sábado, 22 de junho de 2013

Doce triunfo

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JUDITH McNAUGHT
Doce Triunfo
Tradução Vitória Paranhos Mantovani
43 EDIÇÃO
EDITORA BEST SELLER
Rio de Janeiro
2005
Doce triunfo Judith McNaught; tradução Vitória Paranhos
4* ed. Mantovani. - 45 ed. - Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.
Tradução de: Tender triumph ISBN 85-7123-717-4
1. Romance americano. I. Mantovani, Vitória Paranhos. II. Título.
CDD - 813
05-0045 CDU - 821.111(73)-3
Título original norte-americano
TENDER TRIUMPH
Copyright 1983 by Judith McNaught
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil
adquiridos pela EDITORA BEST SELLER LTDA.
Impresso no Brasil
ISBN 85-7123-717-4
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
Impressão e acabamento R. R. Donnelley Moore
Digitalização e correcção:
Fátima Tomás
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CAPÍTULO 1
PARADO EM MEDITATIVO silêncio junto às janelas do elegante apartamento de cobertura, o
homem alto e moreno olhava para a paisagem de luzes tremeluzindo e espalhando-se ao longo do
obscurecido horizonte de St. Louis. A amargura e a resignação eram evidentes nos movimentos
abruptos de Ramon Galverra quando afrouxou o nó da gravata e depois levou o copo de uísque aos
lábios, bebendo um longo gole.
Atrás dele, um homem loiro cruzou rapidamente a sala de estar pouco iluminada.
- Então, Ramon? - perguntou, ansioso. - O que eles decidiram?
- Decidiram o que os banqueiros sempre decidem Ramon respondeu num tom ríspido, sem se virar. -
Decidiram que vão cuidar de si mesmos.
- Aqueles bastardos! - Roger explodiu. Passou as mãos pelos cabelos claros num gesto de irritada
frustração, depois encaminhou-se, determinado, para a fileira de garrafas de cristal no bar. - Eles bem
que ficaram do seu lado, quando o dinheiro estava entrando - falou por entre os dentes cerrados,
enquanto servia-se de bourbon.
- Eles não mudaram - Ramon comentou, irónico. Se o dinheiro ainda estivesse entrando, eles
continuariam comigo.
Roger acendeu um abajur e olhou com desprezo os magníficos móveis estilo Luís XIV, como se a
presença deles em sua espaçosa sala de estar o ofendesse.
- Eu tinha certeza, certeza absoluta de que quando você lhes explicasse sobre o estado de saúde mental
em que seu pai se encontrava antes de morrer, os banqueiros o apoiariam. Como podem culpá-lo pelos
erros e pela incompetência dele?
Virando-se da janela, Ramon recostou-se no batente. Por um instante, ficou olhando para o que restava
de uísque em seu copo, depois bebeu todo o conteúdo num só gole.
- Eles me culpam por não tê-lo impedido de cometer os erros fatais, e por não reconhecer a tempo o seu
estado de incompetência.
- Não reconhecer a tempo... - Roger repetiu, furioso.
- E como você poderia reconhecer qualquer coisa num homem que sempre agiu como se fosse Deus
Todo-Poderoso, até que um dia começou a acreditar que realmente era? E, mesmo se você soubesse, o
que poderia ter feito? As ações estavam no nome dele, não no seu. Até o dia em que ele morreu,
manteve o controle total de toda a corporação. Suas mãos estavam atadas.
- E agora estão vazias - Ramon retrucou, encolhendo os ombros largos e musculosos.
- Escute - Roger falou, em desespero. - Eu não ofereci antes porque sabia que você ficaria ferido em
seu orgulho, mas não sou exatamente um pobretão, sabe disso. De quanto precisa? Se eu não tiver toda
a quantia, talvez possa ajudá-lo a levantar um empréstimo.
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Pela primeira vez um lampejo de humor surgiu nos lábios bem esculpidos de Ramon e em seus
arrogantes olhos escuros. A transformação foi admirável, suavizando os traços de um rosto que
ultimamente parecia ter sido talhado por um artista cuja intenção era retratar a frieza, a determinação
implacável e a antiga nobreza hispânica.
- Cinquenta milhões ajudariam - ele respondeu. Setenta e cinco milhões seriam ainda melhores.
- Cinquenta milhões? - Roger ecoou, encarando o homem que conhecia desde a época em que ambos
estudavam na Universidade de Harvard. - Cinquenta milhões de dólares apenas ajudariam?
- Exatamente. Apenas ajudariam.
Deixando o copo vazio na mesa de mármore ao seu lado, Ramon virou-se e seguiu em direção ao
quarto de hóspedes que estivera ocupando desde sua chegada a St. Louis, na semana anterior.
- Ramon - Roger falou com urgência -, você precisa encontrar-se com Sid Green enquanto estiver aqui.
Ele pode levantar toda essa quantia, se quiser, e está lhe devendo dinheiro.
Ramon virou a cabeça rapidamente. Seus traços aristocráticos endureceram de desprezo.
- Se Sid quisesse ajudar, ele teria entrado em contato comigo. Sabe que estou aqui, e sabe que estou em
dificuldades.
- Talvez ele não saiba. Até agora, você conseguiu abafar o escândalo e o fato de que a companhia está
afundando. Talvez ele não saiba.
- Ele sabe. Sid faz parte da diretoria do banco que está recusando-se a prolongar o prazo do
empréstimo.
- Mas...
- Não! Se Sid estivesse disposto a ajudar, ele teria me procurado. O silêncio dele diz tudo, e eu não vou
implorar. Já marquei uma reunião com os auditores e advogados da companhia em Porto Rico, para
daqui a dez dias. Nessa reunião irei instruí-los a entrar com o pedido de falência.
- Girando nos calcanhares, Ramon saiu da sala, os passos largos demonstrando toda sua raiva e
inquietação.
Quando retornou, os cabelos escuros e espessos estavam úmidos do banho, e usava calça jeans. Roger
encarou-o em silêncio, enquanto Ramon dobrava as mangas da camisa na altura dos cotovelos.
- Ramon - ele disse, com insistente determinação. Fique mais uma semana aqui em St. Louis. Talvez
Sid entre em contato com você, se lhe der mais tempo. Vou lhe dizer uma coisa, acho que ele nem sabe
que você está aqui. Nem mesmo sei se ele está na cidade.
- Ele está na cidade, e eu vou partir para Porto Rico daqui a dois dias, exatamente como planejei.
Roger exalou um longo suspiro de resignação.
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- Que diabo você vai fazer em Porto Rico?
- Primeiro, pretendo tratar da falência da corporação, e depois farei o que meu avô e meu tataravô
sempre fizeram
- Ramon respondeu. - Vou cuidar da fazenda.
- Você está completamente louco! - Roger exclamou.
- Está pensando em cuidar daquele pequeno pedaço de terra, com aquela cabana para onde nós levamos
as duas garotas de...?
- Aquele pequeno pedaço de terra - Ramon interrompeu-o com dignidade - é tudo o que me restou.
Juntamente com a casa onde nasci.
- E quanto à casa perto de San Juan, ou a vila na Espanha, a ilha no Mediterrâneo? Venda uma de suas
casas na ilha, só isso já seria o suficiente para sustentá-lo com todo o luxo pelo resto da vida.
- Tudo isso se foi. Todos os meus imóveis foram entregues como garantia do empréstimo para a
empresa, que eu não posso quitar. Os bancos que emprestaram o dinheiro estarão abocanhando tudo
como se fossem urubus, antes mesmo do fim do ano.
- Maldição! - Roger falou, impotente. - Se seu pai já não estivesse morto, eu o esganaria com minhas
próprias mãos!
- Os acionistas teriam chegado antes de você. - Ramon sorriu, sem humor.
- Como pode ficar parado aí e falar como se nada disso importasse?
- Já aceitei a derrota - Ramon respondeu calmamente.
- Fiz tudo o que poderia ser feito. Não vou incomodar-me de trabalhar na fazenda ao lado das pessoas
que trabalham com minha família há séculos.
Virando-se para ocultar a piedade por um homem que Roger sabia que iria rejeitá-la e desprezá-lo por
isso, ele disse:
- Ramon, há algo que eu possa fazer?
- Sim.
- Pois então me diga. - Roger virou-se, esperançoso.
- Diga do que precisa, e eu farei.
- Será que pode me emprestar seu carro? Gostaria de dar um passeio, sozinho.
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Sorrindo diante de um pedido tão simples, Roger tirou as chaves do bolso e entregou-as ao amigo.
- Há um probleminha com o filtro de combustível, mas a oficina autorizada só poderá fazer o conserto
na próxima semana. Com a sua sorte, é bem provável que fique com o Mercedes parado no meio da
rua.
Ramon encolheu os ombros, sem demonstrar nenhuma emoção.
- Se o carro parar, eu vou caminhando. O exercício me deixará em forma para o trabalho na fazenda.
- Você não precisa trabalhar na fazenda, e sabe disso! Você é famoso em toda a comunidade financeira
internacional.
Um músculo enrijeceu no rosto de Ramon, enquanto ele fazia um esforço evidente para controlar a
raiva e a amargura.
- Para a comunidade financeira internacional, eu participei de um erro imperdoável e inesquecível: o
fracasso. Estou prestes a me tornar o exemplo mais notório de fracasso. Você gostaria que eu
implorasse aos meus amigos por um cargo? Será que devo apresentar-me na sua fábrica amanhã cedo e
candidatar-me a um emprego na linha de montagem?
- Não, é claro que não! Mas poderia pensar em alguma coisa. Eu vi você erguer um império financeiro
num prazo de poucos anos. Se foi capaz de construí-lo, pode também descobrir um meio de salvar uma
parte dele. Mas parece que você não está dando a mínima para isso! Eu...
- Não posso fazer milagres - Ramon interrompeu-o, sem se alterar. - E seria necessário um milagre. O
jatinho Lear está no hangar do aeroporto aguardando uma peça para o motor. Quando os mecânicos
terminarem o conserto e meu piloto retornar da folga do fim de semana no domingo à noite, estarei
voando para Porto Rico.
Roger abriu a boca para protestar, mas Ramon silenciou-o com um olhar impaciente.
- Existe dignidade no trabalho no campo, Roger. Creio que muito mais dignidade do que no trato com
banqueiros. Quando meu pai era vivo, eu nunca tive paz. Desde que ele morreu, não tive paz. Agora,
deixe-me encontrá-la do meu próprio jeito.
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CAPÍTULO 2
O AMPLO BAR DO HOTEL Canyon Inn, próximo ao subúrbio de Westport, estava lotado com a
habitual multidão das noites de sexta-feira. Katie Connelly olhou disfarçadamente no relógio, depois
deixou seu olhar divagar através dos grupos que riam, bebiam e conversavam, procurando um rosto
conhecido entre eles. A visão da entrada principal era obscurecida por uma profusão de plantas
suspensas por cordões de macramê e pelas luminárias de vidro colorido penduradas no teto.
Mantendo um luminoso sorriso fixo no rosto, voltou sua atenção para o grupo de homens e mulheres
que se amontoavam à sua volta.
- Então eu disse a ele para nunca mais me ligar Karen Wilson estava falando.
Um homem pisou no pé de Katie quando se esticou ao lado dela para pegar a bebida no bar. No
momento em que enfiou a mão no bolso para retirar o dinheiro, ele deulhe uma cotovelada na cintura.
O homem não lhe pediu desculpas, e Katie tampouco esperava que o fizesse. Ali, tanto homens como
mulheres tinham direitos iguais.
Ao virar-se do bar com a bebida na mão, o sujeito finalmente reparou em Katie.
- Olá - ele disse, fazendo uma pausa para lançar um olhar interessado pelo seu corpo esguio e
curvilíneo coberto por um colante vestido azul. - Bom - concluiu em voz alta, enquanto fazia uma
análise completa, desde os brilhantes cabelos avermelhados que lhe caíam pelos ombros, os olhos cor
de safira azul que o encaravam com desprezo sob os cílios espessos e as sobrancelhas delicadamente
arqueadas. - Muito bom - ele corrigiu-se, sem perceber que o motivo que a fazia ruborizar era irritação,
e não prazer. Embora se ressentisse por ele estar olhando-a como se tivesse pago pelo privilégio, Katie
não poderia realmente culpá-lo. Afinal, ela estava ali, não estava? Naquele local que, a despeito do que
os proprietários e frequentadores preferiam pensar, não passava de um enorme bar de solteiros ligado a
uma minúscula sala de jantar, que servia apenas para lhe conferir um mínimo de dignidade.
- Onde está sua bebida? - ele perguntou, reexaminando-a preguiçosamente.
- Não tenho nenhuma bebida - Katie respondeu, confirmando o óbvio.
- Por que não?
- Já bebi dois copos.
- Bem, por que não pega mais um e me encontra naquele canto? Podemos nos conhecer melhor. Eu sou
advogado - o homem acrescentou, como se aquela única informação pudesse deixá-la ansiosa para
pegar uma bebida e correr atrás dele.
Katie mordeu o lábio e fingiu uma expressão desapontada.
- Ah...
- ”Ah” o quê?
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- Eu não gosto de advogados - ela informou, encarando-o fixamente.
O homem ficou mais surpreso do que aborrecido.
- Azar seu.
Encolhendo os ombros, ele virou-se e foi abrindo caminho pela multidão. Katie viu-o parar perto de
duas jovens muito bonitas, que retribuíram o seu olhar investigativo e analisaram-no com evidente
interesse. Katie sentiu uma onda de envergonhado nojo por ele e por todos que estavam naquele lugar
lotado, mas sobretudo por si mesma, por também estar ali. Sentia-se envergonhada da sua própria
rispidez, mas locais como aquele faziam-na colocar-se imediatamente na defensiva, e seu calor e
espontaneidade naturais pareciam atrofiar-se no instante em que passava pela porta.
O advogado, claro, esquecera-se dela num segundo. Por que ele se daria ao trabalho de gastar 2 dólares
para lhe pagar uma bebida e depois empenhar-se em se mostrar amigável e encantador? Por que se
esforçaria sem necessidade? Se Katie, ou qualquer outra mulher naquele salão, desejasse conhecê-lo,
ele se mostraria perfeitamente disposto a permitir que ela despertasse seu interesse. E, caso ela tivesse
sucesso nisso, ele até poderia convidá-la para ir à sua casa - em carros separados, naturalmente - para
que pudessem fazer uso de seus tão propalados direitos iguais à satisfação sexual. Após o quê, ele
compartilharia de um drinque amigável - se não estivesse cansado demais -, a acompanharia até a porta
e permitiria que ela dirigisse sozinha para onde quer que morasse.
Tão eficiente, tão direto. Sem laços nem compromissos. Nenhuma promessa feita ou esperada. As
mulheres atuais, naturalmente, também tinham direitos iguais à recusa; ela não precisaria ir para a cama
com ele. Nem mesmo precisava preocupar-se com a possibilidade de sua recusa ferir os sentimentos
dele. Porque ele não sentia nada por ela. Talvez ficasse um pouco aborrecido por ela ter desperdiçado
uma ou duas horas de seu tempo, mas depois simplesmente escolheria outra, dentre as inúmeras
mulheres dispostas e disponíveis.
Katie ergueu os olhos azuis, de novo perscrutando a multidão à procura de Rob, desejando ter
combinado o encontro em outro lugar. A música tocava alto demais, acrescentando seu clamor ao
tumulto de vozes elevadas e risos forçados. Ela olhou para os rostos à sua volta, todos diferentes e,
ainda assim, tão semelhantes em suas expressões de inquietude, ansiedade e tédio. Todos estavam em
busca de alguma coisa. Nenhum deles ainda a havia encontrado.
- Seu nome é Katie, não é? - uma voz masculina, desconhecida, fez-se ouvir atrás dela.
Apanhada de surpresa, Katie virou-se e viu-se olhando para um rosto confiante e sorridente, surgindo
do colarinho de uma impecável camisa listrada, com um blazer bem talhado e uma gravata
combinando.
- Conheci você com Karen, no supermercado, várias semanas atrás.
Ele tinha um sorriso juvenil e olhos duros. Katie estava hesitante e seu sorriso não continha o brilho
habitual.
- Ah, olá, Ken. É um prazer vê-lo novamente.
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- Escute, Katie - ele disse, como se subitamente tivesse uma ideia muito original e brilhante. - Por que
não saímos daqui e vamos para um lugar mais sossegado?
A casa dele o a dela. O que estivesse mais próximo. Katie conhecia o esquema e isso a enojava.
- O que você tem em mente?
Ele não respondeu à pergunta, e nem precisava. Em vez disso, fez outra:
- Onde você mora?
- Aqui perto... Num apartamento no condomínio Village Green.
- Alguma companheira de quarto?
- Sim, duas lésbicas - Katie mentiu descaradamente. Ele acreditou, e não ficou chocado.
- É mesmo? Isso não a incomoda?
Katie enviou-lhe um olhar de pura inocência.
- Eu adoro as duas.
Por uma fração de segundo ele pareceu bastante contrariado, e o sorriso de Katie transformou-se numa
risada genuína.
Recuperando-se quase imediatamente, ele encolheu os ombros.
- Tudo bem. A gente se vê por aí.
Katie viu a atenção dele dirigir-se outra vez para o salão, até encontrar alguém que o interessasse, e
depois ele se afastou, movendo-se lentamente pela multidão. Ela já tivera o bastante. Mais do que o
bastante. Tocou o braço de Karen, distraindo-a da animada conversa com dois rapazes atraentes sobre a
temporada de esqui no Colorado.
- Karen, vou passar no toalete e depois irei embora.
- Rob não apareceu? - Karen perguntou, distraída. Bem, dê uma volta por aí... há muitos outros de onde
ele veio. Faça sua escolha.
- Vou embora - Katie falou com firmeza.
Karen limitou-se a dar de ombros e retomou a conversa.
O toalete feminino ficava num corredor estreito atrás do bar, e Katie foi abrindo caminho com esforço
por entre os corpos agrupados, emitindo um suspiro de alívio ao esgueirar-se do último obstáculo
humano e alcançar a relativa tranquilidade do corredor. Não tinha certeza se estava aliviada ou
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desapontada por Rob não ter aparecido. Oito meses atrás estivera louca e apaixonadamente
deslumbrada por ele, pela sua inteligência e divertida ternura. Ele tinha tudo: uma aparência atraente,
confiança, charme e um futuro promissor como herdeiro de uma das maiores corretoras de ações de St.
Louis. Era bonito, inteligente e maravilhoso. E casado.
A expressão de Katie entristeceu ao lembrar-se da última vez que vira Rob... Depois de um jantar
especial ao som de música, tinham voltado ao apartamento dela e estavam bebendo vinho. Naquela
noite, pela primeira vez, ela decidira não impedi-lo quando ele tentasse fazer amor. Durante os últimos
meses ele lhe dissera centenas de vezes, e demonstrara de centenas de formas, que a amava. Ela não
precisava mais hesitar. Na verdade, estivera prestes a tomar a iniciativa quando Rob recostou a cabeça
no sofá e suspirou.
- Katie, o jornal de amanhã vai publicar uma reportagem sobre mim, na coluna social. Não é apenas a
meu respeito... mas também sobre minha mulher e meu filho. Eu sou casado.
Pálida e devastada, Katie lhe dissera para nunca mais telefonar ou tentar vê-la novamente. Ele fez as
duas coisas, repetidas vezes. E, com a mesma obstinação, Katie recusou-se a atender às ligações que ele
fazia para seu escritório, e desligava o telefone em casa, sempre que ouvia a voz dele.
Isso havia acontecido cinco meses antes, e apenas raramente, desde então, Katie se permitia o luxo
doce e amargo de pensar nele, mesmo que por um instante. Até três dias antes, acreditara que havia
superado o problema, mas quando atendeu ao telefone, na quarta-feira, o som profundo da voz de Rob
provocou um tremor em seu corpo inteiro.
- Katie, não desligue. Tudo mudou. Preciso vê-la, falar com você.
Ele discordara com veemência da escolha de Katie para aquele local de encontro, mas ela ficara firme.
O Canyon Inn era um lugar público e barulhento o bastante para desencorajá-lo a usar de terna
persuasão, caso esta fosse sua intenção. Além disso, Karen frequentava o bar todas as sextas-feiras, o
que significava que Katie poderia contar com o apoio moral da amiga, se precisasse.
O toalete estava lotado e ela teve de esperar na fila. Saiu vários minutos depois, distraída em procurar a
chave do carro dentro da bolsa, enquanto caminhava pelo corredor, depois parou diante da multidão
que bloqueava sua passagem de volta para o bar. Ao seu lado, num dos telefones públicos na parede do
corredor, um homem falou com um sotaque espanhol:
- Com licença... Poderia me dizer o endereço deste lugar? Prestes a atirar-se de encontro à massa
humana que se compactava à sua frente, Katie virou-se a fim de olhar para o homem alto e atraente que
a encarava com uma leve expressão de impaciência, enquanto segurava o telefone junto ao ouvido.
- Está falando comigo? - ela perguntou.
O rosto dele era profundamente bronzeado, os cabelos espessos e tão negros quanto os olhos. Num
lugar repleto de homens que sempre faziam-na lembrar de vendedores de computadores, aquele
homem, usando calça jeans e camisa branca com as mangas dobradas, parecia definitivamente
deslocado. Ele era... mundano demais.
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- Eu perguntei - a voz com o sotaque espanhol repetiu- se você poderia me dizer o endereço deste lugar.
Tive um problema com meu carro e estou tentando chamar um guincho.
Katie lhe passou o endereço do Canyon Inn, enquanto fazia um recuo mental daqueles olhos escuros e
amendoados, do nariz proeminente no rosto estrangeiro e arrogante. Homens altos, morenos e exóticos,
exalando uma masculinidade vulgar, poderiam ser atraentes para algumas mulheres, mas não para
Katherine Connelly.
- Obrigado - ele falou, removendo a mão do bocal do telefone e repetindo o nome da rua que Katie
informara.
Virando-se, Katie deu de frente com um suéter verdeescuro que cobria o peito de um homem que
bloqueava sua passagem para o salão. Sem erguer os olhos para ele, ela disse:
- Com licença, posso passar? O suéter afastou-se da porta.
- Para onde vai? - o dono do suéter perguntou, num tom amigável. - Ainda é cedo.
Katie finalmente encarou-o, e viu-o sorrir com franca admiração.
- Eu sei, mas preciso ir embora. Vou me transformar numa abóbora à meia-noite.
- É a sua carruagem que se transforma em abóbora ele corrigiu-a, sorrindo. - E o seu vestido se
transforma em trapos.
- Obsolescência planejada e mão-de-obra deficiente, mesmo nos tempos da Cinderela - Katie suspirou
com fingido desgosto.
- Uma garota espirituosa! - ele aplaudiu. Observou-a de cima a baixo e, estendendo a mão, deslizou os
dedos pela seda da manga do vestido dela. - Gosto de mulheres inteligentes - disse, enviando-lhe um
olhar significativo.
- Não me sinto ameaçado por elas.
Reprimindo firmemente o impulso de lhe sugerir que fosse ”passar uma cantada” na vovozinha, Katie
falou com toda gentileza:
- Sinto muito, mas preciso mesmo ir embora. Vou encontrar uma pessoa.
- Sujeito de sorte - ele disse, desistindo.
Katie saiu para a noite escura e abafada de verão, sentindo-se perdida e deprimida. Parou por um
instante sob o toldo branco da entrada, vendo, enquanto seu coração disparava, um conhecido Corvette
branco passar direto pelo sinal vermelho da esquina e entrar no estacionamento, parando ao seu lado
com um ranger dos freios.
- Desculpe pelo atraso. Entre, Katie, vamos para algum lugar onde possamos conversar.
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Katie olhou para Rob através do vidro aberto do carro e sentiu um fluxo de desejo tão intenso que
chegava a doer. Ele ainda era insuportavelmente atraente, mas seu sorriso, sempre tão confiante e
seguro de si, estava agora mesclado com uma fragilidade que lhe apertava o peito e enfraquecia sua
decisão.
- É muito tarde, Rob. E não temos nada para conversar, se você ainda está casado.
- Katie, não podemos ficar aqui, falando deste jeito. Não fique zangada com meu atraso. Tive um voo
horrível, que demorou mais do que o previsto. Agora, seja boazinha e entre no carro. Não quero perder
tempo discutindo com você.
- Por que não quer perder tempo? - Katie persistiu.
- Sua mulher está à sua espera?
Rob praguejou baixinho e acelerou bruscamente, dirigindo o carro esporte até uma vaga atrás do
prédio. Saiu do veículo e recostou-se na porta, esperando que Katie fosse até ele. Com a brisa
desmanchando-lhe os cabelos, Katie aproximou-se dele relutante, no estacionamento escuro.
- Faz muito tempo, Katie - ele falou quando ela parou à sua frente. - Não vai me dar um beijo?
- Você ainda está casado?
Em resposta Rob puxou-a para seus braços e beijou-a num misto de ânsia feroz e desejo penitente. No
entanto, ele a conhecia o bastante para perceber que Katie estava apenas aceitando o beijo
passivamente e, ao evitar a pergunta, admitira que continuava casado.
- Não fique assim, Katie - sussurrou roucamente, o hálito quente em seu ouvido. - Há meses que só
consigo pensar em você. Vamos sair daqui e ir para sua casa.
Katie respirou fundo, trémula.
- Não.
- Katie, eu amo você. Estou louco por você. Não fique fugindo de mim.
Pela primeira vez ela reparou no cheiro de bebida no hálito dele, e, embora a contragosto, ficou
sensibilizada ao pensar que ele precisara beber para criar coragem antes de encontrá-la. Mas conseguiu
manter a voz firme.
- Não quero ter um caso inconsequente com um homem casado.
- Antes de descobrir que eu era casado, você não achava que estar comigo era algo ”inconsequente”.
Agora ele tentaria a bajulação, e Katie não iria suportar.
- Por favor, Rob, não faça isso comigo. Eu não conseguiria viver com a ideia de ter destruído um
casamento.
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- O casamento já estava destruído há muito tempo, antes de eu conhecê-la. Eu tentei lhe dizer isso.
- Então se divorcie - ela falou, em desespero. Mesmo na escuridão, Katie pôde ver a amarga ironia no
sorriso dele.
- Os sulistas não se divorciam, minha querida. Eles aprendem a ter vidas separadas. Pergunte ao meu
pai e ao meu avô - Rob falou, com dolorosa raiva. Apesar do barulho das portas abrindo e fechando,
enquanto pessoas entravam e saíam do restaurante, a voz dele permanecia num tom baixo e normal, e
suas mãos deslizavam pelas costas de Katie, até alcançarem seus quadris. Puxou-a para si, fazendo-a
sentir a dureza de suas coxas. - Isto é para você, Katie. Somente para você. Você não estará destruindo
meu casamento, ele estava acabado há tempos.
Katie não podia mais suportar. A sordidez daquela situação a fez sentir-se suja, e tentou afastar-se dele.
- Solte-me, Rob - pediu, por entre os dentes. - Ou você é um mentiroso, ou um covarde, ou então os
dois e...
As mãos dele apertaram-se em torno dos seus braços, quando Katie tentou se desvencilhar.
- Odeio você por estar agindo desta maneira! - ela soluçou. - Solte-me agora mesmo!
- Faça o que ela está dizendo - uma voz contendo um leve sotaque fez-se ouvir na escuridão.
Rob ergueu a cabeça de imediato.
- Quem diabo você pensa que é? - perguntou à figura de camisa branca que se materializava nas
sombras atrás do prédio. Pressionando os braços de Katie com mais força, Rob lançou um olhar
ameaçador para o intruso, depois voltou-se para ela. - Você conhece este sujeito?
A voz dela estava rouca de vergonha e raiva.
- Não, mas me solte. Quero ir embora.
- Você vai ficar aqui mesmo - Rob disse, num tom baixo e perigoso. Erguendo a cabeça para o homem,
disse:
- E você vai embora. Agora, vá andando, a não ser que queira que eu o ajude a encontrar o seu rumo.
A voz com sotaque tornou-se extremamente gentil, adquirindo porém um tom quase assustador.
- Você pode tentar, se quiser. Mas solte a moça. Levado ao extremo pela implacável obstinação de
Katie,
e agora por aquela intromissão indesejada, Rob deu vazão a toda sua raiva e frustração no intruso.
Soltou o braço de Katie e, com um único movimento contínuo, lançou o punho fechado na direção da
mandíbula de seu oponente. Um instante de silêncio foi seguido pelo terrível estalar de ossos contra
ossos, e depois o ruído de um baque surdo. Katie abriu os olhos lacrimejantes e deparou com Rob caído
aos seus pés.
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- Abra a porta do carro - o estrangeiro ordenou, num tom que não dava margem a discussões.
Katie obedeceu automaticamente e abriu a porta do Corvette. O homem atirou Rob para dentro, sem o
menor cuidado, deixando a cabeça tombada sobre o volante, como se ele tivesse desmaiado por excesso
de bebida.
- Onde está o seu carro? - perguntou. Katie fitou-o como se não entendesse.
- Não podemos deixá-lo aqui - disse. - Ele pode estar precisando de um médico.
- Qual é o seu carro? - o homem repetiu, impaciente.
- Não tenho a menor vontade de estar aqui, no caso de alguém ter visto o que aconteceu e ter chamado
a polícia.
- Ah, mas... - Katie protestou, olhando por cima do ombro para o Corvette de Rob, enquanto corria na
direção do seu próprio carro. Parou quando o alcançou. - Você pode ir embora. Vou ficar aqui.
- Eu não o matei, só deixei-o meio zonzo. Ele vai acordar em poucos minutos com o rosto inchado e
um dente solto, só isso. Eu dirijo - ele disse, obrigando-a a dar a volta e entrar no lado do passageiro. -
Você não está em condições.
Entrando no carro, ele bateu o joelho no volante e resmungou algo que Katie julgou ser um palavrão
em espanhol.
- Dê-me as chaves - ele disse, empurrando o assento na posição mais distante, a fim de acomodar as
longas pernas.
Katie entregou-lhe as chaves. Diversos carros entravam e saíam do estacionamento, e tiveram de
esperar algum tempo antes de finalmente sair da vaga. Passaram pelas fileiras de veículos estacionados
e por um velho caminhão de entregas com um pneu furado, que estava parado nos fundos do
restaurante.
- Esse caminhão é seu? - Katie perguntou vagamente, sentindo que deveria dizer alguma coisa.
O homem olhou de relance para o caminhão parado, depois enviou-lhe um sorrisinho irónico.
- Como adivinhou?
Katie ruborizou de vergonha. Sabia, como ele também sabia, que presumira que ele fosse motorista de
um caminhão de entregas simplesmente pelo seu sotaque espanhol. Numa tentativa de salvar o orgulho
dele, disse:
- Quando você estava no telefone mencionou que precisava de um guincho... Por isso deduzi.
Saíram do estacionamento e seguiram pelo fluxo do tráfego, enquanto Katie o instruía sobre como
chegar ao seu apartamento, que ficava a apenas alguns quarteirões de distância.
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- Quero lhe agradecer... Ha...
- Ramon.
Com gestos nervosos, Katie pegou a bolsa e procurou a carteira. Morava tão perto que, quando retirou
da carteira uma nota de 5 dólares, já estavam entrando no estacionamento do seu condomínio.
- Eu moro bem ali... na primeira porta à direita, onde está aquele poste.
Ramon manobrou o carro para uma vaga mais próxima à porta de entrada, desligou o motor, saiu e fez
a volta para o lado dela. Katie apressou-se em abrir sua porta e sair do veículo. Um tanto incerta,
ergueu os olhos para aquele rosto moreno, orgulhoso e enigmático, calculando que ele devia ter uns 35
anos. Mas havia algo nele, talvez pelo fato de ser estrangeiro, que a fazia sentir-se insegura.
Estendeu a mão, oferecendo-lhe a nota de 5 dólares.
- Muito obrigada, Ramon. Por favor, aceite isto. - Ele olhou para o dinheiro, e depois para ela. - Por
favor Katie insistiu educadamente. - Tenho certeza de que você fará bom uso.
- É claro - ele falou, após uma breve pausa. Aceitou o dinheiro e enfiou-o no bolso traseiro da calça. -
Vou acompanhá-la até a porta - acrescentou.
Katie virou-se e começou a subir a escada, um tanto chocada quando ele amparou-a pelo braço, leve
mas firmemente. Era um gesto tão antiquado e galante... sobretudo depois que, mesmo sem querer, ela
ofendera o orgulho dele.
Ramon inseriu a chave na fechadura e abriu a porta para ela. Katie entrou e, quando se virou para
agradecer, ele disse:
- Eu gostaria de usar seu telefone. Preciso saber se o carro-reboque já foi enviado conforme me
prometeram.
Ele a salvara de uma situação crítica e até arriscara-se a ser preso por sua causa. Katie sabia que a boa
educação exigia que lhe permitisse usar o telefone. Disfarçando cuidadosamente sua relutância em
deixá-lo entrar, afastou-se e deu-lhe passagem para dentro de seu luxuoso apartamento.
- O telefone fica ali naquela mesinha - informou.
- Depois que telefonar, vou esperar um pouco para certificar-me de que seu amigo - ele enfatizou a
palavra com um tom de desprezo - não acorde e decida aparecer por aqui. Acho que até lá o guincho já
deve ter chegado e posso ir andando de volta para o restaurante... Não é muito longe.
Katie, que nem sequer considerara a possibilidade de Rob ir procurá-la em casa, congelou no ato de
tirar as sandálias de salto alto. Sem dúvida Rob nunca mais se aproximaria dela, não depois de ser
rejeitado por ela, e fisicamente desencorajado por Ramon.
- Tenho certeza de que ele não virá para cá - disse com franqueza. Mas, ainda assim, percebeu que
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tremia, numa reação retardada de choque. - Eu... acho que vou fazer um café - acrescentou, já
encaminhando-se para a cozinha. Sem ter outra opção, perguntou: - Você aceita uma xícara?
Ramon aceitou o oferecimento com tal ambivalência que a maioria das dúvidas de Katie acerca de sua
confiabilidade foram de novo despertadas. Desde que o encontrara, ele não agira ou dissera qualquer
coisa direta.
Quando estava na cozinha, Katie deu-se conta de que, em toda sua ansiedade pelo encontro com Rob
naquela noite, esquecera-se de comprar café, que acabara no dia anterior. Mas não se incomodou, pois,
de repente, sentiu necessidade de beber algo mais forte. Abriu o armário em cima da geladeira e tirou a
garrafa de brandy que Rob deixara ali.
- Acho que terei de oferecer-lhe água ou brandy - ela disse para Ramon. - Não tenho nem mesmo um
refrigerante.
- Brandi está ótimo - ele respondeu. Katie serviu o conhaque em dois cálices e voltou para a sala no
instante em que Ramon desligava o telefone.
- O caminhão-guincho já chegou? - ela perguntou.
- Sim, e o mecânico está providenciando um conserto temporário, portanto nem vou precisar do
reboque. - Ramon pegou o cálice que ela lhe estendia e olhou em torno do apartamento com uma
expressão de curiosidade. - Onde estão suas amigas? - perguntou.
- Que amigas? - Katie retrucou sem entender, sentando-se numa poltrona forrada com veludo bege.
- As lésbicas.
Ela começou a rir e quase engasgou.
- Você estava perto o bastante para me ouvir, quando falei isso?
Baixando os olhos para ela, Ramon assentiu, mas não havia divertimento no leve sorriso que lhe curvou
os lábios.
- Estava atrás de você, trocando as moedas com o barman para dar o telefonema.
- Ah... - Os eventos desastrosos daquela noite ameaçaram puxá-la para baixo, mas Katie empurrou-os
firmemente para o fundo da mente. Pensaria nisso amanhã, quando estivesse em condições de pensar.
Encolheu os ombros, distraída. - Eu inventei as lésbicas. Não estava com disposição para...
- Por que não gosta de advogados? - ele interrompeu-a. Katie sufocou mais um ataque de riso.
- É uma longa história, que prefiro não discutir. Mas; imagino que disse isso a ele porque achei que
estava sendo vaidoso demais ao me dizer que era advogado.
- Você não é vaidosa?
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Katie fitou-o, surpresa. Havia uma inocência quase infantil no modo como se sentava na poltrona, com
os pés descalços presos sob seu corpo; uma doce vulnerabilidade na pureza de seus traços e na
luminosidade de seus olhos azuis.
- Eu... não sei.
- Você não teria sido rude comigo se eu a abordasse naquele bar e lhe dissesse que sou motorista de
caminhão?
Katie esboçou seu primeiro sorriso genuíno daquela noite, os lábios macios curvando-se com um
humor sincero que fez seus olhos reluzirem.
- Provavelmente eu teria ficado atónita demais para falar. Em primeiro lugar, ninguém que frequenta o
Canyon Inn dirige um caminhão, e, em segundo, se alguém dirigisse, jamais admitiria.
- Por quê? Não há vergonha alguma nisso.
- Não, é claro. Mas o sujeito diria que trabalha no ramo de transportes ou de entregas a domicílio, algo
assim, de forma a soar como se fosse dono de uma transportadora ou de uma enorme frota de
caminhões.
Ramon encarou-a como se suas palavras fossem um obstáculo, e não uma ajuda, para que a
compreendesse. Seus olhos deslizaram pelos cabelos ruivos que lhe caíam pelos ombros e depois
afastaram-se abruptamente. Erguendo o cálice, bebeu metade do conhaque de uma só vez.
- O brandy deve ser tomado aos poucos, para ser apreciado - Katie falou, mas logo deu-se conta de que,
embora pretendesse fazer uma sugestão, aquilo soara como uma repreensão. - Isto é - acrescentou,
desajeitada -, você pode beber de uma vez, mas as pessoas acostumadas ao brandy preferem beber
devagar.
Ramon baixou o cálice e olhou-a com uma expressão absolutamente indefinível.
- Obrigado - disse com uma cortesia impecável. Vou tentar lembrar-me disso, se algum dia tiver a sorte
de tomar um brandy de novo.
Encolhendo-se com a certeza de que agora o ofendera de verdade, Katie observou-o encaminhar-se
para a janela da sala e entreabrir a cortina.
Seu apartamento oferecia uma vista bem pouco inspiradora para o estacionamento e, mais adiante, para
a movimentada avenida que passava na frente do condomínio. Recostando-se no batente da janela, ele
aparentemente seguiu o conselho dela e passou a beber o conhaque em pequenos goles, enquanto
olhava para o estacionamento.
Distraída, Katie reparou na maneira como a camisa dele colava-se em seu tronco largo e musculoso,
esticando-se sempre que ele movimentava o braço, e depois desviou os olhos. quisera apenas mostrarse
prestativa e, em vez disso, parecera condescendente e superior. Queria que ele fosse embora. Estava
física e mentalmente exausta, e não havia motivo algum para ele ficar ali de plantão. Rob não iria
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procurá-la naquela noite.
- Quantos anos você tem? - ele perguntou de repente. O olhar de Katie disparou em sua direção.
- Vinte e três.
- Então já deveria ter desenvolvido um melhor senso de prioridades.
Katie estava mais perplexa do que ofendida.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que você acha importante que o brandy seja apreciado da maneira ”adequada”, no
entanto não se preocupa se é ”apropriado” convidar para seu apartamento qualquer homem que acabou
de conhecer. Arrisca-se a destruir sua reputação e...
- Qualquer homem que conheço! - Katie interrompeu-o indignada, não mais sentindo a menor
obrigação de ser gentil. - Em primeiro lugar, convidei-o para entrar porque você pediu para usar o
telefone, e achei que deveria ser educada depois de você ter-me ajudado. Em segundo lugar, não sei
como são as coisas no México, ou seja lá o país de onde você veio, mas...
- Eu nasci em Porto Rico - ele informou. Katie ignorou a interrupção.
- Bem, aqui nos Estados Unidos não temos essas ideias absurdas e antiquadas a respeito da reputação
das mulheres. Os homens nunca se preocuparam com suas reputações, e nós também não nos
preocupamos mais com as nossas. Fazemos o que bem entendemos!
Katie não podia acreditar no que via. Agora, quando realmente queria insultá-lo, ele parecia prestes a
cair na risada.
Os olhos negros suavizaram-se de divertimento e um sorriso pairava em seus lábios.
- Você faz o que bem entende?
- É claro que sim! - ela respondeu, enfática.
- E o que você faz?
- O quê?
- Quero saber o que é que lhe agrada fazer?
- Qualquer coisa que eu quiser. A voz dele aprofundou-se.
- E o que você quer fazer... agora?
O tom sugestivo fez com que Katie de repente percebesse a crua sensualidade que emanava daquela
silhueta musculosa, destacada pela reveladora calça jeans e pela camisa branca. Um estremecimento
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perpassou-a quando o olhar dele moveu-se pelo seu rosto, demorando-se em seus lábios antes de
caírem preguiçosamente para as curvas de seus seios sob o tecido fino do vestido. Ela sentia vontade de
gritar, de rir, ou de chorar... ou uma combinação dos três. Depois de tudo o que lhe acontecera naquela
noite, ela ainda conseguira dar de encontro com um Casanova porto-riquenho que agora julgava ser a
resposta a todas as suas necessidades sexuais!
Obrigando-se a soar ríspida, ela por fim respondeu:
- O que quero fazer agora? Quero ser feliz com minha vida e comigo mesma. Quero ser... livre -
acrescentou vagamente, distraída demais pelo olhar fixo e sensual dele para ser capaz de pensar com
clareza.
- De que deseja se libertar? Katie levantou-se de um salto.
- Dos homens!
Quando ela ficou de pé, Ramon aproximou-se com movimentos deliberadamente lentos.
- Você quer libertar-se de tanta liberdade, mas não dos homens.
Katie foi se afastando na direção da porta, enquanto ele avançava para ela. Havia sido louca em
convidá-lo para entrar, e agora ele deturpava suas intenções em proveito próprio. Ofegou, quando bateu
de costas na porta.
Ramon parou a centímetros dela.
- Se você quisesse livrar-se dos homens, como diz, não teria ido àquele bar esta noite. Não teria
encontrado aquele sujeito no estacionamento. Você não sabe o que quer.
- Eu sei que já é muito tarde - Katie falou, com a voz trémula. - E quero que você vá embora.
Os olhos dele estreitaram-se, mas a voz era gentil quando perguntou:
- Está com medo de mim?
- Não - ela mentiu. Ramon assentiu, satisfeito.
- Ótimo. Neste caso, não vai recusar-se a ir comigo ao Zoológico amanhã.
Katie podia jurar que ele sabia que ela sentia-se extremamente insegura com ele, e que não tinha
vontade alguma de ir a lugar nenhum em sua companhia. Pensou em dizer que tinha outros planos para
o dia seguinte, mas estava certa de que ele insistiria para que marcassem um outro dia. Todos seus
instintos alertavam-na de que Ramon poderia mostrar-se muito insistente, se quisesse. E, cansada e
exaurida como estava, pareceu-lhe mais fácil marcar o encontro e, depois, simplesmente não aparecer.
Até ele seria capaz de aceitar tal rejeição como definitiva.
- Está bem - ela mentiu. - A que horas?
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- Venho buscá-la às dez da manhã.
Quando a porta fechou-se atrás dele, Katie sentiu-se como um fio esticado ao máximo por alguém que
desejava ver quanto ela suportaria antes de se romper. Arrastou-se para a cama, deitou-se e ficou
olhando para o teto. Tinha problemas suficientes sem ter de lidar com algum latino ardoroso que a
convidara para um passeio no Zoológico!
Virando-se, Katie pensou na cena sórdida com Rob e fechou os olhos com força, tentando fugir de sua
cansada infelicidade. Passaria o dia seguinte na casa de seus pais, decidiu. Na verdade, iria passar todo
o fim de semana prolongado com eles. Afinal, seus pais sempre se queixavam de que ela não os
visitava tanto quanto gostariam.
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CAPÍTULO 3
O RUÍDO ESTRIDENTE do despertador, às 8.00 da manhã seguinte, fez com que Katie acordasse,
ainda exausta, de um sono profundo. Sem saber por que havia ligado o alarme do relógio num sábado,
ela estendeu a mão e apertou o botão, silenciando o barulho insistente.
Quando tornou a abrir os olhos eram nove horas, e Katie piscou sob a luz que inundava seu quarto. Ah,
não! Ramon estaria chegando dali a uma hora...
Pulou para fora da cama, correu para o banheiro e abriu o chuveiro. Seu pulso acelerava-se a cada
minuto que passava, enquanto tudo o mais parecia mover-se em câmara lenta. O secador levou uma
eternidade para secar os cabelos espessos; ela derrubava tudo o que tocava e ansiava por uma boa
xícara de café.
Movendo-se rapidamente, abriu as gavetas e vestiu calça comprida azul-marinho e uma blusa branca.
Puxou os cabelos para trás e amarrou-os com um lenço de seda estampado de azul, vermelho e branco,
depois atirou um punhado de roupas que escolheu ao acaso na maleta de viagem.
Às 9.35, Katie fechou a porta do apartamento atrás de si e saiu para o azul repousante da manhã de
maio. O grande complexo de apartamentos estava tranquilo e silencioso: a típica calmaria de um
condomínio onde predominavam moradores solteiros, em consequência das festas, encontros e
bebedeiras da noite de sexta-feira.
Katie correu na direção de seu carro, mudando a valise de lona para a mão esquerda, enquanto
procurava as chaves nas profundezas de sua bolsa.
- Droga! - resmungou baixinho, deixando a valise no chão ao lado do carro, enquanto remexia
freneticamente dentro da bolsa.
Lançou um olhar nervoso e apreensivo para o movimentado tráfego da avenida, quase esperando ver
um caminhão passando com grande barulho pela entrada do condomínio.
- Onde será que deixei as chaves? - murmurou em desespero.
Seus nervos, já tensionados ao máximo, explodiram num gritinho sufocado quando sentiu alguém
segurá-la pelo braço.
- Elas estão comigo - uma voz profunda falou próximo ao seu ouvido.
Katie fez um giro rápido, tomada pela fúria e pelo medo.
- Como se atreve a ficar me espionando?! - gritou.
- Eu estava esperando você - Ramon enfatizou.
- Mentiroso! - ela sibilou, cerrando os punhos com força. - Ainda falta quase meia hora para o horário
que marcamos. Ou será que você nem mesmo sabe ver as horas?
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- Aqui estão suas chaves. Eu guardei-as no bolso por engano, ontem à noite.
Ele estendeu a mão e entregou-lhe as chaves, juntamente com um botão de rosa de caule longo.
Ao pegar as chaves da mão dele, Katie evitou tocar a indesejada rosa vermelha.
- Pegue a flor - ele disse, mantendo o braço estendido.
- É para você.
- Que droga! - ela explodiu, em desespero. - Deixe-me em paz! Aqui não é Porto Rico e eu não quero
sua flor!
- Ignorando-a, ele continuou parado, com toda paciência.
- Eu já disse que não quero!
Katie abaixou-se com um movimento brusco, para pegar a valise no chão. No processo, sem querer
esbarrou na mão dele e derrubou a rosa.
A visão do lindo botão caído no chão de concreto provocou-lhe uma pontada de culpa capaz de
estilhaçar toda sua raiva, e deixou-a sentindo-se extremamente envergonhada. Ela olhou para Ramon;
seu rosto orgulhoso permanecia firme, sem refletir nenhuma irritação nem condenação, apenas uma
profunda e inexplicável tristeza.
Incapaz de encontrar-lhe os olhos, Katie baixou os seus, e a culpa aguçou-se ainda mais ao ver que
comprar uma rosa não fora a única coisa que ele fizera para agradá-la: Ramon vestira-se com todo
cuidado para aquele encontro, também. A velha e gasta calça jeans tinha sido substituída por uma calça
preta impecável e uma camiseta preta de mangas curtas; o rosto estava recém-barbeado e exalava um
suave perfume de colónia.
Ele pretendera apenas agradá-la e impressioná-la, Katie pensou, e não merecia tal tratamento,
sobretudo depois que a defendera com tanto empenho na noite anterior. Katie olhou para a rosa
vermelha caída aos seus pés e sentiu-se tão envergonhada que lágrimas arderam em seus olhos.
- Ramon, me desculpe, por favor - ela disse, contrita, enquanto se abaixava para pegar a flor. Pegando-a
pelo caule, ergueu os olhos e fitou o rosto sério. - Obrigada por esta linda rosa. E se... se ainda quiser
minha companhia, vou com você ao Zoológico, como prometi. - Fazendo uma pausa para respirar
fundo, ela continuou: - Mas quero que você entenda que não tenho intenção de... Bem, não quero ter
nada sério com você, portanto não comece a... Deixou a frase no ar, encarando-o com surpresa quando
os olhos dele reluziram de riso contido.
Num tom bem-humorado, ele falou:
- Eu lhe ofereci apenas uma flor e um passeio ao Zoológico. Não a pedi em casamento.
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De repente Katie descobriu-se sorrindo de volta para ele.
- Tem toda razão.
- Então, podemos ir? - ele sugeriu.
- Sim, mas primeiro deixe-me levar a valise de volta para o meu apartamento. - Ela abaixou-se para
pegá-la, mas Ramon foi mais rápido.
- Eu carrego - ele disse.
Quando entraram no apartamento, Katie tirou a valise da mão dele e encaminhou-se para seu quarto. A
pergunta que ele fez obrigou-a a parar.
- Era de mim que você estava fugindo? Katie virou-se na soleira da porta.
- Não exatamente. Depois da noite de ontem, senti necessidade de fugir de tudo e de todos por algum
tempo.
- O que pretendia fazer?
Os lábios de Katie curvaram-se num sorriso desolado, que provocou um brilho em seus olhos.
- Eu ia fazer o que quase todas as mulheres auto-suficientes, independentes e adultas fazem quando não
conseguem lidar com uma situação: correr para a casa dos pais.
Minutos depois, saíram do apartamento. Enquanto cruzavam o estacionamento, Katie mostrou a
máquina fotográfica que estava levando na mão esquerda.
- Isto aqui é uma câmera - disse a ele.
- Sim, eu sei - Ramon concordou com uma seriedade zombeteira. - Elas já existem até em Porto Rico.
Katie caiu na risada e balançou a cabeça em autocensura.
- Desculpe, acho que nunca me dei conta de que norte-americana horrível eu sou.
Parando ao lado de um carro da marca Buick, Ramon abriu a porta para que ela entrasse.
- Você é uma linda norte-americana - contradisse em voz baixa. - Agora, entre.
Com uma pontinha de vergonha, Katie percebeu que estava aliviada por ele ter vindo de carro. Sacudir
pelas vias expressas num caminhão de entregas não era exatamente o seu estilo.
- Seu caminhão quebrou outra vez? - perguntou, enquanto saíam do estacionamento, entrando no
tráfego tranquilo de sábado de manhã.
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- Achei que você iria preferir um carro a um caminhão. Um amigo me emprestou.
- Poderíamos ter ido com o meu - ela disse.
O breve olhar que ele lhe enviou deixou bem claro que, se Ramon convidasse alguém para um passeio,
se encarregaria de providenciar o transporte. Embaraçada, Katie ligou o rádio e espiou-o com o canto
dos olhos. Com seu físico esplêndido e a pele bronzeada, ele a fazia lembrar de um jogador de ténis
profissional.
Katie divertiu-se muito com Ramon no Zoológico, embora o local estivesse lotado de visitantes devido
ao feriado do Memorial Day. Lado a lado, caminharam pelas trilhas pavimentadas. Ramon comprou
um saquinho de amendoins para que ela jogasse aos ursos, e caiu na gargalhada quando, no aviário, um
tucano de bico enorme voou para perto da grade, fazendo com que Katie desse um gritinho de susto e
cobrisse a cabeça.
Ela acompanhou-o à Casa dos Répteis, tentando manter sob controle sua aversão fóbica às cobras pelo
artifício de não olhar para nenhuma delas. Sentindo um arrepio na espinha, moveu-se por todo o salão
sem focalizar qualquer um dos répteis que ali estavam expostos.
- Olhe aqui - Ramon falou em seu ouvido, indicando uma vitrine bem ao lado dela.
Katie engoliu em seco.
- Não preciso olhar - murmurou com os lábios secos.
- Já sei que há uma árvore lá dentro, o que significa que tem uma cobra pendurada nela. - As palmas de
suas mãos começaram a transpirar e ela quase sentia o deslizar sinuoso da serpente em sua própria pele.
- O que há de errado? - ele perguntou, reparando que ela empalidecia. - Você não gosta de cobras?
- Não... muito - ela respondeu, a voz rouca.
Balançando a cabeça, Ramon pegou-a pelo braço e levou-a para fora, onde Katie respirou fundo e
deixou-se cair num banco de madeira.
- Tenho certeza de que colocaram estes bancos bem em frente da Casa dos Répteis para pessoas como
eu. Do contrário, haveria gente desmaiando em todos os cantos, lá dentro.
A leve covinha no queixo de Ramon aprofundou-se quando ele sorriu.
- As cobras são muito benéficas para a humanidade. Elas comem roedores, insetos...
- Por favor! - Katie estremeceu, erguendo a mão em protesto. - Não precisa me descrever todo o
cardápio.
Fitando-a com uma expressão divertida, Ramon persistiu:
- Mas é um fato indubitável que elas são muito úteis e necessárias ao equilíbrio da natureza.
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Katie levantou-se devagar, ainda um tanto zonza, e enviou-lhe um olhar enviesado.
- É mesmo? Pois eu nunca ouvi falar em algo que uma cobra faz que qualquer coisa de aparência
menos repulsiva não possa fazer ainda melhor.
O narizinho dela enrugou-se de nojo, e Ramon sorriu pensativo, fitando os brilhantes olhos azuis.
- Nem eu - ele admitiu.
Continuaram o passeio pelo parque e Katie não podia lembrar-se de um encontro tão tranquilo e
agradável. Ramon mostrava-se sempre impecavelmente gentil, segurando-lhe o braço quando desciam
escadas ou rampas, demonstrando um cavalheirismo quase antiquado na maneira como condescendia
com seus mínimos desejos.
Quando chegaram à ilhota onde ficavam os macacos, pavões e outros animais interessantes, mas não
tão raros, Katie usou a maior parte do segundo filme da máquina. Pegando um punhado de pipocas do
saquinho que Ramon segurava para ela, inclinou-se na cerca que isolava a pequena ilha, e foi atirando o
milho para os patos. Aquela posição provocante, embora não fosse intencional, fazia com que o tecido
da calça comprida se colasse aos contornos graciosos dos quadris e do traseiro, oferecendo uma visão
encantadora a Ramon, que desfrutava dela completamente.
Sem saber onde a atenção dele estava focalizada, Katie olhou-o por cima do ombro.
- Quer uma foto disso? - ela perguntou.
- Do quê? - ele indagou, sorrindo.
- Da ilha - Katie falou, intrigada com a expressão divertida no rosto dele. - Este filme está quase
acabando. Vou lhe dar os dois e, depois que você mandar revelar, terá uma boa lembrança de seu
passeio ao Zoológico de St. Louis.
Ele fitou-a, surpreso.
- Essas fotos são para mim?
- É claro - ela respondeu, servindo-se de mais um punhado de pipocas.
- Se eu soubesse que eram para mim - ele falou sorrindo -, iria preferir algo mais do que apenas ursos e
girafas, para me lembrar deste dia.
Katie arqueou a sobrancelha com um ar de interrogação.
- Está se referindo às cobras, não é? Bem, se quiser, eu lhe mostro como usar a máquina e você vai
sozinho à Casa dos Répteis, enquanto espero aqui.
- Não - ele disse, ao se afastarem da cerca. - Eu não estava me referindo às cobras.
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A caminho de casa, pararam numa mercearia para que Katie comprasse café. Num impulso, ela decidiu
convidar Ramon para um lanche rápido, e acrescentou uma garrafa de vinho tinto e alguns queijos às
suas compras.
Ramon acompanhou-a até a porta, mas quando Katie convidou-o para entrar, ele hesitou um pouco,
antes de finalmente concordar.
Menos de uma hora depois, ele levantou-se para sair.
- Preciso trabalhar esta noite - explicou. Sorrindo, Katie foi pegar a máquina fotográfica.
- Ainda há uma pose neste filme. Fique parado aí, vou tirar uma foto sua e lhe entrego os dois filmes.
- Não. Guarde até amanhã. Quero tirar uma foto sua, quando formos ao piquenique.
Katie considerou a ideia de sair novamente com ele. Pela primeira vez em muito tempo sentira-se à
vontade e despreocupada, mas, mesmo assim...
- Não, eu não posso aceitar. Mas obrigada pelo convite. Ramon era alto, viril e sexy, não havia dúvida
quanto a isso, mas essa masculinidade tão explícita ainda a repelia mais do que atraía. Além disso, na
verdade eles não tinham nada em comum.
- Por que você olha para mim e depois desvia os olhos, como se desejasse que não estivesse me vendo?
- ele perguntou de repente.
Katie encarou-o.
- Eu... eu não faço isso.
- Faz, sim - ele afirmou, implacável.
Ela pensou em mentir, mas mudou de ideia ao sentir a intensidade daqueles olhos escuros.
- Você me faz lembrar de alguém que já morreu. Ele também era alto, moreno e... bem, tinha essa
aparência... máscula, como você.
- A morte dele causou-lhe muito sofrimento?
- A morte dele me trouxe um grande alívio - ela falou, enfática. - Antes de ele morrer, houve vezes em
que desejei ter coragem de matá-lo com minhas próprias mãos!
Ramon deu uma risadinha.
- Que vida tão sombria e sinistra você teve, para alguém tão jovem e bonita.
Katie, que era conhecida e amada por sua personalidade alegre, apesar das lembranças dolorosas que
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guardava dentro de si, enviou-lhe um sorriso luminoso.
- Suponho que seja melhor ter uma vida sombria e sinistra do que uma vida tediosa - disse.
- Mas você é entediada - ele falou. - Percebi isso desde o primeiro momento em que a vi, naquele bar.
Com a mão na maçaneta da porta, ele virou-se e olhou-a.
- Amanhã venho buscá-la ao meio-dia. Eu providencio a comida. - Sorrindo diante da surpresa e
indecisão que ela exibia, acrescentou: - E você pode providenciar um sermão sobre como sou grosseiro
em insistir, e não pedir, que você vá passear comigo.
Foi apenas naquela noite, quando saiu cedo de uma tumultuada festa no apartamento de uma amiga
porque estava entediada, que Katie considerou seriamente as últimas palavras de Ramon. Seria o tédio
o motivo de sua crescente inquietação, daquela insatisfação vaga e inexplicável que crescia dentro dela
nos últimos meses?, perguntou-se, enquanto vestia o pijama de seda. Não, concluiu após um momento
de meditação, sua vida podia ser tudo, menos tediosa. Às vezes até aconteciam coisas demais.
Sentada no sofá da sala, Katie traçou, distraída, a ponta do dedo pela capa do livro em seu colo, os
olhos azuis nublados e sombrios. Se não era tédio, então o que estava acontecendo com ela
ultimamente? Esta era uma pergunta que se fazia com cada vez mais frequência, e com crescente
frustração, pois a resposta sempre lhe fugia. Se ao menos pudesse descobrir o que estava faltando em
sua vida, então poderia tentar fazer alguma coisa a respeito.
Mas nada estava lhe faltando, Katie disse a si mesma com firmeza. Impaciente com seu
descontentamento, relacionou mentalmente os motivos que tinha para ser feliz: aos 23 anos, já possuía
um diploma e conseguira um emprego maravilhoso e estimulante, que lhe pagava muito bem. Mesmo
se não tivesse um salário, o fundo de reservas que seu pai estabelecera para ela anos antes lhe garantiria
uma soma de dinheiro maior do que ela necessitava. Tinha um belo apartamento e os armários repletos
de roupas. Era atraente aos homens; tinha bons amigos e sua vida social era intensa e animada. Seus
pais eram carinhosos, preocupavam-se com ela e, portanto, tinha... tudo!, garantiu a si mesma.
O que mais poderia querer, ou precisar, para ser mais feliz? ”Um homem”, Karen diria, como sempre.
Um leve sorriso surgiu nos lábios de Katie. ”Um homem” não era, definitivamente, a resposta aos seus
problemas. Já conhecera dezenas de homens, portanto não era a falta de companhia masculina o motivo
daquela sensação inquietante, ansiosa e de vazio.
Katie, que sempre desprezara qualquer coisa que se aproximasse da autopiedade, tratou de se
recompor. Não havia nenhuma desculpa para sua infelicidade, nenhuma. Ela tinha muita sorte! As
mulheres em todo mundo ansiavam por uma carreira de sucesso; lutavam para ser independentes e
auto-suficientes; sonhavam com a segurança financeira. E ela, Katie Connelly, possuía tudo isso com
apenas 23 anos de idade.
- Eu tenho tudo o que desejo - disse em voz alta, com determinação, abrindo o livro.
Ficou olhando para a confusão de palavras na página, enquanto, em algum lugar de seu coração, uma
voz gritava: Não é o bastante. Isso não significa nada. Eu não significo nada.
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CAPÍTULO 4
FORAM AO PARQUE da Floresta fazer o piquenique, e Ramon estendeu a manta, que Katie levara,
sob um enorme e frondoso carvalho, onde se deliciaram com os frios e queijos importados e os pães
crocantes que ele havia comprado.
Enquanto conversavam e comiam, Katie estava vagamente ciente da maneira apreciadora com que ele a
fitava, e em como a atenção dele dirigia-se para seus cabelos, que lhe caíam pelos ombros sempre que
se inclinava sobre a cesta de piquenique. Porém, estava divertindo-se tanto que nem mesmo
incomodou-se com isso.
- Creio que nos Estados Unidos é costume trazer frango frito em piqueniques - disse Ramon, quando
houve uma pausa na conversa. - Infelizmente, eu não sei cozinhar. Se fizermos outro piquenique, eu
compro os ingredientes e deixo que você prepare a comida.
Katie quase engasgou com o vinho Chianti que estava bebendo num copo de plástico.
- Mas que suposição mais terrivelmente chauvinista!
- disse, rindo. - Por que você presume que eu saiba cozinhar?
Estendendo-se na manta, Ramon apoiou-se no braço e encarou-a com seriedade exagerada.
- Porque você é mulher, é claro.
- Você... está falando sério? - ela gaguejou.
- Sobre você ser mulher? Ou sobre sua capacidade de cozinhar? Ou sobre você?
Katie percebeu a pontinha de sensualidade que surgiu na voz dele, quando pronunciou as últimas
palavras.
- Sobre essa ideia de que todas as mulheres são capazes de cozinhar - respondeu com frieza.
O sorriso dele alargou-se diante daquela evasiva.
- Eu não disse que todas as mulheres são boas cozinheiras, apenas acho que as mulheres devem
cozinhar. Os homens devem trabalhar para comprar a comida que elas preparam. É assim que devem
ser as coisas.
Katie encarou-o com incredulidade, quase convencida de que ele zombava dela deliberadamente.
- Bem, talvez você fique surpreso em saber, mas nem todas as mulheres nascem com o desejo ardente
de picar cebolas e ralar queijo.
Ramon sufocou um risinho, depois mudou de assunto:
- Em que você trabalha?
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- Trabalho no departamento de pessoal de uma grande empresa. Entrevisto candidatos para empregos,
coisas assim.
- E você gosta disso?
- Muito - ela disse, tirando uma enorme maçã vermelha de dentro da cesta. Puxou as pernas para junto
do corpo e deu uma mordida na maçã suculenta. - Está uma delícia.
- É uma pena - ele falou. Katie fitou-o, surpresa.
- É uma pena que a maçã esteja boa?
- Não, é uma pena que você goste tanto de seu trabalho. Talvez se ressinta por ter de abandoná-lo
quando se casar.
- Abandoná-lo quando eu...! - Katie repetiu rindo, balançando a cabeça. - Ramon, você tem sorte de
não ser norte-americano. Nem mesmo está a salvo, neste país. Existem mulheres que seriam capazes de
cozinhar você pela maneira como pensa.
- Eu sou norte-americano - ele disse, ignorando o aviso dela.
- Mas você disse que é porto-riquenho.
- Eu disse que nasci em Porto Rico. Na verdade, sou espanhol.
- Você acabou de dizer que é porto-riquenho e norteamericano.
- Katie - ele disse, provocando-lhe um inexplicável arrepio de prazer ao pronunciar seu nome. - Porto
Rico faz parte da comunidade norte-americana. Todos que nascem nesse país são, automaticamente,
cidadãos norte-americanos. Meus ancestrais, no entanto, eram todos espanhóis, e não porto-riquenhos.
Portanto, eu sou, americano, nascido em Porto Rico e descendente de espanhóis. Exatamente como
você é... - Ele examinou-lhe a pele clara, os olhos azuis e os cabelos avermelhados. - Como você é
norteamericana, nascida nos Estados Unidos e descendente de irlandeses.
Katie sentiu-se irritada com o tom de superioridade com que ele fez o discurso.
- Na verdade, você é um macho chauvinista espanhol porto-riquenho-norte-americano da pior espécie!
- Por que usar esse tom de voz comigo? Só porque acredito que, quando uma mulher se casa, sua
obrigação é cuidar do marido?
Katie enviou-lhe um olhar de desprezo.
- Não importa no que você acredita, o fato é que muitas mulheres precisam ter outros interesses e
realizações fora do lar, exatamente como os homens têm. Nós gostamos de ter nossas carreiras e
profissões, e nos orgulhamos disso.
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- Uma mulher pode orgulhar-se de cuidar do marido e dos filhos.
Katie sabia que nada, nada do que dissesse apagaria aquele sorriso complacente do rosto dele.
- Para nossa sorte, os homens que nascem nos Estados Unidos não fazem objeções às carreiras de suas
esposas. Eles são mais compreensivos e atenciosos!
- Sim, eles são muito compreensivos e atenciosos Ramon assentiu, irónico. - Eles permitem que vocês
trabalhem, deixam que lhes entreguem todo o dinheiro que ganham, permitem que tenham seus filhos e
que contratem alguém para cuidar das crianças, para limpar a casa e... fazer a comida.
Katie ficou por um momento emudecida diante daquela colocação, mas logo atirou a cabeça para trás e
deu uma gargalhada.
- Você está absolutamente certo! - disse.
Ramon deitou-se ao lado dela, apoiando-se nas mãos cruzadas sob a cabeça e olhando para o céu azul
pontilhado de nuvens brancas como algodão.
- Você tem um riso muito agradável, Katie.
Ela deu outra mordida na maçã e disse alegremente:
- Você está dizendo isso apenas porque pensa que mudei de ideia, mas não mudei. Se uma mulher
deseja seguir uma carreira, deve ter a chance de segui-la. Além disso, muitas mulheres querem ter casas
melhores e roupas mais caras do que seus maridos podem lhes proporcionar com apenas seus salários.
- Então ela consegue uma bela casa e boas roupas à custa do orgulho do marido, indo trabalhar e
provando a ele, e a todo mundo, que o que ele lhe dá não é bom o bastante.
- Os maridos norte-americanos talvez não sejam tão orgulhosos quanto os espanhóis.
- Os maridos norte-americanos abdicaram de suas responsabilidades. Eles não têm nada de que se
orgulhar.
- Ora, que tolice! - Katie exclamou. - Você iria querer levar a garota a quem amasse e com quem se
casasse para morar num bairro como o Harlem, porque isso é o melhor que pode proporcionar a ela
com o que ganha dirigindo aquele caminhão? Mesmo sabendo que, se ela trabalhasse, fazendo algo de
que gosta, os dois poderiam ter muito mais?
- Eu esperaria que ela ficasse feliz com o que eu pudesse lhe dar.
Katie sentiu um arrepio diante da perspectiva de uma meiga jovem hispânica ser obrigada a morar
numa favela porque o orgulho de Ramon não permitiria que ela trabalhasse. Ele acrescentou num tom
baixo:
31
- E eu não gostaria que ela se envergonhasse do que faço para o meu sustento, como você se
envergonha.
Katie ouviu a censura contida naquelas palavras, mas manteve-se firme.
- Você nunca desejou fazer algo melhor do que dirigir um caminhão de entregas?
A resposta dele demorou a chegar, e Katie desconfiou que ele a rotulava como uma mulher insistente e
ambiciosa.
- Eu faço algo além disso. Também trabalho numa fazenda.
Katie endireitou o corpo.
- Você trabalha numa fazenda? Aqui no Estado de Missouri?
- Em Porto Rico - ele corrigiu-a.
Katie não soube dizer se estava aliviada ou desapontada pelo fato de ele não permanecer em St. Louis.
Percebeu que ele fechava os olhos por um instante e permitiu-se um exame mais demorado daquele
rosto emoldurado por fartos cabelos escuros. Havia uma nobreza hispânica estampada em seus traços
de bronze, autoridade e arrogância nas linhas firmes das faces e do nariz reto, determinação no queixo
empinado. Ainda assim, Katie pensou com um sorriso, a leve covinha no queixo e os cílios longos e
espessos suavizavam o efeito geral. Os lábios dele eram firmes, com um formato sensual, e foi com um
lampejo de excitação que ela imaginou como seria senti-los movendo-se quentes sobre os seus. No dia
anterior ele lhe dissera ter 34 anos, mas Katie achou que agora parecia mais jovem, com a expressão
relaxada pelo sono.
Deixou seu olhar vagar lentamente pelo corpo longo e musculoso estendido ao seu lado na manta. A
camisa pólo vermelha que ele usava colava-se nos ombros largos e no peito, as mangas curtas expondo
a força de seus braços. A calça jeans acentuava os quadris estreitos, a barriga lisa e as coxas firmes.
Mesmo dormindo, ele parecia exalar uma virilidade poderosa e selvagem, mas isso não mais a repelia.
De alguma forma, tendo admitido que ele a fazia lembrar-se um pouco de David, ela havia banido de
sua mente toda semelhança entre os dois homens.
Os olhos dele não se abriram, mas a linha de seus lábios moveu-se num meio sorriso.
- Espero que esteja gostando do que vê. Katie desviou rapidamente o olhar, embaraçada.
- Estou mesmo. O parque está lindo hoje, as árvores...
- Você não estava olhando para as árvores, senorita. Katie achou melhor não responder. E ficou
contente por ele tê-la chamado de senorita, uma expressão que soava estrangeira e estranha para ela,
enfatizando as diferenças entre eles e neutralizando o efeito que sua ostensiva masculinidade estava
provocando nela. O que estava pensando, querendo que ele a beijasse? Envolver-se com Ramon levaria
apenas ao desastre. Não tinham nada em comum, vinham de mundos em tudo diferentes. Socialmente,
estavam a anos-luz de distância. No dia seguinte, por exemplo, ela deveria comparecer a um churrasco
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na elegante casa de seus pais, nos arredores do Clube de Campo de Forest Oaks. Ramon jamais se
adaptaria ao tipo de gente que estaria lá. Sentir-se-ia deslocado se ela o levasse. Estaria fora de seu
ambiente. E, no instante em que seus pais descobrissem que ele era um trabalhador rural que dirigia um
caminhão de entregas durante o verão, era bem provável que deixassem claro a Ramon que achavam
que o lugar dele não era ali naquela casa, tampouco com a sua filha.
