la aqui. Del se deteve para brincar com os cachorros que vieram correndo e saltaram sobre ela como se nunca a tivessem esquecido. E os novos como se estivessem gostando de conhecê-la. Demorou-se a encontrar coragem para seguir em frente. Por mais que ela desejasse abraçar sua mãe, estava com vergonha de encará-la. — Até que enfim! — Sua mãe abriu a porta de tela e ficou parada com as mãos apoiadas na cintura. — Não paro de fritar rosquinhas desde cedo para garantir que elas estariam quentes quando você chegasse! Del riu e chorou enquanto corria para os braços que abriram, calorosos, para recebê-la. Nunca mais repetiria a tolice de desistir de uma luta, mesmo que a batalha parecesse perdida. E nunca mais se entregaria a compulsão de comer uma caixa inteira de rosquinhas. Agora sua mãe ficaria decepcionada porque ela não agüentaria comer mais nenhuma. — Você está doente? — a mãe franziu o rosto ao ver sua oferta recusada. Del fez que não. — Estou feliz demais por ter voltado.
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— Não tanto quanto seu pai e eu por tê-la de volta. Uma vontade imensa de chorar a inundou. Estava sentindo os mesmos cheiros de sua infância. Os cheiros da cozinha de sua mãe. Estava sentada no mesmo banquinho onde ficava durante horas conversando com ela. Sendo amada por ela. Como pudera trocar tudo aquilo por tão pouco? — Foi você o tempo todo, não foi? — Del finalmente adivinhou a verdade. Sua mãe concordou com um gesto de cabeça. — Eu encontrei a peça um dia depois que toda aquela gente foi embora. Ela estava bem junto de um tronco caído. Eu a vi enquanto procurava pedras para colocar em meu jardim. Estava suja, mas intacta. Eu a limpei quando cheguei em casa. Adivinhei que era valiosa pelo interesse com que aqueles homens a estavam procurando e resolvi guardá-la para uma emergência. Achado não é roubado. E o verdadeiro dono tinha morrido. Ela não era de ninguém. Por que não podia ser minha para que eu a trocasse por comida em caso de necessidade? — Você nunca contou a ninguém? — Nunca. Até agora. — Mas eu comprei um vaso na loja de Izzy o outro dia. Minhas iniciais estavam gravadas na base. Eu me lembrei de tê-lo moldado quando era pequena. — Você foi a única que partilhou meu segredo — a mãe confessou. — Sempre que seu pai saía, eu a deixava segurá-lo e lhe contava que era algo de minha estimação. Você era pequena, mas entendia o quanto ele era importante e não protestava quando eu pedia que o devolvesse. Mas o tempo foi passando e você cresceu. Então eu sugeri que fizesse um igual com argila para poder brincar com ele sempre que quisesse. Comecei a recear que você comentasse sobre ele com seu pai inadvertidamente. Del ouvia o relato de sua mãe sem conseguir acreditar que ela tivesse mantido aquele segredo por tantos anos. Mas o que a surpreendeu ainda mais foi descobrir que Benjamim Porter também era de Docia e que freqüentara a mesma escola que seus pais. Ocorreu-lhe que sua mãe poderia simplesmente ter lhe telefonado e a chamado de volta sem se dar a todo aquele trabalho. Depois admitiu consigo mesma que cada telefonema de sua mãe continha essa mensagem. Que ela se recusara a ouvir. Havia muita mágoa acumulada naqueles sete anos de ausência para apagar de um minuto para outro. Não fosse pela estratégia que sua mãe armara com Porter e com seus outros amigos, Izzy e Tilde, ela provavelmente jamais teria voltado. A descoberta de que as queixas haviam sido retiradas só teria servido para ela desfrutar com mais tranqüilidade de sua nova vida em