segunda-feira, 17 de junho de 2013

Quando ela se foi



O Arqueiro
Geraldo Jordão Pereira (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos, quando foi
trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes
como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles
Chaplin.
Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração
de leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do
Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos
mestres, de Brian Weiss, livro que deu origem à Editora Sextante.
Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de
ele ser lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante,
foi certeira: o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais
de todos os tempos.
Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo
desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.
Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais
acessíveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a
esta figura extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas
verdadeiramente importantes e não perder o idealismo e a esperança diante dos
desafios e contratempos da vida.
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Título original: Long Lost
Copyright © 2009 por Harlan Coben
Copyright da tradução © 2011 por Editora Arqueiro Ltda.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios
existentes sem autorização por escrito dos editores.
tradução: Marcelo Mendes
preparo de originais: Sheila Til
revisão: Luis Américo Costa e Taís Monteiro
projeto gráfico e diagramação: Valéria Teixeira
capa: Raul Fernandes
imagem de capa: Arnaud Chicurel / Hemis / Corbis / Latinstock
geração de ePub: Marcelo Morais
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
C586q
Coben, Harlan, 1962-
Quando ela se foi [recurso eletrônico] / Harlan Coben [tradução
de Marcelo Mendes]; São paulo: Arqueiro, 2011.
recurso digital
Tradução de: Long lost
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Multiplataforma
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-8041-035-8 (recurso eletrônico)
1. Ficção policial americana. 2. Livros eletrônicos. I. Mendes,
Alves. II. Título.
11-7702 CDD: 813
CDU: 821.111(73)-3
Todos os direitos reservados, no Brasil, por
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– Esta obra foi postada pela equipe iOS Books em parceria com o
grupo LegiLibro para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o
benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la. Dessa
forma, a venda desse eBook ou até mesmo a sua troca por qualquer
contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância.
A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto
distribua este livro livremente.
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Para Sandra Whitaker
PARTE UM
Espere um pouco.
Isto doerá mais do que qualquer outra coisa já doeu.
– William Fitzsimmons, “I Don’t Feel It Anymore”
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1
– VOCÊ NÃO CONHECE O SEGREDO DELA – disse-me Win.
– E deveria?
Ele apenas deu de ombros.
– É grave? – perguntei.
– Muito.
– Então talvez eu não queira saber.
Dois dias antes de descobrir o segredo que ela havia guardado a sete
chaves por quase uma década, algo aparentemente pessoal demais,
que nos devastaria e mudaria nosso mundo para sempre, Terese
Collins me ligou às cinco da manhã, transportando-me de um sonho
quase erótico para outro. Sem rodeios, ela disse:
– Venha para Paris.
Fazia uns sete anos que eu não ouvia sua voz. Além disso, a ligação
estava ruim e ela dispensou qualquer preâmbulo, sequer se dando o
trabalho de dizer um “alô, como vai?”. Virei na cama e disse:
– Terese? Onde você está?
– No D’Aubusson. É um hotelzinho aconchegante na margem esquerda
do Sena. Você vai adorar. Tem um voo da Air France que sai às
sete da noite.
Terese Collins. Recostei-me na cabeceira enquanto as imagens invadiam
minha mente: o olhar hipnotizante, o biquíni que faria qualquer
um perder a cabeça, a praia na pequena ilha particular com areias
douradas pelo sol, o biquíni que faria qualquer um perder a cabeça...
O biquíni merece dupla menção.
– Não posso – falei.
– Paris – provocou ela.
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– Eu sei.
Uns 10 anos atrás, nós dois fugimos juntos para uma ilha. Depois
daquilo, pensei que nunca mais nos veríamos, mas estava enganado.
Alguns anos mais tarde, ela ajudou a salvar a vida do meu filho. E depois,
puf, desapareceu do mapa. Até agora.
– Pense bem – insistiu ela. – É a Cidade Luz. A gente pode fazer
amor a noite inteira.
Engoli em seco e disse:
– Tudo bem, mas e de dia? A gente faz o quê?
– Se não me falha a memória, você vai precisar de um pouco de
descanso.
– E de vitamina E para ajudar no desempenho – emendei, sorrindo
sem querer. – Não posso, Terese. Estou com outra pessoa.
– A viúva do 11 de Setembro?
Fiquei me perguntando como Terese poderia saber disso.
– É – falei.
– Mas não tem nada a ver com ela.
– Eu acho que tem.
– Você está apaixonado?
– Faria alguma diferença se eu dissesse que sim?
– Na verdade, não.
Passei o telefone para a outra mão e disse:
– O que é que está acontecendo, Terese?
– Não está acontecendo nada. Só queria passar um fim de semana
romântico e sexy com você. Liberar as fantasias.
Engoli em seco novamente.
– Há quanto tempo a gente não se fala? Uns sete anos?
– Quase oito.
– Eu liguei para você – comentei. – Muitas vezes.
– Eu sei.
– Deixei recados. Mandei cartas. Tentei encontrar você.
– Eu sei – repetiu ela.
Seguiu-se um silêncio. Não gosto de silêncio.
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– Terese?
– Quando você precisou de mim – disse ela –, quando precisou de
verdade, eu não deixei você na mão, deixei?
– Não, não deixou.
– Venha para Paris, Myron.
– Assim, de uma hora para outra?
– É.
– Por onde você andou esse tempo todo?
– Quando você chegar eu conto.
– Não posso. Sou um cara comprometido.
Silêncio outra vez.
– Terese?
– Você se lembra de quando a gente se conheceu?
Havia sido logo depois da maior tragédia da minha vida. Acho que o
mesmo poderia ser dito dela. Assim como a mim, um amigo bem-intencionado
a havia levado a um evento beneficente. No momento em
que nossos olhares se cruzaram, foi como se a dor de um tivesse o
efeito de um ímã sobre o outro. Não sou desses que acreditam que os
olhos são a janela da alma. Já conheci uma quantidade mais que suficiente
de psicopatas para saber que não se pode acreditar em uma
balela dessas. Mas a tristeza era mais do que evidente nos olhos de
Terese. Na verdade, emanava do corpo inteiro. E, naquela noite, em
que minha própria vida estava despedaçada, era exatamente disso que
eu precisava.
Uma amiga de Terese tinha uma pequena ilha no Caribe, não muito
longe de Aruba. Fugimos naquela mesma noite, sem dizer a ninguém
para onde íamos. Acabamos passando três semanas lá, fazendo amor
quase sem dizer nada, desfazendo-nos e desaparecendo um no outro,
porque isso era tudo.
– Claro que lembro – falei.
– Nós estávamos arrasados. Não falamos disso um com o outro em
nenhum momento, mas ambos sabíamos.
– É verdade.
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– Seja lá o que aconteceu com você – disse Terese –, você conseguiu
ir em frente. O que é natural. A gente cai e levanta. É destruído e se
refaz.
– E você?
– Não consegui me refazer. Acho que nem quis. Eu estava despedaçada
e talvez fosse melhor continuar assim.
– Não sei se entendi.
– Achei que... – ela quase sussurrou. – Quer dizer, ainda acho que
não quero saber como será meu mundo depois de reconstruído. Acho
que não vou gostar do resultado.
– Terese?
Ela não respondeu.
– Quero ajudar – falei.
Mais silêncio.
– Esqueça que eu liguei, Myron. Se cuida.
E desligou.
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2
– AH – DISSE WIN –, A FASCINANTE Terese Collins. Aquilo, sim, é um
derrière de primeira linha. Qualidade internacional.
Estávamos sentados nas frágeis arquibancadas do ginásio da Kasselton
High. O cheiro habitual de suor e desinfetante pairava no ar.
Como em qualquer ginásio de escola, todos os sons ali eram distorcidos
e os ecos funcionavam como uma barreira, uma cortina entre
nós e o restante das pessoas.
Adoro ginásios como este. Cresci dentro deles. Muitos dos meus
momentos mais felizes aconteceram em lugares abafados como este,
com uma bola de basquete nas mãos. Adoro os ruídos dos dribles. O
suor que brota na testa dos jogadores durante o aquecimento. A
sensação da textura da bola. Aqueles momentos em que nossos olhos
se fixam no aro e arremessamos a bola, ela alça voo girando e é como
se o resto do mundo deixasse de existir, uma experiência quase
religiosa.
– Que bom que você se lembra dela.
– Um derrière de primeira linha. Qualidade internacional.
– Não precisa repetir.
Win havia sido meu colega de quarto na Universidade Duke e depois
se tornou meu sócio. Ele e Esperanza Diaz eram meus melhores
amigos. Seu nome completo era Windsor Horne Lockwood III e se encaixava
como uma luva à sua aparência: cabelos louros e finos divinamente
partidos, olhos azuis, um rosto bonito de pele rosada e feições
nobres e um bronzeado em V no pescoço, resultado das muitas horas
jogando golfe. Usava calças cáqui caríssimas, com vincos tão meticulosos
quanto a linha que dividia seus cabelos. Hoje vestia um blazer da
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Lilly Pulitzer azul de forro rosa e verde e um lenço no bolso combinando.
Parecia aquelas flores de palhaço que espirram água.
Roupa de fresco.
– Quando Terese aparecia na TV – disse Win, o sotaque esnobe adquirido
em escolas de elite dando a impressão de que ele estava explicando
o óbvio a uma criança meio lerda –, não dava para saber. Ela
ficava sentada atrás da bancada do telejornal.
– Sei.
– Mas depois, quando a vi naquele biquíni...
Para os que estão prestando atenção, esse seria o biquíni que mencionei
antes, o que faria qualquer um perder a cabeça.
– Bem, trata-se de um patrimônio e tanto. Um desperdício para alguém
que fica escondido atrás de uma bancada. Uma tragédia, por assim
dizer.
– Como o dirigível Hindenburg – falei.
– Muito engraçada a sua comparação – disse Win. – E, sobretudo,
muito atual.
Havia sempre uma expressão de arrogância no rosto do meu amigo.
As pessoas olhavam para ele e logo percebiam aquele aspecto elitista e
esnobe de quem é muito rico há gerações e gerações. E não se enganavam
de todo. Mas ele não era só isso. Havia também outro lado,
não tão visível, que poderia deixar um homem gravemente ferido.
– Vamos lá – disse ele. – Termine sua história.
– Já terminei.
Win arqueou as sobrancelhas.
– Então, quando é que você vai para Paris? – perguntou.
– Não vou.
Na quadra, começava o segundo quarto do jogo de basquete dos
alunos do quinto ano. Jack estava no time. Ele era o caçula dos dois
filhos de Ali Wilder, minha namorada (a palavra é um tanto esquisita,
mas não creio que “caso”, “cara-metade” ou “companheira” sejam
melhores). Jack não jogava muito bem. Não digo isso para julgar ou
depois dizer que o garoto pode ter muito sucesso no futuro (Michael
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Jordan só conseguiu virar titular do time da escola no penúltimo ano),
mas apenas a título de observação. Jack era grande para sua idade,
forte e alto, o que em geral causa certa lerdeza e falta de coordenação.
Ele se movia de modo pesado.
Mas adorava jogar, e para mim isso bastava. Jack era um bom garoto,
aficionado por computador (no melhor sentido possível) e sobretudo
muito carente, como poderíamos esperar de alguém que havia
perdido o pai tão cedo e de maneira tão trágica.
Ali só poderia chegar mais tarde, no terceiro quarto, e eu, no mínimo,
sou um cara prestativo.
Win ainda estava com as sobrancelhas arqueadas.
– Deixe-me ver se entendi direito – começou ele. – Você recusou o
convite para passar um fim de semana em um charmoso hotel em Paris
na companhia da fascinante Sra. Collins e de seu derrière de
primeira linha?
Era sempre um equívoco falar de mulheres com o Win.
– Isso mesmo – respondi.
– Mas por quê?
Win se virou para mim. Parecia genuinamente inconformado. De
repente suavizou a expressão.
– Espera aí.
– Que foi?
– Ela engordou, não é?
Coisas do Win.
– Não faço a menor ideia.
– Então qual é o problema?
– Você sabe. Estou namorando.
Win me olhou como se eu estivesse usando a quadra como vaso
sanitário.
– Que foi? – perguntei.
Ele se recostou na arquibancada.
– Você parece uma mocinha! – bufou.
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O jogo foi interrompido e Jack tirou os óculos, movendo-se pesadamente
até a mesa dos juízes com seu adorável meio sorriso inocente.
Os garotos da Livingston High estavam jogando contra os arqui-inimigos
da Kasselton. Eu fazia o possível para não rir diante de tamanha
seriedade – nem tanto a dos garotos, mas a dos pais nas arquibancadas.
Não sou de generalizar, mas acho que posso dizer que as mães se
dividiam em dois grupos: as tagarelas, que aproveitavam a oportunidade
para socializar, e as histéricas, cujo coração vinha à boca sempre
que seus rebentos tocavam a bola.
Os pais muitas vezes eram mais problemáticos. Alguns conseguiam
conter o nervosismo, resmungando por entre os dentes ou roendo as
unhas. Outros berravam a plenos pulmões, reclamando de juízes, técnicos
e jogadores.
Um desses, sentado duas fileiras à nossa frente, de tão irrequieto
parecia ter síndrome de Tourette. O sujeito simplesmente não conseguia
se conter: tudo e todos ao redor o incomodavam. Tenho uma
perspectiva bem mais clara a respeito disso do que a maioria das pessoas.
Já fiz parte daquela espécie rara de atleta realmente talentoso. O
que foi uma grande surpresa para minha família, já que a maior
façanha esportiva dos Bolitar, antes de mim, havia sido a vitória de
meu tio Saul em uma partida de malha durante uma viagem de navio
em 1974. Terminei o ensino médio na Livingston High como um astro
do basquete, digno de reportagem na revista Parade. Fui o destaque
da defesa do time da Universidade Duke e capitão da equipe em nossos
dois títulos da liga universitária. Cheguei a ser selecionado, logo
na primeira rodada de contratações, para jogar no Boston Celtics.
Depois... cabum! Foi tudo pelos ares.
– Substituição! – gritou alguém.
Jack ajustou os óculos e correu para a quadra.
O técnico dos adversários apontou para ele e berrou:
– Connor! Vai nesse cara. Ele é grande e lerdo. Sua jogada é nele.
O da síndrome de Tourette reclamou:
– O placar está pau a pau! Pra que colocar o garoto agora?
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“Grande e lerdo”? Será que ouvi direito?
Olhei para o técnico da Kasselton. O sujeito tinha cabelos clareados
com luzes e espetados com gel, além de um cavanhaque escuro meticulosamente
aparado, como se fosse um ex-baixista de boy band. Só
que era grandalhão – tenho 1,93m e ele devia ser uns cinco centímetros
mais alto, além de uns 10 ou 15 quilos mais pesado que eu.
– “O cara é grande e lerdo” – repeti para o Win. – Dá para acreditar
que o infeliz foi capaz de gritar uma coisa dessas?
Win deu de ombros.
Como ele, tentei não fazer tempestade em copo d’água. Ânimos exaltados.
Deixa estar.
O placar estava empatado em 24 pontos quando veio o desastre. Foi
logo depois de um pedido de tempo. A equipe de Jack estava dando a
saída de bola sob a cesta dos adversários. Os jogadores da Kasselton
cerraram a marcação em cima deles, mas Jack estava livre. Ele recebeu
o passe e a defesa entrou em ação. Por um instante, o garoto ficou
confuso. Acontece.
Jack olhou ao redor procurando ajuda. Virou-se para o banco da
Kasselton, que estava mais próximo, e o técnico de cabelos espetados
berrou:
– Arremesse! Arremesse!
Ele apontava para o aro. O aro errado.
– Arremesse! – berrou de novo.
E Jack, que naturalmente gostava de agradar e confiava nos adultos,
arremessou.
A bola entrou. Dois pontos. Para o adversário.
Os pais que estavam na torcida da Kasselton vibraram, muitos irrompendo
em gargalhadas. Os que estavam na torcida da Livingston
levaram as mãos à cabeça lamentando-se e condenando o erro de um
garoto do quinto ano. O técnico com cavanhaque de boy band
cumprimentou seu assistente, apontou para Jack e berrou:
– Aí, garoto, é assim que se faz!
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Jack talvez fosse o jogador mais alto naquela quadra, mas agora
dava a impressão de que tentava a todo custo encolher e sumir. O
meio sorriso inocente já não estava mais lá. Os lábios tremiam. Os olhos
piscavam. Cada centímetro de seu corpo se retraía, assim como
meu coração.
Um dos pais da Kasselton decidiu jogar lenha na fogueira. Rindo,
improvisou um megafone com as mãos e gritou:
– Passa a bola pro grandalhão da Livingston! É nosso melhor
jogador!
Win o cutucou nos ombros.
– É melhor calar a boca agora mesmo.
Virando-se para trás, o sujeito se deparou com as roupas afrescalhadas,
os cabelos cor de palha e as feições de porcelana de meu amigo.
Estava prestes a abrir um sorriso de sarcasmo e dar uma resposta
qualquer, mas foi detido por algo, provavelmente o último instinto de
sobrevivência daquele cérebro de réptil. Intimidado pelo olhar gélido
de Win, baixou a cabeça e disse:
– Desculpe. Exagerei na dose.
Quase não ouvi o que ele disse. Sequer conseguia me mexer. Senteime
novamente e fiquei olhando para o técnico de cabelos espetados, o
sangue fervendo nas veias.
A campainha soou para anunciar o fim do segundo quarto. O técnico
ainda ria e balançava a cabeça, perplexo. Um de seus assistentes
se aproximou para cumprimentá-lo, seguido de alguns dos pais e
espectadores.
– Agora preciso ir – disse Win.
Permaneci calado.
– Quer que eu fique? Para alguma eventualidade?
– Não.
Win se despediu com um breve meneio da cabeça e saiu. Eu ainda
encarava o técnico da Kasselton. Então me levantei e desci as arquibancadas.
Meus passos ribombavam feito trovão. O técnico seguiu
na direção do banheiro. Fui atrás. Ele entrou, rindo como o babaca
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que com certeza era. Fiquei esperando do lado de fora. Assim que o
sujeito saiu, falei:
– Ética exemplar.
Na camisa dele estava bordado em letra cursiva: “técnico Bobby”.
Ele parou e arregalou os olhos.
– Como?
– Mandar um garoto de 10 anos arremessar para a cesta errada –
falei. – E, depois de humilhar o infeliz, ainda dizer “é assim que se
faz!”. Sua ética é exemplar, Bobby.
O técnico estreitou os olhos. De perto, ele era ainda maior. Tinha
braços fortes, nós salientes nos dedos e sobrancelhas de um homem
de Neandertal. Eu conhecia bem o tipo. Todo mundo conhece.
– Faz parte do jogo, camarada.
– Ridicularizar um garoto de 10 anos faz parte do jogo?
– Confundir a cabeça dele. Forçar o adversário a cometer um erro.
Não falei nada. Ele me lançou um olhar de avaliação e concluiu que
podia me enfrentar. Gorilas feito ele não costumam fugir. Eu o encarava
fixamente.
– Algum problema? – provocou Bobby.
– São garotos de 10 anos.
– Sim, eu sei. E você é o quê? Um desses papais molengas, esses
bundas-moles que acham que todos devem ser tratados de modo igual
na quadra? Que ninguém pode ser magoado, que ninguém deveria
ganhar ou perder? De repente nem deveria ter placar, certo?
Um dos membros da equipe da Kasselton se aproximou. A camisa
dele informava: técnico assistente Pat.
– Ei, Bobby – chamou ele. – O terceiro quarto já vai começar.
Dei um passo adiante e disse:
– Só pare com isso.
Com o sorrisinho de praxe, Bobby mandou sua réplica igualmente
previsível:
– Senão você vai fazer o quê?
– O garoto é muito sensível.
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– Que peninha. Se ele é tão sensível assim, talvez não devesse jogar.
– Ou talvez você não devesse ser técnico.
O assistente Pat se adiantou e ficou olhando para mim, estampando
no rosto o sorriso de reconhecimento que eu vira tantas vezes.
– Ora vejam só! – disse.
– Que foi? – perguntou Bobby.
– Sabe quem é esse aí?
– Quem?
– Myron Bolitar.
Dava para ver que o técnico Bobby estava tentando se lembrar do
nome. Era como se houvesse uma janelinha na testa dele através da
qual se veria um hamster correndo dentro de uma roda, acionando as
engrenagens. Quando as conexões se estabeleceram no cérebro, ele
abriu um sorriso sarcástico tão largo que por pouco não rasgou o
cavanhaque.
– O “prodígio” – disse, fazendo as aspas com os dedos – que não
teve colhões para ficar na liga profissional? O mundialmente famoso
amarelão da NBA?
– Esse mesmo – respondeu o assistente.
– Agora entendi.
– Olha só, Bobby – falei.
– Que foi?
– Deixe aquele garoto em paz. É só o que tenho a dizer.
Bobby franziu a testa e disse:
– Você não vai querer me peitar, vai?
– Não, não vou. Só quero que você deixe o garoto em paz.
– Sem chance, meu amigo.
Ele sorriu e deu um passo na minha direção.
– E aí, algum problema? – provocou.
– Um problemão.
– Então que tal a gente resolver esse problema mais tarde, depois
do jogo? De homem para homem.
Meu sangue começou a ferver nas veias.
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– Está me chamando pra briga?
– Estou. A não ser, claro, que você seja um banana. Você é?
– Não sou um banana.
Às vezes mando muito bem nas minhas respostas. Não deixo o nível
da discussão cair.
– Ainda tenho um jogo a terminar. Mas depois a gente resolve essa
questão, só você e eu. Entendido?
– Entendido.
Mais uma réplica brilhante. Estou inspirado.
Bobby apontou o dedo para a minha cara. Cogitei arrancá-lo com os
dentes – é uma estratégia infalível para pôr a pessoa em seu lugar.
– Você é um homem morto, Bolitar. Está ouvindo? Um homem
morto.
– Um homem mouco?
– Um homem morto.
– Ah, bom, porque, se eu fosse surdo, não poderia ouvir você.
Pensando bem, se estivesse morto, também não.
A campainha tocou. Pat, o assistente, disse:
– Vamos, Bobby.
– Um homem morto – repetiu o técnico pela terceira vez.
Levei a mão ao ouvido como se estivesse com dificuldade para
ouvir.
– O quê? – berrei, mas ele já havia me dado as costas.
Fiquei olhando o sujeito. Bobby andava com uma postura arrogante,
os ombros jogados para trás e os braços balançando de um modo
quase exagerado. Eu estava prestes a berrar mais alguma idiotice
quando alguém tocou meu braço. Virei-me. Era Ali.
– O que houve? – perguntou ela.
Ali tinha enormes olhos verdes, além de um rosto largo, lindo, que
para mim eram irresistíveis. Minha vontade era tomá-la nos braços e
sufocá-la de beijos, mas o lugar talvez não fosse o mais apropriado.
– Nada – respondi.
– Como foi o jogo até agora?
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– Estamos perdendo por dois pontos.
– Jack fez alguma cesta?
– Não, acho que não.
Ali avaliou minha expressão por um instante e encontrou algo de
que não gostou. Virei o rosto e voltei para a arquibancada. Sentei-me.
Ali se sentou ao meu lado. Dali a dois minutos, perguntou:
– Então, qual é o problema?