Ela não tornaria a ver Ramon depois daquele dia, Katie decidiu com firmeza. Jamais poderia haver
qualquer coisa entre eles, e aquele princípio de reação sexual que sentira em relação a ele era um
motivo mais do que sólido para que interrompesse tal relacionamento imediatamente. Isso nunca
levaria a algo significativo nem duradouro.
- Por que se afastou de mim, Katie?
Os penetrantes olhos negros estavam abertos, examinando-lhe o rosto. Katie fingiu concentrar-se na
tarefa de ajeitar a manta sob si, e depois deitou-se.
- Não sei o que você está dizendo - falou, fechando os olhos e deliberadamente ignorando-o.
A voz dele era baixa e sensual.
- Quer saber o que vejo, quando olho para você?
- Não - ela apressou-se em responder. - Sobretudo se você vai se portar como um ardente amante latino.
E, pelo tom de sua voz, acho que é isso mesmo que pretende.
- Tentou relaxar, mas no silêncio carregado que se seguiu, isso foi impossível. Minutos depois,
levantou-se abruptamente. - Acho que está na hora de irmos embora - anunciou, ajoelhando-se e
começando a recolher os remanescentes do piquenique.
Sem nada dizer, Ramon também levantou-se e dobrou a manta.
O silêncio tenso durante o trajeto até o apartamento foi quebrado apenas por Katie que, na esperança de
retratar-se pela sua grosseria, fez duas tentativas de conversa, apenas para ser repelida pelas respostas
monossilábicas de Ramon. Ela sentia-se envergonhada de seus pensamentos esnobes, constrangida pela
maneira como falara com ele, e irritada porque Ramon não lhe permitia suavizar o clima entre eles.
Quando ele entrou na vaga do estacionamento na frente do apartamento dela, Katie só queria dar aquele
dia por encerrado, embora fossem apenas três horas da tarde. Antes que Ramon tivesse a chance de dar
a volta para abrir-lhe a porta do carro, ela mesma abriu-a e pulou para fora.
- Vou abrir a porta para você - ele disparou. - É um gesto básico de cortesia.
Katie, que pela primeira vez deu-se conta de que ele estava extremamente irritado, logo foi contagiada
por tal obstinação.
- Talvez você fique surpreso em saber - anunciou, enquanto subia os degraus quase correndo e enfiava
a chave na fechadura da porta -, mas não há nada de errado com minhas mãos, e sou perfeitamente
capaz de abrir uma maldita porta de carro. E não vejo por que precisa ser gentil comigo, depois de eu
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ter sido muito grosseira com você!
O humor irritado daquele comentário não passou despercebido a Ramon, mas foi totalmente eclipsado
pelo que se seguiu. Enquanto Katie abria a porta do apartamento, virou-se na soleira e disse, furiosa:
- Obrigada, Ramon. Eu me diverti muito.
Sem fazer ideia de que ele começara a rir, Katie ficou aliviada ao ver que ele não estava mais zangado
e, de repente, sentiu-se inquieta pela maneira como Ramon a seguiu para dentro do apartamento,
fechou a porta com firmeza e, agora, a fitava com uma expressão que não deixava dúvidas sobre o que
pretendia.
As palavras que disse com suavidade eram em parte um convite, em parte uma ordem:
- Venha aqui, Katie.
Ela balançou a cabeça e deu um cauteloso passo para trás, mas, em resposta, um arrepio percorreu-lhe a
espinha.
- Não é costume, entre as mulheres liberadas, demonstrar sua apreciação com um beijo, por terem ”se
divertido muito”? - ele persistiu.
- Nem todas fazem isso - ela respondeu, a voz trémula.
- Algumas dizem apenas ”obrigada”.
Um leve sorriso surgiu nos lábios dele, mas os olhos negros deslizaram até a convidativa maciez da
boca de Katie, ali demorando-se.
- Venha aqui, Katie. - Quando ela continuou recuando, ele acrescentou num tom mais baixo: - Não está
curiosa em saber como os espanhóis beijam, ou como os porto-riquenhos fazem amor?
Ela engoliu em seco.
- Não - sussurrou.
- Venha cá, Katie, e eu lhe mostro.
Hipnotizada por aquela voz de veludo e pelos olhos negros, Katie foi até ele numa espécie de transe,
que era um misto de temor e excitação.
O que quer que esperava encontrar, quando caminhou para os braços de Ramon, não foi aquele abraço
forte e apertado que a envolveu numa suave escuridão, onde a única sensação era a dos lábios dele
movendo-se incessantemente sobre os seus; a sensação de ondas de calor liquefeito que a percorriam
enquanto ele a acariciava.
- Katie - Ramon sussurrou com voz rouca, afastando os lábios dos dela e beijando seus olhos, faces,
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têmporas.
- Katie... - repetiu num murmúrio doloroso, enquanto tomava posse novamente de sua boca.
Uma eternidade se passou, antes que ele finalmente erguesse a cabeça. Fraca e trémula, Katie recostou
o rosto em seu peito firme e sentiu o coração bater enlouquecido. Sentia-se devastada pelo que acabara
de acontecer. Fora beijada muitas e muitas vezes, e por homens cujas técnicas tinham sido
aperfeiçoadas a ponto de se tornarem uma espécie de arte. Nos braços deles sentira prazer, mas não
aquele intenso fluxo de alegria, seguido de um desejo penetrante. Os lábios de Ramon roçaram-lhe os
cabelos.
- E agora, posso dizer o que penso, quando olho para você?
Katie tentou manter a voz firme, mas descobriu que esta estava tão enrouquecida quanto a dele.
- Você vai se comportar como um ardente amante latino?
- Sim.
- Tudo bem.
Ele riu baixinho, um som quente e rico.
- Eu vejo uma bela mulher de cabelos avermelhados e com o sorriso de anjo; e lembro-me de uma
princesa que parecia perdida naquele bar de solteiros, muito desgostosa com seus súditos. Então, ouço
uma feiticeira dizendo, a um homem que tentava conquistá-la, que suas companheiras de apartamento
eram duas lésbicas. - Ramon deslizou a mão pelo rosto dela, os dedos leves e suaves. - quando olho
para você, acho que você é a minha princesa, meu anjo e minha feiticeira.
A maneira como ele referiu-se a ela como ”sua” fez com que Katie voltasse subitamente para a
realidade. Afastando-se dele de repente, disse com falsa animação:
- Gostaria de dar uma volta na piscina? Vai ser aberta hoje e todos os moradores do condomínio estarão
lá.
Enquanto falava, Katie enfiou as mãos nos bolsos traseiros da calça, mas ao captar a maneira como ele
fitava o contorno de seus seios sob a camiseta, apressou-se em removê-las e endireitar o corpo.
Ramon arqueou a sobrancelha, intrigado, perguntando em silêncio por que ela fazia objeção ao fato de
ele estar olhando-a quando, minutos antes, a acariciara.
- Sim, é claro - respondeu. - Gostaria muito de ver a piscina e conhecer seus amigos.
Mais uma vez Katie sentiu-se pouco à vontade com ele. Afinal, Ramon era um desconhecido, um
estrangeiro que parecia intensamente interessado nela. Além disso, ela agora estava desconfiada, e com
razão. Sabia muito bem quando um homem pretendia levá-la para a cama, e era isso que ele queria. E o
mais depressa possível.
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Uma porta de correr envidraçada abria-se nos fundos da sala para um pequeno terraço cercado por um
alambrado. Duas espreguiçadeiras, com macias almofadas floridas, foram estrategicamente colocadas
para os banhos de sol. Atrás delas, em ambos os lados, espalhava-se uma profusão de vasos de plantas,
algumas já com botões de flores.
Katie parou ao lado de um vaso de petúnias brancas e vermelhas. Com uma das mãos apoiada no
alambrado, hesitou por um instante, tentando pensar numa maneira de dizer o que queria.
- Você tem um belo apartamento - Ramon comentou atrás dela. - O aluguel deve ser caro.
Katie virou-se, imediatamente considerando o comentário distraído como um meio perfeito para
chamar a atenção dele para as diferenças que os separavam e assim, talvez, esfriar suas ardentes
intenções.
- Obrigada. Na verdade, o aluguel é bem caro. Moro aqui porque meus pais querem ter certeza de que
meus amigos e vizinhos são o tipo certo de pessoas.
- Pessoas ricas?
- Não necessariamente ricas, mas bem-sucedidas e socialmente aceitáveis.
O rosto de Ramon era uma máscara sem qualquer expressão.
- Neste caso, talvez seja melhor que você não me apresente aos seus amigos.
Com um único olhar para aquele rosto orgulhoso e atraente, Katie sentiu-se de novo envergonhada de
si mesma.
Passando a mão agitada pelos cabelos, respirou fundo e, com determinação, confrontou-se com o
verdadeiro problema:
- Ramon, apesar do que acabou de acontecer entre nós, quero que entenda que não vou para a cama
com você. Nem agora, nem nunca.
- Porque sou espanhol? - ele perguntou, sem nada demonstrar.
Katie ruborizou de embaraço.
- Não, claro que não! - Ela sorriu, constrangida. Para usar um chavão, ”eu não sou esse tipo de garota”.
Sentindo-se melhor, agora que tudo estava às claras, virou-se para abrir o portão do alambrado. - Bem,
o que acha de descermos para ver o que está acontecendo na piscina?
- Não acho uma boa ideia - ele respondeu, sarcástico.
- Ser vista em minha companhia poderia lhe causar constrangimentos na frente de seus amigos ”bemsucedidos
e socialmente aceitáveis”.
Katie olhou por cima do ombro para aquele homem alto que, por sua vez, a fitava com uma expressão
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de irónico desprezo. Ela suspirou.
- Ramon, só porque dei a impressão de ser uma idiota presunçosa, você não precisa agir assim também.
Por favor, venha até a piscina comigo, está bem?
O riso brincou nos traços dele, enquanto a olhava. Sem nada dizer, estendeu o braço por cima do ombro
de Katie e abriu-lhe o portão.
A piscina olímpica era um cenário de caos total, como Katie imaginava que seria. Quatro partidas de
pólo aquático estavam sendo disputadas separadamente, com os respectivos participantes gritando e
espirrando água por todos os lados. Garotas de biquini e homens em calções de banho estendiam-se
sobre as toalhas nas espreguiçadeiras, os corpos besuntados de bronzeador tostando sob o sol. Latas de
cerveja e rádios portáteis estavam em toda parte, e a música jorrava dos alto-falantes.
Katie encaminhou-se para uma das mesas cobertas por guarda-sóis e puxou uma cadeira de alumínio.
- O que está achando disso tudo? - perguntou, quando Ramon sentou ao seu lado.
Ele passou o olhar enigmático pelo colorido pandemônio.
- Interessante.
- Olá, Katie! - Karen chamou, emergindo da piscina como uma graciosa sereia, o corpo voluptuoso
reluzindo com a água. Como sempre, Karen estava acompanhada de pelo menos dois rapazes
devotados, que a seguiram pingando até a mesa onde se encontravam Katie e Ramon.
- Você conhece Don e Brad, não é? - ela perguntou, indicando os dois rapazes que também moravam
no condomínio.
Katie os conhecia e não demorou muito a perceber que o que Karen estava esperando era que ela a
apresentasse a Ramon.
Com uma certa relutância, Katie fez as apresentações. Tentou não reparar no evidente sorriso de
apreciação que surgiu nos lábios de Ramon, ao ser apresentado a Karen, nem na reação efusiva da
amiga quando estendeu a mão para ele.
- Por que vocês não vão mudar de roupa e voltam para nadar um pouco? - Karen convidou, sem tirar os
olhos de Ramon. - Haverá uma bela festa ao pôr-do-sol. Vocês também precisam participar.
- Ramon não trouxe nenhuma roupa de banho - Katie apressou-se em recusar.
- Isso não é problema - a desembaraçada Karen respondeu, desviando os olhos de cima de Ramon pela
primeira vez desde que saíra da piscina. - Brad pode emPrestar um calção para ele, não é, Brad?
Brad, que tentava conquistar Karen havia quase um ano, deu a impressão de que preferia emprestar a
Ramon uma passagem de ida para qualquer lugar longe da cidade, mas foi educado o bastante para
confirmar o oferecimento. E como poderia evitar? Poucos homens eram capazes de negar qualquer
coisa a Karen, pois ela sempre parecia prometer muito em troca. Karen tinha a mesma altura que Katie,
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cerca de 1,75 m, porém havia uma sensualidade latente em seu corpo sinuoso e nos cabelos escuros que
a faziam parecer uma fruta madura, pronta para ser colhida, mas apenas pelo homem que ela
escolhesse. A independência que reluzia em seus olhos verdes deixava bem claro que ela fazia as suas
próprias escolhas. E, pelo jeito que ela observava Ramon afastar-se com Brad para vestir o calção de
banho, ficou evidente para Katie que ela o escolhera.
- Onde foi que você o encontrou? - Karen perguntou, quase com reverência. - Ele parece um deus
grego... ou os deuses gregos eram loiros? Bem, de qualquer forma, parece um deus grego moreno.
Katie resistiu ao impulso pouco caridoso de esfriar o interesse de Karen informando-a de que Ramon
era um trabalhador rural porto-riquenho.
- Eu o conheci no Canyon Inn, sexta-feira à noite respondeu, em vez disso.
- É mesmo? Eu não o vi por lá, e é quase impossível não reparar num sujeito como ele. O que ele faz,
além de ser lindo e sexy?
- Ele... - Katie hesitou, tentando poupar Ramon de qualquer possível constrangimento. - Trabalha no
ramo de transportes. De entregas, na verdade.
- Sério? - Karen falou, lançando a Katie um olhar investigativo. - Já é sua propriedade privada ou ainda
está no mercado?
Katie não pôde evitar de sorrir diante da franqueza de Karen.
- E isso faria alguma diferença para você?
- Você sabe que sim. Nós somos amigas. Se você me disser que o quer, eu desisto.
Por mais estranho que parecesse, Katie sabia que ela falava a sério. Karen possuía um código de ética
pessoal, e jamais roubaria o homem de uma amiga. Ainda assim, Katie sentiu-se um tanto exasperada
pela presunção imediata de Karen de que poderia conquistar Ramon, a não ser que, levada pelo espírito
da amizade, decidisse não fazê-lo.
- Pois pode servir-se à vontade - Katie falou com uma indiferença que realmente não sentia. - Ele é
todo seu, se quiser. Vou trocar de roupa.
Enquanto vestia o biquini em seu apartamento, Katie estava irritada consigo mesma por não ter falado a
Karen que deixasse Ramon em paz. E estava igualmente irritada por perceber que dava tanta
importância a isso. Além do mais, sentia-se um pouco abalada pela franca admiração que vira na
expressão de Ramon, quando ele olhara para a lasciva figura de Karen usando biquini.
Katie parou diante do espelho, analisando de forma crítica a própria aparência. O biquini azul vivo
revelava um corpo admirável em todo seu esplendor, desde os seios cheios e perfeitos, a cintura fina e
os quadris arredondados até as pernas longas e bem torneadas. Com uma pontinha de desgosto, Katie
pensou que devia ser a única mulher capaz de parecer tão fria e séria mesmo estando praticamente
despida!
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Os homens assoviavam com aprovação para garotas como Karen Wilson, mas mantinham-se num
silêncio respeitoso quando Katie Connelly passava. A maneira como ela erguia de leve seu queixo
orgulhoso e a graça natural com que se movia sempre a faziam parecer um tanto arrogante, e Katie não
tinha como mudar essa imagem mesmo se quisesse, o que normalmente não queria.
Exceto quando ia aos bares de solteiros, era raro que Katie fosse abordada por homens desconhecidos.
Não tinha uma aparência ”abordável”. Como regra geral, bastava os homens olharem para sua pele
imaculada e olhos muito azuis para verem a beleza clássica, em vez do apelo sexual. Esperavam que
ela fosse distante, intocável, e tratavam-na com respeitosa admiração. Depois que a conheciam bem o
bastante para saber que ela era amigável e acolhedora, também descobriam que de nada adiantaria
pressioná-la para que ela entregasse mais do que estava disposta a dar. Conversavam com ela, riam e
convidavam-na para sair, mas suas tentativas na direção do sexo em geral eram mais verbais do que
físicas. Insinuações murmuradas que Katie sempre ignorava com um sorriso, embora com firmeza.
Katie escovou os cabelos volumosos e depois sacudiu-os até tomarem a forma casual e descuidada de
sempre, depois lançou mais um olhar insatisfeito para o espelho.
Quando voltou para a piscina, encontrou Ramon deitado numa espreguiçadeira ao lado de três garotas,
que haviam estendido suas toalhas no chão e flertavam descaradamente com ele. Karen estava sentada
a uma mesa do outro lado, em companhia de Brad e Don.
- Posso juntar-me ao seu harém, Ramon? - Katie provocou-o, parando diante dele com um leve sorriso
nos lábios.
Um sorriso lento e devastador perpassou o rosto bronzeado quando ele ergueu os olhos para ela.
Depois, levantando-se com agilidade, Ramon ofereceu-lhe a espreguiçadeira. Por dentro, Katie
suspirou. Poderia muito bem ter aparecido na piscina usando uma capa de chuva, pensou. Nem uma
vez o olhar dele deslizara para baixo de seu pescoço.
Ele foi sentar-se à mesa com Karen e os dois rapazes.
Tentando ignorar as emoções desencontradas que a invadiam, Katie começou a passar o bronzeador nas
pernas.
- Sou especialista nisso, Katie - Don falou, sorrindo para ela. - Precisa de ajuda?
Katie encarou-o com um sorriso desencorajador.
- Minhas pernas não são assim tão compridas - recusou. Ao contrário de Brad, Don não estava
completamente obcecado por Karen, e Katie já pressentira nos últimos meses que, se lhe desse o menor
sinal de encorajamento, ele substituiria seu interesse de Karen para ela com toda facilidade. Estava
espalhando o creme no braço esquerdo quando ouviu Karen dizer:
- Katie contou-me que você trabalha no ramo de transportes, Ramon.
- Ah, ela contou, é? - Ramon falou devagar, com sarcasmo bastante para que Katie parasse o que estava
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fazendo e olhasse para ele.
Estava recostado na cadeira com um fino charuto preso entre os dentes muito brancos, os olhos
penetrantes fixos nos dela. Katie ruborizou e desviou o rosto rapidamente.
Poucos momentos depois, Karen fez de tudo para levá-lo para nadar com ela, mas recebeu uma recusa
firme e gentil.
- Você sabe nadar? - Katie perguntou, quando os outros se afastaram.
- Porto Rico é uma ilha, Katie - ele respondeu com frieza. - O oceano Atlântico fica de um lado e o mar
do Caribe, do outro. Não há escassez de água para se nadar.
Katie encarou-o, um pouco intrigada. Desde o momento em que ele a beijara, em seu apartamento, uma
sutil transferência de poder estivera ocorrendo. Até então ela sentira-se confiante e no controle da
situação. Agora, estava confusa e estranhamente vulnerável, enquanto Ramon parecia seguro de si e no
comando das decisões. Encolhendo o ombro, ela disse:
- Eu ia apenas me oferecer para ensiná-lo a nadar, caso você não soubesse. Não há necessidade de darme
uma aula sobre a geografia de Porto Rico.
Ignorando o seu tom irritado, ele falou:
- Se você quiser nadar, vamos nadar.
Katie prendeu o fôlego quando ele levantou-se e ficou parado à sua frente, vestido apenas com o calção
branco de Brad. Quase 1,90m de esplêndida masculinidade, ombros largos e quadris estreitos, os
músculos firmes de um atleta. O peito era coberto por uma fina camada de pêlos escuros e, quando ela
também se levantou, manteve os olhos focalizados na medalha de prata que ele trazia no pescoço.
Desconcertada e constrangida pela maneira como aquele corpo bronzeado a afetava, Katie não olhou
para ele até dar-se conta de que Ramon não pretendia sair da sua frente. Quando, por fim, ergueu os
olhos até os dele, ouviu-o dizer:
- Também acho que você está ótima.
Um sorrisinho incontrolável surgiu nos lábios dela.
- Pensei que você não tivesse reparado - ela disse, enquanto dirigiam-se para a piscina.
- Pois achei que você não queria que eu ficasse olhando.
- Você olhou para Karen, sem dúvida - Katie apanhou-se dizendo. Balançou a cabeça, atónita consigo
mesma, e acrescentou: - Eu não pretendia dizer isso.
- Não - ele falou, divertido. - Tenho certeza que não. Preferindo esquecer aquela conversa, Katie foi
para o lado mais fundo da piscina e mergulhou, atravessando-a por baixo d’água numa linha reta.
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Ramon estava bem ao lado dela, acompanhando suas fortes braçadas com uma facilidade que ela teve
de admirar. Deram vinte voltas na piscina, antes que Katie parasse. Ficou observando Ramon
completar mais dez voltas e então chamou-o, rindo:
- Exibido!
Com um mergulho, ele desapareceu de suas vistas. Katie deu um gritinho assustado quando um par de
mãos segurou-a pelas pernas e puxou-a para o fundo. Ao voltar à superfície, lutava para respirar e os
olhos ardiam pelo cloro.
- Isso foi uma infantilidade! - protestou com uma risonha severidade, quando Ramon passou as mãos
nos cabelos molhados e sorriu para ela. - Quase tanto quanto... isso! - Espalmando a mão na água,
lançou um jato bem no rosto dele, depois desviou e nadou para longe, tentando evitar a represália.
Mas Ramon a seguiu e ficaram ali por cerca de quinze minutos, rindo, mergulhando e brincando até
que ambos estivessem exaustos e ofegantes.
Katie saiu da piscina e foi para a espreguiçadeira, entregando-lhe a toalha que trouxera para ele.
- Você joga duro - disse, bem-humorada, inclinando-se para secar os longos cabelos.
Com o peito ofegante pelo exercício, Ramon pendurou a toalha no pescoço e pousou as mãos nos
quadris.
- Se você quisesse, eu poderia ser muito mais delicado. Katie sentiu-se desmanchar por dentro ao
pressentir o significado daquelas palavras. Quase certa de que ele estava referindo-se a fazer amor com
ela, deixou-se cair na espreguiçadeira, virou de bruços e apoiou a cabeça nos braços. Sentiu um arrepio
percorrê-la no instante em que Ramon começou a passar o bronzeador em suas costas, sentando-se ao
seu lado. Ficou tensa quando as mãos dele moviam-se lentamente, massageando-a com movimentos
vagarosos e rítmicos.
- Quer que eu abra o fecho aqui atrás? - ele perguntou.
- Nem pense nisso - Katie avisou.
Quando as mãos dele subiram até seus ombros e os dedos formavam círculos em sua nuca, Katie estava
respirando ofegante e cada milímetro de sua pele parecia vibrar sob aquele toque.
- Estou incomodando você, Katie? - ele perguntou, num sussurro enrouquecido.
- Você sabe que sim - ela murmurou, letárgica, antes mesmo de pensar. Ouviu o risinho satisfeito e
virou a cabeça para ele. - Você está fazendo isso de propósito e está me deixando muito nervosa.
- Neste caso, vou deixá-la relaxar - Ramon, disse levantando-se da espreguiçadeira.
Depois que Ramon se afastou, Katie tentou não pensar no que ele estaria fazendo, e fechou os olhos
com força sob o ardente sol da tarde.
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De vez em quando ouvia a voz profunda e grave seguida por risinhos femininos, ou um dos homens
dizendo alguma coisa para Ramon. Não havia dúvida de que ele estava adaptando-se ao ambiente,
pensou. Mas, então, por que não se adaptaria? A única exigência para a popularidade, por ali, era ter
um corpo atraente, de preferência combinado com uma bela fachada, no caso do sexo feminino. E, para
os homens, ter um bom emprego. E, com sua pequena mentira, Katie havia lhe providenciado a
segunda parte.
O que estava acontecendo com ela?, Katie perguntou-se vagamente. Não tinha nenhum motivo para se
queixar. Apesar das crises de insatisfação que a atingiam ultimamente, quando seu mundo parecia ser
habitado apenas por pessoas fúteis e tolas, ela até que gostava dos flertes ocasionais com homens
confiantes e inteligentes que conhecia. Gostava de ter boas roupas, um belo apartamento e de ser objeto
de tanta admiração masculina. Apreciava a companhia dos homens, embora evitasse cuidadosamente
qualquer intimidade com eles, pois seus desejos físicos nunca foram mais intensos do que a sua
esmagadora necessidade de guardar o que lhe restara do orgulho e do respeito próprio, depois de tudo o
que David fizera.
Rob teria sido o único homem com quem ela se permitiria fazer amor. Felizmente, descobrira que ele
era casado antes que isso acontecesse. O homem certo acabaria aparecendo algum dia, e então ela não
precisaria mais se guardar. O homem certo, e não qualquer homem. Sob nenhuma circunstância Katie
Connelly encontrar-se-ia sentada perto da piscina, ou num bar de solteiros, em companhia de três ou
quatro homens que já conhecessem seu corpo intimamente. Isso acontecia a outras mulheres o tempo
todo, mas Katie achava tal ideia degradante e repulsiva.
- Ei, Katie, acorde! - Don chamou-a.
Ela abriu os olhos e piscou, surpresa ao perceber que havia cochilado, e virou-se na cadeira.
- São quase seis horas. Brad e eu vamos buscar pizzas e cervejas para a festa desta noite. Quer que eu
traga algo mais forte para você e Ramon?
Haveria um leve desprezo na maneira como Don pronunciara o nome de Ramon?
Katie torceu o nariz, encarando seu sorridente admirador.
- Mais forte do que as pizzas da Mamma Romana? Impossível.
Olhou em volta, procurando Ramon, e viu-o encaminhando-se para ela, ladeado por Karen e outra
garota. Sufocando a ridícula sensação de ciúme que a invadiu, Katie dirigiu-se a ele:
- Você quer ficar para a festa? - perguntou.
- É claro que ele quer ficar - Karen respondeu prontamente, no lugar dele.
- Então, por mim, tudo bem. - Katie encolheu os ombros. Ela se divertiria na festa com seus amigos, e
Ramon Poderia divertir-se com Karen e com quem mais escolhesse.
Às 9.30 da noite toda a comida havia sido consumida, juntamente com incontáveis garrafas de cerveja e
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outras bebidas. As luzes da piscina estavam acesas, proporcionando um brilho iridescente à água
cristalina, e os alto-falantes ressoavam com uma música de discoteca. Katie, que adorava dançar,
estivera fazendo exatamente isso por mais de uma hora com diversos parceiros, quando reparou que
Ramon estava afastado de tal atividade, uma figura solitária recostada na grade que cercava a piscina,
observando tudo a distância. Com a silhueta contra a noite, o calção branco realçado na escuridão,
parecia indiferente a tudo e, mesmo assim, de alguma forma, muito solitário.
- Ramon? - Katie chamou ansiosa, aproximando-se dele e pousando a mão em seu braço.
Ele virou-se devagar e olhou para ela, que viu em seu sorriso o prazer que aquele simples toque lhe
provocava. Cautelosa, retirou a mão.
- O que está fazendo aqui, sozinho?
- Precisava me afastar do barulho para pensar um pouco. Você nunca sentiu necessidade de estar
sozinha?
- Sim, é claro - ela admitiu. - Mas não no meio de uma festa.
- Não precisamos ficar aqui, no meio de uma festa ele salientou num tom significativo.
O coração de Katie deu um pulo, que ela apressou-se em ignorar.
- Você quer dançar? - perguntou.
Ele inclinou a cabeça, ouvindo a música agitada que berrava nos alto-falantes.
- Quando danço, gosto de segurar uma mulher em meus braços - respondeu. - Além disso, teria de
esperar na fila pelo privilégio de dançar com você.
- Ramon, você sabe dançar? - Katie insistiu, certa de que ele provavelmente não sabia, e disposta a
oferecer-se para ensiná-lo.
Atirando a cigarrilha num reluzente arco avermelhado, ele respondeu num tom irónico:
Sim, Katie, eu sei dançar, sei nadar, sei amarrar meus sapatos. Só porque tenho este leve sotaque você
parece pensar que sou atrasado e ignorante, mas acontece que muitas mulheres o consideram bastante
atraente.
Katie enrijeceu, furiosa. Empinando o queixo, fitou-o direto nos olhos e disse baixinho:
- Vá para o inferno.
Prestes a se afastar, parou de repente e ofegou de susto, quanto Ramon segurou-a pelo braço e a fez
virar-se de frente para ele.
Num tom que vibrava de raiva, ele disse:
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- Nunca mais fale comigo desse jeito, e nem blasfeme. Você não é assim.
- Eu falo como quiser - ela disparou. - E se tantas mulheres acham você tão infernalmente atraente,
então que façam bom proveito!
Ramon fitou os olhos em brasa e o rosto orgulhoso, e um relutante sorriso de admiração suavizou-lhe
os traços.
- Que diabinha você é - ele riu. - E quando fica zangada...
- Não sou ”diabinha” nenhuma - ela interrompeu-o, irritada. - E se vai dizer que fico linda quando estou
zangada, já vou avisando que sou capaz de morrer de rir. Os homens sempre dizem isso porque
ouviram em algum filme idiota e...
- Katie - Ramon sussurrou, baixando os lábios firmes e sensuais para os dela. - Você fica linda quando
está zangada... e, se rir, vou jogá-la na piscina.
Uma descarga elétrica perpassou-lhe o sistema nervoso, quando Ramon cobriu-lhe os lábios num beijo
longo e profundo. Depois, ele passou o braço em torno da cintura dela, Puxou-a para perto de si e
levou-a para o salão improvisado, onde vários casais dançavam ao som de uma música romântica.
Em voz baixa, Ramon murmurou algo em seu ouvido, enquanto dançavam, mas Katie não entendeu as
palavras. Estava preocupada demais com a inacreditável excitação que as pernas nuas dele e seus
quadris lhe provocavam, quando roçavam de encontro aos seus movendo-se ao ritmo da música. O
desejo espalhava-se dentro dela, dissolvendo toda sua decisão. Queria erguer o rosto e sentir os lábios
dele nos seus; queria ser sufocada com a força daqueles braços e ser levada para o louco e selvagem
esquecimento que ele lhe mostrara antes.
Fechando os olhos com desespero, admitiu a verdade a si mesma. Embora o conhecesse havia apenas
dois dias, ela queria fazer amor com Ramon naquela noite. Queria tanto que se sentia abalada e
atónita... Mas, pelo menos, era capaz de entender a atração física que sentia por ele. O que não
compreendia, e que a amedrontava, era a atração magnética e estranha que sentia por ele,
emocionalmente. Às vezes, quando Ramon falava naquele tom profundo e tentador, ou a fitava com
aqueles olhos penetrantes, Katie quase sentia que ele a estava puxando de forma inexorável para mais
perto de si.
Katie obrigou-se a parar de pensar nisso. Um envolvimento com Ramon seria desastroso, pois eram
completamente incompatíveis. Ele era orgulhoso, pobre e dominador, enquanto ela também era
orgulhosa, rica e, pelos padrões dele, por demais independente. Qualquer relacionamento que tivessem
acabaria apenas em sofrimento e ódio.
Como a mulher inteligente e sensível que era, Katie concluiu que a melhor maneira de fugir do perigo
que Ramon significava seria evitá-lo. Ficaria o mais longe dele que pudesse pelo restante da noite, e se
recusaria terminantemente a tornar a vê-lo. Era tudo muito simples. Exceto que, quando
Os lábios dele roçaram primeiro em sua testa e depois em seu rosto, Katie quase esqueceu que era
sensível e inteligente, e quase entregou-lhe os lábios para receber o beijo ardente que sabia que Ramon
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lhe daria.
No instante em que a música terminou, Katie afastou-se dele. Com um sorriso luminoso colado nos
lábios, encontrou seus olhos indagadores e disse alegremente:
- Por que você não se mistura um pouco com as pessoas e se diverte? Nos encontramos mais tarde.
Pela hora e meia seguinte, Katie flertou com todos os homens que conhecia, e com vários que não
conhecia, exibindo seu lado mais sociável e esfuziante. Os homens seguiam-na para onde quer que
fosse, prontos para dançar, nadar, beber ou fazer amor, de acordo com o que ela quisesse. Katie riu,
bebeu e dançou...
E a todo instante tinha consciência de que Ramon parecia ter aceitado sua sugestão e estava
esbaldando-se na companhia de pelo menos quatro garotas, e sobretudo com Karen, que não saía do
lado dele.
- Katie, vamos dar o fora daqui e procurar um lugar mais sossegado. - A respiração de Don estava
quente em seu ouvido, enquanto dançavam ao ritmo de uma música agitada.
- Detesto lugares sossegados - Katie anunciou, girando para longe dele, indo cair em cima de Brad, que
ficou surpreso, mas não incomodado, ao vê-la sentar de repente em seu colo. - Brad também detesta
lugares quietos, não é?
- É claro que sim - Brad concordou. - Então vamos para o meu apartamento, onde podemos fazer
barulho em Particular.
Mas Katie não estava escutando. Com o canto dos olhos, observava Karen dançando com Ramon. Ela
enlaçava-lhe o pescoço com os dois braços, e o corpo movia-se sinuosamente contra o dele. O que quer
que Karen estivesse dizendo devia ser engraçado, pois Ramon, que estivera sorrindo para ela, de
repente atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Sem saber por quê, Katie ficou magoada com
aquela deserção tão fácil. Redobrando seus esforços para mostrar-se animada, levantou-se e puxou o
relutante Brad.
- Levante-se, preguiçoso, e venha dançar comigo. Brad deixou a lata de cerveja na mesa e encaminhouse
para a pista de dança com o braço nos ombros de Katie, depois prendeu-a num abraço apertado.
- Que diabo está acontecendo com você? - perguntou no ouvido dela. - Nunca a vi agindo desse jeito.
Katie não respondeu, porque estava procurando ansiosamente Ramon e Karen que, como logo
percebeu, não se encontravam mais ali. Sentiu um aperto no peito. Ele saíra da festa com Karen.
Depois de trinta minutos, vendo que eles não retornavam, Katie abandonou toda a pretensão de
divertir-se. Seu estômago estava contraído e, estivesse dançando ou conversando, seus olhos
perscrutavam constantemente as pessoas que iam e vinham, procurando a figura alta e esguia de
Ramon.
Katie não foi a única a perceber o desaparecimento dos dois. Estava dançando de novo com Brad,
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ignorando-o completamente, enquanto espiava os arredores por cima do ombro dele. Então Brad
sibilou com desprezo:
- Por acaso você está procurando aquele ”caipira” que Karen levou para o apartamento dela?
- Não o chame assim! - Katie protestou, afastando-se dos braços dele. Havia lágrimas em seus olhos,
enquanto contornava e desviava-se dos casais que dançavam.
- Aonde você vai? - uma voz autoritária chamou atrás dela.
Katie virou-se e deparou com Ramon. Cerrando os punhos com força, perguntou:
- Onde você estava?
Ele arqueou a sobrancelha.
- Está com ciúmes?
- Até parece! - ela disse, quase engasgando. - Acho que nem mesmo gosto de você!
- Eu também não gosto muito da maneira como você está se comportando esta noite - ele retrucou
calmamente. Então, olhou-a mais de perto. - Está com lágrimas nos olhos. Por quê?
- Porque - ela sussurrou, furiosa - aquele estúpido idiota chamou-o de ”caipira”.
Ramon começou a rir e puxou-a para seus braços.
- Ah, Katie - ele riu e suspirou contra seus cabelos.
- Brad está zangado porque a garota que ele quer foi dar um passeio comigo.
Erguendo a cabeça, Katie examinou-lhe o rosto.
- Vocês só foram dar um passeio?
O riso desapareceu da expressão dele.
- Só um passeio, mais nada. - Seus braços apertaram-se em torno dela, puxando-a mais para si, ambos
movendo-se ao ritmo da música.
Katie recostou o rosto no peito firme e rendeu-se ao prazer, enquanto Ramon acariciava seus ombros
desnudos, depois deslizou a mão lentamente pelas suas costas, obrigando seu corpo lânguido a um
contato íntimo com cada curva das pernas e quadris dele. Uma das mãos fechou-se em torno da nuca de
Katie, acariciando-a com sensualidade, e depois com mais força, num abrupto comando. Emitindo um
suspiro trémulo, Katie obedeceu e levantou o rosto para receber o beijo. Ramon mergulhou a mão em
seus cabelos macios, mantendo-a cativa do intenso ardor de seus lábios.
Quando ele por fim se afastou, respirava ofegante, e o coração de Katie batia descontrolado, o sangue
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latejando em seus ouvidos. Ela olhou para ele e disse em voz baixa:
- Acho que estou ficando com medo.
- Eu sei, minha querida. As coisas estão acontecendo depressa demais para você.
Katie fechou os olhos e engoliu em seco, movendo-se contra ele.
- Por quanto tempo vai ficar aqui, antes de voltar para Porto Rico?
Ramon demorou a responder.
- Posso ficar até domingo, daqui a uma semana, mas não mais do que isso. Passaremos todos os dias
juntos, até lá.
Katie estava desapontada demais para tentar esconder o que sentia.
- Não podemos. Amanhã preciso ir a uma festa na casa dos meus pais. Não vou trabalhar na terça, mas
na quarta-feira tenho de voltar ao escritório. - Viu que ele estava prestes a argumentar e, desde que
queria estar com ele pelo máximo de tempo que fosse possível, acrescentou: Quer ir comigo à casa dos
meus pais amanhã? - Ramon mostrou-se hesitante, e um pouco da sanidade retornou a ela. - Bem,
talvez não seja uma boa ideia. Você não vai gostar deles, e eles não vão gostar de você.
- Porque eles são ricos e eu não sou? - Ramon esboçou um leve sorriso. - Talvez eu goste deles, apesar
de serem ricos.
Katie sorriu diante da maneira como Ramon simplificou o problema, e os braços dele apertaram-na
possessivamente, puxando-a mais para si. O sorriso em seu rosto suavizava-lhe os traços viris, fazendoo
parecer quase um menino.
- Vamos voltar para o meu apartamento? - ela perguntou.
Ramon assentiu, e Katie foi pegar suas coisas, enquanto se servia uísque e gelo em dois copos de
plástico, depois foi para onde ela o esperava.
Quando chegaram à pequena varanda do apartamento dela, Katie ficou surpresa ao ver que, em vez de
entrar, Ramon deixou os copos na mesinha entre as duas espreguiçadeiras de madeira, depois deitou-se
numa delas. De alguma forma, ela havia esperado que ele tentasse prosseguir com aquela conversa em
sua cama.
Com um misto de desapontamento e alívio, ela enroscou-se na outra cadeira e virou-se para ele. Ramon
acendeu uma cigarrilha e, para Katie, a brasa vermelha e flamejante tornou-se o único ponto de foco na
escuridão.
- Fale-me sobre seus pais, Katie.
Ela bebeu um gole do uísque, como se precisasse tomar coragem.
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- Pelos padrões da maioria das pessoas, eles são muito ricos, mas não foi sempre assim. Meu pai era
dono de uma mercearia comum até uns dez anos atrás, quando pediu um empréstimo ao banco para que
pudesse expandir-se e abrir um supermercado de luxo. Os negócios correram bem e, depois disso, ele
abriu outras vinte lojas. Você já deve ter passado por algum supermercado da rede Connelly’s.
- Creio que sim.
- Bem, somos nós. Há quatro anos papai ficou sócio do Clube de Campo de Forest Oaks. Não é tão
fechado e seleto quanto o Old Warson, ou o Clube de Campo de St. Louis, mas os sócios do Forest
Oaks gostam de fingir que sim, e meu pai construiu a maior casa nos arredores do clube, perto do
campo de golfe.
- Eu lhe pergunto sobre seus pais e você me fala sobre o dinheiro deles. Quero saber como eles são.
Katie tentou ser sincera e objetiva.
- Eles me amam muito. Minha mãe joga golfe, e meu pai trabalha duro. Creio que a coisa mais
importante para eles, fora os filhos, é ter uma casa maravilhosa, uma criada, dois Mercedes na garagem
e serem sócios do clube de campo. Meu pai é muito bem conservado para os seus cinquenta e oito anos,
e minha mãe está sempre linda e impecável.
- Você tem irmãos?
- Um irmão e uma irmã. Sou a mais nova. Minha irmã Maureen tem trinta anos, e é casada. Meu pai
entregou o cargo de vice-presidente da Companhia Connelly ao marido dela, e agora ele mal pode
esperar para que papai se aposente. Meu irmão Mark tem vinte e cinco anos, e é um bom sujeito. Não é
ambicioso e ganancioso como Maureen, que passa a vida preocupando-se com a possibilidade de ele
receber uma parte maior dos negócios da família, depois que meu pai se aposentar. Agora que sabe do
pior, quer mesmo ir comigo amanhã? Muitos amigos e vizinhos dos meus pais também estarão
presentes, e a maioria deles são quase como da família.
Ramon jogou fora a cigarrilha e tornou a recostar-se preguiçosamente na cadeira.
- Você quer que eu vá?
- Quero, sim - ela respondeu, enfática. - Mas talvez seja egoísmo de minha parte, pois sei que minha
irmã irá encará-lo com o nariz empinado quando souber no que você trabalha. Meu irmão Mark
provavelmente vai esforçar-se tanto para lhe mostrar que não é como ela que poderá deixá-lo ainda
mais constrangido.
Com sua voz profunda e aveludada, que Katie estava começando a adorar, Ramon perguntou:
- E você, Katie, o que vai fazer?
- Bem, eu... Para dizer a verdade, não sei.
- Neste caso, creio que eu terei de ir, para que possamos descobrir. - Deixando o copo na mesinha, ele
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levantou-se.
Percebendo que Ramon pretendia ir embora, Katie insistiu para que ficasse mais um pouco para tomar
um café, pelo simples motivo de que não podia suportar a ideia de vê-lo partir. Levou o café à sala de
estar, numa bandeja pequena, e sentou-se ao lado de Ramon no sofá. Beberam o café num silêncio
prolongado, que se tornava mais desconfortável a cada minuto e, sem compreender o que estava
acontecendo, Katie não sabia o que dizer.
- No que está pensando? - ela perguntou por fim, observando o perfil sério na luz difusa do único
abajur aceso.
- Em você. - Quase com rispidez, Ramon perguntou:
- As coisas que são importantes para seus pais são importantes para você também?
- Creio que sim, algumas - ela admitiu.
- Quanto são importantes?
- Em comparação com o quê?
- Com isso - ele falou, num sussurro enrouquecido.
Seus lábios baixaram para os dela, movendo-se freneticamente, obrigando-a a entreabrir a boca para a
doce invasão de sua língua, enquanto a fazia deitar no sofá e girava o corpo de forma a cobri-la quase
por inteiro.
Katie gemeu em protesto, e no mesmo instante Ramon suavizou O beijo, iniciando então uma lenta e
irresistível sedução erótica, provocando nela uma reação imediata. Sua língua mesclava-se com a dela,
recuando, penetrando profundamente, até que Katie cedeu e entregou-se ao beijo ardente.
Quando Ramon tentou afastar-se, Katie passou as mãos em torno de seu pescoço, mantendo os lábios
colados nos dele. Então sufocou um gemido de prazer quando ele puxou a parte de cima de seu biquini,
deixando-lhe os seios à mostra e inclinando a cabeça para beijar os mamilos rosados. Com lentidão,
começou a sugar um deles, depois o outro, até que Katie estivesse reduzida a um desejo louco e
doloroso.
Ramon apoiou o peso do corpo nas mãos e se afastou um pouco, os olhos ardentes acariciando-lhe os
seios nus, os mamilos rígidos e eretos pelas carícias de sua língua.
- Toque-me, Katie - pediu, a voz rascante.
Ela ergueu as mãos, movendo lentamente a ponta dos dedos sobre os músculos sinuosos do peito dele,
observando-os enrijecer-se em resposta, depois relaxar.
- Você é tão bonito - Katie murmurou, as mãos espalmadas no peito rijo e liso, acariciando os ombros
largos e os braços musculosos.
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- Os homens não são bonitos - Ramon tentou brincar, mas a voz estava enrouquecida pelo efeito que as
mãos dela lhe provocavam.
- Você é. Do mesmo jeito que são as montanhas e o mar. Sem pensar, ela deixou os dedos traçarem o V
formado pelos cabelos negros do peito dele, que se estreitava na direção da cintura do calção branco.
- Não faça isso! - ele ordenou, tenso.
Katie imobilizou-se e olhou para o rosto sombrio com a paixão que ele tentava manter sob controle.
- Você é bonito e forte - ela sussurrou, encontrando-lhe o olhar ardente. - Mas é delicado também.
Acho que é o homem mais gentil que já conheci... E nem mesmo sei por que penso assim.
Ramon perdeu todo o controle.
- Ah, Deus! - ele gemeu.
Beijou-a novamente, com uma paixão desenfreada que a invadiu com ondas de desejo. As mãos
mergulharam na maciez dos cabelos dela, mantendo sua cabeça imobilizada sob o ardor insaciável de
seus lábios. Katie sentiu-se desmanchar ao sentir a rígida masculinidade dele contra si, e gemeu com
um desejo febril quando Ramon passou a contornar-lhe os lábios com a ponta da língua.
- Deseje-me, Katie - ele ordenou com voz rouca. Deseje-me mais do que tudo que o dinheiro pode
comprar. Deseje-me, tanto quanto eu desejo você.
Katie quase soluçava de desejo, quando de repente Ramon se afastou, sentou-se e apoiou a cabeça no
encosto do sofá, fechando os olhos. Ela observou a respiração ofegante dele e, depois de alguns
minutos, endireitou o sutiã, passou a mão trémula pelos cabelos e também se sentou. Sentindo-se
descartada e ferida, encolheu-se no canto mais distante do sofá e cruzou as pernas sob o corpo.
- Katie - a voz dele era um murmúrio doloroso. Confusa, ela o encarou. Ramon mantinha a cabeça
recostada e os olhos fechados, quando falou:
- Eu não queria dizer isso enquanto você estava em meus braços e nós dois enlouquecidos de desejo.
Não queria lhe dizer nunca, mas, desde aquela primeira noite eu soube que teria de dizer antes de
partir...
O coração de Katie parou de bater. Ele iria confessar-lhe que era casado, e ela... ela ficaria histérica.
- Quero que você vá para Porto Rico comigo.
- O quê? - ela sussurrou.
- Quero que você case comigo.
Katie abriu a boca, mas vários segundos se passaram antes que conseguisse falar.
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- Eu... eu não posso. Não poderia, Ramon. Tenho meu emprego, minha família, meus amigos... Tudo
está aqui. Aqui é o meu lugar.
- Não - ele retrucou, irritado, virando a cabeça e fitando-a com seu olhar penetrante. - Aqui não é o seu
lugar. Fiquei observando-a, naquela primeira vez em que a vi no bar, e também esta noite. Você nem
mesmo gosta dessas pessoas, e o seu lugar não é ao lado delas. – Ramon percebeu a crescente
apreensão nos olhos dela, e estendeu os braços. - Venha - disse com suavidade. - Quero abraçá-la
agora.
Atordoada demais para fazer qualquer coisa além de obedecer, Katie deslizou no sofá para o abraço
quente e aconchegante, recostando a cabeça no ombro dele. No mesmo tom gentil, Ramon continuou:
- Existe uma bondade em você que a separa de todas essas pessoas a quem chama de amigos.
Katie balançou a cabeça devagar.
- Você nem me conhece direito, Ramon. Não pode estar falando sério sobre casar-se comigo.
Ele tocou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-lo, e sorriu para seus olhos azuis.
- Eu soube quem você é desde aquele momento em que deixou cair no chão aquela rosa que eu lhe
trouxe, e depois quase chorou de vergonha pelo que havia feito. E eu tenho trinta e quatro anos; sei
exatamente o que quero.
- Colou os lábios nos dela num beijo profundo. - Case comigo, Katie - sussurrou.
- Não posso... Você não pode ficar aqui nos Estados Unidos, em St. Louis, para que possamos nos
conhecer melhor? Então, talvez eu...
- Não - ele respondeu com absoluta firmeza. - Isso é impossível. - Levantou-se, e ela fez o mesmo. -
Não me responda agora. Ainda há tempo para você decidir. Olhou no pequeno relógio de mesa, ao lado
do abajur. Já é tarde. Preciso ir me vestir e ainda tenho trabalho para fazer esta noite. A que horas você
quer que eu venha buscá-la, para irmos à casa de seus pais?
Ainda zonza, Katie marcou uma hora.
- Ah, eu acho que minha mãe disse que haveria um churrasco, portanto podemos ir com uma roupa
informal.
Depois que ele saiu, Katie ficou andando pela casa, recolhendo automaticamente as xícaras de café,
apagando as luzes, e foi preparar-se para dormir.
Deitou-se na cama, ficou olhando para o teto e tentou absorver, tudo o que acabara de acontecer.
Ramon queria casar-se com ela e levá-la para Porto Rico! Isso era impossível, completamente fora de
questão, ainda era cedo demais para nem sequer imaginar algo assim. E, mesmo se Ramon lhe desse
tempo, ela conseguiria imaginar tal possibilidade algum dia?
Virou a cabeça no travesseiro e sentiu ainda as mãos dele acariciando-a com uma ternura ardente, os
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lábios ansiosos e famintos. Nenhum homem jamais fizera seu corpo sentir-se tão vivo, e ela duvidava
que qualquer outro conseguisse. Com Ramon o sexo não era apenas a prática de técnicas aprendidas e
desenvolvidas, mas sim o instinto. Para ele, era natural fazer amor com uma sensualidade tão exigente
e dominadora. Ele era, por cultura e nascimento, um macho dominador.
E o engraçado, ela pensou, era que gostava de ser dominada por ele. Até mesmo sentira um fluxo de
excitação, naquele dia, quando ele ordenara, baixinho: ”Venha aqui, Katie”. Mas, ainda assim, ele era
também gentil e delicado.
Fechou os olhos, tentando pensar. Se Ramon lhe desse tempo, seria possível que se casasse com ele?
Absolutamente não!, sua razão respondeu com sensatez. Mas seu coração sussurrava: talvez...
Por que, Katie perguntou-se, ela nem sequer consideraria a possibilidade de casar com ele? A resposta
estava na estranha sensação que a invadia quando estavam rindo ou conversando - a sensação
inexplicável de que, emocionalmente, eles formavam um par perfeito; a sensação de que algo no fundo
dele tentava alcançá-la e descobrir uma resposta dentro dela. Além daquela atração intensa e
magnética, que lenta e inexoravelmente os unia.
Ao pensar nisso, a parte lógica de sua mente entrou em conflito com as emoções: se ela fosse tola o
bastante para casar com Ramon, ele exigiria que vivessem apenas com o fruto de seu trabalho, embora
ela não fosse muito feliz vivendo como uma princesa, como acontecia agora.
Ele era um macho chauvinista, sem dúvida. Porém todos os seus instintos lhe diziam que era também
um homem sensível, capaz de grande delicadeza, além de toda a força...
Katie emitiu um gemido, levada pelas dúvidas que a assaltavam. Fechou os olhos e, quando finalmente
mergulhou num sono cansado, nem a razão nem a emoção tinham vencido a batalha.
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CAPÍTULO 5
KATIE PASSOU A MANHÃ seguinte esperando Ramon num estado de crescente apreensão,
preocupada demais em aparecer com ele na casa de seus pais para nem sequer contemplar o problema
mais grave da proposta que ele lhe fizera.
As possibilidades de um desastre naquela festa eram quase ilimitadas. Para ela, não era importante que
sua família gostasse de Ramon, nem tampouco permitiria que a opinião deles interferisse na sua
decisão de ir ou não para Porto Rico. Amava sua família, mas tinha idade suficiente para tomar suas
próprias decisões. O que de fato temia era que um deles pudesse dizer alguma coisa que o humilhasse.
Sua irmã Maureen era uma esnobe intragável, que se esquecera convenientemente de que os Connelly
nem sempre tinham sido ricos. Se descobrisse que Ramon era um trabalhador rural que dirigia um
caminhão, Maureen seria capaz de esnobá-lo diante de todos, como forma de enfatizar a sua própria
superioridade social.
Seus pais, Katie sabia, tratariam Ramon com a mesma cortesia que demonstravam para todos os
convidados, independentemente do que ele fazia... contanto que não tivessem a impressão de que
existiria algo além de uma simples amizade entre ele e a filha. Se chegassem a suspeitar de que Ramon
queria casar-se com ela, ambos seriam capazes de tratá-lo com um desprezo tão frio que o reduziria ao
nível de um parasita social, e na frente dos outros convidados.
Ramon seria desqualificado como provável genro no instante em que eles descobrissem que era incapaz
de sustentar Katie num estilo de vida e conforto a que ela estava acostumada, e não hesitariam em
deixar sua posição bem clara se sentissem que fosse necessário.
Ramon chegou às 15.30 em ponto. Katie convidou-o para entrar, recebendo-o com seu sorriso mais
animado e otimista, o que o confundiu por um ou dois segundos. Puxando-a para seus braços, ele
segurou-lhe o queixo e disse, num misto de seriedade e humor:
- Nós não vamos enfrentar um pelotão de fuzilamento, Katie. É apenas a sua família.
O beijo que ele lhe deu foi quente e reconfortante e, de alguma forma, quando ele a soltou, Katie
sentia-se muito mais confiante. Tal sensação continuava presente meia hora depois, quando o carro
passou pelos portões do Clube de Campo de Forest Oaks e parou diante da casa de seus pais.
Afastada da estrada particular por 3 hectares de campos bem cuidados, a residência dos Connelly era
uma imponente construção em estilo colonial. Katie observou a reação de Ramon, mas ele limitou-se a
olhar distraidamente para a casa, como se já tivesse visto centenas como aquela, e fez a volta para
ajudá-la a sair do carro.
Ele ainda não dissera nada, quando estavam a meio caminho da entrada revestida de tijolos vermelhos
que dava acesso às maciças portas da frente. Algum impulso maldoso fez com que Katie lhe enviasse
um sorrisinho e perguntasse:
- Então, o que acha?
Enfiando as mãos nos bolsos traseiros da calça jeans, ela deu alguns passos antes de perceber que não
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apenas Ramon não respondera, mas que também havia parado de andar.
Virando-se, Katie descobriu-se sendo o objeto de seu olhar aprovador. Com um lampejo de
divertimento nos olhos, ele a analisava lentamente desde seus cabelos reluzentes, demorando-se em
seus lábios cheios e nos seios, seguindo as curvas graciosas de sua cintura, quadris e coxas, passando
pelas pernas longas e bem torneadas, e depois retornando ao rosto dela.
- Eu acho - ele disse, com tranquila solenidade -, que o seu sorriso é capaz de iluminar a escuridão, e
que o seu riso é como música. Acho que os seus cabelos parecem um manto de seda, brilhando sob o
sol.
Hipnotizada por aquela voz profunda, Katie ficou parada ali, o calor penetrando em todo seu corpo.
- Acho que você tem os olhos mais azuis que já vi, e gosto do jeito como brilham quando você está
contente, ou como escurecem de desejo quando está nos meus braços.
- Um sorriso provocante surgiu nos lábios dele quando tornou a olhar para os seios de Katie,
enfatizados pela posição em que ela se encontrava. - E gosto de como você fica com essa calça jeans.
Mas, se não tirar as mãos dos bolsos, vou levá-la de volta para o carro, para que possa pôr as minhas
mãos em você.
Katie removeu as mãos devagar, tentando emergir do estado de transe sensual para o qual ele a levara
com apenas algumas palavras.
- Eu quis dizer... - ela falou, a voz rouca. - O que você acha da casa.
Ramon ergueu os olhos e balançou a cabeça, indiferente.
- Parece tirada do filme...E o Vento Levou.
Katie tocou a campainha, que pôde ser ouvida soando majestosamente acima do barulho de vozes e
risos lá dentro.
- Katie, meu bem! - sua mãe recebeu-a dando-lhe um abraço rápido. - Vamos entrar. Todos os
convidados já chegaram. - Sorriu para Ramon, que estava parado ao lado de Katie, e estendeu-lhe a
mão graciosa, enquanto a filha fazia as apresentações. - É um grande prazer recebê-lo, sr. Galverra -
disse, com perfeita cortesia.
Ramon respondeu com semelhante gentileza, confessando-se encantado por estar ali, e Katie, que
estivera prendendo o fôlego, sentiu toda sua tensão desaparecer.
Quando sua mãe desculpou-se, dizendo que precisava resolver um problema na cozinha, Katie levou
Ramon através da casa até o magnífico gramado dos fundos, onde um bar havia sido montado para
atender aos convidados que ali espalhavam-se em pequenos grupos, rindo e conversando.
O que Katie pensara ser um churrasco era, na verdade, um coquetel seguido por um jantar formal para
trinta pessoas, e embora ficasse imediatamente evidente que Ramon era o único homem presente que
usava jeans, ela achou que ele estava fantástico.
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Com um sorriso de orgulho, reparou que não era a única mulher que pensava assim. Muitas amigas de
sua mãe olhavam com franca admiração para o homem alto e moreno que permanecia ao seu lado,
enquanto passavam socialmente de um grupo para outro.
Katie apresentou-o àqueles amigos e vizinhos de seus pais que ela conhecia, observando como Ramon
conquistava de imediato as mulheres com seu sorriso e charme. Isso já era esperado. O que ela não
esperava era o fato de ele interagir tão bem com os homens presentes, todos eles prósperos empresários
locais. Em algum momento de seu passado, Ramon aquele verniz social devia ter adquirido, que a
deixava atónita. Ele mostrava-se perfeitamente à vontade entre aquelas pessoas, capaz de conversar
sobre tudo, desde esportes até política. Sobretudo política internacional, fato em que ela não pôde
deixar de reparar.
- Você é muito bem informado sobre os acontecimentos mundiais - Katie comentou quando ficaram
sozinhos por um instante.
Ele sorriu, enigmático.
- Eu sei ler, Katie.
Ela desviou os olhos, envergonhada, mas como se pressentisse outra pergunta, Ramon foi logo
dizendo:
- Esta festa não é diferente de qualquer outra. Onde quer que os homens se reunam, costumam falar
sobre negócios, se estão em ramos de trabalho semelhantes. Caso contrário, discutem sobre esportes,
política ou assuntos internacionais. É sempre a mesma coisa, em qualquer país.
Katie não ficou muito satisfeita com a resposta, mas deixou o assunto de lado, por enquanto.
- Acho que estou com ciúmes! - comentou rindo pouco depois, quando uma mulher de 45 anos, com
duas filhas crescidas, monopolizou a atenção de Ramon por dez minutos.
- Não precisa ficar com ciúmes - ele disse com um leve divertimento, o que fez Katie pensar que
Ramon devia estar acostumado à constante atenção das mulheres. - Elas vão perder todo o interesse
quando ficarem sabendo que sou um simples trabalhador rural.
Isso, infelizmente, era verdade, Katie descobriu duas horas depois, para seu imenso desconforto. Todos
estavam sentados na elegante sala de jantar, desfrutando de uma excelente refeição, quando a irmã de
Katie perguntou, do outro lado da mesa:
- Qual é o seu ramo de negócios, sr. Galverra? Katie sentiu que o tilintar dos talheres de prata contra os
pratos de porcelana inglesa cessou no mesmo instante, juntamente com todas as conversas paralelas na
mesa.
- Ele está no ramo de transportes... e de produção de alimentos - ela improvisou com rapidez, antes que
Ramon tivesse tempo de responder.
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- Transportes? De que tipo? - Maureen persistiu.
- Ora, de todos os tipos - Katie respondeu, lançando um olhar fulminante para a irmã.
- Alimentos, você disse? - o sr. Connelly intrometeu-se, arqueando as sobrancelhas com interesse. -
Atacado ou varejo?
- Atacado - Katie afirmou quase ríspida, de novo impedindo a resposta de Ramon.
Ao seu lado, ele inclinou-se disfarçadamente e, com um sorriso encantador, sussurrou-lhe no ouvido,
num tom de aviso:
- Fique quieta, Katie, ou vão pensar que eu não sei falar.
- Atacado? - o sr. Connelly repetiu, pensativo, de seu lugar na ponta da mesa. Estava sempre ansioso
em conversar sobre aquele tipo de negócios. - Quer dizer que está no ramo da distribuição?
- Não, da produção - Ramon respondeu com tranquilidade, apertando a mão gelada de Katie por baixo
da mesa, num silencioso pedido de desculpas pela maneira como falara com ela.
- Ah, uma empresa operacional, imagino - disse o pai dela. - De que porte?
Cortando calmamente um pedaço de sua vitela ao molho de vinho, Ramon respondeu:
- É uma fazenda pequena, que mal se sustenta.
- Está dizendo que você é um pequeno fazendeiro? Maureen indagou, com mal disfarçado desprezo. -
Aqui no Estado de Missouri?
- Não, em Porto Rico.
Mark, o irmão de Katie, aproveitou rapidamente aquela deixa, tentando mudar o rumo da conversa:
- Eu estava conversando com Jake Masters outro dia, e ele me disse que certa vez encontroo, num
carregamento de abacaxis vindo de Porto Rico, uma aranha do tamanho de...
Um dos convidados, que aparentemente não estava interessado em aranhas, interrompeu o monólogo
desesperado de Mark e voltou-se para Ramon:
- ”Galverra” é um sobrenome hispânico comum? Já ouvi falar muito sobre um ”Galverra”, mas não
consigo lembrar-me do primeiro nome.
Katie pressentiu, mais do que observou, a tensão imediata em Ramon.
- Não é um sobrenome raro - ele disse. - E o meu primeiro nome é bastante comum.
No instante em que se virou para enviar a Ramon um sorriso encorajador, Katie interceptou o olhar de
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sua mãe, que só poderia ser descrito como de desagrado, e sentiu um nó formar-se em seu estômago.
Quando, por fim, foram embora, o estômago de Katie já estava se contorcendo inteiro. Seus pais
despediram-se educadamente de Ramon no vestíbulo, mas Katie percebeu a maneira especulativa com
que sua mãe o observava, e embora nada dissesse, conseguiu comunicar a Katie, e sem dúvida para
Ramon, que não aprovava aquele relacionamento e tampouco a presença dele.
Para piorar as coisas, quando Katie e Ramon estavam saindo, a filha de Maureen, de sete anos, puxou a
saia da mãe e anunciou em alto e bom som:
- Mamãe, este homem fala de um jeito engraçado! No carro, Ramon foi dirigindo mergulhado num
silêncio pensativo.
- Desculpe por ter-lhe dito para usar jeans. Katie falou finalmente, quando se aproximavam do
condomínio.
- Eu poderia jurar que mamãe me disse, duas semanas atrás, que iria fazer um churrasco ao ar livre.
- Isso não tem importância - ele disse. - O que as pessoas vestem não modifica o que realmente são.
Katie não sabia se ele queria dizer que roupas melhores não teriam modificado a sua imagem, ou se
sentia que sua imagem era apropriada, independentemente do que vestia.
- Desculpe pela maneira como Maureen se comportou
- tentou de novo.
- Pare de se desculpar, Katie. Ninguém pode pedir desculpas pelo comportamento dos outros. É inútil
tentar.
- Eu sei, mas minha irmã é mesmo um osso duro de roer, e meus pais...
- Eles a amam muito - Ramon finalizou a frase para ela. - Querem vê-la feliz, com um futuro garantido
e possuindo tudo o que o dinheiro pode comprar. Infelizmente, como a maioria dos pais, acreditam que
se seu futuro for seguro, você será feliz. Do contrário, não será.
Katie ficou admirada por ele estar defendendo seus pais. Dentro do apartamento, virou-se para ele, seu
olhar perscrutando o rosto sombrio e inescrutável.
- Que tipo de homem é você, Ramon? - perguntou.
- Quem é você? Defende meus pais, sabendo que se eu decidisse acompanhá-lo a Porto Rico, eles
fariam de tudo para me impedir. E reparei que, em vez de ficar impressionado, você até se divertiu com
as pessoas que conheceu hoje, e com o tamanho da casa dos meus pais. Você fala com um leve sotaque,
mas o seu vocabulário é melhor do que o de muitos universitários que já conheci. Afinal, quem é você?
Ramon pousou as mãos em seus ombros tensos e disse calmamente:
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- Sou o homem que quer levá-la para longe de tudo que você conhece e das pessoas que a amam. Sou o
homem que quer levá-la para um país desconhecido onde você, e não eu, terá dificuldades em falar o
idioma. Sou aquele que deseja levá-la para morar na casa onde nasci, um chalé de quatro cómodos que
são limpos e espaçosos, mas nada além disso. Sou o homem que sabe que é egoísta em fazer isso, mas
ainda assim deseja tentar.
- Por quê? - ela murmurou.
Ramon inclinou a cabeça e roçou os lábios nos dela.
- Porque acredito que posso fazê-la mais feliz do que você jamais sonhou em ser.
Incrivelmente afetada pelo suave toque daqueles lábios, Katie tentou seguir a lógica dele.
- Mas como eu poderia ser feliz morando num chalé primitivo, onde não conheço ninguém e não
poderia falar com ninguém, mesmo se tentasse?
- Isso eu lhe digo mais tarde. - Ele sorriu de repente.
- Por enquanto, posso apenas dizer que trouxe o meu próprio calção de banho.
- Você... você quer nadar? - ela gaguejou, incrédula. O sorriso dele era positivamente perigoso.
- Quero vê-la com o mínimo de roupas possível, e o lugar mais seguro para isso, para nós dois, é a
piscina.
O alívio sobrepujou o desapontamento, quando Katie foi para o quarto, tirou as roupas e vestiu um
biquini amarelo escandalosamente vivo. Olhou-se no espelho com um leve sorriso. Era o traje de banho
mais exíguo que já tivera coragem de comprar; duas minúsculas tirinhas de tecido que revelavam cada
curva de seu corpo. Na verdade, nunca tivera coragem de vesti-lo antes, mas aquele dia parecia perfeito
para isso. Tudo bem que Ramon decidisse, arbitrariamente, que iria manter a distância, mas, com uma
pontinha de perversidade, ela queria dificultar-lhe isso o mais possível. Escovou os cabelos até que
estivessem brilhando e saiu do quarto no instante em que ele saía do banheiro. Ramon vestira um
calção preto colado ao corpo, exibindo seu físico magnífico de tal forma que Katie sentiu a boca seca.
A reação dele ao vê-la, no entanto, estava longe do entusiasmo que ela imaginara. Os olhos negros
perpassaram-lhe o corpo quase despido da cabeça aos pés.
- Vá trocar - ele disse num tom ríspido que ela nunca ouvira antes. Com um certo atraso, acrescentou: -
Por favor.
- Não - Katie retrucou com firmeza. - Não vou trocar de biquini. Por que deveria?
- Porque eu pedi.
- Você me ordenou que o fizesse, e não gostei disso.
- Agora estou pedindo - Ramon insistiu, implacável.
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- Por favor, vá trocar de biquini.
Katie lançou-lhe um olhar fulminante.
- Eu vou à piscina com este biquini, e ponto final.
- Então eu não vou com você.
De repente, Katie percebeu-se despida e vulgar, e culpou-o pela humilhação que estava sentindo. Foi
para o quarto, tirou o biquini amarelo e substituiu-o por um verde, mais discreto.
- Obrigado - Ramon disse em voz baixa, quando ela retornou à sala.
Mas Katie estava furiosa demais para falar. Escancarou a porta envidraçada, empurrou o portão da
varanda e marchou na direção da piscina, que estava quase deserta. Ao que parecia, a maioria dos
moradores fora passar o feriado com as famílias. Katie afundou graciosamente na espreguiçadeira mais
próxima da piscina, ignorando Ramon, que ficou parado, olhando-a com as mãos pousadas nos quadris.
- Não vai nadar? - ele perguntou.
Katie balançou a cabeça, os dentes cerrados.
Sentando numa cadeira diante dela, ele acendeu uma das cigarrilhas das quais tanto parecia gostar e
inclinou-se para a frente.
- Katie, me escute.
- Não quero escutar nada. Não gosto de muitas coisas que você diz.
- Mas vai ouvir, de qualquer forma.
Ela ergueu a cabeça rapidamente, fazendo com que os cabelos se espalhassem pelos seus ombros.
- Ramon, esta é a segunda vez nesta noite que você me diz o que devo fazer, e não gosto disso. Se eu de
fato estivesse disposta a casar com você, o que não estou, estes últimos vinte minutos teriam feito com
que mudasse de ideia. - Levantou-se, adorando a sensação de estar mais alta do que ele, para variar. -
Pelo bem do que restou desta noite, a nossa última noite juntos, eu vou nadar. Porque tenho certeza de
que você vai acabar me ordenando para fazer isso.
Com largas braçadas, ela fez a volta pela piscina. Segundos depois, sentiu o impacto do corpo de
Ramon mergulhando atrás dela. Katie nadou o mais depressa que podia, mas não ficou surpresa quando
ele a alcançou sem a menor dificuldade, nem quando puxou seu corpo tenso e relutante contra si.
- Há mais quatro pessoas nesta piscina, Ramon. Solte-me, antes que eu seja obrigada a gritar por
socorro.
- Katie, será que pode se calar e deixar-me...
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- Pronto, esta foi a terceira ordem que você me deu ela disparou, furiosa. - Já chega!
- Diabo - ele murmurou com raiva, segurando-a pela nuca e inclinando sua cabeça para trás, enquanto
os lábios tomavam posse dos dela.
Mais furiosa do que nunca, Katie desvencilhou-se dele e passou a mão pela boca.
- Não gostei nada disso!
- Nem eu - ele retrucou. - Por favor, Katie, me escute.
- Estou vendo que não tenho outra escolha. Meus pés nem estão tocando o fundo da piscina.
Ramon ignorou-a.
- Katie, o seu biquini era maravilhoso e fiquei sem fôlego só de olhar para você. Se me escutar, posso
explicar porque eu não quis que você ficasse com ele. Ontem à noite, vários homens que moram aqui
perguntaram-me se eu iria conseguir alguma coisa com a ”virgem vestal”. É assim que eles a chamam.
- O quê? - ela sibilou com imenso desgosto.
- Eles a chamam assim porque todos quiseram conquistá-la, mas nenhum deles conseguiu.
- Aposto que você se divertiu com isso - ela disse com amargor. - Não há dúvida de que pensou que
alguém capaz de usar um traje de banho tão vulgar...