Chicago. Poderia se zangar com sua mãe por seu empenho em tê-la de volta? Por ter chegado ao extremo de atirar nela com balas de sal? Se fora esse o empurrão que faltava para ela se atirar nos braços de Sam? O homem por quem chegara a pensar a desistir de sua nova vida em Chicago? — Está pensando nele, não está? — a mãe adivinhou. — Estou. — Você o ama? Del encolheu os ombros. Amava Sam? Ou apenas tiveram uma forte atração um pelo outro, incrementada pelo objetivo em comum? — Talvez o alcance caso decida segui-lo. — Sam esteve aqui? — Del indagou surpresa. — Ele saiu quinze minutos antes de você chegar. Se vocês não se cruzaram, ele
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deve ter pegado o caminho mais longo. Um terrível pressentimento se apoderou de Del. — O que Sam veio fazer aqui? — Não creio que ele soubesse o que veio fazer, mas saiu daqui levando algo consigo. — Algo de que eu preciso e que motivou minha viagem? A mãe assentiu. O porco Unruh. Sua mãe dera a ele a peça que significava seu maior desafio, o avanço em sua carreira. Ela estivera certa todo o tempo. Sam a usara. Ele nunca pensara além de seu próprio interesse. Mas ela faria com que se arrependesse por isso. Não ficaria de braços cruzados enquanto ele se apoderava do que lhe pertencia por direito. A caixa parecia destoar do ambiente. O lugar dela não era em cima de uma escrivaninha. Ele deveria abri-la e examinar seu conteúdo. A peça estivera guardada ao longo de trinta anos dentro de uma geladeira. Ninguém poderia garantir que estivesse em perfeito estado após tanto tempo. Tanto que se falara do porco Unruh. Tanto que o procuraram. Agora Sam o tinha sob seu nariz e não encontrava coragem para examiná-lo. Na casa dos pais de Del, ele não tivera chance nem sequer de dar uma espiada dentro da caixa. O telefone tocara antes que a sra. Mont o mostrasse. E depois da conversa, ela praticamente o expulsara de suas vistas. Seria até possível que não houvesse nada de valor dentro da caixa. Depois de tudo que acontecera nos últimos dias, ele não se surpreenderia. — Sam? Há alguém em casa? — a voz de Becca o distraiu enquanto cortava os adesivos com seu canivete. Nunca trancava sua porta e nunca se arrependera tanto por não fazê-lo. Com um movimento rápido e preciso, fechou o canivete e guardou-o no bolso da calça. Até que chegasse à sala, Becca já havia entrado com David e Toadstool. — Ele se comportou bem? — Sam se abaixou para brincar com o porquinho e evitou encarar a prima com receio que ela pudesse ler a culpa em seus olhos. — Muito bem — disse Becca. — Estamos voltando de um longo passeio. Ele deve estar com sede. Como se tivesse entendido a conversa, Toadstool se afastou em direção da cozinha. Sam pensou que teria um enfarte ao ver a prima se preparar para dar água a ele. Quis impedi-la, mas não houve tempo. Em pânico, ele tentou bloquear a passagem. Mais ainda quando adivinhou que David a seguiria. — Por onde vocês andaram? — Por aí. — Não foram a nenhum lugar específico? — Sam franziu o cenho. Becca o empurrou para poder passar. Deu água fresca ao porquinho e retornou como se não tivesse reparado em nada de anormal. — Por que não diz a ele, David? Afinal, nós não fizemos nada de mais. A loja de Izzy sempre esteve aberta ao público. Sam deu um suspiro de alívio antes de encarar David com reprovação. — Você não dá ponto sem nó, não é mesmo? Conseguiu o que queria? O velho ficou de avisá-lo se descobrisse o paradeiro do porco? — Talvez — David respondeu e olhou ao redor. — Onde está Del? — Visitando os pais.