– Problema nenhum.
Tentei me acomodar melhor na arquibancada desconfortável.
– Mentiroso – disse Ali.
– Estou ligado no jogo, só isso.
– Mentiroso.
Olhei de relance para ela, admirando aquele rostinho adorável, as
sardas que lhe davam um ar de adolescente e a deixavam ainda mais
charmosa, e também notei algo.
– Você parece um pouco distraída.
Não apenas hoje, pensei. Já fazia duas semanas que as coisas andavam
meio estranhas entre nós. Ali vinha mantendo certa distância,
parecia preocupada e se recusava a se abrir comigo. De minha parte,
eu andava bastante ocupado com o trabalho, portanto não tinha insistido
em descobrir o que era.
Sem tirar os olhos da quadra, ela disse:
– O Jack jogou bem?
– Jogou – respondi. E fui logo dizendo: – A que horas é seu voo
amanhã?
– Às três.
– Vou levá-los ao aeroporto.
Erin, a filha de Ali, estava para se matricular na Universidade do
Estado do Arizona. Ali e Jack iam acompanhar a garota até o campus e
ficar lá por uma semana, até que ela se instalasse por completo.
– Não precisa. Já aluguei um carro.
– Então vou dirigindo.
– Não precisa.
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E com isso ela pôs fim ao assunto. Tentei relaxar e acompanhar o
jogo. Meus batimentos cardíacos ainda estavam a mil. Dali a pouco,
Ali perguntou:
– Por que você não tira o olho do outro técnico?
– Que técnico?
– Aquele lá, com cavanhaque de Robin Hood e cabelo de apresentador
de TV que exagerou na água oxigenada.
– O que precisa de um barbeiro decente.
Ali quase sorriu.
– Jack já ficou muito tempo em quadra?
– Mais ou menos o de sempre.
O jogo terminou. Vitória de Kasselton, com três pontos de diferença.
A multidão vibrou. O técnico de Jack, que era um bom sujeito,
achara melhor poupar o garoto na segunda metade da partida. Ali
ficara um tanto incomodada porque, de modo geral, ele dava oportunidade
igual a todos os garotos, mas decidiu deixar as coisas como
estavam.
As equipes se dispersaram para a conversa pós-jogo de sempre. Ali
e eu ficamos esperando junto à porta do ginásio, no corredor da
escola. Não demorou muito para que Bobby aparecesse, caminhando
na minha direção com a mesma arrogância de antes, mas agora com
os punhos cerrados. Estava acompanhado de mais três homens, entre
eles o assistente Pat, todos grandes e balofos, mas bem menos intimidantes
do que pensavam ser. Bobby parou à minha frente, a mais ou
menos um metro de distância. Os três companheiros se alinharam e
cruzaram os braços, encarando-me.
Por um momento ninguém disse nada. Eles apenas me olharam de
cara feia.
– É agora que eu devo mijar nas calças? – falei.
Bobby apontou o dedo para a minha cara novamente.
– Sabe onde fica um bar chamado Landmark, em Livingston?
– Claro que sei.
– Hoje, às 10 da noite. Estacionamento dos fundos.
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– Papai não me deixa sair a essa hora. Além disso, não sou um
qualquer. Você vai ter de me convidar para jantar. E levar flores.
– Se você não der as caras – ameaçou ele, o dedo quase roçando
meu nariz –, arrumo outro jeito de acertar as contas com você depois.
Entendeu?
Não entendi, mas antes que eu pudesse pedir qualquer tipo de explicação,
ele saiu pisando forte, seguido dos capangas. A certa altura,
eles se viraram para trás e aproveitei a oportunidade para acenar um
delicado adeusinho. Um dos capangas continuou a me encarar, então
soprei um beijo na direção dele. O sujeito virou o rosto como se tivesse
levado um tapa.
Soprar um beijo: meu golpe preferido contra homofóbicos.
Olhei para Ali e, percebendo a expressão no rosto dela, pensei:
xiiiiii...
– Que diabos foi isso? – perguntou ela.
– Aconteceu uma coisa antes de você chegar.
– O quê?
Contei a ela o episódio com Jack.
– E você foi tirar satisfação com o técnico, é isso?
– É.
– Mas por quê? – perguntou ela.
– Como por quê?
– Você só fez piorar as coisas. Aquele cara é um metido. Os garotos
sabem disso.
– Jack estava quase chorando.
– Pois deixe que eu cuide disso. Não preciso de nenhum macho alfa
para me ajudar.
– Não se trata disso. Eu só queria que ele parasse de infernizar o
Jack.
– Foi por isso que ele ficou no banco. O técnico provavelmente viu
seu showzinho e foi inteligente o bastante para não colocar lenha na
fogueira. Está contente agora?
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– Ainda não – respondi. – Só depois de destruir a cara dele hoje à
noite. Aí, sim, acho que vou ficar contente.
– Nem pense em fazer uma coisa dessas.
– Você ouviu o que ele disse.
– Não posso acreditar – disse Ali, balançando a cabeça. – Que diabos
deu em você?
– Só quis defender o Jack.
– Esse não é seu papel. Você não tem esse direito. Você não...
Ela se calou de repente.
– Continue. Diga.
Ali fechou os olhos.
– Você tem razão – disse eu. – Não sou o pai dele.
– Não era isso que eu ia dizer.
Era, sim, mas deixei passar.
– Tudo bem, talvez esse não seja o meu papel – comecei. – Mas a
questão não é essa. Eu teria enfrentado aquele cara mesmo que a confusão
tivesse sido com outro garoto.
– Por quê?
– Porque está errado.
– E quem é você para julgar?
– Julgar? Existe o certo e existe o errado. E ele estava errado.
– Ele é um babaca arrogante. Algumas pessoas são assim. É a vida.
Jack entende isso ou vai acabar entendendo com o tempo. Faz parte
do amadurecimento: aprender a lidar com babacas. Você não
entende?
Permaneci calado.
– E se meu filho foi tão humilhado assim – prosseguiu Ali entre
dentes –, quem você pensa que é para não me contar? Eu perguntei o
que vocês estavam falando durante o intervalo, lembra?
– Lembro.
– Você disse que não era nada. O que estava passando na sua
cabeça? “Vou mostrar àquela mulher como se faz”, é isso?
– Claro que não.
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Ali balançou a cabeça e ficou calada.
– Que foi? – perguntei.
– Deixei que você se aproximasse demais dele.
Senti meu coração despencar em queda livre.
– Droga! – desabafou ela.
Fiquei esperando o que viria depois.
– Para um cara tão legal e tão observador, você às vezes é muito
tapado.
– Talvez eu não devesse ter ido atrás do cara, mas se você estivesse
aqui quando ele ficou zombando do Jack, se tivesse visto a carinha
dele...
– Não estou falando disso.
Parei um instante, pensando.
– Então você está certa. Sou mesmo um tapado.
Ali é uns 30 centímetros mais baixa que eu. Ela se aproximou de
mim e ergueu o rosto.
– Não estou indo para o Arizona para ajudar Erin a se instalar. Ou
pelo menos não só para isso. Meus pais moram lá. E os pais dele
também.
Eu sabia muito bem a quem se referia esse “dele”: o falecido marido
de Ali, o fantasma com que aprendi a conviver, que às vezes até admirava.
Um fantasma que nunca ia embora. Nem sei se deveria ir, mas
de vez em quando eu me pegava torcendo para que fosse. Claro, isso é
uma coisa horrível de se desejar.
– Eles... quer dizer, os avós, todos vêm pedindo que a gente se mude
para lá. Querem ficar mais próximos dos netos. O que não é má ideia.
Fiz que sim com a cabeça, mas só porque não sabia o que mais
fazer.
– Jack e Erin... eu também, nós todos precisamos disso.
– Do quê?
– Família. Os pais dele precisam fazer parte da vida do Jack. Eles
não suportam mais esse clima frio daqui. Você entende?
– É claro.
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As palavras soaram estranhas a meus ouvidos, como se outra pessoa
as tivesse dito.
– Meus pais encontraram um apartamento e querem que a gente dê
uma olhada – disse Ali. – Fica no mesmo condomínio em que eles
moram.
– É muito bom morar em condomínio – falei, jogando conversa
fora. – Não precisa se preocupar com a manutenção do prédio. É só
pagar as taxas mensais e pronto, não é?
Ali não se deu o trabalho de responder.
– Então – falei –, indo direto ao ponto: o que isso significa para
nós?
– Você quer se mudar para Scottsdale? – perguntou ela.
Hesitei.
Ali colocou a mão em meu braço e disse:
– Olhe para mim.
Olhei e então ela disse algo que eu jamais poderia ter imaginado:
– Não íamos ficar juntos para sempre, Myron. Nós dois sabemos
disso.
Um bando de garotos passou correndo por nós. Um deles esbarrou
em mim e chegou até a se desculpar. Um juiz soprou seu apito. A campainha
tocou.
– Mãe?
Jack, que Deus o abençoe, apareceu no corredor. Ali e eu imediatamente
nos recompusemos e abrimos um sorriso. Jack não sorriu.
Normalmente, mesmo que tivesse metido os pés pelas mãos durante o
jogo, ele deixava a quadra saltitando feito um canguru, distribuindo
sorrisos e erguendo o braço para bater na mão de qualquer um que o
cumprimentasse. Era parte do charme do garoto. Mas, dessa vez, não.
– E aí? – falei, por não ter o que mais dizer.
Muitas vezes, em situações semelhantes, as pessoas dizem “Você
jogou muito bem!”, mas as crianças sabem que é mentira, que estão
sendo tratadas com condescendência, e isso só piora as coisas.
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Jack correu na minha direção, passou os braços ao redor de mim e
afundou o rosto em meu peito, chorando. Mais uma vez senti meu coração
se partir. Fiquei parado, amparando a cabeça do garoto. Ali observava
meu rosto. Não gostei do que vi.
– Foi um dia ruim, não foi? – disse eu. – Todo mundo tem dias ruins
às vezes. Não precisa ficar assim, está bem? Você deu o seu melhor
e é só isso que a gente pode fazer. – Então falei algo que o garoto jamais
entenderia, mas que era absolutamente verdade: – Esses jogos
nem são tão importantes assim.
Ali colocou as mãos sobre os ombros do filho, que se virou para
abraçá-la. Ficamos assim por um instante, até que ele se acalmou.
Então eu bati palmas, forcei um sorriso e disse:
– E aí, alguém está a fim de um sorvete?
Jack não pensou duas vezes:
– Eu!
– Hoje, não – disse Ali. – Precisamos fazer as malas e preparar as
coisas para a viagem.
Jack fez uma careta de decepção.
– Fica para outro dia – disse ele.
Pensei que o garoto fosse mandar o tradicional “aaaaah, mãe”, mas
talvez ele tivesse percebido, assim como eu, algo diferente na voz de
Ali. Inclinou a cabeça para o lado e, sem dizer mais nada, virou-se
para se despedir. Deu um soquinho no meu punho, como a gente
sempre fazia, e saiu rumo à porta.
Com os olhos, Ali sinalizou para que eu olhasse para a direita. Para
o técnico Bobby.
– Você não ouse levar essa história adiante – disse ela.
– Ele me desafiou – argumentei.
– Homem que é homem não se rebaixa a uma situação dessas.
– No cinema, talvez. Na Terra do Nunca, no País das Maravilhas.
Mas, na vida real, quem não se rebaixa a uma situação dessas é considerado
um grande covarde.
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– Então, por mim. Pelo Jack. Não vá àquele bar hoje à noite. Prometa
que não vai.
– Ele falou que, se eu não aparecer, vai me procurar depois.
– Puro gogó. Prometa.
Ela me olhou nos olhos.
Eu hesitei, mas não por muito tempo.
– Tudo bem, prometo.
Ali se virou para ir embora. Sem beijo, nem no rosto.
– Ali?
– Oi.
De uma hora para outra, o corredor me pareceu deserto.
– Nós estamos terminando?
– Você quer se mudar para Scottsdale?
– Precisa de uma resposta agora?
– Não. Mas já sei qual é. E você também.
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3
NÃO SEI AO CERTO QUANTO TEMPO se passou. Provavelmente um ou
dois minutos. Então saí andando para o carro. O dia estava cinza.
Uma chuvinha fina me acolhia. Parei um instante, fechei os olhos, ergui
o rosto para o céu. Pensei em Ali. Pensei em Terese em um hotel
em Paris.
Baixei a cabeça, dei mais dois passos adiante e foi então que avistei
o técnico Bobby e seus asseclas dentro de um Ford Expedition.
Suspiro.
Lá estavam os quatro: Pat, o assistente, se encontrava ao volante;
Bobby, no banco do carona. Outros dois armários vinham no banco de
trás. Peguei meu celular e liguei para o Win, que atendeu ao primeiro
toque.
– Articule – disse ele.
É assim que Win sempre atende o telefone, mesmo vendo no identificador
que sou eu quem está ligando. Sim, é muito chato.
– É melhor você voltar – falei.
– Ah! – exclamou ele, feliz como criança em manhã de Natal.
– Quanto tempo você leva para chegar aqui?
– Não estou longe. Já desconfiava que alguma coisa assim pudesse
acontecer.
– Não vá atirar em ninguém – adverti.
– Sim, mamãe.
Meu carro estava próximo aos fundos do estacionamento. O Expedition
foi me seguindo lentamente. A chuvinha foi engrossando aos
poucos. Imaginei qual seria o plano deles – alguma coisa de macho
pra valer, só podia – e decidi deixar rolar.
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O Jaguar de Win surgiu e ficou esperando ao longe. Meu carro é um
Ford Taurus, também conhecido como “Isca de Sereias”. Win o detesta
e se recusa a entrar nele.
Tirei as chaves do bolso e acionei o controle remoto. Bip-bip. Entrei.
O Expedition entrou em ação. Avançou rapidamente e parou bem atrás
do Taurus, bloqueando o caminho. Bobby foi o primeiro a descer,
cofiando o cavanhaque. Os capangas saltaram em seguida.
Exalei um suspiro e, pelo retrovisor, vi o grupo se aproximando.
– Posso ajudar em alguma coisa?
– Ouvi o pé na bunda que você levou.
– É falta de educação ouvir a conversa dos outros, Bobby.
– Pensei que você fosse mudar de ideia, que não fosse aparecer.
Então achei melhor resolver essa história logo de uma vez. Aqui
mesmo.
Bobby baixou o rosto a poucos centímetros do meu.
– A menos que você vá amarelar.
– Nossa! Você comeu cebola crua no almoço?
O Jaguar de Win parou ao lado do Expedition. Bobby deu um passo
para trás e estreitou os olhos. Win saiu do carro. Os quatro homens olharam
para ele, surpresos.
– Quem é esse aí?
Win sorriu e acenou como se entrasse no palco de um talk show
agradecendo os aplausos da plateia.
– É um prazer estar com vocês – falou. – Muito obrigado, muito
obrigado.
– Um amigo – falei. – Veio para equilibrar as forças.
– Equilibrar as forças? Com isso aí?
Bobby riu, os companheiros lhe fazendo eco.
– Ah, sim, claro – continuou ele.
Win se aproximou um pouco dos três capangas. Desci do carro.
– Vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai esquecer – anunciou
Bobby.
Dei de ombros e disse:
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– Manda bala.
– Aqui tem muito movimento. Tem uma clareira na mata logo atrás
daquele campo – disse ele, apontando para o lugar. – Lá ninguém vai
atrapalhar.
– Ah, agora fiquei curioso – interveio Win. – Como você sabe da
clareira?
– Estudei nesta escola. Já quebrei a cara de muita gente por lá.
Juro que Bobby estufou o peito.
– Também fui capitão do time de futebol americano.
– Uau – disse Win, sem se alterar. – Você me empresta a jaqueta do
time? Quero usar no baile de formatura.
Bobby apontou um dedo carnudo na direção de Win.
– Vai usar para enxugar o sangue do seu corpo se não fechar essa
matraca.
Win fingiu que ia desmaiar.
Lembrando-me da promessa que havia feito a Ali, falei:
– Olha, nós dois somos adultos.
As palavras saíam da minha boca como se eu estivesse cuspindo cacos
de vidro.
– Já estamos velhos demais para ficar por aí alimentando hostilidades
– completei.
Olhei de relance para Win, que franzia a testa.
– Será que ouvi direito? – falou ele. – Você disse “alimentando
hostilidades”?
Então Bobby passou para o terreno pessoal.
– Vai amarelar? – disse.
De novo essa palavra.
Mas eu era homem, e homem que é homem não se rebaixa a uma
situação dessas. Tudo bem.
– Sim, vou – respondi. – Está feliz agora?
– Ouviram isso, rapazes? O cara vai amarelar!
Senti o estômago revirar, mas decidi permanecer forte. Ou fraco,
dependendo do ponto de vista. Pois é. Eu sou assim: não me rebaixo.
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Acho que nunca vi Win tão desapontado.
– Você se incomoda de tirar o carro agora, para que eu possa sair? –
falei.
– Tudo bem – disse Bobby. – Mas depois não vá dizer que não
avisei.
– Avisou o quê?
Novamente ele passou para o terreno pessoal.
– Você não quer brigar, tudo bem. Mas, nesse caso, de agora em diante
o seu garoto não vai ter paz.
Senti o sangue fazer pressão nos meus ouvidos.
– Do que você está falando?
– Aquele garoto que fez a cesta contra. Pelo resto da temporada, vai
ser meu alvo predileto. Toda vez que eu tiver a oportunidade de dar
um golpe baixo, vou dar. Toda vez que eu puder infernizar o pateta,
vou infernizar.
É possível que minha boca tenha se escancarado, não tenho certeza.
Olhei para Win para saber se tinha ouvido direito. Ele já não parecia
tão desapontado assim. Esfregava as mãos uma na outra.
– Está falando sério? – perguntei a Bobby.
– Tão sério quanto um infarto.
Novamente me lembrei da promessa que tinha feito a Ali. Devia
haver alguma forma legalmente plausível de quebrá-la. Depois que
uma lesão dera fim à minha carreira no basquete, precisei provar ao
mundo que minha vida ia muito bem, obrigado. Então fui estudar
direito – em Harvard. Myron Bolitar era o pacote completo: advogado
e atleta, um homem instruído e atraente. Pois bem: eu tinha um diploma
em direito. Portanto, devia ser capaz de encontrar uma brecha
legal a meu favor.
O que eu havia prometido exatamente? Relembrei as palavras de
Ali: “Não vá àquele bar hoje à noite. Prometa que não vai.”
Bem, aquilo não era um bar, era? Apenas um descampado nas imediações
de uma escola. Tudo bem, eu estava indo contra o espírito da
lei, mas não contra a letra. E a letra era o que importava no caso.
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– Vamos lá – falei.
Então saímos os seis na direção da tal mata. Win praticamente saltitava.
Uns 20 metros depois das primeiras árvores, havia uma clareira.
O chão estava cheio de pontas de cigarro e latas de cerveja. Adolescentes.
Certas coisas não mudam nunca.
Bobby tomou seu lugar no centro da clareira. Acenou para que eu
me juntasse a ele. E lá fui eu.
– Senhores – disse Win –, um momento de sua atenção antes que
eles comecem.
Todos os olhos se voltaram para ele, que estava junto de uma árvore
gigantesca com Pat e os outros dois armários.
– Eu estaria sendo indolente se deixasse de promulgar esta importante
advertência.
– Que língua você está falando, camarada? – perguntou Bobby.
– Não foi a você que me dirigi. A advertência é para seus
companheiros.
Win correu os olhos pelo rosto dos três.
– É possível que, a certa altura, vocês fiquem tentados a intervir e
ajudar o técnico Bobby. Isso seria um terrível equívoco. O primeiro
que der sequer um passo na direção deles será hospitalizado. Observem
que não falei “detido”, “agredido” ou tampouco “ferido”. Eu
disse “hospitalizado”.
Os três continuaram apenas a olhar para ele.
– Advertência feita – concluiu Win, e então se virou para mim e
Bobby. – Agora, sim, podemos voltar à contenda, tal como
programada.
Bobby olhou para mim e disse:
– De que planeta ele veio?
Mas a essa altura eu não estava mais para conversa fiada. A raiva
me consumia. O que é ruim. Em uma luta, é preciso manter a calma,
evitar que o coração dispare, que a adrenalina nos paralise.
Bobby olhou para mim. Pela primeira vez, percebi algum indício de
hesitação nos olhos dele. Mas então me lembrei de como ele havia
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gargalhado depois de apontar para a cesta errada e de que ainda havia
zombado de Jack: “Aí, garoto, é assim que se faz!”
Respirei fundo.
Bobby ergueu os punhos como um pugilista. Fiz o mesmo, mas com
uma postura bem menos rígida. Mantive os joelhos flexionados,
movimentando-me sem sair do lugar. Bobby era um homem grande,
um brigão de rua acostumado a intimidar os oponentes. Mas não era
páreo para mim.
Algumas dicas rápidas sobre a arte da luta. Regra principal: nunca
se sabe o que vai acontecer. Qualquer um pode acertar um golpe por
mera sorte. Excesso de confiança é sempre um erro. Mas a verdade era
que o técnico Bobby não tinha a menor chance. Não estou dizendo
isso para me gabar. Apesar da crença de quase todos aqueles pais na
arquibancada – que contratam treinadores particulares para os filhos
e sobrecarregam os garotos com todo tipo de atividade inútil –, de
modo geral os campeões já nascem assim. Tudo bem: garra, treino e
experiência também contam muito, mas o grande diferencial é o talento
inato.
Natureza versus cultura, o velho dilema. A natureza vence sempre.
Fui dotado de reflexos absurdamente rápidos e de uma excelente
coordenação motora. De novo, não estou me gabando. É como a cor
dos cabelos, a altura, a audição. Nascemos assim ou assado e pronto.
Sequer estou me referindo aos anos de treinamento a que me submeti
para aperfeiçoar o corpo e aprender a lutar. Apesar de também ser um
dado relevante.
Bobby fez justamente o que eu previa. Deu um passo adiante e desferiu
um gancho. Não é um golpe lá muito eficaz contra um lutador
experiente, porque, para todos os efeitos, a menor distância entre dois
pontos é uma reta. É sempre útil pensar nisso antes de sair por aí distribuindo
socos.
Desloquei-me para a direita. Não muito. Apenas o suficiente para
desviar o golpe dele com a mão esquerda e permanecer perto o
bastante para contra-atacar. Ele deixara a guarda aberta. O tempo
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agora parecia correr lentamente. Eu tinha diversos alvos entre os
quais escolher.
Optei pela garganta.
Dobrei o braço direito e o afundei no pomo de adão de Bobby, que
exalou um grunhido.
A luta acabava ali mesmo. Eu sabia disso. Ou pelo menos deveria
saber. Eu devia ter recuado e deixado o sujeito arfar até cair no chão.
Mas as palavras dele ainda rodopiavam na minha cabeça.
“Aí, garoto, é assim que se faz!... Pelo resto da temporada, vai ser
meu alvo predileto... Toda vez que eu tiver a oportunidade de dar um
golpe baixo, vou dar... Vai amarelar?”
Eu devia ter deixado que ele se esborrachasse no chão. Devia ter
perguntado se ele já se dava por satisfeito e colocado um ponto final
na história. Mas a besta-fera agora estava solta. Não havia como
contê-la. Dobrei o braço esquerdo e girei furiosamente no sentido
anti-horário. Minha intenção era plantar uma bela cotovelada no rosto
do grandalhão.