- Eu fiquei muito orgulhoso - ele interrompeu-a calmamente.
Katie já ouvira mais do que poderia suportar. Empurrou-lhe o peito imóvel.
- Bem, detesto desapontá-lo, sobretudo sabendo quanto você ficou ”orgulhoso”, mas acontece que não
sou virgem.
Ela viu o efeito que sua revelação provocou, pelo enrijecimento das linhas do rosto dele, mas Ramon
não fez qualquer comentário. Em vez disso, falou:
- Até agora, eles a trataram com todo respeito, como se você fosse uma linda irmã mais nova. Mas se
você aparecer por aqui usando aquele biquini minúsculo, que deixa seu corpo inteiro à mostra,
começarão a segui-la como um bando de cachorros atrás de uma cadela no cio.
- Não dou a mínima para o que eles pensam! Além disso - ela avisou quando ele abriu a boca para falar
-, se você se atrever a me dizer o que devo fazer, sou capaz de lhe dar um soco!
Ele baixou os braços e Katie nadou até a escada, parou na espreguiçadeira apenas o bastante para pegar
a toalha, e voltou sozinha para o apartamento. Depois de entrar, pensou em trancar a porta, mas ao
lembrar-se de que as roupas de Ramon estavam lá, foi para o quarto e trancou-se.
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Trinta minutos depois, quando já havia tomado um banho e se deitado, Ramon bateu na porta.
Ela sabia que, se abrisse, lhe daria a oportunidade de tomá-la em seus braços. E, no que se referia a
Ramon, seu corpo recusava-se a ouvir a razão e em poucos minutos ela acabaria se entregando.
- Katie, deixe de ser teimosa e abra esta porta.
- Tenho certeza de que você sabe o caminho da saída
- ela falou com frieza. - Eu vou dormir. - Para dar mais ênfase, apagou o abajur na mesa-de-cabeceira.
- Katie, pelo amor de Deus, não faça isso a nós dois.
- Não existe ”nós dois”. Nunca existiu - ela retrucou. E, porque lhe doía tanto dizer tais palavras em
voz alta, acrescentou: - Não sei por que você quer se casar comigo, mas sei muito bem de todos os
motivos por que não posso me casar com você. Falar sobre eles não irá mudar nada. Vá embora, por
favor. Acho que será melhor assim para nós dois.
Seguiu-se um silêncio agourento, depois disso. Katie esperou, olhando no relógio até que 45 minutos se
passassem e então, com todo o cuidado e silêncio, destrancou a porta e espiou pelo apartamento às
escuras. Ramon havia partido, apagando as luzes e trancando a porta atrás de si. Ela voltou para a cama
e arrastou-se para baixo dos lençóis frios, ajeitando o travesseiro na cabeceira e acendendo novamente
o abajur.
Escapara por pouco!, pensou. Bem, não tão pouco - na verdade, nunca levara a sério a ideia de casar-se
com Ramon. Nos braços dele, tinha sido levada aos limites do desespero sexual, mas isso fora tudo.
Felizmente, nenhuma mulher nos dias atuais casava-se apenas para saciar suas necessidades sexuais,
incluindo Katherine Connelly! Acontecera apenas de ela desejar Ramon mais do que desejara qualquer
outro homem - até mesmo Rob.
Tal pensamento fez com que sua mente mergulhasse numa espécie de caos. Talvez estivesse mais
próxima da capitulação do que imaginara. Afinal, seu trabalho não era assim tão recompensador; os
homens que conhecia pareciam fúteis e egoístas. E Ramon era a antítese de todos eles. Ele satisfazia
cada mínimo desejo seu. No Zoológico, fora para onde ela quisera ir. Se ela parecia cansada, insistia
para que se sentassem e descansassem. Se ela lançasse um rápido olhar para uma barraca de
refrigerantes, ele apressava-se em perguntar se estava com sede ou com fome. Se ela queria nadar, ele
nadava. Se queria dançar, ele dançava
- contanto que pudesse prendê-la em seus braços, lembrou a si mesma com uma pontinha de ironia.
Ele jamais permitiria que ela carregasse um saquinho de supermercado ou uma valise de viagem. Não
abria a porta, entrava e a fechava na cara dela, como muitos homens costumavam fazer, nem depois
enviava-lhe um olhar que dizia: ”Bem, vocês, mulheres, querem igualdade, portanto abram suas portas
sozinhas”.
Katie balançou a cabeça. O que havia com ela, pensando em casar com um homem somente porque ele
lhe carregava as sacolas e abria-lhe as portas? Mas havia mais do que isso em Ramon. Ele era tão
confiante em sua própria masculinidade que não tinha medo de ser gentil. Era seguro de si, orgulhoso e,
no que se referia a ela, estranhamente vulnerável.
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Os pensamentos de Katie seguiram um outro rumo. Como, pensou, se ele de fato vivia quase na
pobreza, mostrara-se tão familiarizado com as formalidades observadas durante o jantar de seus pais?
Nem uma vez ele demonstrara a menor incerteza sobre o que deveria fazer, que talheres usar, que vinho
beber acompanhando cada prato.
Nem se sentira minimamente deslocado na companhia dos influentes amigos de seu pai.
Por que ele estaria querendo casar-se, e não apenas levála para a cama? Na noite anterior, no sofá,
ficara bem claro que ela não lhe negaria nada. ”Deseje-me tanto quanto desejo você”, Ramon insistira e
implorara. E quando ela realmente demonstrara que o desejava, ele havia se afastado, fechado os olhos
e, sem exibir qualquer emoção, a pedira em casamento. Será que fizera isso por pensar que ela era
virgem? Os latinos ainda valorizavam a virgindade, mesmo nesses tempos de emancipação sexual. Ele
ainda iria querer casar-se com ela sobretudo que não era mais virgem? Katie duvidava disso
seriamente, e sentiu-se humilhada e indignada. Ramon Galverra soubera exatamente como excitá-la,
levando-a aos limites do desejo na noite anterior, e com certeza não aprendera isso nos livros! Quem
ele pensava que era, afinal? Ele não era virgem!
Katie apagou a luz e afundou nos travesseiros. Graças a Deus que nem chegara perto de partir para
Porto Rico com ele! Ramon insistiria para que ela passasse a cuidar de sua casa, algo que praticamente
lhe dissera durante o piquenique. Esperaria que sua esposa cozinhasse, limpasse, que cuidasse dele.
Sem dúvida, a manteria o tempo todo ”descalça e grávida”, também.
Ora, nenhuma mulher liberada, em seu juízo perfeito, pensaria em se casar com um exemplo tão típico
de macho chauvinista... um macho chauvinista que estaria disposto a protegê-la contra tudo e contra
todos... que trataria a esposa como se fosse feita de cristal... que com certeza trabalharia até a exaustão
para lhe dar tudo o que ela quisesse... que sabia mostrar-se intensamente apaixonado... e tão delicado...
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CAPÍTULO 6
KATIE ACORDOU NA MANHÃ seguinte com o barulho insistente do telefone na mesa-de-cabeceira.
Zonza de sono, estendeu o braço e pegou o aparelho, levando-o ao ouvido sem se levantar dos
travesseiros. A voz de sua mãe ressoou antes mesmo que ela dissesse ”alo”.
- Katie, querida, quem era aquele homem?
- Ramon Galverra - ela respondeu, os olhos ainda fechados.
- Eu sei o nome dele, isso você nos falou. Quero saber o que ele está fazendo com você.
- Fazendo comigo? - ela repetiu, sonolenta. - Nada.
- Katie, não se faça de desentendida! É evidente que ele sabe que você tem dinheiro, que nós temos
dinheiro. Tenho o pressentimento de que está atrás de alguma coisa.
Grogue de sono, Katie tentou defender Ramon.
- Ele não está atrás de dinheiro, mamãe. Está querendo uma esposa.
Houve um silêncio prolongado. Quando a voz de sua mãe tornou a soar, cada palavra era carregada de
desprezo.
- Aquele fazendeiro porto-riquenho realmente está pensando em se casar com você?
- Espanhol - Katie corrigiu-a, enquanto sua mente começava a despertar.
- O quê?
- Ele disse que é espanhol, e não porto-riquenho. Na verdade, é norte-americano.
- Katherine - a voz no outro lado da linha soou com tensa impaciência -, você não está, nem em sonhos,
considerando a possibilidade de se casar com ele, não é?
Katie hesitou, sentando na cama e preparando-se para se levantar.
- Acho que não.
- Você acha que não? Katherine, fique aí mesmo e não deixe que aquele homem se aproxime, enquanto
não chegarmos. Meu Deus, seu pai vai morrer de desgosto. Vamos sair assim que acabarmos de tomar
o café da manhã.
- Não! - Katie falou, finalmente saindo do seu estupor sonolento. - Escutte, mamãe. Você me acordou e
não estou conseguindo pensar direito, mas não há nada com que se preocupar. Não vou me casar com
Ramon, e duvido que ainda o veja de novo.
63
- Tem certeza, Katherine? Ou está dizendo isso apenas para me tranquilizar?
- Sim, tenho certeza. De verdade.
- Está bem, querida. Mas se ele se aproximar de você outra vez, basta nos ligar e estaremos aí em meia
hora.
- Mamãe...
- Ligue para cá, Katie. Seu pai e eu a amamos muito e queremos protegê-la. Não tenha vergonha de
admitir que não pode lidar sozinha com aquele espanhol, ou porto-riquenho, ou seja lá o que for.
Katie abriu a boca para protestar, dizer que não precisava ser ”protegida” de Ramon, mas mudou de
ideia. Sua mãe não acreditaria, e ela não queria mais discutir.
- Tudo bem - suspirou. - Se precisar, eu ligo. Até logo, mamãe.
O que havia com seus pais?, Katie perguntou-se, irritada, meia hora depois, enquanto vestia um
conjunto de calça comprida e blusa amarelo. Por que pensavam que Ramon iria magoá-la ou fazer
qualquer coisa que a obrigaria a ter de chamá-los em seu socorro? Escovou os cabelos com vigor,
prendeu-os com uma fivela no alto da cabeça, depois aplicou uma leve maquiagem. Decidira sair para
comprar alguma coisa fútil e bem cara, a fim de parar de pensar em Rammon e em seus pais.
A campainha tocou, como Katie temia, no momento em que ela guardava a xícara na máquina de lavar
louça. Com certeza eram seus pais. Eles também tinham acabado de tomar café e, agora, vinham para
acabar com Ramon, literalmente.
Com um suspiro resignado, foi para a sala e abriu a porta, e então deu um passo para trás, surpresa ao
ver a silhueta alta e esguia bloqueando a luz do sol.
- Eu... estou de saída - Katie murmurou. Ignorando a desculpa, Ramon passou pela porta e fechou-a
atrás de si. Um leve sorriso tocava-lhe os lábios.
- De alguma forma, imaginei que era o que você faria.
Katie olhou para o rosto de traços belos e másculos, vendo a determinação ali estampada, e os ombros
largos e resolutos. Confrontada com 1,90m de poderosa masculinidade e determinação férrea, ela
preferiu fazer um recuo estratégico a fim de recuperar a coragem estilhaçada. Virando-se, foi dizendo
por cima do ombro:
- Vou buscar uma xícara de café para você.
No momento em que estava servindo o café, Ramon segurou-a pela cintura e colou o corpo contra suas
costas. Sua respiração quase tocava-lhe os cabelos, quando ele disse:
- Não quero café, Katie.
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- Quer comer alguma coisa?
- Não.
- Então, o que quer?
- Vire-se e eu lhe mostro.
Katie balançou a cabeça, agarrando-se na beirada do balcão da cozinha com tanta força que os nós dos
dedos embranqueceram.
- Katie, não lhe falei sobre o motivo principal de não querer que você usasse aquele biquini, porque eu
mesmo não queria admitir. E você também não vai gostar de ouvir. Mas acho que devemos ser sempre
sinceros um com o outro.
- Ele fez uma pausa e acrescentou, com um suspiro relutante:
- A verdade é que fiquei com ciúme... Não queria que ninguém, exceto eu mesmo, visse o seu corpo
maravilhoso.
Katie engoliu em seco, tentando falar, temendo virar-se, trémula pela sensação do corpo musculoso
contra suas costas e pernas.
- Aceito sua explicação, e você está certo: eu não gosto disso. Eu mesma decido que tipo de roupas
devo usar, e mais ninguém. Mas isso não tem nenhuma importância. Lamento ter-me comportado como
uma criança, ontem à noite; eu deveria ter saído do quarto para despedir-me de você. Mas não posso
me casar com você, Ramon. Jamais daria certo.
Katie esperava que ele aceitasse isso. Porém, deveria saber que não seria tão fácil. As mãos de Ramon
deslizaram pelos seus ombros, fazendo-a virar-se de frente para ele com um movimento firme, mas
delicado. Katie manteve os olhos fixos no colarinho aberto de sua camisa azul.
- Olhe para mim, querida.
A voz profunda e rouca, chamando-a de ”querida”, alcançou seu objetivo. Katie fitou-o, os olhos azuis
muito abertos e apreensivos.
- Você pode casar comigo. E vai dar certo. Eu farei de tudo para que dê certo.
- Existe um imenso abismo cultural entre nós dois! ela exclamou. - Como você pode pensar que daria
certo?
Hipnóticos, os olhos dele fixaram-se nos dela.
- Porque voltarei para casa todas as noites e farei amor com você até que implore para que eu pare.
Todas as manhãs a deixarei com o gosto dos meus beijos em seus lábios.
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Viverei minha vida para você. Preencherei seus dias com alegrias e, se Deus nos enviar alguma tristeza,
vou ampará-la em meus braços até que suas lágrimas se acabem, e a ensinarei a sorrir novamente.
Hipnotizada por aquelas palavras, Katie ficou olhando quando os lábios firmes e sensuais desciam até
os seus.
- Nós iremos brigar - ela avisou, trémula. Ramon roçou os lábios nos dela.
- As brigas são apenas uma forma raivosa de demonstrar carinho.
- Nós... nós discordamos em tudo. Você é tirânico, eu sou independente.
Ele colou os lábios nos dela.
- Vamos aprender a fazer concessões.
- Uma pessoa não pode fazer todas as concessões. O que você esperaria em troca?
Os braços dele envolveram-na.
- Nem mais, nem menos do que lhe ofereço: tudo o que você tem para dar, sem nada a esconder. Para
sempre.
- Ramon cobriu-lhe a boca, insistindo para que ela entreabrisse os lábios e recebesse a doce invasão de
sua língua.
O que para Katie começara como uma leve chama transformou-se em fogo, explodindo em labaredas
ardentes, percorrendo-a com uma força incontrolável. Colava-se a ele, retribuindo seus beijos
intermináveis e avassaladores com uma urgência desesperada, gemendo baixinho quando Ramon
espalmou as mãos em seus seios.
- Nós pertencemos um ao outro - ele sussurrou. Diga-me que acredita nisso - ordenou em voz baixa, as
mãos deslizando pelas costas dela e abrindo caminho pelo elástico da calça, até alcançarem seu traseiro
e encostá-lo contra a firmeza de seu membro rígido. - Nossos corpos sabem disso, Katie.
Apanhada entre a sensação excitante das mãos dele em sua pele e a orgulhosa evidência do desejo que
sentia por ela, as já enfraquecidas defesas de Katie desabaram completamente. Enlaçou-lhe o pescoço,
puxando-o mais para si, deslizando as mãos pelos seus ombros, pelos cabelos espessos. E quando ele
ordenou novamente: ”Diga-me”, ela afastou seus lábios apenas para responder, quase num soluço:
- Sim, nós pertencemos um ao outro.
As palavras murmuradas pareceram ecoar pela cozinha, despertando-a da paixão como uma ducha de
água fria. Ela deu um passo para trás, olhando para ele.
Ramon viu as faces rosadas, o pânico surgindo nos profundos olhos azuis. Passando as mãos pelos
cabelos macios e avermelhados, segurou-lhe o rosto entre elas.
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- Não fique com medo, minha querida - disse gentilmente. - Creio que o que mais a amedronta não é o
que está acontecendo conosco, mas sim a rapidez com que tudo aconteceu. - Acariciou-lhe as faces
ardentes e acrescentou:
- Eu faria tudo para poder lhe dar mais tempo, mas não posso. Teremos de partir para Porto Rico nesse
domingo. Você ainda terá quatro dias para fazer as malas e organizar suas coisas. Eu pretendia partir há
dois dias, mas não posso mais retardar a minha volta para além de domingo.
- Mas... amanhã eu preciso trabalhar - ela protestou, distraída.
- Sim, eu sei. Terá de comunicar aos seus patrões que vai partir para Porto Rico e que esta será a sua
última semana no trabalho.
Dentre todos os obstáculos monumentais a um possível casamento com Ramon, Katie apegou-se
justamente ao menos importante, que era o seu trabalho.
- Não posso simplesmente entrar lá e demitir-me com apenas quatro dias de aviso prévio. Preciso avisálos
com no mínimo duas semanas de antecedência. Não posso fazer isso.
- Sim, Katie, você pode - ele falou com calma.
- Além disso, há também os meus pais... Oh, não! Precisamos sair daqui imediatamente - ela disse, num
súbito tom de urgência. - Eu me esqueci deles. Tudo o que preciso agora é que cheguem e encontrem
você aqui comigo. Minha mãe já me ligou hoje cedo, chamando-me de ”Katherine”.
Quase frenética, Katie desvencilhou-se, puxou-o na direção da sala, pegou a bolsa e só relaxou quando
entraram no carro dele.
- Qual é o problema de sua mãe tê-la chamado de ”Katherine” - Ramon perguntou, enviando-lhe um
olhar divertido, enquanto inseria a chave no contato.
Katie observou-o dirigir com tranquila competência, admirando os dedos longos no volante.
- Quando meus pais me chamam de Katherine, em vez de Katie, significa que as linhas de batalha
foram marcadas, que a artilharia está sendo colocada em posição e que, a não ser que eu acene com a
bandeira branca, vão começar a atirar.
Ele sorriu, e Katie relaxou. Quando tomaram a via expressa para a rodovia principal, ela perguntou:
- Para onde vamos?
- Para o Arco. Ainda não tive a chance de conhecê-lo de perto.
- Turista! - ela brincou.
Passaram o restante da manhã e boa parte da tarde comportando-se como verdadeiros turistas.
Embarcaram num dos barcos a vapor para um passeio nas águas lamacentas do rio Mississipi.
Distraída, Katie observava a paisagem, a mente envolvida num turbilhão de pensamentos confusos.
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Ramon recostou-se no gradil, observando-a.
- Quando você vai contar aos seus pais?
Ela sentiu as mãos transpirando, só de pensar nisso. Enxugando as palmas úmidas nos lados da calça
comprida, balançou a cabeça.
- Ainda não decidi - respondeu, sendo deliberadamente vaga sobre o que ainda não decidira.
Caminharam pelas antigas ruas revestidas de pedras de Laclede’s Landing, próximo à margem do rio, e
pararam num adorável pub que servia sanduíches que eram verdadeiras obras-primas. Katie comeu
pouco e ficou olhando pelas janelas, vendo as pessoas que passavam apressadamente, aproveitando o
horário do almoço.
Ramon recostou na cadeira, com uma cigarrilha presa entre os dentes, os olhos semicerrados pela
fumaça, e observando-a.
- Quer que eu esteja com você, quando contar a eles? - perguntou.
- Ainda não pensei sobre isso.
Depois do lanche, ficaram passeando pelo parque dominado pelo grande Arco Gateway. Katie fez as
vezes de guia de turismo, explicando que o Arco era o monumento mais alto dos Estados Unidos, e
depois ficou em silêncio, limitando-se a olhar, sem realmente ver, para o rio que corria em toda a
extensão do parque. Sem ter um destino específico, desceu a escadaria que levava para a margem do rio
e sentou-se, pensando, sem na verdade ser capaz de pensar em nada.
Ramon ficou ao seu lado, uma das pernas apoiadas no degrau da escada, observando-a.
- Quanto mais você demorar para contar a eles, mais nervosa vai ficar, e mais difícil será.
- Você quer mesmo subir no Arco? - ela perguntou, evasiva. - Não sei se o bondinho está funcionando,
mas se estiver, dizem que a vista é fantástica. Não posso afirmar que já tive essa experiência... Morro
de medo de altura.
- Katie, nós não temos muito tempo.
- Eu sei.
Voltaram para o carro e, enquanto seguiam pela Market Street, Katie sugeriu, sem muito entusiasmo,
que poderiam passar pelo Lindell Boulevard. Ramon seguiu suas instruções e, quando alcançaram o
Lindell, indo na direção oeste, ele perguntou:
- O que é isso?
Katie olhou para onde ele indicava, à sua direita.
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- É a catedral de St. Louis. - Levou um susto quando ele parou diante da antiga igreja. - Por que
estamos parando aqui?
Ramon virou-se em seu assento e passou o braço pelos ombros dela.
- Faltam poucos dias para partirmos, e há tantas decisões a tomar, tantas coisas para fazer. Vou ajudá-la
em tudo que puder, mas não posso falar com seus pais em seu lugar, nem tampouco com os seus
patrões.
- Sim, eu sei.
Ramon segurou-lhe o queixo, erguendo-o delicadamente, e o beijo que lhe deu estava repleto de
ternura.
- Mas por que você quer ir à igreja? - Katie perguntou, quando ele fez a volta e abriu-lhe a porta.
- Em geral, as melhores obras artísticas de uma época podem ser encontradas nas igrejas, não importa
em que país estejam.
Katie não acreditava que esse fosse o motivo, e seus nervos, já tão abalados, enrijeceram-se ao extremo
enquanto subia os degraus de pedra que levavam à entrada da catedral. Ramon abriu uma das pesadas
portas entalhadas e deu-lhe passagem para o vasto e frio interior. No mesmo instante ela foi assaltada
pela lembrança de velas ardendo e flores no altar.
Ramon segurou-a pelo braço, não lhe dando outra escolha senão acompanhá-lo até o corredor central.
Katie passava os olhos pelas infindáveis fileiras de bancos de madeira, observando os altos tetos
abobadados com suas maravilhosas cenas em mosaicos que reluziam com o ouro, sempre evitando
olhar para o altar central. Na primeira fileira, ajoelhou-se ao lado de Ramon, sentindo-se como uma
fraude, uma intrusa. Finalmente obrigou-se a olhar para o altar, depois fechou os olhos diante da
tontura que a invadia. Deus não a queria ali, não daquela forma, não com Ramon. Era doloroso demais
estar ali com ele. E errado. Tudo o que ela desejava era o corpo dele, e não sua vida.
Ramon estava ajoelhado ao seu lado, e Katie teve a aterrorizante impressão de que estava rezando.
Quase teve certeza do pedido que ele fazia. Como se pudesse cancelar o pedido dele com o seu próprio,
ela começou a rezar também, uma prece rápida e incoerente, sentindo o pânico crescer dentro de si.
Por favor, por favor, não dê ouvidos a ele. Não permita que isso aconteça. Não permita que ele goste
tanto de mim. Não posso fazer o que ele me pede. Sei que não posso. Não quero. Deus ela implorou em
silêncio -, está me ouvindo? Algum dia me ouviu?
Katie levantou-se, cega pelas lágrimas, e, quando virou-se, seu corpo colidiu com o de Ramon.
- Katie? - ele chamou-a em voz baixa, repleta de preocupação, e segurou-lhe o braço delicadamente.
- Deixe-me, Ramon. Por favor! Preciso sair daqui!
- Eu... eu não sei o que aconteceu comigo lá dentro Katie desculpou-se, enxugando as lágrimas com a
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ponta dos dedos.
Estavam parados na escadaria da igreja, sob o sol luminoso. Katie observava o tráfego que seguia pelo
Lindell Boulevard, ainda confusa e envergonhada demais para olhar para Ramon, enquanto explicava:
- Eu não entrava nesta igreja desde o dia em que me casei. - Baixou os olhos, encolhendo-se ao som da
voz atónita- de Ramon.
- Você já foi casada?
Ela assentiu, sem olhar para ele.
- Sim. Há dois anos, quando tinha vinte e um anos, no mesmo mês em que me formei na faculdade. E
divorciei-me um ano depois.
Ainda era doloroso admitir isso a qualquer pessoa. Katie desceu mais dois degraus, antes de perceber
que Ramon não a estava seguindo. Virando-se, viu que ele a fitava com os olhos duros, estreitados.
- Você se casou na Igreja Católica?
A rispidez de seu tom, bem como a pergunta aparentemente pouco importante, a surpreenderam. Por
que ele estava mais preocupado com o fato de ela ter casado numa igreja católica do que por ter sido
casada? A resposta atingiu-a em cheio, como um balde de água fria, revitalizante mas, ainda assim,
doloroso. Ramon devia ser católico. Sua religião dificultaria o casamento com ela, se Katie casara-se na
igreja e depois se divorciara.
Deus atendera às suas preces, Katie pensou com um misto de gratidão e culpa pela dor que estava
prestes a causar a Ramon com uma mentira. Ela havia se divorciado, mas David morrera seis meses
atrás, portanto não haveria nenhum obstáculo ao seu casamento com Ramon. Por outro lado, ele não
sabia disso, e ela não pretendia lhe contar.
- Sim, eu me casei na Igreja Católica - respondeu baixinho.
Katie estava vagamente ciente de que haviam entrado no carro e seguiam na direção da rodovia
expressa. Sua mente estava imersa em seu passado doloroso. David. O rebelde e atraente David, que
precisava de um meio de silenciar os rumores sobre seu relacionamento com a esposa do sócio
principal da firma de advogados onde trabalhava, e também com várias de suas clientes, e fizera isso
por intermédio de seu noivado com Katherine Connelly. Ela era uma linda jovem, inteligente e
convenientemente ingénua. Aqueles que acreditavam nos rumores souberam que só podiam ser
infundados com apenas um olhar para ela. Afinal, que homem em seu juízo perfeito se incomodaria em
conquistar todas aquelas mulheres se tinha uma garota como Katie?
David Caldwell faria isso. Era advogado, ex-jogador de futebol no time da universidade. Era um
homem sofisticado, dono de um enorme carisma pessoal e de um ego que se alimentava de mulheres.
Toda conquista que fazia servia para provar que ele era melhor do que os outros homens. E era tão
encantador... até o momento em que ficasse com raiva de alguma coisa. Quando furioso, transformavase
num homem violento e brutal.
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No dia em que completava seis meses de casamento, Katie saíra mais cedo do trabalho e tirara a tarde
de folga. Passou no supermercado para comprar os ingredientes para um jantarzinho especial e dirigiu
para o apartamento repleta de planos excitantes para a surpresa que pretendia fazer a David. Quando
chegou, descobriu que David já estava ”comemorando” com a bela esposa de meia-idade do sócio da
firma. Enquanto vivesse, Katie sabia que jamais esqueceria o momento em que ficara parada na soleira
da porta do quarto, vendo-os em sua cama. Mesmo agora, a lembrança ainda era capaz de deixá-la
nauseada.
Porém, a lembrança do pesadelo que se seguira era ainda mais dolorosa.
As marcas físicas da violência que David lhe infligira naquela noite haviam se curado rapidamente; as
emocionais agora eram cicatrizes. Estavam curadas, mas ainda eram sensíveis.
Katie lembrou-se dos telefonemas que recebera no meio da noite, depois que o deixou. David insistindo
que iria mudar dizendo que a amava. David insultando-a com palavrões e ameaçando-a com represálias
brutais se ela se atrevesse a contar o que ele havia feito. Até mesmo suas esperanças para um divórcio
digno foram para os ares. O divórcio em si foi amigável, com base em diferenças irreconciliáveis, mas
o comportamento de David estava longe de ser amigável. Num temor furioso de que Katie pudesse
revelar seu segredo a alguém, David passou a difamar Katie, e até mesmo sua família, para quem quer
que estivesse disposto a ouvir. As coisas que dizia eram tão baixas e cruéis que a maioria das pessoas
com quem ele falava provavelmente deu-lhe as costas com nojo, ou começou a duvidar de sua
sanidade. Mas Katie estava humilhada e destruída demais para nem sequer considerar essa
possibilidade.
Então, certo dia, quatro meses depois do divórcio, levada ao fundo do poço por toda sua infelicidade e
horror, Katie olhara-se no espelho e dissera: ”Katherine Elizabeth Connelly, você vai permitir que
David Caldwell destrua o resto da sua vida? Realmente deseja dar a ele essa satisfação?”
Com o pouco que lhe sobrara de seu antigo espírito e entusiasmo, entregou-se à tarefa de reconstruir
sua vida. Mudou de emprego e saiu da casa de seus pais, indo morar sozinha em seu próprio
apartamento. Primeiro, seu sorriso retornou, e depois voltaram as risadas. Começou a viver novamente
a vida que o destino lhe entregara. E viveu-a com determinação e alegria. Exceto que, algumas vezes,
ela lhe parecia um tanto vazia e fútil. Sem um sentido verdadeiro.
- Quem era ele? - Ramon perguntou com rispidez.
Katie recostou a cabeça no assento e fechou os olhos.
- David Caldwell. Ele era advogado. Ficamos casados por seis meses, e nos divorciamos seis meses
depois disso.
- Fale-me sobre ele.
- Detesto falar sobre ele. Aliás, detesto pensar nele. Assaltada pelas terríveis lembranças de seu
casamento com David, que a invadiam agora, e em pânico pela pressão incansável que Ramon fazia
para que se casasse com ele, Katie agarrou-se à única forma de fuga que pôde pensar no momento:
embora desprezasse a própria covardia, decidiu fazer Ramon acreditar que David ainda estava vivo, a
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fim de colocar um ponto final naquela conversa sobre levá-la para Porto Rico e torná-la sua esposa.
Lembrando-se de referir-se sempre a David como se ele ainda estivesse vivo, disse:
- Não há muito o que falar sobre ele. Tem trinta e dois anos, é alto, moreno e muito atraente. Ele me faz
lembrar de você, na verdade.
- Quero saber por que se divorciou dele.
- Divorciei-me porque o desprezava, e porque tinha medo dele.
- Ele a ameaçava?
- Ele não ameaçava.
- Ele batia em você? - Ramon parecia furioso e revoltado. Katie estava determinada a mostrar-se
indiferente.
- David chamava isso de ”ensinar-me bons modos”.
- E eu a faço lembrar-se dele?
Ramon parecia prestes a explodir, e Katie apressou-se em tranquilizá-lo:
- Apenas na aparência, e bem pouco. Vocês dois têm a pele morena, olhos e cabelos escuros. David
jogava futebol na universidade, e você... - Katie lançou um olhar para ele e depois recuou, assustada
pela raiva mal contida em seu perfil. - Bem, você parece alguém que deveria jogar ténis - concluiu, sem
muita convicção.
Enquanto entravam no estacionamento do seu prédio, Katie de repente deu-se conta de que aquele sem
dúvida seria o último dia que passariam juntos. Se Ramon fosse um católico tão devoto quanto a
maioria dos hispânicos, seria incapaz de persistir na possibilidade de casar-se com ela.
A ideia de nunca mais tornar a vê-lo foi surpreendentemente dolorosa, e Katie sentiu-se invadida pela
tristeza e desolação. Queria prolongar aquele dia, poder passar mais tempo com ele. Porém, não a sós,
não onde ele pudesse abraçá-la e, em poucos minutos, levá-la aos limites do desejo e pronta a lhe
confessar toda a verdade. Então, voltaria ao mesmo lugar onde estivera até havia pouco: encurralada.
- Sabe o que eu adoraria fazer esta noite? - falou, quando encaminhavam-se para a porta. - Isto é, se
você não precisar trabalhar.
- Não. O quê? - ele indagou, entre os dentes cerrados.
- Gostaria de ir a algum lugar onde pudéssemos ouvir música e dançar.
A simples afirmação fez com que o rosto dele enrijecesse de raiva. A linha firme de sua mandíbula
retesou-se, as faces imobilizaram-se. Ele estava furioso, Katie pensou com um lampejo de medo.
Rapidamente, em tom de desculpas, ela disse:
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- Ramon, eu deveria saber que você é católico e que o fato de eu ter me casado antes na igreja tornaria
impossível o nosso casamento. Lamento por não ter-lhe falado sobre isso antes.
- Você ”lamenta” tanto que agora está com vontade de dançar - ele retrucou, sarcástico. Então, fazendo
um esforço evidente para controlar a raiva, virou-se para ela. A que horas devo vir buscá-la?
Katie ergueu os olhos para o sol da tarde.
- Daqui a quatro horas, mais ou menos. Às oito, está bem?
Katie escolheu um vestido de seda azul, que era do tom exato de seus olhos e fazia um vivo contraste
com os cabelos avermelhados. Diante do espelho, examinou a profundidade com que o decote deixava
os seios à mostra, querendo ter certeza de que Ramon não julgaria o vestido escandaloso demais. Se
aquela seria sua última noite juntos, não queria estragá-la com outra discussão a respeito de suas
roupas. Prendeu os brincos de argola nas orelhas, colocou um largo bracelete de ouro no braço e calçou
as sandálias de salto alto, da mesma cor do vestido. Ajeitou os cabelos por cima dos ombros e foi para a
sala esperar Ramon.
A última noite com ele... A animação de Katie diminuiu consideravelmente ao pensar nisso. Foi para a
cozinha e serviu-se de um pouquinho de brandy, depois sentou no sofá da sala, bebericando devagar e
observando o relógio na parede. Quando a campainha tocou, às 8.00 em ponto, ela deu um pulo
nervoso, deixou o cálice na mesa e foi abrir a porta.
Nada, no pouco tempo em que se conheciam, havia preparado Katie para o Ramon Galverra que estava
parado na soleira da porta.
Ele estava extremamente elegante, usando um terno azulmarinho cujo caimento era perfeito,
contrastando com a camisa branca impecável e a gravata de listras em tons escuros.
- Você está fantástico - Katie comentou, sem esconder sua admiração. - Parece um presidente de banco
acrescentou, afastando-se para melhor admirar aquele porte atlético.
A expressão de Ramon era irónica.
- Para dizer a verdade, eu odeio os banqueiros. A maioria deles parece aves de rapina, ansiosos para
devorar os lucros daqueles que se arriscam, embora nunca estejam dispostos a arriscar nada.
- Ah... - Katie murmurou, um tanto confusa. - Bem, em todo caso, eles sabem como se vestir.
- Como sabe disso? - Ramon retrucou. - Por acaso também casou-se com um banqueiro e esqueceu de
mencionar?
Katie imobilizou-se no ato de pegar o xale de seda que combinava com o vestido.
- Não, é claro que não - murmurou.
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Voltaram para o Laclede’s Landing, onde passaram por três bares que exibiam espetáculos de jazz e
blues. No transcorrer da noite, Ramon foi se tornando cada vez mais frio e distante e, quanto mais
indiferente ele se mostrava, mais Katie bebia e tentava divertir-se.
Quando seguiram para um conhecido restaurante perto do aeroporto, Katie estava um pouco zonza,
muito nervosa e infeliz.
O lugar que ela havia escolhido estava surpreendentemente cheio para uma noite de terça-feira, mas
tiveram sorte de conseguir uma mesa perto da pista de dança. Entretanto, a sorte de Katie acabou ali
mesmo. Ramon recusou-se a dançar, e ela não sabia por quanto tempo ainda suportaria aquela
expressão gélida, que mal disfarçava seu desprezo. Com olhos frios, ele examinou-a com cinismo e
desinteresse, que a fizeram encolher-se por dentro.
Katie olhou em volta, mais para evitar a expressão fria de Ramon do que por qualquer interesse que
tivesse pelos arredores, e de repente seu olhar colidiu com um homem sentado no bar, que a observava.
Ele arqueou a sobrancelha e perguntou: ”Quer dançar?” Quase em desespero, ela assentiu, aceitando.
Ele aproximou-se da mesa, observando a evidente altura e força de Ramon com uma certa apreensão, e
educadamente convidou Katie para dançar.
- Você se importa? - ela perguntou a Ramon, ansiosa em afastar-se dali.
- Nem um pouco - ele respondeu, encolhendo os ombros com indiferença.
Katie adorava dançar; possuía uma graciosidade natural e seus movimentos eram ágeis e chamavam a
atenção. Seu par, logo ficou óbvio, não apenas adorava dançar, mas era também um exibicionista. Com
as luzes coloridas piscando no salão, a música pulsando, Katie entregou-se completamente ao ritmo.
- Ei, você é boa nisso! - o homem elogiou, obrigando-a, com seus próprios movimentos, a dançar de
uma maneira mais saliente do que ela estava acostumada.
- Você está se exibindo - Katie lhe disse, quando os outros pares começaram a se afastar para lhes dar
mais espaço, e depois pararam de dançar.
Ao final da música, todos aplaudiram, encorajando-os a uma nova rodada.
- Eles querem que continuemos dançando - o homem falou, apertando-lhe o braço quando Katie fez
menção de voltar à mesa.
Ao mesmo tempo, outra música agitada começou a reverberar no salão lotado, e ela não teve outra
escolha senão ceder àquilo que considerava um puro exibicionismo. Enquanto dançava, olhou de
relance para Ramon, depois desviou rapidamente os olhos. Ele havia posicionado a cadeira na direção
da pista de dança, colocara as mãos nos bolsos e a olhava com o interesse desapaixonado de um
conquistador observando uma dançarina de cabaré.
Quando a música terminou, houve mais aplausos ensurdecedores. Seu par tentou convencê-la a ficar
para outra dança, mas dessa vez Katie recusou-se com firmeza.
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Foi sentar-se no lado oposto da mesa, de frente para Ramon, e deu um gole em sua bebida, sentindo-se
cada vez mais irritada pela maneira como estavam comportando-se um com o outro.
- E então? - perguntou com uma pontinha de hostilidade, quando ele não fez nenhum comentário sobre
sua dança.
Ele arqueou a sobrancelha, sarcástico.
- Nada mau.
Katie teve vontade de lhe dar um soco. Outra música começou, dessa vez uma balada romântica. Ela
olhou em volta, viu outros dois prováveis parceiros aproximando-se da mesa e enrijeceu. Ramon,
seguindo seu olhar, também avistou-os e, relutante, levantou-se. Sem nada dizer, segurou-a pelo braço
e levou-a para a pista de dança.
A música suave, juntamente com a doce sensação de estar de novo nos braços de Ramon, foi a perdição
de Katie. Colando-se contra ele, recostou o rosto em seu peito. Desejou que ele a abraçasse com mais
força, que a beijasse com suavidade nas têmporas como fizera na última vez que dançaram, junto à
piscina. Ela desejava... tantas coisas loucas, impossíveis.
Ainda estava desejando quando voltaram para seu apartamento. Ramon acompanhou-a até a porta e
Katie implorou para que entrasse para um último drinque. Assim que acabou de engolir o brandy, ele
levantou-se e não disse mais nada, simplesmente encaminhou-se para a porta.
- Ramon, por favor, não vá embora. Não assim - ela pediu.
Ele virou-se e olhou para ela, o rosto sem qualquer expressão.
Katie moveu-se na direção dele, depois parou a poucos passos de distância, sentindo-se invadir por
uma imensa tristeza.
- Não quero que você vá embora - ouviu-se dizer. No instante seguinte, seus braços estavam em torno
do pescoço de Ramon, seu corpo pressionado contra o dele, beijando-o desesperadamente. Os lábios de
Ramon estavam frios e imóveis, os braços caídos ao longo do corpo.
Humilhada e ferida, Katie afastou-se e ergueu os olhos lacrimejantes.
- Nem mesmo vai me dar um beijo de despedida? perguntou, prestes a desabar em lágrimas.
O corpo dele pareceu retesar-se numa postura de rejeição, e então Ramon puxou-a para seus braços.
- Diabo! - sussurrou com fúria, enquanto seus lábios procuravam os dela, num beijo cuja ardente
violência fez com que Katie se colasse a ele no mesmo instante, correspondendo com um desejo
selvagem.
Ramon passou a acariciá-la por inteiro,moldando o corpo dela contra o seu. Então,de repente,afastou-a.
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Trémula e ofegante, Katie fitou-o e, logo em seguida, deu um passo para trás, assustada com o brilho
furioso nos olhos dele.
- É só isso que você quer de mim, Katie? - Ramon disparou.
- Não! - ela apressou-se em negar. - Isto é, não quero nada de você. Apenas... apenas achei que você
não se divertiu muito esta noite, portanto...
- Portanto - ele interrompeu-a, num tom ofensivo -, você me trouxe aqui a fim de oferecer-me um
divertimento melhor.
- Não! - ela quase gritou. - Eu...
Calou-se de repente, ao perceber que os olhos dele analisavam-na da cabeça aos pés. Justamente
quando pensou que ele faria meia-volta e iria embora, Ramon virou-se em outra direção e foi com
passos duros até a mesinha onde estava o telefone. Pegou um bloquinho de papel e escreveu ali alguma
coisa.
Ao voltar para a porta, pousou a mão na maçaneta.
- Deixei o número de telefone onde poderei ser encontrado até quinta-feira. Ligue, se quiser falar
comigo. - Seu olhar demorou-se no rosto dela e, depois, ele saiu, fechando a porta atrás de si.
Katie ficou exatamente onde estava, perplexa e sentindo o coração desfazer-se em pedaços. Aquele
último olhar... fora como se Ramon quisesse memorizar o seu rosto. Ele a odiava, estava furioso com
ela e, ainda assim, queria lembrar-se de como ela era. Katie não podia acreditar em quanto estava
sofrendo. As lágrimas ardiam em seus olhos, e um nó se formara em sua garganta.
Virou-se devagar e foi para o quarto. O que havia de errado com ela? Afinal, era assim que queria que
tudo acontecesse, não era? Bem, não exatamente. Queria Ramon, estava pronta para admitir isso, mas o
queria do seu jeito: ali em St. Louis, trabalhando num emprego decente.
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CAPITULO 7
KATIE FOI PARA O TRABALHO na manhã seguinte, determinada a mostrar-se animada, porém os
efeitos de sua noite insone estavam evidentes nas marcas escuras sob seus olhos e na tensão de seu
sorriso, normalmente tão espontâneo.
- Olá, Katie! - sua secretária cumprimentou-a. - Como passou o feriado?
- Muito bem - ela disse. Pegou o punhado de recados que a secretária lhe entregava. - Obrigada, Donna.
- Quer um café? - Donna ofereceu. - Está parecendo que não vê uma cama desde sexta-feira. Ou - ela
acrescentou com um sorrisinho malicioso - será que devo dizer que parece que não dorme desde sextafeira?
Katie conseguiu esboçar um fraco sorriso diante da brincadeira.
- Eu adoraria um café, Donna.
Separando rapidamente os recados, Katie entrou em sua pequena sala. Sentou na cadeira atrás da
escrivaninha e olhou em volta. Ter um escritório privado, não importava de que tamanho fosse, era um
importante símbolo de status na empresa Technical Dynamics, e ela sempre se orgulhara muito desse
sinal externo de seu sucesso. Naquela manhã, entretanto, isso lhe parecia fútil e sem sentido.
Como podia ser que, quando trancara sua mesa na sexta-feira, jamais tinha ouvido falar de Ramon, e
agora a ideia de nunca mais tornar a vê-lo estava consumindo seu coração? Consumindo seu corpo, não
o coração, Katie corrigiu-se com firmeza. Ergueu os olhos quando Donna entrou e deixou uma xícara
de café na mesa.
- A srta. Johnson gostaria de falar com você no escritório dela, às nove e quinze - a secretária avisou.
Virgínia Johnson, a supervisora imediata de Katie, era uma mulher de quarenta anos, inteligente, capaz
e muito bonita, que nunca havia se casado e ocupava o cargo de diretora do departamento de pessoal.
De todas as profissionais de carreira que Katie conhecia, Virgínia era a quem mais admirava.
Em contraste com o acanhado escritório de Katie, que continha apenas os móveis mais básicos e
funcionais, o de Virgínia era espaçoso, com móveis de estilo provençal francês e um carpete verde e
macio. Katie sabia que Virgínia estava preparando-a para que ela ficasse em seu lugar, que pretendia
que ela fosse a próxima diretora do departamento, e a próxima ocupante daquele escritório.
- Como foi seu fim de semana prolongado? - Virgínia perguntou sorrindo, quando Katie entrou na sala.
- Muito bom - ela respondeu, sentando-se na cadeira diante da mesa de Virgínia. - Mas hoje parece que
não estou tão bem assim; não estou conseguindo entrar no ritmo do trabalho.
- Pois então eu tenho uma notícia que talvez desperte seu entusiasmo. - Virgínia fez uma pausa para
aumentar o suspense, depois deslizou um formulário bem conhecido sobre a mesa, na direção de Katie.
- O seu aumento de salário foi aprovado - comunicou com um largo sorriso.
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- Ah, isso é ótimo. Obrigada, Virgínia. - Katie mal olhou para a folha de papel que lhe concedia um
aumento de 18% no salário. - Há mais alguma coisa que queira falar comigo?
- Katie! - Virgínia exclamou com um riso impaciente.
- Tive de lutar com unhas e dentes para lhe conseguir esse aumento!
- Eu sei. - Katie tentou mostrar-se devidamente agradecida. - Você sempre foi sensacional comigo, e é
claro que adoro a ideia de ganhar um dinheiro extra.
- Você merece cada centavo e, se fosse homem, já teria recebido-o aumento tempos atrás. Aliás, foi
exatamente isso que eu disse ao nosso vice-presidente financeiro.
Katie mexeu-se na cadeira.
- Há mais algum assunto que queira discutir, Virgínia? É que tenho uma entrevista marcada, e o
candidato já está esperando.
- Não, isso é tudo.
Katie levantou-se e encaminhou-se para a porta, mas parou ao ouvir a voz preocupada de Virgínia:
- Katie, o que há de errado? Será que posso ajudar? Katie hesitou. Precisava falar com alguém, e
Virgínia era uma mulher sensata. Na verdade, era a pessoa a quem Katie mais admirava e gostaria de
poder imitar. Caminhando até as janelas envidraçadas, Katie olhou para baixo, vendo o tráfego
incansável na rua.
- Virgínia, alguma vez você pensou em desistir da carreira para se casar?
Virando-se abruptamente, deparou com Virgínia observando-a com aguçado interesse, a testa franzida.
- Katie, podemos ser francas uma com a outra? Você está considerando a ideia de casar-se com alguém
em especial ou simplesmente visualizando um futuro obscuro?
- Meu futuro seria definitivamente obscuro sem ele Katie riu, mas sentia-se tensa e deprimida. Com um
gesto nervoso, passou as mãos pelos cabelos, ajeitando o coque impecável. - Eu conheci esse homem...
muito recentemente... e ele quer se casar comigo e ir embora do país. Ele não é daqui.
- Quão recentemente? - Virgínia perguntou, perspicaz. Katie ruborizou-se.
- Na sexta-feira à noite.
Virgínia emitiu uma gostosa gargalhada, que destoava de seu tamanho pequeno e delicado. - Puxa,
você chegou a me deixar preocupada por alguns minutos, mas agora acho que estou entendendo.
Quatro dias atrás você conheceu um homem maravilhoso, diferente de todos os que conhece. Não pode
suportar a ideia de perdê-lo. Estou certa? Bem, ele é muito atraente, sem dúvida. E mexe com você de
tal forma que nenhum outro homem jamais conseguiu. É isso, não é?
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- Exatamente - Katie admitiu, encolhendo-se por dentro.
- Nesse caso, tenho a cura perfeita: recomendo que você não o deixe sair de suas vistas, a não ser que
seja absolutamente necessário. Fique ao lado dele o tempo todo, coma com ele, durma com ele, vá
morar com ele. Façam tudo juntos.
- Está dizendo - Katie falou, surpresa - que acha que as coisas podem dar certo? Que devo casar-me
com ele?
- É claro que não! Estou sugerindo uma cura, não que você se case com a doença! Estou lhe
prescrevendo doses maciças do remédio, para que você tome em horários determinados... como se
fosse um antibiótico. A cura é infalível e o único efeito colateral será um leve caso de desilusão.
Acredite, Katie, eu sei o que estou dizendo. Vá morar com ele, se quiser, mas desista da ideia de
apaixonar-se em quatro dias, casar com ele e viver feliz para sempre. O que me leva à questão do
”apaixonar-se”. A pessoa apaixonada realmente parece acometida de algum tipo de doença, não acha?
Por isso a medicação precisa ser rápida e eficaz. - Virgínia interrompeu-se ao ouvir o riso de Katie. -
Ótimo, fico contente em vê-la novamente animada. - Pegando um envelope na caixinha de entrada
sobre a mesa, deu um largo sorriso e fez um gesto para Katie, indicando a porta.
-Agora, vá entrevistar seu candidato e faça jus ao aumento que acabou de receber.
Vendo o desapontado jovem sair de sua sala vinte minutos depois, Katie pensou com desgosto que até
sua secretária poderia ter conduzido a entrevista melhor do que ela. Havia feito perguntas vagas e
gerais, e não aquelas mais concisas e pertinentes, e depois ouvira as respostas sem o menor interesse.
Mas o coroamento do desastre acontecera no final da infeliz entrevista. Levantando-se, ela havia
cumprimentado o rapaz com um aperto de mão e, num tom de desculpas, avisara-o de que não poderia
ser muito encorajadora acerca de suas chances para o cargo de engenheiro na Technical Dynamics.
Um tanto irritado, o jovem respondera:
- Eu estava me candidatando para o cargo de auditor.
- Bem, nem como auditor, infelizmente - ela havia retrucado, sem o menor tato.
Ainda vermelha de vergonha por causa de sua gafe, Katie pegou o telefone e ligou para o escritório de
Karen.
- Como estão as coisas aí no jornal? - perguntou, quando a secretária de Karen passou a ligação.
- Tudo bem, Katie. E você? Como vão as coisas no departamento de pessoal da poderosa Technical
Dynamics?
- Péssimas! Eu praticamente acabei de dizer a um candidato que ele não tem a mínima chance de
trabalhar conosco, seja em que cargo for.
- E o que há de errado nisso? Suspirando, Katie respondeu:
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- Em meu trabalho, devo mostrar-me um pouco mais diplomática do que isso. Normalmente dizemos
que não há nenhuma vaga disponível que seja adequada à experiência e escolaridade do candidato.
Significa a mesma coisa, mas soa melhor e não fere os sentimentos de ninguém.
- Katie massageou os músculos tensos da nuca. - Escute, estou ligando porque queria saber o que você
vai fazer esta noite. Não estou com vontade de ficar sozinha em casa. E pensando em Ramon,
acrescentou mentalmente.
- Combinei com o pessoal de irmos todos ao Purple Bottle - Karen falou. - Por que não nos encontra lá?
Acho que devo avisá-la de que é um bar estritamente de solteiros. Mas a música é boa e eles têm um
cantor razoável.
A eficiência de Katie, se não o seu entusiasmo, melhorou um pouco depois disso. Passou o dia
resolvendo os problemas de sempre e lidando com os atritos rotineiros. Ouviu um supervisor queixarse,
em alto e bom som e com entediante meticulosidade, de uma funcionária do departamento de
arquivos. Depois, escutou as lacrimosas reclamações da garota sobre as exigências do tal supervisor.
No final, ignorou a exigência dele para que a funcionária fosse demitida e, em vez disso, transferiu-a
para outro departamento. Depois de examinar as fichas de vários candidatos, escolheu uma jovem que a
impressionara bastante durante a entrevista, por mostrar-se assertiva e autoconfiante, e marcou com ela
uma entrevista com o supervisor.
Acalmou uma irada contadora que estava ameaçando processar a empresa por discriminação porque
outra pessoa havia sido promovida em seu lugar. Depois, concluiu uma pesquisa acerca das exigências
do governo em relação à segurança na empresa.
Entre tudo isso, mais as entrevistas com candidatos, o dia de Katie voou. No final da tarde, ela
recostou-se na cadeira e contemplou com tristeza uma vida inteira de dias sendo passados exatamente
como aquele. Isso era ”ter uma carreira”. Virgínia Johnson devotara toda sua energia, toda sua vida, a
”ter uma carreira”. Para isso.
Aquela sensação vazia e inquietante que estivera assombrando-a nos últimos dias retornou com toda
força. Katie tentou ignorá-la e começou a trancar as gavetas, preparando-se para sair.
Katie passou os piores momentos de sua vida no bar Purple Bottle. Ficou por ali, fingindo ouvir a
música, observando os homens e mulheres que faziam suas abordagens muitas vezes nada sutis. Sentiase
desconfortavelmente consciente de três homens sentados a uma mesa à sua direita, que a
observavam sem disfarçar, julgando sua aparência, calculando as possibilidades de levá-la para a cama
sem maiores esforços. Katie pensou que todas as mulheres que estavam considerando a ideia de se
divorciar de seus maridos deveriam passar pelo menos uma noite num bar de solteiros. Depois daquela
experiência degradante e desmoralizadora, muitas delas voltariam voando para os braços de seus
homens.
Saiu às 9.30, uma hora depois de ter chegado, e voltou para o seu apartamento. Enquanto dirigia, os
pensamentos sobre Ramon assaltavam-na. Sua vida era ali mesmo, e ele não podia fazer parte dela,
enquanto a vida dele era diferente demais da sua, distante demais para que nem sequer fosse capaz de
imaginá-la.
Katie foi para a cama às 10.30 e, depois de várias horas virando-se de um lado para outro, finalmente
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caiu num sono profundo.
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CAPÍTULO 8
KATIE DORMIU TÃO profundamente que não ouviu o despertador tocar. Teve de arrumar-se numa
pressa frenética, e ainda assim chegou ao escritório com quinze minutos de atraso.
Quinta-feira, 3 de junho, seu calendário proclamava indiferente, enquanto ela destrancava as gavetas e
pegava a xícara de café que Donna deixara em sua mesa.
Quinta-feira.
O último dia em que ainda poderia alcançar Ramon. Até que horas ele estaria naquele número de
telefone que lhe dera? Até o final do expediente, por volta das 5.00 ou 6.00? Ou ficaria trabalhando até
mais tarde? Porém, que diferença isso faria? Se ligasse para Ramon, teria de estar pronta para
abandonar tudo e casar-se com ele. E isso ela não poderia fazer.
Dia 3 de junho.
Katie sorriu com tristeza, bebericando o café escaldante. Pela velocidade estonteante com que Ramon
costumava agir, com certeza ela acabaria sendo uma ”noiva de junho”. Novamente.
Katie balançou a cabeça e fez uso de um talento especial que descobrira possuir durante seu divórcio:
obrigar-se a pensar imediatamente em algo diferente, no instante em que um problema indesejado lhe
surgisse. Dessa forma, era capaz de esquecer totalmente a questão.
Mergulhou no trabalho, envolvendo-se num turbilhão de atividade produtiva durante todo o dia. Não
apenas fez todas as entrevistas agendadas para aquele dia, como também atendeu três novos candidatos
que chegaram sem hora marcada.
Ela própria aplicou os testes, repetindo as instruções sobre como completá-los como se fosse a coisa
mais interessante que já fizera na vida. Ficou observando o relógio, enquanto os candidatos faziam seus
testes, como se estivesse absorvida numa complicada e fascinante obra-prima da tecnologia.
Passou pelo escritório de Virgínia, agradeceu sinceramente pelo ótimo aumento de seu salário e pelo
excelente conselho que ela lhe dera e, depois de fechar a porta da sua sala, foi para casa, um tanto
relutante.
Mas não era tão fácil praticar sua técnica na solidão do apartamento, sobretudo quando o rádio ficava a
todo momento lembrando-a das horas. ”Esta é a rádio KMOX, e são seis e meia da tarde”, o locutor
informava.
E Ramon não estará mais naquele número por muito tempo, se é que ainda está, uma vozinha em sua
mente completava.
Num gesto irritado, Katie desligou o rádio e ligou a tevê, andando a esmo pelo apartamento, incapaz de
se sentar. Se telefonasse, não haveria mmeio-termo: teria de lhe dizer a verdade. E, mesmo se o fizesse,
talvez ele nem quisesse mais se casar com ela. Afinal, ficara furioso quando soubera que ela já havia
sido casada. Talvez, no fim das contas, a questão da igreja não fosse assim tão importante. Talvez ele
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não estivesse disposto a aceitar uma ”mercadoria de segunda mão”. Mas, se esse fosse o caso e ele não
quisesse mais nada com ela, por que lhe deixaria aquele número de telefone?
A voz do locutor da tevê interrompeu seus pensamentos:
- ”São seis horas e quarenta e cinco minutos em St. Louis, e a temperatura local é de vinte e oito
graus.”
Ela não poderia ligar para Ramon, a não ser que estivesse preparada para deixar seu emprego com
apenas um dia de aviso prévio. Aquilo era tudo o que lhe restava. Teria de entrar no escritório de
Virgínia e dizer à pessoa que sempre fora tão maravilhosa com ela: ”Desculpe sair assim, mas não
tenho como evitar”.
E ela nem mesmo havia considerado o problema com seus pais. Eles ficariam furiosos, preocupados,
magoados. Iriam sentir muito a sua falta se ela fosse para Porto Rico. Katie discou o número do
telefone de seus pais e foi informada, pela criada que atendeu, que eles tinham ido jantar no clube de
campo. Droga!, Katie pensou. Por que eles não estavam quando ela mais precisava? Deveriam estar em
casa, sentindo saudades de sua pequena Katie, a quem viam apenas uma vez a cada duas semanas. Será
que sentiriam tanto sua falta se a vissem só uma vez em poucos meses?
Katie levantou-se num pulo e, desesperada para fazer alguma coisa, foi vestir um biquini - o biquini
amarelo! Sentando-se diante da penteadeira em seu quarto espaçoso, começou a escovar os cabelos
com todo o vigor.
Como poderia estar pensando em desistir de tudo em troca do lar e da vida que Ramon estava disposto
a lhe oferecer? Devia estar maluca! Sua própria vida era o sonho de qualquer mulher moderna. Tinha
uma carreira gratificante, um belo apartamento, roupas caras e nenhuma preocupação financeira. Era
jovem, bonita e independente.
Tinha tudo. Absolutamente tudo.
Tal pensamento fez com que ela parasse de escovar os cabelos e olhasse para a própria imagem no
espelho. Bom Deus, aquilo realmente seria tudo?, perguntou-se. Seus olhos nublaram-se de desespero
quando, mais uma vez, contemplou o futuro sendo vivido exatamente como o presente.
Devia haver algo mais além daquilo. Era evidente que isso não seria tudo. Não podia ser.
Tentando afastar tais pensamentos depressivos, ela pegou uma toalha e marchou na direção da piscina.
Havia cerca de trinta pessoas nadando ou relaxando junto às mesinhas sob os guarda-sóis. Don e Brad
estavam ali, acompanhados de alguns amigos, bebendo cerveja. Katie acenou quando chamaram-na
para que se juntasse a eles, mas balançou a cabeça em negativa. Estendeu a toalha na espreguiçadeira
mais isolada que pôde encontrar e em seguida foi para a piscina. Nadou de um lado para outro várias
vezes, depois voltou para a cadeira. Alguém tinha um rádio portátil ligado. ”São sete e quinze em St.
Louis, e a agradável temperatura está na casa dos vinte e oito graus.”
Katie fechou os olhos e tentou desligar-se de tudo, mas, de repente, quase sentiu os lábios firmes e
quentes de Ramon movendo-se sobre os seus, provocantes, doces, e depois tornando-se mais atrevidos,
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aprofundando o beijo e levando-a a um estado de entrega total, em que se rendia alegremente à
ansiedade de sua boca e de suas mãos. A voz dele falando baixinho: ”Viverei minha vida para você...
Farei amor com você até que implore para que eu pare... Preencherei seus dias com felicidade”.
Katie sentiu-se sufocar. ”Nós pertencemos um ao outro”, ele dissera, a voz rouca de desejo. ”Diga-me
que sabe disso. Diga.” E ela dissera. Até mesmo tivera certeza disso, tanto quanto sabia que também
não poderiam pertencer um ao outro.
Ele era tão atraente, tão másculo com seus cabelos escuros e dentes alvos e perfeitos. Katie pensou na
leve covinha em seu queixo e na maneira como seus olhos...
- Ai! - gritando de susto, ela abriu os olhos e sentou-se rapidamente, sentindo a água gelada escorrer
por suas pernas.
- Acorde, Bela Adormecida - Don falou com um sorriso, sentando-se na beirada da espreguiçadeira.
Katie encolheu-se, tentando lhe dar mais espaço, observando-o com desconfiança. O rosto dele estava
vermelho, os olhos um tanto vidrados. Parecia que estivera bebendo durante toda a tarde.
- Katie - ele disse, os olhos colando-se nos seios mal cobertos pelo biquini minúsculo. - Você me deixa
louco, sabia?
- Não creio que isso seja algo muito difícil - ela retrucou com um sorriso fixo, afastando-lhe a mão
quando ele tentou seguir a trilha formada pela água que escorria em sua perna.
Don riu.
- Seja boazinha comigo, Katie. Eu poderia fazê-la muito feliz.
- Ora, eu sou muito velha para você - ela tentou brincar, ocultando o desconforto por trás de uma
máscara de indiferença.
- Você tem as respostas rápidas, ruivinha. Mas existem coisas melhores para fazer do que ficarmos aqui
conversando. Deixe-me lhe dar um exemplo. - Don inclinou-se como se pretendesse beijá-la, e Katie
afastou-se rapidamente.
- Don - ela quase implorou -, estou tentando não fazer escândalo, mas se você não parar com isso, eu
vou gritar e nós vamos parecer dois tolos, aqui.
Ele afastou-se e encarou-a.
- Afinal, o que há de errado com você? - perguntou.
- Nada! - Katie respondeu. Não queria torná-lo um inimigo, queria apenas que ele fosse embora. - O
que você está querendo? - indagou.
- Está brincando? Quero esta mulher para quem estou olhando agora... com este rosto maravilhoso, este
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corpo escultural e uma cabecinha virginal.
Katie encarou-o firmemente.
- Por quê?
- Meu benzinho - ele provocou, os olhos inspecionando-lhe o corpo inteiro. - Essa é uma pergunta
idiota. Mas vou respondê-la do mesmo jeito que aquele sujeito respondeu, quando lhe perguntaram por
que queria escalar a montanha. Quero subir em você porque você está aqui. Preciso ser mais claro?
Quero subir em você, ou, se preferir, você pode ficar...
- Saia de perto de mim - ela sibilou. - Você é nojento, e está bêbado!
- Não estou bêbado - ele retrucou, ofendido.
- Então, é apenas nojento! Agora, vá embora. Don levantou-se e encolheu os ombros.
- Tudo bem. Será que devo mandar Brad? Ou você prefere Dean? Ele também está interessado.
- Não quero nenhum de vocês! - ela disparou, furiosa. Don parecia sinceramente surpreso.
- Por que não? Não somos piores do que quaisquer outros. Na verdade, somos melhores do que muitos
que há por aí.
Katie foi endireitando o corpo lentamente, fitando-o como se aquelas palavras estivessem penetrando
em sua mente, explodindo dentro dela.
- O que foi que você disse? - murmurou.
- Eu disse que somos tão bons quanto quaisquer outros sujeitos, e melhores do que muitos.
- Você tem razão - ela falou, devagar. - Você tem toda a razão!
- Então, qual é o problema? Para quem você está se guardando, afinal?
E, de repente, ela soube. Ah, Deus, ela soube!
Quase derrubou Don em sua pressa de sair da cadeira.
- Não é para aquele maldito espanhol, não é? - ele gritou às suas costas.
Katie nem teve chance de responder, pois já estava correndo. Correndo pela trilha que levava à sua
varanda, abrindo o portão e quebrando uma unha em sua pressa de abrir a porta envidraçada.
Ofegando pelo medo de ser tarde demais, discou o número que Ramon escrevera no bloquinho ao lado
do telefone. Contou os toques, a esperança diminuindo a cada segundo que passava.
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- Alo? - uma voz feminina atendeu no décimo toque, quando ela estava prestes a desligar.
- Eu... gostaria de falar com Ramon Galverra. Ele está?
- Katie ficou tão surpresa ao ouvir uma mulher atender ao telefone que quase esqueceu de fornecer a
informação que obviamente estava sendo esperada. - Meu nome é Katherine Connelly.
- Sinto muito, srta. Connelly, mas o sr. Galverra não está. Mas deverá chegar a qualquer momento.
Gostaria que ele ligasse de volta?
- Sim, por favor - Katie respondeu. - Você poderia lhe dar o recado assim que ele chegar?
- É claro. Assim que ele chegar.
Katie desligou e ficou olhando para o telefone. Ramon havia realmente saído, ou teria pedido àquela
mulher de voz tão amigável que se encarregasse de despachá-la? Ele ficara tão furioso quando Katie
lhe dissera que já fora casada... Talvez, agora que sua paixão tivera dois dias para esfriar, ele não
estaria mais interessado em adquirir uma esposa ”visada”. O que ela faria, se ele não retornasse a
ligação? Deveria presumir que não recebera o recado e ligaria de volta? Ou aceitaria a ”deixa” para
dar-se conta de que ele não queria mais falar com ela?
O telefone tocou vinte minutos depois. Katie agarrou o fone e disse, ofegante:
- Alo?
A voz de Ramon parecia ainda mais profunda:
- Katie?
Ela segurou o fone com tanta força que sua mão chegou a doer.
- Você disse que eu poderia ligar se... se quisesse conversar. - Katie fez uma pausa, esperando que
Ramon dissesse algo para ajudá-la, mas ele permaneceu em silêncio. Respirou fundo e acrescentou: -
Eu gostaria de conversar... mas prefiro não fazê-lo pelo telefone. Ramon, será que você poderia vir até
aqui?
Não havia emoção na voz dele, quando respondeu simplesmente:
- Posso, sim.
Mas foi o bastante. Katie baixou os olhos para o biquini amarelo e correu para o quarto a fim de mudar
de roupa. Ficou em dúvida sobre o que vestir, como se a roupa que escolhesse pudesse fazer toda a
diferença entre o sucesso e o fracasso. Por fim, decidiu-se por um conjunto de calça e blusa de algodão
cor de pêssego, secou e escovou os cabelos, e aplicou uma maquiagem suave. Seus olhos brilhavam e o
rosto estava rosado de excitação, quando se examinou no espelho.
- Deseje-me sorte - disse ao próprio reflexo.
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Foi para a sala e, quando começava a se sentar, estalou os dedos.
- Uísque! - disse em voz alta.
Ramon gostava de uísque, mas ela não tinha nem uma garrafa em casa. Deixando a porta entreaberta,
correu para o apartamento ao lado e pediu ao seu vizinho uma garrafa de J&B emprestada.
Quase esperava encontrar Ramon, quando voltou ao apartamento, mas ele ainda não chegara. Katie foi
para a cozinha e preparou o uísque da maneira como o vira pedir quando saíram: com gelo e uma
casquinha de limão. Com uma expressão crítica, ergueu o copo contra a luz para examinar o conteúdo.
De que tamanho seria a casca de limão, afinal? E por que fizera algo tão tolo como preparar o drinque
tão cedo, pois o gelo acabaria derretendo antes mesmo de ele chegar. Decidiu ela mesma bebê-lo e,
torcendo o nariz para o sabor forte, levou o copo para a sala e sentou-se no sofá.
Faltavam quinze minutos para as nove quando o barulho da campainha a fez dar um pulo de susto.
Contendo o impulso de ir correndo para a porta, Katie compôs as feições do rosto num sorriso formal e
abriu-a devagar. Contra a luz amarelada dos postes da rua, a silhueta de Ramon na soleira da porta era
devastadora: alto, atraente, usando um terno cinza, camisa branca e gravata cor de vinho. Os olhos dele
fitaram-na diretamente e sua expressão era impassível, nem fria nem calorosa.
- Obrigada por ter vindo - Katie falou, dando-lhe passagem e fechando a porta. Estava tão nervosa que
nem conseguia pensar sobre o que fazer em seguida. Decidiu que o melhor seria manter-se ocupada. -
Sente-se um pouco, vou lhe preparar uma bebida.
- Obrigado.
Ramon entrou na sala e tirou o paletó. Sem nem mesmo olhar na direção dela, deixou-o nas costas de
uma cadeira.
Katie sentia-se desconcertada pela atitude dele, mas ao vê-lo tirar o paletó, concluiu que ao menos ele
pretendia ficar algum tempo. Quando retornou da cozinha trazendo a bebida, Ramon estava parado de
costas para ela, as mãos nos bolsos, olhando pela janela da sala. Virou-se quando ouviu-a entrar e, pela
primeira vez, Katie reparou nas linhas profundas de cansaço em torno de seus olhos e da boca. Ansiosa,
examinou-lhe o rosto.
- Ramon, você parece exausto.
Ele afrouxou o nó da gravata e pegou o copo que ela lhe estendia.
- Não vim aqui para discutir meu estado de saúde, Katie - informou bruscamente.
- Sim, eu sei - Katie suspirou. Ele estava frio, distante e, ela pressentia, ainda muito zangado com ela. -
Pelo jeito, você não vai ajudar-me com isso, não é? - disse, dando voz aos seus pensamentos.
Os olhos escuros estavam impassíveis.
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- Isso depende do que você tem a me dizer. Como lhe disse antes, não há muito que eu possa oferecerlhe,
se você decidisse casar comigo, mas uma das coisas que lhe ofereço é a sinceridade entre nós.
Sempre. E espero o mesmo de você.
Assentindo, Katie afastou-se dele e segurou as costas da cadeira em busca de um apoio físico, desde
que era evidente que Ramon não pretendia lhe dar nenhum apoio moral. Emitindo um suspiro trémulo,
ela fechou os olhos.
- Ramon, quando estávamos na igreja, no outro dia, eu... eu me dei conta de que você deve ser um
católico devoto. E então percebi que, nesse caso, não poderia casar-se comigo se eu já tivesse me
casado na Igreja Católica e depois me divorciado. Foi por isso que lhe disse que era divorciada. Bem,
não era mentira, pois realmente fui divorciada antes... antes de David morrer.
A voz atrás dela soou fria e sem emoção:
- Eu sei.
Katie agarrou-se com mais força à cadeira.
- Você sabe? Como pode saber disso?
- Porque você já tinha me contado que eu a fazia lembrar-se de alguém, alguém cuja morte lhe havia
trazido grande alívio. Quando estava falando sobre seu ex-marido, de novo comentou que ele se parecia
comigo. Presumi que seria pouco provável que você conhecesse dois homens que se pareciam comigo.
Além disso, você não sabe mentir muito bem.
A total indiferença dele fez o coração de Katie contorcer-se.
- Entendo... - ela disse, sentindo os olhos arderem com as lágrimas.