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— Ela vai voltar aqui para buscar o porco? Sam engoliu em seco ao ouvir a pergunta. Becca veio em seu socorro sem o saber. — E claro que ela vai voltar. Del não abandonaria Toadstool. Toadstool. Era a esse porco que David se referira. Ele teria suspirado outra vez de alívio se a pergunta seguinte não lhe tirasse o chão. — O que tem naquela caixa? — Nada de importante — Sam respondeu, torcendo para que o tremor em sua voz não o denunciasse. — Que caixa? — indagou David, esticando o pescoço para a cozinha. Becca e David aguardavam uma resposta e Sam praguejava consigo mesmo quando uma quarta pessoa entrou em cena. — Onde está meu porco? A voz de Del provocou um tumulto de sensações em Sam. Sua boca secou. Um jato de adrenalina se misturou ao seu sangue. Del não queria demonstrar como estava se sentindo por dentro. Sua postura continuava firme e sua atitude desafiadora. Mas a verdade era que ela nunca se sentira tão perto de desabar sob seu peso. Suas pernas tremiam. Seus nervos estavam em frangalhos. Não conseguia nem sequer atinar para o fato de ela e Sam não estarem sozinhos. Sam parecia ter se transformado em uma estátua. — As queixas foram retiradas — Del resolveu dizer. — Que notícia excelente! — Os olhos de Sam adquiriram brilho. Não podia ser sua imaginação. Ele parecia contente por ela. — E eu fiz as pazes com meu pai. — Ele não é uma má pessoa. — Não. No fundo ele é bom. — As intenções foram boas, mesmo que seus pais tenham complicado sua vida. Del encurtou a distância entre ela e Sam com duas passadas. Viu a camiseta dele manchada de geléia e um sorriso malicioso surgiu em seu rosto. — Esteve comendo rosquinhas? O ar se tornou mais denso ao redor deles. O coração de Del parecia querer saltar do peito. Sam era um mentiroso e um trapaceiro, mas ela o amava. Não desistiria dele sem antes submetê-lo a um teste. Sam podia se fazer de indiferente, mas ela sabia que ele não era mais imune a seu charme do que ela ao dele. — Você ainda não disse onde está meu porco. O momento era aquele. Qual seria a decisão de Sam? Del não o deixaria enquanto não tivesse sua resposta. Não se importava que Becca e David estivessem presen-tes. O ambiente estava tão tenso que nenhum deles ousou se manifestar desde que ela os surpreendera com sua chegada intempestiva. — Ele está na cozinha — Sam respondeu após o que pareceu uma eternidade, com uma voz que Del mal reconheceu. — Vou buscá-lo para você — Becca ofereceu. Del deixou os braços caírem ao longo do corpo ao ver a prima de Sam lhe entregar Toadstool sem que ele se manifestasse. Então Sam ficaria com o porco Unruh e a deixaria ir embora? Sem afastar seus olhos dos dele, Del se abaixou para pegar Toadstool. — Eu não deixaria que o tomassem de mim. Eu não o abandonaria por nada. Você seria capaz?
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— As pessoas às vezes têm fortes razões para fazerem coisas erradas. Del sentiu que empalidecia ao entender que Sam dera preferência à oportunidade de lucrar com o caso. Não havia dúvida. Ela poderia insistir em seu direito. Exigir que ele lhe entregasse o vaso. Mas de que isso lhe adiantaria? Dinheiro não era a razão de seu retorno ao Missouri. Não era dinheiro que lhe importava. O que realmente queria, ela havia acabado de perder. Obrigando-se a não chorar na frente dele, de Becca e de David, Del tirou o colar e entregou-o ao colega. — Peço que você o leve consigo quando voltar para Chicago e diga a Porter que não preciso mais dele. David encarou-a, atônito. — Você não pode estar falando sério. — Por favor, faça o que estou pedindo. — Mas e o leilão especial que será realizado em poucos dias? Você vai desistir depois de todo seu esforço? Del encolheu os ombros. Sam permaneceu calado, com as mãos nos bolsos, olhando para o vazio. Ela foi buscar a mala que deixara em um canto e abriu a porta. — Eu ouvi dizer que há coisas mais importantes na vida. Pretendo descobrir quais são e se elas me farão mais feliz. Saiu sem olhar para Sam e se apressou a se afastar antes que alguém pudesse ver as lágrimas deslizando por seu rosto. — O que foi tudo isso? — Becca quis saber assim que Del foi embora. — Nada — Sam respondeu, como se o mundo tivesse desabado sobre ele. Vencido pela apatia, nem sequer se importou mais que David descobrisse seu segredo. — Teve a ver com aquela caixa, não teve? — a prima insistiu. — Você olhou seu conteúdo? — Não — Becca respondeu —, mas posso imaginar de