Seria um golpe devastador, percebi enquanto girava. Desses que
afundam os ossos da face. Que resultam em cirurgia e meses de
analgésicos.
No último segundo, contudo, recobrei o juízo. Não parei, mas consegui
me refrear um pouco. Em vez de acertar em cheio o rosto de
Bobby, meu cotovelo atingiu apenas o nariz dele, produzindo um estalo
semelhante a gravetos se partindo. O sangue começou a jorrar.
Bobby desabou no chão.
– Bobby!
Era Pat, o assistente. Virando-me para ele, ergui as mãos e berrei:
– Fique onde está!
Tarde demais. Pat avançava com os punhos cerrados.
Win quase não precisou se mexer. Apenas ergueu a perna e chutou
o joelho esquerdo do infeliz, fazendo com que a patela se deslocasse de
um modo nada natural. Pat deu um berro de dor e foi ao chão como se
tivesse levado um tiro.
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Win abriu um sorriso e arqueou as sobrancelhas na direção dos outros
dois armários.
– Próximo!
Nenhum deles disse ou fez nada. Mal ousavam respirar.
Minha fúria se dissipou imediatamente. Bobby agora estava de joelhos,
as mãos no nariz como se fosse um animal ferido. Olhei para ele.
É impressionante como, depois de uma surra, um homem parece uma
criança.
– Deixe-me ajudar – falei.
O sangue jorrava do nariz de Bobby, atravessando os dedos.
– Vá se catar! – retrucou ele.
– Você precisa pressionar um pouco para conter o sangue.
– Cai fora, já disse!
Eu já ia dizendo algo em minha defesa quando senti alguém pousar
a mão em meu ombro. Era Win, que balançava a cabeça como se
quisesse dizer: “Deixe para lá, não adianta.” Ele estava certo.
Saímos da clareira sem dizer nada.
Uma hora depois, quando cheguei em casa, encontrei dois recados
na secretária eletrônica. Ambos curtos e diretos. Não posso dizer que
o primeiro me surpreendeu. Cidade pequena é assim: as notícias ruins
se espalham rápido.
“Não acredito que você quebrou sua promessa”, dizia Ali.
E só.
Exalei um suspiro. Violência não resolve nada. Win fazia careta
quando me ouvia dizer isso, mas era verdade: sempre que eu recorria
à violência – o que acontecia com certa regularidade –, a coisa nunca
parava por ali. A violência irradia, se espalha, segue ecoando como se
nunca fosse terminar.
O segundo recado era de Terese:
“Por favor, venha.”
Nenhuma tentativa de disfarçar o desespero.
Dali a dois minutos, meu celular vibrou. O identificador de chamadas
exibia o nome de Win.
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– Temos um probleminha – disse ele.
– Que foi?
– O tal Pat, que cedo ou tarde precisará de cirurgia ortopédica...
– O que tem ele?
– É da polícia de Kasselton. Capitão, mas não vou pedir o uniforme
dele emprestado para usar no baile de formatura.
– É mesmo? – falei.
– Parece que estão falando em ordem de prisão.
– Mas eles que começaram.
– Foi – disse Win. – E todo mundo na cidade vai acreditar em nós,
em vez de em um capitão da polícia local e três homens que moram lá
desde sempre.
Fazia sentido.
– Mas então pensei – prosseguiu ele. – Que tal passarmos algumas
semanas na Tailândia enquanto meu advogado cuida disso?
– A ideia até que não é má.
– Conheço um novo clube para cavalheiros em Bangcoc, nas imediações
da rua Patpong. Podemos começar nossa visita por lá.
– Hum... acho que não.
– Myron, o puritano. Seja como for, acho prudente que você desapareça
por um tempo também.
– É o que vou fazer.
Desligamos. Disquei o número da Air France.
– Ainda há lugar no voo de hoje à noite para Paris?
– Seu nome, senhor?
– Myron Bolitar.
– Seu bilhete já está reservado e emitido. Janela ou corredor?
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4
USEI MINHAS MILHAS PARA CONSEGUIR um upgrade. Não faço questão
de bebida à vontade, tampouco de comida um pouco melhor, mas o
espaço livre para as pernas é sempre uma bênção. Quando viajo na
classe econômica, invariavelmente me sento entre dois brutamontes
ansiosos por espaço e atrás de uma velhinha que, embora sequer consiga
tocar o chão com os pés, insiste em reclinar a poltrona o máximo
possível e sente um prazer quase sexual em ouvi-la esmagar meus
joelhos. Ela se estica de tal modo que dá para eu passar o voo inteiro
procurando caspas em seu couro cabeludo.
Eu não tinha o número de telefone de Terese, mas lembrava o nome
do hotel, D’Aubusson. Liguei para lá e deixei um recado dizendo que
estava a caminho. Entrei no avião e pluguei os fones do iPod. Rapidamente
me deixei levar por aquela letargia dos voos. Pensava em Ali, a
primeira mulher com filhos que namorei, ainda por cima viúva, e no
momento em que ela me deu as costas após dizer: “Não íamos ficar
juntos para sempre, Myron...”
Ela estaria certa?
Tentei imaginar a vida sem Ali Wilder.
Seria possível que eu amasse aquela mulher? Sim, seria.
Até então eu havia amado três mulheres. A primeira foi Emily
Downing, uma namoradinha dos tempos da Universidade Duke, que
acabou me trocando por um rival da Carolina do Norte. A segunda, o
mais próximo que já tive de uma cara-metade, foi a escritora Jessica
Culver. Jessica também esmagou meu coração como se ele fosse um
copinho descartável – pensando melhor, talvez tenha sido eu quem fez
isso com ela, já nem sei. Amei aquela mulher com todas as forças, mas
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não foi suficiente. Hoje ela está casada. Com um sujeito chamado
Stone. Juro por Deus. Stone, de pedra.
A terceira... bem, a terceira é Ali Wilder. Fui o primeiro homem com
quem ela se relacionou depois que o marido morreu na torre norte, no
11 de Setembro. Nosso amor era forte, mas também mais calmo, mais
maduro, e talvez o amor não devesse ser assim. Eu sabia que o fim de
nossa relação doeria, mas não seria devastador. Perguntava-me se isso
também era fruto da maturidade ou se, depois de tantas desilusões, a
gente naturalmente fica mais cauteloso.
Ou talvez Ali tivesse razão. Não ficaríamos juntos para sempre.
Simples assim.
Há um velho ditado iídiche que, infelizmente, vem a calhar: “O
homem planeja e Deus ri.” Sou um exemplo vivo. Fui um astro do basquete
durante toda a juventude, destinado a uma carreira de sucesso
na NBA, jogando pelo Boston Celtics. Mas, logo nas eliminatórias da
primeira temporada, fui atropelado pelo gigante Burt Wesson, que
destruiu meu joelho. Eu lutei, tentei voltar, mas, nesse caso, querer
não é poder. Minha carreira acabou quase antes de começar.
Além disso, meu destino era ser um chefe de família, exatamente
como o homem que eu mais admirava na vida: Al Bolitar, meu pai. Ele
havia casado com sua amada Ellen, minha mãe, e depois se mudado
para o subúrbio de Livingston, em Nova Jersey, onde trabalhou duro e
fez churrascos no quintal para a família. Pois assim deveria ter sido
minha vida: marido exemplar, um par de pimpolhos, tardes inteiras
passadas nas arquibancadas de uma quadra de basquete admirando
os filhotes, talvez um cachorro, uma cesta de basquete enferrujada no
quintal de casa, passeios no shopping nos fins de semana... Bem, acho
que já dá para ter uma ideia.
Mas cá estou, um quarentão solteiro e sem família.
– Aceita uma bebida? – ofereceu a comissária.
Não sou muito de beber, mas pedi um uísque com club soda, o
drinque preferido de Win. Precisava de alguma coisa para me
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anestesiar um pouco, ajudar no sono. Novamente fechei os olhos. De
volta à deslembrança. Deslembrar era bom.
Então, onde Terese Collins, a mulher por quem eu estava cruzando
o oceano, se encaixava nessa história toda?
Nunca pensei em Terese em termos de amor. Pelo menos não nos
moldes tradicionais. Pensava em sua pele macia, no cheiro de
manteiga de cacau. Na dor que emanava dela. Na maneira como fizemos
amor naquela ilha, feito dois náufragos perdidos. Depois
daqueles dias, quando Win por fim apareceu em um iate para me resgatar,
eu já me sentia bem mais forte. Terese, não. Nós nos despedimos,
mas nossa história não terminou ali. Terese me acudiu quando
mais precisei, oito anos atrás, e depois desapareceu na própria dor.
Agora estava de volta.
Por oito anos, Terese Collins desapareceu não só para mim, mas
também para seu público. Na década de 1990, ela foi muito conhecida,
âncora da CNN, e depois, puf, evaporou.
O avião aterrissou e taxiou até o portão de desembarque. Peguei
minha bagagem de mão (era só o que eu levava, pois não planejava
passar mais que algumas noites fora) e comecei a imaginar o que estaria
à minha espera. Fui o terceiro a descer e, com minhas passadas
largas, rapidamente alcancei a área de imigração e alfândega. Achei
que não me demoraria ali, mas três outros voos haviam chegado ao
mesmo tempo e o saguão estava apinhado.
A fila serpenteava entre cordas, nos moldes da Disneylândia, mas
andava rápido. De modo geral, os agentes não faziam mais que acenar
para que as pessoas seguissem em frente, dando aos passaportes
apenas uma olhadela protocolar. Quando chegou minha vez, a agente
da imigração olhou para o passaporte, depois para meu rosto, de volta
para o passaporte e mais uma vez para mim. Demorou-se um instante.
Sorri para ela, mas sem exagerar na dose do charme Bolitar. Não
queria que a pobrezinha arrancasse as roupas ali, na frente de todo
mundo.
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De repente ela desviou o olhar, como se eu tivesse dito alguma grosseria,
e acenou para um colega do sexo masculino. Quando me encarou
novamente, decidi aumentar a dose. Alargar o sorriso. Botar para
quebrar.
– Por favor – disse ela, séria –, aguarde aqui ao lado.
Eu ainda sorria feito um idiota.
– Por quê?
– Meu colega cuidará do seu caso.
– Eu sou um “caso”?
– Um passo para o lado, por favor.
Eu estava bloqueando a fila e os passageiros atrás de mim pareciam
irritados. Obedeci.
– Venha comigo, por favor – disse o outro agente uniformizado.
Eu não estava gostando nem um pouco daquilo, mas fazer o quê?
Fiquei pensando: caramba, por que eu? Talvez houvesse alguma lei
francesa que proibisse tanto charme. Se não houvesse, deveria haver.
O homem me conduziu até uma saleta sem janelas. As paredes eram
bege e nuas. Atrás da porta havia dois ganchos com cabides. As cadeiras
eram de plástico. Em um dos cantos se via uma mesa. O agente
tomou minha bolsa, colocou-a sobre essa mesa e vasculhou o
conteúdo.
– Esvazie os bolsos, por favor. Coloque tudo nesta bandeja. Tire os
sapatos.
Obedeci. Carteira, BlackBerry, moedas, sapatos.
– Vou ter de revistá-lo.
E assim ele fez. Com muita dedicação, diga-se de passagem. Cogitei
fazer alguma piada, perguntar se ele estava se divertindo, sugerir que
seria mais simpático me levar para um passeio pelo rio Sena antes de
me apalpar daquela forma. Mas logo me lembrei do senso de humor
dos franceses: Jerry Lewis ainda era um grande ídolo entre eles.
Talvez fazer uma careta engraçada fosse mais apropriado.
– Por favor, sente-se.
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Sentei-me e o agente deixou a saleta, levando consigo a bandeja
com meus pertences. Durante meia hora fiquei sozinho ali, tomando
um chá de cadeira. A coisa parecia séria.
Dali a pouco dois homens vieram ao meu encontro. O primeiro era
mais jovem, com seus 20 e tantos anos, bem-apessoado, com cabelos
cor de areia e aquela barba por fazer que os garotões deixam quando
querem parecer mais velhos. Usava calça jeans, botas e uma camisa
com as mangas dobradas até os cotovelos. Ele se recostou contra a
parede e cruzou os braços, mascando um palito.
O segundo tinha uns 50 anos e usava óculos enormes de aro de metal.
Os cabelos grisalhos ralos eram partidos tão perto das orelhas que
quase denunciavam uma estratégia para esconder a calvície. Secava as
mãos com uma toalha de papel quando chegou. A jaqueta cinza parecia
ter sido sucesso na década de 1980.
Uma afronta à elegância francesa.
Foi o mais velho quem tomou a palavra:
– Qual é o propósito da sua viagem?
Olhei para ele, depois para o mascador de palitos e novamente para
o cinquentão.
– Quem são vocês? – perguntei.
– Sou o capitão Berleand. E este é o agente Lefebvre.
Cumprimentei o agente com um aceno de cabeça. Ele prosseguiu
com seu palito.
– O propósito de sua viagem – repetiu Berleand. – Trabalho ou
lazer?
– Lazer.
– Onde vai ficar?
– Em Paris.
– Que lugar de Paris?
– Hotel D’Aubusson.
O capitão não tomou nota. Nenhum dos dois tinha papel ou caneta.
– Ficará sozinho? – perguntou ele.
– Não.
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Berleand ainda enxugava as mãos com sua toalha de papel. Parou
um instante para ajeitar os óculos sobre o nariz. Vendo que eu não
pretendia dizer mais nada, arqueou as sobrancelhas e perguntou:
– Não?
– Vou me encontrar com uma amiga.
– O nome de sua amiga.
– Isso é mesmo necessário? – perguntei.
– Não, Sr. Bolitar. Só estou perguntando porque sou xereta.
Os franceses e seu sarcasmo.
– O nome de sua amiga, por favor.
– Terese Collins – respondi.
– Qual é a sua profissão, Sr. Bolitar?
– Sou empresário.
Berleand ficou confuso. E Lefebvre, ao que tudo indicava, não falava
inglês.
– Represento atores, atletas, escritores, artistas em geral –
expliquei.
Berleand balançou a cabeça, satisfeito. A porta se abriu. O agente
que me levara à sala passou a Berleand a bandeja com meus pertences.
Ele a colocou sobre a mesa, junto da bolsa. Novamente
enxugou as mãos.
– O senhor não viajou junto com a Sra. Collins, viajou?
– Não. Ela já está em Paris.
– Compreendo. Quanto tempo o senhor pretende ficar na França?
– Não sei ao certo. Duas ou três noites.
Berleand olhou para Lefebvre. O agente assentiu com a cabeça,
despregou-se da parede e saiu rumo à porta.
– Desculpe o incômodo – disse o capitão. – Tenha uma boa estadia.
E saiu também.
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5
TERESE COLLINS ESPERAVA por mim no lobby do hotel.
Ela me abraçou, mas não muito forte. Seu corpo se apoiou no meu,
mas suavemente, nada parecido com aqueles abraços em que um desaba
sobre o outro. Ambos fomos comedidos nesse nosso primeiro encontro
depois de oito anos. Apesar disso, enquanto nos abraçávamos,
fechei os olhos e tive a impressão de sentir outra vez aquele cheirinho
de manteiga de cacau.
Meu pensamento voou para a ilha no Caribe ou, mais especificamente,
verdade seja dita, para o sexo avassalador que fizemos lá:
aqueles apertões e unhadas que nos fazem entender de um modo nada
sadomasoquista como a dor – a dor metafísica – e o prazer não só se
misturam como também se alimentam mutuamente. Nenhum de nós
estava interessado em palavras, sentimentos, mãos dadas, gestos
falsos, nem mesmo em abraços. Tudo isso parecia açucarado demais.
Era como se qualquer carinho pudesse explodir a frágil bolha que
temporariamente nos protegia.
Terese soltou o abraço. Continuava sendo uma mulher extraordinariamente
linda. Exibia algumas marcas do tempo, mas, no caso de
certas mulheres – talvez a maioria delas, nesta era de beleza artificial
–, envelhecer um pouco só as favorece.
– Então, o que foi que houve? – perguntei.
– É essa a frase que você preparou para me dizer depois de tantos
anos?
Apenas dei de ombros.
– A minha foi muito melhor: “Venha para Paris.”
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– Estou tentando conter meu charme – falei por fim. – Pelo menos
até descobrir qual é o problema.
– Você deve estar exausto.
– Não, tudo bem.
– Reservei um quarto para nós dois. Um conjugado. Caso a gente
queira dormir separado.
Não falei nada.
– Nossa... – disse Terese, com um sorriso. – Como é bom ver você!
Eu me sentia da mesma forma. Talvez nunca tivesse sido amor o
que havia entre nós, mas o sentimento estava lá, forte, sincero e especial.
Ali dissera que não ficaríamos juntos para sempre. No caso de
Terese, bem, provavelmente não ficaríamos juntos todos os dias, mas
havia algo que nos unia, algo difícil de definir, um sentimento que
podíamos deixar em uma gaveta durante anos sem nunca duvidar de
que ele continuaria lá. Talvez as coisas devessem mesmo ser assim.
– Você sabia que eu viria – falei.
– É, sabia. E você também saberia se tivesse me chamado.
De fato.
– Você está linda.
– Venha – disse Terese. – Vamos comer alguma coisa.
O recepcionista pegou minha bagagem e furtivamente correu os olhos
por Terese, admirando-a antes de lançar na minha direção aquele
sorrisinho de “se deu bem” que todo homem entende.
A Rue Dauphine é bastante estreita. Uma van branca havia parado
em fila dupla ao lado de um táxi, ocupando quase toda a rua. O taxista
berrava algo que me parecia obscenidades mas que também poderia
ser apenas um modo particularmente agressivo de pedir informações.
Dobramos à direita. Eram nove da manhã. As ruas de Nova York já
estariam fervilhando a essa hora, mas muitos parisienses aparentemente
ainda estavam na cama. Alcançamos o Sena na altura da Pont
Neuf. Ao longe, à nossa direita, viam-se as torres da catedral de Notre
Dame. Terese foi seguindo o rio naquela direção, passando pelas bancas
verdes famosas pelo comércio de livros antigos mas que pareciam
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mais interessadas em vender suvenires e quinquilharias a turistas desavisados.
Na margem oposta, assomava uma enorme fortaleza com
uma belíssima mansarda.
Já próximo da catedral, falei:
– Você ficaria envergonhada se eu improvisasse uma corcunda, arrastasse
a perna esquerda e gritasse “Santuário!”?
– As pessoas iam achar que você é um turista – disse Terese.
– Verdade. Talvez eu devesse comprar uma boina com meu nome
bordado na frente.
– Aí, sim, você passaria batido.
O jeito de andar de Terese ainda era um arraso: cabeça erguida, ombros
jogados para trás, postura perfeita. Mais um ponto em comum
entre as mulheres da minha vida: todas caminham com confiança.
Acho sexy quando a mulher chega a um lugar como se fosse dona dele,
uma fera farejando as presas em seu próprio território.
Paramos em um bistrô com mesinhas externas em Saint Michel. O
céu ainda estava cinzento, mas o sol lutava para se impor. Terese
sentou-se e por um bom tempo ficou apenas analisando meu rosto.
– Tem alguma coisa no meu dente? – perguntei.
Terese riu e disse:
– Nossa! Como senti sua falta!
As palavras ficaram ali, pairando no ar. Talvez ela quisesse de fato
dizer aquilo, talvez estivesse apenas sendo influenciada pela cidade.
Paris é assim. Muito já foi escrito sobre seus encantos e tudo é a mais
pura verdade, claro. Cada prédio é uma pequena maravilha arquitetônica,
um deleite para os olhos. Paris é como uma mulher que
sabe que é linda, gosta de ser e, portanto, não precisa fingir nada. É
maravilhosa e ponto final.
Mais que isso: Paris faz a pessoa se sentir – não há palavra mais adequada
– viva. Ou melhor, faz com que deseje se sentir viva. Em Paris,
se quer fazer, saborear, ser. A gente quer sentir, apenas sentir, seja lá
o que for. Todas as sensações se ampliam. Paris dá vontade de chorar
e rir e amar e escrever um poema e fazer amor e compor uma sinfonia.
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Terese esticou o braço sobre a mesa e segurou minha mão.
– Você podia ter ligado – falei. – Nem que fosse para dizer que estava
bem.
– Eu sei.
– Continuo no mesmo lugar. Meu escritório ainda é na Park Avenue.
Ainda divido um apartamento com Win no edifício Dakota.
– E comprou a casa dos seus pais em Livingston – acrescentou ela.
Não era uma frase a troco de nada. Terese sabia da casa. Sabia do
meu relacionamento com Ali. Queria deixar claro que vinha acompanhando
minha vida.
– Você sumiu de uma hora para outra – falei.
– Eu sei.
– Tentei encontrá-la.
– Eu sei.
– Dá para parar de ficar repetindo “eu sei”?
– Tudo bem.
– Então, o que foi que aconteceu?
Ela puxou o braço de volta e olhou para o Sena. Um jovem casal
passou por nós discutindo em francês. A garota parecia furiosa. A
certa altura, pegou uma latinha amassada e arremessou contra a
cabeça do rapaz.
– Você não entenderia – disse Terese.
– Isso é pior do que “eu sei”.
Quanta tristeza naquele sorriso que ela abriu...
– Eu estava ferida demais. Teria arrastado você para o fundo do
poço comigo. Gosto de você o bastante para não querer que isso
acontecesse.
Eu entendia – e, ao mesmo tempo, não entendia – o que ela estava
dizendo.
– Não quero ofendê-la, mas isso me parece uma grande bobagem,
um excesso de racionalização.
– Mas não é.
– Então, por onde você andou?
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– Por aí, escondida.
– Escondida do quê?
Ela apenas balançou a cabeça.
– E por que fui convocado agora? – falei. – Não vá dizer que estava
com saudade.
– Não é isso. Quer dizer, senti saudade, sim. Você nem imagina
quanto. Mas tem razão, não foi por isso que chamei você.
– Então, por quê?
Um garçom de avental preto e camisa branca surgiu à mesa. Terese
usou seu francês fluente para fazer nosso pedido. Não falo uma palavra
sequer em francês, portanto ela poderia ter pedido qualquer coisa.
Uma sopa de parafusos, sei lá.
– Recebi um telefonema na semana passada – prosseguiu Terese. –
Do meu ex-marido.
Eu nem sabia que ela havia sido casada.
– Fazia nove anos que eu não falava com Rick.
– Nove anos – repeti. – Pouco antes de a gente se conhecer.
Ela olhou para mim.
– Eu sei, sou fera em matemática. Esse é um dos meus vários talentos.
Mas não sou de me gabar.
– Você fez as contas para saber se Rick e eu ainda estávamos casados
quando fugimos para o Caribe – disse ela.
– Não é bem isso.
– Você é tão... pudico.
– Não, não sou – retruquei, novamente pensando no sexo avassalador
que tínhamos feito naquela ilha.
– Verdade. Não é.
– Mais um dos meus talentos. Modéstia à parte.
– Ótimo. Mas pode ficar tranquilo: Rick e eu já não estávamos juntos
quando a gente se conheceu.
– O que ele queria, afinal?