Ao que parecia, Ramon não queria a esposa de outro homem, independentemente de ela ser divorciada
ou viúva. Como se tivesse de punir a si mesma obrigando-se a ouvi-lo dizer isso em voz alta,
murmurou:
- Importa-se de me explicar por que ainda está zangado comigo, mesmo depois de ouvir o que acabei
de dizer? Sei que está com raiva, mas não tenho certeza do motivo e...
As mãos de Ramon agarraram-na pelos braços, e ele a fez girar, os dedos afundando em sua pele.
- Porque amo você! - ele disse entre os dentes cerrados, tenso. - E você me deixou num inferno durante
dois dias inteiros! - A voz dele soava rouca, profunda. - Eu amo você e tive de esperar por quase
quarenta e oito horas pela sua ligação, morrendo por dentro a cada hora que passava.
Com um sorriso lacrimoso, Katie pousou a mão no rosto dele, tentando suavizar as marcas da tensão
com a ponta dos dedos.
- Foram dois dias terríveis para mim também. Ramon abraçou-a com uma força arrebatadora, os lábios
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tomando os dela num beijo que exigia em resposta a mesma paixão turbulenta que ele lhe oferecia. As
mãos clamavam por seu corpo, acariciando-a desde a nuca até as costas, depois os seios, deslizando
para baixo e fazendo-a colar-se contra seus quadris e sentir sua ereção. Instintivamente, Katie moveu os
quadris contra os dele, fazendo-o gemer de desejo, e Ramon abraçou-a ainda mais, os beijos tornandose
mais profundos e ardentes.
Ramon separou os lábios dos dela, passando a beijá-la no rosto, nos olhos, no pescoço.
- Você ainda vai me levar à loucura, sabia? - murmurou roucamente.
Mas Katie não pôde responder. De novo tomando posse de seus lábios, ele a levava para um profundo
oceano de prazer, mergulhando em ondas que a impeliam para as profundezas de sua paixão faminta e
ansiosa.
Katie foi emergindo lentamente conforme a pressão dos lábios dele diminuía, e depois Ramon se
afastou. Sentindo-se perdida e abandonada, recostou o rosto no peito dele, o coração batendo
enlouquecido e ecoando em seus ouvidos.
Ramon segurou-lhe o rosto e ela fitou-o, sentindo-se desmanchar sob a nova ternura que via nos olhos
dele.
- Katie, eu me casaria com você mesmo se você tivesse casado mil vezes e se divorciado mil vezes em
todas as igrejas do mundo.
Ela mal reconheceu o sussurro enrouquecido em que sua voz se transformara.
- Achei que o motivo da sua raiva fosse por eu ter deixado as coisas irem tão longe entre nós, sem lhe
contar que já havia sido casada.
Ele balançou a cabeça.
- Fiquei furioso por saber que você estava mentindo a respeito de seu ex-marido estar vivo, por ter
usado isso como uma desculpa para não se casar comigo. E, também, por saber que você estava
aterrorizada pelo que sentia por mim, e ainda assim, eu não poderia ficar no país por tempo o bastante
para fazê-la superar esse medo.
Katie ficou na ponta dos pés e beijou-o nos lábios, mas quando Ramon tornou a abraçá-la, ela afastouse.
Distanciando-se da tentação que a proximidade dele significava, disse:
- Acho que preciso contar aos meus pais, antes que perca a coragem e que seja tarde demais. Depois
desta noite, teremos apenas três dias para tentarmos convencê-los a aceitar, antes de partirmos.
Katie foi para a mesa de canto, pegou o telefone e começou a discar o número de seus pais. Então,
olhou para Ramon.
- Pensei em avisá-los que iríamos até a casa deles, mas acho que seria melhor se viessem para cá. -
Enviou-lhe um sorriso nervoso, contido. - Afinal, podem expulsá-lo da casa deles, mas não da minha.
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Enquanto esperava que atendessem ao telefone, Katie passou a mão pelos cabelos revoltos, tentando
pensar no que diria. Quando sua mãe atendeu, ela nem sabia como começar.
- Olá, mamãe - disse. - Sou eu.
- Katie, aconteceu alguma coisa? Já são nove e meia.
- Não, não há nada de errado. - Katie fez uma pausa.
- Mamãe, se não for muito tarde, será que você e papai poderiam vir até aqui para beber alguma
coisa...?
Sua mãe riu.
- Sim, acho que podemos. Acabamos de voltar do clube. Estaremos aí em poucos minutos.
Katie procurava desesperadamente por um meio de manter a mãe no telefone, enquanto pensava em
como abordar o assunto principal.
- A propósito, é melhor trazer alguma bebida. Só tenho uísque em casa.
- Tudo bem, querida. Precisa de mais alguma coisa?
- Tranquilizantes e sais - ela murmurou.
- O que foi que disse, querida?
- Nada, mamãe. Preciso lhe dizer uma coisa, mas, antes disso, há algo que quero lhe perguntar.
Lembra-se de quando eu era criança e você me dizia que, não importava o que eu fizesse, você e papai
sempre iriam me amar? Você dizia que, por mais terrível que fosse, vocês...
- Katie - a mãe interrompeu-a bruscamente. - Se a sua intenção é me assustar, está conseguindo muito
bem.
- Ainda nem estou na metade - Katie suspirou com tristeza. - Mamãe, Ramon está aqui. Vou partir com
ele no domingo e vamos nos casar em Porto Rico. Quero conversar com você e com papai sobre isso,
ainda hoje.
Houve um instante de silêncio, antes que sua mãe voltasse a falar:
- Nós também vamos querer conversar com você a esse respeito, Katherine.
Katie desligou e voltou-se para Ramon, que a observava com uma expressão interrogativa.
- Já sou ”Katherine” de novo.
Porém, apesar da tentativa de brincadeira, Katie estava ciente do quanto seus pais ficariam devastados
com o que estava fazendo. Iria manter-se firme na decisão de partir para Porto Rico, não importava o
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que dissessem, mas ela os amava muito e detestava a infelicidade que estava prestes a lhes causar.
Esperou junto à janela, com Ramon ao seu lado, o braço enlaçando-lhe os ombros num gesto de
conforto. E soube, pela velocidade com que o par de faróis fez a curva na entrada do condomínio, que
seus pais haviam chegado.
Sentindo-se triste e apreensiva, Katie começou a andar na direção da porta, mas a voz de Ramon a fez
parar.
- Katie, se pudesse tirar esse peso dos seus ombros e do seu coração, eu o faria. Não posso. Porém,
posso prometer que, depois dos próximos três dias, você nunca mais terá de enfrentar nem um
momento sequer de infelicidade, se eu puder evitar.
- Obrigada - ela murmurou, aceitando a mão que ele lhe estendia e sentindo a reconfortante firmeza de
seus dedos entrelaçando-se nos dela. - Será que já lhe falei quanto gosto das coisas que você me diz?
- Não - ele respondeu com um leve sorriso. - Mas acho que este é um bom momento para começar.
Não houve tempo para Katie pensar no significado das palavras dele, pois a campainha já tocava com
insistência.
O pai de Katie, que era famoso pelo seu charme e boa educação, irrompeu para dentro do apartamento
como um furacão, aceitou o cumprimento de Ramon e foi logo dizendo:
- É um prazer tornar a vê-lo, Galverra, e tive o mesmo prazer em recebê-lo em minha casa no outro dia.
No entanto, acho um grande atrevimento de sua parte pedir Katie em casamento, e está completamente
maluco se acredita que vamos permitir uma coisa dessas.
A mãe de Katie, conhecida pela sua capacidade de manter a compostura mesmo em ocasiões de crises
extremas, entrou logo em seguida, segurando uma garrafa de bebida em cada mão.
- Jamais aceitaremos uma coisa dessas! - anunciou. Sr. Galverra, somos obrigados a pedir que se retire.
- A garrafa apontou majestosamente para a porta. - E você, Katherine, perdeu completamente o juízo.
Vá para o seu quarto. - A outra garrafa indicou o corredor.
Katie, que observava a cena com um misto de medo e fascinação, finalmente recobrou-se o bastante
para dizer:
- Papai, venha se sentar. Você também, mamãe. Quando os dois afundaram nas poltronas, Katie abriu a
boca para falar e só então percebeu que sua mãe continuava segurando as duas garrafas de bebida,
ambas apoiadas em seus joelhos.
- Mamãe, deixe-me pegar essas garrafas, antes que você se machuque.
Tendo retirado aquelas duas armas em potencial das mãos de sua mãe, Katie endireitou o corpo, tentou
pensar em como começaria e enviou um olhar pedindo socorro a Ramon.
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Ramon passou o braço pela cintura de Katie, ignorando o olhar furioso do pai, e falou calmamente:
- Katie concordou em viajar comigo no próximo domingo para Porto Rico, onde iremos nos casar.
Reconheço que é algo difícil para vocês aceitarem, mas será muito importante para Katie saber que
pode contar com o apoio de ambos no que estará fazendo.
- Bem, da minha parte não haverá apoio nenhum! o sr. Connelly disparou.
- Nesse caso - Ramon ponderou -, você estará obrigando-a a escolher, e todos nós perderemos. Ela
ainda irá comigo, mas vai odiar-me por ter causado este desentendimento entre vocês... E também irá
odiá-lo por não compreendê-la e por não desejar a sua felicidade. Para mim, é muito importante que
Katie seja feliz.
- Pois acontece que isso também é muito importante para nós! - o sr. Connelly retrucou, furioso. - Que
tipo de vida você pode oferecer a ela, levando-a para morar numa fazendinha miserável em Porto Rico?
Katie viu Ramon empalidecer, e achou que seria capaz de estrangular seu pai por atacar o orgulho dele
daquela maneira. Mas quando Ramon respondeu, seu tom de voz era tranquilo:
- Sim, a casa onde ela irá morar é pequena, mas sólida e firme. Ela sempre terá o que comer e roupas
para usar. E eu lhe darei filhos. Além disso, nada mais posso prometer a Katie, exceto que ela irá
acordar todas as manhãs sabendo que é muito amada.
Os olhos da mãe de Katie encheram-se de lágrimas e a hostilidade foi desaparecendo de sua expressão
quando olhou para Ramon.
- Ah, meu Deus... - ela murmurou.
O sr. Connelly, no entanto, estava apenas aquecendo-se para a batalha.
- Está dizendo que Katie será uma criada, uma mulher de fazendeiro, é isso?
- Não ela será a minha esposa.
- E vai trabalhar como uma mulher da fazenda! - o pai disparou com desprezo.
Ramon cerrou os dentes, ficando ainda mais pálido.
- Sim, ela terá de trabalhar um pouco.
- Será que tem consciência, Galverra, de que Katie pisou numa fazenda apenas uma vez em toda sua
vida? Eu me lembro nitidamente do que aconteceu naquele dia. - O olhar aguçado do sr. Connelly
voltou-se para a filha. Quer contar a ele sobre isso, Katherine, ou prefere que eu o faça?
- Papai, eu tinha apenas doze anos!
- E suas três amiguinhas também, Katherine. Mas elas não gritaram quando o fazendeiro torceu o
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pescoço da galinha. Não o chamaram de assassino em sua própria mesa, nem passaram os dois anos
seguintes recusando-se a comer frango. Não acharam que os cavalos ”fediam”, não ficaram com ”nojo”
de ver as vacas serem ordenhadas. Tampouco chamaram uma fazenda que valia uns tantos milhões de
dólares de ”um lugar malcheiroso repleto de animais imundos e grudentos”.
- Bem - Katie retrucou no mesmo tom irónico -, elas não caíram numa pilha de esterco, não foram
bicadas por um ganso e nem levaram um coice de um cavalo cego!
Virando-se para Ramon, como se tentasse se defender, ela ficou surpresa ao vê-lo fitando-a com um
sorriso nos lábios.
- Você está rindo agora, Galverra - o sr. Connelly falou com raiva -, mas não vai achar graça nenhuma
quando descobrir que a ideia de Katie sobre viver com um orçamento restrito é gastar tudo o que ganha
e enviar para mim as contas excedentes. Tudo o que ela sabe fazer numa cozinha é abrir latas e
embalagens de congelados, nunca pegou numa agulha e...
- Ryan, você está exagerando! - a sra. Connelly interrompeu-o inesperadamente. - Katie vive do próprio
salário desde que se formou na faculdade, e sim, ela sabe costurar.
Ryan Connelly parecia prestes a explodir.
- Ah, sim, ela faz uns bordados ou algo assim. Mas não muito bem. Até hoje ainda não descobri se
aquela coisa que ela bordou para nós é um peixe ou uma coruja, e você também não sabe!
Os ombros de Katie sacudiram-se com um ataque de riso irreprimível.
- É um cogumelo! - ela riu, virando-se para os braços abertos de Ramon. - Eu bordei quando tinha
catorze anos.
- Enxugando as lágrimas de riso, recostou-se no peito de Ramon e ergueu os olhos para ele. - Está
vendo? Eu pensei que eles iriam achar que você não era bom o bastante para mim.
- O que nós achamos é... - Ryan Connelly começou.
- É que Katie não está preparada para o tipo de vida que terá ao seu lado, sr. Galverra - a sra. Connelly
interrompeu-o. - A experiência de Katie em relação ao trabalho limita-se ao que fez quando estava na
faculdade, e depois em seu emprego: é trabalho intelectual, e não ”braçal”. Ela formou-se com louvor
na faculdade, e sei quanto se esforça para fazer um bom trabalho em seu emprego. Mas Katie não tem
nenhuma experiência com o que se pode chamar de trabalho ”físico”.
- E nem precisará ter, estando casada comigo - Ramon retrucou.
Ryan Connelly cessou de tentar mostrar-se razoável. Levantou-se da poltrona num salto, deu alguns
passos furiosos pela sala e depois virou-se, encarando Ramon com a raiva emanando de cada poro.
- Eu me enganei a seu respeito quando esteve em minha casa, Galverra. Imaginei que você devia ser
um homem orgulhoso e honrado, mas estava errado.
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Katie sentiu que Ramon enrijecia, enquanto seu pai prosseguia dizendo:
- Ah, sim, eu sabia que você era pobre, pois você mesmo fez questão de deixar isso bem claro, mas
ainda dei-lhe o crédito pela decência que demonstrou. Porém, agora você tem o atrevimento de ficar aí
nos dizendo que, embora não possa oferecer nada a Katie, ainda assim irá levá-la para longe de nós,
afastá-la de tudo o que ela conhece, da família, dos amigos... Pois eu lhe pergunto: essa é a atitude de
um homem decente e honrado? Responda-me, se tiver coragem.
Katie, prestes a interceder, lançou um rápido olhar para a expressão furiosa de Ramon e recuou. Num
tom baixo e implacável, ele respondeu com desprezo:
- Pois eu levaria Katie nem que fosse para afastá-la do meu próprio irmão! Esta resposta é suficiente
para você?
- É, sim, por Deus! Isso mostra exatamente o tipo de...
- Sente-se, Ryan - a sra. Connelly interrompeu-o, bruscamente. - Katie, você e Ramon vão para a
cozinha preparar nossas bebidas. Eu gostaria de falar com seu pai em particular.
Espiando pela fresta da porta, enquanto Ramon servia as bebidas, Katie viu a mãe aproximar-se de seu
pai e pousar a mão no ombro dele.
- Nós perdemos esta batalha, Ryan, e você está antagonizando o vencedor. Ramon está fazendo um
grande esforço para não lutar com você e, ainda assim, você o está acuando deliberadamente, de forma
que não lhe restará outra escolha senão retaliar.
- Ele ainda não é o vencedor, diabo! Não até que Katie entre com ele num avião. Até lá, ele continua
sendo o inimigo, mas não é o vitorioso.
A sra. Connelly sorriu.
- Ele não é nosso inimigo. Pelo menos, deixei de considerá-lo assim desde aquele momento em que ele
olhou para você e disse que Katie viverá cada dia de sua vida sabendo que é amada.
- Palavras! Nada além de palavras!
- Que foram ditas para nós, Ryan. Foram ditas com sinceridade e sem o menor constrangimento para os
pais de Katie... e não sussurradas para ela em algum momento de paixão. Não posso nem mesmo
pensar num homem que diria algo assim para os pais de uma garota. Ele não permitirá que ela sofra,
Ryan. Talvez não seja capaz de oferecer-lhe coisas materiais, mas lhe dará tudo o que realmente tem
importância na vida. Sei disso. Agora, é melhor você render-se com dignidade, antes que perca ainda
mais.
Quando o marido desviou os olhos dos dela, a sra. Connelly tocou-lhe o rosto, fazendo com que ele a
fitasse de novo. Os olhos dele, azuis, tão parecidos com os de Katie, estavam úmidos com as lágrimas.
- Ryan - ela falou com suavidade -, não é realmente a ele que você está fazendo objeções, não é?
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O sr. Connelly suspirou.
- Não - respondeu com a voz enrouquecida. - Na verdade, não tenho nada contra a pessoa dele. É que...
não quero que ele leve minha Katie embora. Ela sempre foi a minha preferida, você sabe, Rosemary. É
a única, dentre os nossos filhos, que sempre se importou comigo, a única que sempre reparou quando
eu estava cansado ou preocupado e que tentava me alegrar, que nunca pensou em mim como sendo
apenas aquele que lhe providenciava o dinheiro quando ela precisava. - Ele respirou fundo, com
dificuldade. - Katie sempre foi como um raio de sol em minha vida e, se ele a levar para longe, nunca
mais terei minha Katie iluminando-me.
Katie, sem saber que Ramon aproximara-se por trás dela, recostou-se na soleira da porta, sentindo as
lágrimas correrem pelo rosto.
Na sala, o sr. Connelly pegou o lenço e enxugou as lágrimas da esposa. A sra. Connelly conseguiu
esboçar um sorriso.
- Nós já deveríamos esperar por isso... É exatamente o tipo de coisa que Katie faria. Ela sempre foi tão
alegre e amorosa, tão pronta para entregar-se. Sempre fazia amizade com aquela criança desprezada
pelas outras, e levava para casa todos os cachorrinhos perdidos que encontrava pela rua. Até agora, eu
achava que David havia destruído aquela parte dela que sempre foi tão bela e desprendida, e Deus sabe
quanto o odiei por isso... mas não foi o que aconteceu.
- As lágrimas corriam livres pelas suas faces. - Ah, Ryan, será que você não vê? Katie encontrou outro
cachorrinho perdido que ela adora.
- O último deles acabou machucando-a seriamente Ryan lembrou.
- Mas este não vai machucá-la - sua esposa discordou.
- Ele irá protegê-la.
Abraçando a esposa, Ryan olhou para o outro lado da sala e viu que Katie também estava chorando nos
braços de Ramon, com o lenço dele numa das mãos. Com um rápido sorriso de conciliação para o
homem que abraçava sua filha de uma maneira tão protetora, ele disse:
- Ramon, será que você tem um lenço sobrando?
O breve sorriso de Ramon indicou que ele aceitava a trégua.
- Para as mulheres ou para nós?
Quando os pais de Katie saíram, Ramon perguntou-lhe se podia usar o telefone, e ela foi para a varanda
para lhe dar privacidade. Ficou vagando por ali, tocando as plantas que cresciam nos vasos, depois
sentou numa das cadeiras e olhou para as estrelas que se espalhavam pelo céu como se fossem
diamantes.
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Ramon aproximou-se da porta envidraçada e parou, impressionado com a beleza daquela cena. As
luzes vindas de dentro do apartamento emolduravam-na contra o céu de veludo escuro. Com os cabelos
caídos em ondas pelos ombros, havia uma doce maturidade no perfil de Katie, combinada com o
tranquilo orgulho de seu queixo erguido que, acrescentado à sua expressão distraída, davam-lhe uma
expressão ao mesmo tempo provocante e etérea.
Pressentindo a presença dele, Katie virou a cabeça.
- Há algo errado? - perguntou, referindo-se ao telefonema.
- Há, sim - ele disse com terna seriedade. - Tenho medo que, se chegar mais perto, acabarei
descobrindo que você é apenas um sonho.
Um sorriso doce, embora sensual, tocou os lábios dela.
- Pois eu sou bem real.
- Anjos não são reais. Nenhum homem pode esperar estender a mão e tocar um anjo.
O sorriso dela alargou-se.
- Quando você me beija, seus pensamentos não são nada angelicais.
Cruzando a porta para a varanda, ele foi até ela, os olhos fitando-a profundamente.
- E em que você está pensando, sentada aqui sozinha e olhando para o céu como se fosse uma deusa
adorando as estrelas?
Apenas o timbre da voz profunda e baixa foi capaz de deixá-la excitada. No entanto, agora que havia se
comprometido com ele, Katie sentia uma timidez peculiar.
- Estava pensando em como tudo isso é inacreditável. Em apenas sete dias, toda a minha vida mudou.
Não, não foram sete dias, foram sete segundos. No momento em que você falou comigo pela primeira
vez, toda a minha vida tomou um rumo diferente. Fico me perguntando o que teria acontecido se eu
passasse por aquele corredor cinco minutos depois.
Ramon a fez levantar-se delicadamente.
- Você não acredita em destino, Katie?
- Apenas quando as coisas dão errado.
- E quando tudo dá certo? Os olhos dela reluziram.
- Bem, quando tudo dá certo, é por causa do meu planejamento inteligente e trabalho dedicado.
- Obrigado - ele falou, com um sorriso que era quase infantil.
96
- Por quê?
- Por todas as vezes, nestes últimos sete dias, em que você me fez sorrir. - Ramon tomou-lhe os lábios
num beijo quente, meigo.
Katie deu-se conta de que Ramon não tinha intenção de fazer amor com ela naquela noite, e ficou grata
e emocionada por ele estar se contendo. Ela sentia-se física e emocionalmente exaurida.
- Quais são seus planos para amanhã? - Katie perguntou minutos depois, quando ele estava saindo.
- Meu tempo é todo seu - Ramon respondeu. - Eu pretendia partir para Porto Rico amanhã. Mas, desde
que só iremos no domingo, o único compromisso que tenho é o café da manhã que marquei com seu
pai.
- Gostaria de me levar para o trabalho amanhã cedo, antes de encontrar-se com ele? - Katie perguntou. -
Isso nos daria algum tempo juntos, e você pode me buscar mais tarde.
Ramon abraçou-a com força.
- Estamos combinados - sussurrou.
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CAPÍTULO 9
KATIE ESTAVA SENTADA à escrivaninha, girando distraidamente um lápis entre os dedos. Virgínia
encontrava-se numa reunião com a diretoria da empresa, e isso lhe daria um tempo até as 10.30 para
decidir-se. Uma hora e meia para resolver se pediria demissão ou se requisitava duas semanas de férias
e mais duas semanas de licença não remunerada.
Katie sabia o que Ramon queria - não, esperava - que ela fizesse. Ele esperava que ela se demitisse, que
rompesse com todos os laços. Se ela simplesmente requisitasse um mês de férias, em vez da demissão,
ele poderia sentir que ela não estava comprometendo-se completamente, que estava mantendo aberta
uma espécie de ”rota de fuga”, caso fosse necessário.
Seus pensamentos voltaram para a maneira como ele a olhara naquela manhã, quando chegara para
levá-la ao trabalho. Os olhos escuros haviam analisado seu rosto com aguçada intensidade. ”Você
mudou de ideia?”, ele perguntara, e quando Katie respondeu que não, Ramon a tomara em seus braços
e a beijara com um misto de violenta doçura e alívio profundo.
Cada momento que passava com Ramon ela sentia-se mais próxima dele emocionalmente. Seu coração,
fosse qual fosse o motivo, dizia que ele era o homem certo para ela, que estava agindo da maneira
acertada. Sua mente, no entanto, enviava-lhe constantes sinais de alerta. Dizia-lhe que
tudo estava acontecendo depressa demais, cedo demais e, pior, ficava atormentando-a com a impressão
de que Ramon não era o que parecia ser, que ele estava lhe escondendo alguma coisa.
Os olhos azuis de Katie nublaram-se. Naquela manhã ele chegara vestido com um belo suéter amareloescuro.
Por duas vezes, antes disso, ele aparecera com ternos elegantes e bem cortados. Katie achou tão
estranho que um fazendeiro, sobretudo um fazendeiro modesto, pudesse usar aquele tipo de roupas, que
decidiu perguntar-lhe sem rodeios.
Sorrindo, Ramon respondera que os fazendeiros podiam ter ternos e suéteres tanto quanto os outros
homens. Katie esforçara-se para aceitar tal resposta, mas quando tentou descobrir mais coisas a respeito
dele, Ramon evadira-se dizendo:
- Katie, você terá muitas perguntas sobre mim e sobre o nosso futuro, mas todas as respostas estão em
Porto Rico.
Recostando-se na cadeira, Katie ficou observando o alvoroço controlado na área de recepção do
departamento, onde os candidatos estavam preenchendo formulários, fazendo testes ou esperando ser
atendidos por ela mesma ou por um dos outros cinco funcionários que reportavam para Virgínia.
Talvez ela estivesse errada em sentir-se insegura a respeito de Ramon, pensou. Talvez ele não estivesse
sendo deliberadamente evasivo. Talvez aquele medo, incómodo e persistente, fosse apenas o resultado
da terrível experiência anterior de seu casamento com David.
No entanto, talvez não fosse nada disso. Ela teria de ir a Porto Rico para descobrir, mas até que todos
os seus temores fossem aplacados, não poderia pôr em risco o seu emprego. Se pedisse demissão
naquele dia, estaria saindo sem aviso prévio e, nesse caso, nunca mais poderia retornar à empresa, nem
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receberia boas referências se tentasse trabalhar em outro lugar. Além disso, Virgínia ficaria numa
posição bastante delicada se tivesse de explicar ao vice-presidente de operações, que acabara de
aprovar o aumento de Katie, que sua protegida havia se demitido sem aviso prévio, como se fosse uma
funcionária irresponsável e transitória.
Katie levantou-se e passou a mão distraidamente pelo coque impecável, depois encaminhou-se para a
área de recepção e passou direto pela mesa de Donna e das outras duas secretárias do departamento.
Dirigindo-se para um dos cubículos onde eram aplicados os testes de digitação e datilografia, colocou
uma folha de papel numa das máquinas elétricas e ficou olhando para o papel em branco, as mãos
indecisas posicionadas no teclado.
Ramon queria que ela se demitisse. Ele dissera que a amava. Igualmente importante, Katie sentia,
quase por instinto, que ele precisava dela, e muito. Sentia que seria deslealdade de sua parte se apenas
tirasse um mês de licença do trabalho. Considerou a possibilidade de mentir para ele sobre isso, mas a
honestidade significava muito para Ramon, e era algo que significava muito para ela também. Não
queria mentir para ele. Por outro lado, depois de ter concordado, na noite anterior, em ir a Porto Rico e
casar-se com ele, não conseguira imaginar um meio de explicar-lhe suas dúvidas e incertezas naquela
manhã. Nem mesmo estava certa de que seria sensato dizer a ele como se sentia. Se tivesse dito a
David que suspeitava de algo obscuro em seu caráter, ele teria encontrado um meio de ocultá-lo e
convencê-la do contrário. Parecia-lhe muito melhor simplesmente ir a Porto Rico e dar-se uma chance
de conhecer Ramon a fundo. Com o tempo, suas dúvidas seriam respondidas, ou suas suspeitas seriam
confirmadas.
Suspirando, Katie tentou pensar numa boa desculpa que pudesse dar a Ramon para a sua decisão de não
demitir-se do emprego. E a resposta veio numa súbita inspiração. Seria a verdade, iria aliviá-la do peso
do sentimento de deslealdade a ele, e era algo que ela seria capaz de fazê-lo entender. Era tão óbvio que
Katie ficou admirada por ter chegado a pensar em demitir-se sem aviso prévio.
Rápida e eficiente, datilografou um pedido formal a Virgínia para dois meses de férias, com início no
dia seguinte, e depois mais duas semanas de licença não remunerada. Naquela noite ela explicaria a
Ramon que seria impossível demitir-se sem aviso prévio para se casar. Os homens não se demitem dos
empregos para se casar e, se ela o fizesse, refletiria negativamente em todas as outras mulheres que
lutam com tanto empenho para oportunidades iguais de obter cargos de chefia. Um dos argumentos
mais frequentes contra a contratação de mulheres para cargos de gerência era justamente o fato de que
elas abandonam os empregos a fim de ter filhos, ou para seguir os maridos quando são transferidos para
outras cidades. O diretor de operações era o exemplo típico de macho chauvinista. Se Katie se
demitisse sem aviso prévio para se casar, ele jamais deixaria que a pobre Virgínia se esquecesse disso,
e acabaria encontrando algum motivo legal para desqualificar qualquer outra candidata que Virgínia
desejasse contratar para o lugar de Katie. Se, por outro lado, Katie se demitisse enquanto estivesse de
férias em Porto Rico, as duas semanas de licença que estava solicitando serviriam como período de
aviso prévio. Isso significava que ela teria apenas duas semanas para superar os temores relativos ao
seu casamento com Ramon.
Ainda assim, Katie sentiu-se bastante aliviada. Agora que pensava racionalmente, decidiu que, quando
e se pedisse demissão enquanto estivesse em Porto Rico, não iria apresentar como motivo o casamento.
Diria apenas o que os homens sempre diziam: estava saindo da empresa para ”aceitar uma posição
melhor”.
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Tendo decidido isso, Katie colocou outra folha de papel na máquina e escreveu uma carta de demissão
formal, datando-a com duas semanas de antecedência, a fim de aceitar um cargo mais recompensador.
Eram-quase 11.30 quando ela acabou de entrevistar os candidatos que estavam agendados para aquela
manhã. Pegando o pedido de férias e o pedido de demissão pré-datado, foi para o escritório de Virgínia,
mas então hesitou.
Virgínia estava ocupada em registrar os números num formulário, a cabeça inclinada e imersa em sua
tarefa. Parecia, como sempre, muito eficiente e feminina.
Ajeitando o blazer azul-marinho e as pregas da saia da mesma cor, Katie entrou na sala.
- Ginny, será que pode me ceder alguns minutos? perguntou, nervosa, chamando-a pelo apelido que
normalmente só usava fora do trabalho.
- Se não for muito urgente, dê-me uma meia hora para terminar este relatório - Virgínia respondeu, sem
olhar para cima.
A tensão de Katie crescia a cada segundo, e ela achou que não conseguiria aguentar mais meia hora.
- É... acho que é importante, Ginny.
Ao ouvir a voz trémula de Katie, Virgínia ergueu a cabeça no mesmo instante. Devagar, deixou a
caneta na mesa e observou-a aproximar-se, franzindo a testa num misto de curiosidade e preocupação.
Agora que chegara o momento, Katie não conseguia pensar em como começar. Entregou a Virgínia sua
carta com o pedido de férias e licença.
Virgínia leu-a rapidamente, e a expressão de surpresa substituiu a preocupação anterior.
- Este pedido de férias veio um tanto em cima da hora
- disse, deixando a carta de lado. - Mas você está com suas férias vencidas, e vou aprová-lo. Por que
está pedindo também uma licença de duas semanas?
Katie afundou na cadeira diante da escrivaninha.
- Quero ir a Porto Rico com Ramon. Enquanto estiver lá, vou decidir se me casarei ou não com ele. Se
por acaso eu decidir que sim... aqui está meu pedido de demissão. As duas semanas de licença servirão
como período de aviso prévio. Isto é, se você permitir que eu faça tudo dessa maneira.
Virgínia recostou-se na cadeira e encarou-a, atónita.
- Sobre quem você está falando? - perguntou.
- Ramon é o homem sobre quem lhe falei na quartafeira. - Quando Virgínia continuou fitando-a com
incredulidade, Katie acrescentou: - Ele tem uma pequena fazenda em Porto Rico. Quer que eu me case
com ele e vá morar lá.
100
- Meu Deus... - Virgínia murmurou.
Katie, que nunca a vira daquela maneira, tentou explicar:
- Sei que isso tudo é muito repentino, mas não inacreditável. É...
- Loucura... - Virgínia completou, parecendo finalmente recobrar-se do susto. Balançou a cabeça como
se quisesse clareá-la. - Katie, quando você mencionou esse sujeito, dois dias atrás, imaginei-o como
alguém não apenas atraente, mas possuindo um estilo de vida e uma sofisticação semelhantes aos seus.
Agora, você vem me dizer que ele é um fazendeiro porto-riquenho e que vai se casar com ele?
Katie assentiu.
- Acho que você perdeu o juízo, mas pelo menos foi sensata o bastante para não demitir-se e fechar
todas as suas portas, caso decida retornar. Em um mês, ou menos, você estará arrependida desse
impulso insano e romântico, para não dizer absurdo. Você sabe que tenho razão, pois do contrário não
estaria pedindo uma licença, mas sim demissão.
- Não é loucura e não estou agindo por impulso Katie discordou, os olhos implorando pela
compreensão de Virgínia. - Ramon é diferente...
- Pois aposto que sim! - Ginny exclamou com desdém. - Os homens latinos são bem conhecidos pelo
seu ”machismo”.
Katie ignorou o comentário, pois já sabia que Ramon era muito latino e muito ”machista”.
- Ramon é especial - disse, envergonhada por tentar expressar em palavras o que estava sentindo. - E
me faz sentir especial também. Não é fútil e vazio como a maioria dos homens que eu conheci até hoje.
- Vendo que Ginny não parecia nada convencida, acrescentou: - Ginny, ele me ama. Posso sentir que é
verdadeiro. E precisa de mim. Eu...
- É claro que ele precisa de você! - Ginny interrompeu-a. - Sendo um pequeno fazendeiro, com certeza
não pode pagar uma cozinheira, nem uma arrumadeira, tampouco uma companheira de cama. Portanto,
precisa de uma esposa que, pelo custo básico de cama e comida, fará o trabalho das três. - No instante
seguinte, Virgínia ergueu a mão num gesto de desculpas. - Desculpe, Katie, não devia ter dito isso. Não
devia estar impondo a você as minhas opiniões acerca do casamento. Mas acontece que sinto,
sinceramente, que você jamais vai se satisfazer com esse tipo de vida, não quando já experimentou
como é ser uma mulher independente.
- Isso não é o bastante para mim, Ginny - Katie afirmou com tranquilidade e segurança. - Muito antes
de conhecer Ramon, eu já me sentia dessa forma. Não posso ser feliz devotando toda minha vida a mim
mesma... à minha carreira, minha próxima promoção, meu futuro. Não que seja uma vida solitária, pois
nunca me sinto sozinha. Mas é uma vida vazia; sinto-me inútil e sem sentido.
- Será que faz ideia de quantas mulheres anseiam pelo que você tem? Sabe quantas mulheres desejam
poder pensar apenas em si mesmas?
101
Katie assentiu, ciente de que estava, de uma forma indireta, rejeitando o modo de vida de Ginny, bem
como o seu próprio.
- Eu sei. Talvez isso seja o certo para elas, mas não é para mim.
Ginny consultou o relógio e levantou-se.
- Preciso me apressar. Tenho uma reunião no centro da cidade e só estarei de volta depois que você
sair. Não se preocupe em me ligar daqui a duas semanas. Tire o mês inteiro de férias e, caso se decida
pela demissão, eu simplesmente arquivo sua ficha e digo que você me deu o aviso prévio. Não estarei
seguindo à risca as regras da empresa, mas, afinal, para que servem os amigos? - Passou de novo os
olhos pela carta e sorriu ao ler o motivo da demissão que Katie apresentara. - ”Para aceitar um cargo
melhor” - citou. - Muito bem pensado.
Katie também se levantou, os olhos ardendo com as lágrimas de gratidão.
- Nesse caso, acho que devemos nos despedir...
- Não, Katie - Ginny retrucou rindo, enquanto guardava a papelada na pasta de couro. - Daqui a duas
semanas você estará começando a se sentir entediada. Daqui a um mês sentirá falta dos desafios da sua
carreira. Você vai voltar. Nesse meio tempo, espero que aproveite bem suas férias. Afinal, creio que é
disso que está precisando. Está apenas cansada. Nós nos veremos daqui a um mês... ou antes, talvez.
Cinco minutos depois das 5.00 da tarde, Katie passou pelas portas giratórias e correu na direção da
calçada, onde Ramon estacionara o carro e estava à sua espera. Deslizando para dentro do veículo, ela
enfrentou bravamente seu olhar interrogativo e disse:
- Tirei um mês de férias, em vez de pedir demissão. A expressão dele enrijeceu e Katie virou-se no
assento a fim de encará-lo.
- Fiz isso porque...
- Agora não! - ele disparou bruscamente. - Vamos falar sobre isso quando chegarmos ao seu
apartamento.
Entraram juntos no apartamento, sendo que nenhum deles dissera uma palavra sequer durante todo o
trajeto de 35 minutos. Os nervos já em frangalhos de Katie retesaram-se ainda mais quando ela deixou
a bolsa na mesa, tirou o blazer e virou-se para ele. Consciente de quanto Ramon estava zangado,
perguntou, cautelosa:
- Por onde quer que eu comece?
Ele estendeu as mãos, agarrando-a pelos braços.
- Comece me dizendo por quê! - ordenou com rispidez, sacudindo-a. - Por quê?
Katie conseguiu manter os olhos amedrontados fixos nos dele.
102
- Por favor, não olhe para mim desse jeito. Sei que está magoado e zangado, mas não deveria estar.
Lentamente, ela deslizou as mãos sob a malha macia do suéter dele, espalmando-as sobre o peito
musculoso, tentando acalmá-lo e acariciá-lo.
Mas o gesto surtiu o efeito contrário. Ramon puxou-lhe as mãos, afastando-se.
- Não tente me distrair com suas carícias, de nada vai adiantar. Isso não é uma brincadeira, Katie!
- Pois eu não estou brincando! - ela disparou de volta, desvencilhando-se dele com uma força que
refletia sua própria raiva crescente. - Se achasse que tudo não passa de brincadeira, eu teria mentido e
lhe dito que pedi demissão.
- Foi com passos duros até o centro da sala e girou, tornando a encará-lo. - Decidi pedir um mês de
férias para que eu possa demitir-me quando estiver em Porto Rico por vários motivos importantes. Em
primeiro lugar, Virgínia Johnson não é apenas minha chefe, é alguém a quem respeito e de quem gosto
imensamente. Se eu me demitisse sem aviso prévio, iria colocá-la numa situação constrangedora e
delicada.
Katie ergueu o queixo com determinação, prosseguindo com seu discurso nervoso e apaixonado:
- E quanto aos homens? Se eu me demitir sem aviso prévio, estarei lhes dando um motivo perfeito para
sentirem-se vingados e superiores, pois os homens não deixam seus empregos para se casar. Recuso-me
terminantemente a ser uma traidora do meu próprio sexo! Portanto... quando eu me demitir em Porto
Rico, com aviso prévio, direi que estou saindo para aceitar ”um cargo melhor”. Que, na minha opinião,
é ser sua esposa! - ela finalizou, desafiadora.
- Obrigado - Ramon falou, quase com humildade. Sorrindo, começou a andar na direção dela.
Katie, que agora estava prestes a explodir, recuou alguns passos.
- Ainda não terminei - disse, o rosto vermelho, os olhos luzindo de indignação. - Você me disse que
queria que fôssemos honestos e sinceros um com o outro, e, quando fui sincera com você, zangou-se
comigo e tentou intimidar-me. Se devo ser completamente sincera com você, preciso saber que, não
importa quão difícil seja a verdade, não irá zangar-se ao ouvi-la. Você foi muito injusto e insensível há
pouco e acho que tem um génio terrível!
- Já terminou? - ele perguntou num tom suave.
- Não, ainda não! - ela gritou, batendo o pé no chão.
- Quando o toquei, queria apenas sentir-me próxima de você. Não estou de ”brincadeira” e detesto a
maneira como você me tratou! - Tendo esgotado suas queixas, olhou por cima do ombro dele,
recusando-se a fitá-lo. A voz de Ramon era profunda, tentadora:
- Gostaria de me tocar agora?
103
- Nem em sonhos!
- Nem mesmo se eu lhe pedir desculpas e disser que quero muito que me toque?
- Não.
- Não quer mais ficar perto de mim, Katie?
- Não, não quero.
- Olhe para mim. - Ramon segurou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-lo. - Eu a magoei, e você me
magoou de volta, e agora nós dois estamos feridos. Podemos esfregar nossas dores na cara um do outro
até que a raiva passe, ou podemos parar agora e começar a aprender mutuamente como curar nossas
feridas. Não sei como você prefere fazer.
Fitando aqueles olhos intensos, Katie percebeu que ele falava a sério: queria que ela decidisse se
transformariam a batalha em guerra, pelo menos até que toda a irritação se esgotasse, ou se ela lhe diria
o que fazer para que a acalmasse. Por fim, engolindo em seco, ela falou:
- Eu... gostaria que você me abraçasse.
Com uma doçura quase dolorosa, Ramon enlaçou-a em seus braços.
- E gostaria que você me beijasse...
- Como? - ele sussurrou.
- Com os seus lábios - ela respondeu, confusa com a pergunta.
Os lábios dele roçaram os dela com sensualidade, quentes, mas não abertos.
- E com a sua língua - Katie esclareceu, sem fôlego.
- E você me dará a sua? - ele perguntou, começando a lhe dizer como queria ser acalmado.
Katie assentiu, e Ramon abriu os lábios sobre os dela com urgência, suas línguas tocando-se e
mesclando-se. As mãos dele passaram a acariciá-la sem cessar, desde os ombros, seguindo pela coluna,
até os quadris. Sua boca a devorava quando levou-a para o sofá, deitou-se ao lado dela e começou a
abrir os botões de sua blusa. Impaciente por não conseguir, pediu, num tom ansioso, baixo:
- Abra a blusa.
Katie pareceu levar uma eternidade abrindo os botões, pois suas mãos estavam trémulas, e Ramon não
parou de beijá-la nem por um instante. Quando o último botão finalmente foi aberto, ele afastou os
lábios dos dela e sussurrou:
- Quero que tire a blusa para mim.
104
O coração de Katie disparou, enquanto puxava os braços das mangas, deixando a blusa de seda branca
deslizar pelas costas. O olhar de Ramon fixou-se em seu sutiã de renda.
- Tire isso também.
Com o fogo percorrendo cada nervo de seu corpo, Katie abriu o fecho do sutiã e tirou-o. Seus seios
cheios e macios enrijeceram sob o olhar possessivo dele, os mamilos ardendo sob o toque sensual. Sem
desviar os olhos brilhantes de paixão, ele disse:
- Um dia quero ver nosso filho em seu seio, Katie.
O constrangimento de Katie diante da reação óbvia de seu corpo ao olhar dele foi eclipsado pelo desejo
violento que a percorreu. Respirando fundo, ela disse:
- Neste exato momento, eu prefiro ver você...
- Então entregue-o para mim, Katie.
Uma excitação incontrolável atingiu-a, enquanto passava uma das mãos pelo pescoço dele e puxava-lhe
a cabeça, ao mesmo tempo que erguia o seio, oferecendo-lhe o mamilo rígido. Quando Ramon
começou a sugá-lo, ela quase gritou de prazer. No momento em que os lábios dele se afastaram, o
desejo a percorria como um fogo líquido.
- Dê-me o outro - ele pediu, a voz rouca.
As mãos trémulas de Katie seguraram o outro seio, levando-o à boca dele. No instante em que os lábios
de Ramon tocaram-na, ela sentiu-se prestes a explodir.
- Pare, por favor - pediu, ofegante. - Preciso de você agora, não posso mais suportar.
- Não pode? - ele sussurrou, os lábios explorando a curva de seu pescoço, o rosto, as orelhas, enquanto
estendia-se ao seu lado.
Perdida num frenesi de desejo, Katie sentiu as mãos dele deslizarem por baixo de sua saia e em seguida
puxando a calcinha dos quadris até o meio de suas coxas.
Ramon gemeu baixinho, traçando uma trilha entre as pernas dela com a ponta do dedo.
- Você me quer, mas ainda não precisa de mim - murmurou, buscando-lhe a boca com uma insistência
exigente.
Katie quase soluçava com o desejo de ser possuída, as mãos acariciando febrilmente os músculos
tensos das costas e ombros dele.
- Preciso de você - sussurrou, abrindo os lábios sob os dele. - Por favor...
105
Ramon ergueu a cabeça e fitou-a.
- Você não precisa de mim. - Tomando-lhe uma das mãos, pressionou-a fortemente contra sua rígida
ereção. Isso sim é precisar, Katie.
Abrindo os olhos nublados de desejo, ela fitou-lhe o rosto tenso, enquanto ele dizia:
- Você me quer quando a tomo nos meus braços, mas eu preciso de você a todo momento, a toda hora.
É uma dor que nunca me abandona, um desejo de torná-la minha que é capaz de sufocar-me. -
Abruptamente, perguntou:
- Você sabe o que é o medo?
Confusa por aquela súbita mudança de assunto, Katie examinou os traços másculos e sombrios, mas
não tentou responder.
- O medo é saber que não tenho o direito de querer você, e saber que não posso impedir-me disso. E
temer o momento em que você verá a casa em que terá de morar e decidirá que não me quer o bastante
para ficar ali.
- Não pense assim, Ramon - ela pediu, acariciando-lhe os cabelos. - Por favor, não pense assim.
- O medo é ficar acordado a noite inteira, perguntando-me se você decidirá não se casar comigo, e
imaginando se serei capaz de suportar essa dor. - Gentilmente, ele enxugou a lágrima que despontava
num dos olhos de Katie.
- Tenho medo de perdê-la, e se isso me torna um sujeito ”insensível” e com um ”génio terrível”, então
peço as mais humildes desculpas. É apenas porque tenho medo.
Desmanchando-se de ternura, Katie segurou o rosto dele entre as mãos e fitou os profundos olhos
negros.
- Em toda a minha vida - sussurrou -, nunca conheci um homem com coragem suficiente para admitir
que tem medo.
- Katie...
O nome dela foi pronunciado num gemido que emergiu de seu peito, enquanto os lábios buscavam-na
de novo, com uma ânsia e desejo incontroláveis, guiando-a para o clímax, para tão perto do limite
quanto ela deliberadamente o levava. E, então, a campainha tocou.
- Não atenda! - Katie implorou quando ele afastou-se de seus braços e levantou-se. - Seja quem for,
acabará indo embora.
Enviando-lhe um olhar desolado, Ramon passou as mãos pelos cabelos a fim de restaurar-lhes a ordem.
- Não, não irá. Com toda essa... agitação... eu me esqueci de lhe dizer que seus pais estavam vindo para
cá, para jantar conosco e ajudar-nos a arrumar as coisas.
106
Katie levantou-se num pulo, recolhendo as roupas espalhadas, enquanto disparava para o quarto.
- Corra e vá abrir a porta, ou eles vão adivinhar o que estávamos fazendo - disse a ele, vendo que
Ramon limitava-se a ficar parado ao lado do sofá, com as mãos na cintura.
- Katie - ele disse com um sorrisinho malicioso -, se eu os deixar entrar agora, eles verão o que
estávamos fazendo.
- O quê? - ela perguntou, parada na soleira da porta do quarto, o olhar perplexo percorrendo o sofá em
busca de evidências incriminadoras, depois para o chão, e para o corpo de Ramon. - Ah... - disse, então,
ruborizando como uma adolescente.
Katie tirou as roupas com uma pressa enlouquecida, dizendo a si mesma que estava sendo absurda.
Tinha 23 anos, já fora casada, e iria casar-se com Ramon. Não havia dúvida de que seus pais sabiam
que já fizera amor muitas vezes. Afinal, seus pais eram pessoas sensatas, modernas. Muito sensatas e
modernas... exceto quando se referia ao comportamento dos filhos.
Exatamente quatro minutos depois do primeiro toque da campainha, Katie saiu do quarto usando uma
calça comprida caqui, um suéter cor de creme e os cabelos escovados e soltos nos ombros. Conseguiu
cumprimentar a mãe com um sorriso de alegria, mas o rosto permanecia ligeiramente rubro, os olhos
langorosos e, por dentro, tremia com os choques retardados da excitação do desejo.
Encontrou Ramon, que parecia totalmente à vontade, preparando as bebidas na cozinha, rindo de
alguma coisa que seu pai dissera.
- Vou levar as bebidas para a sala - Ryan Connelly falou, pegando dois copos. Virando-se, viu a filha
fitando o perfil de Ramon. - Querida, você está maravilhosa disse, plantando um sonoro beijo em sua
testa. - Ramon deve ser muito bom para você.
Katie ruborizou-se ainda mais, enquanto sorria para o pai. Esperou até que ele desaparecesse na sala e
voltou-se para Ramon, que colocava pedras de gelo nos outros dois copos. Um sorriso tocou os cantos
dos lábios dele. Sem nem mesmo olhá-la, ele disse:
- Você está se ruborizando, querida. E está maravilhosa.
- Obrigada - ela falou, com um divertimento exasperado. - Estou com a aparência de quem acabou de
fazer amor, e você aí, parecendo que acabou de ler o jornal. Como pode ficar tão calmo?
Ela estendeu a mão para pegar um dos copos, mas ele foi mais rápido e puxou-a para si, abraçando-a e
beijando-a longamente.
- Não estou calmo, Katie - sussurrou, os lábios colados nos dela. - Estou ardendo de desejo por você.
- Katie? - a sra. Connelly chamou da sala, fazendo com que ela desse um pulo de susto. - Vocês dois
vêm para cá, ou devemos ficar esperando na varanda?
- Estamos indo, mamãe - Katie apressou-se em responder. Enviando um olhar sorridente para Ramon,
107
falou:
- Certa vez li um romance em que todas as vezes que o homem e a mulher iam fazer amor, o telefone
tocava, ou alguém batia na porta, ou algo acontecia para impedi-los.
O sorriso dele foi lento, preguiçoso.
- Isso não acontecerá conosco. Eu não vou permitir.
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CAPÍTULO 10
O SOL REFLETIA-SE no grande jato em seu rumo ao sudeste, a 10.000 m de altitude.
Tomando cuidado para não incomodar Katie, que dormia com a cabeça recostada em seu ombro,
Ramon estendeu o braço e fechou a proteção da janela, evitando que o brilho do sol batesse no lindo
rosto adormecido. Até o momento, o voo estava sendo muito turbulento e vários passageiros
demonstravam sinais de alarme. Mas não Katie, ele pensou com um sorriso terno. Sob aquele exterior
tão deliciosamente feminino e frágil, Ramon descobria que ela possuía uma enorme coragem, força e
determinação.
Mesmo no dia anterior, e naquele dia, quando a evidente tristeza dos pais dela acerca de sua partida
iminente colocara um terrível peso de culpa nos delicados ombros de Katie, ela suportara a infelicidade
com uma tranquila compreensão e uma determinação sorridente, apesar da forte pressão emocional que
ele sabia que estava sentindo.
Na noite de sexta-feira os pais de Katie tinham se oferecido para cuidar da sublocação do apartamento,
e para empacotar o restante de suas coisas que seriam enviadas mais tarde para Porto Rico. Depois,
insistiram para que os dois passassem o fim de semana na casa deles, em vez de ficarem no
apartamento. Embora aceitasse o convite, Ramon não teve a chance nem a desculpa de estar a sós com
ela em nenhum momento.
Com o passar das horas, ele havia observado a crescente tensão de Katie, preparando-se para o
momento em que ela pesaria um futuro incerto ao lado dele em relação ao amor e segurança que seus
pais e seu emprego ainda lhe ofereciam, e lhe diria que havia mudado de ideia a respeito de ir para
Porto Rico. Movido pelo egoísmo, ansiava por levá-la de volta para o apartamento onde poderia
abraçá-la e onde, com tempo e privacidade, poderia fazer com que a paixão sobrepujasse a razão. No
entanto, mesmo sem os estímulos físicos do desejo, Katie não abandonara a corajosa resolução de partir
com ele.
Os longos cílios formavam uma sombra em suas faces delicadas, e Ramon deliciou-se em observar a
pura beleza de seu perfil. Estava contente por ter reservado lugares na primeira classe, pois os assentos
eram mais espaçosos. Katie erradamente presumira que o motivo de terem tido a ”sorte” de conseguir
aqueles lugares era o fato de a companhia aérea ter excedido as vendas da classe turística e, por isso,
oferecido a eles os assentos na primeira classe, pelo mesmo preço. Ramon deixou-a acreditar nisso.
Um sentimento de amargura perpassou-o, enrijecendo as linhas de seu rosto, e ele virou-se para olhar
pela janela do outro lado do corredor. Poucos meses antes ele teria condições de levar Katie para Porto
Rico no jato particular da companhia Galverra International, com as esplêndidas acomodações que
incluíam um quarto de dormir, salas de estar e de jantar, todo mobiliado com antiguidades e revestido
com um carpete branco. Katie teria apreciado o conforto, ele pensou. Mas teria ficado ainda mais
impressionada com o jatinho Lear que havia sido sua propriedade particular, no qual ele voara para St.
Louis e que, agora, encontrava-se num hangar do aeroporto dessa cidade.
O jatinho Lear pertencera a ele e não à corporação, mas, como tudo o mais que Ramon possuía,
incluindo as casas, a ilha e o iate, havia entregado o avião como garantia para os empréstimos que a
companhia fizera, e que agora não tinha como pagar. De que adiantaria ter levado Katie para Porto
109
Rico no Lear, dando-lhe uma pequena amostra da vida luxuosa que ele poderia ter lhe oferecido,
quando isso serviria apenas para fazer com que a vida que agora era capaz de lhe dar parecesse ainda
mais pobre e insípida, em comparação?
Cansado, Ramon recostou a cabeça no assento e fechou os olhos. Não tinha o direito de pedir que Katie
compartilhasse de seu exílio, de privá-la do apartamento luxuoso, da carreira, e pedir que fosse viver ao
seu lado numa fazenda, num chalé reformado. Era egoísmo de sua parte, mas Ramon não conseguia
pensar numa vida sem a presença dela. Pouco tempo antes, poderia ter dado tudo a ela, e agora não
podia lhe dar mais nada... nem mesmo a honestidade. Não por enquanto.
Ramon tinha várias reuniões agendadas para o dia seguinte, uma das quais com o seu contador, e
agarrava-se à frágil esperança de que sua situação financeira pessoal não fosse tão desastrosa quanto
parecia. Depois dessa reunião saberia com precisão em que pé se encontrava, e então teria de descobrir
um meio de explicar a Katie quem ele de fato era, e o que havia sido. Insistira tanto na honestidade e
sinceridade entre eles e, embora não tivesse exatamente mentido para ela, agora lhe devia a verdade -
toda a verdade. A ideia de dizer a Katie que ele fora um fracasso fazia seu estômago se contorcer.
Ramon não se importava que o mundo inteiro pensasse nele nesses termos, mas era insuportável saber
que seria um fracassado aos olhos de Katie.
Já havia sido difícil o bastante explicar a situação ao pai dela, no encontro que tiveram na sexta-feira de
manhã. O afeto pelo seu futuro sogro suavizou as feições tensas de Ramon, quando lembrou-se do
início inesperadamente hostil daquele encontro no café da manhã.
Quando Ramon entrara no clube exclusivo em que haviam combinado se encontrar, Ryan Connelly o
esperava com uma raiva mal contida irradiando-se por todo seu corpo.
- Que diabo de brincadeira é essa que está fazendo, Galverra? - o sr. Connelly lhe perguntara, num tom
baixo e furioso, assim que Ramon sentou-se à mesa. - Por que anda dizendo por aí que é apenas um
pequeno fazendeiro? Eu estava ficando maluco, pois tinha certeza de que já o conhecia de algum lugar.
Não era apenas o seu nome que me era familiar, mas o seu rosto também. Ontem à noite lembrei-me de
uma matéria que li sobre você na revista Time e...
À medida que Ramon explicava ao pai de Katie sobre o colapso iminente da Galverra International, a
fúria de Connelly fora substituída primeiro pela perplexidade e, depois, pela compreensão compassiva.
Ramon tentara não sorrir quando Ryan lhe oferecera uma ajuda financeira. O pai de Katie era um
homem rico mas, como Ramon lhe explicara, seriam necessários mais de cem investidores como ele
para reerguer a companhia Galverra International. Do contrário, ela ainda iria desabar sob seu próprio
peso e levar consigo todos aqueles que haviam investido na corporação.
O jato mergulhou assustadoramente numa forte turbulência, depois voltou para cima com um impulso
de virar o estômago.
- Estamos aterrissando? - Katie murmurou.
- Ainda não - Ramon respondeu. Roçou os lábios em seus cabelos perfumados. - Continue dormindo.
Eu a acordo quando estivermos chegando a Miami.
110
Obediente, Katie fechou os olhos e aconchegou-se mais contra ele.
A porta da cabine abriu-se e o piloto saiu, indo em direção ao lavatório. O passageiro sentado na frente
de Ramon o deteve, fazendo algumas perguntas e, quando o piloto abaixou-se para responder, Ramon
reparou que os olhos dele examinavam o rosto de Katie com apreciação, demorando-se ali enquanto
falava com o homem. Ramon sentiu um lampejo de irritação, que imediatamente identificou como
sendo ciúme.
Ciúme - esta era outra emoção com a qual ele precisava aprender a lidar, por causa de Katie. Depois de
lançar um olhar gélido para o desafortunado piloto, Ramon pegou a mão de Katie e entrelaçou os dedos
nos dela. Suspirou, resignado. A julgar por aquela amostra, o ciúme com certeza seria seu companheiro
constante.
Apenas atravessar o saguão do aeroporto com ela, e observar os homens que se viravam para olhá-la, já
havia lhe provocado uma intensa irritação. Usando um vestido de seda azul-turquesa que deixava à
mostra as pernas longas e bem torneadas, realçadas pelos sapatos de salto alto, Katie parecia uma
modelo. Não... As modelos que ele conhecia não possuíam aquelas curvas provocantes, nem a
perfeição de seus traços. Elas tinham glamour. Katie era linda.
Katie flexionou os dedos, e ele deu-se conta de que estivera apertando-lhe a mão possessivamente.
Com um movimento leve, sensual, passou a ponta do dedo em sua palma. Mesmo no sono ela reagiu
àquela carícia e moveu-se para mais perto dele. Deus, como ele a desejava! Só de tê-la ali, aconchegada
contra seu ombro, já o fazia arder de desejo e ternura.
Tornando a recostar-se, Ramon fechou os olhos de novo e suspirou de prazer. Ele havia conseguido!
Conseguira levar Katie para aquele avião, com ele! Ela iria para Porto Rico. Iria ser sua. Ele admirava
sua independência e inteligência, e adorava a vulnerabilidade e meiguice que ela possuía. Katie era a
personificação de tudo do que ele gostava numa mulher: era feminina sem ser dependente e fútil;
orgulhosa, sem ser esnobe; assertiva, sem ser agressiva. Quanto ao sexo, era liberada na teoria, mas não
na prática, o que o agradava imensamente. Ramon sabia que detestaria a ideia de que ela havia se
entregado casualmente a outros homens. Ela era muito mais especial e preciosa a ele porque escolhera
não entregar-se ao sexo casual. O que, ele supunha, o tornava culpado de aplicar padrões diferentes
para a moralidade de homens e mulheres, considerando-se o número de namoradas que ele próprio
tivera, desde St. Moritz até St. Croix, naquela última década.
Ramon sorriu por dentro, pensando em como Katie ficaria furiosa se soubesse o que ele realmente
pensava a respeito de sua moralidade. Entre outras coisas, ela o acusaria de antiquado e de machista, o
que não deixava de ser engraçado, pois Ramon desconfiava que o motivo pelo qual ela sentira-se
atraída por ele era justamente...
A breve sensação de prazer foi subitamente apagada pela mesma dúvida que crescia mais e mais dentro
dele, nos últimos dias. Ramon não sabia por que Katie sentira-se atraído por ele. Não sabia por que ela
achava que devia casar-se com ele, não fazia ideia dos motivos que a levaram a decidir segui-lo para
Porto Rico. O único motivo válido seria porque o amava.
Mas ela não o amava.
111
Ramon recuou mentalmente diante dessa verdade, embora soubesse que teria de encará-la e aceitá-la.
Nem uma vez sequer Katie havia mencionado a palavra amor. Três noites antes, quando ele dissera que
a amava, as palavras tinham explodido de dentro dele, mas ainda assim ela preferira agir como se não
tivesse escutado. Como era irónico que, na primeira vez em sua vida que dizia a uma mulher que a
amava, ela não fosse capaz de dizer que o amava também.
Com uma pontada de tristeza, perguntou-se se essa seria a maneira de o destino castigá-lo por todas as
vezes em que as mulheres lhe confessavam seu amor, e em que ele respondera apenas com o silêncio,
ou com um sorriso descompromissado, porque se recusava a declarar uma emoção que não sentia.
Porém, se Katie não o amava, por que estava naquele avião? Sim, ela o desejava sexualmente, Ramon
sabia disso. Desde o primeiro instante em que a tomara nos braços, ele estivera forçando-a a querer
mais, acendendo implacavelmente as chamas do seu desejo por ele. Ao que parecia, a paixão era a
única coisa que ela sentia por ele; o desejo, o único motivo de ela estar ali ao seu lado.
Não, diabo, não podia ser verdade, pensou. Katie era inteligente demais para pensar em casar-se com
ele levada apenas por um impulso sexual. Ela devia sentir algo além disso. Afinal, desde o início
existira uma enorme atração entre eles, que era tanto emocional quanto física. Mas, se ela não o amava,
ele seria capaz de manter aquele relacionamento apenas no plano físico? E, mesmo se conseguisse,
suportaria viver com ela, sabendo que seus sentimentos eram tão mais profundos e sólidos do que os
que ela lhe dedicava?
112
CAPITULO 11
Ao RETORNAR DO BANHEIRO do aeroporto, Katie encaminhou-se para a área de retirada de
bagagem, onde suas malas estariam chegando do voo de Miami para San Juan.
Um arrepio de antecipação perpassou-lhe a espinha, enquanto ouvia os rápidos e incompreensíveis
fluxos de espanhol, intercalados com a sua própria língua, e que eram falados em toda sua volta. À sua
esquerda, um grupo de homens loiros e bem-vestidos falava o que ela julgou ser o idioma sueco. Atrás
dela havia uma grande concentração de turistas, conversando em francês fluente. Porto Rico, Katie
deu-se conta com alegre surpresa, devia ser um lugar de turismo que atraía pessoas do mundo inteiro.
Procurando entre a multidão que se aglomerava em volta das esteiras, viu quando Ramon fez sinal para
um carregador, que imediatamente mudou de direção, levou o carrinho para perto dele e começou a
enchê-lo com as seis malas Gucci que ela trouxera. Katie sorriu consigo mesma, porque todas as outras
pessoas estavam acenando freneticamente e chamando os ocupados carregadores, tentando atrair-lhes a
atenção, mas tudo o que Ramon precisou fazer foi assentir com a cabeça. E não era de admirar, pensou
com orgulho. Vestido com um elegante terno escuro e gravata conservadora, ele era o homem mais
atraente que ela já vira. Havia uma aura de implacável autoridade e tranquila determinação em torno
dele, que nem mesmo um carregador deixava de perceber. Olhando-o, Katie achou que ele parecia um
bem-sucedido homem de negócios, e não um fazendeiro em dificuldades. Calculou que o carregador
tivera a mesma impressão e, provavelmente, esperava ganhar uma boa gorjeta pelos seus serviços. Com
um certo desconforto, perguntou-se se Ramon saberia disso.
Por que não sugerira que carregassem a própria bagagem?, pensou. É verdade que teriam de ir e voltar
duas ou três vezes, embora Ramon estivesse levando apenas uma mala grande e outra pequena. Ela
precisava aprender a ser mais económica, lembrar-se de que Ramon não tinha muito dinheiro e que até
precisava trabalhar como motorista de caminhão para ganhar um salário extra.
- Está pronta? - ele perguntou, pousando a mão no braço dela e guiando-a através do aeroporto lotado.
Vários táxis alinhavam-se junto à calçada, à espera dos passageiros. O carregador encaminhou-se para
o primeiro carro da fila, enquanto Katie e Ramon o seguiam.
- O tempo aqui é sempre assim tão bom? - ela perguntou, erguendo o rosto para o céu de puro azul,
pontilhado de nuvens brancas e esparsas.
O prazer no sorriso dele lhe disse quanto desejava que ela gostasse de seu futuro lar.
- Normalmente é, sim. A temperatura costuma permanecer na casa dos vinte e oito graus, e os ventos
vindos do oeste fornecem uma brisa que... - Ramon voltou os olhos para o carregador, verificando até
aonde ele ia, e deixou a frase incompleta.
Seguindo seu olhar zangado, Katie levou um susto ao ver a bagagem sendo guardada no porta-malas de
um imponente Rolls-Royce cor de vinho, que esperava no início da fila dos táxis. Um motorista,
usando uniforme preto impecável e boné de aba, estava parado ao lado do veículo. Assim que Katie e
Ramon se aproximaram, ele abriu a porta traseira com um floreio, afastando-se para que eles
entrassem.
113
Katie parou na calçada e lançou um olhar interrogativo para Ramon, que já disparava perguntas ao
motorista, falando em espanhol. Fosse qual fosse a resposta do homem, pareceu deixar Ramon furioso.
Sem nada dizer, ele pousou a mão nas costas de Katie e empurrou-a levemente para o interior fresco e
luxuoso do Rolls-Royce.
- O que está acontecendo? - Katie perguntou assim que ele sentou ao seu lado. - De quem é este carro?
Ramon esperou que o motorista fechasse a porta, antes de responder. Sua voz estava tensa, como se
fizesse um esforço para controlar uma irritação inexplicável.
- O carro pertence a um homem que tem uma villa na ilha, mas que raramente vem para cá. Garcia, o
motorista, é um velho amigo da minha família. Quando ficou sabendo que chegaríamos hoje, decidiu
vir nos encontrar.
- Que gentileza da parte dele! - Katie exclamou.
- Só que eu havia deixado bem claro que não queria que ele fizesse isso.
- Ah... - Katie hesitou. - Bem, tenho certeza de que ele não fez por mal.
Voltando a atenção para o motorista, que se sentara atrás do volante e olhava pelo retrovisor em
expectativa, Ramon pressionou um botão que abriu uma espécie de vidraça que separava o
compartimento do motorista dos passageiros. Num rápido espanhol, disparou as instruções e depois
tornou a fechar o vidro. O veículo deslizou suavemente para a rua.
Katie nunca estivera num Rolls-Royce, e estava encantada com o carro. Passou os dedos pelo assento
de couro, adorando a deliciosa sensação de maciez.
- O que é isso? - perguntou, inclinando-se para a frente e pressionando um botão nas costas do assento
do motorista.
Riu quando uma pequena prancha de madeira clara ergueu-se automaticamente sobre o assento e
desdobrou-se em seu colo. Levantando a tampa da escrivaninha, viu que estava equipada com papel,
canetas de ouro e até mesmo um pequeno grampeador dourado.
- Como faço para guardá-la de volta? - indagou, depois de tentar empurrá-la.
- Aperte o mesmo botão.
Ela o fez. Com um barulho suave, a prancha de madeira retornou ao lugar, disfarçada no assento
dianteiro.
- E isso, para que serve? - quis saber, indicando o botão logo acima dos joelhos de Ramon.
Ele a observava, o rosto sem qualquer expressão.
- Esse abre o compartimento onde estão guardadas as bebidas.
114
- E onde estão os aparelhos de tevê e estéreo? - ela brincou.
- Entre a escrivaninha e o compartimento das bebidas.
O sorriso desapareceu dos lábios dela. Ramon, ela percebeu, não estava compartilhando do seu
divertimento em explorar os equipamentos exclusivos daquele carro de luxo. Depois de uma pausa
hesitante, Katie falou:
- O proprietário deste carro deve ser extraordinariamente rico.
- Ele era.
- Era? - Katie repetiu. - Ele morreu?
- Financeiramente, sim, ele está morto. - Com essa resposta breve e incompreensível, Ramon virou a
cabeça e ficou olhando pela janela.
Confusa e magoada por aquela frieza, Katie olhou para a sua própria janela. Mas seus pensamentos
sombrios foram interrompidos quando Ramon tomou-lhe a mão, apertando-a delicadamente entre as
suas. Embora mantivesse o rosto virado para a janela, ele disse:
- Eu gostaria de poder lhe dar uma dúzia de carros como este, Katie.
Ela compreendeu tudo no mesmo instante e, por um segundo, ficou atónita demais para falar. Uma
onda de alívio invadiu-a, seguida por um indisfarçável divertimento.
- Pois eu gostaria que você pudesse me dar apenas um carro como este. Afinal, um carro de luxo é a
garantia de felicidade, não é? - O olhar aguçado de Ramon disparou na direção dela, e Katie arregalou
seus olhos azuis com exagerada inocência. - David me deu um Porsche quando nos casamos, e veja que
vida feliz eu tive ao lado dele!
A linha firme dos lábios de Ramon relaxou num leve sorriso, enquanto ela continuava dizendo:
- Agora, se David tivesse me dado um Rolls-Royce, eu teria ficado perfeitamente satisfeita com o nosso
casamento. Apesar de que - acrescentou, quando Ramon passou o braço em seus ombros e puxou-a
mais para si - a única coisa que teria tornado minha vida absolutamente maravilhosa seria...
A frase foi interrompida de repente, quando Ramon tomou-lhe os lábios num beijo longo e profundo.
Depois que se separaram, ele fitou-a, sorrindo com ternura.
- O que teria tornado sua vida absolutamente maravilhosa? - perguntou, brincalhão.
Os olhos dela reluziram, enquanto aconchegava-se contra ele.
- Uma Ferrari!
Ramon começou a rir, e Katie sentiu que toda a tensão abandonava seu corpo poderoso. Agora as
115
coisas estavam em sua verdadeira perspectiva, tão às claras que até poderiam rir delas, e era exatamente
isso que Katie pretendera fazer.
Porto Rico apanhou-a totalmente de surpresa. Katie não havia esperado encontrar aquele paraíso
montanhoso e tropical, com vales verdes e luxuriantes, e tranquilos lagos azuis reluzindo sob o sol. O
Rolls-Royce seguia macio pelas estradas cheias de curvas margeadas por árvores floridas, os galhos
cobertos de botões amarelos e rosados.
Passaram por vários vilarejos pitorescos aninhados entre as montanhas; cada vilarejo possuía uma
praça central, na qual a principal construção era a igreja, com sua torre apontando para o céu. Katie
observava tudo com interesse, os olhos deliciando-se com as cores vívidas com que a natureza pintara
as colinas e os campos, a voz repleta de felicidade quando emitia exclamações a respeito de tudo, desde
as samambaias até as casas das fazendas. O tempo todo, podia sentir os olhos aguçados de Ramon,
observando cada uma de suas reações. Por duas vezes ela virou-se abruptamente, a fim de fazer um
comentário entusiasmado, e captara um brilho de ansiedade em sua expressão, antes que ele tivesse
tempo de disfarçá-la com um sorriso. Ele queria desesperadamente que ela gostasse de sua terra natal e,
por algum motivo, parecia incapaz de acreditar que ela fosse sincera.