que se trata. David não fala de outra coisa desde que eu o conheci. Depois eu precisaria ser cega e surda para não entender que Del estava se referindo à peça antiga e valiosa que a trouxe para estes lados. De alguma forma você a encontrou, não foi? Sam moveu a cabeça afirmativamente. — Agora todos nossos problemas poderão ser resolvidos. — Nossos? — Becca protestou. — Deixe-me fora disso! Eu posso perfeitamente resolver meus próprios problemas com dignidade! Sam olhou para David de modo a alertá-lo para que não se intrometesse entre ele e a prima e falou bem baixo para que apenas ela o ouvisse. — Não seja tola! Eu não fiz nada de errado. Não roubei a peça. Foi um negócio. — O preço compensou? — Becca falou com uma solenidade que fez Sam se encolher. — De qualquer maneira, não torne a me dizer que fez o que fez por minha causa. Porque eu não vou aceitar nem sequer um centavo que venha disso. Sem se despedir, Becca se apoiou no braço de David. Sam a ouviu sugerir que eles voltassem à loja de Izzy para a eventualidade de ele ter encontrado alguma outra peça Unruh para David levar consigo ao regressar para Chicago. E ele ficou só. Só com sua preciosa caixa. No dia seguinte, poderia espalhar a notícia sobre seu achado pelos quatro cantos do país. Compradores e colecionadores chegariam de todas as partes a sua procura. Del olhou atentamente para a multidão. Não era tão grande, mas respeitável. O sol
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brilhava sobre o local onde o leilão seria realizado, fazendo com que sentisse intenso calor. As acomodações eram simples e rústicas. Ela estava sentada no banco de um antigo trator e a única proteção que usava sobre a cabeça era uma sombrinha infantil com estampa de uma porquinha cor-de-rosa. Alguns diriam que ela retrocedera ao vir parar em um leilão de cidade do interior, destinado a um público de fazendeiros e camponeses. Ela estava tranqüila. Não ti-nha nenhuma dúvida de que tomara a decisão acertada ao menos sobre deixar seu emprego em Chicago. Fazia um mês que não via Sam, mas ele continuava ocupando seus pensamentos. Cada vez que passava por um telefone, precisava se controlar para não pegá-lo. Só para saber se ele estava bem. Mas então seu pai chegava em casa e contava sobre a última pechincha que encontrara e ela se lembrava da razão que a levara a se afastar de Sam e da conveniência em permanecerem distantes. — Você está pronta para começar? Eu já tomei todas as providências. Del estreitou os olhos. — Que tipo de providências, papai? — Nada do que lhe ocorreu — ele afirmou, resignado. — Eu tenho cumprido a promessa que lhe fiz. Um sorriso foi trocado e o mal-estar passou. A vida em família se tornara mais fácil agora que Del conseguira aceitar o pai como ele era. Mas seria uma insensatez ela ligar seu futuro a um homem com as mesmas tendências. Del soprou o instrumento feito com um chifre de boi para anunciar a abertura do leilão. — Estaremos iniciando este evento em cinco minutos. Preparem suas carteiras e esqueçam seus limites. É hora de gastar! O entusiasmo da platéia fez com que Del se distraísse. Sua mãe e Benjamim Porter estavam parados a sua frente sem que tivesse notado sua aproximação. — Bennie veio a sua procura — a mãe explicou. Del se apressou a descer do palanque e a se desculpar. — Eu sinto muito pelo que fiz com você. Não estava em condições de voltar. Pelo modo como o ex-chefe a estava encarando, Del percebeu que o pedido súbito de demissão o prejudicara. Mas antes que ele pudesse reprová-la, um olhar significativo de sua mãe o fez calar. — Não vim discutir velhos problemas — ele declarou após um instante. — Estou aqui porque preciso de você. — Não posso concordar. Há uma fila de candidatos ansiosos para me substituírem. — David também me deixou. Del não podia acreditar em seus ouvidos. Teria entendido bem? David largara um emprego importante em uma cidade importante para administrar um modesto restaurante de uma cidade pequena? Ele fora capaz de desistir do sucesso por amor a uma mulher? — Ele deve estar muito apaixonado. — Acho que sim. Mas não é isso que me preocupa. Eu soube que ele está se associando com um leiloeiro local. As surpresas somaram. O sabor amargo de saber que não tivera a mesma sorte que Becca, mais a notícia sobre a associação de Sam e David a deixaram sem forças. — O sócio dele me procurou — Porter prosseguiu. — Ele me fez uma oferta, mas impôs uma exigência. — Que tipo de oferta? — Del perguntou com um fio de voz.