– Falou que estava em Paris. Pediu que eu viesse com urgência.
– Para Paris?
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– Não, para o parque de diversões de Nova Jersey! Claro que era
para Paris!
Ela fechou os olhos. Fiquei esperando.
– Desculpe. Eu me excedi.
– Bobagem. Gosto do seu pavio curto. Que mais ele falou?
– Pediu que eu ficasse no D’Aubusson.
– E?
– E só.
Eu me ajeitei na cadeira.
– Isso foi tudo o que ele disse? – falei. – “Oi, Terese, aqui é o Rick,
seu ex-marido com quem você não fala há quase uma década. Venha
para Paris imediatamente e se hospede no D’Aubusson. Ah, é
urgente.”
– Mais ou menos isso.
– E você nem perguntou o motivo de tanta urgência?
– Você está se fazendo de bobo de propósito? Claro que perguntei.
– E?
– Ele não quis falar. Disse que precisava me ver pessoalmente.
– E você simplesmente largou tudo o que estava fazendo?
– É.
– Depois de tantos anos você... Espere aí! Você não disse que estava
se escondendo?
– Disse.
– E estava se escondendo do Rick também?
– Estava me escondendo de todo mundo.
– Onde?
– Em Angola.
Angola? Deixei este assunto para depois.
– E como foi que o Rick a encontrou?
O garçom voltou com duas xícaras de café e sanduíches que
lembravam mistos-quentes abertos.
– São chamados de “croque monsieur” – disse Terese.
Misto-quente aberto com nome metido a besta.
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– Rick trabalhava comigo na CNN – continuou ela. – Talvez seja um
dos repórteres investigativos mais competentes do mundo, mas detesta
ir ao ar, gosta é de trabalhar nos bastidores. Deve ter seguido
pistas para me encontrar, sei lá.
Terese estava mais pálida agora, claro, do que naqueles dias ensolarados
do Caribe. Os olhos azuis brilhavam menos, mas ainda se via o
aro dourado em torno das pupilas. Sempre preferi as morenas, mas
seu cabelo claro havia me conquistado.
– Tudo bem – disse. – Continue.
– Então fiz o que ele pediu. Cheguei aqui faz quatro dias. E ainda
não tive nenhuma notícia de Rick.
– Não ligou para ele?
– Não tenho o número. Rick foi bastante específico. Falou que entraria
em contato comigo assim que eu chegasse. Mas, até agora, nada.
– Então foi por isso que você me chamou?
– Foi – respondeu ela. – Você é bom em encontrar pessoas.
– Se sou tão bom assim, por que não consegui encontrar você?
– Porque não se esforçou o bastante.
O que talvez fosse verdade.
Ela se inclinou para a frente.
– Quando foi com você...
– Eu sei.
Terese não precisava dizer mais nada. Ela havia me ajudado a salvar
alguém que era muito importante para mim. Não teria conseguido
sem ela.
– Você nem tem certeza de que seu ex-marido desapareceu –
argumentei.
Terese não disse nada.
– Ele poderia só estar querendo se vingar. Talvez ache isso engraçado.
Ou, quem sabe, o que quer que tenha acontecido não fosse
tão importante assim. Ou ele simplesmente mudou de ideia.
Ela apenas continuou olhando para mim.
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– E, mesmo que ele tenha desaparecido, não sei como posso ser útil.
Em casa, sim, eu poderia fazer alguma coisa. Mas estamos em outro
país. Não falo uma palavra em francês. Win não está aqui para me
ajudar. Nem Esperanza, nem Big Cyndi.
– Mas eu estou aqui. E falo francês.
Olhei para ela. Lágrimas começavam a brotar em seus olhos. Eu já a
tinha visto arrasada, mas nunca naquele estado. Balancei a cabeça e
disse:
– O que você está escondendo de mim?
Terese fechou os olhos. Esperei.
– A voz dele... – disse ela afinal.
– O que tem a voz dele?
– Rick e eu começamos a namorar no primeiro ano da faculdade.
Ficamos casados por 10 anos. Trabalhávamos juntos quase todo dia.
– Certo.
– Sei tudo a respeito dele, conheço todas as emoções, entende?
– Acho que sim.
– Já estivemos juntos em diversas zonas de guerra. Descobrimos
câmaras de tortura no Oriente Médio. Em Serra Leoa, vimos coisas
que ser humano nenhum deveria ver. Rick sabia separar as coisas.
Sempre mantinha a calma, conseguia conter as emoções. Detestava o
drama que os noticiários de TV geralmente fazem. Já ouvi a voz dele
em todo tipo de circunstância.
Terese fechou os olhos novamente.
– Mas nunca desse jeito.
Estendi a mão sobre a mesa, mas ela não a segurou.
– Que jeito? – perguntei.
– Havia um tremor que eu nunca tinha ouvido antes. Achei que...
que talvez ele estivesse chorando. Rick parecia aterrorizado. Um
homem que até então eu nunca tinha visto sequer passar perto do
medo. Falou que eu devia me preparar.
– Preparar para quê?
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Com os olhos já inteiramente marejados, Terese uniu as mãos como
se fosse rezar e baixou a cabeça.
– Ele falou que iria me contar algo que mudaria minha vida para
sempre.
Recostei-me na cadeira, preocupado.
– Foi essa a expressão que ele usou? Mudar sua vida para sempre?
– Foi.
Terese também não tinha nenhuma inclinação para o drama. Fiquei
sem saber o que fazer.
– Então, onde o Rick mora? – perguntei.
– Não sei.
– É possível que seja em Paris?
– É.
– Você sabe se ele casou de novo?
– Não, não sei. Como eu disse antes, faz anos que não falamos um
com o outro.
Não ia ser fácil.
– Ele ainda trabalha para a CNN?
– Acho difícil.
– Talvez você pudesse me passar uma lista de amigos e parentes, só
como ponto de partida.
– Tudo bem.
As mãos tremiam quando ela levou a xícara de café à boca.
– Terese?
Ela manteve a xícara diante dos lábios, como se fosse um escudo.
– O que seu ex-marido poderia contar de tão sério a ponto de
mudar sua vida para sempre?
Terese desviou o olhar.
Ônibus vermelhos de dois andares, apinhados de turistas, circulavam
à margem do Sena. Quase todos estampavam na lateral o anúncio
de uma loja de departamentos: uma mulher muito bonita usando
uma réplica da torre Eiffel na cabeça, o que resultava em uma imagem
ridícula. A torre parecia pesada e a ponto de cair, presa somente por
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uma fita. O pescoço de cisne, inclinado para o lado, dava a impressão
de que se partiria a qualquer instante. Quem teria sido o gênio a escolher
uma imagem dessas para um anúncio de moda?
O tráfego de pedestres se intensificava. A garota que arremessara
uma latinha contra o namorado agora estava aos beijos com ele. Ah,
os franceses... Um guarda de trânsito gesticulava para que uma van
branca liberasse o caminho. Virei-me para Terese, à espera de uma resposta.
Ela pousou a xícara e disse:
– Não faço a menor ideia.
Mas percebi algo diferente na voz dela. Se estivéssemos jogando
pôquer, eu desconfiaria de um blefe. Terese não estava mentindo,
disso eu tinha certeza. Mas também não estava dizendo toda a
verdade.
– E não há nenhuma chance de que Rick esteja apenas querendo se
vingar de alguma coisa?
– Não, não há.
Ela se calou, desviou o olhar e tentou se recompor.
Eu sabia que era hora de colocar o dedo na ferida.
– O que aconteceu com você, Terese?
Ela sabia o que eu queria dizer. Não ousou olhar diretamente nos
meus olhos, só tentou dar um sorriso.
– Você também nunca disse nada – falou.
– Era nossa regra implícita naquela ilha.
– É verdade – concordou ela.
– Mas não estamos mais na ilha.
Silêncio. Ela tinha razão. Eu também não havia contado o motivo
do meu desespero, o que me levara até aquela ilha no Caribe. Talvez
fosse melhor eu dar o primeiro passo.
– Cabia a mim proteger alguém – falei. – Mas meti os pés pelas
mãos. Ela morreu por minha causa. E, para piorar as coisas, reagi
muito mal à história toda.
Violência, pensei novamente. O eco que não para de reverberar.
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– Você disse “ela” – observou Terese. – Era uma mulher que você
devia proteger?
– Era.
– Você visitou o túmulo dela. Agora eu me lembro.
Permaneci calado.
Agora era a vez de Terese. Recostei-me na cadeira, esperando que
ela se sentisse pronta para falar. Lembrei-me do que Win tinha dito
sobre o segredo dela, que era algo muito grave. Fiquei aflito. Meus olhos
dardejavam de um lado para outro e foi então que algo chamou
minha atenção.
A van branca.
Depois de um tempo, a pessoa se acostuma a viver dessa maneira.
Sempre alerta. A gente olha ao redor e, quando identifica certos
padrões, fica com a pulga atrás da orelha. Era a terceira vez que eu via
a mesma van. Ou pelo menos parecia ser a mesma van. Ela estava
perto do hotel quando Terese e eu saímos. E, na última vez que a vira,
ela estava bloqueando o caminho e um guarda de trânsito sinalizava
para que seguisse em frente.
No entanto, ela continuava no mesmo lugar.
Voltei os olhos para Terese, que, percebendo a expressão em meu
rosto, perguntou:
– Que foi?
– Acho que aquela van está nos seguindo.
Não precisei acrescentar nada do tipo “não olhe agora”. Terese era
esperta o suficiente.
– O que devemos fazer? – disse ela.
Refleti um instante. O quebra-cabeça começava a se encaixar. Rezei
para que estivesse enganado. De repente achei que toda aquela
história poderia chegar ao fim em poucos segundos. Rick, o ex-marido
de Terese, estava à nossa espreita na tal van. Era só ir até lá, abrir a
porta e arrancar o sujeito do veículo.
Levantei-me da mesa e olhei diretamente para a janela do motorista.
Se minha hipótese estivesse correta, não havia por que
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esperar. O sol refletia no vidro, mas ainda assim era possível vislumbrar
um rosto com a barba por fazer e, mais especificamente, um
palito.
Era Lefebvre, o agente do aeroporto.
Ele não tentou se esconder. Abriu a porta e saiu. Berleand, o agente
mais velho, estava no banco do passageiro e também desceu. Endireitou
os óculos e abriu um sorriso amarelo, como se estivesse se
desculpando.
Fiquei me sentindo um idiota. Os caras estavam à paisana no aeroporto.
Eu devia ter desconfiado. Agentes da imigração não trabalham
sem uniforme. E aquelas perguntas irrelevantes só podiam ser um artifício
para ganharem tempo.
Tanto Lefebvre quanto Berleand levaram a mão ao bolso. Pensei
que fossem sacar armas, mas ambos retiraram braçadeiras vermelhas
da polícia e as prenderam ao bíceps. Olhando para a esquerda, vi policiais
uniformizados caminhando na nossa direção.
Permaneci imóvel, as mãos caídas ao lado do corpo de modo que ficassem
completamente visíveis. Não fazia a menor ideia do que estava
acontecendo, mas não era hora para movimentos bruscos.
Mantive os olhos fixos em Berleand, que se aproximou da nossa
mesa, olhou para Terese e, dirigindo-se a nós dois, falou:
– Por favor, venham conosco.
– O que está acontecendo? – perguntei.
– Conversaremos sobre isso na central.
– Estamos sendo presos?
– Não.
– Então não vamos a lugar nenhum antes de sabermos do que se
trata.
Berleand sorriu e olhou para Lefebvre, que, sem deixar o palito cair,
sorriu de volta.
– Que foi? – perguntei.
– Acha que está nos Estados Unidos, Sr. Bolitar?
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– Não, mas acho que estou em uma democracia moderna, com certos
direitos inalienáveis. Ou será que estou enganado?
– Aqui não preciso de uma acusação formal para detê-los. Na verdade,
posso prendê-los por 48 horas por mero capricho.
Berleand se aproximou um pouco mais, ajeitou mais uma vez os
óculos e secou as mãos na lateral das calças.
– Portanto, repito: podem fazer a gentileza de nos acompanhar?
– Com o maior prazer – falei.
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6
TERESE E EU FOMOS SEPARADOS ali mesmo, na rua.
Lefebvre foi com ela para a van. Protestei, mas Berleand olhou para
mim com uma expressão de tédio, sugerindo que minhas palavras
seriam, quando muito, supérfluas. Ele me acompanhou até o carro da
polícia, onde um policial uniformizado esperava ao volante. Berleand
se acomodou comigo no banco de trás.
– Vai ser uma viagem longa? – perguntei.
Berleand olhou para o relógio.
– Uns 30 segundos.
Ele exagerou. Na verdade, o prédio para o qual íamos era um que eu
já tinha visto: a fortaleza do outro lado do rio. Suas mansardas eram
feitas de ardósia, bem como suas torres em forma de cone. Poderíamos
facilmente ter ido a pé. Quando nos aproximamos dela, estreitei
os olhos.
– Reconhece? – perguntou Berleand.
Não era de espantar que aquele lugar tivesse chamado minha
atenção. Dois guardas armados abriram caminho para que nosso
carro atravessasse o imponente arco da fachada principal, uma
bocarra a nos engolir. Chegamos a um grande pátio, onde ficamos cercados
por todos os lados. “Fortaleza” era a palavra ideal para aquele
lugar. Ali dentro a pessoa se sentia um prisioneiro de guerra do século
XVIII.
– Então, reconhece ou não?
Eu reconhecia, sim, sobretudo por causa dos livros de Georges Simenon,
mas também porque aquele prédio era lendário entre as
forças da lei.
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Eu me encontrava no pátio do número 36 do Quai des Orfèvres: o
quartel-general da polícia francesa. O equivalente francês da Scotland
Yard ou do FBI.
– Entãããão... – falei, olhando através da janela – seja lá o que for
este lugar, é bem grande.
– Não é onde processamos multas de trânsito – ironizou Berleand.
Ah, só mesmo os franceses. A sede da polícia era uma fortaleza
descomunal, intimidante e absolutamente linda.
– Impressionante, não é?
– Neste país, até os prédios da polícia são joias da arquitetura –
falei.
– Espere até ver o interior.
Logo me dei conta de que Berleand havia sido irônico novamente. O
contraste entre a fachada e o que havia dentro dela era estarrecedor. O
exterior havia sido criado para a eternidade. O interior tinha todo o
charme e o toque pessoal de um banheiro público de beira de estrada.
As paredes eram gelo ou talvez tivessem sido brancas e houvessem encardido
com o passar dos anos. Nenhum quadro, nenhum adorno,
mas um número suficiente de arranhões no chão para sugerir que um
tropel de saltos muito finos havia passado por ali. O assoalho era de
um linóleo tosco que pareceria antigo mesmo em um conjunto habitacional
de 1957.
Aparentemente não havia elevadores. Seguimos por uma escada
larga, uma subida lenta durante a qual fiquei com a impressão de estar
sendo exibido ao público.
– Por aqui – disse Berleand.
Segui o capitão através de um longo corredor. Fios expostos pendiam
do teto, convidando a um incêndio. Havia um forno de microondas
no chão e impressoras, computadores e monitores margeando
as paredes.
– Estão de mudança? – perguntei.
– Não.
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Berleand me levou para uma cela de uns quatro metros quadrados.
A única que se via por ali. No lugar das barras de ferro, havia vidro.
Dois bancos rentes à parede formavam um V em um dos cantos. Os
colchões eram finos e azuis, estranhamente parecidos com os das
aulas de educação física na época da escola. Dobrado sobre o banco
estava um cobertor laranja surrado, que lembrava os que as companhias
aéreas chinfrins oferecem.
Berleand estendeu o braço como se fosse um maître de restaurante
chique dando-me as boas-vindas.
– Onde está Terese? – perguntei.
Ele deu de ombros.
– Quero um advogado.
– E eu quero tomar um banho de espuma com a Catherine
Deneuve.
– Está dizendo que não tenho direito a um advogado presente durante
o interrogatório?
– Isso mesmo. Você pode falar com um advogado antes, mas ele
não poderá acompanhar o interrogatório. E vou ser honesto: a
presença de um advogado dá a impressão de que você é culpado. E
também me dá nos nervos. Portanto, não aconselho. Agora preciso ir.
A casa é sua.
Tão logo me vi sozinho, tentei refletir sobre o que estava acontecendo,
para não tomar nenhuma atitude precipitada. O colchão azul
parecia grudento. Melhor não saber por quê. O ambiente todo era
rançoso, aquela terrível mistura de medo, suor e outros fluidos corporais.
O fedor invadia minhas narinas e ali ficava. Uma hora se passou.
Ouvi o som do micro-ondas. Um guarda trouxe comida. Outra hora se
passou.
Eu me recostava contra o vidro em um pedaço relativamente limpo
que havia encontrado quando Berleand enfim voltou.
– Espero que tenha gostado das acomodações e do serviço – disse
ele.
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– A comida... Eu esperava coisa melhor, em se tratando de uma
prisão parisiense.
– Falarei com o chef pessoalmente.
Berleand destrancou a porta de vidro e eu o acompanhei por um
corredor. Achei que estivesse sendo levado para uma sala de interrogatório,
mas não. Paramos diante de uma porta com uma plaqueta ao
lado, na qual se lia: GROUPE BERLEAND. Olhei para ele.
– Seu primeiro nome é Groupe?
– Muito engraçado.
Entramos. Deduzi que “groupe” significava “grupo” e, a julgar pelo
que vi no interior da sala, estava certo. Seis mesas se apertavam no espaço
que não seria amplo nem se houvesse uma só. Decerto estávamos
no último andar, pois a inclinação da mansarda cortava boa parte do
teto. Precisei me abaixar ao entrar.
Quatro das seis mesas se encontravam ocupadas, supus que por integrantes
do Groupe Berleand. Havia monitores bem antigos,
daqueles grandalhões que ocupam quase metade da mesa, fotos pessoais,
flâmulas de times de futebol, um pôster da Coca-Cola, um
calendário de mulheres peladas... A atmosfera do lugar, que abrigava
o alto escalão da polícia francesa, não era lá muito diferente da de
uma oficina mecânica em Hoboken.
– Groupe Berleand – falei. – Quer dizer então que você é o chefe?
– Sou capitão da Brigade Criminelle. Esta é minha equipe. Sente-se.
– Onde, aqui?
– Claro. Essa é a mesa do Lefebvre. Pegue a cadeira dele.
– Não há uma sala de interrogatório neste prédio?
– Você ainda acha que está nos Estados Unidos, não é? Todos os interrogatórios
são conduzidos aqui, na sala da minha equipe.
Os outros oficiais pareciam alheios à nossa conversa. Dois tomavam
café e batiam papo. Outro digitava algo em seu teclado. Sentei-me.
Berleand pescou uma folha da caixinha de lenços de papel sobre sua
mesa e limpou as mãos mais uma vez.
– Quero saber sobre sua relação com Terese Collins – disse.
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– Por quê?
– Porque gosto de estar a par das últimas fofocas.
Apesar do quase humor, as palavras foram ditas com uma frieza
ártica.
– Qual é sua relação com Terese Collins?
– Fazia oito anos que eu não a via – respondi.
– E, no entanto, estão os dois aqui.
– Sim.
– Por quê?
– Ela me ligou e me convidou para passar uns dias em Paris.
– E você largou tudo e veio?
Minha resposta se resumiu a um erguer das sobrancelhas.
Berleand sorriu.
– Então por pouco não destruí a imagem de Paris como a cidade
dos amantes?
– Está me deixando preocupado, Berleand.
– Quer dizer então que você veio para um rendez-vous romântico?
– Não.
– Então para quê?
– Eu não sabia exatamente qual era o motivo do convite dela. Apenas
intuí que Terese estivesse com algum problema.
– E se dispôs a ajudar.
– Sim.
– Você fazia alguma ideia da natureza desse... problema?
– Antes de chegar à cidade? Não.
– E agora?
– Agora, sim.
– Se importa de me contar?
– Tenho alguma escolha? – perguntei.
– Na verdade, não.
– O ex-marido de Terese está desaparecido. Ligou para ela dizendo
que tinha algum assunto urgente, depois sumiu.
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Berleand pareceu surpreso com minha resposta. Ou talvez com
minha disposição em cooperar. Uma coisa ou outra. Acho que eu sabia
qual.
– Então a Sra. Collins ligou para você porque... porque queria que
você a ajudasse a encontrá-lo?
– Exatamente.
– Mas por que você?
– Ela acha que sou bom nesse tipo de coisa.
– Você disse que é empresário. Que representa artistas. De que
maneira isso o qualifica para encontrar desaparecidos?
– Meu trabalho é bastante pessoal. Muitas vezes tenho de fazer
coisas bem bizarras para os clientes.
– Entendo – disse Berleand.
Lefebvre entrou na sala. Ainda mascava seu palito. Cofiou os tocos
de barba, postou-se à minha direita e me fulminou com o olhar. Senhoras
e senhores, apresento-lhes o policial malvado! Olhei para Berleand
como se dissesse: “Isso é mesmo necessário?” Ele deu de
ombros.
– Você gosta da Sra. Collins, não gosta?
– Gosto.
Interpretando seu papel com todo o afinco, Lefebvre mais uma vez
olhou torto para o meu lado. Lentamente tirou o palito da boca e,
tropeçando nas consoantes, disse:
– Seu encanador de merda!
– Como?
– Você – repetiu ele, o sotaque carregado – é um encanador de
merda!
– Leve em conta que não sou nenhum profissional do ramo.
Berleand não entendeu bulhufas.
– Ele queria dizer “enganador” – expliquei.
O capitão fechou a cara. Eu entendi por quê.
– Você ama Terese Collins?
– Não sei – respondi, mais uma vez optando pela verdade.
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– Mas vocês são próximos?
– Como já disse, ficamos anos sem nos ver.
– Isso não muda nada, muda?
– Acho que não – respondi.
– Conhece Rick Collins?
Por algum motivo, ouvindo Berleand dizê-lo, fiquei surpreso que
Terese tivesse adotado o sobrenome do marido, mas, claro, eles
haviam se conhecido na universidade. Nada mais natural, imagino.
– Não, não conheço.
– Nunca o viu?
– Nunca.
– O que você pode me dizer a respeito dele?
– Porcaria nenhuma.
Lefebvre pousou a mão em meu ombro e apertou ligeiramente.
– Encanador de merda.
Olhei de volta para ele.
– Por favor, não me diga que esse palito aí ainda é o mesmo do
aeroporto. Porque se for, meu amigo, isso é muito anti-higiênico.
Berleand interveio:
– A Sra. Collins estava certa?
Virei-me para ele.
– Sobre o quê?
– Você é bom em encontrar pessoas?
Dei de ombros.
– Acho que sei onde Rick Collins está – disse eu.
Berleand olhou para Lefebvre, que endireitou o tronco.
– Sabe? Então onde ele está?
– Em um necrotério qualquer – respondi. – Alguém o matou.
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7
BERLEAND SAIU COMIGO DA SALA e dobrou para a direita.
– Aonde estamos indo? – perguntei.
Ele limpou as mãos nas calças e disse:
– Você vai ver.
Seguimos por um corredor com uma abertura lateral que dava para
uma altura de cinco andares. Uma tela de arame fechava o espaço
entre o parapeito e o teto.
– Por que a rede? – perguntei.