Quase uma hora depois que saíram do aeroporto, o veículo passou por outro vilarejo e entrou numa
estrada de terra, continuando a subir a montanha. Katie ofegou, maravilhada. Era como se estivessem
passando por um túnel de seda vermelha, iluminado por esparsos raios de sol. Enormes árvores
cobertas de flores vermelhas erguiam-se dos dois lados da estrada, os galhos pesados encontrando-se
no meio, e as pétalas caídas cobrindo o chão como um tapete.
- Isso é inacreditável! - ela exclamou, virando-se para Ramon. - Estamos perto da sua casa?
- Sim, mais uns cinco quilómetros adiante desta estrada
- ele respondeu, mas a tensão retornara aos seus traços e o sorriso não passava de uma leve curvatura
dos lábios.
Ramon mantinha os olhos fixos à frente, como se estivesse tão ansioso quanto ela em descobrir o que
havia no final da estrada.
Katie estava prestes a perguntar se as lindas flores que via eram alguma variedade de tulipa, quando o
veículo saiu do longo túnel de árvores vermelhas e emergiu num amplo terreno, feio e malcuidado, que
cercava uma velha casa de tijolos brancos. Tentando ocultar o desapontamento, Katie virou-se para
Ramon, que olhava para a casa com uma expressão tão furiosa que, inconscientemente, ela apressou-se
em se recostar no assento.
Antes mesmo que o carro parasse de todo, Ramon já saía, batendo a porta com força atrás de si, e
cruzou o feio gramado com a raiva transparecendo em cada passo.
O motorista ajudou Katie a sair do carro, depois ambos viraram-se a tempo de ver Ramon tentando
abrir a porta do chalé, depois batendo o ombro com tanta força contra ela que a fez soltar-se das
ferragens e desabar no chão no interior da casa.
Katie congelou no lugar, olhando para o buraco negro onde a porta estivera segundos antes. Seu olhar
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voltou-se para as venezianas de madeira, penduradas em ângulos incertos nas janelas, e para a pintura
toda descascada dos batentes.
Num instante, todo seu otimismo e coragem desertaram-na. Queria estar em seu lindo condomínio de
apartamentos, com sua varanda cheia de flores. Jamais poderia morar num lugar como aquele; havia
sido uma tola em tentar negar sua própria necessidade de luxo e conforto, a maneira como fora criada.
A brisa soltou algumas mechas de seus cabelos, presos num elegante coque. Katie ergueu a mão para
tirá-las dos olhos, tentando ao mesmo tempo afastar a imagem de si mesma, parada naquele gramado
repleto de ervas daninhas, parecendo tão malcuidada e desgrenhada quanto aquela horrível cabana. Em
um ou dois anos, estaria tão desleixada como seus arredores, pois viver daquela maneira poderia
corroer o orgulho de qualquer pessoa, a ponto de nem importar-se mais com nada.
Relutante, começou a abrir caminho pelo que restava de uma calçada de tijolos até a porta do chalé.
Pedaços de telhas vermelhas tinham caído do telhado e Katie desviou-se com cuidado dos cacos, com
as finas sandálias italianas que usava.
Passou hesitante pela soleira da porta, piscando para acostumar os olhos à escuridão. Sentiu o estômago
revirar, assim que enxergou o interior. O chalé vazio estava coberto por camadas de poeira, sujeira e
teias de aranha. Onde o sol penetrava, pelas venezianas quebradas, a poeira flutuava no ar. Como
Ramon podia viver daquela maneira?, perguntou-se, horrorizada. Ele estava sempre tão limpo e bemarrumado,
não podia imaginá-lo vivendo naquela... imundície.
Com um esforço supremo, Katie tentou controlar as emoções frenéticas e obrigou-se a pensar com
lucidez. Em primeiro lugar, ninguém estivera morando naquela casa, pois era óbvio que a poeira
acumulara-se durante anos. E os ratos também, ela pensou com um estremecimento, ouvindo ruídos
suspeitos emanando das paredes.
Ramon estava parado no meio da sala, de costas para ela, numa postura rígida.
- Ramon? - a voz de Katie era um sussurro apreensivo.
- Saia deste lugar - ele ordenou entre os dentes, num tom que vibrava de fúria. - A sujeira vai grudar em
você, mesmo que não toque em nada.
Não havia nada que Katie desejasse mais do que sair dali, exceto voltar para o aeroporto, depois para
seu país e para seu lindo e moderno apartamento. Começou a se afastar, mas ao perceber que Ramon
não a seguia, parou e voltou-se de novo. Ele continuava parado de costas para ela, sem querer - ou sem
ter coragem - de virar-se para encará-la. Com uma pontada de compaixão, Katie deu-se conta de quanto
ele deveria estar temendo o momento em que ela veria aquela casa. Não era de admirar que parecia tão
tenso, quando seguiram pela estrada de terra. E, agora, ele zangava-se por se sentir envergonhado e
constrangido por não poder oferecer-lhe nada melhor do que aquele chalé caindo aos pedaços. Katie
falou, a fim de quebrar o incómodo silêncio:
- Você... você disse que nasceu aqui.
Ramon virou-se devagar, fitando-a como se ela não existisse.
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Enfrentando o olhar vazio, ela acrescentou:
- Presumi que você morasse aqui desde quando nasceu, mas ninguém nunca mais morou nesta casa,
não é?
- Não - ele disparou.
Katie encolheu-se diante daquele tom ríspido.
- Faz tempo desde a última vez em que esteve aqui?
- Faz, sim.
- Os lugares... as casas que ficam desabitadas por muito tempo sempre parecem feias e lúgubres,
mesmo quando são realmente bonitas. - Katie tentava desesperadamente consolá-lo, mesmo sabendo
que era ele quem deveria estar consolando-a. - Com certeza ela não está mais do jeito que você se
lembrava.
- Está exatamente do jeito que eu me lembrava!
O sarcasmo cortante na voz dele penetrou nos nervos sensíveis de Katie, mas ela continuou tentando:
- Se é assim, então por que você está tão furio... tão chateado? - corrigiu-se rapidamente.
- Porque - ele respondeu, irritado - mandei um telegrama quatro dias atrás, dando ordens para que
mandassem quantos homens fossem necessários para limpar e arrumar a casa.
- Ah... - Katie suspirou, num misto de alívio e surpresa.
Seu alívio evidente fez com que Ramon a encarasse, o corpo rígido. Seus olhos pareciam duas adagas
negras, prontas para atacá-la.
- Você tem uma opinião tão negativa de mim que acha que eu a traria para morar neste... neste
chiqueiro? Agora que viu a casa deste jeito, jamais permitirei que more aqui. Você nunca mais será
capaz de esquecer o que está vendo agora.
Katie devolveu-lhe o olhar furioso. Minutos atrás, tinha certeza do seu futuro e do que queria, sentindose
segura e amada. Agora não tinha mais certeza de nada, e estava furiosa com Ramon por ele estar
descontando nela toda sua frustração.
Diversas respostas indignadas surgiram-lhe na mente, apenas para ficarem engasgadas em sua garganta,
sufocadas por uma onda de simpatia e ternura que emergiu no instante em que olhou para ele. Parado
no meio da decadente sala vazia da casa onde nascera, Ramon parecia tão profundamente derrotado e
tão orgulhosamente determinado a não demonstrar isso que o coração de Katie condoeu-se.
- Acho que você tem uma opinião negativa a meu respeito, se acredita nisso - ela falou, quebrando o
silêncio pesado.
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Afastando-se dele, Katie encaminhou-se para as duas passagens em arco que ficavam no lado direito da
sala e espiou: havia dois quartos, um maior na frente da casa, outro menor nos fundos.
- Há uma linda vista das janelas dos dois quartos anunciou.
- Mas nenhuma das janelas tem vidraças - Ramon retrucou, irónico.
Katie ignorou-o e entrou pela outra passagem. Um banheiro, concluiu com uma leve careta, vendo a pia
e a banheira sujas e enferrujadas. Uma imagem da banheira de mármore da casa de seus pais
intrometeu-se em sua mente, imediatamente seguida pela lembrança do moderno banheiro em seu
apartamento. Corajosa, ela afastou as duas imagens e acionou o interruptor de luz.
- A eletricidade chega até a casa - entusiasmou-se.
- Mas não está ligada - Ramon disparou.
Katie sabia que estava comportando-se como uma corretora de imóveis tentando fazer uma venda, mas
não pôde evitar.
- E aqui deve ser a cozinha - disse, aproximando-se de uma antiquada pia de porcelana apoiada num
suporte de ferro. - E, veja, há duas torneiras, para água quente e fria. - A fim de provar o que dizia,
estendeu a mão para a torneira.
- Nem se dê ao trabalho - Ramon falou num tom contido, observando-a da soleira da porta. - Elas não
funcionam.
Katie empinou o queixo e tentou reunir coragem antes de virar-se para encará-lo. No processo, viu-se
olhando para uma ampla janela sobre a pia.
- Ramon - disse baixinho -, quem quer que tenha construído esta casa, devia adorar a vista tanto quanto
eu.
As colinas verdejantes espalhavam-se na paisagem à sua frente, as encostas cobertas de flores amarelas
e vermelhas.
Quando afastou-se da pia, havia uma sincera expressão de prazer em seu rosto.
- É lindo, absolutamente lindo! Eu ficaria aqui lavando pratos para sempre, apenas para ficar olhando a
paisagem.
Animada, deu uma volta pela cozinha. No lado oposto, uma parede inteira de janelas envidraçadas
unia-se com o outro canto, cuja parede também era revestida de vidraças. Diante delas, fora colocada
uma mesa rústica e algumas cadeiras.
- Seria como fazer as refeições num terraço! - ela exclamou, vendo um lampejo de incerteza cruzar os
traços congelados de Ramon. - Ora, esta cozinha poderia se transformar num lugar iluminado e
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espaçoso!
Evitando cuidadosamente olhar para o piso de linóleo descascado, Katie virou-se e marchou de volta
para a sala. Encaminhou-se para as grandes vidraças que ocupavam duas paredes e esfregou um pouco
da fuligem. Espiando através do pedacinho de vidro limpo, soltou um gritinho de admiração.
- Posso ver o vilarejo daqui! - exclamou. - É possível avistar até a igreja. Parece uma cidadezinha de
brinquedo, com as colinas em volta. Ramon, é como estar olhando para... um cartão-postal. Estas
janelas devem ter sido colocadas de forma que, não importa onde se esteja, há sempre uma bela
paisagem para se ver. Sabe de uma coisa? - Sem perceber que Ramon postara-se logo atrás dela, virouse
e colidiu com seu corpo alto e musculoso. - Esta casa tem grandes possibilidades! - Enfrentou o
olhar cínico dele com um sorriso. - Tudo o que precisa é de uma boa limpeza, uma mão de tinta e
algumas cortinas novas!
- Além de uma dedetização e um exército de carpinteiros - Ramon retrucou com sarcasmo. - Ou,
melhor ainda, um incendiário competente.
- Tudo bem... Pintura, cortinas novas, dedetização e você com um martelo e pregos. - Katie mordeu o
lábio quando um pensamento inquietante ocorreu-lhe. - Você sabe alguma coisa de carpintaria, não é?
Pela primeira vez desde que chegaram à casa, Katie viu um brilho de humor surgir no rosto dele.
- Imagino que eu saiba tanto sobre carpintaria quanto você sabe fazer cortinas, Katie.
- Ótimo! - blefou Katie, que não tinha a menor ideia de como se faz uma cortina. - Neste caso, não terá
nenhuma dificuldade em consertar as coisas por aqui, certo?
Ramon pareceu prestes a ceder, mas então perpassou os olhos pela sala decadente com uma expressão
de desprezo. Seus traços endureceram novamente, até que o rosto parecesse ter sido talhado em pedra.
Katie, percebendo que ele iria recusar, pousou a mão em seu braço.
- Nós poderemos transformar esta casa num lar alegre e aconchegante, Ramon. Sei que você se sente
constrangido pela maneira como ela está agora, mas isso apenas tornará a tarefa de reformá-la ainda
mais divertida e gratificante. Vou gostar muito de ajudá-lo a reformar a casa, de verdade. Ramon - ela
baixou a voz quando ele encarou-a -, por favor, não estrague tudo para mim, agindo desse jeito.
- Estragar tudo para você? - ele explodiu, passando as mãos nos cabelos com um gesto nervoso. -
Estragar?
- repetiu. Sem nenhum aviso, estendeu os braços para ela, e Katie viu-se abraçada a ele com toda força.
- Eu sabia que não deveria trazê-la para Porto Rico, Katie - disse num sussurro agoniado. - Sei que foi
egoísmo de minha parte, mas não pude evitar. Agora que você está aqui, sei que deveria mandá-la de
volta para casa, para o lugar a que pertence. Sei disso - acrescentou, com a respiração ofegante. - Mas...
Deus me perdoe... não posso suportar esta ideia!
Katie enlaçou-o pela cintura e pressionou o rosto em seu peito sólido.
- Não quero ir para casa, quero ficar aqui com você. - E, pelo menos naquele momento, tinha certeza do
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que dizia.
Ouviu a respiração dele ofegar, e sentiu a súbita tensão de seus músculos. Ramon afastou-se um pouco
e seguroulhe o rosto entre as mãos.
- Por quê? - perguntou num sussurro, os olhos negros fitando-a com intensidade. - Por que quer ficar
aqui comigo?
Um sorriso iluminou o rosto dela.
- Para que eu possa lhe provar que esta casa se transformará no lar dos nossos sonhos!
Tal resposta causou uma tristeza inexplicável nos olhos dele. E ali permaneceu, enquanto Ramon
baixava o rosto para ela.
- Este é o verdadeiro motivo para você querer ficar comigo, Katie... - Seus lábios roçaram nos dela,
quentes e provocantes, enquanto as mãos deslizavam pelos ombros e pelas costas, numa carícia
excitante, enlouquecedora.
Todos os nervos de Katie começaram a vibrar de antecipação. Parecia que semanas, e não dias, tinham
se passado desde a última vez em que Ramon a beijara e acariciara com aquela paixão arrebatadora.
Agora, ele prolongava as carícias de propósito, fazendo-a esperar, provocando-a. Mas Katie não queria
ser provocada. Passando o braço em torno do pescoço dele, pressionou o corpo, colando-se a ele.
Beijou-o profundamente, tentando romper aquele controle férreo. De encontro aos seus quadris, sentiu
o enrijecimento dele, mas, como se quisesse castigá-la por tê-lo deixado excitado, Ramon afastou os
lábios dos dela e passou a beijá-la no rosto, no pescoço, nas orelhas, a língua sensual explorando cada
curva, cada concavidade.
- Não! - ela implorou, ardendo de desejo. - Não me provoque mais, Ramon. Agora não.
Quase esperava que ele a ignorasse. Mas, em vez disso, ele tomou-lhe os lábios com um desejo faminto
e uma urgência selvagem, que sobrepujavam o próprio desejo dela. As mãos acariciavam-na por
inteiro, deslizando pelo pescoço até os seios, espalmando-se possessivamente sobre eles, depois
descendo até pressionar os quadris contra os seus.
Estremecendo de prazer, Katie mergulhou os dedos em seus ombros musculosos, alimentando a fome
insaciável de sua boca, arqueando o corpo contra os movimentos rítmicos e exigentes da ereção dele.
Uma eternidade depois, diminuindo a pressão dos lábios, Ramon ergueu a cabeça devagar. Mesmo
zonza como estava, Katie reconheceu a paixão luzindo nos olhos negros e sabia que era um reflexo dos
seus próprios olhos. Ainda tremendo de desejo, viu os olhos dele fixarem-se em seus lábios
entreabertos. Os braços de Ramon reteseram-se convulsivamente quando começou a baixar a cabeça
para ela, e depois Ramon hesitou, tentando lutar contra a tentação.
- Ah, meu Deus... - ele gemeu baixinho, e os lábios tomaram os dela mais uma vez.
Uma vez após outra ele tentava afastar-se, apenas para mudar de ideia e mergulhar nos lábios de Katie
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para mais uma série de beijos longos e profundos.
Quando por fim separaram-se, Katie estava exaurida. Louca e maravilhosamente exaurida pelo poder
combinado de paixão e prazer compartilhados. Ramon recostou a cabeça contra os cabelos dela, as
mãos acariciando-lhe as costas, mantendo-a presa em seu peito, enquanto Katie apoiava-se nele, os
braços ainda em seu pescoço.
Vários minutos se passaram, até que ela ouviu-o murmurar alguma coisa. Ergueu a cabeça e abriu os
olhos azuis e langorosos, fitando-o. Perdida em sua euforia sonhadora, admirou o rosto másculo que
retribuía seu olhar. Ele era de fato um homem por demais bonito, pensou. E extremamente másculo,
com os traços firmes e esculpidos. Ela adorava as linhas de seu rosto, o queixo determinado com a
covinha brincalhona, e a sensualidade de sua boca. E os olhos, que a atraíam como se fossem um imã,
olhos capazes de derretê-la ou deixá-la congelada. Os cabelos tão espessos, negros, longos apenas o
bastante para permitir que ela mergulhasse os dedos em sua deliciosa maciez.
Katie ergueu a mão e ajeitou os cabelos nas têmporas dele, depois acariciou-lhe as faces, deslizando até
a covinha no queixo.
Os olhos escuros observavam-na, captando seu olhar, sustentando-o enquanto virava a cabeça e beijava
a parte sensível da palma de sua mão. Quando Ramon falou, a voz era profunda, rouca de uma emoção
tão intensa que ultrapassava a paixão.
- Você me faz muito feliz, Katie.
Katie tentou sorrir, mas o tom quase doloroso que percebeu na voz dele encheu seus olhos de lágrimas.
E, depois de três dias de um turbilhão emocional que culminara naquela última tumultuada hora, estava
fraca demais para contê-las.
- Você também me faz muito feliz - sussurrou, enquanto as lágrimas escorriam de seus olhos.
- Sim - ele disse, com um solene divertimento ao ver as lágrimas tremeluzindo. - Estou vendo mesmo.
Katie agarrou-se a ele, sentindo como se pairasse à beira da insanidade. Dez segundos antes poderia
jurar ter ouvido a tristeza na voz de Ramon, mas agora ele ria, enquanto ela chorava. Exceto que não
estava mais chorando, estava começando a rir.
- Eu... sempre choro quando estou feliz - explicou, enxugando as lágrimas.
- Não acredito! - ele exclamou com fingido horror. Quer dizer que ri quando está triste?
- É bem possível - ela admitiu, o rosto iluminando-se com um sorriso. - Estou toda atrapalhada desde
que o conheci. - Num impulso, ergueu-se na ponta dos pés e pressionou um beijo nos lábios quentes e
macios, depois tornou a aconchegar-se em seus braços. - Garcia deve estar pensando o que estamos
fazendo aqui. Acho que é melhor saírmos.
Katie exalou um suspiro tão triste que Ramon sorriu.
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- Garcia é um homem de grande dignidade. Jamais ficaria especulando sobre as nossas atividades.
Ainda assim, ele a soltou, relutante. Mantendo o braço em torno de sua cintura, seguiu com ela pela
porta afora, para o sol ardente.
Katie estava prestes a perguntar quando começariam a trabalhar na reforma da casa, mas a atenção de
Ramon desviara-se para um homem de cerca de sessenta anos, que vinha caminhando pelo gramado.
Quando o homem avistou Ramon, seu rosto bronzeado e curtido abriu-se num largo sorriso.
- Seu telegrama chegou há uma hora... pouco antes de eu ver o Rolls-Royce passar pelo vilarejo. Estes
meus velhos olhos estão me enganando, Ramon, ou é você mesmo que está aí?
Sorrindo, Ramon estendeu a mão.
- Seus olhos estão tão aguçados quanto estavam naquela noite em que você viu a fumaça saindo pela
janela e apanhou-me em flagrante com um maço de cigarros na mão, Rafael.
- Eram os meus cigarros - o homem chamado Rafael o lembrou, enquanto apertava-lhe a mão e davalhe
uma palmadinha afetuosa nas costas.
Ramon enviou uma piscadela para Katie.
- Infelizmente, eu não tinha meus próprios cigarros para fumar.
- Isso porque você tinha apenas nove anos, e era jovem demais para comprá-los - Rafael explicou, com
um sorriso conspiratório para Katie. - Foi uma cena e tanto, senorita. Ele estava todo refestelado num
monte de feno, parecendo um homem muito importante desfrutando de um momento de lazer. Eu
obriguei-o a comer três cigarros.
- E isso o curou? - Katie riu.
- Sim, curou-me dos cigarros - Ramon admitiu. Depois disso, passei a fumar apenas charutos.
- E a correr atrás das moças - Rafael acrescentou, com uma severidade bem-humorada. Virou-se para
Katie Quando o padre Gregório leu os proclamas de vocês na missa de hoje cedo, todas as senoritas
choraram de desapontamento, e o padre suspirou de alívio. Rezar para a salvação da alma de Ramon
deve ser a tarefa que mais consome o tempo daquele pobre padre. - Fazendo uma pausa em seu alegre
monólogo para desfrutar do visível desconforto de Ramon, ele acrescentou: - Mas não se preocupe,
senorita. Agora que está comprometido com você, Ramon sem dúvida vai se emendar e esquecer as
garotas que correram atrás dele todos estes anos.
Ramon enviou um olhar falsamente zangado para o velho.
- Se já acabou de estraçalhar o meu caráter, Rafael, quero apresentar-lhe a minha noiva... presumindo
que Katie ainda queira casar comigo, depois de tudo o que ouviu de você.
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Katie estava atónita ao saber que os proclamas do casamento já haviam sido lidos na igreja local. Como
Ramon conseguira providenciar isso, estando em St. Louis? De alguma forma, conseguiu esboçar um
leve sorriso quando Ramon apresentou-lhe Rafael Villegas como o homem que sempre fora como ”um
segundo pai” para ele, mas vários minutos se passaram antes que pudesse recuperar-se e prestar atenção
à conversa.
- Quando vi o carro vindo nesta direção - Rafael estava dizendo -, fiquei contente por você não estar
envergonhado de trazer sua noiva para cá e mostrar onde estão suas raízes, mesmo agora que...
- Katie - Ramon interrompeu-o abruptamente. - Você ainda não está acostumada com este sol. Talvez
fosse melhor esperar dentro do carro, onde está mais fresco.
Surpresa com a maneira como ele a despachava educadamente, Katie despediu-se de Rafael e voltou
para o arcondicionado do Rolls-Royce. Qualquer que fosse o assunto que Ramon tratava com o seiior
Villegas, fez com que o homem-se mostrasse quase comicamente admirado, depois assustado, e então
muito preocupado. Katie ficou aliviada quando por fim se despediram, e ambos sorriam outra vez.
- Desculpe por ter pedido que você saísse daquela maneira - disse Ramon, entrando no carro. - Entre
outras coisas, eu precisava discutir o serviço que deve ser feito na casa, e Rafael ficaria constrangido se
você estivesse presente quando falássemos de dinheiro. - Pressionando o botão que abria a separação
do motorista, Ramon deu as instruções em espanhol, depois tirou o paletó e a gravata, abriu o botão da
camisa e estendeu as longas pernas. Parecia, Katie pensou, um homem que acabara de passar por uma
terrível provação, mas que estava relativamente satisfeito com os resultados.
Mil perguntas atropelavam-se em sua mente, e ela começou com a menos importante:
- Para onde vamos agora?
- Para o vilarejo, onde faremos uma refeição tranquila. - Ramon passou o braço pelos ombros dela, os
dedos brincando com a pedrinha de turquesa em seu brinco. - Enquanto estivermos jantando, Rafael vai
dizer à sua filha casada que arrume o quarto de hóspedes para você. Eu pretendia levá-la para a minha
casa, mas não está habitável. Além disso, não havia considerado a necessidade de uma acompanhante
para você, até que Rafael me lembrou desse detalhe.
- Uma acompanhante? Você não pode estar falando sério - Katie disparou. - Isso é... é...
- Necessário - Ramon completou a frase.
- Pois eu ia dizer antiquado, arcaico e tolo.
- É verdade. Porém, em nosso caso, ainda é necessário. Katie franziu a testa.
- Em nosso caso?
- Katie, nesse vilarejo nada acontece, por isso todos observam o que os outros fazem e comentam a
vida de todo mundo. Sou um homem solteiro e, portanto, um objeto de interesse.
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- Foi o que percebi, pelo que o sr. Villegas disse Katie retrucou.
Ramon sorriu.
- Sendo minha noiva, você também é um objeto de interesse. E, mais importante, você é também norteamericana,
o que a transforma num alvo de críticas. Há muitas pessoas aqui que acreditam que as
mulheres norte-americanas perderam todo o senso da moral.
Katie estava pronta para argumentar com veemência contra aquilo. Seus olhos reluziram
perigosamente, as faces ficaram rosadas. Ramon, interpretando com correção os sinais de perigo,
puxou-a para perto de si e beijou-a na testa.
- Quando digo ”acompanhante” não estou me referindo a uma pessoa que vai segui-la por toda parte,
Katie. Significa apenas que você não estará morando sozinha. Do contrário, no instante em que eu
passar pela porta, as ”fofoqueiras” irão dizer que estamos dormindo juntos e, porque você é norteamericana,
todos vão acreditar. Você pode achar que isso não importa, mas este será o seu lar. Não vai
gostar se, passados até alguns anos, não puder andar pelo vilarejo sem que as pessoas cochichem sobre
você.
- Ainda assim, faço objeções a essa ideia, por princípio
- ela falou, embora sem muita convicção, pois Ramon passara a beijar-lhe a orelha.
O riso abafado dele provocou-lhe um arrepio na espinha.
- Eu esperava que você fizesse objeções por achar que uma acompanhante tornaria mais difícil para
nós... ficarmos sozinhos.
- Isso também - ela admitiu com candura. O riso de Ramon foi rico, profundo.
- Eu vou ficar com a família de Rafael. A casa de Gabriella, onde você será hospedada, fica a dois
quilómetros de distância. - Alisando os cabelos dela, acrescentou, num tom rouco: - Nós vamos
encontrar o lugar e o momento certos para compartilharmos um ao outro.
Katie achou essa uma maneira linda de descrever o ato de amor; duas pessoas compartilhando seus
corpos de forma que cada um obtivesse prazer do outro. Sorriu, perguntando-se se algum dia iria
compreender Ramon. Ele possuía uma combinação única de gentileza e força; de rude e potente
virilidade mesclada com uma evidente experiência sexual e terna contenção. Não era de admirar que se
sentisse tão confusa desde o dia em que o conhecera. Jamais conhecera alguém nem sequer
remotamente parecido com ele em toda sua vida
Ao chegarem perto da praça do vilarejo, Garcia diminuiu a velocidade do carro e parou.
- Achei que você iria preferir caminhar um pouco Ramon explicou, ajudando Katie a descer do veículo.
Garcia deixará suas coisas na casa de Gabriella, depois voltará para Mayagúez, onde mora.
O sol começava a se pôr no horizonte, numa profusão de tons rosados e dourados contra o céu azul,
enquanto Katie e Ramon caminhavam devagar pela praça, até chegarem à antiga e imponente igreja em
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estilo espanhol.
- É aqui que vamos nos casar - disse Ramon.
Katie observou com prazer a igreja e as pequenas construções que a cercavam dos quatro lados,
formando a praça do vilarejo. A influência espanhola era evidente nas portas e janelas em arco, e as
grades de ferro nas lojas que vendiam de tudo, desde pães frescos até imagens de santos esculpidas em
madeira. As flores cresciam em toda parte, pendendo dos balcões e janelas em enormes vasos na frente
das lojas, acrescentando suas cores vibrantes à beleza da pitoresca pracinha. Turistas com as câmeras
fotográficas em punho vagavam pela praça, parando para espiar nas lojinhas ou nos cafés nas calçadas,
bebericando coquetéis à base de rum, enquanto observavam os habitantes locais.
Katie olhou para Ramon, que caminhava ao seu lado levando o paletó pendurado no ombro. Apesar da
aparência distraída, ela quase podia sentir a ansiedade dele, enquanto esperava para ver sua primeira
reação ao vilarejo.
- É lindo - ela disse, sincera. - Muito pitoresco e charmoso.
Ele enviou-lhe um olhar desconfiado.
- Mas pequeno, e não era o que você esperava...?
- Mais bonito e mais conveniente do que eu esperava
- Katie o contradisse, obstinada. - Tem até mesmo um armazém geral. E - ela acrescentou com um
sorriso brincalhão - tem dois hotéis! Estou muito impressionada!
Sua brincadeira obteve o resultado que os elogios sinceros não conseguiram. Sorrindo, Ramon passou o
braço pela sua cintura e puxou-a para si, num abraço rápido e apertado.
- O Casa Grande - disse, apontando para o hotel de três andares com os balcões cercados por grades de
ferro trabalhado - possui dez apartamentos para hóspedes. O outro hotel tem apenas sete, mas tem
também um pequeno restaurante, onde a comida costumava ser muito boa. É lá que vamos jantar.
Havia cinco mesas no restaurante, quatro das quais estavam ocupadas por turistas que riam e
conversavam. Katie e Ramon foram levados à que restara. O garçom acendeu a vela no centro da mesa
coberta por uma toalha xadrez vermelho e branco, e anotou os pedidos. Ramon recostou-se na cadeira e
sorriu para Katie, que o observava com uma expressão intrigada.
- Em que você está pensando? - ele perguntou.
- Estava me perguntando onde será que você morava antes, e o que esteve fazendo. Não poderia estar
trabalhando na fazenda, pois, se assim fosse, não precisaria ficar hospedado na casa de Rafael.
Ramon respondeu devagar, quase cauteloso:
- Eu morava perto de Mayagiiez, e até o momento estive trabalhando numa empresa cujos negócios
estão sendo encerrados.
126
- Essa empresa é do ramo de produtos alimentícios?- Katie perguntou.
Ele hesitou um pouco, depois assentiu.
- Entre outras coisas, sim, é uma empresa de enlatados e conservas. Em vez de ir trabalhar para uma
outra companhia, eu já havia decidido, quando a conheci, que preferia trabalhar em minha própria
fazenda, pois assim não precisaria mais pagar a alguém para fazer o que eu mesmo poderia estar
fazendo. Nestas próximas duas semanas ainda terei de dedicar parte do meu tempo para essa empresa;
o restante do tempo estarei trabalhando com os homens que vão reformar a nossa casa.
Nossa casa. A frase fez com que o estômago de Katie se contorcesse. Soava tão estranho, tão
derradeiro. Desviando os olhos, ficou brincando com o copo, girando-o lentamente entre os dedos.
- De que você tem medo, Katie? - Ramon perguntou, após uma pausa.
- De nada. Eu... eu só estava pensando em que vou ficar fazendo, quando você for trabalhar.
- Enquanto eu estiver no trabalho você pode sair para comprar as coisas de que precisaremos para a
nossa casa. Existem várias lojas de artigos domésticos e artesanato nos vilarejos, mas os móveis terão
de ser comprados em San Juan. Gabriella vai levá-la às lojas e funcionará como intérprete, quando você
precisar.
- Os móveis? - Katie encarou-o, surpresa. - Não vai trazer os móveis da sua casa em Mayaguez?
- Vou vendê-los todos. De qualquer forma, não seriam adequados para o chalé.
Katie, vendo a maneira como Ramon retesava os lábios, presumiu que ele envergonhava-se dos móveis
que possuía e que, como acontecera com a casa, julgava que não eram bons o bastante para ela. Sabia
perfeitamente que Ramon providenciara sua hospedagem na casa de Gabriella por não poder arcar com
as despesas de um hotel por três semanas; a explicação dele a respeito de que querer evitar os boatos
não a convencera nem um pouco. Ele não podia pagar um hotel e, com certeza, tampouco poderia arcar
com as despesas de mobiliar uma casa. Ainda assim, estava disposto a comprar móveis novos para ela,
a fim de agradá-la. Saber disso a fazia sentir-se extremamente insegura.
E se algo acontecesse, a ponto de convencê-la de que não deveria casar-se com ele? Como poderia lhe
dar uma notícia dessas, depois de deixá-lo gastar todo o seu dinheiro tentando lhe dar o que ele achava
que ela queria? Katie sentiu-se como se estivesse presa numa armadilha, uma jaula em que ela própria
se colocara, e à medida que as portas se fechavam, o pânico começava a se instalar. O casamento, com
toda sua assustadora irrevogabilidade, subitamente agigantava-se à sua frente, e Katie sabia que, de
alguma forma, teria de sentir-se livre para partir, se por acaso mudasse de ideia no decorrer das
próximas semanas.
- Quero que uma parte dos móveis fique por minha conta - ela anunciou de repente.
Ramon esperou que o garçom se afastasse, antes de retrucar.
- Não - disse, sucinto.
127
- Mas...
- Eu não teria sugerido que comprássemos os móveis se não pudesse pagar por eles.
Ele esperava que isso encerrasse a discussão de uma vez por todas, mas Katie estava desesperada.
- Essa não é a questão!
- Não? - ele perguntou. - Então, qual é a questão?
- A questão é que você já vai gastar muito dinheiro na reforma da casa, e móveis são muito caros.
- Amanhã eu lhe darei três mil dólares para você gastar com as coisas da casa e...
- Três mil dólares? - Katie interrompeu-o, atónita. Como pode gastar tanto? Onde conseguiu esse
dinheiro?
Houve uma imperceptível hesitação, antes que ele respondesse:
- Essa empresa que está encerrando as atividades pagou-me uma espécie de indenização. É daí que vem
o dinheiro.
- Mas... - ela começou a argumentar.
A expressão de Ramon fechou-se imediatamente. Com fria determinação, ele disse:
- Como homem, é responsabilidade minha lhe dar uma casa e toda a mobília. Você não vai usar seu
dinheiro para isso.
Katie fechou os olhos por um instante, ocultando com cuidado o brilho de revolta do olhar penetrante
que ele lhe enviava. Ramon, concluiu, estava prestes a descobrir que excelente negociante ela era.
Todos os móveis da casa iriam lhe custar exatamente a metade do que valiam, porque ela iria pagar
pela outra metade.
- Estou falando sério, Katie.
O tom autoritário fez com que ela congelasse no ato de cortar um pedaço da carne.
- Proíbo que você use o seu dinheiro, seja agora ou depois que nos casarmos. Ele deverá manter-se
intocado em seu banco em St. Louis.
Ela estava tão determinada a convencê-lo que até se esqueceu de zangar-se com o uso que ele fizera do
verbo ”proibir”.
- Você não entende, Ramon... O dinheiro não me faria falta alguma. Além de tudo o que economizei do
meu salário, tenho um fundo de ações estabelecido por meu pai há muitos anos, e uma espécie de
participação nos lucros da empresa dele. Os lucros que obtenho com isso são enormes. Eu nem mesmo
128
teria de tocar no capital principal, visaria apenas os rendimentos e...
- Não - ele disse, implacável. - Não sou nenhum indigente. E, mesmo se fosse, não aceitaria o seu
dinheiro. Desde o início você já sabia como me sinto a esse respeito, não é?
- é, sim - ela murmurou.
Ramon suspirou, um som áspero e repleto de uma raiva que, Katie pressentiu, era dirigida mais a ele
mesmo do que a ela.
- Katie, eu nunca tentei viver apenas com os rendimentos da fazenda. Ainda não sei quanto dinheiro
será necessário para se fazer as melhorias na propriedade, de forma que cada hectare se torne produtivo
novamente. Uma vez que a fazenda esteja produtiva e dando lucros, poderá nos sustentar com um
conforto razoável, mas até lá qualquer centavo que eu puder economizar deverá ir para a propriedade.
Aquela fazenda é a única segurança que posso lhe oferecer, e suas necessidades devem vir em primeiro
lugar. É muito humilhante para mim ter de explicar tudo isso a você, sobretudo agora, depois de tê-la
trazido para cá. Achei que você havia compreendido o tipo de vida que eu poderia lhe oferecer, antes
de ter concordado em acompanhar-me.
- Eu compreendi, e não estou preocupada em ter de privar-me de coisas supérfluas.
- Então, o que a preocupa?
- Nada - Katie mentiu, mais determinada do que nunca em usar seu dinheiro para pagar metade dos
móveis.
Ramon estava levando aquela história de orgulho longe demais! Sua atitude era insensata, irracional e
antiquada, especialmente se fossem se casar. Mas, desde que ele mostrava-se tão irredutível a respeito
de seu dinheiro, ela nunca lhe diria o que havia feito.
A expressão dele suavizou-se.
- Se você quiser, podemos guardar seu dinheiro num fundo para nossos filhos.
Filhos? Katie pensou, sentindo o coração disparar num misto de prazer e pânico. Na velocidade em que
Ramon estava conduzindo as coisas, sem dúvida ela acabaria tendo um filho dentro de um ano. Por que
tudo tinha de acontecer tão depressa? Lembrou-se do comentário de Rafael acerca dos proclamas que
foram lidos na igreja naquela manhã, e sentiu o pânico crescer. Sabia que os proclamas tinham de ser
lidos nos três domingos consecutivos antes do casamento. Tendo providenciado para que fossem
iniciados naquele dia, Ramon havia sorrateiramente eliminado uma semana do precioso tempo que
Katie contava ter, antes de tomar a decisão final. Ela tentou concentrar-se na comida, mas mal podia
engolir.
- Ramon, como conseguiu providenciar para que os proclamas fossem lidos esta manhã, se nós só
chegamos à tarde?
Algo em sua voz alertou-o para o conflito em que ela se debatia. Ramon afastou o prato para o lado,
129
sem preocupar-se mais em fingir que comia. Fitando-a de maneira tão intensa que era quase irritante,
disse:
- Na sexta-feira, enquanto você estava no trabalho, liguei para o padre Gregório e disse-lhe que
desejava me casar aqui, o mais breve possível. Padre Gregório me conhece desde que nasci e sabe que
não existe obstáculo algum que me impeça de casar na igreja. Assegurei-lhe de que não haveria
nenhum obstáculo de sua parte, também. Naquele encontro que tive com seu pai, ele deu-me o nome de
seu pastor, que também a conhece. Passei a informação ao padre Gregório para que ele próprio
confirmasse, caso achasse necessário. Foi muito simples.
Katie desviou os olhos dos dele, mas não a tempo.
- Há alguma coisa incomodando-a, Katie - Ramon concluiu. - O que é?
Após um silêncio tenso, ela balançou a cabeça.
- Nada, de verdade. Apenas estou um pouco surpresa com o fato de que tudo foi arranjado sem o meu
conhecimento.
- Não foi intencional. Presumi que seu pai havia mencionado nossa conversa e, evidentemente, ele deve
ter presumido que você já sabia de tudo.
Katie estava com a mão trémula, quando afastou seu prato.
- O padre Gregório não terá de falar comigo... isto é, conosco... antes de concordar em realizar o
casamento? perguntou.
- Sim.
Ramon acendeu um charuto fino, depois recostou-se na cadeira, observando-a com atenção.
Katie passou a mão pelos cabelos, ajeitando os inexistentes fios soltos.
- Por favor, pare de me olhar desse jeito - sussurrou, num tom de súplica.
Com um gesto rápido, Ramon virou-se e fez um sinal para o garçom, pedindo a conta.
- É muito difícil não olhar para você, Katie. Você é linda. E está muito assustada.
Tais palavras foram ditas com tanta frieza, sem qualquer emoção, que Katie levou um instante antes de
ter certeza de que ouvira corretamente. Mas, então, já era tarde demais para reagir; Ramon já deixava o
dinheiro sobre a mesa e, levantando-se, fez a volta para ajudá-la a sair da cadeira.
Em silêncio, saíram para a noite escura e acetinada, com o céu revestido de estrelas reluzentes, e
atravessaram a praça deserta. Depois do calor da tarde, a brisa noturna era surpreendentemente fresca,
brincando com as pregas do vestido de seda de Katie. Ela estremeceu, mais devido às suas emoções
conflitantes do que ao frio. Ramon tirou o paletó que levava no ombro e colocou-o em suas costas.
130
Ao passarem pela linda igreja, as palavras dele ecoaram na mente de Katie: Ӄ aqui que vamos nos
casar”.
Certa vez ela já havia saído de uma igreja, vestida de noiva... exceto que fora de uma enorme
construção em estilo gótico, com limusines enfileiradas na calçada atrapalhando o tráfego do sábado, à
espera de saída dos noivos. David ficara ao seu lado nos degraus da igreja, enquanto os fotógrafos
tiravam fotografia de todos os ângulos. Ele estava esplêndido em seu smoking preto, e ela estava linda
com o vestido branco e o véu. Depois, foram atirados num alvoroço de cumprimentos e abraços, rindo
sob a chuva de arroz. David estava tão bonito, e ela o amara tanto naquele dia... Ela o amara tanto!
As luzes nas janelas das casas iluminavam o caminho por onde Katie e Ramon passavam. De repente
ela foi assaltada pelas lembranças que julgara enterradas.
David.
Durante os seis meses do casamento, ele a mantivera num estado de perplexa humilhação e, depois, de
medo. Mesmo durante o breve noivado, Katie às vezes reparava nos olhares interessados que ele
enviava a outras mulheres. Mas conseguira conter o ciúme doloroso dizendo a si mesma que David era
um homem de trinta anos e que pensaria que ela estava agindo como uma criança possessiva. Além
disso, ele apenas olhava para elas. Nunca fora realmente infiel.
Estavam casados havia dois meses quando Katie finalmente criticou-o, e apenas porque sentia-se tão
magoada e envergonhada que fora incapaz de se conter. Eles haviam ido a um jantar formal para os
membros da Associação de Advogados do Missouri, onde a bela esposa de um famoso advogado de
Kansas City capturou o interesse de David. O flerte iniciou-se durante os coquetéis, ganhou forças
quando sentaram-se juntos no jantar, e floresceu completamente na pista de dança. Pouco depois disso,
ambos desapareceram por quase uma hora e meia, e Katie fora deixada sozinha no salão, suportando
não apenas a piedade das pessoas que conhecia como também a fúria incontida do marido traído.
Ao voltarem para o apartamento, Katie estava prestes a explodir. David ouviu seu desabafo indignado e
lacrimoso enquanto flexionava as mãos nervosamente. Outros quatro meses iriam passar antes que
Katie descobrisse o que tal gesto convulsivo de fato significava. Quando terminou, ela esperava que ele
negasse ter feito qualquer coisa de errado, ou então que se desculpasse pelo seu comportamento. Em
vez disso, David se levantou, enviou-lhe um olhar de desprezo e foi para a cama.
Porém, a retaliação iniciara-se no dia seguinte. Seu castigo foi aplicado com a crueldade refinada de um
homem que, na superfície, parecia estar apenas tolerando a presença indesejada dela em sua vida, mas
que na verdade se comprazia em torturá-la mentalmente.
Nenhuma falha, fosse real ou imaginária, em seu rosto, em sua aparência, em sua postura ou
personalidade, passava despercebida a David, ou ficava sem receber algum tipo de comentário. ”Saias
pregueadas deixam seus quadris ainda mais largos”, ele comentava com indiferença. Katie protestava,
dizendo que não tinha quadris largos, mas, assim mesmo, começou a frequentar uma academia de
ginástica. ”Se você cortasse os cabelos bem curtos, seu queixo não pareceria tão grande”. Katie jurava
que seu queixo não era ”grande”, mas cortou os cabelos. ”Se você corrigisse sua postura, não rebolaria
tanto quando anda.” Katie corrigiu a postura, perguntando-se se ainda estaria ”rebolando”.
131
Os olhos de David jamais paravam, seguindo-a por toda parte até que Katie se sentisse tão insegura que
não conseguia mais atravessar uma sala sem bater numa mesa, ou trombar numa cadeira. E isso,
também, não passava despercebido. Nem a comida que ela deixava queimar, ou as roupas que esquecia
de levar à lavanderia, ou a poeira que deixava de tirar das estantes. ”Algumas mulheres são capazes de
cuidar da casa e ter uma carreira”, David comentara certa noite, enquanto ela dava brilho nos móveis.
”É óbvio que você não é uma delas. Terá de desistir do seu trabalho.”
Olhando para trás, Katie não podia acreditar na facilidade com que ele a manipulara. Por duas semanas
consecutivas David havia feito ”serão no escritório”. Quando estava em casa, ignorava-a
completamente. E, quando se dignava a falar com ela, era sempre para ridicularizá-la, ou num tom de
frio sarcasmo. Katie tentava, de todas as maneiras, evitar as críticas e agradá-lo, mas David encarava
seus esforços com um gélido desprezo. Em apenas duas semanas, conseguira reduzi-la a um triste
estado de tensão e lágrimas, fazendo-a acreditar que era desajeitada, estúpida e inepta. Mas, na época,
Kátia tinha somente 21 anos, recém-saída da faculdade, enquanto David era nove anos mais velho,
sofisticado e autoritário.
A ideia de abandonar seu emprego a deixara em pânico.
- Eu adoro meu trabalho - ela dissera, as lágrimas correndo pelo rosto.
- Pois achei que você ”adorava” o seu marido - David retrucara com frieza. Olhara para as mãos dela,
que lustravam febrilmente a madeira da mesa. - Tenho um carinho especial por esse vaso de porcelana -
dissera, insolente. - Afaste-o, antes que o derrube no chão.
- Não vou derrubá-lo! - Katie havia gritado, virando-se para ele com raiva e lágrimas nos olhos, e
derrubando o valioso vaso da mesa. Este caíra e se quebrara em vários pedaços. Ela atirou-se nos
braços de David, desmanchando-se em soluços incontidos. - Eu amo você, David... Não sei o que há de
errado comigo ultimamente. Desculpe-me, por favor. Vou desistir do meu emprego e...
David estava vingado. Tudo foi esquecido. Ele a consolara com algumas palmadinhas nas costas,
dizendo que, se ela o amava, era tudo o que importava e que não precisava desistir do emprego. O sol
despontara novamente em seu casamento e David era de novo aquele homem gentil, encantador e
prestativo de sempre.
Quatro meses depois, Katie saíra do escritório mais cedo, com a intenção de surpreender David com
um jantar especial para comemorar seis meses de casamento. E de fato o surpreendera. Ele estava na
cama com a mulher do sócio principal da firma de advogados onde trabalhava, recostado na cabeceira
da cama, fumando um cigarro, enquanto a mulher, nua, aninhava-se ao seu lado. Uma calma mortal
invadira Katie, embora sentisse o estômago revirando.
- Sendo óbvio que vocês já terminaram - ela dissera em voz baixa, parada na soleira da porta -, eu
gostaria que saíssem daqui. Os dois.
Sentindo-se envolta numa bruma, fora para a cozinha e começara a cortar os cogumelos que havia
comprado para o jantar. Cortou o dedo duas vezes, sem perceber que sangrava. Minutos depois, a voz
baixa e ciciante de David sibilou em seu ouvido:
132
- Sua cadela vadia, antes que esta noite termine eu vou ensinar-lhe os bons modos. Sylvia Conner é a
mulher do meu patrão. Agora, saia daqui e vá pedir desculpas a ela.
- Vá para o inferno! - Katie disse, numa voz sufocada pela dor e a humilhação.
As mãos dele agarraram seus cabelos, puxando sua cabeça para trás.
- Estou avisando, faça o que eu mandei ou irá arrepender-se depois que ela sair.
Lágrimas de tormento e angústia encheram os olhos de Katie, mas ela encarou-o sem piscar.
- Não.
Soltando-a, David foi para a sala.
- Sylvia - ela o ouviu dizer -, Katie lamenta muito por tê-la aborrecido e amanhã irá lhe pedir desculpas
pessoalmente por sua falta de educação. Venha, vou acompanhá-la até o carro.
Quando os dois saíram do apartamento, Katie encaminhara-se para o quarto que compartilhava com
David e tirou as malas do armário. Estava abrindo as gavetas e removendo as roupas quando o ouviu
entrar.
- Sabe de uma coisa, querida? - ele disse num tom suave, parado na porta. - Quatro meses atrás eu achei
que você havia aprendido a nunca mais me deixar contrariado. Tentei ensinar-lhe da maneira mais fácil
mas, pelo visto, não funcionou. Receio que, desta vez, a lição tenha de ser um pouco mais memorável.
Katie erguera os olhos e o vira tirar calmamente o cinto da calça, enrolando-o na mão. Até mesmo suas
cordas vocais congelaram de terror.
- Se você se atrever a me tocar - disse, com a voz sufocada -, eu chamo a polícia.
- Não vai, não. Você vai chorar muito, pedir desculpas e dizer que me ama.
E ele estava certo. Meia hora depois, Katie ainda gritava ”eu amo você”, com o rosto escondido no
travesseiro, quando a porta do apartamento fechou-se atrás dele.
Ela não fazia ideia de quanto tempo se passara antes que se obrigasse a sair da cama, vestisse um
casaco, pegasse a bolsa e saísse do apartamento. Não se lembrava de ter dirigido para a casa de seus
pais naquela noite, e nunca mais retornou ao apartamento.
David havia ligado para ela noite e dia, tentando, convencê-la a voltar, e também ameaçando-a. Estava
profundamente arrependido; estivera sob muita pressão no trabalho, com o fechamento de um caso;
aquilo nunca mais tornaria a acontecer.
Quando Katie tornara a vê-lo, estava acompanhada de seu advogado, numa audiência de divórcio.
Agora, Katie olhou para cima quando Ramon virou para uma estreita trilha de terra. Logo adiante, a
133
distância, ela viu luzes brilhando contra a encosta da colina. Devia ser a casa de Gabriella, pensou.
Olhou para as colinas que rodeavam o vale, todas salpicadas de luzes de outras casas, algumas mais
altas, outras mais baixas, outras ainda mais distantes. O reluzir das luzes dava a impressão de que as
colinas recebiam-na com alegria, parecendo um porto seguro na noite escura. Katie tentou saborear
aquela vista, concentrar-se no presente e no futuro, mas o passado recusava-se a deixá-la em paz.
Agarrava-se a ela, alertando-a...
Na verdade, David não a enganara completamente; fora ela quem deixara-se enganar. Mesmo sendo
uma virgem ingénua de 21 anos, ela pressentira que, na verdade, ele não era o homem encantador que
parecia ser. Seu subconsciente registrara a raiva controlada nos olhos dele, quando um garçom não o
atendia depressa o bastante num restaurante; o flexionar nervoso das mãos no volante, quando outro
motorista não saía da sua frente; havia visto o interesse velado na expressão dele, quando olhava para
outras mulheres. Katie suspeitara de que David não era o homem que queria fazê-la acreditar ser, mas
estava apaixonada e casara-se com ele assim mesmo.
Agora, estava prestes a se casar com Ramon e não conseguia afastar a terrível suspeita de que ele
também não era o homem que fingia ser. Ramon era como um quebracabeça cujas peças não se
encaixavam muito bem. E ele parecera tão hesitante, tão pouco disposto a falar, quando ela lhe fizera
perguntas sobre sua vida e seu passado. Se não tinha nada a esconder, por que se mostrava tão relutante
a falar sobre si mesmo?
Isso provocou uma tempestade de respostas no coração de Katie. Apenas porque Ramon não gostava de
falar sobre si mesmo não significava que estava lhe escondendo alguma característica sinistra de sua
personalidade. David adorava falar sobre si e, portanto, nesse aspecto os dois homens eram bem
diferentes.
Eles eram diferentes em todos os aspectos, disse a si mesma com firmeza. Ou não?
Ela só precisava de mais tempo para acostumar-se com a ideia de tornar a se casar, concluiu. Tudo
acontecera tão depressa que, agora, ela estava entrando em pânico. Nas próximas duas semanas, aquele
medo irracional acabaria desaparecendo. Ou não?
A casa de Gabriella já estava bem à vista quando Ramon parou abruptamente na frente de Katie,
bloqueando-lhe a passagem.
- Por quê? - ele indagou, num tom tenso, demonstrando frustração. - Por que você está com tanto
medo?
- Eu... eu não estou com medo - ela negou, assustada.
- Está, sim - ele afirmou, intenso.
Katie ergueu os olhos para o rosto de Ramon iluminado pela lua. Apesar do tom ríspido, havia
suavidade em seus olhos e uma força tranquila em seus traços. David jamais fora suave ou forte. Havia
sido violento e covarde.
- Acho que é porque tudo está acontecendo tão rápido
134
- ela respondeu, sendo parcialmente sincera. Ele franziu a testa.
- É apenas isso que a preocupa?
Katie hesitou. Não poderia explicar-lhe a fonte de seus temores. Nem mesmo ela os compreendia por
inteiro, ao menos naquele momento.
- Há tanto a ser feito, em tão pouco tempo - disse, desviando-se da questão principal.
Ramon suspirou de alívio, enquanto a tomava em seus braços, puxando-a contra seu peito.
- Katie, minha intenção sempre foi casar-me com você daqui a duas semanas. Seus pais estarão aqui
para a cerimónia, e vou cuidar de todos os detalhes. Tudo o que você precisa fazer, nesse meio tempo, é
conversar com o padre Gregório.
A voz aveludada, a respiração em seus cabelos, o perfume másculo do corpo dele, tudo contribuía para
exercer a magia em Katie.
- Conversar com o padre Gregório sobre a cerimónia?
- ela perguntou, recostando a cabeça em seu peito firme.
- Não, para convencê-lo de que você é a mulher certa para mim - Ramon corrigiu-a.
- Sério? - Katie perguntou num sussurro, a atenção absorvida nos lábios sensuais que se aproximavam
dos seus.
O desejo começou a percorrer-lhe as veias, sufocando todas as suas dúvidas e temores.
- Se sou sério a seu respeito? Você sabe que sim - ele murmurou, os lábios tão próximos agora que seu
hálito quente mesclava-se com o dela.
- Quero saber se está falando sério sobre eu ter de convencer o padre Gregório de que serei uma boa
esposa para você - ela disse, a boca quase colada na dele.
- Estou, sim - Ramon sussurrou. - Agora, convença-me. Um leve sorriso tocou os lábios dela, enquanto
ele enlaçava-lhe a nuca, puxando-o para si.
- Você é do tipo difícil de convencer? - brincou. A voz de Ramon estava rouca de paixão.
- Vou tentar ser.
Katie acariciou-lhe a nuca, com movimentos lentos e provocantes, fazendo-o ofegar.
- Quanto tempo acha que vou levar para convencê-lo?- murmurou, sedutora.
- Uns três segundos - ele respondeu, beijando-a com ardor.
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CAPITULO 12
KATíE VIROU NA cama e abriu os olhos, emergindo de um sono profundo com uma estranha
sensação de irrealidade. O quarto onde dormira era ensolarado e imaculadamente limpo, mobiliado
apenas com uma velha cómoda de cerejeira e um criado-mudo cuja madeira brilhava de tão encerada.
- Bom dia - a voz doce de Gabriella saudou-a da porta.
A memória de Katie rapidamente retornou ao foco, enquanto Gabriella cruzava o quarto e deixava uma
xícara de café fumegante na mesa-de-cabeceira. Com 24 anos, Gabriella tinha uma beleza exótica e
adorável. As faces salientes e os olhos castanhos e luminosos eram o sonho de qualquer fotógrafo de
moda. Na noite anterior, ela confidenciara a Katie que havia sido convidada para posar para um famoso
fotógrafo que a vira no vilarejo, mas seu marido, Eduardo, recusara-se a permitir. Isso, Katie pensou,
irritada, era exatamente o que seria de esperar daquele homem atraente, mas taciturno, que ela
conhecera ao chegar.
Katie agradeceu pelo café e Gabriella sorriu.
- Ramon veio vê-la logo cedo, antes de ir para o trabalho. Mas quando soube que você estava
dormindo, disse-me para não incomodá-la - Gabriella explicou. - Pediu-me para lhe dizer que virá vê-la
à tardezinha, quando retornar.
- De Mayagúez - Katie acrescentou, apenas para manter a conversa.
- Não, de San Juan - Gabriella corrigiu-a. Uma quase cómica expressão de horror cruzou-lhe o rosto. -
Ou talvez seja de Mayaguez. Desculpe, acho que não me lembro.
- Isso não tem importância - Katie assegurou-lhe, intrigada com sua evidente agitação.
Gabriella mostrou-se aliviada.
- Ramon deixou bastante dinheiro para você. Disse que poderíamos começar as compras ainda hoje, se
estiver disposta.
Katie assentiu e olhou no relógio ao lado da cama, surpresa em ver que já eram dez horas. No dia
seguinte iria certificar-se de estar acordada, quando Ramon viesse vêla antes de sair para trabalhar na
decadente fazenda em Mayaguez.
O silêncio pesava como uma nuvem carregada sobre os sete homens sentados em torno da mesa da sala
de reuniões, na sede da Galverra International, em San Juan - um silêncio quebrado apenas pelo
tiquetaquear do imponente relógio em estilo barroco, marcando os derradeiros suspiros de uma
corporação que, um dia, fora um dos conglomerados mais lucrativos do mundo.
De seu lugar na ponta da longa mesa, Ramon passou os olhos pelos cinco homens à sua esquerda, que
formavam o conselho de diretores da Galverra International. Cada um deles havia sido cuidadosamente
escolhido por seu pai, e possuía as três qualidades que Simon Galverra exigia de seus subordinados:
inteligência, ambição e falta de caráter. Durante vinte anos Simon havia sugado a inteligência deles,
136
explorado sua ambição e, sem nenhum constrangimento, aproveitara-se da incapacidade deles de
contradizê-lo ou de desafiar as suas decisões.
- Eu perguntei - Ramon repetia agora, num tom frio e impassível - se algum de vocês pode sugerir uma
alternativa viável para o pedido de falência da companhia.
Dois diretores pigarrearam nervosamente, outro pegou a garrafa de água na mesa e encheu seu copo.
Os olhares desviados e o silêncio prolongado acenderam a raiva que Ramon mantinha sob frágil
controle.
- Nenhuma sugestão? - ele perguntou, num sedoso tom de ameaça. - Neste caso, talvez algum de vocês,
que não esteja incapacitado de falar, possa explicar-me por que não fui informado das desastrosas
decisões de meu pai, ou de seu comportamento excêntrico nos últimos dez meses.
Passando o dedo na parte interna do colarinho, um dos homens respondeu:
- Seu pai nos disse que você não deveria ser incomodado com os problemas da empresa. Ele nos deu
ordens específicas quanto a isso, não é, Charles? - ele pedindo confirmação ao francês que sentava ao
seu lado. - Disse a todos nós que ”Ramon irá comandar as operações na França e na Bélgica durante
seis meses, depois estará participando da Conferência Mundial de Negócios na Suíça. Quando sair de
lá, estará ocupado com as negociações com o pessoal no Cairo. Ele não deve ser incomodado com as
decisões menores que tomamos aqui”. Foi exatamente isso o que ele disse, não foi?
Cinco cabeças assentiram concordando. Ramon olhou para todos eles, enquanto girava um lápis entre
os dedos.
- Então - concluiu, num tom perigosamente calmo -, nenhum de vocês pensou em ”incomodar-me”.
Nem mesmo quando ele vendeu uma frota de petroleiros e uma companhia aérea pela metade do
valor... Nem quando ele decidiu doar nossa participação nos lucros de mineração na América do Sul
para o governo local, como um ”presente”?
- Era... era o seu dinheiro, Ramon, e do seu pai. - O homem na outra ponta da mesa estendeu as mãos
num gesto de impotência. - Todos nós juntos possuímos apenas uma pequena porcentagem das ações
da corporação. O restante das ações pertence à sua família. Ele sabia que o que estava fazendo não era
o melhor para a corporação, mas a sua família é proprietária da corporação. E seu pai disse que queria
que o conglomerado tivesse maiores deduções de impostos.
A raiva fervia dentro de Ramon, prestes a explodir pelos seus poros. Sem nem mesmo perceber,
quebrou o lápis ao meio.
- Deduções de impostos? - disparou, furioso.
- S-sim... - outro homem gaguejou. - Você sabe... uma redução dos impostos para a corporação.
Ramon bateu a mão com toda a força na mesa, enquanto se levantava.
137
- Vocês estão tentando me dizer que acharam que ele estava tomando uma decisão racional, quando
passou a se desfazer dos bens da corporação apenas para não ter de pagar os impostos sobre eles? - Um
músculo saltou na mandíbula contraída, quando lhes enviou um último olhar fulminante. - Tenho
certeza de que vocês compreenderão que a companhia não poderá reembolsá-los pelas despesas de
viagem para esta reunião. - Fez uma pausa, desfrutando o prazer maldoso que as expressões perplexas
lhe forneciam. - Nem tampouco irá aprovar o pagamento anual de seus serviços como ”diretores” no
ano passado. Esta reunião está encerrada!
Erroneamente, um dos diretores escolheu aquele momento para mostrar-se assertivo:
- Ha... Ramon, consta dos estatutos da companhia que os diretores devem receber a soma anual de...
- Pois me processe! - Ramon disparou.
Girando nos calcanhares, marchou pela porta na direção do seu escritório, seguido pelo homem que
estivera sentado à sua direita, observando em silêncio o transcorrer da reunião.
- Sirva-se de uma bebida, Miguel - Ramon falou entre os dentes, enquanto tirava o paletó. Afrouxando
a gravata, aproximou-se das janelas.
Miguel Villegas lançou um olhar para o elegante armário onde estavam as bebidas, numa das paredes
revestidas de madeira, depois foi sentar-se numa das quatro poltronas forradas com veludo diante da
enorme escrivaninha. Os olhos pensativos continham uma simpatia mal disfarçada quando os voltou
para Ramon, que continuava parado junto à janela, de costas para ele, os punhos cerrados com força.
Após vários minutos de tensão, os punhos foram se afrouxando. Num gesto de cansada resignação,
Ramon flexionou os ombros largos, depois passou a mão pela nuca, massageando os músculos rígidos.
- Pensei que eu tivesse aceitado a derrota semanas atrás
- ele disse, com um suspiro amargurado, enquanto se virava. - Mas, ao que parece, isso não aconteceu.
Foi na direção da escrivaninha e sentou-se na cadeira maciça de espaldar alto, olhando para o filho
mais velho de Rafael Villegas. Sem qualquer expressão no rosto, disse:
- Devo concluir que a sua investigação não obteve nenhum resultado encorajador?
- Ramon - Miguel quase implorou -, sou um contador local; essa era uma tarefa para os auditores da
corporação. Você não pode basear-se apenas nas minhas descobertas.
Ramon não se deixou abater pela evasiva de Miguel.
- Meus auditores estão vindo de Nova York esta manhã, mas eu não lhes darei acesso aos registros
pessoais de meu pai que dei a você. O que foi que descobriu?
- Exatamente o que você esperava - Miguel suspirou.
138
- Seu pai vendeu todas as empresas da corporação que estavam dando lucro, e manteve apenas aquelas
companhias que atualmente operam com prejuízo. Quando não soube o que fazer com o produto das
vendas, doou milhões de dólares para todas as instituições de caridade que você puder imaginar. -
Retirou vários maços de papel da pasta de couro e, relutante, passou-os a Ramon por cima da mesa.
- O mais frustrante, na minha opinião, são aqueles edifícios de escritórios que você está construindo em
Chicago e St. Louis. Você tem vinte milhões de dólares investidos em cada um deles. Se ao menos os
bancos lhe emprestassem a quantia que falta para concluí-los, você poderia vendê-los, receber de volta
o investimento e ainda obter um lucro considerável.
- Os bancos não vão cooperar - Ramon constatou, tenso. - Já tive uma reunião com os representantes
deles, em Chicago e em St. Louis.
- Mas por quê, diabo? - Miguel explodiu, abandonando toda pretensão de seu papel de contador
profissionalmente impessoal. Sua expressão era amargurada, quando olhou para os traços impassíveis
daquele homem a quem amava como se fosse um irmão. - Eles emprestaram o dinheiro para a
construção dos edifícios até agora, por que não emprestam o que falta para terminá-la?
- Porque perderam a confiança no meu julgamento e na minha capacidade - Ramon respondeu,
analisando os números dos relatórios que Miguel lhe entregara. - Não acreditam que eu seja capaz de
terminar a construção dos edifícios e pagar o empréstimo. Do ponto de vista deles, enquanto meu pai
estava vivo recebiam um milhão de dólares todos os meses como pagamento dos juros. Ele morreu, eu
assumi o controle da corporação e, de repente, estamos quase quatro meses atrasados com os
pagamentos.
- Mas é por culpa de seu pai que a corporação não tem dinheiro entrando para fazer os pagamentos! -
Miguel retrucou, entre os dentes cerrados.
- Se você explicar isso aos banqueiros, eles irão reverter a opinião inicial e salientar que, embora meu
pai fosse o presidente do conselho, eu ainda era presidente da corporação e deveria ter tomado
providências para impedi-lo de cometer tais erros.
- Erros! - Miguel explodiu. - Não foram erros! Ele planejou tudo de forma que não restasse mais nada
para você. Queria que todos pensassem que, sem o controle dele, as empresas afundariam após a sua
morte.
Os olhos de Ramon nublaram-se, duros.
- Ele tinha um tumor cerebral; não era responsável pelos próprios atos.
Miguel enrijeceu na cadeira, os traços hispânicos inflamando-se.
- Ele era um miserável filho da mãe, um egoísta tirânico, e você sabe disso! Todos sabiam! Ele se
ressentia do seu sucesso e odiava a sua fama. Aquele tumor serviu apenas para que ele finalmente
perdesse o controle da inveja que sentia de você. - Vendo a fúria crescente na expressão de Ramon,
Miguel baixou a voz. - Sei que não quer ouvir isso, mas é a verdade. Você assumiu a corporação e, em
poucos anos, conseguiu erguer um império financeiro internacional, obtendo um lucro trezentas vezes
maior do que aquele que seu pai obtinha no início. Você fez isso, não ele. Era de você que os jornais e
139
revistas falavam, a quem se referiam como ”o empresário mais dinâmico do mundo”. Foi você que
convidaram para comandar a Conferência Mundial de Negócios, em Genebra. Eu estava almoçando
num restaurante, sentado a uma mesa perto da de seu pai, no dia em que ele ficou sabendo do convite.
Ele não ficou orgulhoso, mas sim furioso! Estava tentando convencer os homens que o acompanhavam
de que você havia sido convidado apenas porque ele mesmo não tinha tempo a perder com isso.
- Já basta! - Ramon disparou, o rosto pálido de dor e raiva. - Ainda assim ele era meu pai, e agora está
morto. Quase não havia amor entre nós, quando ele era vivo; não destrua os poucos sentimentos por ele
que restaram em mim. - Num silêncio pesado, Ramon concentrou-se nos papéis sobre a mesa. Quando
passou os olhos pela última coluna de números, ergueu a cabeça para Miguel. - O que é este total em
haver de três milhões de dólares que você relacionou no final?
- Não se trata realmente de um crédito - Miguel respondeu, desolado. - Foi algo que encontrei entre os
documentos pessoais de seu pai, na casa em Mayaguez. Pelo que entendi, é um empréstimo que ele fez
a Sidney Green, de St. Louis, nove anos atrás. Sidney Green ainda lhe deve o dinheiro, mas você não
pode processá-lo, nem tomar qualquer medida legal para reaver essa quantia pois, segundo a lei, você
tem apenas sete anos para entrar com um processo. E esse prazo já se esgotou.
- O empréstimo foi pago - Ramon falou, encolhendo os ombros.
- De acordo com os registros que encontrei, não foi, não.
- Se você continuar procurando, acabará descobrindo que foi pago, mas não perca mais tempo com
isso. Já tem muito o que fazer.
Houve uma rápida batida na porta, e logo em seguida a elegante secretária de Simon Galverra entrou na
sala.
- Os auditores de Nova York já chegaram. Também estão aqui dois repórteres de jornais locais pedindo
para marcar uma entrevista, e há um telefonema urgente de Zurique.
- Mande os auditores para a sala de reuniões e diga aos repórteres que darei uma entrevista no mês que
vem. Isso os deixará fora do caminho. Vou retomar a ligação de Zurique mais tarde.
Assentindo, a secretária fez meia-volta e saiu, a saia colando-se nas pernas bem torneadas.
Miguel observou a saída de Elise, arqueando a sobrancelha com admiração.
- Pelo menos seu pai tinha bom gosto para as secretárias. Elise é muito bonita - comentou, num tom de
apreciação estética impessoal.
Ramon abriu uma das gavetas da escrivaninha de madeira maciça e entalhada, e manteve-se em
silêncio, enquanto retirava três pesadas pastas cujas etiquetas diziam ”Confidencial”.
- Por falar em mulheres bonitas... - Miguel prosseguiu, com uma indiferença bem calculada, ao mesmo
tempo que juntava seus papéis, preparando-se para sair. - Quando é que vou conhecer a bela filha do
dono do supermercado?
140
Apertando o botão do interfone ao seu lado, Ramon passou as instruções para Elise:
- Chame Davidson e Ramirez, e, quando chegarem, mande-os para a sala de reuniões com os auditores.
- Com a atenção ainda voltada para as pastas em sua mesa, perguntou a Miguel: - Sobre quem está
falando? Que filha do dono do supermercado?
Miguel girou os olhos, divertido.
- Ora, aquela que você trouxe dos Estados Unidos. Eduardo disse que é razoavelmente atraente.
Sabendo o quanto ele detesta as mulheres norte-americanas, isso significa que deve ser
extraordinariamente bonita. Disse também que ela é filha do dono de um supermercado e...
- Dono de um...? - Por um instante Ramon mostrou-se irritado e confuso, mas logo seus traços foram
relaxando lentamente. Os olhos, que até então estavam duros e aguÇados, suavizaram-se com um
brilho diferente, e os lábios foram tocados por um sorriso inexplicável. - Katie - disse, num tom baixo. -
Ele estava se referindo a Katie. - Recostou na cadeira e fechou os olhos. - Como pude me esquecer que
Katie está aqui? - Reparando no olhar intrigado do amigo, explicou, bem-humorado: - Katie é filha de
um rico e bem-sucedido proprietário de uma enorme rede de supermercados. Ela veio comigo dos
Estados Unidos e vai ficar hospedada na casa de Gabriella e Eduardo por duas semanas, até o nosso
casamento.
Enquanto Ramon explicava rapidamente a situação, Miguel foi sentando-se devagar na poltrona que
acabara de desocupar. Balançou a cabeça, atónito.
- Dios mio, e eu aqui pensando que ela era a sua amante...