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— Sabe aquela peça que eu a encarreguei de encontrar aqui em Missouri? — Como ela não poderia saber? — Sam Samson a localizou e está disposto a cedê-la sob a condição de você ser nomeada a leiloeira oficial do evento. Para aliviar a consciência pesada? Cedendo-lhe a publicidade, mas ficando com todo o dinheiro? — Não estou interessada. — Mas esse será o maior leilão dos últimos anos. Seria uma alavanca em nossas carreiras. — Sinto, Porter, mas não é de meu interesse. Um papel, com o qual seu ex-chefe estava se abanando, caiu a seu lado. No instante que Del se abaixou para apanhá-lo, ouviu uma voz as suas costas que a fez arrepiar da cabeça aos pés. — Eu trouxe algo que certamente será. Del se levantou devagar para não perder o equilíbrio. Seu coração batia descompassado. Sam viera procurá-la e estava carregando uma caixa. A caixa responsável pela separação deles. — Eu não preciso dela. — Mas eu preciso de você. O tempo pareceu parar. — Venha dar uma olhada. — Ele subiu na plataforma e esperou que ela abrisse espaço na mesa para depositar a caixa. Apesar de seus protestos de que não se importava mais com Sam ou com o porco Unruh, Del sentiu as mãos tremerem à chance de tocá-los novamente. Com um gesto solene em direção a Porter e a sra. Mont, Sam abriu a caixa, desembrulhou a peça e exibiu-a. Era azul, verde e marrom. Parecia obra de uma criança. Del deslizou os dedos pelo focinho e pela cabeça entre as pequenas orelhas. Não era muito diferente da sua. Apesar de sua pouca idade, ela conseguira moldá-la com espantosa semelhança. — E de tirar o fôlego, não? — Porter indagou com in-disfarçável cobiça. — Certamente que sim — Sam concordou, sem afastar seus olhos de Del. Ela sentiu as faces corarem e sua determinação enfraquecer. Mas a mágoa conseguiu se manifestar como um grito de protesto. — Eu não mudei de idéia. Já disse a Porter que não estou interessada. — Sob nenhuma hipótese? — Sob nenhuma hipótese. Sam suspirou. — E pena porque a peça precisa ser vendida ou voltará para dentro da caixa. Não seria um desperdício manter este tesouro escondido por mais trinta anos? Del avaliou o objeto e refletiu sobre a situação. — O mundo sobreviverá. — Não esteja tão certa. Algumas pessoas estão dependendo da venda desta peça para consertarem suas vidas. Sam colocou as mãos em cima da mesa e olhou para baixo. Del engoliu em seco ao pensar que aquelas mãos tinham estado em seu corpo havia apenas um mês. — Talvez o dono devesse ter pensado nisso antes de fazer o que fez. — A dona. Del pestanejou. — A dona? — A peça pertence a uma mulher — Sam explicou. Como era possível? Sam já havia fechado o negócio sem esperar pelo maior leilão do ano? Ele estava tão desesperado assim? — Eu apenas a conservei comigo para garantir que não caísse em mãos erradas
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— Sam prosseguiu. — O risco sempre existe. Algumas pessoas perdem a capaci-dade de raciocinar à chance de ganharem alguns milhares de dólares. — Isso nunca aconteceu comigo — Del retrucou, sem se permitir abrir seu coração para a esperança. — Mas acontece com muita gente. Eu sei de um sujeito que até mesmo deixou escapar a felicidade pela porta por esse motivo. Del abraçou o porquinho contra o peito nesse momento. — O que houve com ele? — Ele acreditava que estava certo e tomou as providências necessárias para resolver seus problemas financeiros. Mas quando se viu sozinho e infeliz, ele descobriu seu erro. — Que erro? — Que é melhor não ter nada além de sonhos ao lado da mulher que se ama, do que ter tudo com que se sonha, sem amor. Del sentiu um nó na garganta ao ver Sam ficar de frente para ela e segurar suas mãos. — Eu te amo, Delilah Mont. A vontade de Del era se atirar nos braços de Sam e esquecer tudo que acontecera, mas ela precisava ter certeza de que ele estava sendo sincero. De que não cairia novamente em tentação. — Quem é a dona? — Que eu saiba, sua mãe. A menos que ela tenha resolvido vender a peça depois que eu lhe telefonei na semana passada dizendo que não poderia aceitar seu presente, e que insistia em devolvê-lo mesmo que você nunca mais falasse comigo. — O que ela disse? — Que achava que você falaria. — Os olhos de Sam procuraram os dela com expectativa. — Sua mãe estava certa? Del apoiou as mãos no peito de Sam como tanto gostava de fazer. Como tanto esperara tornar a fazer. — Desde que você concorde em continuar mimando meu outro porquinho como nos dias em que cuidou dele. Sam abraçou Del e eles rodopiaram e riram como crianças. — Minha doce Lilah, nós dois faremos uma ótima parceria!

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