– Dois anos atrás, trouxemos para cá um suspeito de terrorismo. Na
verdade, uma suspeita, uma mulher. Quando passamos por aqui, ela
agarrou um dos guardas e tentou se jogar com ele neste vão.
Olhei para baixo. Um vão e tanto.
– Eles morreram?
– Não. Outro oficial os segurou pelos tornozelos a tempo. Mas agora
temos a tela.
Ele subiu dois degraus que conduziam a uma espécie de sótão.
– Cuidado com a cabeça – advertiu.
– Suspeita de terrorismo?
– Sim.
– Vocês trabalham nessa área também?
– Terrorismo, homicídio, as fronteiras já não são tão claras assim.
Entramos no sótão. Precisei me abaixar outra vez, agora bem mais
do que antes. Havia um varal com roupas penduradas.
– Vocês lavam suas roupas aqui?
– Não.
– Então, de quem são...
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– Das vítimas. É aqui que elas ficam penduradas.
– Está brincando.
– Não, não estou.
Parei um instante para examiná-las e notei uma camisa azul-escura,
rasgada e manchada de sangue.
– Pertenciam a Rick Collins?
– Venha comigo.
Berleand abriu uma janela e saltou para o telhado do prédio. Virouse
para trás e acenou para que eu o seguisse.
– Está brincando – disse eu novamente.
– Temos uma das mais belas vistas de Paris.
– Mas no telhado?
Saltei a janela e... uau, ele tinha toda a razão quanto à vista. Berleand
acendeu um cigarro e deu um trago tão longo que por pouco não
ficou apenas com cinzas entre os dedos. Depois exalou um demorado
jato de fumaça pelas narinas.
– Você costuma fazer seus interrogatórios aqui?
– Para dizer a verdade, esta é a primeira vez.
– Você pode ameaçar o interrogado e dizer que vai jogá-lo lá
embaixo.
– Não é meu estilo.
– Então por que viemos para cá?
– Agora é proibido fumar dentro do prédio e eu não estava aguentando
mais – disse ele, dando mais um trago profundo. – Eu até já estava
me acostumando a ir fumar na calçada, sabe? Descia e subia os
cinco andares para aproveitar e fazer exercício. Mas depois ficava exausto
por causa dos cigarros.
– Uma coisa anulava a outra – falei.
– Exatamente.
– Você poderia ter tentado parar.
– Aí não teria mais motivo para descer as escadas e não me exercitaria
mais. Entendeu o raciocínio?
– Mais ou menos, Berleand.
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Ele se sentou e, admirando a vista, gesticulou para que eu fizesse o
mesmo. Então lá estava eu, no telhado de uma das polícias mais famosas
do mundo, diante de uma vista estupenda da catedral de Notre
Dame.
– Agora olhe ali – disse Berleand, apontando por sobre o ombro
direito.
Olhei. Do outro lado do Sena, lá estava ela: a torre Eiffel. Sei que é
coisa de turista ficar boquiaberto com a torre Eiffel, mas não pude me
conter.
– É linda, não é? – emendou o capitão.
– Da próxima vez que for preso, preciso me lembrar de trazer uma
câmera.
Ele riu.
– Seu inglês é muito bom – falei.
– Na França começamos a aprender inglês muito cedo. Além disso,
estudei um semestre no Amherst College e, mais tarde, participei de
um intercâmbio com o FBI, um programa de dois anos em Quantico,
na Virgínia. Ah, também tenho a coleção completa dos Simpsons em
DVD, em inglês.
– Isso explica tudo.
Berleand deu mais um trago no cigarro.
– Como é que ele foi assassinado? – perguntei.
– Acho que eu deveria dizer alguma coisa do tipo: “A-ha, como você
sabe que ele foi assassinado?”
– Foi você mesmo quem disse que não é aqui que vocês processam
multas de trânsito.
– O que você tem a me dizer sobre Rick Collins?
– Nada.
– E sobre Terese Collins?
– O que você quer saber?
– Ela é muito bonita.
– É isso que você quer saber?
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– Fiz uma pequena pesquisa. Temos CNN na França também, claro.
Eu me lembro dela.
– E daí?
– E daí que, 10 anos atrás, ela estava no auge da carreira. De repente
abandonou tudo e sumiu, sem deixar nenhuma ocorrência no
Google para dar qualquer pista. Nenhuma menção a um novo
emprego, novo endereço, nada.
Permaneci calado.
– Por onde ela andou esse tempo todo? – questionou Berleand.
– Por que não pergunta a ela?
– Porque estou perguntando a você.
– Já disse. Ficamos oito anos sem nos vermos.
– E você não faz nem ideia de onde ela estava?
– Não, não fazia.
Ele abriu um sorriso malicioso e apontou o indicador na minha
direção.
– Que foi?
– Você disse “não fazia”. No passado. Isso quer dizer que agora você
sabe onde ela estava.
– Tudo bem, você me pegou.
– Então?
– Angola – falei. – Ou pelo menos foi o que ela disse.
Berleand assentiu com a cabeça. Uma sirene, talvez da polícia,
começou a urrar na rua. A sirene francesa é diferente: mais insistente,
horrível, um cruzamento de alarme de carro vagabundo com campainha
de programa de televisão – aquela irritante, que alardeia
quando o sujeito erra a resposta. Esperamos até que ela se afastasse,
restituindo o silêncio de antes.
– Você deu alguns telefonemas, não deu? – falei.
– Alguns.
– E?
Berleand não disse nada.
– Você sabe que não matei ninguém. Nem no país eu estava.
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– Sim, eu sei.
– Mas?
– Posso sugerir um cenário alternativo?
– Diga.
– Terese Collins matou o ex-marido – disse Berleand. – Precisava
se livrar do cadáver, de alguém de confiança que desse um jeito nas
coisas. Então ligou para você.
– E, quando atendi, ela disse: “Acabei de matar meu ex-marido em
Paris. Por favor, me ajude.” É isso?
– Bem, talvez ela tenha apenas chamado você até aqui. E contado o
motivo do convite depois que você chegou.
Sorri. Aquela maluquice já tinha ido longe demais.
– Você sabe que ela não me contou nada disso.
– Sei? Como?
– Estava ouvindo nossa conversa.
Berleand não me olhou dessa vez. Continuou fumando seu cigarro e
encarando a paisagem.
– Quando você me parou no aeroporto – prossegui –, colocou uma
escuta em mim, em algum lugar. Nos sapatos, talvez. Provavelmente
no celular.
Era a única coisa que fazia sentido. Eles encontraram o corpo de
Rick Collins, decerto examinaram o celular dele, descobriram que Terese
estava na cidade e grampearam o telefone dela. Depois que ela me
chamou, eles me detiveram no aeroporto para poderem plantar uma
escuta e nos vigiar.
Por isso eu havia sido tão franco com Berleand: ele já sabia todas as
respostas. Minha intenção era conquistar a confiança dele.
– Seu celular – disse, enfim, o capitão. – Substituímos a bateria por
um mecanismo de escuta que também é fonte de energia. Tecnologia
bastante recente. De ponta, eu diria.
– Então você sabe que Terese acha que o ex-marido está
desaparecido.
Berleand lentamente fez que sim com a cabeça.
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– Sabemos que é isso que ela lhe contou.
– Poxa, Berleand. Você viu, ou ouviu, o modo como ela falou. Terese
estava abalada de verdade.
– Parecia estar – afirmou ele.
– Então?
Berleand apagou o cigarro com a sola do sapato.
– Mas também percebi que ela estava jogando na retranca – disse.
– Estava mentindo. Você sabe disso e eu também. Minha esperança
era que você arrancasse a verdade dela, mas aí você viu a van – refletiu
ele. – E então deduziu que estava sendo grampeado.
– Somos dois caras espertos – falei.
– Talvez nem tanto quanto acreditamos.
– Você já notificou o parente mais próximo?
– Estamos tentando.
Pensei em ser sutil, mas depois concluí que, àquela altura, não
havia motivo para isso.
– Quem é o parente mais próximo de Rick Collins?
– A esposa.
– Como ela se chama?
– Aí você já está querendo saber demais.
Berleand pescou mais um cigarro do maço, prendeu-o entre os lábios,
deixou que ele tombasse ligeiramente e o acendeu com a agilidade
de alguém que já havia feito aquilo milhares de vezes.
– Havia sangue na cena do crime – disse. – Muito sangue. A maioria
era da vítima, claro. Mas os testes preliminares indicaram pelo
menos mais uma pessoa. Por isso colhemos uma amostra do sangue
de Terese Collins: vamos fazer um teste de DNA.
– Terese não matou ninguém, Berleand.
Ele não disse nada.
– Tem alguma coisa que você não quer me contar – falei.
– Tem muita coisa que não quero lhe contar. Infelizmente, você não
faz parte do Groupe Berleand.
– Não tem uma vaguinha para mim?
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O capitão me lançou um olhar de quem não acreditava no que
ouvira, depois disse:
– Não pode ser só coincidência Rick Collins ter sido assassinado
logo após a chegada da ex-mulher.
– Você ouviu o que ela disse. Rick parecia assustado. Provavelmente
porque tinha se metido em uma encrenca qualquer. Por isso chamou
Terese.
Fomos interrompidos pelo celular do capitão. Ele atendeu a chamada
e não fez mais que ouvir. Com certeza ele seria um ótimo
jogador de pôquer. Então, de uma hora para outra, uma expressão
sombria tomou seu rosto. Ele grunhiu algo em francês, claramente atordoado.
Depois ficou em silêncio. Mais alguns instantes e ele fechou
o celular, deu um último trago no cigarro e ficou de pé.
– Algum problema? – falei.
– Aproveite para dar uma última olhada na paisagem – disse ele,
passando as mãos pela calça para ajeitá-la. – Não costumamos trazer
turistas aqui.
Foi o que fiz. Talvez seja estranho que um prédio da polícia tenha
uma vista tão extraordinária. Diante de tamanha maravilha, pensei, a
ideia de um assassinato se torna ainda mais odiosa.
– Para onde estamos indo? – perguntei.
– O laboratório recebeu os resultados preliminares dos testes de
DNA.
– Já?
Berleand deu de ombros de um modo ligeiramente teatral.
– A França não se resume a vinho, comida e mulheres – disse.
– Infelizmente. Então, o que eles revelaram?
– Acho que – começou ele, novamente se espremendo através da
janela – precisamos ter uma conversinha com Terese Collins.
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8
TERESE ESTAVA NA MESMA CELA da qual eu havia saído meia hora antes.
Seus olhos estavam vermelhos e inchados. Assim que Berleand
destrancou a porta, toda a pose de mulher forte veio abaixo e Terese
se jogou nos meus braços aos prantos. Esperei que ela se acalmasse.
Olhei para Berleand e ele novamente deu de ombros daquele modo
exagerado.
– Vamos soltar vocês dois – disse –, se concordarem em entregar os
passaportes.
Terese se afastou e olhou para mim. Ambos assentimos.
– Ainda tenho algumas perguntas a fazer antes de deixá-los ir –
acrescentou Berleand. – Pode ser?
– Sei que sou suspeita – disse Terese. – A ex-mulher que chega à
cidade depois de tantos anos, os telefonemas, sei lá o quê. Mas não me
importo. Só quero que vocês encontrem quem matou o Rick. Então
pode perguntar o que quiser, inspetor.
– Obrigado pela franqueza e pela disposição em colaborar.
Berleand agora parecia mais cauteloso, como se pisasse em ovos.
Algo naquela ligação no telhado o havia abalado. Fiquei me perguntando
o que poderia ser.
– Você sabia que seu ex-marido se casou novamente? – começou
ele.
– Não, não sabia. Quando?
– Quando o quê?
– Quando foi que ele se casou de novo?
– Não sei.
– E o nome dela, o senhor sabe?
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– Karen Tower.
Terese quase sorriu.
– Você a conhece?
– Conheço.
Berleand balançou a cabeça e esfregou as mãos uma na outra. Pensei
que fosse perguntar como Terese conhecia Karen Tower, mas, em
vez disso, falou:
– Alguns resultados preliminares dos exames de sangue já
chegaram do laboratório.
– Já? – perguntou Terese, surpresa. – Colheram minha amostra o
quê? Uma hora atrás?
– Não são os resultados da sua amostra. Esses ainda vão levar algum
tempo. Estou falando do sangue encontrado na cena do crime.
– Ah.
– Algo curioso.
Ambos esperamos pelo que estava por vir. Terese engoliu em seco
como se esperasse um golpe.
– Boa parte do sangue, na verdade quase 100%, pertencia à vítima,
Rick Collins – prosseguiu o capitão. Ele agora falava de um modo
comedido, como se estivesse escorregando nas informações que estava
prestes a dar. – O que não chega a ser surpresa.
Continuamos calados.
– Mas havia outra mancha de sangue no tapete, não muito longe do
corpo. Não sabíamos ao certo como ela foi parar ali. Nossa primeira
hipótese era a mais óbvia: Rick Collins lutou com o agressor e o feriu
antes de ser morto.
– E agora? – perguntei. – O que vocês acham?
– Em primeiro lugar, encontramos alguns fios de cabelo junto ao
sangue. Longos e claros. Provavelmente, femininos.
– Mulheres também matam.
– Claro.
Berleand hesitou um instante.
– Mas? – falei.
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– No entanto, parece impossível que o sangue seja do agressor.
– Por quê?
– Porque, segundo o exame de DNA, ele pertence à filha de Rick
Collins.
Terese não gritou. Apenas deixou escapar um gemido antes de seus
joelhos falharem. Eu a amparei rapidamente, evitando que desabasse
no chão. Lancei um olhar de interrogação para Berleand, que não
parecia nem um pouco surpreso. Ele observava Terese, avaliando o
que estaria por trás daquela reação.
– Você não tem filhos, tem? – falou, dirigindo-se a ela.
Terese estava completamente lívida.
– Berleand, pode nos dar um instante? – falei.
– Não precisa, estou bem – disse Terese.
Ela se firmou nas próprias pernas e olhou fixamente para o capitão.
– Não tenho filhos. Mas o senhor já sabia disso, não sabia?
Berleand não respondeu.
– Canalha – cuspiu ela.
Minha vontade era perguntar o que estava acontecendo, mas talvez
fosse hora de ficar calado e ouvir.
– Ainda não conseguimos localizar Karen Tower – disse Berleand. –
Mas suponho que a criança seja filha dela, não?
– Suponho que sim.
– E você, claro, também não sabia da existência da garota.
– Não, não sabia.
– Quanto tempo faz que você e o Sr. Collins se divorciaram?
– Nove anos.
Não me contive.
– Que diabos está acontecendo aqui? – falei.
Berleand não me deu ouvidos.
– Portanto, mesmo que seu ex-marido tenha se casado imediatamente
após o divórcio, essa filha não poderia ter mais que... digamos,
uns 8 anos.
Seguiu-se um silêncio.
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– Portanto – disse enfim o capitão –, agora sabemos que a filhinha
de Rick Collins estava presente na cena do crime e foi agredida. Onde
você acha que ela pode estar agora?
www
Decidimos voltar a pé para o hotel.
Atravessamos a Pont Neuf. As águas do rio estavam turvas e esverdeadas.
Os sinos de uma igreja repicavam. Algumas pessoas paravam
no meio da ponte para tirar fotos. Um homem pediu que eu o fotografasse
ao lado de uma moça que supus ser sua namorada. Eles se abraçaram,
contei até três e tirei a foto. Pediram que eu tirasse mais
uma, contei até três novamente e bati a segunda foto. Então eles
agradeceram e seguiram seu caminho.
Terese ainda não tinha dito uma palavra sequer.
– Está com fome? – perguntei.
– Precisamos conversar.
– Tudo bem.
Ao ritmo das passadas dela, largas e uniformes, atravessamos a
ponte, seguimos pela Rue Dauphine e chegamos ao hotel. O recepcionista
nos brindou com um simpático “bem-vindos de volta” do
outro lado do balcão, mas Terese passou direto por ele, dando apenas
um breve sorriso.
Assim que as portas do elevador se fecharam, ela se virou para mim
e disse:
– Você queria saber qual era meu segredo, o que me fez fugir para
aquela ilha, o que me manteve fugindo esses anos todos.
– Se você quiser contar... – falei, de um modo que até a meus
próprios ouvidos soou condescendente. – Se eu puder ajudar em alguma
coisa...
– Não pode. Mas precisa saber, de qualquer modo.
Descemos no quarto andar. Ela abriu a porta da suíte, deixou que
eu entrasse e a trancou. O cômodo não era grande – até pequeno para
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os padrões americanos – e tinha uma escada em espiral que conduzia
a uma espécie de mezanino. Lembrava exatamente o que pretendia:
uma casa parisiense do século XVI, mas com uma TV de tela plana e
um aparelho de DVD.
Terese foi direto para a janela, de modo que ficasse o mais longe
possível de mim.
– Vou lhe contar uma coisa – disse. – Mas antes você precisa me
fazer uma promessa.
– Qual?
– Prometa que não vai tentar me consolar.
– Como assim?
– Conheço você. Vai ouvir minha história, depois vai querer me abraçar
e dizer as coisas certas. Porque é assim que você é. Não faça isso.
Nada do que você possa dizer ou fazer poderá me ajudar.
– Tudo bem – falei.
– Prometa.
– Prometo.
Ela recuou ainda mais no canto em que se refugiara. Minha vontade
era abraçá-la já, antes mesmo de ouvir o que ela estava para dizer.
– Você não precisa me contar nada – falei.
– Preciso, sim. Só não sei exatamente como.
Fiquei calado.
– Conheci o Rick no primeiro ano de faculdade na Wesleyan. Eu
tinha acabado de chegar de Shady Hills, em Indiana, e era o clichê
perfeito: rainha do baile de formatura, namorada do quarterback, a
garota que era um doce de criatura e tinha todas as chances de sucesso.
Era aquela bonitinha chata que estudava demais, ficava ansiosa,
morria de medo de tirar nota baixa, depois era a primeira a terminar a
prova. E colava aqueles adesivos redondinhos nas folhas do fichário.
Para que os furinhos não rasgassem, lembra deles?
Não pude deixar de sorrir.
– Lembro.
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– Também era a bonitinha que não queria ser reconhecida só pela
beleza, que queria que as pessoas olhassem para além da superfície.
Mas as pessoas só se interessavam por alguma coisa por causa da superfície.
Você sabe do que estou falando, não sabe?
Eu sabia. Não se tratava de falta de modéstia por parte de Terese,
como muitos poderiam supor. Era apenas uma constatação dos fatos.
Assim como Paris, Terese tinha consciência da própria beleza e não
via motivos para fingir o contrário.
– Então escureci os cabelos, para parecer mais inteligente, e lá fui
eu para a universidade. Como tantas outras garotas, cheguei com o
cinto de castidade firme no lugar e só meu quarterback do colégio
tinha a chave. Estava determinada a ser a exceção: ia conseguir
manter o namoro mesmo a distância.
Eu também me lembrava de garotas assim em Duke.
– Quanto tempo você calcula que isso durou? – perguntou ela.
– Dois meses?
– Um, no máximo. Conheci o Rick e ele me arrebatou feito um furacão.
Era inteligente, engraçado e sexy de um jeito que eu nunca tinha
visto antes. Era o radical do campus, o pacote completo: cabelos cacheados,
olhos azuis penetrantes, uma barba que me espetava quando
a gente se beijava...
Por um instante ela se deixou levar pelas lembranças. Depois disse:
– Não consigo acreditar que ele esteja morto. Rick era uma pessoa
especial, sabe? Não estou sendo sentimentaloide. Ele era realmente
um homem generoso. Acreditava na justiça e na humanidade. E alguém
o matou. Alguém tirou a vida dele intencionalmente.
Permaneci calado.
– Estou enrolando, não estou?
– Não precisa se apressar.
– Preciso, sim. Preciso acabar logo com isso. Se bobear, vou ter um
treco e você vai continuar às cegas. Berleand provavelmente já sabe de
tudo. Por isso me deixou ir embora. Então vou dar a você o resumo da
ópera. Rick e eu nos formamos, nos casamos e fomos trabalhar como
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repórteres. Depois de um tempo fomos para a CNN: eu na frente das
câmeras e ele nos bastidores. Já lhe contei essa parte. A certa altura,
quisemos ter filhos. Pelo menos, eu quis. Acho que Rick tinha lá suas
dúvidas. Talvez fosse um pressentimento do que estava por vir.
Terese se voltou para a janela, afastou as cortinas lentamente e olhou
para fora. Dei alguns passos na direção dela. Não sei por quê. Por
algum motivo, senti a necessidade de me aproximar.
– Tivemos problemas de fertilidade. O que é muito comum, dizem.
Muitos casais passam por isso. Mas, quando acontece com você,
parece que todas as outras mulheres do mundo estão grávidas. E o pior
é que, com o tempo, a situação só piora. Todas as mulheres que eu
conhecia tinham filhos, todas eram felizes e realizadas e tudo parecia
acontecer naturalmente com elas. Comecei a evitar os amigos. A ter
problemas no casamento. O sexo passou a ser apenas para procriação.
Você não consegue pensar em outra coisa, sabe? Lembro que fiz uma
matéria sobre as mães solteiras do Harlem, essas garotas de 16 anos
que engravidam num piscar de olhos, e comecei a odiá-las. Aquilo era
uma grande injustiça.
Terese estava de costas para mim. Sentei-me na quina do colchão.
Queria ver o rosto dela, ou pelo menos parte dele. Da cama, conseguia
enxergar um pouco mais, um perfil que era como a lua nos primeiros
dias do quarto crescente.
– Ainda estou enrolando – disse ela.
– Posso esperar.
– Ou talvez eu precise contar desse jeito.
– Tudo bem.
– Fomos a vários médicos. Tentamos tudo o que você possa imaginar.
Um pesadelo. Tomei injeções de pergonal, de hormônios, o diabo a
quatro. Demorou três anos, mas finalmente consegui engravidar. Um
milagre da medicina. No início, tinha tanto medo que mal ousava me
mexer. Qualquer dorzinha, qualquer pontada, eu logo achava que ia
abortar. Mas depois de um tempo passei a adorar a gravidez. É muito
antifeminista dizer isso, não é? Sempre me irritei com essas mulheres
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que ficam tagarelando sobre as maravilhas da gravidez, mas fiquei
igualzinha a elas. Adorava as tonteiras. Não tive enjoos. Eu me sentia
radiante. Sabia que nunca engravidaria de novo, que não podia contar
com outro milagre, então precisava saborear aquele momento. O
tempo passou voando e, de repente, lá estava eu, com uma filhinha de
três quilos no colo. Miriam, o mesmo nome da minha falecida mãe.
Uma lufada fria perpassou meu coração. Eu já podia intuir como
terminaria aquela história.
– Ela hoje teria 17 anos – disse Terese, a voz distante.
Há momentos na vida em que nos sentimos frágeis demais, com um
silêncio, um vazio por dentro. Pois era assim que estávamos agora,
Terese e eu.
– Acho que não houve um único dia nestes últimos 10 anos em que
não fiquei imaginando como ela seria agora. Dezessete anos. Terminando
o colégio, já sem aquela rebeldia toda da adolescência, aquelas
incertezas... Linda, minha amiga outra vez. Preparando-se para entrar
para a universidade.