- Eduardo sabe que ela não é. Mas como desconfia de todas as mulheres norte-americanas, prefere
pensar que acabarei mudando de ideia quanto ao casamento. Quando conhecer Katie, ele irá gostar
dela. Enquanto isso, em respeito por mim, irá tratá-la como uma hóspede em sua casa e não lhe dirá
nada sobre o meu passado.
- Mas a sua volta é a grande notícia da cidade. Mais cedo ou mais tarde a sua Katie acabará ouvindo
alguns rumores no vilarejo.
- Tenho certeza que sim, mas ela não vai compreender nem uma palavra. Katie não fala espanhol.
Levantando-se de novo da poltrona, Miguel enviou-lhe um olhar preocupado.
- Ramon, depois disso, nada do que você disser ou fizer poderá deixar-me surpreso.
- Quero que você seja o meu padrinho. Miguel esboçou um leve sorriso.
- Isso não me surpreende. Eu sempre esperei ser o seu padrinho de casamento, da mesma forma que
você foi do meu. - Estendeu a mão sobre a escrivaninha. - Parabéns, meu amigo. - O firme aperto de
mãos transmitiu seu contentamento, bem como a tristeza pela situação financeira de Ramon. - Vou
retomar a análise dos arquivos de seu pai.
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O interfone tocou e a voz da secretária anunciou que os dois advogados da corporação, a quem Ramon
lhe instruíra para chamar, já estavam à sua espera na sala de reuniões.
Ainda sentado atrás da escrivaninha, Ramon ficou olhando Miguel cruzar a sala e sair. Quando a porta
se fechou, ele perpassou os olhos pelo seu escritório como se o estivesse vendo pela primeira vez,
inconscientemente memorizando todos os detalhes de elegante esplendor.
A paisagem de Renoir, que ele comprara de um colecionador particular por uma quantia exorbitante,
estava pendurada sob uma luminária especial, as cores formando um contraste vibrante contra a parede
revestida de madeira. Ramon entregara todos os seus bens pessoais como garantia de empréstimos para
a corporação, antes de descobrir toda a extensão dos atos destrutivos de seu pai. Juntamente com tudo o
mais que ele possuía, o Renoir logo seria leiloado e entregue a quem fizesse o lance mais alto. Esperava
apenas que quem quer que o comprasse fosse capaz de apreciá-lo tanto quanto ele.
Recostando a cabeça na cadeira, fechou os olhos por um instante. Dali a pouco ele estaria entrando na
sala de reuniões a fim de liberar os auditores e instruir seus advogados para entrarem com os
documentos legais que anunciariam aos tribunais e ao mundo empresarial que a Galverra International
estava incapacitada. Falida.
Durante quatro meses ele lutara para salvá-la, tentando infundir-lhe vida com seus próprios recursos,
fazendo de tudo para manter a corporação funcionando. E havia fracassado. Agora, tudo o que podia
fazer era certificar-se de que teria uma morte rápida e digna.
Noite após noite ele ficara acordado, temendo aquele exato momento. E, agora que finalmente chegara,
iria encará-lo sem a agonia sufocante que teria sentido duas semanas antes.
Porque, agora, ele tinha Katie.
Ramon entregara sua vida à corporação. A partir de agora, entregaria o restante dela a Katie. Somente a
Katie.
Pela primeira vez em muitos anos, sentiu-se invadido por uma profunda sensação de religiosidade. Era
como se Deus tivesse decidido privá-lo de sua família, de suas posses, de seu status, e, quando nada
mais restara a Ramon, apiedara-se dele e lhe enviara Katie. E a presença de Katie em sua vida
compensava tudo o que ele havia perdido.
Katie passou um batom de cor suave nos lábios, que combinava com o esmalte das unhas. Checou a
maquiagem dos olhos e penteou os cabelos com os dedos, restaurando a aparência natural. Satisfeita
com o resultado, afastou-se do espelho sobre a cómoda e olhou no relógio. Às 5.15 da tarde ainda era
dia claro, e Ramon dissera a Gabriella que viria buscar Katie entre 5.30 e 6.00, a fim de levá-la para
jantar na casa de Rafael.
Num impulso, Katie decidiu sair e encontrá-lo. Depois de vestir uma calça comprida branca e uma
blusa de seda azul-marinho, saiu pela porta da frente, aliviada por poder escapar da presença opressiva
de Eduardo, o marido de Gabriella, que parecia estar sempre desaprovando-a.
No alto, o céu azul-cobalto estava pontilhado de nuvens brancas. As colinas erguiam-se à sua volta,
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cobertas por um tapete verde-esmeralda, salpicado de flores rosadas e vermelhas. Com um suspiro de
satisfação, Katie ergueu o rosto para a brisa refrescante e atravessou o gramado da casa, na direção da
estreita estrada de terra que levava à rua principal.
Havia se sentido um tanto perdida, estando cercada de pessoas estranhas o dia todo, e sentia falta da
presença reconfortante de Ramon. Eles não tinham se visto desde a noite anterior, quando Ramon a
apresentara a Gabriella e Eduardo e depois voltara para a casa de Rafael.
- Katie!
A voz conhecida a fez parar. Virando a cabeça, ela avistou Ramon a uns 30m de distância, à sua
esquerda. Ele vinha pela colina, da casa de Rafael, e era óbvio que ela havia cruzado diretamente seu
caminho, enquanto andava para a estrada. Ele parou, esperando que ela fosse em sua direção. Com um
aceno de alegria, Katie virou-se e começou a subir a colina.
Ramon obrigou-se a ficar onde estava, desfrutando o puro prazer de saber que ela seguia ao seu
encontro. Seu olhar perpassou-a como uma terna carícia, observando a maneira como os seus cabelos
esvoaçavam, parecendo uma nuvem dourada. Os olhos azuis reluziam de contentamento e um sorriso
curvava os lábios convidativos e cheios. Ela movia-se com uma graça natural, os quadris ondulando
apenas o bastante para serem lindamente provocantes.
Ramon sentiu o coração disparar com o desejo de tomá-la nos braços e apertá-la contra si, de absorvêla
inteira. Queria cobrir aqueles lábios de beijos e murmurar muitas e muitas vezes, ”eu amo você, amo
você, amo você...” Queria dizer isso a Katie, mas não a ponto de arriscar-se a ouvir a resposta dela - ou
não ouvir resposta alguma - de que não o amava. Isso ele não conseguiria suportar.
A poucos passos dele, Katie parou, imobilizada por uma estranha combinação de felicidade e timidez.
A camisa azul que Ramon usava estava com os primeiros botões abertos, revelando parte do peito
bronzeado e musculoso; a calça de brim escuro colava-se nos quadris e nas coxas, seguindo cada
contorno das longas pernas. A sensualidade rústica e poderosa que dele emanava fazia com que Katie
se sentisse estranhamente frágil e vulnerável. Ela engoliu em seco, procurando algo para dizer, e
finalmente conseguiu formular um ”olá”.
Ramon abriu os braços para ela. Com a voz rouca, murmurou:
- Olá, mi amor.
Katie hesitou, mas logo atirou-se em seu abraço aconchegante. Ramon apertou-a contra si como se não
desejasse mais soltá-la.
- Sentiu saudades? - ele sussurrou, quando seus lábios por fim se separaram.
Katie pressionou os lábios em sua garganta, aspirando o perfume másculo e quente de sua pele.
- Senti, sim. E você?
- Não.
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Afastando-se, Katie olhou para ele com um sorriso incerto.
- Não sentiu?
- Não - ele repetiu, sério. - Porque, desde as dez horas desta manhã, eu a mantive junto comigo. Não
deixei que saísse de perto de mim.
- Desde as dez horas...? - Katie começou a perguntar, mas algo na voz dele a fez observá-lo com mais
atenção.
Instintivamente, reconheceu as emoções devastadoras que se ocultavam nas profundezas daqueles
olhos negros. Estendendo a mão, segurou-lhe o queixo com a ponta dos dedos e virou-lhe o rosto
surpreso primeiro para o lado esquerdo, depois para o direito. Mantendo a expressão animada,
perguntou, em tom de brincadeira:
- Como eram os outros sujeitos?
- Que outros sujeitos?
- Aqueles que tentaram acabar com você.
- Está dizendo que pareço que estive numa briga? Ramon perguntou.
Katie assentiu devagar, o sorriso alargando-se.
- Sim, e com pelo menos seis homens armados e um tanque de guerra desgovernado.
- Está tão ruim assim, é? - ele sorriu, desolado. Katie assentiu outra vez, e então ficou séria.
- Deve ser muito difícil, muito deprimente trabalhar para uma empresa que você sabe que está falida.
O olhar atónito de Ramon revelou a Katie que sua conclusão fora correta.
- Sabe de uma coisa? - ele disse, balançando a cabeça com divertida surpresa. - Muitas pessoas, em
todas as partes do mundo, já me disseram que eu consigo manter o rosto absolutamente impassível
quando quero.
- E você queria que estivesse impassível esta noite, comigo? - Katie adivinhou. - Por que não queria
que eu visse quanto está cansado e deprimido?
- É, sim.
- Há algum dinheiro seu investido nessa companhia?
- Literalmente, todo o meu dinheiro e a maior parte da minha vida - Ramon admitiu, diante do
assombro que ela demonstrava. - Você é muito perspicaz, Katie. Mas não precisa se preocupar. Depois
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do que ficou decidido hoje, não terei de passar tantas horas do dia na empresa. Amanhã à tarde
pretendo começar a ajudar os homens que estão trabalhando na reforma da nossa casa.
O jantar na casa de Rafael foi muito agradável, com brincadeiras e risos. A senora Villegas, esposa de
Rafael, era uma mulher robusta e cheia de energia, que tratava Ramon com a mesma solicitude que
dedicava ao marido e aos filhos - dois rapazes de cerca de vinte anos e uma garota de catorze. Em
consideração a Katie, a maior parte da conversa transcorreu em seu idioma, que os mais jovens não
sabiam falar mas que, aparentemente, entendiam um pouco, pois várias vezes ela os viu sorrirem com
algo que Rafael ou Ramon diziam.
Depois da refeição os homens foram para a sala, enquanto as mulheres tiravam os pratos da mesa e
lavavam a louça. Quando terminaram, reuniram-se a eles para o café. Como se a estivesse aguardando,
Ramon estendeu a mão para Katie. Ele puxou-a para si, fazendo-a sentar ao seu lado. Katie ficou
ouvindo Rafael falar com Ramon, sugerindo-lhe melhorias para a fazenda, mas durante todo o tempo
sentia-se vividamente consciente da sensação dos quadris dele contra os seus. Ramon estendera o braço
no encosto do sofá, e mantinha a mão acariciando-lhe o ombro, o polegar movendo-se em sua nuca, sob
os cabelos espessos. De propósito, ele a mantinha totalmente ciente de sua proximidade. Katie pensou
no que ele lhe dissera antes, sobre tê-la mantido o tempo todo ao seu lado, insinuando que havia
precisado dela para enfrentar os problemas do dia. E será que a estava mantendo fisicamente próxima
agora, tocando-a daquela maneira, porque precisava dela para enfrentar a noite também?
Katie olhou disfarçadamente para o perfil esculpido e, com uma pontada de solidariedade, reconheceu
os sinais de preocupação em seus traços. Com um gesto delicado, fingiu um bocejo por trás da mão
fechada, e Ramon olhou-a no mesmo instante.
- Você está cansada?
- Um pouco - ela mentiu.
Em três minutos Ramon concluiu a conversa com Rafael e, desculpando-se com a família, praticamente
arrastou-a pela porta afora.
- Está com disposição de ir andando ou prefere que eu a leve de carro?
- Eu estou disposta a qualquer coisa - Katie respondeu sorrindo. - Mas você parece cansado e distraído,
por isso inventei essa desculpa para tirá-lo de lá.
Ramon não se deu ao trabalho de negar.
- Obrigado, Katie - disse ternamente.
Gabriella e o marido já haviam se recolhido, mas deixaram a porta destrancada. Katie parou para
acender um abajur, enquanto Ramon ia direto para o sofá. Quando foi sentar ao seu lado, ele a puxou
pelo braço, fazendo-a sentar em seu colo. Porém, desvencilhando-se dele com firmeza, Katie levantouse
e fez a volta por trás do sofá.
Sob suas mãos delicadas, os largos ombros de Ramon estavam tensos, quando ela começou a
145
massageá-los. Katie foi invadida por uma estranha sensação, diante do estado em que ele se encontrava.
Havia uma intimidade tranquila entre eles, que jamais estivera presente antes, pois Ramon sempre
parecia instigar-lhe uma energia sensual que mantinha seus sentidos em constante excitação. Mas,
naquela noite, a energia existente era de tranquilo magnetismo.
- Como está se sentindo? - ela perguntou, massageando-lhe a base da nuca.
- Melhor do que você pode imaginar - ele respondeu, inclinando a cabeça para que ela tivesse um
melhor acesso à sua nuca. - Onde aprendeu a fazer isso? - indagou minutos depois, quando Katie dava
leves batidinhas em suas costas e ombros.
As mãos dela congelaram no ar.
- Não me lembro - mentiu.
Algo na voz dela fez com que Ramon se virasse abruptamente. Viu a expressão assustada em seus
olhos, segurou-a pelos braços e a fez voltar para a frente, sentando-a em seu colo.
- Agora, vou fazer com que você se sinta melhor disse, enquanto abria os botões da blusa e,
mergulhando as mãos por dentro do sutiã de renda, puxava-lhe os seios para fora.
Antes que Katie pudesse dar conta de si mesma, os lábios dele estavam em seus seios, nublando seus
pensamentos, carregando-a para um estado de ardente desejo. Com um braço em torno de seus ombros
e outro em sua cintura Ramon a fez deitar no sofá, o corpo quase cobrindo o seu.
- Ele está morto - lembrou-a com intensidade. - E eu não quero nenhum fantasma entre nós. - Apesar
do tom ríspido, seu beijo estava repleto de ternura. - Esqueça-o, Katie - implorou. - Por favor.
Katie enlaçou-o pelo pescoço, arqueando o corpo contra o dele e, imediatamente, esqueceu o mundo
inteiro.
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CAPITULO 13
No DIA SEGUINTE, Miguel passou direto pela secretária, abriu a porta do escritório de Ramon e
depois fechou-a com firmeza atrás de si.
- Fale-me sobre o seu bom amigo de St. Louis, o tal Sidney Green - foi logo dizendo, com uma ênfase
sarcástica na palavra amigo.
Ramon, que estava recostado em sua cadeira, imerso na leitura de alguns documentos legais, olhou
distraidamente para Miguel.
- Ele não é meu amigo. Apenas conhecia um amigo meu. - Voltando a atenção para os documentos,
Ramon acrescentou: - Ele foi falar comigo durante um coquetel na casa de um amigo, nove anos atrás,
e descreveu uma nova fórmula de tinta que havia inventado. Disse que, utilizando essa fórmula, seria
capaz de produzir tintas que se fixavam melhor e duravam mais do que qualquer outra existente no
mercado. No dia seguinte ele levou-me uma análise dessa tinta, realizada por um laboratório
independente, e provou o que estava afirmando. - Fez uma pausa, antes de continuar: - O sujeito
precisava de três milhões de dólares para dar início à fabricação e comercialização do seu produto, e eu
providenciei para que a Galverra International lhe emprestasse. Também coloquei-o em contato com
vários amigos proprietários de companhias que utilizam tinta na manufatura de seus produtos. Você
poderá encontrar todas as informações arquivadas em algum lugar por aí. Foi só isso.
- Parte das informações estava no arquivo, e o restante obtive com o tesoureiro da companhia, esta
manhã - disse Miguel. - Não foi tão simples quanto você pensa. Seu pai fez com que Green fosse
investigado, descobriu que ele era um químico modesto e decidiu que, como tal, jamais teria
perspicácia suficiente para comercializar seu produto, e assim os três milhões de dólares seriam
desperdiçados. Sendo o pai ”bondoso e amoroso” que era, ele decidiu ensinar-lhe uma lição. Instruiu o
tesoureiro para retirar três milhões de dólares da sua conta particular e entregar o dinheiro a Green
como se você estivesse lhe fazendo um empréstimo pessoal. Um ano depois, quando o empréstimo
deveria ser pago, Green escreveu e disse que precisava de um adiamento do prazo. De acordo com o
tesoureiro, você estava no Japão naquela época, e ele levou a carta para seu pai. Seu pai lhe disse para
ignorar a carta e não fazer nenhuma tentativa de receber o pagamento, pois isso seria um problema seu.
Ramon suspirou, irritado.
- Ainda assim, o empréstimo foi pago - disse. - Lembro-me do meu pai dizendo que havia sido.
- Não dou a mínima para o que aquele demónio lhe disse. Não foi pago. Obtive tal confirmação do
próprio Sidney Green.
Ramon ergueu a cabeça no mesmo instante, cerrando os dentes com raiva.
- Você falou com ele?!
- Bem... sim... eu liguei para ele. Você me disse para não perder mais tempo procurando nos arquivos,
Ramon
- Miguel defendeu-se, encolhendo-se diante do olhar furioso do amigo.
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- Diabo! Eu não lhe dei autorização para fazer isso, Miguel! - Ramon explodiu. Recostou-se na cadeira
e fechou os olhos por um segundo, obviamente lutando para controlar a raiva que o invadia. Quando
voltou a falar, a voz estava mais calma: - Mesmo quando eu me encontrava em St. Louis, não quis ligar
para ele. Green sabia que eu estava com problemas e, se quisesse ajudar, teria entrado em contato
comigo. Ele vai interpretar seu telefonema sobre esse antigo empréstimo como um triste e derradeiro
recurso de minha parte para tentar tirar-lhe o dinheiro. Ele era um bastardo arrogante nove anos atrás,
quando não tinha nada além da roupa do corpo. Bem posso imaginar como deve estar agora, sendo um
empresário de sucesso.
- Ele continua um bastardo arrogante - Miguel confirmou. - E nunca pagou um centavo do empréstimo.
Quando expliquei que estava tentando localizar os recibos de pagamento do dinheiro que você lhe
emprestou, ele disse que já é tarde demais para você tentar reaver a quantia por meio dos tribunais.
Ramon ouviu a informação com uma expressão de cínico divertimento.
- E ele está certo, é claro. Era responsabilidade minha providenciar para que o empréstimo fosse pago,
e, se não fosse, tomar as providências legais cabíveis dentro do prazo limite.
- Pelo amor de Deus, Ramon! Você entregou três milhões de dólares ao sujeito e ele está se recusando a
pagar, mesmo depois de ter enriquecido! Como pode ficar sentado aí, desse jeito?
Ramon encolheu os ombros, irónico.
- Eu não ”entreguei” o dinheiro a ele, fiz um empréstimo. E não fiz isso levado por bondade ou
caridade, mas sim porque senti que haveria um bom mercado para o produto que ele se dispunha a
fabricar, e porque esperava obter lucros com isso. Foi um investimento comercial, e é responsabilidade
do investidor cuidar do seu dinheiro. Infelizmente eu não sabia que era o meu dinheiro particular que
havia sido investido, e presumi que os auditores da companhia estivessem cuidando do assunto. A
recusa de Green de fazer o pagamento agora, quando não é mais obrigado a fazer, não é uma questão
pessoal. Ele está simplesmente cuidando dos próprios interesses. São apenas negócios.
- Isso é roubo! - Miguel exclamou, revoltado.
- Não, Miguel, para ele é somente um bom negócio Ramon retrucou, encarando-o com uma pontinha
de divertimento. - Aposto que, depois de lhe dizer que não iria pagar o empréstimo, ele enviou-me
lembranças e disse que ”lamenta muito” a minha atual situação financeira.
- Pois acertou em cheio! Disse também que, se você fosse tão esperto quanto todos afirmam, teria
exigido o pagamento anos atrás. E que se você, ou qualquer pessoa que o represente, tentar contatá-lo
de novo para receber o dinheiro, ele fará com que seus advogados entrem com um processo contra
você, por ”intimidação e danos pessoais”. Depois, desligou na minha cara.
Todo o humor desapareceu na expressão de Ramon, enquanto deixava a caneta na mesa.
- Ele fez o quê? - perguntou com uma suavidade mortal.
- Ele... falou todas essas coisas, depois desligou na minha cara - Miguel repetiu.
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- Agora, isso sim foi um mau negócio - Ramon falou num tom sedoso, ameaçador.
Tornou a recostar-se na cadeira e mergulhou num silêncio pensativo, os lábios curvados num sorrisinho
irónico. Então, de repente, inclinou-se sobre a mesa e apertou o botão do interfone. Quando Elise
atendeu, Ramon passoulhe sete números de telefone para que ela ligasse, em sete diferentes cidades do
mundo.
- Se bem me recordo dos termos do empréstimo falou para Miguel -, a taxa de juros sobre os três
milhões de dólares seria aquela que estivesse sendo cobrada no dia do pagamento.
- Certo - disse Miguel. - Se ele tivesse pago o empréstimo depois de um ano, a taxa de juros na época
seria de oito por cento, e ele estaria lhe devendo cerca de 3.240.000 dólares.
- A taxa de juros de hoje é de dezessete por cento, e ele me deve o dinheiro há nove anos.
- Tecnicamente, ele lhe deve mais de doze milhões de dólares - Miguel confirmou -, mas isso não
importa. Será impossível reaver esse dinheiro.
- Pois não tenho a menor intenção de tentar - Ramon declarou, afável. Seus olhos voltaram-se para o
telefone na mesa, esperando que a primeira das ligações internacionais fosse completada.
- Então, o que pretende fazer? Ramon arqueou a sobrancelha, divertido.
- Vou ensinar uma lição ao nosso amigo Green, algo que ele deveria ter aprendido há muito tempo. É
uma variação do velho ditado.
- Que velho ditado?
- Aquele que diz que, quando se está subindo a escada do sucesso, não se deve pisar nas mãos de
ninguém, pois pode-se precisar delas para ajudá-lo quando estiver descendo.
- E qual é a variação que você vai lhe ensinar? - Miguel perguntou, os olhos começando a brilhar de
antecipação.
- ”Nunca faça inimigos desnecessários” - Ramon respondeu. - E esta lição vai custar a ele doze milhões
de dólares.
Quando as ligações começaram a ser completadas, Ramon ligou o viva-voz no telefone, para que
Miguel pudesse ouvi-las. Várias conversas aconteceram em francês, e Miguel esforçava-se para
acompanhá-las, agarrando-se aos seus conhecimentos rudimentares da língua. Ramon falava com
fluência. Depois das quatro primeiras ligações, Miguel já havia compreendido o suficiente do que
estava ocorrendo para sentir-se absolutamente assombrado.
Todos os homens com quem Ramon conversava eram grandes industriais cujas empresas usavam, ou já
tinham usado, a tinta fabricada pela companhia de Green. Cada um deles tratava Ramon com afável
cordialidade e ouviu com surpresa quando ele explicou brevemente o que estava tentando fazer.
Quando cada um dos telefonemas se completava, Miguel também se sentia um tanto surpreso ao ouvi149
los perguntar se haveria algo que pudessem fazer para ajudar Ramon em sua ”situação problemática”, e
em todos os casos ele recusou gentilmente.
- Ramon! - Miguel desabafou quando o quarto telefonema foi encerrado, às 4.30 da tarde. - Cada um
desses homens poderia resgatá-lo do desastre financeiro em que você se encontra, e todos lhe
ofereceram ajuda.
Ramon balançou a cabeça.
- Trata-se apenas de uma formalidade, Miguel. Eles oferecem ajuda, mas já está subentendido que eu
vou recusar a oferta. São negócios, bons negócios. Você está vendo? acrescentou, com um leve sorriso.
- Nós todos já aprendemos a lição que o sr. Green está prestes a aprender.
Miguel não pôde reprimir um risinho.
- Se entendi esses telefonemas corretamente, amanhã os jornais de Paris irão relatar que a maior fábrica
de automóveis do país, que utiliza as tintas fabricadas por Green, teve um problema de desgaste nos
testes de pintura dos veículos e decidiu usar outro produto.
Ramon foi até o armário onde estavam as bebidas e serviu uísque em dois copos.
- Isso não é tão fatal a Green quanto você pode estar pensando. Meu amigo em Paris já havia
comentado que havia decidido contra o uso das tintas de Green porque eram caras demais; fui eu que
recomendei Green a ele, nove anos atrás. O problema com o desgaste da pintura ocorreu porque foi
aplicada incorretamente pelo pessoal da fábrica, mas é claro que ele não tem intenção de mencionar
isso à imprensa.
Ramon aproximou-se de Miguel e entregou-lhe o copo.
- O fabricante de equipamentos agrícolas na Alemanha vai esperar um dia, depois do anúncio da
imprensa francesa, antes de ligar para Green e ameaçar cancelar os pedidos devido ao que ficou
sabendo por intermédio dos jornais.
Ramon enfiou as mãos nos bolsos e sorriu para Miguel, com uma cigarrilha presa entre os dentes.
- Infelizmente para Green, as tintas que fabrica já não têm mais a qualidade superior. Outros fabricantes
norteamericanos já começaram a produzir tintas tão boas ou até melhores. Meu amigo em Tóquio irá
reagir ao noticiário de Paris declarando à imprensa local que jamais utilizou as tintas de Green e que,
portanto, não tem nenhum problema em relação ao desgaste da pintura nos veículos que fabrica. Na
quinta-feira, Demétrios Vasiladis vai ligar para Green, de Atenas, e cancelar todos os pedidos de tintas
navais que foram feitos para a sua frota de navios.
Ramon bebeu um gole do uísque, foi sentar-se à escrivaninha e começou a guardar os papéis na pasta,
documentos que pretendia analisar ainda naquela noite, depois que visse Katie.
Intrigado, Miguel inclinou-se na beirada da poltrona.
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- E o que vai acontecer depois? - perguntou. Ramon olhou-o como se o assunto tivesse perdido todo o
interesse.
- Quem é que sabe? Espero que os outros fabricantes de tintas dos Estados Unidos, que fazem um
produto de igual qualidade, aceitem o desafio e façam o possível para destruir Green por meio da
imprensa norte-americana. Dependendo de quanto forem eficientes nisso, a publicidade negativa
provavelmente fará cair o valor das ações de Green na Bolsa de Valores.
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CAPÍTULO 14
NA MANHÃ DE QUINTA-FEIRA Miguel estava revendo a declaração de bens que havia preparado
com Ramon, quando Elise entrou no escritório de Ramon sem a habitual batida na porta.
- Desculpe - ela disse, o rosto pálido e abalado. Há um homem... um homem muito grosseiro... no
telefone. Já lhe disse duas vezes que o senhor não pode ser interrompido, mas assim que eu desligo o
telefone ele torna a ligar e começa a gritar comigo novamente.
- O que ele quer? - Ramon perguntou, impaciente. A secretária engoliu em seco, apreensiva.
- Ele... ele deseja falar com o ”bastardo que está tentando jogar a tinta dele pelo ralo”, segundo as suas
próprias palavras. Essa pessoa... é o senhor?
Os lábios de Ramon curvaram-se num sorrisinho.
- Creio que sim. Pode passar a ligação.
Ansioso, Miguel inclinou-se para a frente. Ramon apertou o botão que conectava o telefone, relaxou
em sua cadeira e continuou a analisar calmamente os documentos financeiros que estivera lendo.
A voz de Sidney Garcia explodiu na sala, através do viva-voz:
- Galverra, seu desgraçado! Está perdendo o seu tempo, ouviu bem? Não importa o que você faça, não
vou pagar nem um centavo daqueles três milhões. Entendeu bem? Não importa o que você faça! - Não
houve resposta, então ele gritou: - Diga alguma coisa, maldição!
- Eu admiro a sua coragem - Ramon falou calmamente.
- Esta é a sua maneira de dizer-me que planeja outras táticas de guerrilha? Está me ameaçando,
Galverra?
- Eu jamais cometeria a indelicadeza de ”ameaçá-lo”, Sidney - Ramon retrucou num tom grave,
preocupado.
- Diabo, você está me ameaçando! Quem você pensa que é?
- Acho que sou o ”desgraçado” que vai lhe custar doze milhões de dólares - Ramon respondeu e, com
isso, estendeu a mão e apertou o botão que desligava o telefone.
Katie assinou rapidamente o recibo do cartão no valor da metade do preço dos móveis que acabara de
comprar, e depois pagou o restante com parte do dinheiro que Ramon lhe deixara. A vendedora lançoulhe
um olhar intrigado quando ela pediu dois recibos, um para cada metade do valor da compra. Katie
ignorou-o com firmeza, mas Gabriella ruborizou-se e desviou o rosto.
Lá fora a temperatura era deliciosamente quente, e turistas passeavam pelas ruas ensolaradas da parte
antiga de San Juan. O carro estava estacionado junto à calçada. Era um velho mas confiável veículo
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que pertencia ao marido de Gabriella, que permitira que elas o usassem nas expedições de compras.
- Estamos nos saindo muito bem - Katie suspirou, enquanto abria o vidro da janela a fim de permitir
que a brisa refrescasse o interior abafado. Já era quinta-feira, o quarto dia de sua frenética, mas bemsucedida
orgia de compras, e ela sentia-se feliz e exausta. - Só gostaria de não ter esta sensação de que
estou me esquecendo de alguma coisa acrescentou, olhando por cima do ombro para os dois abajures e
a mesa de canto que atulhavam o banco traseiro.
- Pois eu sei o que é. - O belo rosto de Gabriella tinha uma expressão preocupada quando girou a chave
na ignição e lançou um breve sorriso para Katie. - Você está se esquecendo de contar a Ramon a
verdade sobre quanto tudo isso está custando. - Manobrou o carro, entrando no fluxo de veículos do
centro da cidade. - Katie, ele vai ficar muito zangado quando descobrir o que você está fazendo.
- Ele não vai descobrir - Katie anunciou alegremente.
- Eu não vou contar nada, e você prometeu fazer o mesmo.
- É claro que não vou contar! - Gabriella exclamou, com um ar ofendido. - Mas padre Gregório já falou
muitas vezes na missa sobre a necessidade de sempre haver sinceridade entre marido e...
- Ah, não! - Katie gemeu em voz alta. - Foi isso que esqueci. - Recostou-se no assento e fechou os
olhos. - Hoje é quinta-feira, e às duas da tarde teria de me encontrar com o padre Gregório. Ramon
marcou o encontro na terça-feira e avisou-me hoje cedo, mas eu me esqueci completamente!
- Gostaria de ir falar com o padre agora? - Gabriella ofereceu uma hora mais tarde, quando o carro
chocalhava ruidosamente pelas ruas do vilarejo. - São apenas quatro horas. O padre Gregório ainda
deve estar na igreja.
Katie balançou a cabeça rapidamente, em negativa. Estivera o dia todo pensando no piquenique que ela
e Ramon fariam no chalé, naquela noite. Ficara de levar a comida, pois ele estaria ali trabalhando com
os outros homens. Quando estes saíssem, ela e Ramon teriam algumas horas sozinhos - as primeiras em
quatro dias, desde que haviam chegado.
Quando pararam em frente à casa de Gabriella, Katie deslizou para o banco do motorista, acenou-lhe
em despedida e virou o velho carro na direção do vilarejo, onde poderia parar no armazém geral para
comprar comida e uma garrafa de vinho para o piquenique.
Aqueles quatro últimos dias continham uma atmosfera estranha e irreal para ela. Ramon estivera
trabalhando na fazenda em Mayagúez de manhã e nas reformas do chalé à tarde, de forma que ela o via
apenas à noite. Ela passara os dias fazendo compras e decidindo sobre detalhes decorativos para a casa
de Ramon, tendo somente sua própria ideia do gosto dele para guiá-la. Sentia-se como se estivesse de
férias ocupando-se em decorar a casa dele... em vez de estar planejando seu próprio lar. Talvez fosse
porque Ramon estava tão ocupado e ela o via tão pouco, e, quando estavam juntos, havia sempre outras
pessoas em volta.
Rafael e os filhos também trabalhavam na reforma da casa, e todas as noites, durante o jantar, os quatro
homens estavam exaustos, embora animados e contentes. Apesar de Ramon lhe dedicar toda sua
atenção à noite, mantendo-a sempre perto de si quando sentavam-se na sala da casa de Rafael, rodeados
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pela atmosfera amigável de sua família, o ”momento e lugar para compartilharmos um ao outro” ainda
não se apresentara.
Todas as noites Ramon a acompanhava de volta para a casa de Gabriella, onde sentavam-se no sofá da
sala às escuras e ali ficavam abraçando-se por um longo tempo.
Durante o dia, Katie mal podia passar perto do sofá sem que sentisse o rosto afoguear-se. Por três
noites seguidas, Ramon a despira quase totalmente, deixando-a num estado de excitação insuportável e,
depois, tornara a vesti-la e despedira-se dela com um beijo longo e derradeiro. E, a cada noite, Katie
arrastava-se para a sua cama temporária, invadida por um desejo doloroso e não saciado, começando a
pensar que era precisamente o que Ramon pretendia que ela sentisse. Ainda assim, não havia dúvidas
em sua mente de que ele sempre ia embora muito mais excitado do que ela própria, portanto não fazia
sentido continuarem se torturando daquela maneira.
Na noite anterior, num assomo de confusão e desejo, Katie havia tomado uma decisão e oferecera-se
para pegar o cobertor em sua cama, a fim de que pudessem ir para fora onde teriam privacidade e
nenhum perigo de serem interrompidos.
Ramon a fitara com os olhos repletos de desejo, o rosto nublado de paixão.
- A chuva vai nos interromper, Katie - ele dissera. Deve chover a qualquer minuto.
Mal ele acabara de falar, um relâmpago cruzou o céu escuro, iluminando toda a sala. Porém não
choveu.
Mas aquela noite, sem dúvida, seria o ”momento e o lugar certos” que estiveram esperando, Katie
decidiu, e sentia-se ardendo de antecipação. Parou o carro na frente do armazém e desceu. Puxando as
pesadas portas, entrou no prédio antigo, piscando para acostumar os olhos à pouca luz.
Além de funcionar como a agência de correio local, o armazém geral vendia de tudo, desde farinha e
alimentos enlatados até roupas e móveis baratos. Pilhas de produtos cobriam o piso de madeira, com
apenas um estreito corredor para a passagem dos compradores. Os balcões também estavam repletos,
bem como as prateleiras que se erguiam nas paredes altas. Sem a ajuda de alguém que trabalhasse ali,
Katie e Gabriella levariam semanas para encontrar tudo do que precisavam.
A jovem a quem Gabriella já a apresentara como sendo a novia de Ramon, avistou Katie e foi atendê-la
com um largo sorriso. Com a ajuda dela, Katie descobrira, no início da semana, uma pilha de toalhas de
banho felpudas e coloridas, escondidas sob uma montanha de calças de brim. Katie havia comprado
meia dúzia de toalhas e encomendara mais uma dúzia, de cores diversas. Era evidente que a garota
estava pensando que Katie voltara para buscar o restante das toalhas, pois pegou uma delas, abriu-a
sobre o balcão e balançou a cabeça em negativa, comunicando-se por meio de mímica, pois não falava
inglês.
Katie sorriu e apontou a prateleira de mantimentos, que se intercalava com equipamentos agrícolas
como pás e ancinhos, e foi pegar o que precisava. Escolheu algumas frutas frescas, pão e alguns tipos
de frios e voltou para o balcão a fim de pagar as compras. Depois de somar os itens, a jovem balconista
entregou-lhe duas notas, uma para cada metade da compra. Parecia tão orgulhosa por ter se lembrado
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de que Katie sempre pedia dois recibos de pagamento que ela nem se deu ao trabalho de tentar explicar
que isso não seria necessário para aquele tipo de compra.
O cenário com que Katie se deparou, enquanto o carro sacudia através da alameda cercada de árvores
floridas que levava ao chalé, apanhou-a totalmente desprevenida. No gramado em frente à casa estavam
estacionados três velhas caminhonetes, dois cavalos e um caminhão carregado de entulho, que
obviamente havia sido removido da casa e seria transportado para outro lugar. Dois homens
substituíam as telhas, e outros dois lixavam a pintura antiga dos batentes das janelas. As venezianas
tinham sido consertadas e estavam abertas, deixando à mostra as vidraças reluzentes como cristal.
Aquela era a primeira vez que Katie via a casa, desde o domingo, e estava ansiosa para verificar os
progressos das reformas. Espiou rapidamente no espelho retrovisor do carro, retocou o batom e ajeitou
os cabelos revoltos.
Saiu do carro, alisando as pernas da calça jeans e arrumando a blusa por dentro da cintura. O ruído
constante do bater de martelos no interior da casa cessou abruptamente. Os homens que estavam no
telhado pararam e ficaram olhando para baixo, enquanto Katie passava pela calçada, agora totalmente
recuperada e revestida de tijolos novos. Ela olhou no relógio, vendo que eram 18.00 em ponto, e
concluiu que os homens estavam encerrando o trabalho do dia.
A porta da frente, que Ramon derrubara com um chute no domingo, havia sido recolocada no lugar, e
toda a pintura descascada fora lixada até que a madeira ficasse lisa e com sua cor natural. Katie
afastou-se para o lado quando oito homens passaram pela porta carregando as caixas de ferramentas.
Rafael e os dois filhos seguiam atrás deles. Havia um exército trabalhando ali, Katie pensou, divertida.
- Ramon está na cozinha com o encanador - Rafael avisou-a, com um de seus sorrisos afáveis e
paternais. Os dois filhos também sorriram, ao passar por ela.
As paredes da sala, feitas de tábuas, haviam sido lixadas, bem como o piso. Katie levou um instante
para entender por que a casa parecia tão alegre e ensolarada. Então, percebeu que todas as janelas
estavam limpas e algumas delas, abertas, deixando a brisa agradável mesclar-se com o odor pungente
de madeira recém-serrada. Um homem de certa idade, carregando um enorme cano em cada mão, saiu
da cozinha e cumprimentou-a brevemente, antes de atravessar a sala e sair pela porta. O encanador,
Katie adivinhou.
Com um último olhar apreciador para as melhorias à sua volta, Katie foi para a cozinha. Como todas as
outras superfícies de madeira, os armários tinham sido raspados e lixados da velha pintura, e o horrível
linóleo descascado do piso fora retirado. O barulho de metal batendo contra metal chamou-lhe a
atenção, e ela virou-se para onde se encontrava a pia. Um par de pernas longas estendia-se no chão, o
tronco a que pertenciam estando oculto sob o armário. Katie sorriu, reconhecendo as pernas e os
quadris estreitos sem nem mesmo ver a cabeça, cuja visão estava bloqueada pelo encanamento.
Ramon não percebera que o encanador havia saído, pois sua voz tão familiar disparou uma ordem
rápida em espanhol.
Katie hesitou, incerta, mas sentindo-se como uma criança que prega uma peça num adulto, pegou a
chave de fenda que estava no balcão e passou-a para ele. Quase riu alto quando a ferramenta foi-lhe
devolvida com um gesto impaciente, e a mesma ordem foi repetida com irritação, dessa vez
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acompanhada de uma batida no fundo da pia de aço inoxidável.
Calculando que adivinhara o que ele queria, Katie inclinou-se para a frente e abriu as duas torneiras. O
jato de água provocou uma torrente de imprecações, que emergiu de sob a pia ao mesmo tempo que
Ramon, com a água escorrendo pelo rosto, pelos cabelos e o peito nu. Pegando a toalha no chão, ele
levantou-se num único movimento ágil e furioso, enxugando o rosto, enquanto Katie apressava-se a
fechar as torneiras. Com um misto de temor e fascinação, ficou ouvindo os impropérios em espanhol
que vinham de trás da toalha, depois deu um pulo de susto quando Ramon finalmente olhou para ela.
A expressão dele transformou-se de raiva em choque.
- Eu... eu queria lhe fazer uma surpresa - Katie explicou, mordendo o lábio para controlar o riso.
A água escorria dos cabelos crespos, das sobrancelhas e cílios, espalhando-se nos pêlos escuros do
peito. Os ombros de Katie começaram a sacudir.
Um brilho surgiu nos olhos dele.
- Pois acho que uma ”surpresa” merece outra - disse. Estendeu a mão direita e abriu a torneira de água
fria.
Antes que Katie pudesse emitir algo mais do que um gritinho de protesto, sua cabeça estava sendo
forçada para baixo da torneira, a centímetros do jato de água.
- Não se atreva! - ela gritou, rindo. A água estava correndo com mais força, e sua cabeça mais próxima
da torneira. - Pare com isso! - ela pediu, a voz ecoando na pia de metal. - A água está se espalhando no
chão!
Ramon soltou-a e fechou a torneira.
- Os canos estão vazando - disse, sem a menor sombra de preocupação. Arqueou a sobrancelha e
acrescentou, ameaçador: - Terei de pensar numa ”surpresa” melhor para você.
Katie riu, ignorando a ameaça.
- Pensei que sua especialidade fosse a carpintaria provocou, pousando as mãos nos quadris.
- Não - ele corrigiu-a. - Eu disse que entendia de carpintaria tanto quanto você sabia fazer cortinas.
Katie sufocou um risinho e conseguiu esboçar uma expressão falsamente indignada.
- Pois as minhas cortinas estão tendo um progresso muito maior do que o seu encanamento. - Porque
Gabriella e a sra. Villegas estão confeccionando-as - acrescentou em pensamento.
- Ah, acha mesmo? - ele zombou. - Então vá até o banheiro.
Katie ficou surpresa quando Ramon não a seguiu e, em vez disso, pegou uma toalha seca e uma camisa
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que estavam pendurados num prego. Ela parou na porta do banheiro, preparando-se mentalmente para
se deparar com o cenário desolador que havia visto no domingo. Quando abriu a porta devagar, seus
olhos arregalaram-se.
Todas as peças tinham sido trocadas. Agora havia uma penteadeira moderna com a pia, e um boxe para
o chuveiro, com portas de correr. Katie puxou uma das portas, a título de experiência, e viu que
deslizava maciamente. No entanto, a ducha estava pingando e Katie balançou a cabeça, divertindo-se
com a ausência de preocupação de Ramon em relação a vazamentos. Com todo cuidado para não
escorregar no piso molhado, entrou no boxe e estendeu a mão para fechar melhor a torneira. Sua boca
abriu-se num grito silencioso quando um jato de água fria atingiu-a em cheio no rosto. Sem nada
enxergar, virou-se para sair do boxe, mas acabou escorregando e caiu de quatro, bem embaixo da ducha
vigorosa.
Engatinhou para fora do boxe, as roupas colando-se em seu corpo, a água escorrendo dos cabelos e do
rosto. Tentou levantar-se desajeitadamente, enquanto afastava os cabelos molhados dos olhos. Ramon
estava parado na porta, lutando para manter a expressão séria.
- Nem ouse rir - ela avisou em voz baixa.
- Quer um sabonete? - ele ofereceu, solícito. - Ou talvez uma toalha? - acrescentou com toda a
seriedade, entregando-lhe a toalha que estivera segurando.
Puxou da cintura a camisa que acabara de vestir e começou a desabotoá-la, enquanto continuava
falando:
- Permite que lhe ofereça a roupa do meu corpo, então? Katie, que estava prestes a cair na risada,
preparou-se para dar-lhe uma resposta atravessada, quando ele acrescentou:
- É estranho, não acha, como uma ”surpresa” realmente leva a outra?
Uma onda de indignação invadiu-a, ao perceber que ele fizera tudo aquilo de propósito. Com um
tremor de frio, arrancou a camisa da mão dele e bateu a porta em sua cara sorridente. Com certeza ele
ficara ali olhando, quando ela entrara no boxe e abrira a torneira, em vez de fechá-la, pensou, furiosa,
enquanto tirava a calça jeans ensopada. Então era assim que os homens latinos reagiam, quando vítimas
de uma brincadeirinha inocente! Esse era o tipo de retribuição que seus egos monstruosos exigiam!
Escancarou a porta do banheiro, vestida apenas com a calcinha molhada e a camisa de Ramon, e
marchou para fora da casa vazia.
Ramon encontrava-se no gramado da frente, estendendo calmamente sob uma árvore a manta que
trouxera no carro. Mas era mesmo muita arrogância!, Katie pensou ao vê-lo. Ele achava mesmo que ela
iria tolerar aquele tipo de tratamento e ainda ficaria ali, para um aconchegante piquenique no campo!
Ramon ajoelhou-se na manta e olhou para ela, a expressão impassível.
- Nunca mais bata uma porta na minha cara - disse, num tom calmo.
Depois, como se isso encerrasse todo o episódio, seu rosto suavizou-se. Fervendo por dentro, Katie
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cruzou os braços no peito, recostou-se na soleira da porta e deixou que ele a olhasse por inteiro. Porque
olhar era tudo o que ele faria. Dali a dois segundos ela iria pegar a manta, enrolá-la na cintura e voltaria
para a casa de Gabriella!
O olhar de Ramon deslizou pela cascata de cabelos avermelhados, que caía em ondas úmidas pelos
seus ombros, para a saliência dos seios sob a camisa, fez uma pausa no lugar onde a camisa terminava,
no meio das coxas, depois seguiu pelas pernas firmes e bem torneadas.
- Já viu o bastante? - Kate perguntou, sem esconder a hostilidade. - Está satisfeito?
Ramon ergueu a cabeça, os olhos perscrutando-lhe o rosto como se não pudessem desvendar o seu
humor. - É apenas em me ”satisfazer” que você pensa, Katie? Ignorando a insinuação sexual, Katie
endireitou-se e marchou até a manta onde ele estava ajoelhado.
- Vou embora - ela disse, olhando-o com uma altivez impassível.
- Não precisa ir buscar mais roupas. As suas irão secar logo e, além disso, eu já a vi usando menos do
que isso.
- Não vou buscar outras roupas. Não tenho a menor intenção de ficar aqui para um piquenique depois
que você me molhou de propósito, apenas para se vingar.
Ramon levantou-se devagar, encarando-a, e Katie manteve os olhos fixos em seu peito bronzeado.
- Preciso da manta para enrolar na cintura, para voltar à casa de Gabriella. Você está em cima dela.
- Estou mesmo - ele disse com suavidade, saindo de cima da manta.
Katie pegou-a rapidamente, enrolou-a na cintura e foi na direção do carro, ciente de que Ramon
recostara-se tranquilamente numa árvore, observando cada movimento seu. Sentou atrás do volante e,
num gesto automático, estendeu a mão para a chave do contato, sabendo que a deixara no lugar. Mas
não estava mais ali. Nem precisava procurá-la no assento, pois sabia quem a pegara.
Katie lançou um olhar fulminante para Ramon, através da janela do carro, e ele enfiou a mão no bolso,
tirou a chave e exibiu-a na palma da mão aberta.
- Você vai precisar disto.
Katie saiu do carro e foi até ele com passos duros, tentando demonstrar o máximo de dignidade que
aquela manta enrolada na cintura lhe permitia. Aproximando-se dele, fitou-o sem piscar.
- Dê-me a chave - disse, estendendo a mão.
- Pode pegar - ele tornou, indiferente.
- Você jura que não vai me tocar?
- Nem sonharia com isso - ele respondeu, com uma calma enfurecedora. - Mas não vejo motivos para
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que você não me toque. - Num misto de surpresa e raiva, Katie viu-o guardar a chave no bolso da frente
da calça jeans e depois cruzar os braços. - Fique à vontade para pegar a chave.
- Está se divertindo com isso, Ramon? - ela sibilou, furiosa.
- É a minha intenção.
Katie estava com tanta raiva que seria capaz de nocauteá-lo e arrancar-lhe a maldita chave à força. Deu
dois passos na direção dele, afundou a mão no bolso, ignorando a intimidade do gesto, e puxou a chave
para fora.
- Obrigada - disse, sarcástica.
- O prazer foi meu - ele tornou, sugestivo.
Ela girou nos calcanhares e deu um passo, mas com o movimento súbito a manta soltou-se e caiu no
chão, com a ajuda do pé de Ramon, que estava firmemente plantado numa das pontas da coberta. Com
os punhos cerrados de ódio, Katie virou-se de novo para ele.
- Como pode pensar que eu faria uma coisa como aquela de propósito? - ele perguntou calmamente.
Katie perscrutou o rosto tranquilo e inalterado, e aos poucos a raiva foi desaparecendo, deixando-a
exaurida.
- Você não fez?
- O que acha?
Ela mordeu o lábio, sentindo-se tola e ridícula.
- Eu... acho que não - admitiu, baixando a cabeça para os pés descalços.
A voz de Ramon continha um tom divertido.
- E agora, o que vai fazer?
Os olhos azuis de Katie aqueceram-se de riso, quando se ergueram para ele.
- Vou lhe mostrar quanto lamento ter pensado o pior de você servindo-o pelo restante da noite!
- Entendo... - ele disse, com um sorriso. - Nesse caso, o que devo fazer?
- Apenas fique aqui, enquanto arrumo a manta, depois vou lhe servir o vinho e sanduíches.
Com divertida satisfação, Ramon deixou que ela lhe preparasse três sanduíches de rosbife, mantivesse
seu copo de vinho cheio e lhe cortasse fatias de queijo sempre que ele pedia.
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- Vou acabar me acostumando com isso - ele brincou quando Katie insistiu em não apenas descascar a
maçã, mas também em cortá-la em pedaços e levá-los à sua boca.
Katie olhou para ele sob a luz do crepúsculo, os sentidos despertados pela sua proximidade. Ramon
estava estendido na manta, as mãos cruzadas sob a cabeça, parecendo um felino ágil e poderoso, que
sabe que sua presa está ao alcance e sem chances de escapar.
- Katie - ele murmurou, num tom sensual. - Sabe o que eu queria agora?
A mão dela ficou paralisada no ar, no ato de levar o copo de vinho aos lábios.
- O quê? - perguntou.
- Uma de suas massagens nas costas - ele anunciou, virando-se de bruços e deixando as costas à mostra.
Katie deixou o copo de lado e ajoelhou-se perto dele. Os ombros largos e musculosos, as costas lisas,
pareciam revestidos de cetim, macios e quentes sob seus dedos. Ela continuou massageando até que as
mãos ficassem cansadas, depois sentou e tornou a pegar o copo de vinho.
- Katie? - Ramon falou novamente, virando-se de frente para ela.
- Humm?
- Eu fiz de propósito.
Rápida como um raio, Katie atirou o vinho nas costas dele, levantou-se e disparou na direção da casa.
Ramon agarrou-a pela cintura no instante em que ela estava cruzando a sala escura, o corpo sacudindose
de riso quando ela tentava desvencilhar-se.
- Seu estúpido! - ela ofegou, num misto de hostilidade e riso. - Você é o homem mais traiçoeiro, mais
arrogante...
- E mais inocente que você conhece - ele riu. - Doulhe minha palavra.
- Eu poderia matá-lo! - ela riu também, enquanto tentava soltar-se.
- Se você continuar fazendo isso, eu vou precisar de um banho frio.
Katie imobilizou-se, consciente da pressão que a ereção dele fazia em seu traseiro, enquanto uma onda
de desejo intenso a invadia. Os lábios de Ramon roçaram em sua orelha, deslizando sensuais pela curva
de seu pescoço, provando e explorando cada centímetro de sua pele. As mãos acariciavam-lhe os seios
com a mesma possessividade, que sempre a deixava zonza de prazer.
- Seus mamilos estão rígidos - ele disse num tom baixo, quente, enquanto os dedos acariciavam os
mamilos sensíveis. - E seus seios estão inchados, prontos para encher as minhas mãos. Vire-se, querida
- murmurou. - Quero senti-la contra o meu peito.
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Estremecendo de antecipação, Katie virou-se nos braços dele. Ramon olhou para a curva suave de seus
seios, depois para os olhos dela. Hipnotizada, Katie viu os lábios dele descendo lentamente até os seus,
as mãos deslizando pela sua nuca e mergulhando em seus cabelos.
No instante em que seus lábios se tocaram, tudo o mais deixou de existir. Ramon penetrou a língua em
sua boca, ávido, com uma urgência que a deixou em chamas. A mão livre deslizava em suas costas,
colando-a contra si, fazendo-a sentir a dureza de seus quadris. Depois, ele se afastou.
- Vamos lá fora, Katie - ele disse com voz rouca, e quando ela assentiu, concordando, gemeu baixinho,
tomando-lhe os lábios para mais um beijo devastador.
Um facho de luz atordoante explodiu por trás dos olhos fechados de Katie, no mesmo instante em que
uma voz indagava:
- Posso perguntar quem realizou o casamento que precipitou essa lua-de-mel, Ramon?
Katie abriu os olhos de imediato e deparou-se com um homem estranhamente trajado, parado na sala
que, agora, estava iluminada. Depois ele olhou para Ramon, cuja cabeça estava atirada para trás, os
olhos fechados e a expressão com um misto de incredulidade e irritação. Suspirando, ele por fim abriu
os olhos e virou a cabeça para o intruso.
- Padre Gregório, eu...
Katie sentiu os joelhos dobrarem.
Ramon segurou-a com mais força, desviando os olhos para o seu rosto pálido e transtornado.
- Katie, você está bem? - perguntou, ansioso.
- Tenho certeza de que a srta. Connelly não está nada bem - o padre disparou. - Não há dúvida de que
ela deseja se retirar e vestir-se.
Um antagonismo envergonhado fez com que o rosto pálido de Katie se ruborizasse.
- Minhas roupas estão ensopadas - ela disse. Infelizmente, naquele instante deu-se conta de que, com os
braços de Ramon em torno de si, a camisa subira até a cintura, deixando a calcinha de renda à mostra.
Mais que depressa, ajeitou a camisa e afastou-se de Ramon.
- Nesse caso, talvez você queira usar aquela manta que vi lá fora para cobrir-se. Aliás, é para isso que
ela serve.
Ramon falou alguma coisa num rápido espanhol e adiantou-se para impedir Katie de sair, mas ela
desviou-se e correu para fora. Estava humilhada, envergonhada e furiosa consigo mesma por sentir-se
como uma ingénua garota de quinze anos. Aquele homem odioso e dominador era o padre cuja
aprovação ela teria de conquistar, antes que ele concordasse em realizar o casamento, pensou com
raiva. Nunca, nunca em toda sua vida ela desprezara alguém daquela maneira! Em dez segundos, ele a
fizera sentir-se suja e vulgar. Ela, que era praticamente uma virgem pelos padrões atuais!
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Ramon estava conversando com o padre num tom calmo, quando Katie entrou no chalé enrolada na
manta. Ele estendeu-lhe o braço e puxou-a para perto de si, reconfortando-a, mas suas primeiras
palavras estavam mescladas com reprovação:
- Por que não foi ao encontro marcado com o padre Gregório, Katie?
Ela empinou o queixo, na defensiva, enquanto olhava para o padre. Ele tinha uma espécie de coroa de
cabelos brancos em torno da cabeça calva. As sobrancelhas espessas e brancas arqueavam-se nas
extremidades, dando-lhe um ar satânico que, Katie pensou, parecia totalmente apropriado para um
velho demónio. Ainda assim, seus olhos vacilaram ao deparar com os dele, muito azuis.
- Eu me esqueci.
Katie sentia o olhar aguçado de Ramon sobre si.
- Nesse caso - o padre Gregório falou, num tom frio e indiferente -, talvez você queira marcar outra
hora. Às quatro da tarde, amanhã.
Katie aceitou a sugestão murmurando:
- Está bem.
- Vou levá-lo de volta ao vilarejo, padre - Ramon ofereceu.
Katie queria que um buraco se abrisse na sala quando, depois de assentir concordando, o padre envioulhe
um olhar significativo por sobre os aros dos óculos.
- Tenho certeza de que a srta. Connelly desejava voltar para a casa de Gabriella agora mesmo. Está
ficando tarde.
Sem esperar a resposta de Ramon, ela virou-se abruptamente e foi para o banheiro, fechando a porta
com firmeza. Num estado de sufocante humilhação, vestiu as roupas úmidas e penteou os cabelos.
Tornando a abrir a porta, encaminhou-se direto para Ramon, que estava parado na soleira da porta,
apoiando os braços no batente. O leve ar de divertimento na expressão dele colidiu com suas emoções
desencontradas.
- Katie, ele acha que está protegendo a sua virtude das minhas más intenções.
Katie, que se encontrava à beira das lágrimas, fixou os olhos na covinha do queixo dele.
- Ele não acredita, nem por um minuto, que eu tenha qualquer virtude! Agora, vamos embora, por
favor. Preciso sair daqui. Eu... estou muito cansada.
Enquanto ia andando na direção do carro, onde o padre Gregório os esperava, seus sapatos ensopados
produziam um ruído engraçado, e a calça jeans úmida colava-se em suas pernas. Aquela prova
irrefutável de que suas roupas realmente estavam molhadas levou um leve sorriso de aprovação aos
162
lábios do padre, mas Katie limitou-se a enviar-lhe um olhar gelado, antes de entrar no veículo. A
caminho do vilarejo, ele fez duas tentativas de conversar com ela, mas Katie logo o desencorajou,
respondendo com monossílabos.
Após deixar o padre no vilarejo, foram para a casa de Gabriella. Quinze minutos depois, quando Katie
saiu do quarto após ter trocado de roupa, Ramon estava na sala, conversando com Eduardo, o marido
de Gabriella. No instante em que a viu, Ramon desculpou-se e pediu que Katie o acompanhasse até lá
fora. Os efeitos negativos de seu encontro com o padre Gregório já haviam quase se evaporado, mas ela
ainda sentia-se vagamente insegura em relação ao humor de Ramon.
Num silêncio pesado, caminharam até o quintalzinho dos fundos. Katie parou, então, recostando-se no
tronco de uma árvore. Ramon estendeu os braços e apoiou-os em cada lado, aprisionando-a. Katie viu a
determinação em seus traços e a fria especulação em seu olhar intenso.
- Por que não foi falar com o padre Gregório hoje à tarde, Katie?
Apanhada de surpresa pela pergunta, ela gaguejou:
- Eu... eu já disse, Ramon. Esqueci.
- Eu ainda a lembrei disso esta manhã, quando vim vê-la antes de ir para o trabalho. Como pôde se
esquecer poucas horas depois?
- Pois me esqueci - ela retrucou, na defensiva. - Estava ocupada demais fazendo o que tenho feito há
quatro dias... tentando comprar tudo o que é necessário para a sua casa.
- Por que você sempre se refere à casa como sendo ”minha”, em vez de ”nossa”? - ele persistiu,
incansável.
- Por que você está me perguntando essas coisas, de repente?
- Porque, quando me faço tais perguntas, não gosto das respostas que me ocorrem.
Dando um passo para trás, ele tirou uma cigarrilha e um isqueiro do bolso. Protegendo a chama com a
mão, acendeu o fino charuto, enquanto observava o desconforto de Katie através da fumaça aromática.
- O padre Gregório é o único obstáculo possível ao nosso casamento daqui a dez dias, não é? -
perguntou.
Katie sentiu que ele a acuava, empurrando-a para um canto do qual não poderia escapar.
- Sim, suponho que sim.
- Diga-me uma coisa, Katie - ele falou, com uma curiosidade desinteressada. - Você pretende cumprir o
compromisso marcado com ele para amanhã?
Ela afastou os cabelos do rosto, num gesto agitado.
163
- Sim, é claro. Mas é bom que você saiba, desde já, que ele não gosta de mim. E eu acho que ele não
passa de um brutamontes tirânico.
Ramon descartou o comentário com um encolher de ombros.
- Creio que é o costume, mesmo nos Estados Unidos, que um padre se assegure de que o casal de
noivos seja razoavelmente compatível e tenha uma boa chance de fazer um casamento bem-sucedido. É
só isso que ele deseja fazer.
- Mas ele não terá essa opinião a nosso respeito! Ele já se decidiu pelo contrário!
- Não, Katie, isso não é verdade - Ramon afirmou, implacável. Aproximou-se dela e pressionou-a
contra o tronco áspero da árvore. Seu olhar perpassou-lhe o rosto, calculando sua resposta para a
próxima pergunta que faria.
- Você quer que ele decida que não somos compatíveis?
- Não! - ela sussurrou.
- Fale-me sobre o seu primeiro casamento - Ramon ordenou, abrupto.
- Não quero falar nesse assunto! - Katie enrijeceu, furiosa. - Nem tente me perguntar sobre isso, pois
não vou falar. Nunca penso naquele assunto.
- Se as suas feridas realmente estivessem curadas Ramon continuou -, você seria capaz de falar a
respeito dele sem sofrer.
- Falar a respeito?! - Katie explodiu, num misto de raiva e perplexidade. - Falar?
A violência da sua própria reação a fez silenciar-se por um instante, chocada. Respirando fundo,
recuperou o controle das emoções. Com um sorriso de desculpas para Ramon, que a observava com
uma expressão intrigada, ela disse:
- Apenas não quero que as coisas desagradáveis que aconteceram no passado estraguem o presente, e é
isso que aconteceria. Será que não entende?
A sombra de um sorriso relutante tocou o rosto de Ramon, quando olhou para a suave perfeição dos
traços dela.
- Eu entendo - respondeu, com um leve suspiro de resignação. As mãos deslizaram pelos braços dela,
numa carícia delicada, e puxou-a para si. - Entendo que você tem um sorriso lindo, e que parece muito
cansada.
Katie enlaçou os braços em torno do pescoço dele. Sabia que Ramon não ficara satisfeito com sua
explicação e estava mais do que grata por ele não insistir no assunto.
- Estou mesmo um pouco cansada. Acho que vou me deitar.
164
- E quando está deitada em sua cama, em que você pensa, Katie? - ele perguntou, num tom quente e
provocante.
Os olhos dela continham um brilho, em resposta.
- Nas cores que vou usar na cozinha - mentiu.
- Ah, é mesmo? - ele sussurrou.
Katie assentiu, com um leve sorriso nos lábios.
- E você, no que pensa?
- No preço dos abacaxis no atacado.
- Mentiroso - ela murmurou, os olhos fixos nos lábios sensuais que se aproximavam dos seus.
- Amarelo - ele disse, de encontro à sua boca.
- Está falando dos abacaxis? - Katie murmurou, distraída.
- Não, da cozinha.
- Eu estava pensando em verde - ela disse, o coração disparando de antecipação.
Ramon afastou-se abruptamente, com uma expressão amigável e pensativa.
- Talvez tenha razão. Verde é uma cor agradável e não cansa. - Ele a fez virar-se, encaminhando-a na
direção da casa com uma leve palmadinha em seu traseiro. - Pense nisso esta noite.
Katie deu alguns passos, surpresa, depois virou-se para ele com evidente desapontamento.
Ramon esboçou um sorriso lento, preguiçoso, arqueando a sobrancelha.
- Por acaso queria algo mais? Alguma coisa melhor para pensar na cama, talvez?
Katie sentiu o magnetismo sexual que emanava dele como se fosse uma força primitiva contra a qual
seria impossível lutar. A voz aveludada parecia envolvê-la, tocá-la.
- Venha aqui, Katie, e eu lhe darei algo em que pensar. Todo seu corpo aqueceu-se, quando ela
mergulhou no abraço apertado. O turbilhão emocional daquela última hora, as loucas flutuações que
foram desde o desejo até a humilhação, desde a raiva até o prazer, explodiam todas no instante em que
Ramon a abraçou.
Levada por uma necessidade desesperada de certificar a ele - e a si mesma - de que tudo ficaria bem,
Katie beijou-o com uma urgência sem limites, com uma paixão tão profunda que provocou um tremor
no corpo dele e fez com que seus braços a apertassem convulsivamente.
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Ramon afastou os lábios dos dela, beijando-lhe o rosto, a testa, os olhos. E, antes que procurasse de
novo sua boca, para um último beijo devastador, Katie pensou tê-lo ouvido murmurar:
- Katie, eu amo você.
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CAPÍTULO 15
KATIE E GABRIELLA passaram a manhã e quase toda a tarde visitando as lojas dos vilarejos
vizinhos. Katie gostava imensamente de Gabriella pois, além de ser uma companhia maravilhosa, era
uma ”compradora” incansável. Às vezes parecia mais entusiasmada do que a própria Katie, em relação
ao que estavam fazendo. Mas, enfim, as compras intermináveis, com centenas de detalhes em que
pensar em tão pouco tempo, não eram exatamente o que Katie chamaria de diversão.
Enquanto Katie pagava os lençóis e colchas que acabara de comprar, Gabriella afastou-se
discretamente dos procedimentos que envolviam o pedido de duas notas, cada uma com o valor
correspondente à metade da compra, e depois o pagamento usando partes iguais do dinheiro de Ramon
e do seu próprio dinheiro.
- Creio que Ramon vai gostar das cores que escolhi para o quarto, não acha? - Katie perguntou
alegremente, enquanto entravam no carro.
- Com certeza - Gabriella respondeu, virando-se no assento para olhar para Katie, com um sorriso. Os
espessos cabelos negros estavam revoltos e os olhos brilhavam. Tudo o que você compra é para agradálo,
e não para você mesma. Eu teria escolhido a colcha estampada de flores.
Katie, que estava dirigindo, olhou no espelho retrovisor antes de sair da vaga e entrar no lento fluxo do
tráfego. Depois, disparou um rápido olhar para Gabriella.
- Por algum motivo, não consigo visualizar Ramon num quarto decorado em tons pastel, com uma
colcha estampada de flores.
- Eduardo é tão másculo quanto Ramon e não faria objeções se eu decidisse fazer uma decoração mais
feminina em nosso quarto.
Katie teve de admitir que o que Gabriella dizia era verdade; Eduardo provavelmente concordaria com
tudo o que a esposa desejasse fazer, com um daqueles seus sorrisos vagos e divertidos que sempre Lhe
enviava. Naqueles últimos quatro dias, Katie havia reformulado a opinião que fazia de Eduardo. Na
verdade, ele não encarava o mundo todo com aquela expressão contida e desaprovadora - tal expressão
era dirigida apenas para ela. Sempre se mostrara correto e gentil com ela, mas no instante em que ela
entrava num cómodo, todo o calor desaparecia do rosto dele.
Talvez Katie não se sentisse tão desconfortável se Eduardo fosse um homem retraído e sem graça, ou
então do tipo que não expressa suas opiniões. Porém, na realidade Eduardo era um homem esplêndido,
que desde o início fizera com que ela se sentisse em desvantagem. Aos 35 anos, era extremamente
atraente, moreno, um pouco mais baixo que Ramon, mas com o mesmo físico poderoso e a mesma
atitude de confiante supremacia masculina, que provocava em Katie sentimentos contraditórios de
irritação e admiração. Não se parecia com Ramon, fosse na aparência ou no comportamento, mas
quando os dois homens estavam juntos, havia uma fácil camaradagem entre eles, que fazia com que
Katie tivesse certeza de que ela, e apenas ela, falhara em atingir os misteriosos padrões de Eduardo. Ele
tratava a esposa com uma afeição indulgente; tratava Ramon com uma estranha combinação de
amizade e admiração... e Katie com nada além de uma distante cortesia.
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- Gabriella, será que fiz alguma coisa que ofendesse Eduardo? - Katie perguntou, quase esperando que
Gabriella se apressasse em negar qualquer coisa incomum na atitude dele.
- Você não deve lhe dar atenção - Gabriella respondeu, com uma inocência impressionante. - Eduardo
não confia nas mulheres norte-americanas, sobretudo as ricas como você. Ele acha que são mimadas e
irresponsáveis, entre outras coisas.
Katie presumiu que as ”outras coisas” provavelmente incluíam a promiscuidade.
- E por que ele acha que sou rica? - perguntou, cautelosa. Gabriella enviou-lhe um sorriso de desculpas.
- Por causa da sua bagagem. Eduardo trabalhava na recepção de um hotel de luxo em San Juan, na
época de estudante. Disse que as suas malas custam mais caro do que todos os móveis da nossa sala de
estar.
Antes que Katie pudesse recobrar-se da surpresa, Gabriella voltou a falar, num tom sério:
- Eduardo gosta muito de Ramon, por vários motivos, e tem medo que você não se acostume com a
vida de esposa de fazendeiro. Ele acha que, pelo fato de ser uma norteamericana rica, você acabará
indo embora quando descobrir que a vida aqui às vezes é muito difícil. Que, quando as safras forem
ruins e os preços baixarem, você jogue seu dinheiro na cara de Ramon.
Katie ruborizou-se, invadida por um súbito desconforto, e Gabriella assentiu, grave.
- É por isso que Eduardo nunca poderá descobrir que você está pagando uma parte de tudo o que
compra. Ele a condenará por ter desobedecido a Ramon, e vai pensar que você está fazendo isso porque
o que o dinheiro de Ramon pode comprar não é bom o bastante para você. Não sei por que você está
fazendo isso, Katie, mas não acredito que esse seja o motivo. Algum dia você irá me dizer, se desejar,
mas enquanto isso Eduardo não pode descobrir. Ele iria contar a Ramon imediatamente.
- Nenhum deles vai saber de nada, a não ser que você diga alguma coisa - Katie assegurou-lhe,
sorrindo.
- Você sabe que não direi. - Gabriella ergueu os olhos para o sol. - Você quer ir ao leilão naquela casa
em Mayatjiiez? Estamos bem perto.
Katie concordou de imediato e, três horas depois, era a orgulhosa proprietária de um jogo de jantar, um
sofá e duas poltronas. A casa pertencera a um rico solteirão que, antes de morrer, desenvolvera um
gosto apurado para móveis de boa qualidade, com ótimo acabamento e sólido conforto. As poltronas
tinham espaldar alto, revestidas com um belo tecido cor de creme. O sofá também era confortável, com
as almofadas grandes e macias.
- Ramon vai adorar - Katie dizia, enquanto pagava o leiloeiro e providenciava para que os móveis
fossem entregues no chalé.
- E você, Katie, vai adorar? - Gabriella perguntou, ansiosa. - Você também vai morar naquela casa, e
até agora não comprou nada apenas porque era do seu gosto.
168
- Ora, é claro que sim - Katie retrucou.
Às 15.50, Gabriella parou o carro na frente da casinha do padre Gregório. Esta localizava-se no lado
oeste da praça, bem em frente à igreja, e era facilmente identificada por sua pintura branca e venezianas
verde-escuras. Katie pegou a bolsa, enviou um sorrisinho nervoso para Gabriella e saiu do carro.
- Tem certeza de que não quer que eu fique esperando?
- Gabriella perguntou.
- Tenho, sim. Sua casa não fica longe daqui e terei tempo de sobra para me arrumar, antes de encontrar
Ramon no chalé.
Relutante, Katie encaminhou-se para a porta da frente. Parou para ajeitar a saia do vestido verde-claro
que usava e passar a mão pelos cabelos, que estavam puxados para trás e presos com uma presilha.
Esperava estar com uma aparência composta e adequada para uma conversa com um padre. Mas sentiase
uma pilha de nervos. Uma senhora de idade atendeu à porta e a fez entrar na casa. Seguindo-a pelo
vestíbulo mal iluminado, Katie sentia-se como uma condenada dando os derradeiros passos ao encontro
do seu carrasco, embora tal sensação a deixasse um tanto intrigada.
Padre Gregório levantou-se assim que ela entrou no pequeno escritório. Era mais magro e mais baixo
do que ela calculara na noite anterior, o que lhe provocou um alívio absurdo, desde que não iriam travar
nenhuma batalha física. Katie sentou-se na cadeira que lhe foi indicada, em frente à escrivaninha, e ele
também se sentou.
Por um instante, ficaram apenas olhando-se com uma cordial desconfiança, mas depois ele disse:
- Gostaria de tomar um café?
- Não, obrigada - Katie respondeu, com um sorriso fixo. - Não posso ficar por muito tempo.
Dissera a coisa errada, pensou logo em seguida ao ver as sobrancelhas espessas do padre juntarem-se,
quando ele franziu a testa.
- Não há dúvida de que você tem coisas mais importantes a fazer - ele disparou.
- Não para mim - ela apressou-se em explicar, tentando uma trégua. - Para Ramon.
Para seu imenso alívio, o padre aceitou a oferta de trégua. Os lábios finos relaxaram em algo que era
quase um sorriso, enquanto balançava a cabeça branca.
- Ramon está com muita pressa de ver tudo terminado e deve estar mantendo-a extremamente ocupada.
– Estendendo a mão na mesa, pegou um formulário e a caneta.- Vamos começar preenchendo estes
formulários. Seu nome completo e idade, por favor? Katie deu-lhe a informação.
- Estado civil? - Antes que Katie pudesse responder, ele olhou-a com tristeza e disse: - Ramon
mencionou que seu primeiro marido morreu. Deve ter sido uma tragédia, ficar viúva logo ao florescer
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do casamento.
A hipocrisia nunca fora um dos defeitos de Katie. Educada, mas com firmeza, ela respondeu:
- Eu fiquei viúva ”ao florescer” do divórcio e, se alguma tragédia aconteceu, foi o meu casamento com
ele.
Os olhos do padre estreitaram-se por trás dos óculos.
- Como foi que disse?
- Nós estávamos divorciados, antes que ele morresse.
- Por que motivo?
- Incompatibilidade de génios.
- Não perguntei os motivos legais, mas sim os seus motivos.
A bisbilhotice do padre provocou-lhe faíscas de revolta, e Katie respirou fundo, tentando acalmar-se.
- Eu me divorciei dele porque o desprezava.
- Por quê?
- Prefiro não falar nesse assunto.
- Entendo. - O padre Gregório afastou os papéis para o lado, largou a caneta, e Katie sentiu que a frágil
trégua começava a se desfazer. - Nesse caso, talvez não faça objeções em falar sobre Ramon e você. Há
quanto tempo se conhecem?
- Apenas duas semanas.
- Que resposta incomum... - ele comentou. - Onde se conheceram?
- Nos Estados Unidos.
- Srta. Connelly - ele disse, num tom gélido -, você consideraria uma invasão de privacidade se eu lhe
pedisse para ser um pouco mais específica?
Os olhos dela faiscaram, belicosos.
- De forma alguma, padre. Conheci Ramon num bar... ou uma cantina, como vocês dizem aqui.
O padre ficou perplexo.
- Ramon a conheceu numa cantina?
170
- No lado de fora, na verdade.
- Como?
- Eu me encontrava no lado de fora, no estacionamento. Estava com um problema, e Ramon me
socorreu.
O padre relaxou na cadeira e assentiu, aprovando.
- É claro. Você estava com um problema no carro, e ele a ajudou.
Como se tivesse feito um juramento de ”dizer a verdade, nada mais do que a verdade”, Katie o corrigiu:
- Para ser mais exata, eu estava tentando escapar de um homem que... bem... queria me beijar à força,
no estacionamento. Ramon deu um soco nele. Acho que estava um pouco embriagado.
Por trás dos óculos de aros finos, os olhos do padre pareciam duas pedras de gelo.
- Senorita - ele disse, com desprezo -, está tentando me dizer que Ramon Galverra envolveu-se numa
briga de bêbados no estacionamento de uma cantina, por causa de uma mulher desconhecida... você, no
caso?
- É claro que não! Ramon não estava bêbado e, certamente, aquilo não foi uma briga. Ele bateu em Rob
apenas uma vez, e o nocauteou.
- E depois, o que aconteceu? - o padre indagou, impaciente.
Infelizmente, o senso de humor de Katie escolheu aquele momento para se manifestar.
- Depois, nós enfiamos Rob no carro dele, e Ramon e eu fomos embora no meu.
- Encantador.
Um sorriso sincero surgiu na expressão de Katie.
- Na verdade, não foi tão terrível quanto parece.
- Acho difícil de acreditar.
O sorriso dela desapareceu. Os olhos azuis adquiriram um brilho denso, de revolta.
- Pois acredite no que quiser, padre.
- É o que você deseja que eu acredite que me deixa atónito, senorita - ele disparou, levantando-se de
repente.
171
Katie também se levantou, as emoções tão confusas diante da abrupta e inesperada conclusão da
entrevista que mal sabia se deveria sentir-se aliviada ou preocupada.
- O que o senhor quis dizer com isso? - perguntou, intrigada.
- Pense um pouco a respeito, e tornaremos a conversar na segunda-feira, às nove da manhã.
Uma hora mais tarde Katie já havia trocado o vestido por uma calça comprida e uma blusa de linha
branca. Sentia-se irritada, confusa e culpada, enquanto caminhava colina acima, indo da casa de
Gabriella para o chalé onde Ramon estava trabalhando.
Parou por um instante, virando-se para admirar as colinas cobertas de flores silvestres. Do ponto onde
se encontrava, podia avistar o telhado da casa de Gabriella, a casa de Rafael e, naturalmente, o vilarejo.
A casa de Ramon ficava num lugar mais elevado do que as casas vizinhas, e, vendo quanto ainda teria
de caminhar, decidiu sentar-se um pouco e descansar. Puxou as pernas contra o peito, passando o braço
em torno delas, e encostou o queixo nos joelhos.
”É o que você deseja que eu acredite que me deixa atónito”, o velho padre lhe dissera. Ele soara como
se ela estivesse tentando lhe passar uma má impressão, Katie pensou, irritada, quando, na verdade, ela
havia passado o dia inteiro fazendo compras, usando um vestido e saltos altos para que pudesse
aparecer diante dele vestida com todo o respeito!
Havia simplesmente lhe contado a verdade sobre como conhecera Ramon, e se isso ofendesse sua
antiquada moralidade, bem, não era por culpa dela. Se ele não quisesse ouvir as respostas, não deveria
fazer tantas perguntas, Katie pensou, com raiva.
Quanto mais pensava nisso, menos culpada sentia-se pela atmosfera de hostilidade daquele primeiro
encontro com o padre Gregório. Na verdade, estava sentindo-se justificadamente indignada com tudo
aquilo, até que as palavras de Ramon surgiram em sua mente: ”Como pôde se esquecer do encontro
com o padre Gregório, se eu mesmo a lembrei poucas horas antes?... O padre Gregório é o único
obstáculo possível ao nosso casamento daqui a dez dias... Você quer que ele decida que não somos
compatíveis, Katie?”
A incerteza esfriou a sua raiva instantaneamente. Como pudera ter-se esquecido do encontro marcado?
Seu primeiro casamento havia exigido meses de preparação e incontáveis compromissos com
costureiros, floristas, fotógrafos, banque teiras, além de dezenas de pessoas. Nem uma vez ela se
”esquecera” de uma hora marcada com qualquer um deles.
Será que, em seu subconsciente, quisera esquecer o encontro com o padre, no dia anterior?, perguntouse
com uma pontinha de culpa. E será que, deliberadamente, tentara causar uma má impressão a ele,
naquela tarde? A pergunta a fez encolher-se por dentro. Não, pensou, não tentara lhe causar nenhuma
impressão, fosse boa ou má. Porém, de fato deixara que ele fizesse uma imagem distorcida e pouco
lisonjeira de seu primeiro encontro com Ramon no Canyon Inn, sem nem mesmo tentar corrigi-la.
É
Quando o padre tentara obter informações sobre seu divórcio, ela praticamente dissera que isso não era
172
de sua conta. Com uma honestidade que lhe era inata, Katie teve de admitir que sim, isso era da conta
dele. Por outro lado sentia-se no direito de ressentir-se de qualquer pessoa qualquer pessoa mesmo -
que tentasse obrigá-la a falar sobre David. Ainda assim, poderia ter se mostrado menos hostil, poderia
ter dito ao padre que o motivo de seu divórcio havia sido o adultério e a brutalidade física da parte de
David. Então, se ele tentasse estender-se no assunto, poderia ter explicado que, para ela, era impossível
discutir os detalhes e que preferia esquecê-los.
Era isso que deveria ter feito. Mas, ao contrário, mostrara-se pouco disposta a cooperar, indiferente e
friamente desafiadora. Na verdade, não se lembrava de algum dia ter-se comportado de maneira tão
indelicada com alguém. Como resultado, hostilizara a única pessoa capaz de dificultar a realização do
casamento no prazo de dez dias. Que coisa mais tola e impensada para fazer...
Katie pegou uma flor que caíra ao seu lado e começou a tirar as pétalas vermelhas, distraída. As
palavras de Gabriella soaram em sua mente: ”Você não comprou nada que fosse apenas do seu gosto”.
Na ocasião, Katie descartara tal comentário, achando que não era verdadeiro. Mas, agora que pensava
nisso, deu-se conta de que, inconscientemente, havia evitado escolher qualquer coisa que pudesse
deixar a marca de sua personalidade, ou da sua feminilidade, na casa de Ramon. Porque isso a obrigaria
a casar-se com ele e morar naquela casa.
Quanto mais a data do casamento se aproximava, mais assustada e hesitante ela estava se sentindo. Não
havia sentido em negar, mas o fato de admitir tampouco ajudava muito. Quando partira de St. Louis
com Ramon, ela tinha certeza de que estava fazendo a coisa certa. Agora, não tinha mais certeza de
nada. Não podia compreender esse medo ou essa incerteza; não conseguia nem mesmo entender
algumas das coisas que estava fazendo! Para alguém que se orgulhava de ter uma mente lógica, ela de
repente passara a comportar-se como uma completa neurótica. Não havia nenhuma desculpa para o seu
comportamento, pensou, irritada.
Ou talvez houvesse. Na última vez em que se comprometera com um homem, com o casamento, seu
mundo desabara. Poucas pessoas sabiam melhor do que ela que experiência agonizante, humilhante,
um mau casamento poderia ser. Talvez não valesse a pena correr o risco. Talvez ela jamais devesse ter
considerado a ideia de casar-se outra vez e... não! Absolutamente não!
Não permitiria que as cicatrizes emocionais que David lhe deixara arruinassem a sua vida e destruíssem
a chance de ter um casamento feliz e duradouro. Não daria essa satisfação a David - estivesse ele vivo
ou morto!
Katie levantou-se e passou as mãos pela calça. Subiu a colina um pouco mais, virou-se novamente e
olhou para baixo, para o vilarejo. Sorriu de leve, pensando que a vista parecia tirada das páginas de um
folheto de turismo: as casinhas brancas aninhadas entre as colinas verdes, com a igreja no centro. A
igreja onde estaria se casando dali a dez dias.
Seu estômago contorceu-se com tal pensamento, e Katie poderia ter chorado de desespero. Sentia como
se estivesse se dividindo ao meio. Sua razão a puxava para um lado, e o coração, para outro. O medo
instalara-se em seu peito, o desejo pulsava em suas veias e o amor por Ramon ardia como um fogo
constante e crescente no centro de tudo isso.
E ela realmente o amava. Ela o amava muito.
173
Ainda não havia admitido tal verdade para si mesma, e agora o reconhecimento disso provocou-lhe um
fluxo de prazer e pânico. Agora que reconhecia seus sentimentos, por que simplesmente não aceitava
seu amor por aquele homem terno, bonito, apaixonado, e o seguia para onde ele a levasse?
Seguir o amor para onde a levasse, Katie pensou com amargura. Já fizera isso antes, e o fim de
caminho revelara-se um pesadelo interminável. Mordendo o lábio, virou-se e recomeçou a caminhada.
Por que estava pensando em David e em seu primeiro casamento o tempo todo?, perguntou-se, em
desespero. A única semelhança entre David e Ramon, além da cor dos cabelos e a altura, era que ambos
eram muito inteligentes. David fora um advogado talentoso e ambicioso, um homem educado,
cosmopolita. Enquanto Ramon...
Bem, Ramon era um enigma, um quebra-cabeça: um homem culto, educado e inteligente, com um
intenso interesse nos assuntos mundiais. Um homem capaz de socializar-se facilmente com os
sofisticados amigos de seus pais - um homem que, ainda assim, escolhera ser um simples fazendeiro.
Porém, mesmo tendo escolhido ser fazendeiro, era um homem que não tinha sentimentos profundos,
nem um orgulho verdadeiro em relação às suas terras. Ele nunca se oferecera para levá-la para
conhecer a fazenda, embora ela tivesse lhe pedido para ver suas terras. E quando Ramon conversava
com Rafael acerca das melhorias que tinham de ser feitas, falava com determinação resoluta - mas
nunca com um entusiasmo genuíno.
Katie ficara tão surpresa com aquela atitude que, dias antes, havia lhe perguntado se ele já desejara
fazer outra coisa que não fosse cuidar da fazenda. E Ramon respondera apenas com um breve e pouco
informativo ”sim”.
- Então, por que não faz? - ela insistira.
- Porque a fazenda está aqui - ele respondera, sem nada explicar. - Porque é nossa. Porque encontrei
mais paz e alegria aqui do que em qualquer outro lugar.
Paz?, ela pensou, em desespero. E se Ramon realmente estivesse feliz, nem sempre demonstrava. Na
verdade, houvera vezes naquela última semana em que Katie olhara para ele e captara uma sombra de
tristeza em seu rosto, uma raiva contida em seus olhos. No instante em que ele percebia que estava
sendo observado, a expressão desaparecia, sendo substituída por um sorriso - um de seus sorrisos
quentes, íntimos.
O que ele estaria escondendo? Alguma tristeza profunda? Ou algo muito pior? Seria um traço de
personalidade violenta, como a de David, ou...
Ela balançou a cabeça, negando. Ramon não era como David. De maneira alguma. Parou um instante,
quebrando um galho de um pequeno flamboyant. Estava coberto de flores amarelas, e ela aspirou o
perfume, tentando afastar as incertezas que a perseguiam para onde fosse.
Ao chegar ao topo da colina, ouviu o barulho de martelos e serras que vinha do chalé. Quatro pintores
trabalhavam no lado de fora, aplicando uma camada de tinta branca nos batentes de madeira, enquanto
outro pintava as venezianas de preto.
174
Seu ânimo elevou-se ao comparar o estado em que a casa se encontrava no domingo, quando a vira
pela primeira vez, e como estava agora. Em cinco dias, com a ajuda de um exército de carpinteiros e
marceneiros, Ramon já conseguira transformá-la na casinha pitoresca que devia lembrar-se de suas
visitas na época em que os avós moravam ali.
- Jardineiras - ela falou em voz alta.
Inclinou a cabeça para o lado, tentando visualizar as jardineiras repletas de flores sob as janelas dos
dois lados da porta da frente. Era exatamente isso que estava faltando, concluiu. Faria com que a casa
parecesse uma cena de um livro de histórias, numa ilha de contos de fadas. Mas sua vida ali também
faria parte dessa história?
Encontrou Ramon descendo de uma escada no lado extremo da casa, onde também estivera pintando as
paredes. Ao ouvi-la chamá-lo com um ”olá”, ele virou-se, surpreso. Um sorriso lento, devastador,
cruzou os traços bronzeados. Ele se mostrou tão feliz em vê-la que, de repente, Katie também foi
invadida por uma felicidade absurda.
- Eu lhe trouxe uma coisa - ela brincou, mostrando o galho de flamboyant florido que trouxera
escondido atrás das costas.
- Flores? - ele disse, com exagerada admiração, enquanto aceitava o galho. - Para mim?
Embora o tom fosse de brincadeira, Katie captou um lampejo de calor nos olhos dele. Assentiu, com
um sorriso provocante.
- Sim, e amanhã lhe trarei bombons.
- E depois de amanhã?
- Bem, depois das flores e bombons, é costume partir para as jóias. Algo de bom gosto e muito caro,
mas pequeno... Nada de ostentações que possam alertá-lo para as minhas verdadeiras intenções.
Ele sorriu.
- E depois disso?
- Tranque as portas e proteja a sua virtude, pois será o dia da recompensa - ela riu.
Ramon estava sem camisa e seu peito nu brilhava como bronze, exalando um perfume de sabonete e
suor, que Katie achou estranhamente estimulante quando ele a puxou para seus braços.
- Para você - ele disse, enquanto os lábios aproximavam-se lentamente dos dela -, serei uma conquista
fácil. Minha virtude em troca das flores, apenas.
- Que pouca vergonha! - ela brincou, ofegante.: Os olhos dele nublaram-se de desejo.
- Beije-me, Katie.
175
CAPÍTULO 16
KATIE ERGUEU A CABEÇA no instante em que ouviu o padre Gregório dizer o seu nome, seguido
pelo de Ramon, no altar da igreja. Ele estava lendo os proclamas, concluiu. Todas as pessoas presentes
na igreja lotada viraram-se de uma só vez na direção da fileira nos fundos, onde ela e Ramon estavam
sentados na companhia de Gabriella, o marido e a família de Rafael.
Os moradores do vilarejo certamente sabiam quem era Ramon Galverra Vicente, Katie pensou, o que
não seria de surpreender, já que ele havia nascido ali. Mas, o que de fato a surpreendeu foi a atitude
peculiar das pessoas em relação a ele. Desde o instante em que Ramon entrara na igreja com ela, todos
os observavam com franca curiosidade. Alguns sorriam ou cumprimentavam-no em silêncio, mas
também havia curiosidade em suas expressões, mesclada com incerteza e até espanto.
Mas, naturalmente, o comportamento distante de Ramon havia desencorajado qualquer pessoa que
desejasse se aproximar para uma conversa amigável. Com um sorriso educado, embora frio e altivo, ele
limitara-se a dar uma rápida passada de olhos pelos ocupantes da igreja, depois sentara-se ao lado de
Katie e os ignorara completamente.
Katie mexeu-se no desconfortável banco de madeira, com a atenção voltada para o sermão do padre
Gregório, do qual não compreendia nem uma palavra. Estava começando a imaginar se o destino
conspirava para evitar que ela e
Ramon ficassem sozinhos, pelo menos por um período de tempo razoável. Nos últimos sete dias, não
houvera nenhuma ocasião em que pudessem ”compartilhar um do outro”, como ele havia prometido.
Na sexta-feira, quando Katie encontrava-se nos braços dele, recebendo seus beijos de gratidão pelo
”buqué” que ela lhe dera, uma súbita massa de nuvens escuras começara a formar-se no céu,
bloqueando a luz do sol. O que começara como um leve chuvisco logo se transformou numa
tempestade. E eles acabaram passando uma noite agradável, apesar de bastante insatisfatória, jogando
cartas com Gabriella e Eduardo.
No sábado o sol voltara a brilhar, e os homens passaram o dia trabalhando na reforma da casa. Agora
que a eletricidade fora ligada, eles ficavam trabalhando no interior do chalé mesmo depois que
escurecia, o que o eliminava como um local de encontro. No fim da tarde de sábado, Eduardo, o marido
de Gabriella, havia sugerido a Ramon que levasse Katie para conhecer a baía Fosforescente.
Katie espantara-se que Eduardo, entre todas as pessoas, sugerisse um passeio romântico para eles, bem
como oferecesse o carro para o trajeto até a costa oeste da ilha. Não podia imaginá-lo bancando o
Cupido, quando sabia muito bem que ele não a aprovava. O mistério foi solucionado no instante em
que Ramon consultou-a, e ela concordou animadamente com o passeio.
- Então está resolvido - Eduardo dissera. - Gabriella e eu ficaremos muito contentes com a companhia
de vocês.
Isso, definitivamente, evitara que ela e Ramon ficassem sozinhos na casa, enquanto Gabriella e
Eduardo fossem para a baía. Sob a expressão de leve surpresa no rosto de Ramon, Katie pudera ver que
ele estava bastante aborrecido com o amigo.
176
Apesar disso, a noite havia sido muito divertida e agradável. No início da viagem de cerca de 30km
pelas bem conservadas estradas costeiras, Ramon permaneceu num silêncio pensativo, sentado ao lado
de Katie no banco traseiro. Percebendo que Eduardo era o motivo daquele mau humor, Katie ofereceulhe
o seu sorriso mais luminoso e em poucos segundos Ramon sorria de volta, enquanto tentava
responder às suas intermináveis perguntas a respeito dos lugares por onde passavam.
A baía Fosforescente fora uma experiência mágica para Katie. As mesmas nuvens escuras que haviam
trazido a chuva e mantiveram os turistas longe do local também obscureceram a lua. Com Gabriella e
Eduardo na frente do barco a motor que alugaram, e Katie e Ramon na parte de trás, ela às vezes erguia
o rosto para que ele lhe desse um beijo furtivo, depois virava-se para admirar as luzes brilhantes e
esverdeadas que flutuavam sobre a água, na rasteira do barco. Seguindo a sugestão de Ramon, ela
inclinou-se para o lado e mergulhou a mão na água. Quando a retirou, uma camada do mesmo brilho
esverdeado havia se colado em seu braço. Até mesmo os peixes que saltavam da água deixavam um
feixe de luz em seu rastro.
Aos poucos Ramon fora relaxando no barco, parecendo um nativo indulgente que se divertia com três
turistas. E, se houve algo que o divertiu mais do que observar Katie se divertindo, foi frustrar todas as
tentativas de Eduardo de ter um pouco de privacidade com a esposa no fundo do barco. A cada vez que
Eduardo sugeria que mudassem de lugar, Ramon declinava o oferecimento dizendo: ”Estamos
perfeitamente confortáveis aqui, Eduardo”.
Ao final do passeio, era Eduardo quem parecia aborrecido, e Ramon sorria com satisfação.
O barulho dos trovões lá fora ecoou pela igreja sombria, seguido de um lampejo de luz dos relâmpagos
que iluminou as janelas com vitrais. Katie esboçou um leve sorriso de resignação, aceitando o que
aparentemente seria outro dia em que ficariam em casa, outro dia e outra noite em que ela e Ramon não
conseguiriam ficar a sós.
- Está um dia perfeito para as compras - Gabriella anunciou às 8.30 da manhã seguinte, entrando no
quarto de Katie com a habitual xícara de café. - E o sol está brilhando! - acrescentou alegremente,
sentando na beirada da cama.
Bebeu um gole do seu café, observando Katie, que se arrumava para o encontro com o padre Gregório.
- Acha que estou respeitável o bastante? - Katie perguntou, ajeitando o cinto em forma de corrente
dourada na cintura do vestido branco.
- Está perfeita - Gabriella respondeu, sorrindo. - E linda como sempre!
Katie girou os olhos para o alto e riu, aceitando o elogio. Antes de sair, prometeu a Gabriella que
voltaria assim que terminasse a entrevista com o padre.
Quinze minutos depois, Katie não estava mais rindo. Pregada à cadeira, ruborizava-se sob o exame frio
e minucioso do padre Gregório.
- Eu perguntei - ele repetiu, ameaçador -, se Ramon sabe que você está usando o seu dinheiro, os seus
cartões de crédito, para pagar as coisas que compra para a casa.
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- Não - Katie admitiu, apreensiva. - Como o senhor ficou sabendo?
- Chegaremos a isso num instante - ele disse, num tom baixo, irritado. - Primeiro, quero saber se você
está ciente de que Ramon retornou a este vilarejo depois de uma ausência de muitos anos. Que ele
partiu daqui há muito tempo, em busca de algo melhor.
- Sim... para trabalhar numa empresa que faliu.
Sua afirmativa fez com que o padre ficasse ainda mais zangado.
- Então, você entende que Ramon voltou para cá a fim de recomeçar sua vida, a partir da estaca zero?
Ela assentiu, sentindo como se um machado estivesse prestes a cair sobre sua cabeça.
- Você tem alguma ideia, senorita, de quanta força e coragem são necessárias para um homem voltar ao
lugar onde nasceu não como um sucesso, mas como um fracasso? Será que percebe quanto o seu
orgulho fica ferido quando precisa encarar as pessoas que acreditavam que ele havia alcançado o
sucesso, e que agora testemunham a sua derrota?
- Não acho que Ramon se sente derrotado, nem desonrado - Katie protestou.
O padre bateu a mão com força no tampo da mesa.
- Não, ele não está desonrado, mas vai ficar... graças a você! Graças a você, todos os moradores deste
vilarejo vão dizer que a novía rica de Ramon, vinda dos Estados Unidos, teve de pagar pelas toalhas
com que ele enxuga as mãos!
- Ninguém sabe que tenho usado o meu dinheiro para pagar metade das compras! - Katie explodiu. -
Exceto o senhor e... ninguém mais - corrigiu-se rapidamente, protegendo Gabriella.
- Ninguém, exceto você, eu... - ele ironizou - e Gabriella Alvarez, é claro. E metade do vilarejo que,
neste exato minuto, está ”fofocando” com a outra metade! Será que estou sendo claro?
Sentindo-se miserável, Katie assentiu.
- É óbvio que Gabriella manteve segredo de Eduardo, do contrário ele já teria contado a Ramon. Você
obrigou-a a enganar o próprio marido em seu benefício!
Apreensiva, Katie observou-o tentar controlar a fúria.
- Srta. Connelly, haverá a mais remota, a mais longínqua possibilidade de você ter imaginado que
Ramon não iria se opor ao que está fazendo?
Mais do que qualquer coisa, Katie desejava agarrar-se a essa desculpa, mas seu orgulho impediu-a de
se acovardar.
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- Não, eu mencionei a Ramon que gostaria de dividir todas as despesas, e ele... não apreciou a ideia. -
Viu os olhos do padre estreitarem-se. - Tudo bem, ele foi completamente contra.
- Então - ele falou, num tom desagradável -, Ramon lhe disse que não era para dividir os gastos, mas,
mesmo assim, você fez isso. Só que às escondidas, não é? Você lhe desobedeceu.
Katie perdeu a paciência.
- Não use a palavra desobedecer para mim, padre. Não sou um cachorrinho treinado. Além disso, quero
lembrá-lo de que, se gastei boa parte do meu dinheiro ”às escondidas”, foi para Ramon, o que se pode
considerar uma caridade. E isso não é nenhum crime.
- Caridade! - o padre explodiu, furioso. - É assim que você o vê? Como um caso de caridade, um objeto
de piedade?
- Não! É claro que não! - Katie arregalou os olhos, com um horror genuíno.
- Se você está pagando metade de tudo que compra, então está gastando o dobro do que ele pode gastar.
Será que é tão mimada que precisa ter tudo o que deseja na hora, no mesmo instante?
Comparado a isso, Katie pensou que a Inquisição espanhola devia ter sido um recreio. Não podia evitar
a pergunta e, certamente, não poderia dizer que pagara pela metade de tudo para que não se sentisse
obrigada a casar com Ramon.
- Estou esperando a resposta.
- Eu gostaria de lhe dar uma - ela disse, com tristeza.
- Mas não posso. Não agi assim por nenhum desses motivos que o senhor está pensando. É muito difícil
explicar.
- E ainda mais difícil entender. Na verdade, eu não entendo você, srta. Connelly. Gabriella é sua amiga,
e no entanto você não hesita em envolvê-la nas suas traições. Está morando sob o teto de Eduardo, mas
não sente nenhum remorso em retribuir a hospitalidade dele forçando Gabriella a enganá-lo. Quer
casar-se com Ramon, e ainda assim lhe desobedece, o engana e desonra. Como pode agir assim com
alguém a quem ama?
O rosto de Katie empalideceu e, reparando em sua expressão contida, o padre balançou a cabeça,
frustrado. Quando voltou a falar, foi num tom mais gentil:
- Senorita, apesar de tudo, não posso acreditar que você seja uma pessoa egoísta e sem coração. Deve
ter algum bom motivo para fazer o que fez. Diga-me o que é, para que eu possa entender.
Imersa num misto de vergonha e tristeza, Katie limitou-se a olhá-lo, sem palavras.
- Diga-me! - ele insistiu, o rosto retomando a expressão de raiva e exasperação. - Diga que você ama
Ramon, e que não imaginava que o vilarejo iria comentar o que fez. Eu acreditaria nisso, e até a
ajudaria a explicar-se com Ramon. Apenas admita, e poderemos concluir os detalhes para o seu
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casamento agora mesmo.
O estômago de Katie revirava dolorosamente, mas seu rosto pálido estava impassível.
- Não lhe devo nenhuma explicação, padre. E também não vou discutir os meus sentimentos por
Ramon com o senhor.
As sobrancelhas brancas e espessas juntaram-se numa expressão furiosa. Recostando-se na cadeira, ele
submeteu-a a um olhar penetrante.
- Você não quer falar sobre os seus sentimentos por Ramon porque não sente nada por ele... É isso?
- Não foi o que eu disse! - Katie negou, mas suas mãos contorciam-se convulsivamente em seu colo,
traindo suas emoções tumultuadas.
- Será que pode afirmar que o ama?
Katie sentia-se desfazer em pedaços por emoções tão desencontradas que não conseguia compreender
nem controlar. Tentou formular as palavras que o padre esperava ouvir, dar-lhe a certeza de que ele
tinha o direito de esperar, mas não pôde. Tudo o que conseguiu foi olhá-lo em silêncio.
Os ombros do padre Gregório desabaram. Quando falou, o terrível desespero em sua voz provocou
lágrimas nos olhos de Katie.
- Entendo - ele disse, em voz baixa. - Sentindo-se como se sente, que tipo de esposa você seria para
Ramon?
- Uma boa esposa! - ela respondeu, enfática.
A intensidade das suas emoções deixou o padre ainda mais confuso. Ele tornou a encará-la como se
realmente quisesse compreendê-la. Os olhos perpassaram o rosto pálido, examinando os olhos azuis e
descobrindo algo nas profundezas agonizantes, que provocou uma inesperada doçura em sua voz.
- Pois muito bem - disse, mais calmo. - Vou aceitar isso.
Aquela afirmação surpreendente provocou um efeito igualmente surpreendente em Katie, que começou
a tremer dos pés a cabeça, numa inexplicável mistura de alívio e medo.
- Se você me disser que está disposta a cumprir suas obrigações como esposa de Ramon, eu vou
acreditar. Está disposta a colocar os desejos dele na frente dos seus, a honrá-lo e respeitar a sua...
- Autoridade? - Katie completou, tensa. - Não esqueça de acrescentar ”obedecer-lhe” à sua lista, padre
juntou, enquanto se levantava, revoltada. - Não era isso que ia perguntar?
O padre também se levantou.
- E se fosse? - ele indagou, num tom de fria curiosidade. - O que você responderia?
180
- Exatamente o que qualquer mulher com um mínimo de inteligência, com um mínimo de caráter diria
diante de uma sugestão tão ultrajante! Eu não vou prometer obediência a homem algum! Animais e
crianças obedecem, e não as mulheres.
- Já terminou, senorita?
Katie engoliu em seco e assentiu com firmeza.
- Então permita-me dizer que não ia mencionar a palavra ”obedecer”. Eu estava prestes a perguntar se
você estaria disposta a respeitar os desejos de Ramon, e não a sua autoridade. E, para sua informação,
esses mesmos compromissos seriam citados a Ramon, para que ele os confirmasse.
Katie fechou os olhos por um instante, tentando ocultar a vergonha.
- Desculpe, padre - ela disse baixinho. - Eu pensei que...
- Não precisa se desculpar. - O padre suspirou, cansado. Virou-se e olhou pela janela, que dava para a
praça e para a igreja. - Você não precisa mais voltar aqui acrescentou, voltando-se para ela. - Depois
comunico a minha decisão a Ramon.
- Que é...?
Ele cerrou os dentes, balançando a cabeça.
- Quero pensar um pouco sobre tudo isso, antes de me decidir.
Katie passou as mãos pelos cabelos.
- Padre Gregório, o senhor não pode impedir o nosso casamento. Se recusar-se a fazê-lo, outro padre o
fará.
Ele endireitou as costas, enrijecendo. Aproximando-se dela, enviou-lhe um olhar que era um misto de
irritação e divertimento.
- Obrigado por me lembrar das minhas limitações, senhorita. Eu ficaria bastante desapontado se você
não encontrasse uma nova maneira de me hostilizar antes que saísse, de forma que eu tivesse a pior
opinião a seu respeito.
Katie encarou-o com uma raiva frustrada.
- O senhor é mesmo muito convencido, julga-se muito importante! - Respirou fundo, tentando se
controlar. Pois fique sabendo que não dou a mínima para a sua opinião a meu respeito.
O padre Gregório inclinou a cabeça, numa saudação exagerada.
- Mais uma vez, obrigado.
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Katie arrancou um punhado de grama e atirou-o para longe, irritada. Estava sentada numa pedra,
recostada no tronco de uma árvore, olhando sem realmente ver os quilómetros de colinas e vales que se
estendiam à sua frente. O sol começava a se pôr, envolto em raios vermelhos e dourados, mas a beleza
da paisagem não era suficiente para acalmar-lhe os nervos, depois do encontro com o padre Gregório
naquela manhã. Nem mesmo as seis horas que passara fazendo compras com Gabriella. A alguns
metros de distância, os homens que trabalhavam no chalé começavam a deixar as ferramentas de lado a
fim de irem jantar em suas casas. Depois, retornariam para terminar as tarefas restantes.
Vagamente, Katie perguntou-se onde Ramon teria passado o dia todo, mas estava frustrada e irritada
demais consigo mesma, e com o padre, para preocupar-se com isso.
Como aquele homem se atrevia a questionar seus motivos e suas emoções?, pensou, olhando
furiosamente para as montanhas.
- Só espero - uma voz profunda, divertida, falou atrás dela - que você não esteja pensando em mim,
com essa expressão em seu rosto.
Katie virou a cabeça, surpresa, fazendo com que os cabelos se espalhassem nos ombros. Ramon estava
parado a menos de 1m, os ombros largos bloqueando o crepúsculo dourado. Parecia ter passado o dia
no escritório da fábrica de enlatados, e havia tirado o paletó, desabotoado o colarinho e dobrado as
mangas da camisa branca até os cotovelos. A testa estava franzida pela curiosidade, e os olhos
perscrutavam-lhe o rosto.
Katie enviou-lhe um sorriso forçado.
- Na verdade, eu estava...
- Planejando um assassinato? - ele brincou.
- É, mais ou menos isso.
- A vítima é alguém que eu conheço?
- Padre Gregório - ela admitiu, levantando-se.
Sempre olhando para ela, Ramon enfiou as mãos nos bolsos. O movimento fez com que a camisa
colasse em seu peito musculoso, e Katie sentiu o pulso acelerar-se em resposta à poderosa
masculinidade que dele emanava. No entanto, as palavras que ele proferiu em seguida desviaram sua
atenção para o problema em questão.
- Eu o encontrei no vilarejo, poucos minutos atrás. Ele não quer realizar o nosso casamento, Katie.
Katie sentiu um desapontamento profundo ao saber que o desprezo do padre Gregório por ela
realmente chegava àquele ponto. Seu rosto inflamou-se com indignação.
- Ele disse o motivo?
Inesperadamente, Ramon sorriu; um daqueles sorrisos súbitos e devastadores que sempre a deixavam
182
sem fôlego.
- O padre Gregório parece pensar que lhe faltam determinados atributos que ele acha necessários para
uma boa esposa.
- Tais como? - ela exigiu, belicosa.
- Submissão, docilidade e respeito pela autoridade. Katie estava dividida entre o antagonismo e a culpa.
- E o que você disse a ele?
- Disse que queria uma esposa, e não um cachorrinho de estimação.
- E...?
Os olhos negros de Ramon brilhavam com o riso.
- Na opinião dele, eu ficaria melhor com um cachorrinho de estimação.
- Ah, é claro! - Katie exclamou, inflamada. - Bem, se quer saber o que eu acho, aquele velho tirano e
intrometido demonstra uma preocupação exagerada com o seu bem-estar!
- Na verdade, ele está preocupado com o seu bem-estar
- Ramon retrucou calmamente. - Ele receia que, depois de pouco tempo de casados, eu possa sentir-me
tentado a esganá-la.
Katie virou as costas para ele, tentando esconder sua mágoa e confusão.
- A opinião dele é tão importante assim para você? perguntou.
Ramon pousou as mãos nos ombros dela e, com delicada firmeza, puxou-a para si.
- Você sabe que não. Mas qualquer atraso em nosso casamento é importante para mim. Se o padre
Gregório não mudar de ideia, terei de encontrar um padre em San Juan que faça o casamento, e os
proclamas terão de ser lidos novamente. Quero casar-me com você no domingo, Katie, e o padre
Gregório é o único que poderá tornar isso possível. Você sabe disso. Tudo o mais está pronto e
acertado.
Os trabalhos no chalé devem terminar esta noite, seus pais já compraram as passagens para o voo de
sábado, eu reservei uma suíte para eles no Hotel Caribe Hilton.
Katie sentia a respiração dele em seus cabelos, a sensação íntima do corpo musculoso pressionado
contra suas costas e pernas, enquanto Ramon continuava dizendo:
- O padre Gregório acabou de partir para a ilha Vieques. Quando voltar, na quinta-feira, quero que você
vá conversar com ele e o faça mudar de opinião.
183
A resistência de Katie começou a desabar, quando ele a fez virar-se em seus braços e cobriu-lhe os
lábios com um longo beijo.
- Fará isso por mim? - Ramon murmurou ao apertar-se. Ela manteve os olhos fixos nos lábios cheios e
sensuais.
Ergueu os olhos, fitando os dele, intensos, hipnóticos, e todas as suas defesas se desintegraram. Ele a
desejava tanto, a evidência disso era a rigidez de sua ereção contra os quadris dela. E ela... também o
desejava demais.
- Farei, sim - sussurrou.
Ramon abraçou-a com mais força, enquanto procurava seus lábios para um beijo faminto. Quando
Katie entreabriu a boca, permitindo que a língua dele penetrasse, Ramon gemeu de prazer, e o som
provocou nela uma espécie de reação primitiva. Sem conter-se mais, foi ao encontro da paixão dele,
querendo proporcionar-lhe o mesmo prazer que ele lhe dava. Beijou-o com o mesmo erotismo com que
ele a beijava, as mãos deslizando pelas suas costas, o corpo arqueando contra o dele.
Ofegou, desapontada, quando Ramon terminou o beijo e ergueu a cabeça. Ainda tremendo de desejo,
ela abriu os olhos desfocados. À meia-luz do anoitecer, seus olhos se encontraram.
- Eu amo você, Katie - ele disse.
Ela abriu a boca para falar, mas não conseguiu. Seu estômago contorcia-se de medo e nervosismo.
Tentou dizer: ”Também amo você”, mas as palavras que havia gritado vezes sem conta a David,
naquela noite terrível de anos antes, agora estavam presas em sua garganta, paralisando suas cordas
vocais. Com um gemido baixo e angustiado, prendeu os braços em torno do pescoço de Ramon e
começou a beijá-lo com frenético desespero, enquanto cada músculo do corpo dele retesava para
rejeitá-la.
A dor atravessou o peito de Ramon como uma faca afiada. Ela não o amava. Não o amava...
- Eu... não consigo, Ramon - ela disse, chorando abertamente e colando-se a ele como se precisasse de
apoio. Não consigo dizer as palavras que você quer ouvir. Não posso...
Ele encarou-a, odiando-a e odiando a si mesmo por amá-la tanto. Afastando-se, fez menção de retirar
os braços dela de seu pescoço, mas Katie balançou a cabeça em desespero, segurando-o com mais
força, pressionando-se ainda mais contra ele. As lágrimas corriam de seus olhos azuis, incontroláveis.
- Não pare de me amar - ela implorou. - Não deixe de me amar, somente porque ainda não posso dizer
as palavras. Por favor, Ramon!
- Katie! - ele exclamou, ríspido.
Os lábios dela tremeram diante da fria rejeição que ouviu em sua voz, e Ramon agarrou-a pelos ombros
com a intenção de desvencilhar-se, de afastá-la com firmeza.
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E Katie sabia disso.
- Não, por favor - ela murmurou.
Ao ouvir o tom de sua voz, toda a resistência de Ramon desabou. Com um gemido, puxou-a para um
abraço apaixonado, beijando-a com ardor. Katie dissolvia-se contra ele, o fogo de sua reação
acendendo as chamas dentro dele.
- Katie... - Ramon sussurrou dolorosamente, beijando-a com uma paixão que nunca demonstrara antes.
Katie.. Katie... Katie...
Ela o amava, ele sabia! Podia sentir em cada poro de seu corpo. Talvez ela não conseguisse pronunciar
as palavras, mas seu corpo lhe dizia que o amava. Nenhuma mulher seria capaz de entregar-se a um
homem da maneira como ela estava fazendo, a não ser que estivesse disposta a entregar também o
coração.
Ramon a fez deitar-se na relva, sempre mantendo os lábios presos nos dela, as mãos acariciando-a por
inteiro. Katie o deixava em brasa, e Ramon abriu os botões da camisa, tirando-a em seguida,
permitindo que ela o tocasse.
Depois, ele tirou-lhe a blusa e o sutiã, desfrutando da sensação dos seios nus em suas mãos. Inclinandose
sobre ela, tornou a beijá-la profundamente, penetrando a língua de forma a lhe dizer o que desejava
fazer com ela. E Katie recebeu com prazer a deliciosa invasão.
O corpo dele parecia arder em brasa quando a puxou para cima, os olhos devorando a visão dos seios
muito brancos contra os pêlos escuros de seu peito.
- Estou faminto por você - sussurrou roucamente. Meu desejo é tão intenso que chega a doer. -
Segurou-a pelo pescoço, até encontrar-lhe os lábios, e acrescentou, com a voz embargada: - Sacie a
minha fome, Katie.
E ela o fez. Beijou-o com todo o corpo e alma, arrancando-lhe um gemido de prazer, enquanto se
movia sinuosamente contra sua rígida ereção. Ramon apertou-a mais contra si, querendo absorver seu
corpo, permitindo que ela o levasse a agonias de desejo antes de virar-se para o lado, levando-a
consigo.
Katie abriu os olhos. Ramon respirava ofegante, o rosto tenso e nublado de paixão. Começou a
inclinar-se para beijá-la e emitiu um suspiro enrouquecido.
- Antes que tudo isso termine, você ainda vai me enlouquecer.
Katie esperava que ele acabasse o que havia começado. Mas, em vez disso, Ramon deitou de costas na
relva e estendeu-se ao lado dela, amparando sua cabeça na curva do ombro, mantendo-a bem perto de
si, enquanto olhava para o céu estrelado. Katie ficou imóvel, tomada de profunda confusão. Não podia
imaginar por que Ramon havia parado de repente, a não ser que, de alguma forma, achasse que ela não
queria continuar. Mas ela queria! Como ele podia pensar o contrário, quando todo seu corpo ansiava
pelo dele, quando desejava, mais do que tudo, dar-lhe prazer? Girou para o lado, pretendendo tomar o
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controle da situação.
- Se eu o enlouqueço, a culpa é toda sua - disse e, antes que ele pudesse responder, passou a fazer
carícias sedutoras em sua orelha.
Ramon estendeu a mão, segurando-a pela cintura, acariciando-a. Estremeceu de prazer quando Katie
penetrou a língua na concavidade de sua orelha, explorando-a sensualmente.
- Katie, pare com isso - ele pediu, num gemido rouco.
- Ou vou fazer o mesmo com você.
Sem se abalar, ela prosseguiu com a exploração excitante.
- Você já fez - sussurrou em seu ouvido. - E eu adorei.
- Eu também estou adorando, e é por isso que quero que pare.
Katie reuniu toda sua coragem e apoiou-se no cotovelo. Por um instante, ficou olhando para a medalha
de prata que pendia de uma corrente, quase oculta entre os pêlos espessos do peito dele.
- Ramon - ela disse, traçando uma trilha sinuosa com a ponta dos dedos até chegar à medalha,
inconsciente do efeito que isso provocava nele. - Será que já lhe ocorreu que não precisamos parar?
Ramon segurou-lhe a mão, evitando que a trilha de carícias seguisse até a cintura.
- Sim, isso já me ocorreu - murmurou. - Mais ou menos umas cem vezes nestes últimos dez minutos.
- Então, por que paramos?
Ele virou a cabeça e tornou a olhar para o alto, visualizando as mimúsculas estrelas no céu escuro.
- Porque daqui a pouco os homens estarão retornando do jantar, para terminar o trabalho na casa.
Era verdade, mas não o motivo por que ele se continha. Se tivesse absoluta certeza de que Katie o
amava, ele simplesmente a levaria para qualquer outro lugar onde pudessem ter privacidade, naquele
exato momento. Se tivesse certeza do amor dela, teria feito amor desde o dia em que chegaram a Porto
Rico. Se Katie o amasse, então a união física de seus corpos poderia fortalecer e aprofundar esse amor.
Porém, se tudo o que ela sentia por ele fosse aquele intenso desejo físico, se este fosse o único motivo
porque ela estava disposta a se casar, então o fato de satisfazer esse desejo antes que estivessem
realmente casados iria aliviar a pressão que a levava na direção do altar. E isso ele não se arriscaria a
fazer. Sobretudo, ele pensou com amarga auto-recriminação, quando por nove dias estivera
estimulando a paixão dela, levando-a a um estado quase febril e ali mantendo-a, sem qualquer intenção
de saciar seu desejo e proporcionar-lhe o alívio. Deliberadamente, Ramon estimulava o apetite sexual
de Katie, sem jamais saciar-lhe a fome. Para isso, primeiro ela teria de se casar.
Desde o primeiro instante em que a tomara nos braços, ainda em St. Louis, uma tremenda atração física
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havia surgido entre eles. Ramon a reconhecera de imediato e, desde então, vinha explorando-a.
Envergonhava-se do que estava fazendo com ela. Katie confiava nele, e ele usava seu próprio desejo
como uma arma para forçá-la a casar-se. Mas a arma era uma faca de dois gumes, pois ele também
torturava-se quando a beijava e acariciava até o ponto em que ambos estivessem quase enlouquecidos,
para depois recuar. Todas as vezes em que se afastava dela, era um tormento saber que Katie era doce,
quente, e estava disposta a ser possuída, mas ele não a possuía.
Que tipo de homem era ele, para arquitetar aquele tipo de chantagem sexual?, Ramon perguntou-se
com desprezo. A resposta era tão humilhante quanto a pergunta: era um homem apaixonado por uma
mulher que, aparentemente, não o amava. No mesmo instante, sua mente rejeitou tal pensamento. Katie
o amava, sim! Ele sentia o gosto do amor nos lábios dela. Por Deus, antes que estivessem casados, ela
iria admitir essa verdade! Ele faria de tudo para que isso acontecesse.
Fechando os olhos, Ramon respirou fundo. Se isso não acontecesse, teria de deixá-la ir embora. Seu
orgulho e respeito por si mesmo jamais permitiriam que vivesse ao lado dela, que a amasse daquela
maneira, sabendo que não era amado. Não poderia suportar a vergonha, ou o sofrimento, de um amor
não correspondido.
Ao seu lado, Katie aconchegou-se um pouco mais, arrancando-o dos pensamentos.
- Está na hora de irmos embora - ele disse, relutante, sentando-se. - Gabriella e Eduardo estão nos
esperando para o jantar. Vão começar a perguntar-se onde estamos.
Katie lançou-lhe um sorriso irónico, enquanto vestia a blusa e penteava os cabelos com os dedos.
- Gabriella sabe onde estamos. E Eduardo irá presumir que o levei para algum lugar para tentar seduzilo.
No que se refere a mim, Eduardo sempre pensa o pior.
Ramon encarou-a com uma expressão divertida.
- Eduardo não está preocupado com a possibilidade de você roubar a minha virgindade, Katie. Isso eu
perdi há muito tempo... Se bem me lembro, na mesma noite em que ele perdeu a dele.
Katie empinou o queixo, numa atitude de desinteressada dignidade, mas sua voz continha uma ponta de
ciúme, que Ramon adorou, pois era exatamente essa a reação que havia esperado.
- Quantos anos você tinha? - ela perguntou.
- Isso não é da sua conta - ele riu.
187
CAPÍTULO 17
- MAIS UMA VEZ, obrigada! - Katie disse alegremente, dois dias depois.
Limpou a mancha de sujeira do rosto e acenou para Rafael, sua esposa e filhos, que estiveram ajudando
na limpeza do chalé, pendurando cortinas e arrumando os móveis, durante os dois dias anteriores. Ficou
observando a velha caminhonete de Rafael seguir aos solavancos pela estradinha de terra, depois virouse
para Gabriella, que se levantava da cadeira com um suspiro de cansaço. Estavam trabalhando na casa
desde o amanhecer, e agora já era o final da tarde.
- Acha que Ramon vai gostar da surpresa? - Katie perguntou, o rosto refletindo a mesma expressão de
feliz exaustão que via no de Gabriella.
- Se ele vai gostar da surpresa? - Gabriella repetiu, os olhos brilhando de contentamento. - Dois dias
atrás, os marceneiros ainda estavam aqui dentro e não havia nenhum móvel. Quando ele entrar aqui
esta noite, verá cada peça de mobília no lugar, a cama arrumada, e até as velas acesas na mesa da
cozinha. Ramon nem vai acreditar nos próprios olhos! - ela previu.
- Espero que esteja certa - Katie falou, com uma pontinha de orgulho. - Eu disse a ele que esta casa
poderia ficar muito bonita, mas ele não acreditou.
- Bonita? - disse Gabriella, balançando a cabeça, enquanto pegava a bolsa e encaminhava-se para a
porta da frente. - A casa está linda. Você tem um talento enorme para decoração, Katie.
Olhando para ela, Katie pensou nos incontáveis quilómetros que haviam percorrido juntas, nas
excursões frenéticas de compras, nas horas exaustivas que passaram visitando uma loja após a outra.
Durante todo o tempo Gabriella mostrara-se animada, alegre e companheira.
- E você, Gabriella - ela falou, invadida por uma onda profunda de gratidão e afeição -, tem um grande
talento para a amizade.
Um sorriso iluminou os traços de Gabriella.
- É estranho, não acha? Esta nossa amizade. Nós nos conhecemos há apenas onze dias, mas você já é
quase como uma irmã para mim.
As duas mulheres, que haviam compartilhado uma garrafa de vinho enquanto trabalhavam, sorriram
uma para a outra, os rostos afogueados de contentamento. Depois Gabriella virou-se e saiu.
Katie pegou os copos de vinho vazios e olhou no relógio de pulso; eram 17.00 horas. Na noite anterior
ela fizera Ramon prometer que viria para a casa direto do trabalho, o que significava que ele estaria
chegando a qualquer momento na próxima meia hora. Foi para a cozinha, lavou os copos e deixou-os
no novo balcão revestido de fórmica perto da pia, para que estivessem à mão quando Ramon chegasse.
Cantarolando, abriu um dos armários e tirou uma garrafa de vinho tinto. Na verdade, já bebera bastante
vinho. Um pouco mais do que o bastante, pensou. Estava sentindo-se aquecida e um tanto alegre
demais. Mas, lembrou a si mesma com animação, o fato de a casa estar pronta era um bom motivo para
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comemorar.
Olhou em torno na cozinha. Estava aconchegante e acolhedora, exatamente como ela dissera a Ramon
que iria ficar, concluiu, com orgulho. As paredes foram revestidas com um alegre papel de parede
verde e branco. Uma delas exibia uma coleção de cestas confeccionadas pelos habitantes locais, de
todos os tipos e tamanhos, que Katie comprara por menos da metade do preço que custariam nos
Estados Unidos. Todos os armários haviam sido pintados de branco e forrados com um revestimento
que combinava com o papel de parede.
Saiu da cozinha e ficou vagando de um cómodo para outro. No quarto, parou para alisar
desnecessariamente a colcha da cama. Feita a mão, era formada por grandes quadrados costurados uns
nos outros, em tons que iam do marrom ao amarelo-claro. As cortinas que pendiam das grandes janelas
foram feitas num tecido de amarelo-dourado, harmonizando e complementando as cores escuras da
madeira dos móveis e o espesso tapete que cobria parcialmente o piso de carvalho. Ajeitou as dobras
das cortinas, para que caíssem graciosas nos lados das janelas. O quarto estava perfeito, concluiu.
E masculino.
Katie afastou o pensamento indesejado e foi para a sala. Havia gasto cerca de 3 mil dólares de seu
próprio dinheiro, mas valera a pena, pensou com orgulho. O sofá confortável que comprara no leilão
estava posicionado no lado oposto das poltronas forradas com tecido cor de creme. Um tapete, também
de cor clara, estendia-se no piso de madeira. A mesa de centro, com as laterais entalhadas e com
detalhes de bronze, havia sido sua maior extravagância, mas, quando a vira, não conseguira resistir. Ou
a maior extravagância fora o abajur de bronze, que agora estava colocado na mesa entre as duas
poltronas? Não conseguia se lembrar, porém, de qualquer forma, isso não importava. A sala, com as
cortinas cor de creme nas janelas amplas, estava perfeita, convidativa e elegante.
E masculina, uma vozinha sussurrou.
Katie ignorou-a e foi para o banheiro lavar o rosto e escovar os cabelos. Seus olhos brilhavam de
expectativa, quando se olhou no espelho. Ou estariam brilhando por causa do vinho?, perguntou-se.
Encolheu os ombros e olhou em volta do banheiro. Ali, ela usara a sua criatividade num sentido mais
moderno. Já que as peças eram todas brancas, ela decidira usar papel de parede branco também, com as
bordas junto ao teto contendo pequenos detalhes em preto. Achou que havia encontrado uma boa
solução, pois se Ramon enjoasse das toalhas vermelhas e pretas, poderia subsituí-las por de outras
cores, dando ao banheiro uma aparência completamente diferente. Enxugou as mãos na toalha nova,
depois dobrou-a com todo cuidado, deixando-a sobre o balcão. O restante das toalhas que ela havia
encomendado iria chegar no dia seguinte, pensou. Iria buscá-las depois que falasse com o padre
Gregório.
Lançou um último olhar crítico para o banheiro, inclinando a cabeça para o lado. Talvez estivesse um
pouco mais arrojado do que o restante da casa, mas certamente tinha uma atmosfera alegre. E
masculina.
Katie finalmente admitiu - mas, se fosse verdade, então era certo que Ramon ficaria satisfeito. Afinal,
ele era muito másculo. Encaminhou-se para a mesa de centro na sala e arrumou de novo as flores
amarelas que pusera num vaso. O Rolls-Royce cor de vinho parou por um instante, a poucos metros da
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estrada de terra que levava ao chalé. Ramon olhou com impaciência para as árvores cobertas de flores
vermelhas que margeavam a estrada, pensando se diria ou não a Garcia que o deixasse na frente da
casa. istava ansioso por ver Katie, e não queria perder tempo caminhando quase 1km pela estrada. Por
outro lado, se Katie soubesse que ele ia e voltava do trabalho todos os dias com aquele carro, dirigido
pelo motorista, certamente faria perguntas. Perguntas que ele teria de recusar-se a responder, ou
responder com mentiras e evasivas. Levado pela necessidade, ele a enganara, mas não mentiria para
ela.
- Espere por mim no lugar de sempre, amanhã cedo
- disse a Garcia.
Ramon abriu a porta do carro e saiu, sem esperar que o motorista respondesse. Sabia que no dia
seguinte, às 7.30, Garcia estaria esperando numa curva logo após a estrada de terra, a 500m da praça do
vilarejo. Nenhuma pergunta havia sido feita, e nenhuma explicação era esperada. Embora Garcia não
estivesse mais recebendo o salário, ainda insistia em trabalhar para Ramon.
- Estivemos juntos há tanto tempo - Garcia lhe dissera no aeroporto, no dia em que Katie chegara a
Porto Rico. Com uma expressão de grande dignidade, acrescentara: Até que este carro seja vendido,
vou continuar trabalhando para o senhor como sempre fiz.
Caminhando pela trilha de terra batida, Ramon pensou em Garcia com um misto de afeição e tristeza.
Se pedisse a ele para manter o carro ligado na frente de um banco, enquanto entrava para assaltá-lo,
Garcia obedeceria sem hesitar. Sua recompensa por vinte anos de serviços e lealdade acabaria sendo o
desemprego - e uma carta de recomendação. Ramon desejava dar-lhe mais do que isso. Ele merecia
mais.
Ao passar pela soleira da porta, Ramon parou de repente; todos os problemas e preocupações do dia
desapareceram, esquecidos. Katie estava ali, em sua casa, esperando por ele. Os raios de sol
penetravam pelas vidraças, banhando-a com uma luz dourada, enquanto ela inclinava-se sobre o vaso
na mesa, ajeitando o buqué de flores de cores vibrantes.
Uma profunda sensação de felicidade perpassou-o por inteiro, espalhando seu calor pelas suas veias.
Como era estranho o fato de ele já ter sido considerado um dos homens mais ”ricos” do mundo e, ainda
assim, jamais ter experimentado antes algo assim, aquela sensação de estar chegando em casa. Ele já
havia ”chegado em casa”, sendo recebido por amantes e criados em mansões, coberturas, e villas de
frente para o mar. Porém, nunca tivera aquela maravilhosa sensação de paz à sua espera - porque nunca
tivera um ”lar” de verdade. E Katie era o seu lar.
Muitas pessoas o invejavam, no passado, e agora apiedavam-se dele por ter perdido toda sua fortuna.
Que incrível estupidez! Agora ele tinha Katie, e ela era a sua riqueza. Aquele anjo de doçura e beleza,
com os cabelos ruivos e olhos sorridentes, iria ter seus filhos e compartilhar de seus dias e noites. Ela
era tudo o que faltava em sua vida. Era a alegria, a felicidade.
Em voz baixa e quase sem ênfase, ele falou:
- Eu amo você, Katie.
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Ela fez um giro, um largo sorriso iluminando seu rosto.
- Então? - perguntou. - O que acha? - Os braços estendidos indicavam toda a sala, enquanto olhava para
ele em expectativa.
Ramon sabia que ela o escutara e sentiu um peso no peito quando não recebeu a resposta que desejava,
mas deixou passar.
- Acho que você está linda - disse, os olhos deslizando desde o rosto até a blusa curta e justa que ela
usava, seguindo pelo short que revelava as longas pernas.
Katie girou os olhos para o alto, exasperada.
- Eu não, a casa! - exclamou. - O que acha dos móveis, de tudo...?
Pela primeira vez Ramon olhou para algo além dela. E ficou perplexo com o que viu.
- Como conseguiu comprar tudo isso com o dinheiro que lhe dei? Eu não pretendia comprar tudo de
uma vez, mas sim lhe dar mais dinheiro quando você dissesse que estava na hora de escolher os
móveis.
A alegria dela desapareceu no mesmo instante.
- Você não gostou?
- Se gostei? - ele sorriu. - Ainda nem vi tudo. Mas como foi que...?
- Pare de pensar no dinheiro. Acontece que sou uma ótima negociante - Katie falou, passando a mão
pelo braço dele e levando-o de um cómodo para outro.
A reação de Ramon deixou-a intrigada. Embora tivesse certeza de que ele gostara de tudo, e que estava
satisfeito com suas escolhas, pois os elogios eram sinceros, havia alguma coisa incomodando-o.
Katie não precisou esperar muito para descobrir o que era. A cozinha foi o último cómodo para onde o
levou e, quando Ramon acabou de inspecioná-la, foi até o balcão onde ela deixara o vinho. Katie
observou-o, admirando a maneira habilidosa e ágil como ele manejava o saca-rolhas.
- Bem? - ela disse, em expectativa. - Agora que viu a casa toda, o que acha?
- Acho que está muito bonita - ele respondeu, servindo o vinho nos dois copos. Entregou um a ela,
acrescentando:
- Você está planejando morar aqui?
A pergunta apanhou-a de surpresa e Katie demorou alguns segundos para responder:
- Sim, é claro.
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- Por quanto tempo? - ele indagou, num tom neutro. O vinho que ela já havia bebido a deixava um tanto
confusa.
- Por que está me fazendo essas perguntas?
- Porque há dois quartos nesta casa - ele disse, observando-a com atenção. - O segundo quarto, como
estou certo de que você sabe, seria destinado às crianças. Ainda assim, você esmerou-se em decorá-lo
com uma bela escrivaninha para mim, uma estante de livros e uma poltrona confortável. Não duas
poltronas, apenas uma. Sua intenção é que o cómodo seja usado somente por mim, não por nós dois e
nem pelos nossos filhos. O seu apartamento estava cheio de plantas, mas não existe nem um vaso de
plantas nesta casa. O seu quarto era extremamente feminino, mas este aqui...
- Plantas? - Katie piscou, as emoções oscilando entre o medo e o contentamento. - Eu nem mesmo
pensei nas plantas! Já sei, vou lhe dar as plantas como presente de casamento! - decidiu prontamente.
- E você pretende me dar filhos? - ele perguntou, o rosto impassível.
- Não como presente de casamento - ela brincou. Imagine o que as pessoas vão falar!
O olhar de Ramon desviou-se do rosto afogueado de Katie para a garrafa de vinho vazia que estava ao
lado daquela que ele acabara de abrir.
- Quanto desse vinho você já bebeu?
- Um pouco mais da metade - ela declarou, com uma pontinha de orgulho. - Gabriella bebeu o restante.
Ramon teve ímpetos de sacudi-la. Em vez disso, aproximou-se das janelas envidraçadas no canto da
cozinha e, tomando um longo gole do vinho, observou a paisagem lá fora.
- Por que você quer se casar comigo, Katie?
Ela viu a tensão nos ombros dele, a firmeza de seu perfil, e tentou desesperadamente manter o clima de
alegria.
- Porque você é um homem atraente, alto e moreno!
- brincou.
O breve sorriso que ele lhe enviou não continha nenhum humor.
- E por que mais, Katie?
- Ah, pelos motivos por que as pessoas se casam, hoje em dia - ela gracejou. - Nós gostamos dos
mesmos filmes, nós...
- Já chega de brincadeiras! - ele disparou. - Perguntei por que você quer se casar comigo.
Um lampejo de pânico perpassou-a por inteiro; seu coração começou a disparar loucamente.
192
- Eu... - tentou falar, mas não conseguiu.
Ela sabia que Ramon queria ouvi-la dizer que o amava e que se comprometeria, irrevogavelmente, a
casar-se com ele. Mas não podia fazer nenhuma dessas coisas. Receando ficar em silêncio, e ao mesmo
tempo incapaz de dizer algo que o deixasse satisfeito, ela limitou-se a encará-lo, numa mudez infeliz.
No silêncio carregado que desabou entre eles, Katie sentiu que Ramon se afastava dela e, quando ele
finalmente falou, havia uma ríspida e amarga fatalidade em sua voz, que a deixou assustada.
- Não iremos mais tocar nesse assunto - ele declarou. Sempre em silêncio, voltaram para a casa de
Gabriella.
Katie ainda tentava consolar-se no calor confortável do vinho que consumira, mas sentia-se mais
apreensiva a cada passo que davam. Em vez de entrar para jantar com ela, Ramon parou na porta da
frente e, mal tocando os lábios em seu rosto, despediu-se com um breve ”boa noite”.
Havia um tom agourento na voz dele, Katie pensou. Era como se estivesse dizendo adeus, em vez de
boa noite.
- Você... vai passar aqui amanhã, antes de ir para o trabalho? - ela perguntou, hesitante.
Ramon parou no degrau da escada e virou-se para ela, a expressão impassível.
- Não vou trabalhar amanhã.
- Então podemos nos encontrar depois que eu falar com o padre Gregório? Vou à casa dele logo cedo,
depois pretendo passar no chalé para arrumar algumas coisas que não ficaram prontas.
- Sim, eu encontro você lá - ele disse.
- Ramon - ela insistiu, temendo deixá-lo ir daquela maneira. - Acho que você não ficou muito
entusiasmado com a arrumação da casa. Você não gostou?
- Pois peço que me desculpe - ele disse, com toda a educação. - Você fez um excelente trabalho. A casa
me convém perfeitamente.
Embora ele não enfatizasse o ”me”, Katie reparou que evitara usar o pronome ”nos”. Não sabia o que
dizer, quando ele mostrava-se tão distante e formal. Abriu a porta.
- Então... boa noite, Ramon.
Ele ficou olhando para a porta que ela acabara de fechar, sentindo a dor e a amargura invadi-lo.
Caminhou sem destino durante horas, pensando naqueles últimos dias. Por dois dias ele havia esperado
que ela dissesse que o amava. Havia brincado, fizera com que Katie risse e gemesse de paixão em seus
braços, mas nem mesmo em seus momentos mais ardentes Katie respondera às suas confissões de
amor. Ela o beijava, ou sorria, tranquilizava-o como se fosse um garotinho impaciente, mas nunca lhe
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dissera o que ele tanto desejava ouvir.
A lua estava alta no céu quando Ramon retornou ao seu quarto temporário na casa de Rafael. Deitou-se
na cama e ficou olhando para o teto. Havia pedido honestidade e sinceridade a Katie, e ela estava sendo
honesta. Recusava-se a declarar uma emoção que não sentia. Era tudo muito simples.
Deus! Como era possível que ela não o amasse, quando ele a amava tanto?
A imagem de Katie surgiu em sua mente: subindo a colina, indo ao seu encontro com aquele andar
gracioso e os cabelos esvoaçando ao vento. Fitando-o com os olhos azuis e profundos reluzindo de riso,
ou nublados de preocupação por ele estar cansado.
Ramon fechou os olhos, tentando adiar o momento em que teria de tomar uma decisão, mas foi em vão.
A decisão já fora tomada. Ele a enviaria para casa amanhã mesmo. Não, não amanhã, mas depois de
amanhã. Precisava ficar perto dela pelo menos mais um dia... mais uma noite. Apenas mais um dia,
para que pudesse observá-la andando pela casa, memorizar a imagem dela em cada cómodo para que
pudesse lembrar-se de tudo depois que ela se fosse. Mais uma noite, para que fizessem amor no quarto
que Katie havia decorado para ele, para unir seu corpo faminto ao dela, deixar-se perder dentro dela.
Iria saciar seus sentidos com todos os prazeres que um homem pode proporcionar a uma mulher, fazer
com que ela gemesse e gritasse de gozo, levando-a a um êxtase após outro.
Um dia e uma noite para guardar todas as lembranças
- lembranças que lhe trariam mais tormento do que prazer, mas isso não importava. Ele precisava delas.
E, depois, a mandaria embora. Ela ficaria aliviada, agora ele sabia. Sempre soubera. Quaisquer que
tivessem sido os motivos que a levaram a concordar com o casamento, Katie jamais se comprometera
inteiramente com a ideia. Do contrário, não teria decorado o seu futuro lar como se fosse o refúgio de
um solteirão, sem acrescentar o menor traço de sua própria personalidade.
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CAPÍTULO 18
O PADRE GREGÓRIO cumprimentou Katie com formalidade e reserva, quando ela entrou em seu
escritório, na manhã seguinte. Esperou que ela se sentasse, e foi para a sua cadeira atrás da
escrivaninha.
Katie tentou imitar sua expressão grave.
- Ramon me contou que o senhor acha que me falta docilidade, submissão e respeito pela autoridade.
- Sim, foi o que eu disse. - O padre recostou-se na cadeira. - Você discorda?
Katie balançou a cabeça devagar, com um leve sorriso nos lábios.
- Não, de maneira alguma. Na verdade, considero um grande elogio. - A expressão dele não se alterou,
e ela hesitou um pouco, antes de continuar: - Mas é óbvio que o senhor não vê as coisas dessa forma. O
senhor disse a Ramon que esse era o motivo pelo qual não queria realizar o nosso casamento.
- Você prefere que eu diga a ele o verdadeiro motivo? Que a mulher a quem ele ama não retribui seus
sentimentos?
Ela cerrou os dedos, afundando as longas unhas nas palmas das mãos.
- Eu não disse que...
- Srta. Connelly! - ele interrompeu-a, numa voz baixa e controlada. - Não vamos perder mais tempo
fazendo rodeios que não nos levarão a parte alguma. Você está procurando um meio de evitar esse
casamento, e é isso que eu estou lhe fornecendo. Katie ficou rígida.
- Como o senhor pode dizer uma coisa dessas?
- Porque é a verdade. Pressenti isso desde o nosso primeiro encontro. Quando lhe perguntei há quanto
tempo conhecia Ramon, você disse ”apenas” duas semanas. Deliberadamente fez-me acreditar que é o
tipo de mulher que frequenta cantinas na esperança de conhecer homens, homens a quem permite que
lhe façam carícias em lugares públicos, como estacionamentos. Mas você não é desse tipo, senorita, e
nós dois sabemos disso.
O padre ergueu a mão autoritária, impedindo-a de protestar.
- Já é tarde demais para explicações. Há outros motivos que me levaram a acreditar no que afirmei: eu
lhe disse que bastaria você dizer que amava Ramon para que pudéssemos concluir os detalhes para o
casamento. Se você realmente quisesse se casar com ele, teria dito o que eu esperava ouvir, mesmo se
fosse mentira, para que eu concordasse em realizar a cerimónia. E quando eu lhe disse que, em vez
disso, aceitaria a sua palavra de que pretendia ser uma boa esposa para Ramon, seu rosto ficou pálido
como uma folha de papel. Dez segundos depois, você começou a acusar-me de tentar fazê-la prometer
que iria respeitar a autoridade dele e obedecer-lhe.
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Katie baixou os olhos para as mãos no colo. Esfregou as palmas úmidas contra os joelhos.
- Não há nada que eu possa dizer para provar que o senhor está enganado, não é?
- Você não quer provar que eu estou enganado, senorita. Em seu coração, o que deseja mesmo é evitar
esse casamento. - O padre tirou os óculos e massageou a arcada do nariz, com uma expressão de
cansaço. - Talvez você tenha medo de comprometer-se ou de entregar o seu amor. Não sei. Mas sei de
uma coisa: quando Ramon perceber que você é capaz de dar-lhe apenas o seu corpo, e não o seu
coração, ele não ficará satisfeito. Nenhum homem de caráter e orgulho se permitiria continuar gostando
tanto de uma pessoa que não o ama. O amor de Ramon por você acabará diminuindo e morrendo, pois
ele fará de tudo para que isso aconteça; ele próprio irá matar esse sentimento. E, quando isso acontecer,
ele estará livre para encontrar outra mulher e casar-se, se assim decidir. Sabendo de tudo isso, eu não
posso, e não irei uni-lo a você pelo resto da vida com os laços eternos do Sagrado Matrimónio.