Com os olhos marejados, tentei ver o rosto de Terese. Já ia me levantando
quando ela se virou bruscamente para trás. Nenhuma lágrima
em seus olhos, mas algo pior: uma tristeza avassaladora, dessas
que o choro jamais conseguiria aliviar. Antes que eu ficasse de pé, ela
ergueu a mão como se empunhasse uma cruz para afastar um
vampiro.
– A culpa foi minha – disse.
Balancei a cabeça, mas ela apertou os olhos violentamente, como se
meu gesto a ofuscasse. Lembrei-me da promessa que havia feito e tentei
apagar do rosto qualquer traço de emoção.
– Eu não ia trabalhar naquela noite, mas no último minuto ligaram
dizendo que precisavam de alguém para apresentar o noticiário das
oito. Eu estava em casa. Morávamos em Londres nessa época. Rick estava
em Istambul. Era o horário nobre. Puxa, como eu queria aquele
trabalho... Miriam já estava dormindo, mas eu não podia deixar passar
aquela oportunidade, podia? Tinha que pensar na minha carreira.
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Então liguei para uma amiga, madrinha da Miriam, e perguntei se podia
deixar minha filha com ela por algumas horas. Ela aceitou. Acordei
a Miriam e a coloquei no banco de trás do carro. Eu estava correndo
contra o tempo, ainda precisava fazer a maquiagem. Então corri mais
do que devia. As ruas estavam molhadas. Já estávamos quase
chegando... faltavam no máximo uns 500 metros. Dizem que as pessoas
que sofrem um acidente grave o apagam da memória, principalmente
nos casos em que há perda de consciência. Mas eu me lembro
de tudo. Do farol na minha cara. Da guinada que dei para a esquerda.
Talvez tivesse sido melhor bater de frente. Eu teria morrido em vez da
minha filha. Mas não, a batida foi de lado. Do lado da Miriam. Ainda
posso ouvir o grito dela. Um gritinho curto, quase um suspiro. O último
som que saiu da boquinha dela. Fiquei em coma por duas semanas,
mas Deus tem um senso de humor doentio e deixou que eu sobrevivesse.
Miriam morreu na hora.
Silêncio total.
Eu nem sequer ousava piscar. Tinha a impressão de que até as
paredes e os móveis prendiam a respiração. Sem pensar, dei um passo
na direção de Terese. Talvez a solidariedade tenha um traço de
egoísmo e a pessoa que se mostra solidária precise tanto ou mais de
ajuda do que quem ela está consolando.
– Fique onde está – disse ela.
Obedeci.
– Quero ficar sozinha. Só por alguns minutos, está bem?
Fiz que sim com a cabeça, mas ela não olhava para mim.
– Claro – falei. – Como você quiser.
Terese não respondeu. Nem precisava. Já havia deixado bem clara a
sua vontade. Então caminhei até a porta e saí.
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9
QUANDO SAÍ DO HOTEL PARA A Rue Dauphine, estava num estado de
completo atordoamento.
Dobrei à esquerda e cheguei a um lugar onde cinco ruas se cruzavam.
Havia um café, um dos muitos de Paris, o Le Buci, e me acomodei
em uma mesinha externa. Gosto de observar as pessoas, mas estava
difícil me concentrar. Fiquei pensando em Terese. Só agora entendia.
Ter de reconstruir a vida para... para quê?
Peguei o celular e, sabendo que isso me distrairia, liguei para o escritório.
Big Cyndi atendeu ao segundo toque.
– MB Representações.
O M é de Myron e o B, de Bolitar. O “representações” é porque representamos
pessoas. Fui eu que bolei o nome, sozinho, mas não fico
me gabando do meu talento para o marketing. Quando representávamos
apenas atletas, a agência se chamava MB Representações Esportivas.
Farei uma pequena pausa até que cessem os aplausos.
– Hum – falei. – Madonna na “fase inglesa”?
– Na mosca.
Big Cyndi era capaz de imitar qualquer pessoa. Ou melhor, a voz de
qualquer pessoa, porque, quando se tem 1,95m e 130 quilos, fica difícil
imitar Goldie Hawn ao vivo e em cores, por mais habilidade que você
tenha.
– A Esperanza está por aí?
– Um segundinho.
Esperanza Diaz (que continuava sendo mais conhecida como
Pequena Pocahontas, o nome que usava em sua época de luta livre
profissional) era minha sócia. A primeira coisa que perguntou foi:
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– E então, está pegando alguém?
– Não.
– Então é melhor que tenha um bom motivo para estar aí. Você
tinha um monte de reuniões marcadas para hoje.
– Eu sei, desculpe. Olha, preciso que você levante a ficha completa
de um sujeito chamado Rick Collins.
– Quem é ele?
– O ex de Terese.
– Você e suas fantasias românticas excêntricas...
Contei a ela tudo o que havia acontecido. Esperanza ficou muda do
outro lado da linha. Eu sabia por quê. Ela se preocupa comigo. Win é
rocha, Esperanza é coração. Quando terminei meu relato, ela disse:
– Então, por enquanto Terese não é suspeita de nada, é?
– Ainda não tenho certeza disso.
– Mas tudo indica que foi assassinato e sequestro.
– É.
– Então por que você precisa se envolver? Terese não tem nada a
ver com a história.
– Claro que tem.
– Como?
– Rick Collins ligou para ela. Falou que tinha algo urgente para contar,
que mudaria a vida dela para sempre. Agora ele está morto.
– E você, o que pretende fazer por aí? Caçar o assassino? Deixe isso
para a polícia. Ou dá umazinha ou dá no pé.
– Faça o que pedi, está bem? Veja o que consegue descobrir sobre a
segunda mulher e a filha.
– Tudo bem, vai. Se incomoda se eu contar para o Win?
– Não. Pode contar.
– “Ou dá umazinha ou dá no pé”, essa foi boa – disse ela.
– É, parece frase de para-choque de caminhão.
Desligamos. E agora, o que fazer? Esperanza tinha razão. Nada daquilo
me dizia respeito diretamente. Se eu pudesse ajudar Terese de
algum modo, aí, sim. Mas, fora evitar que ela fosse envolvida naquela
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história e acabasse levando a culpa por um crime que não havia
cometido, eu não via muito o que fazer. Berleand me parecia um policial
correto, não achava que ele fosse aprontar algo.
Minha visão periférica captou alguém sentando-se à minha mesa.
Virei o rosto e me deparei com um homem de cabelos raspados
rente ao crânio, sobre o qual se viam algumas cicatrizes. Tinha uma
pele azeitonada e, quando sorriu, deixou à mostra um dente de ouro
que combinava com a corrente em torno do pescoço, no melhor estilo
hip-hop. Bonito, até, mas de um jeito ameaçador, quase bad boy.
Usava calça esportiva preta e uma regata branca sob a camisa cinza de
mangas curtas.
– Olhe embaixo da mesa – ordenou ele.
– Por quê? Vai me mostrar a minhoquinha?
– Ou olha ou morre.
O sotaque não parecia francês. Era mais suave, mais requintado.
Algo próximo do espanhol ou do inglês britânico, quase aristocrático.
Inclinei a cadeira para trás e olhei. Ele apontava uma arma para mim.
Apoiei as mãos na mesa e procurei manter a respiração sob controle.
Ergui os olhos e me deparei com os dele. Examinei os arredores.
Havia um homem de óculos escuros na esquina, aparentemente por
motivo nenhum. Fazia o possível para não deixar transparecer que nos
observava.
– Faça o que eu disser ou esta arma vai cuspir fogo.
– Cuspir nunca é muito civilizado.
– O quê?
– Cuspir. Cuspir fogo. Ah, deixa pra lá.
– Está vendo aquele carro verde na esquina?
Havia uma minivan, ou algo parecido, não muito longe do homem
de óculos, com dois sujeitos nos bancos da frente. Memorizei o
número da placa e comecei a pensar no que fazer em seguida.
– Estou.
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– Se não quiser que eu atire, vai seguir exatamente as minhas instruções.
Vai se levantar devagar, depois vai entrar no banco de trás
daquele carro. Nem pense em fazer nenhuma...
Foi então que arremessei a mesa contra a cara do sujeito.
Desde que ele se sentara ao meu lado eu vinha imaginando o que
estaria acontecendo. Agora sabia: uma tentativa de sequestro. Se eu
entrasse naquele carro, estaria frito. Todo mundo já ouviu dizer que as
primeiras 48 horas do desaparecimento de uma pessoa são cruciais. O
que ninguém diz, talvez porque seja óbvio, é que cada segundo que se
passa torna mais improvável o resgate.
O mesmo se aplica aqui. Se eles me enfiassem naquele carro, as
chances de alguém me encontrar com vida despencariam. Assim que
eu me levantasse para segui-lo, elas começariam a diminuir. Ele não
estava esperando nenhuma reação imediata. Achou que eu estivesse
prestando atenção no que ele dizia. Não via nenhuma espécie de risco.
Ainda estava proferindo o discurso que havia ensaiado.
Então aproveitei o elemento surpresa.
Além disso, ele havia desviado o olhar, por apenas um segundo,
para se certificar de que o carro ainda estava lá. Era tudo de que eu
precisava. Minhas mãos já estavam na mesa. Os músculos da perna se
retesaram. Apenas explodi como se me erguesse em um vigoroso exercício
de agachamento.
A mesa foi direto no rosto dele. E eu me esquivei para o lado ao
mesmo tempo, para o caso de ele ter tido tempo de disparar a arma.
Que nada.
Aproveitei o impulso e saltei para a frente. Se o Cabeça Riscada estivesse
sozinho, minha cartada seguinte teria sido imobilizá-lo: feri-lo
de alguma forma ou fazer o que fosse preciso para que ele não pudesse
reagir. Mas havia pelo menos outros três caras ali. Eu tinha esperança
de que eles fugissem, mas não contava com isso.
Ótimo, porque eles não fugiram.
Meus olhos passearam à procura da arma. Como eu imaginava, ele
a tinha deixado cair. Aterrissei bem em cima do meu adversário. A
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mesa ainda escondia seu rosto. Ele bateu a cabeça na calçada com
uma pancada sonora.
Tentei alcançar a arma.
As pessoas gritavam e corriam assustadas. Joguei o corpo para o
lado, peguei a arma e continuei a rolar. Rapidamente me apoiei sobre
um dos joelhos e mirei o homem de óculos escuros que nos espreitava
da esquina.
Ele também estava armado.
– Parado! – gritei.
Ele apontou para mim. Não hesitei. Atirei, acertando-o no peito, e
rolei mais uma vez, abrigando-me contra uma parede. A minivan acelerou
na minha direção. Vieram disparos, mas não de uma arma
comum.
Era uma metralhadora.
Mais gritos.
Droga! Por essa eu não esperava. Até então, só havia levado em conta
o meu lado. Mas havia os transeuntes também e eu estava lidando
com lunáticos que não ligavam a mínima para a integridade física de
quem quer que fosse.
Olhei para o Cabeça Riscada e vi que ainda se mexia. O de óculos estava
fora do jogo. O fluxo sanguíneo martelava dentro dos meus
ouvidos. Eu podia ouvir minha própria respiração.
Tinha de fazer alguma coisa.
– Abaixem-se! – gritei para os passantes.
Às vezes a gente pensa em coisas estranhas mesmo estando em situações
assim. Fiquei me perguntando como se diria aquilo em francês,
se as pessoas saberiam traduzir minhas palavras ou se, caramba, uma
saraivada de metralhadora faria a ficha cair.
Corri abaixado na direção oposta ao movimento da van, rumo ao
lugar onde até então ela estava estacionada. Ouvi pneus cantando.
Mais disparos. Dobrei a esquina a mil por hora e dali a pouco cheguei
de volta à Rue Dauphine. O hotel estava apenas a uns 100 metros.
E então?
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Arrisquei uma olhadela para trás. A van dava ré, prestes a virar na
minha direção. Procurei uma rua ou beco por onde pudesse escapar.
Nada. Ou talvez...
Avistei uma ruazinha estreita do outro lado da calçada. Cogitei correr
até ela, mas nesse caso ficaria ainda mais exposto. A van agora
voava na minha direção. Vi o cano de uma arma atravessando a janela.
Eu estava vulnerável demais.
Meus pés voavam. Eu corria com a cabeça baixa, como se isso
fizesse de mim um alvo mais difícil. As pessoas na calçada se perguntavam
o que estaria acontecendo. Algumas apenas abriam caminho,
outras acabavam sendo atropeladas por mim.
– Abaixem-se! – eu gritava, mas só porque precisava gritar alguma
coisa.
Outra saraivada de balas. Senti uma delas passando sobre minha
cabeça, o vácuo movendo meus cabelos.
Então veio o barulho que soou como música a meus ouvidos.
A sucessão de berros curtinhos da sirene irritante dos carros de
polícia franceses.
A van parou. Recostei-me contra o muro mais próximo. Ela engatou
a ré, voltando em disparada para a esquina de onde viera. Eu ainda
tinha a arma, mas o alvo já estava longe e muitas pessoas se aglomeravam
no caminho. Já havia sido inconsequente demais.
A ideia de deixá-los escapar não me agradava, mas também não
queria que aquele tiroteio na rua continuasse.
A porta traseira da van se abriu e um homem com o rosto ensanguentado
desceu. Era Cabeça Riscada. Eu provavelmente havia
quebrado seu nariz. Dois dias e dois narizes quebrados. Nada mau, se
me pagassem para isso.
Cabeça Riscada precisava de ajuda. Olhou rua abaixo, mas eu estava
longe demais para que me visse e não tinha a menor intenção de acenar
para ele. As sirenes se aproximavam. Olhei para o lado e dois carros
de polícia vinham na minha direção.
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Os policiais saltaram com armas apontadas para mim. Por um instante
fiquei surpreso, pronto para explicar que era o mocinho, não o
bandido, mas de repente a ficha caiu. Eu estava empunhando uma
arma. Tinha atirado em alguém.
Os policiais gritaram algo. Deduzi que se tratava de uma ordem
para que eu ficasse imóvel e levantasse os braços. Foi o que fiz. Deixei
a arma cair e me ajoelhei na calçada. Os policiais correram ao meu
encontro.
Olhei de volta para a minivan. Queria mostrá-la à polícia, mas sabia
que qualquer gesto brusco poderia ser mal interpretado. Os policiais
gritaram algumas instruções, mas não entendi nenhuma delas, então
permaneci exatamente como estava.
Então vi algo que me fez pensar em pegar a arma de volta.
A porta traseira da minivan ainda estava aberta e Cabeça Riscada se
jogava dentro dela, com outro comparsa saltando atrás e fechando a
porta enquanto o veículo arrancava. A mudança de ângulo do carro
durou um segundo, talvez menos, mas pude vislumbrar o que havia
dentro dele.
Eu estava a uns 70 metros de distância. Podia estar enganado.
Talvez não tivesse visto direito.
Não consegui me conter e comecei a levantar. Estava desesperado,
pronto para pegar a arma e atirar nos pneus da van. Mas os policiais
me cercaram. Não sei exatamente quantos. Quatro ou cinco. Saltaram
imediatamente sobre mim, derrubando-me de volta na calçada.
Enquanto me debatia, senti algo pontudo, provavelmente a extremidade
de um cassetete, atingir meus rins. Mas não parei.
– A van verde! – gritei.
Eram policiais de mais para um homem só. Senti meus braços serem
torcidos contra as costas.
– Por favor – supliquei.
Havia um terror quase ensandecido em minha voz. Tentei me
controlar.
– Vocês precisam detê-los!
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Mas ninguém me deu ouvidos. E a van sumiu de vista.
Fechei os olhos e tentei trazer à mente a imagem daquela fração de
segundo. Porque, pouco antes de a porta daquela van se fechar, eu
tinha vislumbrado uma garota loura de cabelos compridos.
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10
DUAS HORAS DEPOIS, EU ESTAVA de volta à mesma cela fétida do
número 36 do Quai des Orfèvres.
Fui interrogado por um longo tempo.
Procurei ser o mais direto possível nas explicações e implorei que
chamassem Berleand. Tentando manter a voz calma, pedi que localizassem
Terese Collins no hotel (temia que meus algozes, fossem lá
quem fossem, também tivessem algum interesse nela) e repeti o
número da placa da van nem sei quantas vezes, dizendo que uma vítima
de sequestro talvez estivesse lá.
Antes disso, fiquei um bom tempo onde tudo havia acontecido, o
que achei estranho, mas também compreensível. Eu estava algemado
e tive a companhia de dois policiais o tempo todo, segurando-me pelos
cotovelos. Pediram que eu explicasse o que havia acontecido, então
me levaram de volta ao café Le Buci. A mesa ainda estava tombada no
chão, com uma mancha de sangue no tampo.
Contei toda a história. Não havia ninguém para confirmar que
Cabeça Riscada tivesse uma arma, só testemunhas do que eu havia
feito. Mas o homem em quem eu atirara havia sido levado de ambulância.
Com um pouco de sorte, ele ainda estaria vivo.
– Por favor – falei pela enésima vez. – O capitão Berleand pode explicar
tudo.
A julgar pela expressão corporal dos policiais, eles não só não acreditavam
em mim como estavam ficando aborrecidos. Mas não se deve
julgar ninguém pela expressão corporal. Uma lição que fui aprendendo
ao longo dos anos. Policiais são invariavelmente incrédulos e
conseguem mais informações por isso. Enquanto eles fingem que não
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estão acreditando, a pessoa continua a falar, tentando se defender e se
explicar, e acaba revelando o que não pretendia.
– Vocês precisam encontrar a van – falei mais uma vez, repetindo o
número da placa feito um mantra. – Minha amiga está hospedada no
D’Aubusson.
Apontei para a Rue Dauphine, dei o nome de Terese e o número do
quarto.
Durante todo esse tempo os policiais não fizeram mais do que balançar
a cabeça e perguntar coisas que nada tinham a ver com o que eu
dissera. Eu respondia às perguntas e eles continuavam a me encarar
como se eu estivesse inventando tudo aquilo.
No final me jogaram na tal cela, que decerto não havia sido limpa
desde minha última passagem por lá. Ou desde a morte do general De
Gaulle. Eu estava preocupado com Terese. Para falar a verdade, também
estava um tantinho preocupado com meu próprio umbigo. Eu estava
fora do meu país e havia atirado em um homem, o que poderia
ser facilmente provado. O que seria difícil, talvez impossível, de provar
era minha versão dos fatos.
Tinha sido mesmo necessário atirar naquele homem?
Sem dúvida alguma. Ele estava apontando uma arma para mim.
Mas teria puxado o gatilho?
Em uma situação dessas, ninguém paga para ver. Então atirei
primeiro. Que consequências isso poderia ter na França?
Fiquei me perguntando se mais alguém teria se ferido. Havia mais
de uma ambulância na rua. A culpa seria minha caso um passante
tivesse sido atingido pelos disparos da metralhadora. Se houvesse
simplesmente concordado em entrar na van, a essa hora estaria com a
garota de cabelos claros, que na certa estava apavorada e ferida também,
uma vez que havia sangue dela ao lado do corpo do pai. O que
ela estaria pensando e sentindo naquele carro?
Teria presenciado o assassinato dele?
Myron, não vamos colocar o carro na frente dos bois.
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– Da próxima vez, sugiro que contrate um guia particular. Muitos
turistas insistem em visitar Paris por conta própria e acabam se
metendo em encrenca.
Berleand.
– Vi uma garota loura na van – fui logo dizendo.
– Foi o que me disseram.
– E Terese ficou sozinha no hotel.
– Ela saiu cinco minutos depois de você.
Fiquei esperando que Berleand destrancasse a porta de vidro, mas
ele não o fez. Só então me dei conta do que ele acabara de dizer.
– Você estava nos seguindo?
– Sou um só, Myron. Não dá para seguir duas pessoas ao mesmo
tempo – falou ele. – Mas me diga uma coisa: o que você achou
daquela história de acidente de carro?
– Como?
Agora tudo estava claro.
– Você colocou uma escuta no nosso quarto?
Berleand fez que sim com a cabeça e emendou:
– Mas ainda não aconteceu nada interessante por lá.
– Muito engraçado.
– Ou patético – devolveu ele. – Então, o que achou da história do
acidente?
– Como assim, o que achei? É uma história horrível.
– E você acreditou?
– Claro que acreditei. Quem inventaria uma coisa dessas?
Uma sombra cruzou o rosto de Berleand.
– Está me dizendo que era mentira? – perguntei.
– Não, tudo bate. Miriam Collins, de 7 anos de idade, morreu num
acidente na A-40 de Londres. Terese ficou gravemente ferida. Mas
pedi que mandassem o arquivo completo para meu gabinete, quero
dar uma olhada.
– Por quê? Isso aconteceu 10 anos atrás. Uma coisa não tem nada a
ver com a outra.
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Berleand não disse nada. Apenas ajeitou os óculos. Trancafiado
naquela cela de vidro, eu me sentia como uma mercadoria exposta em
uma vitrine.
– Seus colegas já devem ter contado o que aconteceu na rua hoje –
falei.
– Claro.
– Vocês precisam encontrar aquela van.
– Já encontramos.
Cheguei mais perto da porta de vidro.
– Foi alugada – disse Berleand. – E abandonada no aeroporto
Charles de Gaulle.
– Alugada com um cartão de crédito?
– Sim, mas com um nome falso.
– Então vocês precisam cancelar todos os voos de partida!
– Do maior aeroporto do país? – argumentou Berleand. – Mais alguma
ideia brilhante?
– Só estou dizendo que...
– Já se passaram duas horas. Se eles tomaram um avião, não há
nada que possamos fazer.
Outro policial entrou na sala, passou um papel a Berleand e saiu. O
capitão começou a ler.
– O que é isso? – perguntei.
– Cardápio. Estamos testando o serviço de entrega de um
restaurante.
Ignorei a piadinha besta.
– Você sabe que não é coincidência. Eu vi uma garota loura dentro
daquela van.
Ele ainda lia o papel.
– Eu sei, você já disse.
– Podia ser a filha de Rick Collins.
– Duvido – disse Berleand.
Esperei que ele se explicasse.
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– Conseguimos falar com a mãe, Karen Tower. Ela está bem. Sequer
sabia que o marido estava em Paris.
– E onde pensou que ele estivesse?
– Ainda não sei dos detalhes. Eles moram em Londres. Foi a Scotland
Yard que deu a notícia à mulher. Parece que o casamento estava
passando por uma certa turbulência.
– Mas e a filha?
– Bem, este é o problema – disse Berleand. – Eles não têm filha
nenhuma. Têm um garoto de 4 anos. Que está em casa, são e salvo,
com a mãe.
Tentei digerir aquilo.
– Mas o teste de DNA determinou que o sangue pertencia à filha de
Rick Collins.
– Sim.
– Existe alguma possibilidade de erro?
– Não.
– E o cabelo? – perguntei. – Tinha o mesmo código genético do
sangue?
– Tinha.
– Então Rick Collins tinha uma filha de cabelos compridos e
claros... – falei, mais para mim mesmo que para o capitão.
Não demorei muito para levantar uma nova hipótese. Talvez porque
estivesse na França, a terra dos amantes.
– Uma segunda família – concluí.
Naturalmente, isso não acontecia só na França. Não chega a ser incomum
um homem ter filhos com amantes. E, acrescentando a isso a
informação de que o casamento de Rick Collins andava mal, tudo se
encaixava. Claro, ainda havia grandes lacunas a preencher (por exemplo,
por que Collins havia telefonado para Terese, sua primeira mulher,
dizendo que ela devia vir a Paris com urgência?), mas uma coisa de
cada vez.
Comecei a expor minha teoria a Berleand, mas logo percebi que ele
não levava fé nela.
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– O que estou deixando de fora? – perguntei.
O celular dele tocou. Berleand atendeu em francês e mais uma vez
eu fiquei às cegas. Precisava entrar num curso assim que voltasse para
casa. Ele encerrou a ligação e imediatamente destrancou a cela,
acenando para que eu saísse. Seguiu apressado pelo corredor.
– Berleand?
– Venha comigo – disse ele. – Preciso lhe mostrar uma coisa.
Voltamos à sala do Groupe Berleand. Lefebvre estava lá. Olhou para
mim como se eu fosse o cocô do cavalo do bandido. Estava instalando
um monitor de tela plana de umas 30 polegadas.
– O que está acontecendo? – perguntei.
Berleand sentou-se ao teclado. Lefebvre se afastou. Os outros dois
policiais que estavam na sala também abriram espaço. Berleand olhou
para o monitor, depois para o teclado. Franziu a testa. Puxou um
lenço de papel da caixinha sobre sua mesa e começou a limpar as
teclas.
Lefebvre disse algo em francês que pareceu uma reclamação.
Berleand rugiu algo de volta, gesticulando para o teclado. Terminou
de limpá-lo e começou a digitar.
– A menina na van – falou comigo –, quantos anos você acha que
tinha?
– Não sei.
– Tente se lembrar.
Tentei, mas sem sucesso.
– Só me lembro dos cabelos claros – disse.
– Sente-se aí.
Puxei uma cadeira. Ele abriu um e-mail e baixou um arquivo.
– Vamos receber outros vídeos – falou. – Mas, por enquanto, esta
imagem congelada é o que temos de mais nítido.
– De onde?
– Da câmera de segurança do estacionamento do aeroporto.
Uma foto colorida surgiu na tela. Eu esperava algo em preto e
branco, granulado, mas a imagem era razoavelmente boa. Havia
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centenas de carros – bem, aquilo era um estacionamento –, mas
muitas pessoas também. Franzi os olhos para enxergar melhor.
Berleand apontou para o canto superior direito.
– São eles?
A câmera estava tão longe que as pessoas apareciam reduzidas.
Consegui distinguir três homens. Dava para ver que um deles apertava
algo branco contra o rosto – decerto uma camisa... para estancar o
sangue. Era Cabeça Riscada.
Fiz que sim com a cabeça.
A menina loura também estava lá. Olhando para ela, entendi o
motivo da pergunta de Berleand. Seria impossível dizer sua idade
porque ela estava de costas, mas com certeza não teria 6 ou 7 anos,
nem mesmo 10 ou 12, a não ser que fosse incrivelmente alta. Tratavase
de uma moça. A julgar pelas roupas, uma adolescente, mas hoje em
dia nunca se sabe.
Ela andava entre os dois homens não feridos. Cabeça Riscada estava
à direita.
– Sim, são eles – falei. – Mas a filha de Rick precisaria ter uns 7 ou
8 anos, não é? Acho que fiquei confuso quando vi uma pessoa de cabelo
louro na van. Acabei me precipitando.
– Não sei, não.
Olhei para Berleand. Ele tirou os óculos, largou-os sobre a mesa e
esfregou o rosto com ambas as mãos. Esbravejou alguma coisa em
francês e os três homens, Lefebvre inclusive, saíram da sala. Agora estávamos
sozinhos.
– Que diabos está acontecendo? – perguntei.
Ele baixou as mãos e olhou para mim.
– Você sabe que ninguém viu o sujeito apontar uma arma para você
naquele café, não sabe?
– Claro que ninguém viu. A arma estava debaixo da mesa.
– A maioria das pessoas teria se rendido e saído discretamente. Dificilmente
alguém teria pensado em arremessar a mesa, tomar a arma
do agressor e atirar no comparsa dele no meio da rua.
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Esperei que ele dissesse algo mais. Como não disse, falei:
– O que posso dizer? Tenho os meus brios.
– O homem no qual você atirou, ele não estava armado.
– Quando atirei, estava, sim. Os comparsas devem ter pegado a
arma antes de fugirem. Você sabe que não estou mentindo.
Ficamos ali, sem dizer nada, por cerca de um minuto. Berleand encarava
o monitor.
– O que estamos esperando?
– Um vídeo – disse ele.
– Do quê?
– Da menina loura.
– Por quê?
Ele não respondeu. Mais cinco minutos se passaram, durante os
quais crivei-o de perguntas. Nenhuma foi respondida. Por fim chegou
o e-mail com um vídeo em anexo: mais imagens do estacionamento.
Berleand clicou no “play” e se recostou na cadeira.
Agora a garota loura aparecia com mais nitidez. Era mesmo uma
adolescente, com seus 16 ou 17 anos. Ainda estava longe demais para
que pudéssemos ver as feições, mas tinha algo de familiar – a cabeça
ereta, os ombros jogados para trás, a postura perfeita...
– Recebemos um resultado preliminar do teste de DNA que fizemos
com aquelas amostras de sangue e cabelo – disse Berleand.
Senti o corpo gelar e me virei para o capitão.
– A menina não é só dele – disse Berleand, apontando para a garota
na tela. – Também é filha de Terese Collins.
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11
LEVEI UM TEMPO PARA recuperar a voz.
– Você disse “resultado preliminar”?
Berleand fez que sim com a cabeça.
– Os resultados definitivos ainda vão demorar algumas horas.
– Então existe a possibilidade de erro – pensei em voz alta.
– Pouco provável.
– Mas já houve algum caso?
– Houve. Uma vez prendemos um homem com base em resultados
preliminares como estes e, no fim das contas, o culpado era o irmão
dele. Também sei de uma mulher que estava exigindo na Justiça que o
ex-namorado reconhecesse a paternidade do filho dela. Os resultados
preliminares do exame de DNA pareciam inequívocos. Mas acabaram
descobrindo que, na verdade, o pai da criança era o pai do tal
namorado.
Refleti sobre o assunto.
– Terese Collins tem alguma irmã? – quis saber Berleand.
– Não sei.
Ele fez uma careta.
– Que foi?
– Vocês têm um relacionamento bastante especial, não?
Ignorei a alfinetada.
– Bem, qual o próximo passo?
– Quero que você ligue para Terese Collins – disse o capitão. – Precisamos
fazer mais algumas perguntas.
– E por que não liga você mesmo?
– Já tentei. Ela não atende.
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Ele devolveu meu celular. Eu o liguei e vi que havia uma chamada
não atendida. Não cliquei para saber de quem era. Também havia uma
mensagem que parecia spam: QUANDO PEGGY LEE CANTAVA ‘MAS É SÓ
ISSO?’, ELA ESTAVA SE REFERINDO AO TAMANHO DA SUA COBRA? SEU AMIGUINHO
ANDA PRECISANDO DE VIAGRA. VISITE 86BR22.COM.
Berleand leu a mensagem por sobre meus ombros.
– O que isso significa? – perguntou.
– Deve ser alguma ex-namorada queimando meu filme por aí.
– Fazendo piada de si mesmo... Muito simpático.
Telefonei para Terese. Caixa postal. Deixei um recado e desliguei.
– E agora?
– Você entende alguma coisa sobre rastreamento e localização de
chamadas de celular?
– Um pouco.
– Então provavelmente sabe que, enquanto um telefone está ligado,
é possível triangular as coordenadas dele e descobrir onde a pessoa está,
mesmo que nenhuma chamada esteja sendo feita.
– Correto.
– Bem, não nos preocupamos em seguir a Sra. Collins porque usamos
essa tecnologia. Mas, cerca de uma hora atrás, ela desligou o
telefone.
– Talvez a bateria tenha acabado – sugeri.
Berleand franziu o cenho.
– Ou talvez estivesse precisando de um pouco de paz. Não deve ter
sido fácil, você sabe, falar daquela história do acidente.
– Aí ela desligou o telefone para se isolar do mundo, é isso?
– É.
– Em vez de colocar no vibracall ou coisa assim, ela simplesmente
desligou o telefone?
– Por que não?
– Ah, tenha dó. Mas ainda temos o histórico de chamadas. Podemos
saber para quem ela ligou ou quem ligou para ela. Há mais ou menos
uma hora, a Sra. Collins recebeu sua única ligação do dia.
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– De...?
– Não sei. O número bateu na Hungria, depois em um website, depois
sumiu. A ligação durou dois minutos. Ela desligou o telefone em
seguida. Estava no Museu Rodin. Não temos a menor ideia de onde
esteja agora.
Permaneci calado.
– O que você acha? – instigou Berleand.
– De Rodin? Gosto muito do Pensador.
– Ah! Era para rir?
– Então, vou ficar detido?
– Ainda estou com seu passaporte. Pode ir, mas, por favor, não saia
do hotel.
– Porque lá você pode me bisbilhotar, não é?
– Pense da seguinte forma – disse Berleand. – Se finalmente você
se der bem com a Sra. Collins, quem sabe não aprendo alguma coisa?
Levou uns 20 minutos para eu ser solto.
Saí pelo Quai des Orfèvres e segui na direção da Pont Neuf. Calculei
quanto tempo levaria. Claro, havia a possibilidade de que Berleand já
estivesse me vigiando, mas achei pouco provável.
Adiante havia um carro com a placa 97 CS 33.
O código não poderia ter sido mais simples. A mensagem de spam
dizia “86 BR 22”. Cada letra e número valia um degrau a mais: oito
equivalia a nove, B a C, etc. Eu já estava próximo do carro quando um
pedaço de papel foi lançado pela janela do motorista, preso a uma
moeda, de modo que não voasse.
Exalei um suspiro. Primeiro o código elementar, agora isso. Desde
quando James Bond usava essa tecnologia arcaica?
Peguei o bilhete.
RUE DU PONT NEUF, NÚMERO 1, QUINTO ANDAR.
JOGUE O TELEFONE PELA JANELA TRASEIRA.
101/348
O carro arrancou assim que joguei o telefone ainda ligado no banco
de trás. Eles que o seguissem. Dobrei à direita, para descobrir aonde
haviam me mandado. Era o prédio da Louis Vuitton, aquele com um
domo de vidro. A loja da Kenzo ficava no nível da rua. Só de abrir
aquela porta, eu me senti um caipira. Entrei, tomei o elevador de vidro
e subi para o quinto andar, onde havia um restaurante chamado Kong.
Quando cheguei à porta, uma recepcionista veio a meu encontro.
Uma mulher com mais de 1,80m e magra como um fio de abajur, embalada
a vácuo em um vestido preto.
– Sr. Bolitar? – disse ela.
– Sim.
– Por aqui.
Ela me acompanhou até uma escada que reluzia em verde fosforescente
e levava ao domo de vidro. Para alguns, um lugar como aquele
seria considerado ultrachique. Para mim, ele ia além: seria talvez uma
versão pós-moderna do ultrachique. A inspiração do decorador parecia
ter sido uma gueixa futurista. Por todo lado se viam telas de
plasma com mulheres asiáticas que piscavam quando você passava. As
cadeiras eram de acrílico transparente, com imagens de lindas mulheres
com penteados exóticos. Os rostos de algum modo brilhavam,
como se houvesse uma lâmpada em cada um. O efeito era um tanto
assustador.
No alto da parede havia uma gigantesca tapeçaria retratando uma
gueixa. Os clientes se vestiam... bem, quase todos estavam iguaizinhos
à recepcionista: roupas pretas e elegantes. No entanto, o que fazia a
coisa toda funcionar, o que dava a liga final, era a extraordinária vista
do Sena, quase tão bela quanto a que se tinha do prédio da polícia. E,
na melhor mesa de todas, lá estava ele: meu sócio e amigo Win.
– Pedi foie gras para você – ele foi logo dizendo.
– Alguém ainda vai descobrir esse nosso truque.
– Ninguém descobriu até agora.
Sentei-me em frente a ele.
– Este lugar me parece familiar – disse.
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– Serviu de cenário para um filme francês com François Cluzet e
Kristin Scott Thomas – disse Win. – Eles se sentaram exatamente
aqui.
– Kristin Scott Thomas? Em um filme francês?
– Ela morou aqui durante anos e fala a língua fluentemente.
Win tem esse tipo de informação, sabe-se lá como.
– Pois bem – continuou ele –, talvez isso explique este seu... bem,
para escolher uma palavra que combine com a ocasião, déjà-vu.
Balancei a cabeça e disse:
– Não vejo filmes franceses.
– Ou então... – começou ele, exalando um longo suspiro – talvez você
se lembre de ter visto Sarah Jessica Parker comendo aqui no episódio
final de Sex and the City.
– É isso aí.
O foie gras – fígado de ganso, para quem não sabe – chegou. Eu estava
faminto e avancei no prato. Os defensores dos animais vão querer
me crucificar, mas não posso fazer nada. Adoro foie gras. Win já havia
pedido o vinho tinto. Dei um gole. Não sou nenhum especialista, mas
tive a impressão de que uma divindade qualquer havia pessoalmente
espremido aquelas uvas.
– Então suponho que a esta altura você já conheça o segredo de
Terese – disse Win.
Fiz que sim com a cabeça.
– Falei que era barra-pesada, não falei?
– Como foi que você descobriu?
– Não foi difícil – respondeu Win.
– Melhor dizendo: por que você descobriu?
– Nove anos atrás, você fugiu com essa mulher.
– E daí?
– Você não me disse nem que estava de partida.
– De novo: e daí?
– Você estava vulnerável na época, então fiz uma pequena investigação
por conta própria.
103/348
– Ou seja, meteu o nariz onde não foi chamado.
– Pode ser.
Comemos mais um pouco.
– Quando foi que você chegou? – perguntei.
– Esperanza me ligou depois que falou com você. Dei meia-volta
com o jatinho e vim para cá. Quando cheguei a seu hotel, você tinha
acabado de ser preso. Fiz algumas ligações.
– Onde está Terese?
Deduzi que tinha sido Win quem havia ligado para ela, para tirá-la
de circulação.
– Logo nos encontraremos com ela. Agora me dê todos os detalhes.
Win não disse nada enquanto eu falava, apenas ouviu, unindo em
pirâmide as pontas dos dedos das duas mãos. Ele sempre faz isso. Em
mim, o gesto fica ridículo. Mas nele, com aquelas unhas feitas com
perfeição na manicure, a coisa até que funciona. Assim que terminei,
ele disse:
– Uau.
– É, acho que “uau” resume tudo.
– Sobre o tal acidente, o que exatamente você sabe? – perguntou
Win.
– Só o que acabei de contar.
– Terese nunca viu o corpo – observou Win. – O que é um tanto
estranho.
– Ela ficou inconsciente por duas semanas. Não dá para esperar
tanto tempo para enterrar uma pessoa.
– Ainda assim.
Win tamborilava as pontas dos dedos umas contra as outras.
– O falecido ex... – continuou meu amigo. – Ele não disse que ia
contar algo que mudaria tudo na vida dela?
Eu também já havia pensado nisso e no tom de voz estranho, a
aflição com que Rick Collins tinha falado com Terese.
– Deve haver alguma outra explicação. Como eu disse, os resultados
dos testes de DNA ainda são preliminares.
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– Você sabe que a polícia o libertou na esperança de que você a
levasse até Terese, não sabe?
– É, eu sei.
– Mas isso não vai acontecer – disse Win.
– Também sei.
– Então... e agora?
A pergunta de Win me pegou de surpresa.
– Você não vai tentar me convencer a não ajudá-la, vai? – disse eu.
– Adiantaria alguma coisa se tentasse?
– Provavelmente, não.
– Bem, então talvez a gente se divirta um pouco – disse Win. –
Além do mais, há outro bom motivo para continuarmos com essa
busca.
– Qual?
– Depois eu conto. Mas, enquanto isso, cara-pálida, o que você pretende
fazer?
– Não sei ao certo. Queria interrogar a mulher de Rick Collins, mas
ela mora em Londres e Berleand confiscou meu passaporte.
O celular de Win tocou.
– Articule – disse ele ao atender.
Detesto quando ele faz isso.
Depois de alguns instantes, ele desligou e anunciou:
– Então, Londres será.
– Mas acabei de dizer...
Win ficou de pé.
– Tem um túnel no subsolo deste prédio que leva ao prédio ao lado,
o da Samaritaine. Há um carro à minha espera. Meu avião está em um
pequeno aeroporto perto de Versalhes. Terese está lá. Tenho documentos
para vocês dois. Mas precisamos nos apressar.
– Por quê?
– Meu bom motivo para prosseguir nessa busca. O homem em
quem você atirou acaba de morrer. A polícia quer prender você por
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assassinato. Acho melhor sermos proativos e limpar seu nome antes
que isso aconteça.
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12
EU ESPERAVA OUTRA REAÇÃO quando contasse a Terese sobre o exame
de DNA.
Ela e eu estávamos no lounge do jatinho de Win, um Business Jet
da Boeing que ele comprara recentemente de um cantor de rap. As
poltronas eram enormes, estofadas em couro. A cabine era forrada de
madeira e o piso tinha carpete felpudo. Ali havia ainda um sofá e uma
TV de tela plana e nos fundos do avião ficavam uma sala de jantar e
um quarto reservado.
Caso ainda não tenha ficado claro, Win é podre de rico.
Enriquecera da maneira mais tradicional possível: herdando. Sua
família era proprietária da Lock-Horne Investimentos, até hoje um
dos carros-chefes de Wall Street. Ele recebera os bilhões que lhe cabiam
e os multiplicara em muitos outros.
A “comissária de bordo” (as aspas se devem à escassa possibilidade
de que ela tivesse recebido algum treinamento de segurança) era uma
asiática de tirar o fôlego, jovem e, se eu bem conhecia meu amigo,
muito flexível também. Chamava-se Mee, tal como informava o
crachá. Seu uniforme parecia ter sido tirado de uma propaganda da
Pan Am de 1968: terninho justo, camisa engomada e até o
chapeuzinho.
“Olhe o chapéu”, Win tinha dito antes de embarcamos.
“É, dá um toque todo especial.”
“Gosto que ela use em todas as ocasiões.”
“Por favor, poupe-me dos detalhes.”
Win dera um sorriso malicioso.
“O nome dela é Mee.”
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“Eu sei, vi no crachá.”
“Lembra O mercador de Veneza? ‘Quem Mee escolher ganha o que
muitos querem.’ Ou, no popular: ‘Quem Mee conhece não esquece
jamais.’”
Eu apenas revirara os olhos.
“Ela e eu vamos ficar nos fundos, para você e Terese terem um pouco
de privacidade.”
“No quarto dos fundos, você quis dizer.”
Com um tapinha nas minhas costas, ele retrucara:
“Tente se divertir um pouco, Myron, porque eu vou Mee divertir.”
“Pare com isso.”
Embarquei atrás dele. Terese já estava a bordo. Quando contei
sobre o que havia acontecido no café Le Buci, a preocupação dela ficou
evidente. Mas quando entrei na história do teste de DNA, da possibilidade
de que a garota loura fosse sua filha (repetindo até enjoar as palavras
“preliminares” e “inconclusivos”), ela me deixou absolutamente
pasmo.
Sequer esboçou reação.
– Você está dizendo que, de acordo com esses exames, eu poderia
ser a mãe da garota?
Na verdade, os resultados preliminares indicavam que ela era a mãe
da garota, mas eu não queria exagerar na dose de informações, então
disse apenas:
– Sim.
Mais uma vez, nenhum sinal de emoção. Terese olhava para mim
franzindo a testa, como se não estivesse entendendo minhas palavras.
Dava para perceber uma leve consternação em seu olhar, mas isso era
tudo.
– Mas como isso é possível?
Não respondi, apenas dei de ombros.
Nunca subestime o poder da negação. Terese encarnou a repórter e
me crivou de perguntas. Contei a ela tudo o que sabia. Ela começou a
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ofegar. Fazia o possível para não desmoronar. Esforçava-se tanto que
os lábios tremiam.
Mas não havia lágrimas.
Eu queria abraçá-la, oferecer um ombro amigo, mas não podia. Sei
lá por quê. Então fiquei ali, esperando. Nenhum de nós ousava ir
direto ao ponto, como se mesmo as palavras pudessem furar aquela
bolha de esperança tão frágil. Mas ele estava lá, o sol que tentávamos
tapar com a peneira. Ambos o víamos, mas tentávamos ignorá-lo.
Às vezes as perguntas dela pareciam vir carregadas de agressividade,
como se destilassem sua raiva pelo que talvez o ex-marido tivesse
feito, ou quem sabe apenas porque era sua forma de não se deixar invadir
pela esperança. Por fim, ela se recostou na poltrona e mordeu o
lábio inferior, piscando.
– Afinal, para onde estamos indo? – perguntou.
– Londres. Achei que devíamos conversar com a mulher de Rick.
– Karen.
– Você a conhece?
– Conhecia, sim.
Ela olhou para mim.
– Lembra quando falei que estava indo deixar a Miriam na casa de
uma amiga na noite do acidente?
– Lembro. Era ela? Vocês eram amigas?
Terese fez que sim com a cabeça.
O avião acabara de alcançar a altitude de cruzeiro e o piloto anunciou
o fato pelo sistema de comunicação. Eu tinha mais um milhão de
perguntas a fazer, mas Terese fechou os olhos. Esperei.
– Myron?
– Sim.
– Não vamos dizer nada. Pelo menos não por enquanto. Sabemos
do que se trata. Mas não vamos dizer nada.
– Tudo bem.
Ela abriu os olhos e se virou para a janela. Mais do que compreensível.
Aquele momento era delicado demais até para um contato
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visual. Como se tivesse ouvido sua deixa, Win abriu a porta do quarto.
Mee, a comissária, estava vestida com chapeuzinho e tudo. Win também
estava vestido. Ele fez um sinal para que eu fosse até ele.
– Adoro o chapeuzinho – comentou.
– Eu sei, você já disse.
– Mee enche os olhos.
Só olhei para ele e entrei no quarto. Win fechou a porta. O lugar
tinha papel de parede com estampa de oncinha e colchas de zebra.
– Você estava em um momento Elvis quando decorou isto aqui? –
falei.
– Não, foi o cantor de rap. Mas estou começando a gostar.
– Você queria falar comigo?
Win apontou para o aparelho de TV.
– Eu estava acompanhando a conversa de vocês.
Na tela se via Terese em sua poltrona na cabine.
– Achei que era um bom momento para intervir.
Em seguida ele abriu uma gaveta e tirou um BlackBerry.
– Seu número ainda é o mesmo – disse, entregando-me o aparelho.
– Você pode fazer e receber chamadas normalmente, sem ser
rastreado. Caso tentem rastreá-lo, vão parar em algum lugar no
sudoeste da Hungria. Por falar nisso, o capitão Berleand deixou um
recado.
– Acha que é seguro ligar de volta?
Win franziu o cenho e disse:
– Que parte de “sem ser rastreado” você não entendeu?
Berleand atendeu imediatamente.
– Meus colegas querem botar as mãos em você – ele foi logo
dizendo.
– Mas sou um cara tão legal...