Os olhos de Katie ardiam com as lágrimas que ela recusava-se a derramar, e um nó formou-se em sua
garganta quando ouviu as últimas palavras do padre:
- Seria melhor para os dois se você voltasse imediatamente para os Estados Unidos. Se lhe falta
coragem e decência para tanto, então vá viver com ele em pecado, ou case-se apenas numa cerimónia
civil. Não vou impedi-los. Mas eu já lhe dei uma saída para isso, e espero que você também dê a
Ramon uma saída... e que não o force a unir-se a você pela Igreja.
Katie levantou-se, rígida.
- E essa é a sua decisão final? - perguntou.
O padre pareceu demorar uma eternidade para sair da cadeira.
- Se é dessa forma que deseja colocar, sim, é a minha decisão final. Vou deixar que você se encarregue
de contar a Ramon. - Os olhos dele adquiriam um brilho quase solidário. - Não se sinta culpada por não
conseguir amá-lo, senorita. Ramon é um homem que atrai as mulheres. Muitas já o amaram no
passado, e muitas ainda irão amá-lo no futuro e estarão mais do que dispostas a casar com ele.
Katie mantinha a cabeça erguida, orgulhosa, mas os olhos enchiam-se de lágrimas,
- Eu não me sinto culpada, mas sim furiosa! - Girando nos calcanhares, encaminhou-se para a porta.
A voz do padre Gregório soou incrivelmente triste, quando a chamou:
- Senorita...
Ela manteve o rosto baixo, sem querer dar-lhe a satisfação de vê-la chorando.
- Sim?
- Deus a abençoe.
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As lágrimas presas na garganta impediram-na de responder. Katie abriu a porta e saiu apressada.
Foi dirigindo para o chalé, quase cega pelas lágrimas de medo e humilhação. O padre Gregório estava
certo. Ela realmente estivera procurando um meio de escapar do casamento... Não, não um meio de
escapar, mas sim de ganhar mais tempo.
- Maldito seja, David! - ela murmurou com a voz rouca. Toda aquela confusão na qual sua vida se
transformara
era por culpa dele. Mesmo depois de morto, David continuava a persegui-la. Era por causa dele que não
conseguia superar aquele pânico paralisante de que pudesse estar cometendo o mesmo erro duas vezes.
Na primeira vez, casara-se mesmo quando seus próprios instintos alertavam-na de que aquele homem
não era quem parecia ser. Agora, queria casar-se com outro homem, e sentia a mesma coisa. Não
conseguia afastar tal sensação.
Parou o carro na frente da casinha de contos de fadas e entrou, aliviada ao ver que Ramon não estava
ali. Não queria ter de explicar a sua expressão transtornada. E como poderia? Como poderia dizer: ”Há
algo em você que me assusta, Ramon”?
Katie foi para a cozinha e, preparou um café na cafeteira nova que havia comprado. Depois de pronto,
encheu uma caneca e levou-a para a mesa. Com as mãos em volta da caneca quente, ficou olhando para
as colinas que se estendiam em todas as direções, deixando que a paisagem magnífica acalmasse suas
emoções desencontradas.
Lembrou-se da maneira como se sentia, antes de casar com David. Alguma intuição, algum instinto a
avisara de que David Caldwell não era realmente o homem que fingia ser. Ela devia ter dado ouvidos a
si mesma.
E, agora, queria casar-se com Ramon - e todos os seus instintos lhe diziam que ele, tampouco, era o
homem que fingia ser.
Katie massageou as têmporas com a ponta dos dedos. Nunca se sentira tão confusa e amedrontada. Não
podia mais adiar a decisão. Ou ignorava seus temores instintivos e casava-se com Ramon, ou teria de
voltar para os Estados Unidos.
A ideia de deixá-lo a fez sentir-se fisicamente doente. Ela o adorava!
Amava seus olhos negros, o sorriso radiante, a firmeza de seus traços e a tranquila autoridade de sua
expressão. Mesmo sendo um homem alto, forte e musculoso, era terno e delicado com ela. Ao lado
dele, sentia-se protegida, amada, e não ameaçada nem insignificante.
Por natureza, ele era um homem dominador, viril e seguro de si, enquanto ela era obstinada e
independente. Deveria ressentir-se por ele querer confiná-la ao seu papel de mãe e esposa, mas isso não
acontecia. A ideia de ser sua mulher a enchia de alegria, e ficava encantada ao pensar que poderia ter
filhos com ele. De bom grado ficaria em casa, limpando e preparando as refeições, em troca de ser
acolhida naqueles braços fortes todas as noites.
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Ramon queria que ela aceitasse uma espécie de laço sexual, que entregasse seu corpo e sua alma aos
seus cuidados. Em troca, ele seria seu amante, provedor e um pai para seus filhos. Um tanto
envergonhada, Katie admitiu a si mesma que também era o que queria. Poderia ser uma situação um
tanto machista, não emancipada, mas parecia certa, satisfatória. Pelo menos para ela.
Ficou olhando para as mãos cruzadas em seu colo. Ramon era tudo o que ela poderia desejar: um
homem inteligente, sensível, sensual, e que a amava.
Exceto que ele não era real.
Ele não era o que fingia ser. Katie não sabia por que se sentia dessa forma, ou o que estava errado, mas
a sensação não a abandonava.
Ramon estacionou o carro de Rafael na frente do armazém geral e desceu. Eduardo abriu a porta no
lado do passageiro.
- Eu vou com você - disse. - Gabriella pediu-me para comprar leite.
- O quê? - Ramon perguntou, distraído.
- Eu disse que... - Eduardo balançou a cabeça, exasperado. - Não importa. Você não ouviu nenhuma
palavra do que eu disse a manhã toda. Esse casamento está afetando sua audição, meu amigo.
- Eu não vou me casar - Ramon falou, mal-humorado, deixando Eduardo boquiaberto enquanto abria a
pesada porta e entrava no armazém.
Em contraste com o calor de fora, o interior da loja estava fresco e agradável. Ignorando o olhar
perplexo de Eduardo, bem como as dez pessoas que o encaravam com ávida curiosidade, Ramon
escolheu várias caixas de charutos e levou-as para o balcão, onde duas jovens atendiam os fregueses.
Eduardo deixou a caixa de leite ao lado dos charutos e perguntou, em voz baixa:
- Você está brincando? Ramon olhou-o de relance.
- Não, não estou brincando.
Uma linda jovem que atendia uma senhora imensa, que experimentava um avental, avistou Ramon e
seu rosto iluminou-se. Pediu à outra funcionária que cuidasse da senhora e foi para onde Ramon e
Eduardo esperavam.
- Senor Galverra - ela chamou, em espanhol. - Lembra-se de mim? Sou Maria Ramirez. Eu usava
tranças quando era criança, e o senhor costumava puxá-las e dizer que eu ficaria linda quando
crescesse.
- Então acertei - ele disse, esforçando-se para sorrir.
- Estou noiva, agora, vou me casar com Juan Vega a jovem continuou, sempre sorrindo, enquanto se
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abaixava por trás do balcão e pegava um grande pacote, embrulhado em papel branco e amarrado com
barbante. - Estas são as toalhas que a senorita Connelly encomendou para o senhor. Quer levá-las
agora?
- Tudo bem - Ramon respondeu, assentindo brevemente. Enfiou a mão no bolso da calça jeans e tirou a
carteira, enquanto examinava a nota. - Você cobrou apenas os charutos, Maria. Qual é o preço das
toalhas?
- A senorita Connelly já pagou pelas toalhas, com o cartão de crédito - a jovem assegurou-lhe.
Ramon tentou não mostrar-se tão impaciente quanto se sentia.
- Deve haver algum engano.
- Engano? - Maria repetiu. - Acho que não, mas vou verificar.
A garota cortou o barbante e abriu o pacote. Uma pilha de toalhas felpudas e coloridas espalhou-se no
balcão. Ramon sentia que os fregueses começavam a amontoar-se atrás e ao lado dele, tentando ver
melhor o conteúdo do pacote.
- Aqui está o recibo do cartão de crédito, e estas são as notas de compra - Maria falou, pegando as notas
entre duas toalhas. - Não há nenhum engano. A senorita Connelly pagou as toalhas com o cartão de
crédito, no mesmo dia em que pagou as outras compras que fez, na semana passada. Veja, aqui está a
nota discriminando os artigos que ela comprou, num total de quinhentos dólares. Uma torradeira, uma
cafeteira, pratos, panelas, copos de diversos tamanhos, um liquidificador, utensílios de cozinha e todos
estes outros itens.
Um homem idoso atrás de Ramon deu-lhe um leve tapinha nas costas.
- Você é um sujeito de sorte, Ramon. Sua novia quer que tenha tudo o que há de melhor. Não é apenas
bonita, mas também muito generosa, hein?
- Embrulhe as toalhas - Ramon ordenou a Maria, numa voz baixa e rápida.
Maria empalideceu ao ver a expressão no rosto dele, e mais que depressa juntou as toalhas e
embrulhou-as.
- Aqui... aqui estão as cópias dos recibos da senorita Connelly - ela gaguejou -, um para cada metade
da quantia que ela gastou. - Desviou os olhos do rosto furioso de Ramon, entregando-lhe os recibos. -
A senora Alvarez acrescentou, voltando-se apreensivamente para Eduardo ao pronunciar o nome da
esposa dele - explicou que eu não precisaria fazer os recibos em duplicatas dessa forma quando a
senorita Connelly pagasse em dinheiro. Mas eu faço... assim mesmo.
Empurrou o pacote na direção de Ramon como se estivesse queimando-lhe as mãos, e a voz baixou
para um sussurro amedrontado:
- Dessa maneira, eu nunca me esqueço.
199
O tom da voz de Ramon estava gélido:
- Tenho certeza de que a srta. Connelly gostou muito da sua ajuda, Maria.
Todos afastaram-se rapidamente do caminho, quando ele marchou para fora da loja com a fúria
explodindo em cada passo duro.
Os dez fregueses olharam a porta batendo com força, depois que Ramon e Eduardo saíram. Olharam
uns para os outros, os rostos refletindo uma variedade de reações que iam do susto à satisfação. Apenas
uma pessoa que estava na loja ficou indiferente ao que acabara de acontecer
- um turista inglês, que não entendia espanhol. Ele pigarreou educadamente e tentou ser atendido, mas
foi ignorado.
Maria foi a primeira a falar. Olhou para as pessoas que rodeavam o balcão, os olhos castanhos muito
abertos e preocupados, quando sussurrou:
- O que eu fiz de errado?
Um homem de meia-idade, que também trabalhava no armazém, encarou-a com ironia.
- Maria, você acabou de ”ajudar” a senorita Connelly um pouco mais do que ela precisava.
O velho que provocara Ramon acerca da generosidade de sua noiva deu um tapa na perna e exclamou,
exultante:
- Eu disse que Galverra não sabia o que a garota estava fazendo! Eu disse! - O rosto enrugado
iluminou-se com um largo sorriso, enquanto olhava para os vizinhos. - Eu disse a vocês que ele não
deixaria que uma mulher o sustentasse, nem se estivesse morrendo de fome! Ele devia dar-lhe uma boa
lição, isso sim!
- Volto depois para comprar o avental - a mulher muito gorda foi dizendo, enquanto se encaminhava
para a porta.
- Para onde vai, Rosa? - sua amiga chamou, atrás dela.
- À igreja, oferecer uma prece.
- Para a moça americana? - uma das senhoras perguntou, rindo.
- Não, para Gabriella Alvarez.
- Essa também devia receber uma boa lição - o velho declarou.
Quando ouviu Ramon entrar, Katie fingiu que estava arrumando os suportes de pratos na mesa da
cozinha. Era incrível como o simples som da voz dele chamando seu nome era o suficiente para deixála
mais animada.
200
- Aqui estão as toalhas que você encomendou - ele foi logo dizendo, deixando o pacote na mesa. - A
garota da loja disse que já foram pagas. O café ainda está fresco?
- perguntou, enquanto se adiantava e pegava uma caneca.
Katie sorriu por sobre o ombro e assentiu, abrindo o pacote e começando a dobrar as toalhas.
- Ainda não posso imaginar como conseguiu comprar tudo isso com o dinheiro que lhe dei - ele
comentou.
- Já lhe disse - ela retrucou, num tom animado. Sou uma especialista em pechinchas.
- E é uma excelente mentirosa, também.
Katie fez meia-volta rapidamente, sentindo um arrepio de medo, que se transformou em pânico no
instante em que olhou para ele. Em contraste com a calma paralisante de sua voz, o rosto de Ramon era
uma máscara de fúria.
- Quanto do seu dinheiro você gastou, Katie? Ela sentiu a boca seca.
- Muito pouco. Uns... cem dólares.
Os olhos dele penetraram-na como facas afiadas.
- Eu perguntei... quanto, Katie - repetiu, numa voz aterrorizante.
- Duzentos... duzentos dólares.
- Se você mentir para mim mais uma vez - ele ameaçou, num tom sedoso -, vou fazer com que o seu
primeiro marido pareça um santo.
A ameaça deixou-a nauseada de medo.
- Cerca de três mil dólares - ela confessou, afinal. A pergunta seguinte atingiu-a como um chicote.
- Por quê?
- Porque... eu não queria sentir-me obrigada a casar com você.
Um lampejo de dor perpassou os traços dele, mas, no instante seguinte, todo seu corpo ficou rígido,
tenso, tentando controlar-se.
- Amanhã, às duas da tarde, Garcia irá levá-la para o aeroporto. Ele lhe entregará um cheque, para
reembolsá-la de tudo o que gastou. Não precisa dar-se ao trabalho de explicar nada a Gabriella e
Eduardo, pois eles já sabem que você está de partida.
Katie respirava com dificuldade, sufocando.
201
- Você vai mesmo mandar-me embora apenas porque comprei algumas coisas para a casa?
- Não. Porque eu lhe disse para não fazer isso - ele corrigiu-a num tom de desprezo.
- É... é só por isso? Porque lhe desobedeci? - Katie sentia-se como se tivesse sido atacada fisicamente.
Sua mente não conseguia absorver o choque.
Ramon devia estar louco, pensou. O homem a quem conhecia jamais, jamais agiria daquela forma. Não
por algo tão insignificante.
Começou a andar na direção da porta, sentindo as pernas pesadas, rígidas. Ao passar por ele, fitou-o
por um instante, os olhos repletos de dor e desilusão.
- Apenas por causa disso... - murmurou, balançando a cabeça como se estivesse entorpecida. - Não! -
gritou quando Ramon agarrou-a e puxou-a de encontro ao peito rígido.
Os olhos dele ardiam, o rosto estava pálido de ódio.
- Você não tem nada além de um corpo ardente e um coração vazio - ele falou com violência, entre os
dentes cerrados. - Achou mesmo que eu estava tão desesperado pelo seu corpo a ponto de aceitá-lo num
aluguel temporário e chamar isso de casamento? - Empurrou-a para longe como se não suportasse tocála,
e foi com passos duros até a porta, onde se virou, a voz soando como um rugido selvagem: - Se em
duas semanas você não descontar o cheque que Garcia vai lhe dar, farei com que tudo o que está nesta
casa seja atirado ao fogo!
Katie prendeu o fecho da sua última mala e levou-a para a porta do quarto, deixando-a ao lado das
outras cinco. Não havia mais nada que fazer naquela noite, exceto dormir.
Sentou-se na cama do quarto de hóspedes de Gabriella e olhou em volta, atordoada. Ela queria tempo...
e agora tinha tempo de sobra. Tinha o resto da vida à sua frente para perguntar-se se havia jogado fora
sua chance de felicidade, ou se escapara de outro pesadelo em forma de casamento. Ergueu os olhos
para o espelho, e o rosto repleto de sofrimento que a encarou de volta era o reflexo perfeito de seus
sentimentos.
Gabriella estava dormindo, e Eduardo saíra logo depois do jantar. Katie estremeceu, lembrando-se da
atmosfera desagradável que se instalara durante a refeição. Nenhuma palavra fora pronunciada por
ninguém. Eduardo comera mergulhado num silêncio furioso, e Gabriella, que estava tão pálida quanto a
morte, passara o tempo todo enviando a Katie leves sorrisos de piedade e tristeza, entre ruidosas
fungadelas. Katie, que não conseguira engolir nada, havia evitado cuidadosamente o olhar fulminante
de Eduardo e enviara um olhar de desculpas à pobre Gabriella. Quando acabou de jantar, Eduardo
empurrara a cadeira para trás, levantara-se e olhara para Katie com um ódio evidente.
- Meus parabéns - ele dissera, entre os dentes cerrados.
- Você conseguiu destruir um grande homem. Nem mesmo o pai dele obteve tanto sucesso, quando
tentou, mas você conseguiu. - Girou nos calcanhares e saiu.
Katie olhou automaticamente no relógio ao lado da cama, quando ouviu a porta da frente abrir e fechar.
202
Os passos pesados de Eduardo vinham na direção do seu quarto. Mais que depressa ela enxugou as
lágrimas e ergueu o rosto, deparando com Eduardo na soleira da porta. Empinou o queixo, numa fraca
tentativa de desafio, quando ele encaminhou-se para onde ela estava.
Atirando na cama um grande álbum de fotografias com a capa de couro, ele disse com frieza:
- Este é o homem a quem você reduziu ao nível de mendigo, aos olhos desta cidade.
Confusa, Katie pegou o álbum.
- Abra - Eduardo disparou. - Pertence a Rafael e à esposa. Eles querem que você o veja, antes de partir.
Katie engoliu em seco.
- Ramon está na casa deles? - perguntou.
- Não.
Depois que Eduardo saiu, Katie abriu o álbum. Mas este não continha fotografias, e sim dezenas e
dezenas de recortes de jornais e revistas. Ela passou os olhos pelo primeiro recorte, e as mãos
começaram a tremer violentamente, enquanto virava as páginas plastificadas. Havia uma foto de jornal
de Ramon parado diante de uma dúzia de microfones, durante a Conferência Mundial de Negócios em
Genebra, na Suíça.
- Ah, meu Deus... - ela murmurou. - Ah, meu Deus... Os recortes pareciam voar diante dos seus olhos
como uma sequência de filme: fotos de Ramon em centenas de poses diferentes assaltavam seus
sentidos. Ramon, com a expressão grave falando numa reunião de xeques árabes; recostado numa
cadeira à mesa de conferência com líderes internacionais; Ramon, com a pasta em punho, embarcando
num jato com o logotipo Galverra International pintado na lateral.
Katie tentou ler os artigos, mas conseguiu apenas absorver algumas frases esparsas:
”Conhecido pela genialidade como negociador, Galverra foi responsável pelas aquisições que alçaram
a Galverra International ao status de império financeiro... Fluente em espanhol, francês, italiano, inglês
e alemão... Formado pela Universidade de Harvard... Pós-graduado em Administração de Empresas...
Um homem que valoriza a vida pessoal e ressente-se da intromissão da imprensa em seus assuntos
particulares...”
Havia instantâneos de Ramon usando um smoking, jogando num cassino em Monte Carlo, enquanto
uma loira maravilhosa lhe sorria com adoração; Ramon apoiado no parapeito de seu imenso iate, a
brisa desmanchando-lhe os cabelos.
Muitas das fotos confirmavam a relatada recusa de admitir que a imprensa se intrometesse em sua vida
particular, pois eram desfocadas e obviamente tiradas de uma longa distância, com algum tipo de lentes
especiais.
Estava tudo ali, incluindo o início do fim. Havia fotos de dois edifícios cuja construção fora
203
interrompida, em Chicago e St. Louis, juntamente com os artigos sobre a corporação estar sofrendo
perdas irremediáveis no Ira.
Katie fechou o álbum e apertou-o contra o peito, num gesto protetor. Encostou o rosto na capa de
couro, e seu corpo sacudiu-se com soluços incontidos.
- Ah, meu querido, por que você não me contou? soluçou, em desespero.
204
CAPÍTULO 19
ENQUANTO GARCIA CARREGAVA as duas últimas malas de Katie para o Rolls-Royce, ela virouse
para Gabriella, que se mantinha parada na porta da sala, observando a movimentação.
- Lamento tanto - Gabriella sussurrou, abraçando-a em despedida. - Lamento muito mesmo.
Eduardo deu um passo à frente e estendeu-lhe a mão, num gesto rígido.
- Faça uma boa viagem - disse, com mais frieza e desprezo do que nunca.
Garcia abriu a porta do carro e ela entrou. Olhou em volta do suntuoso interior revestido de couro
branco, com a aparelhagem sofisticada que tanto a divertira. Aquele era o carro de Ramon,
naturalmente, Katie concluiu com uma renovada pontada de tristeza. Não era de admirar que ele ficara
tão irritado quando ela demonstrara a admiração pelo veículo - estava prestes a perdê-lo. Ramon estava
perdendo tudo, incluindo ela mesma.
Percebendo que Garcia ainda não fechara a porta, Katie ergueu os olhos para ele. O motorista tirou um
cheque do bolso do uniforme preto e entregou-lhe. Katie segurou-o nas mãos, olhando-o com um misto
de atordoamento e infelicidade. Era um cheque de 3.500 dólares, 500 dólares a mais do que ela gastara.
Aparentemente, Ramon não acreditara nem mesmo quando ela dissera a verdade.
Katie sentia-se doente. A maior parte das coisas pelas quais era acusada nem mesmo tinham sido culpa
sua! Se ao menos Ramon não se tivesse feito passar por um simples fazendeiro, ela não teria ficado tão
desconfiada e temerosa de casar-se com ele. Não teria se sentido na obrigação de pagar por metade de
tudo que comprara. Nada disso teria acontecido. Mas acontecera. Ela o havia envergonhado e
humilhado, e agora ele a mandava de volta para casa.
Ele a mandava de volta para casa, Katie pensou, enquanto o carro afastava-se da casa de Gabriella. O
que estava acontecendo com ela, permitindo que Ramon a mandasse embora daquele jeito? Não era o
momento de começar a ser obediente! Não era a hora de sentir-se amedrontada e intimidada, mas era
assim que se sentia. Com um estremecimento de terror, lembrou-se da fúria estampada na expressão
dele, no dia anterior, a raiva mortal em cada palavra que pronunciara cuidadosamente. Mas, acima de
tudo, lembrava-se da ameaça: ”Minta para mim só mais uma vez e farei com que o seu primeiro marido
pareça um santo!” Naquele momento, Ramon parecia enfurecido o bastante para cumprir tal promessa.
Katie mordeu o lábio, tentando desesperadamente criar coragem para pedir a Garcia que a levasse até
Ramon, para que pudesse se explicar. Ela precisava vê-lo. Sentindo os nervos à flor da pele, disse a si
mesma que Ramon jamais faria as coisas que David fizera com ela. Ramon não sabia do que a estava
ameaçando, quando disse aquilo. De qualquer forma, não iria mentir para ele, portanto ele não teria
motivos para...
Isso de nada adiantaria, ela concluiu. Queria poder encontrá-lo, explicar tudo, mas seria incapaz de
enfrentar a raiva dele sozinha. Com ou sem motivos, tinha um medo irracional da violência física.
Precisava que alguém a acompanhasse, quando fosse confrontá-lo. As mãos de Katie começaram a
tremer, num misto de pânico e determinação. Não havia ninguém ali para ajudá-la, e já era tarde
205
demais. Ramon a odiava pelo que havia feito. Não, ele a amava. E se a amava de verdade, seria
impossível deixar de amá-la com tanta facilidade.
Ele teria de escutá-la, Katie pensou febrilmente enquanto o Rolls-Royce deslizava pelas ruas do
vilarejo e parava, a fim de permitir que um grupo de turistas atravessasse a rua. Deus, alguém tinha de
fazê-lo escutar!
Naquele instante Katie viu o padre Gregório atravessar a praça, indo da casa para a igreja, as vestes
negras esvoaçando sob a brisa da tarde. Ele olhou rapidamente na direção do carro, avistou-a na janela
e, devagar, desviou o rosto. O padre Gregório jamais a ajudaria... Ou será que sim?
O carro começou a ganhar velocidade. Katie não conseguia encontrar o botão que abria a janela de
comunicação, então bateu no vidro, chamando:
- Pare! Pare-se!
Porém, apenas um breve relance dos olhos de Garcia no espelho retrovisor a fez saber que ele nem
sequer a ouvira. Era óbvio que Ramon lhe dera instruções de levá-la para o aeroporto e colocá-la no
avião, e Garcia pretendia fazer exatamente isso. Katie tentou abrir a porta, mas estavam todas travadas.
Inspirada pelo desespero, ela cobriu a boca com as mãos e gritou:
- Pare, por favor! Eu estou enjoada!
Deu certo! Em questão de segundos Garcia parou o carro, saiu e foi abrir a porta para ela.
Katie puxou o braço, afastando-se do atónito motorista que pensava estar ajudando-a.
- Já estou bem melhor agora! - ela disse, começando a correr através da praça, na direção da igreja e do
homem que havia se oferecido para ajudá-la a explicar tudo a Ramon.
Lançou um rápido olhar por cima do ombro, mas Garcia continuava parado ao lado do carro,
aparentemente imaginando que ela fora atacada por algum tipo de súbito fervor religioso.
No topo da escadaria de pedras, Katie hesitou, sentindo o estômago encolher-se de medo. Depois da
última conversa que tiveram, o padre Gregório nutria apenas um profundo desprezo por ela, e talvez
jamais a ajudasse. Ele mesmo lhe dissera, sem rodeios, que voltasse para os Estados Unidos. Mas,
mesmo assim, Katie obrigou-se a abrir a pesada porta de carvalho e entrou na igreja sombria, iluminada
apenas pela luz das velas.
Procurou no altar, e nas capelinhas laterais onde as velas reluziam em pequenos suportes vermelhos,
mas o padre não estava por ali. Então avistou-o, não ocupado com alguma tarefa, como ela havia
esperado, mas sim sentado sozinho num dos bancos de madeira, na fileira em frente ao altar. A cabeça
branca estava baixada, bem como os ombros, numa postura de desespero ou de prece devota, ela não
saberia dizer.
Katie hesitou, sentindo toda a coragem abandoná-la. O padre não iria ajudá-la. À sua maneira, o padre
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Gregório a desprezava tanto quanto Eduardo, e com maiores e melhores motivos. Virando-se, ela
começou a sair da igreja.
- Senorita! - a voz ríspida e imperativa cortou o silêncio como um raio, fazendo com que Katie se
imobilizasse no lugar.
Devagar, ela virou-se para encará-lo. Ele estava parado no centro do corredor, agora, parecendo mais
firme e imponente do que nunca.
Ela engoliu em seco, sentindo a garganta arder, e tentou respirar fundo.
- Padre. Gregório - disse, num tom rouco, suplicante.
- Imagino o que o senhor deve estar pensando a meu respeito, e não o culpo por isso, mas foi somente
ontem à noite que descobri por que seria tão humilhante para Ramon o fato de eu estar pagando pelas
coisas que comprei, sobretudo aos olhos dos moradores do vilarejo. Ontem Ramon descobriu o que
estive fazendo, e ficou furioso. Eu... eu nunca vi alguém tão furioso em toda minha vida. - A voz caiu
para um sussurro sufocado. - Ele está me mandando de volta para casa.
Katie examinou o rosto austero, esperando encontrar algum sinal de simpatia ou compaixão, mas ele a
fitava com os olhos fixos, aguçados.
- Eu... eu não quero ir embora - ela gaguejou. Ergueu as mãos num gesto de impotência, e, para seu
supremo horror, as lágrimas começaram a correr livres de seus olhos. Humilhada demais para olhar
para o padre, tentou em vão enxugar a torrente de lágrimas do rosto. - Quero ficar aqui, com ele...
A voz do padre foi um murmúrio gentil:
- Por quê, Katherine?
Ela ergueu os olhos, espantada. Ele nunca a chamara de ”Katherine”, e a imensa ternura contida em sua
voz deixou-a perplexa. Encarou-o através da cortina de lágrimas. O padre encaminhava-se para ela,
com um sorriso lento iluminando todo seu rosto.
Parou à sua frente e insistiu suavemente:
- Diga-me por quê, Katherine.
O calor e a aprovação daquele sorriso começaram a derreter o gelo de infelicidade no coração de Katie.
- Quero ficar porque quero me casar com Ramon... Não quero mais evitar o casamento - ela admitiu,
com uma inocência quase infantil. Sua voz adquiriu mais força, quando continuou: - Prometo que vou
fazê-lo feliz, padre. Eu sei que posso. E ele... ele me faz muito feliz.
O sorriso do padre Gregório alargou-se, e para alegria e alívio de Katie, ele começou a lhe fazer as
mesmas perguntas que havia tentado dias antes:
- Você será capaz de colocar os desejos de Ramon à frente dos seus?
207
- Sim - ela sussurrou.
- Irá comprometer-se inteiramente com esse casamento, colocando o sucesso dele adiante de todas as
outras prioridades de sua vida?
Katie assentiu, enfática.
- Você vai honrar Ramon e respeitar seus desejos? Ela tornou a assentir com vigor, e acrescentou:
- Serei a esposa mais perfeita que o senhor já conheceu. Os lábios do padre apertaram-se.
- Você vai lhe obedecer, Katherine? Ela fitou-o, acusadora.
- O senhor disse que eu não teria de fazer esta promessa.
- E se eu lhe pedisse para fazer?
Katie pesou brevemente as crenças de uma vida inteira com o futuro que teria pela frente. Olhou direto
para o padre e respondeu:
- Sim, eu prometeria.
Os olhos dele iluminaram-se de riso.
- Na verdade, eu estava apenas especulando. Katie suspirou, aliviada.
- Ainda bem, pois duvido que eu conseguisse manter a promessa. - Novamente num tom de súplica, ela
perguntou: - E agora, o senhor vai realizar o nosso casamento?
- Não.
A resposta veio num tom tão bondoso que, por um instante, Katie achou que não entendera direito.
- Não? - repetiu. - Por quê... Por que não?
- Porque você ainda não me disse a única coisa que preciso ouvi-la dizer.
Katie sentiu o coração encolher-se com uma intensa pontada no peito, e toda a cor desapareceu de seu
rosto. Fechou os olhos, tentando afastar a lembrança de si mesma gritando aquelas palavras, obrigandose
a repeti-las agora.
- Eu... - A voz lhe falhou. - Eu não posso. Não consigo dizer. Bem que gostaria, mas...
- Katherine! - o padre exclamou, assustado. - Venha, sente-se aqui - disse rapidamente, levando-a para
o banco mais próximo. Sentou ao lado dela, o rosto bondoso repleto de preocupação e ansiedade. -
Você não precisa dizer que o ama, Katherine - apressou-se em assegurar-lhe. - Isso é perfeitamente
visível. Mas será que, pelo menos, poderia contar-me por que acha tão difícil pronunciar as palavras,
208
tão impossível dizê-las?
Muito pálida, Katie virou-se para ele com um misto de consternação e tristeza, e estremeceu. Num
sussurro enrouquecido, falou:
- Porque fico me lembrando da última vez que disse essas palavras.
- Minha filha, seja lá o que tenha acontecido, você não pode ficar guardando tudo dentro de si. Nunca
desabafou com ninguém?
- Não - ela disse, a voz sufocada. - Ninguém. Meu pai teria tentado matar David... o meu marido.
Quando meus pais retornaram da viagem à Europa, todas as marcas já haviam sido curadas, e Anne, a
criada deles, prometeu que nunca lhes contaria sobre o estado em que eu me encontrava na noite em
que voltei para a casa deles.
- Quer tentar me dizer o que aconteceu? - ele perguntou com suavidade.
Katie olhou para as mãos imóveis em seu colo. Se o fato de falar pudesse finalmente exorcizar David
de sua mente, de sua vida, ela estaria disposta a tentar. Suas primeiras palavras foram vacilantes,
hesitantes, mas logo todo o horror extravasou numa torrente de angústia e sofrimento.
Quando terminou, Katie recostou-se no banco, emocionalmente exausta, exaurida de tudo - até mesmo,
percebeu com um lampejo de surpresa - da dor. Ouvir-se falar em voz alta sobre David a fez
compreender que não havia semelhança alguma entre ele e Ramon; nenhuma. David fora um homem
egoísta, um monstro sádico, enquanto Ramon queria amá-la, protegê-la, ampará-la. E, mesmo quando
desafiara Ramon, humilhando-o e enfurecendo-o, ele não abusara fisicamente dela. O que acontecera
no passado pertencia ao passado.
Katie olhou para o padre Gregório e deu-se conta de que ele parecia ter tomado toda a carga para seus
próprios ombros. Parecia extremamente cansado.
- Sinto-me bem melhor agora - ela disse, esperando animá-lo.
O padre falou pela primeira vez desde que ela iniciara seu desabafo:
- Ramon sabe de tudo o que aconteceu com você naquela noite?
- Não. Não consegui falar sobre isso com ele. E, de qualquer forma, eu realmente não achava que isso
estava me incomodando. Quase nem penso mais em David.
- Mas estava incomodando-a - o padre retrucou. E você esteve pensando nele, mesmo sem perceber. Do
contrário, teria simplesmente confrontado Ramon com as suas suspeitas de que ele não era exatamente
quem dizia ser. Você não o confrontou porque, em seu coração, tinha medo do que poderia saber. Por
causa da sua terrível experiência, automaticamente presumiu que qualquer segredo que Ramon tivesse
seria tão aterrorizante quanto os segredos que acabou descobrindo em seu primeiro marido.
O padre mergulhou num silêncio pensativo por alguns minutos, depois pareceu emergir do estado de
209
meditação.
- Acho que seria melhor se você contasse tudo a Ramon antes da noite de núpcias. Há sempre a
possibilidade de que, devido às suas lembranças, você sinta alguma inexplicável repulsa quando se
deparar com a intimidade entre marido e mulher. Ramon precisa estar preparado para isso.
Katie sorriu e balançou a cabeça, confiante.
- Não sinto qualquer repulsa em relação a Ramon, portanto isso não é motivo de preocupação.
- Talvez tenha razão. - Inesperadamente, a expressão do padre tornou-se quase zangada. - Mesmo se
você reagir com receio às intimidades maritais, tenho certeza de que Ramon possui bastante
experiência com as mulheres para lidar com problemas desse tipo.
- Estou absolutamente certa disto - Katie assegurou, rindo da expressão de censura do padre. Este
franziu a testa, desconfiado, e ela apressou-se em corrigir: - Tenho quase certeza.
Ele assentiu, aprovando.
- É bom que você o tenha feito esperar. Mortificada, Katie sentiu o rosto arder. O padre percebeu que
ela se ruborizava e, franzindo a testa, observou-a por cima dos óculos.
- Ou será que foi Ramon quem a fez esperar? - emendou com astúcia.
Ambos olharam para trás ao mesmo tempo, quando alguns turistas entraram na igreja.
- Venha, vamos continuar nossa conversa lá fora o padre sugeriu. Desceram a escadaria e foram para a
praça na frente da igreja. - O que vai fazer agora? ele perguntou.
Katie mordeu o lábio e olhou na direção do armazém geral.
- Acho... - disse, com evidente relutância. - Acho que eu deveria devolver as coisas que comprei e
dizer, diante de todos, que Ramon não... - engasgou com a palavra.
- Que Ramon não me permitiu ficar com elas.
O padre Gregório atirou a cabeça para trás, sacudindo-se com uma sonora gargalhada. Do outro lado da
rua, várias pessoas pararam para ver o que estava acontecendo.
- Isso é bastante encorajador! - ele riu. Depois, balançou a cabeça em negativa, diante de tal sugestão: -
Não creio que Ramon gostaria que você fizesse isso. Ele não iria querer comprar o seu orgulho de volta
à custa do seu próprio orgulho. No entanto, você poderia oferecer-se para fazer isso. Talvez ajudasse a
convencê-lo de que está realmente arrependida.
Katie enviou-lhe um olhar impaciente.
- O senhor ainda acha que me faltam docilidade e respeito pela autoridade?
210
- Sinceramente, espero que sim - ele disse, com um sorriso caloroso. - Conforme Ramon informou-me
um tanto rispidamente, ele não quer se casar com um cachorrinho de estimação.
O sorriso de Katie desapareceu.
- Agora ele não quer casar-se comigo, tampouco.
- Gostaria que eu a acompanhasse, quando for falar com ele?
Katie pensou um pouco e balançou a cabeça, em negativa.
- Quando entrei na igreja, era isso que pretendia lhe pedir para fazer. Eu estava aterrorizada pela raiva
que ele demonstrou ontem, e até ameaçou fazer com que David parecesse um santo.
- Ramon levantou a mão para você?
- Não.
O padre Gregório pressionou os lábios.
- Se ele não a agrediu depois de toda a provocação de ontem, tenho certeza de que jamais o fará.
- Acho que eu sempre soube disso - Katie admitiu.
- Provavelmente, foi apenas por pensar em David que fiquei com tanto medo de Ramon, ontem e hoje.
Cruzando as mãos por trás das costas, o padre olhou em volta, demonstrando sua aprovação pelas
montanhas, o céu, o vilarejo e os moradores.
- A vida pode ser muito boa quando se permite que ela seja, Katherine. Mas você deve negociar com a
vida. Precisa dar algo de si, para receber algo em troca. A vida não dá certo quando as pessoas tentam
apenas tirar, sem nada entregar. Então, acabam de mãos vazias e tentam agarrar-se à vida com mais
força, tornando-se cada vez mais desapontadas e desiludidas. - O padre sorriu para ela. Desde que você
não tem medo de que Ramon possa agredi-la fisicamente, presumo que não precise de mim, estou
certo?
- Na verdade, eu preciso, sim - Katie falou, olhando rapidamente para Garcia, que continuava parado ao
lado do Rolls-Royce, os braços cruzados no peito, os olhos seguindo cada movimento seu. - Acho que
Ramon deu instruções a Garcia para levar-me para fora desta ilha e, se eu perder o avião, aquele
homem será capaz de colocar-me num barco, numa caixa ou até numa garrafa, mas fará o que lhe foi
mandado. O senhor acha que poderia convencê-lo a levar-me de volta para a casa de Gabriella, e
também lhe dizer que quero fazer uma surpresa a Ramon, e que, portanto, ele não deverá contar-lhe que
eu não parti?
- Acho que posso fazer isso - o padre falou, segurando-a pelo braço e andando com ela na direção do
carro.
211
- Um homem que se julga tão ”importante” quanto eu deve ser capaz de convencer um motorista.
- Por favor, me desculpe pelas coisas que eu disse Katie pediu, arrependida.
O padre fitou-a sorrindo.
- Depois de usar estes trajes por cerca de quarenta anos, creio que desenvolvi uma tendência a agir de
forma um tanto autoritária. Confesso que, desde que você me disse aquelas coisas, fiz um profundo
exame de consciência, tentando descobrir se você tinha razão.
- Era isso que o senhor estava fazendo, quando entrei na igreja agora há pouco?
O rosto dele ficou sombrio.
- Foi um momento de grande tristeza, Katherine. Eu a vi passando pela igreja no carro de Ramon, e
soube que estava partindo. Sentei-me ali por um momento e rezei para que você reconhecesse o que
estava guardado em seu coração. Apesar de tudo o que disse e fez, eu sentia que você o amava. Agora,
vamos ver se consigo convencer o fiel Garcia de que será melhor para Ramon se ele desobedecer às
suas ordens?
Quando o Rolls-Royce parou na frente da casa de Gabriella, Katie ainda perguntava-se se não seria
melhor ir direto para a casa de Ramon. O problema era que Ramon talvez não voltasse mais ao chalé, e
Katie não tinha ideia de onde o encontraria. Gabriella poderia ajudá-la nisso, contanto que Eduardo não
ficasse sabendo.
Ergueu a mão para bater na porta, mas esta se abriu de repente. Em vez de Gabriella, foi o próprio
Eduardo quem atendeu, a expressão fechada e sombria.
- Você não foi embora?
- Não, eu... - Katie começou, num tom de desculpas, mas o resto da frase foi interrompido pelo súbito
abraço apertado de Eduardo.
- Gabriella me disse que eu estava enganado a seu respeito - Eduardo confessou, um tanto
envergonhado. Passando o braço em torno dos ombros dela, levou-a para a sala de estar, onde Gabriella
os recebeu com um sorriso radiante. - Ela me falou sobre a sua coragem. - Ficando subitamente sério,
ele acrescentou: - E vai precisar muito dessa coragem para enfrentar Ramon... Ele ficará duplamente
furioso por ter sido duplamente desafiado.
- Onde você acha que ele estará esta noite? - Katie perguntou, com bravura.
Ramon recostou o quadril na beirada da escrivaninha, os braços cruzados. Sua expressão não traía
nenhuma emoção, enquanto ouvia Miguel e os quatro auditores, que estavam sentados no luxuoso sofá
em seu escritório, discutindo os termos do pedido de falência que se preparavam para apresentar.
Ele desviou os olhos para as janelas do escritório em San Juan, num dos andares mais altos do edifício,
e viu um jato subindo e formando um amplo arco no céu azul da tarde. Calculando o horário, soube que
212
era o avião de Katie. Seus olhos seguiram-no por alguns instantes, até que se tornasse apenas um ponto
prateado no horizonte.
- No que se refere a você como pessoa física, Ramon
- Miguel estava dizendo -, não há necessidade de entrar com o pedido de falência. Você tem o bastante
para cobrir os débitos pendentes. Os bancos que lhe emprestaram o dinheiro, que depois você
emprestou para a corporação, vão penhorar a ilha, as casas, o avião, o iate, a coleção de arte e tudo o
mais, e irão recuperar o empréstimo com a revenda dos bens. Os únicos outros débitos pessoais que
você tem referem-se aos dois edifícios que está construindo em Chicago e St. Louis.
Miguel inclinou-se para a mesa de centro à sua frente e pegou uma folha de papel de uma das pilhas.
- Os bancos que lhe emprestaram parte do dinheiro para a construção estão dispostos a vender os
edifícios a outros investidores. É claro que esses investidores só terão lucro quando terminarem a
construção e os venderem. Infelizmente, também ficarão com a maior parte dos vinte milhões de
dólares do dinheiro que você investiu em cada um dos edifícios. - Miguel olhou para Ramon, com um
ar de desculpas. - Provavelmente, você já sabe de tudo isso.
Ramon assentiu, impassível.
Atrás dele, o interfone tocou na escrivaninha e a voz agitada de Elise soou pelo viva-voz:
- O sr. Sidney Green está ligando novamente de St. Louis. Ele está insistindo muito em lhe falar, sr.
Galverra. Está me ofendendo - ela acrescentou, tensa. - E gritando comigo.
- Pois diga-lhe que dei instruções para que ele ligue mais tarde, quando estiver mais controlado, e
depois desligue o telefone - Ramon falou brevemente.
Miguel sorriu.
- Não há dúvida de que ele está nervoso com os rumores que seus concorrentes andam espalhando
sobre a notícia de que a tinta que fabrica está apresentando problemas. Aliás, a notícia já foi publicada
no Wall Street Journal e na seção de negócios de todos os jornais importantes.
Um dos auditores olhou para Miguel com uma expressão de divertimento diante de tal ingenuidade.
- Imagino que ele esteja muito mais nervoso por causa da queda de suas ações. As ações da Green Paint
and Chemical estavam sendo vendidas a vinte e cinco dólares cada uma, duas semanas atrás. O preço
baixou para treze dólares hoje cedo. Parece que há um certo pânico no ar.
Miguel recostou-se no sofá e cruzou os braços, complacente.
- O que será que aconteceu de errado? - ironizou. No entanto, endireitou-se imediatamente ao perceber
o olhar aguçado que Ramon lhe enviava.
- Vocês estão falando de Sidney Garcia, de St. Louis?
- perguntou um dos auditores, um homem magro e de óculos sentado na ponta do sofá, que erguia os
213
olhos da papelada pela primeira vez. - Esse é o nome do sujeito que está encabeçando o grupo que
planeja comprar os edifícios que você estava construindo em St. Louis, Ramon. Já fizeram uma oferta
ao banco para comprá-los e concluírem a construção.
- Aquele abutre! - Miguel sibilou, lançando em seguida uma torrente de palavrões.
Ramon nem mesmo o ouvia. Toda a turbulência de dor e fúria que sentia pela perda de Katie emergia
de dentro dele como uma explosão vulcânica de puro ódio que, agora, tinha um alvo que ele poderia
atingir: Sidney Green.
- Ele também faz parte da diretoria desse mesmo banco que se recusou a prolongar o prazo do meu
empréstimo, para que eu pudesse concluir a construção dos edifícios Ramon falou, num tom baixo,
ameaçador.
O interfone tocou novamente. Ramon respondeu com um gesto automático, enquanto os auditores
juntavam seus papéis, preparando-se para sair.
- Sr. Galverra - Elise falou. - O sr. Green está na linha. Disse que agora está mais controlado.
- Passe a ligação.
A voz de Green explodiu no sistema viva-voz:
- Desgraçado! - ele gritou. Ramon assentiu para que os auditores saíssem e enviou um rápido olhar para
Miguel, convidando-o a permanecer na sala. - Seu bastardo desgraçado, está me ouvindo?
A voz de Ramon era calma, contida, e muito perigosa.
- Agora que já esgotamos o tópico da minha legitimidade, que tal falarmos de negócios?
- Não tenho negócio algum com você, seu... seu...
- Sidney - Ramon o interrompeu, num tom sedoso.
- Você está começando a me irritar, e eu fico muito pouco razoável quando me irrito. Você me deve
doze milhões de dólares.
- Eu lhe devo três milhões! - o outro trovejou.
- Com os juros, agora são doze milhões. Você tem obtido lucros com o meu dinheiro há nove anos,
agora quero tudo de volta.
- Vá para o inferno! - Green sibilou.
- Já estou no inferno - Ramon retrucou, a voz inexpressiva. - E quero que você esteja aqui comigo. A
partir de hoje, cada dia que passar sem você me pagar, vai custar-lhe um milhão de dólares.
- Você não pode fazer isso, não tem influência para tanto, seu filho da...
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- Pois espere para ver - Ramon disparou, antes de desligar o telefone.
Miguel inclinou-se para a frente, ansioso.
- Você tem poder para fazer isso, Ramon?
- Não.
- Mas se ele acreditar que sim...
- Se ele acreditar que sim, é um idiota. E, se for um idiota, não vai querer arriscar-se a ”perder” mais
um milhão de dólares hoje e, por isso, tornará a ligar daqui a três horas, para fazer um acordo e
depositar o dinheiro no meu banco em St. Louis antes do final do expediente.
Três horas e quinze minutos depois, Miguel estava escarrapachado em sua poltrona, o nó da gravata
desfeito, o paletó aberto. Ramon ergueu os olhos da papelada que estava assinando e disse:
- Sei que você não saiu para o almoço, e está quase na hora do jantar. É melhor ligar para o restaurante
e pedir que tragam alguma coisa. Se vamos ficar trabalhando até tarde, você precisa comer.
Miguel parou com a mão no telefone.
- Você não quer nada, Ramon?
A pergunta fez surgir a imagem de Katie na mente de Ramon, e ele fechou os olhos, tentando aplacar a
dor angustiante.
- Não, obrigado.
Miguel ligou para o restaurante e encomendou sanduíches. Assim que desligou o telefone, este
começou a tocar.
- Elise já foi embora - disse Ramon, atendendo. Por um instante, ficou imóvel, depois pressionou o
botão que acionava o viva-voz.
A voz estrangulada de Sidney Green ressoou pelo elegante escritório:
- É preciso saber qual é o banco.
- Nada de bancos - Ramon respondeu rispidamente.
- Envie o dinheiro aos meus advogados em St. Louis. Forneceu o nome e endereço da firma, e
acrescentou: Diga para me ligarem neste número assim que estiverem com o cheque em mãos.
Trinta minutos depois, o advogado de Ramon ligou. Quando Ramon desligou o telefone, olhou para
Miguel, cujos olhos estavam febris de excitação.
215
- Como pode ficar sentado aí com toda essa calma, Ramon? Você acabou de ganhar doze milhões de
dólares!
O sorriso de Ramon era irónico.
- Na verdade, acabei de ganhar quarenta milhões. Vou usar esses doze para comprar ações da Green
Paint and Chemical. Daqui a duas semanas, poderei vendê-las por vinte milhões. Aplicarei os vinte
milhões na construção do edifício em St. Louis e, quando vendê-lo, daqui a seis meses, receberei de
volta os vinte milhões investidos logo no início, e mais esses vinte.
- Mais os lucros que conseguir nas vendas.
- Sim, mais os lucros - Ramon concordou, sem se alterar.
Miguel começou a vestir o paletó, todo animado.
- Vamos sair e comemorar - disse, ajeitando a gravata.
- Faremos uma combinação de despedida de solteiro e comemoração pelo sucesso da empreitada!
Os olhos de Ramon adquiriram um brilho enigmático.
- Não vou precisar de nenhuma ”despedida de solteiro”, Miguel. Esqueci de mencionar que não vou
mais me casar no domingo. Katie... mudou de ideia. - Ramon abriu a gaveta da escrivaninha, evitando
cuidadosamente o olhar de pena que sabia que veria na expressão do amigo. Mas vá você, e comemore
o meu ”sucesso” por nós dois. Quero dar uma olhada nos arquivos sobre aquele edifício.
Pouco depois, Ramon ergueu os olhos e viu um rapaz parado diante da sua mesa, segurando dois
saquinhos de papel nas mãos.
- Alguém ligou encomendando sanduíches, senhor ele disse, olhando em volta do escritório com
evidente admiração.
- Deixe-os aí mesmo. - Ramon indicou a mesa de centro e, distraidamente, pegou a carteira no bolso do
paletó.
Abriu a carteira, procurando um trocado para dar de gorjeta ao rapaz. Porém, a nota mais baixa que
tinha era uma de 5 dólares - aquela que Katie lhe dera no dia em que se conheceram. Ramon nunca
tivera intenção de desfazer-se dela, e a dobrara em quatro a fim de distingui-la das outras notas na
carteira: uma lembrança, que guardava como um tesouro, recebida de um anjo de olhos azuis.
Ramon sentiu como se estivesse se estilhaçando em centenas de pedaços, quando pegou a nota na
carteira. Seus dedos apertaram-na convulsivamente, e então obrigou-se a soltá-la. Exatamente como
obrigara-se a libertar Katie. Abriu a mão e entregou a nota amassada ao garoto.
Depois que o entregador saiu, ele olhou para a carteira. A nota de Katie se fora. Katie se fora. Ele era
novamente um homem muito rico. Uma raiva amarga ardia dentro dele, e seus punhos cerraram-se com
força como se tomados pela necessidade urgente de esmurrar alguma coisa.
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CAPÍTULO 20
EDUARDO PASSOU A MÃO pelos cabelos revoltos e olhou para Katie, cujo rosto pálido refletia a
tensão crescente.
- O segurança disse que Ramon saiu do prédio três horas atrás, por volta das nove. Garcia veio buscá-lo
com o Rolls-Royce, mas eles não voltaram para a villa em Mayaguez, e Ramon também não está em
sua casa em San Juan.
Kate mordeu o lábio, apreensiva.
- Você acha possível que Garcia tenha dito a ele que eu não fui embora, e Ramon esteja apenas
recusando-se a atender ao telefone?
A expressão de Eduardo foi zombeteira.
- Se Ramon soubesse que você ainda está aqui, não estaria se escondendo. Teria irrompido por esta
casa como um batalhão de demónios, pode crer.
- Eduardo - Gabriella falou, com um suspiro exasperado -, você está deixando Katie aterrorizada, e ela
já está bastante nervosa sem isso.
Enfiando as mãos nos bolsos, Eduardo parou de andar de um lado para outro e olhou diretamente para
Katie.
- Escute, eu não sei onde ele pode estar. Ramon não se encontra em nenhuma das suas casas, nem com
a família de Rafael. Não posso imaginar em que outro lugar ele iria para passar a noite.
Katie tentou ignorar a dolorosa pontada de ciúme que sentiu, diante da possibilidade de Ramon ter
decidido passar a noite nos braços de alguma das belas mulheres com quem aparecia nos recortes de
revistas locais.
- Eu tinha quase certeza de que ele iria para o chalé
- disse. - Ele não está lá mesmo?
Eduardo foi enfático:
- Já lhe disse, eu fui procurá-lo na casa. Eram dez e meia, cedo demais para que ele fosse dormir, mas
não havia nenhuma luz acesa.
Katie baixou a cabeça com tristeza, torcendo as mãos sobre o colo.
- Se fosse comigo, eu teria ido para lá... para o lugar onde me sentisse mais próxima dele.
- Katie - Gabriella falou com delicada determinação -, eu sei o que você está imaginando, mas está
enganada. Ramon jamais procuraria outra mulher esta noite.
217
Katie estava preocupada demais para reparar no olhar de dúvida que Eduardo lançou para a esposa.
- Você bateu na porta, quando foi ao chalé, não é? Katie perguntou.
Eduardo virou-se para ela.
- Por que iria bater, se a casa estava vazia e às escuras? Além disso, Ramon teria visto os faróis do meu
carro chegando e sairia para ver quem era.
Katie franziu a testa.
- Acho que você deveria ter batido. - Levantou-se, movida mais pela inquietação do que por qualquer
outra coisa, e disse: - Acho que vou até o chalé.
- Katie, ele não está lá, mas, se insiste em verificar, eu a acompanho.
- Não é necessário, eu estou bem - ela assegurou-lhe.
- Não quero que se confronte com Ramon sozinha Eduardo insistiu. - Eu vi quanto ele estava furioso
ontem, eu estava com ele e...
- Eu também estava com ele - Katie interrompeu-o.
- E sei que vou ficar bem. Ramon não pode estar mais zangado do que estava ontem.
Eduardo pegou a chave do carro e entregou-lhe.
- Se, por um minuto que fosse, eu achasse que Ramon está na casa, iria com você. Mas sei que ele não
está. Você terá de esperar até amanhã cedo para falar com ele.
- Meus pais estarão chegando amanhã - Katie disse, em desespero. Olhou para o relógio na parede, com
seu tiquetaque agourento. -Já passa de meia-noite... Já estamos no sábado. Eu vou me casar no
domingo, que é amanhã.
Lembrando-se do que Eduardo dissera a respeito de Ramon ver as luzes do carro aproximando-se,
Katie desligou os faróis a alguns metros antes de chegar à frente da casa. Se Ramon estivesse ali, seria
melhor apanhá-lo de surpresa. Sobretudo porque não gostava nada da ideia de confrontar a sua fúria,
quando ele abrisse a porta.
Reparou que havia uma luz, visível entre os galhos das árvores, e sentiu o coração dar um pulo de
alegria quando parou o carro. Foi caminhando pela calçada de tijolos iluminada pela lua, as pernas
trémulas a cada passo que dava. Então, viu que a luz do quarto estava acesa!
Pousou a mão na maçaneta da porta, rezando baixinho para que não estivesse trancada, pois ela não
tinha a chave, e suspirou aliviada quando esta abriu-se facilmente. Fechou-a devagar atrás de si, e
virou-se. A sala estava escura, mas havia um suave feixe de luz surgindo por baixo da porta do quarto.
Ele estava ali. Katie tirou o suéter das costas e deixou-o cair no chão. Passou as mãos trémulas pelo
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vestido justo que havia escolhido horas antes, com a intenção específica de deixá-lo excitado e,
esperançosamente, minar toda sua resistência. O decote baixo na frente deixava à mostra o pequeno
vale entre os seios, e as alças finas exibiam seus ombros e costas. Passou os dedos entre os longos
cabelos e começou a andar, sem fazer nenhum barulho.
Ao chegar à porta do quarto, Katie parou para controlar o intenso nervosismo. Ramon encontrava-se
deitado na cama, as mãos cruzadas sob a cabeça, olhando para o teto. A camisa branca estava aberta no
peito, e ele nem se dera ao trabalho de tirar os sapatos. Seu perfil era tão amargo e desolado que Katie
encheu-se de remorso. Ficou olhando para aquele rosto belo e austero, a poderosa virilidade estampada
em cada linha de seu corpo, sentindo o pulso acelerar-se de excitamento e trepidação. Mesmo em
repouso, Ramon parecia um oponente formidável.
Deu um passo para dentro do quarto, e sua sombra surgiu no teto, no campo de visão dele.
Ramon virou a cabeça em sua direção, e Katie congelou no lugar.
Ele ficou olhando-a, os olhos negros passando através dela, como se não estivesse realmente
enxergando-a.
- Eu não fui embora - Katie murmurou, incerta.
Ao ouvir o som de sua voz, Ramon levantou-se e deu um pulo para fora da cama, num único
movimento amedrontador.
Os traços de seu rosto eram uma máscara impenetrável, e Katie estava nervosa demais para perceber
qualquer coisa nele, exceto que estava tenso, pronto para atacá-la.
- Eu... eu não quis partir - gaguejou. Ele deu um passo à frente, ela recuou um passo. - O padre
Gregório disse que fará o nosso casamento - acrescentou, falando rápido.
- Ah, é mesmo? - Ramon perguntou, num tom de ironia.
Começou a aproximar-se dela, e Katie continuou andando para trás.
- Eu vou... vou devolver tudo o que comprei - ela disse, enquanto seguia, de costas, da porta do quarto
até a sala.
- Vai mesmo? - ele murmurou com suavidade. Katie assentiu com vigor, batendo de encontro ao sofá
e desviando-se dele.
- Eu... eu vi o álbum de recortes de Rafael - explicou, quase sem fôlego. - Se ao menos você tivesse me
dito quem realmente é, eu teria compreendido por que não queria que eu usasse o meu dinheiro. Eu
teria obede... - engasgou com a palavra. - Obedecido.
- Estou vendo que você aprendeu uma palavra nova- ele zombou.
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Katie trombou com o abajur e fez a volta pela mesinha.
- Vou encher esta casa de plantas, flores e crianças ela prometeu, em desespero. As pernas bateram na
poltrona, bloqueando a passagem, e ela sentiu-se invadida por um pânico incontrolável. - Você precisa
me ouvir! Eu tinha medo de me casar com você porque sabia que estava escondendo alguma coisa de
mim, mas não sabia o que era. David já havia...
Ramon cobriu a distância que os separava, e Katie estendeu as mãos, tentando mantê-lo afastado.
- Por favor, me escute - pediu. - Eu amo você!
Ele estendeu as mãos e segurou-a pelos ombros, puxando-a para si com toda a força. Pela primeira vez
ela estava próxima o bastante para perceber o que havia naqueles olhos negros... e não era raiva. Era
amor. Um amor tão intenso que Katie sentiu-se humilde diante dele.
- Você me ama - Ramon repetiu, num tom sufocado.
- E suponho que achou que, se dissesse que me ama, eu esqueceria tudo e a perdoaria, não é?
- Sim - ela admitiu, num sussurro. - Achei que você poderia me perdoar... só desta vez.
- Só desta vez - ele murmurou, com divertida ternura, e suas mãos tremiam quando lhe tocou o rosto, os
cabelos. Emitiu um som que era quase um gemido, quase um riso, enquanto mergulhava os dedos nos
cabelos dela. - Só esta vez? - repetiu como se fosse uma grande revelação,. puxando seu rosto para si,
beijou-a com uma paixão ardente.
Com a alegria e o alívio explodindo dentro do coração como fogos de artifício, Katie deslizou as mãos
pelo peito dele, em torno de seu pescoço, recebendo-o em sua boca.. Arqueou o corpo contra o dele, e
Ramon estremeceu de prazer, as mãos acariciando-lhe as costas, descendo, fazendo com que seus
quadris se tocassem.
Então, seus lábios se separaram e ele passou a beijá-la no rosto, na testa, nos olhos...
- Diga outra vez - pediu, a voz rouca.
- Eu amo você - Katie falou, trémula. - Preciso de você, quero você... e...
Ramon tomou-lhe os lábios com uma ânsia enlouquecedora, silenciando suas palavras e levando-a para
uma dimensão onde nada mais existia, exceto a exigência ardente de suas mãos, de sua boca e de seu
corpo. Beijou-a vezes sem conta, até que Katie gemesse e movesse o corpo contra o dele, mergulhada
num poço profundo de desejo e paixão.
Ramon afastou os lábios dos dela, fitando-a com um brilho ardente no olhar.
- Vamos para a cama, minha querida - murmurou, num tom quente e excitado.
Katie espalmou as mãos em seu peito nu, os dedos acariciando os pêlos escuros, mas, para o
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desapontamento dele, a linda mulher em seus braços disse, com toda a meiguice:
- Não.
- Sim - ele sussurrou, inclinando-se novamente com intenção de beijá-la e afastar quaisquer objeções.
Mas,
desta vez, ela balançou a cabeça.
- Não - Katie repetiu. Sorrindo com uma pontinha de tristeza, explicou: - Eduardo não queria que eu
viesse aqui sozinha. Só concordou porque tinha certeza de que você não estava em casa. Se eu demorar
muito para voltar, é bem capaz que ele decida vir aqui... talvez pensando em proteger-me da sua raiva.
Ramon franziu a testa, aborrecido, e Katie fez uma leve carícia em seu peito, com o sorriso alargandose.
- Além disso, tenho dois outros motivos para querer esperar. Um deles é que precisamos conversar.
Você pediu-me para ser sincera, insistiu muito nisso, mas então, deliberadamente, você mesmo me
enganou. Eu gostaria de entender por que agiu assim.
- E o outro motivo? - Ramon perguntou, relaxando um pouco o abraço, embora com relutância.
Katie desviou os olhos dos dele.
- Amanhã é o dia do nosso casamento. Já esperamos até agora e, bem... O padre Gregório...
Ramon caiu na gargalhada, puxando-a novamente para seus braços.
- Quando Eduardo e eu éramos crianças acreditávamos que, se fizéssemos algo errado, o padre
Gregório seria capaz de saber de tudo, apenas olhando para nós. - Pegou-a nos braços e carregou-a para
o sofá, fazendo-a sentar em seu colo.
- E isso impediu que vocês fizessem coisas erradas? Katie perguntou.
- Não - ele admitiu, sorrindo. - Mas impedia que nos divertíssemos com isso.
Na quietude da sala que ela havia arrumado para ele, Ramon explicou por que se fizera passar pelo que
não era, e depois, com a maior simplicidade possível, contou como os acontecimentos daquele dia
haviam alterado drasticamente as suas perspectivas para o futuro. Katie ouviu a história de Sidney
Green, o rosto iluminado pelo riso, sua mente rápida e inteligente compreendendo com facilidade a
pressão que Ramon fizera a fim de recuperar o seu dinheiro. No entanto, quando Ramon terminou o
relato, a animação dela diminuiu sensivelmente.
- Katie, o que há de errado? - ele perguntou.
Ela olhou em volta da sala aconchegante e suspirou.
- Nada. Apenas acho que vou sentir falta desta casa. Nós teríamos sido muito felizes aqui.
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Ramon tocou-lhe o queixo, fazendo com que ela o encarasse.
- Você vai gostar muito mais das outras casas. Ela franziu a testa, intrigada.
- Mas você disse que as suas outras casas, e também a ilha, seriam todas penhoradas pelos bancos.
- Bem, isso ainda é possível - Ramon concordou. Mas muito pouco provável. Os bancos são como aves
de rapina, Katie. Quando sentem o cheiro do fracasso, atacam rapidamente para se assegurarem de que
vão obter os melhores bocados do que restou. No entanto, se o ”fracasso” de repente demonstra sinais
de recuperação, eles se afastam com a mesma rapidez. Esperam e observam. É o que estão fazendo
agora, enquanto consideram quanto terão a ganhar caso eu prospere novamente, como fiz no passado.
Meus advogados em St. Louis disseram-me que Sidney Green anda espalhando aos quatro ventos que
eu manipulei as suas ações e que o levei à bancarrota. Os bancos também vão ouvir isso, e se
perguntarão se talvez não subestimaram minha influência. Continuarão andando em círculos,
observando, mas vão começar a recuar. Quando eu concluir a construção do edifício em St. Louis, o
banco de Chicago vai sentir o cheiro de lucros, e com certeza me emprestará o dinheiro necessário para
terminar a construção do outro prédio.
Ramon fez uma pausa, e concluiu:
- Como pode ver, você terá suas casas, seus criados e...
- E nada o que fazer - Katie completou, com um sorriso desolado. - Porque você acha que o lugar da
mulher é dentro de casa.
Os olhos dele estreitaram-se.
- Minutos atrás você disse que poderia viver bem feliz aqui mesmo. Por que não pode ser feliz numa
casa mais luxuosa?
Katie, preparando-se para uma discussão, saiu do colo de Ramon e aproximou-se das janelas. Podia
sentir os olhos dele em suas costas, enquanto abria as cortinas e olhava para a escuridão lá fora,
tentando encontrar um meio de fazê-lo entender.
- Eu disse que poderia ser feliz morando aqui - começou calmamente -, porque estaríamos trabalhando
juntos para construir uma vida nova. Eu me sentiria útil, necessária. E ainda poderia sentir-me assim,
mas você não permitiria.
Atrás de si, ouviu Ramon levantar-se e aproximar-se, e sua voz adquiriu um tom mais determinado:
- Você vai começar a reconstruir a Galverra International, e eu sempre trabalhei com recursos
humanos. Tenho muita prática na contratação de pessoal, com faixas salariais, regulamentos do
governo e procedimentos legais... Eu poderia ajudá-lo, mas você não me deixaria.
As mãos dele pousaram em seus ombros, mas Katie recusou-se a se virar, enquanto prosseguia:
222
- Sei como se sente em relação a mulheres que trabalham fora de casa... Você deixou isso bem claro
naquele dia do nosso piquenique. Disse que quando uma mulher tem um emprego, está mostrando ao
mundo que o marido não consegue sustentá-la como ela gostaria. Disse que ofende seu orgulho e...
Ramon pressionou-lhe os ombros.
- Vire-se e olhe para mim, Katie - ele interrompeu-a com delicadeza.
Ela obedeceu, quase esperando que ele fosse silenciá-la com um beijo. Em vez disso, Ramon encarou-a
com seriedade.
- Katie, um homem sempre é sensível demais em relação ao seu orgulho quando sabe, no fundo do
coração, que tem muito pouco do que se orgulhar. - Segurou-lhe o rosto, fitando-a profundamente. -
Dizer a uma mulher onde é o seu ”lugar” é uma forma que os homens encontraram de tentar fazer com
que ela se contente com menos do que tem o direito de esperar. Eu tinha vergonha do pouco que podia
lhe oferecer naquela época, mas acreditava que poderia fazê-la sentir-se feliz e satisfeita aqui, vivendo
simplesmente como minha esposa. Estava tentando convencê-la de que isso era o certo, porque era o
único futuro que poderia lhe oferecer. Porém, eu ficaria muito orgulhoso, e muito contente, de tê-la
trabalhando comigo, a partir de agora.
Ramon virou a cabeça abruptamente, e Katie seguiu seu olhar. Um facho de luz abria uma trilha
vagarosa colina acima, na direção da casa. Eduardo, com uma lanterna de mão, vinha caminhando para
”resgatá-la”.
Katie olhou para Ramon, mas, em vez de mostrar-se irritado pelo inesperado aparecimento de Eduardo,
ele sorria, pensativo.
- Em que está pensando? - ela perguntou, intrigada. Ramon fitou-a com doçura, os olhos repletos de
amor.
- Estou decidindo o que lhe dar como presente de casamento.
Katie abraçou-o com força. Você é o meu presente, pensou, com uma ternura quase dolorosa.
- Será que posso escolher? - indagou, em tom de brincadeira.
- Sim, entre um bebé e uma Ferrari - ele respondeu sorrindo, enlaçando-a pela cintura. - Certa vez você
disse que uma Ferrari tornaria sua vida ”absolutamente fantástica”.
- Pois acho que prefiro ter um bebé - Katie riu. Ramon riu também, mas tinha toda a intenção de lhe dar
os dois presentes.
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CAPÍTULO 21
NUMA LINDA TARDE de um domingo de junho, Katherine Elizabeth Connelly caminhou lentamente
pelo corredor de uma antiga igrejinha em estilo espanhol, passando pelas fileiras de rostos sorridentes
dos habitantes do vilarejo, indo ao encontro de seu destino.
Com os raios do sol penetrando suavemente pelos vitrais, ela entregou sua mão ao homem alto e
moreno que a esperava no altar, e com as bênçãos de um padre solene, cujos olhos azuis sorriam de
alegria, tornou-se a sra. Katherine de Galverra.
Ramon olhava para a bela mulher ao seu lado, para seus cabelos ruivos e reluzentes enfeitados de
flores. Ouviu-a proferir os votos do casamento, enquanto outras imagens dela dançavam em sua mente:
Katie parecendo tão linda e triste, e totalmente indiferente, naquele bar de solteiros onde haviam se
encontrado, três semanas antes...
Katie, entregando-lhe uma nota de 5 dólares: ”Por favor, aceite, Ramon. Tenho certeza de que vai
precisar”.
Katie, com os olhos brilhando de revolta naquele piquenique, enquanto o acusava de ser um ”macho
chauvinista”. ”Você pode ficar surpreso em saber, mas nem todas as mulheres nascem com um desejo
ardente de picar cebolas e ralar queijo.”
Katie, dançando em seus braços na festa da piscina, os lábios ainda quentes de seus beijos apaixonados,
os olhos sombrios e apreensivos... ”Acho que estou ficando com medo.”
E agora, Katie ao seu lado na igreja. Virando-se para ele e dizendo:
- Eu, Katherine, aceito você, Ramon, como meu marido...
Olhando para ela, Ramon sentiu que poderia explodir de tanta felicidade. Seu rosto corado de alegria
era uma imagem que, ele sabia, nunca mais iria esquecer; as palavras ditas com tanta suavidade eram
uma bênção que guardaria para sempre no coração.
A lembrança continuava vívida e vibrante várias horas depois, quando sua esposa finalmente foi até
ele, o esplendor de seu corpo nu banhado pelo luar que penetrava pelas janelas do chalé. Ramon
observou-a, ansiando por dar-lhe o mundo inteiro, porque ela já lhe dera tanto, muito mais do que isso.
O amor preencheu-o por inteiro quando Katie abraçou-o, e seus corpos se encontraram. A ternura
emergiu de dentro dele no momento em que, sem vacilar, ela recebeu-o repleta de amor.
Moveram-se ao mesmo tempo, duas pessoas amando-se, imersas no poder maravilhoso do amor, até
que Katie finalmente gritou de prazer, tremendo em seus braços. Ramon continuou abraçando-a,
sussurrando seu nome, sabendo que acabara de lhe dar o seu melhor presente. Ele lhe dera a si mesmo.

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