– Foi o que eu disse a eles, mas nem os caras legais estão acima de
uma acusação de assassinato.
– Mas os caras legais andam tão em falta hoje em dia... – devolvi. E
depois: – Já disse. Foi legítima defesa, Berleand.
110/348
– De fato. Mas temos tribunais, advogados e investigadores que
talvez um dia cheguem a essa mesma conclusão.
– Estou meio sem tempo para isso.
– Então não vai dizer onde está?
– Não.
– Acho aquele restaurante, o Kong, um tanto turístico demais –
disse ele. – Da próxima vez, vou levar você a um bistrozinho em Saint
Michel que serve só foie gras. Você vai adorar.
– Da próxima vez – falei.
– Você ainda está na minha jurisdição?
– Não.
– Que pena. Posso pedir um favor?
– Claro.
– Seu celular novo recebe fotos?
Olhei para o Win e ele fez que sim com a cabeça.
– Recebe.
– Então estou lhe mandando uma. Veja se reconhece o homem nela.
Entreguei o aparelho a Win, que apertou uma tecla e baixou a tal
foto. Examinei-a com atenção, mas logo de cara já havia reconhecido
quem era.
– Provavelmente é ele – disse.
– O homem que você agrediu com a mesa?
– Sim.
– Tem certeza?
– Eu disse “provavelmente”.
– Então olhe outra vez.
Examinei a foto novamente.
– A foto é antiga, não? O sujeito que me ameaçou hoje de manhã é
pelo menos 10 anos mais velho que este aqui. Algumas coisas
mudaram... a cabeça raspada, o nariz. Mas acho que posso afirmar
que é ele, sim.
Silêncio.
– Berleand?
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– Seria realmente melhor que você voltasse para Paris.
Não gostei nem um pouco da maneira como ele disse isso.
– Desculpe, mas não vai dar.
Mais silêncio.
– Quem é ele? – perguntei.
– Você não está preparado para enfrentar essa situação sozinho –
disse ele.
Olhando para o Win, falei:
– Tenho alguma ajuda.
– Não será o bastante.
– Você não é o primeiro a nos subestimar.
– Sei com quem você está. Sei que é muito rico, conheço a
reputação dele. Mas isso não basta. Você pode ser muito bom em encontrar
pessoas e ajudar atletas com problemas judiciais. Mas não está
preparado para lidar com isso.
– Se eu fosse menos casca-grossa – falei –, talvez estivesse com as
calças borradas agora.
– Se você fosse menos cabeça-dura, escutaria meu conselho. Tenha
cuidado, Myron. E mantenha contato.
Ele desligou. Virando-me para Win, falei:
– Talvez a gente possa encaminhar a foto para alguém nos Estados
Unidos que consiga fazer a identificação do sujeito.
– Conheço uma pessoa na Interpol – disse Win.
Mas ele não olhava para mim, e sim por sobre meu ombro. Virei-me
para ver para onde. Era novamente para a tela da TV.
Terese estava lá, mas toda a sua determinação havia desaparecido.
Encontrava-se aos prantos, o corpo curvado para a frente. Tentei decifrar
o que estava dizendo, mas as palavras saíam distorcidas pela angústia.
Win pegou o controle remoto e aumentou o volume. Terese repetia
a mesma frase incessantemente, mas só quando ela deixou o
corpo escorregar para o chão consegui entender o que era.
Dirigindo-se a alguma força superior, ela suplicava:
– Por favor, permita que ela esteja viva!
112/348
13
JÁ ERA TARDE QUANDO CHEGAMOS ao hotel Claridge’s, no centro de
Londres. Win havia reservado a suíte Davies. Era uma cobertura e
tinha uma ampla sala de estar e três quartos enormes, todos com camas
king-size com dossel, além de maravilhosas banheiras de mármore
profundas e chuveiros grandes como tampas de bueiro. Abrimos
todas as portas de vidro que davam para a varanda, que oferecia uma
vista extraordinária da paisagem urbana londrina – mas, para ser sincero,
àquela altura eu já estava meio cansado de vistas extraordinárias.
Terese passou um bom tempo lá fora. Parecia um prisioneiro no
corredor da morte, alternando entre apatia e emoção. Estava arrasada,
mas ainda nutria alguma esperança. E talvez fosse isso que mais a
apavorava.
– Vamos voltar para dentro? – perguntei.
– Daqui a pouco.
Não sou exatamente especialista em linguagem corporal, mas todos
os músculos de seu corpo pareciam tensos, retraídos em postura de
defesa. Fiquei esperando junto da porta. O quarto dela era decorado
em azul e amarelo-girassol. Olhei para a cama. Talvez fosse errado,
mas minha vontade era carregá-la para aquele colchão e fazer amor
por horas.
Tudo bem, nada de “talvez”. Era errado, sim. Mas...
Quando falo coisas desse tipo perto de Win, ele diz que pareço uma
mocinha.
Olhando para os ombros nus de Terese, lembrei-me do dia (depois
do Caribe, quando ela foi a Nova Jersey para me ajudar) em que a vi
sorrir, sorrir de verdade, pela primeira vez. Pensei que estivesse me
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apaixonando. De modo geral, entro nos relacionamentos como... bem,
como uma mocinha, fazendo planos para o futuro. Daquela vez a coisa
aconteceu do nada. Ela sorriu e, naquela noite, fizemos amor de um
jeito diferente, com mais carinho, e, quando terminamos, beijei seus
ombros nus e depois Terese chorou, também pela primeira vez.
Naquele dia ela sorriu e chorou pela primeira vez.
E, alguns dias depois, sumiu.
Ela se virou para mim e foi como se pudesse ler meus pensamentos.
Fomos para a sala de estar, que tinha teto oval e chão de tábuas corridas.
A lareira crepitava. Win, Terese e eu nos acomodamos ao redor
dela e começamos a planejar racionalmente o que fazer em seguida.
Terese foi logo ao ponto:
– Precisamos dar um jeito de exumar o corpo da minha filha. Se é
que há um corpo naquele túmulo.
Assim. Sem rodeios, sem lágrimas.
– Temos de contratar um advogado.
– Vou pedir a meu pessoal que cuide disso amanhã bem cedo –
prosseguiu Win.
A Lock-Horne Investimentos tinha uma filial no centro de Londres.
– Também acho que devíamos investigar aquele acidente – falei. –
Talvez possamos ver algum arquivo da polícia, falar com os responsáveis
pelo caso, esse tipo de coisa.
Eles concordaram. E a conversa continuou assim, como se estivéssemos
em uma sala de reuniões debatendo ideias para o lançamento
de um novo produto, e não em um quarto de hotel cogitando o
fato de a filha de Terese ainda estar viva. Uma bizarrice. Win começou
a dar telefonemas. Descobrimos que Karen Tower, a mulher de Rick
Collins, ainda morava no mesmo endereço em Londres. Terese e eu
iríamos lá de manhã para falar com ela.
Depois de um tempo, Terese tomou dois comprimidos, foi para o
quarto e fechou a porta. Eu estava exausto, por causa da diferença de
fuso horário e de tudo o que acontecera durante o dia. Era difícil
114/348
acreditar que havia aterrissado em Paris naquela mesma manhã. Mas
eu não queria dormir. Adoro ficar batendo papo com Win.
Ele abriu um pequeno armário da sala e voltou com uma taça de
conhaque na mão. De modo geral, prefiro tomar algo mais vigoroso:
chocolate, mas me contentei com uma garrafa de água mineral.
Ligamos para o restaurante e pedimos alguns aperitivos.
Como era bom voltar à normalidade.
Mee entreabriu uma porta e olhou para Win. Ele apenas mexeu os
lábios fazendo um “não” e o lindo rostinho dela sumiu de vista.
– Ainda não é hora de Mee recolher.
Balancei a cabeça e Win perguntou:
– Qual é exatamente seu problema com Mee?
– Co-Mee-go ou com a aeromoça?
– Comissária de bordo – disse ele.
Win tinha mania de policiar minha escolha de palavras.
– Ela me parece jovem demais.
– Tem quase 20 anos – respondeu ele, rindo. – Adoro quando você
me censura.
– Não cabe a mim julgar ninguém – retruquei.
– Ótimo, porque quero defender minha tese.
– Sobre?
– Sobre você e a Sra. Collins naquele avião. Você, meu caro amigo,
vê o sexo como uma atividade que requer um componente emocional.
Eu, não. Para você, o ato em si, por mais extraordinário que seja fisicamente,
não basta. De minha parte, vejo a coisa por outro ângulo.
– Ou por outra câmera.
– Boa. Mas me deixe continuar. Para mim, “fazer amor”... para usar
uma expressão sua, porque pessoalmente não tenho nada contra
“comer”, “foder” ou “trepar”... bem, é um ato sagrado. É tudo na vida.
E acredito que ele alcança seu estado mais elevado, mais puro, por assim
dizer, quando é um fim em si mesmo, sem nenhuma bagagem
emocional que o macule. Entendeu?
– Ahã.
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– É uma questão de escolha. Só isso. Eu vejo por um ângulo e você,
por outro. E nenhum deles é melhor que o outro.
– Mas e sua tese, qual é, afinal?
– No avião, fiquei observando sua conversa com Terese.
– Sim, eu sei.
– Você estava louco para abraçá-la, não estava? Depois que soltou a
bomba? Queria tomá-la nos braços e reconfortá-la, não queria? Pois é.
Aquele componente emocional que mencionei ainda há pouco.
– Não entendi.
– Quando vocês ficaram sozinhos naquela ilha, tiveram dias de sexo
maravilhoso e apenas físico. Vocês mal se conheciam, mas isso não
impediu que aquela pequena temporada os consolasse, os revigorasse,
os curasse de suas dores. Mas agora, depois que o emocional entrou
na jogada, vocês ficam atrelando sentimentos aos atos mais banais e
saudáveis e não conseguem nem se abraçar.
Win inclinou a cabeça para o lado e abriu um sorriso.
– Por quê? – concluiu ele.
Ele estava coberto de razão. Por que diabos eu não havia estendido
os braços para Terese naquele momento? Mais do que isso, por que
não havia conseguido estendê-los?
– Porque teria sido doloroso – respondi.
Win virou o rosto como se isso encerrasse o assunto. Mas não encerrava.
Muita gente acreditava que era por autoproteção que ele
nunca se entregava de fato às mulheres com quem se envolvia. Nunca
engoli essa história. Era uma explicação cômoda demais.
Ele conferiu as horas no relógio.
– Só mais um conhaque – disse – e depois... ah, essa você vai adorar:
vou Mee deitar.
Balancei a cabeça. O telefone da suíte tocou. Win atendeu, trocou
algumas palavras e desligou. Depois disse:
– Está muito cansado?
– Por quê? O que houve?
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– O policial que investigou o acidente de Terese está aposentado.
Ele se chama Nigel Manderson e, segundo um dos meus colaboradores
acaba de informar, está enchendo a cara em um pub na Coldharbour
Lane neste exato momento. Se você quiser, podemos dar uma
passada por lá.
– Vamos nessa – falei.
117/348
14
COLDHARBOUR LANE É UMA RUA de aproximadamente um quilômetro e
meio que liga Camberwell a Brixton, no sul de Londres. A limusine
nos deixou diante de um bar bastante agitado, o Suns and Doves,
pelas bandas de Camberwell. O terceiro andar do prédio tinha metade
da altura dos demais, como se o construtor tivesse perdido o ânimo e
pensado: ah, bobagem, já tem espaço suficiente.
Seguimos caminhando pela quadra e entramos em uma viela onde
duas lojas ainda estavam abertas: uma de produtos naturais e uma
boa e velha head shop, que vendia toda espécie de parafernália para o
consumo de tabaco e algumas substâncias mais nocivas.
– Esta área da cidade é famosa pelas gangues e pelo tráfico de drogas
– disse Win, como um guia turístico. – Daí o apelido da rua. Coldharbour
Lane é conhecida como... escuta essa, Crackharbour Lane.
– Conhecida pelas gangues, pelo tráfico e pelos apelidos criativos –
falei.
– O que você esperava de malandros e traficantes?
A viela era escura e fétida. Dava a impressão de que os bandidos de
Oliver Twist poderiam surgir das sombras a qualquer instante. Dali a
pouco chegamos a um pub cavernoso chamado Careless Whisper.
Imediatamente pensei em George Michael cantando o famoso verso
em que o conquistador arrependido diz que jamais poderá dançar
novamente, porque “os pés de quem tem culpa perdem o ritmo”. Ah,
os anos 1980... No fim, deduzi que o nome do pub não teria a ver com
a música, mas provavelmente com os assuntos indiscretos de que as
pessoas tratavam ali dentro.
Mas estava enganado.
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Quando abri a porta, tive a sensação de estar voltando no tempo. O
clássico “Our House”, da banda Madness, vazou para a calçada junto
com dois casais que se abraçavam, aparentemente mais por uma
questão de equilíbrio do que de afeto. O fedor de salsichas fritas empesteava
o ambiente. O chão estava melado. O lugar era barulhento e
pequeno demais para a multidão que se comprimia lá. E as leis antifumo
do país decerto ainda não haviam chegado ali. Assim como outras
tantas, pensei.
Tratava-se de um pub no melhor estilo punk new wave dos anos
1980. O problema era que os anos 1980 já tinham passado havia
muito tempo. Uma TV enorme exibia a imagem de um petulante Judd
Nelson no filme Clube dos cinco. As garçonetes abriam caminho através
da turba usando vestidos pretos, batons de cores fortes, cabelos
jogados para trás com gel e rostos tão brancos que lembravam uma
encenação de cabúqui. Levavam guitarras presas ao corpo. A ideia era
que parecessem com as modelos daquele clipe de Robert Palmer, “Addicted
to Love”, mas o problema era que as garçonetes eram... bem...
mais “maduras” e menos bonitas. Era como se o clipe tivesse sido refilmado
com o elenco de As supergatas.
Os garotos do Madness terminaram de contar sua história sobre “a
casa no meio da rua” e deram lugar às meninas do Bananarama, que
agora se ofereciam para serem nossas Vênus e nosso fogo, sempre ao
nosso dispor.
Win me cutucou com o cotovelo.
– Sabe a palavra “vênus”?
– O que tem? – berrei de volta.
– Quando eu era jovem, não entendia que era isso. Pensava que elas
estavam cantando “sou seu pênis”. Ficava confuso.
– Obrigado por compartilhar isso comigo.
Apesar de toda a decoração punk new wave, estávamos na periferia
pobre de Londres, em um bar frequentado por trabalhadores calejados
e mulheres que já tinham visto de tudo um pouco na vida. Um refúgio
para pessoas que tinham suado a camisa o dia inteiro e agora
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buscavam sua merecida diversão. Era simplesmente impossível tentar
se passar por frequentador de um lugar como aquele. Eu estava de
jeans, mas nem de longe parecia me encaixar ali. E Win era a própria
barra de chocolate na mesa de café da manhã de um spa.
As pessoas (algumas usando ombreiras e gravatas de couro fininhas
e exalando um cheiro de xampu barato) fulminavam meu amigo com
o olhar. Era sempre assim. Win não pedia compaixão, mas as pessoas
tinham ódio dele à primeira vista. A gente sabe que as pessoas se
prendem a preconceitos e estereótipos por toda parte. Elas olhavam
para Win e logo enxergavam uma vida de privilégios. Tinham vontade
de ofendê-lo, bater nele.
Isso acontecia com ele desde sempre. Não conheço a história toda (a
“origem” de Win, para usar a linguagem dos super-heróis), mas sei
que uma dessas surras que ele levou na infância foi a gota d’água. O
garoto já estava farto de sentir medo. Então usou o dinheiro que tinha
e seus talentos naturais e passou anos desenvolvendo algumas habilidades.
Quando enfim nos conhecemos na universidade, Win já era
praticamente uma arma letal.
Ele agora enfrentava os olhares tortos com um sorriso nos lábios,
cumprimentando um ou outro com um aceno de cabeça. O pub era
uma espelunca velha e por muito pouco não lembrava um cenário, o
que lhe conferia uma autenticidade ainda maior. As mulheres eram
grandes e peitudas, com cabelos desgrenhados. Muitas usavam casacos
de moletom que deixavam um ombro à mostra, em estilo Flashdance.
Uma delas se virou para Win. Tinha um sorriso banguela e um
penteado com fitinhas que não ajudava em nada. De resto, parecia ter
aplicado a maquiagem com uma arma de paintball, dentro de um
quarto escuro.
– Ora, ora – falou. – Mas você é mesmo um gato!
– Pois é – devolveu Win. – Sou mesmo.
O barman veio nos atender. Usava uma camiseta em que se lia
FRANKIE SAY RELAX, uma alusão ao primeiro single de uma banda que
havia nascido e morrido nos anos 1980.
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– Duas cervejas – pedi.
Win balançou a cabeça.
– Ele quis dizer dois pints.
De novo, a terminologia.
Perguntei por Nigel Manderson e o barman sequer piscou. Logo vi
que ele não iria ajudar. Então me virei para trás e berrei:
– Quem de vocês aí é Nigel Manderson?
Um homem de camisa branca com pregas e ombreiras largas ergueu
o copo. Parecia ter saído de um clipe do Spandau Ballet.
– Saúde, amigo – ele engrolou na outra ponta do balcão.
Caminhei até onde ele estava. Nigel segurava o copo com o cuidado
de quem leva nas mãos um passarinho recém-caído do ninho. Os olhos
estavam injetados e o nariz era estriado de pequenas veias, como
perninhas de aranha – no caso dele, uma aranha atropelada.
– Muito bom, este lugar – falei.
– Fabuloso, não é? Um diamante bruto que faz lembrar os bons
tempos. E você, quem é?
Apresentei-me e perguntei se ele se lembrava de um acidente de
carro que havia ocorrido 10 anos antes. Quando mencionei o nome de
Terese, ele me interrompeu.
– Não me lembro de nada – disse ele.
– Terese Collins era uma apresentadora de telejornal famosa. A
filha dela morreu no acidente. Tinha 7 anos.
– Continuo não lembrando.
– Você trabalhou em muitos casos assim, com a morte de uma criança
de 7 anos?
Ele se virou no banco para me encarar.
– Está me chamando de mentiroso?
Eu sabia que o sotaque do sujeito era legítimo, mas, para meus
ouvidos incompetentes, ele soava um tanto como o de Dick van Dyke
em Mary Poppins. Fiquei pensando que o homem a qualquer instante
poderia se oferecer para limpar minha chaminé.
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Informei-lhe a marca do carro e o local onde havia ocorrido o
acidente. Ouvi um barulho à minha esquerda, um uauá, e me virei
para ver o que era: alguém jogava Space Invaders em uma máquina de
pinball.
– Já me aposentei – disse ele.
Insisti, repetindo pacientemente todos os detalhes que sabia. Atrás
dele, a TV passava Clube dos cinco. Confesso que aquilo estava me distraindo.
Gosto desse filme, nem sei por quê. O elenco só pode ser uma
piada. Lutador casca-grossa: o magrelo do Emilio Estevez. Valentão
rebelde: Judd Nelson. Tenha dó! Quem seria menos recomendado
para o papel? Era um absurdo tão grande quanto – voltando às Supergatas
– escalar Bea Arthur para refilmar um papel qualquer da Marilyn.
No entanto, por algum milagre, o elenco funcionou e o filme deu
certo. Sou viciado nele. Sei todas as falas de cor.
Dali a pouco Nigel Manderson disse:
– Pode ser que eu me lembre de alguma coisa.
Não falou com muita convicção. Terminou seu drinque e pediu mais
um. Ficou observando o barman servir outra dose e, assim que o copo
ficou cheio, ele o levou à boca.
Olhei para Win. Como sempre, nenhuma pista na expressão do meu
amigo.
Ao lado dele, a mulher de maquiagem à la paintball (difícil dizer a
idade; parecia ter uns 50 anos, mas o mais provável era que tivesse
uns 25) falou:
– Moro aqui perto.
Win contemplou-a com aquele olhar de superioridade que tanto irrita
as pessoas.
– Decerto naquele beco – disse.
– Não! – retrucou ela às gargalhadas. Win era mesmo uma figura. –
Tenho um apartamento de subsolo.
– Deve ser um espetáculo – devolveu ele, as palavras pingando
sarcasmo.
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– Nada de mais – disse a mulher, passando batida pela ironia. –
Mas tem uma cama.
Ela ajeitou os meiões listrados de rosa e roxo, piscou para Win e, só
por garantia, caso a ficha dele ainda não tivesse caído, repetiu:
– Uma cama.
– Que ótimo.
– Quer dar uma conferida?
– Madame – disse Win, encarando-a –, prefiro que meu sêmen seja
recolhido por um cateter.
Mais uma piscadela.
– Isso é um jeito fino de dizer “sim”?
Virei-me para Manderson:
– Pode me dar alguma informação sobre o acidente?
– Quem é você, afinal?
– Um amigo da motorista.
– Conta outra.
– Por quê?
Ele deu mais um gole demorado. Bananarama parou de tocar,
dando lugar a “Save a Prayer”, um clássico do Duran Duran. Seguiu-se
um repentino silêncio. Alguém diminuiu as luzes do bar e as pessoas
ergueram isqueiros acesos, balançando o corpo de um lado para o
outro como se estivessem em um show.
Nigel também acendeu seu isqueiro.
– Você quer o quê? – disse. – Que eu acredite na sua palavra? Que
foi ela quem o mandou aqui?
Ele não estava de todo errado.
– E, mesmo que tivesse sido, esse tal acidente aconteceu... há quantos
anos, mesmo?
Eu já tinha dito duas vezes. Ele já ouvira duas vezes.
– Há 10 anos.
– E o que mais sua amiga precisaria saber agora?
Eu já ia respondendo quando fui silenciado por ele. As luzes baixaram
ainda mais. Agora todos cantavam em coro com o Duran Duran,
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balançando ao sabor da música e do álcool, ainda com seus isqueiros
em punho. Em meio a tantas cabeleiras esvoaçantes, não seria difícil
que uma delas acabasse em chamas. Quase todo mundo, inclusive Nigel
Manderson, tinha os olhos marejados.
Nossa conversa não estava indo a lugar algum, então decidi apostar
mais alto:
– O acidente não aconteceu do modo que você botou no relatório.
Nigel mal olhou para mim.
– Agora você está sugerindo que cometi um erro.
– Não. Estou afirmando que você mentiu.
Foi o que bastou para atiçá-lo. Ele baixou o isqueiro e alguns homens
próximos fizeram o mesmo. Ele olhou ao redor, fazendo sinal
com a cabeça para que os amigos se aproximassem. Minha preocupação
não era exatamente essa. Mantive os olhos grudados nele. Win
já observava os adversários. Estava armado, eu sabia. Não tinha visto
nada – e sei que não é lá muito fácil conseguir uma arma em território
britânico –, mas tinha certeza de que Win teria pelo menos uma
consigo.
Provavelmente não precisaríamos dela.
– Cai fora – disse Nigel.
– Se você mentiu sobre alguma coisa, vou descobrir o que foi.
– Dez anos depois? Boa sorte. Além do mais, não fui eu quem fez
aquele relatório. Já estava pronto quando cheguei lá.
– Como assim?
– Não fui o primeiro a ser chamado, colega.
– Quem foi, então?
Ele balançou a cabeça.
– Você disse que foi a Sra. Collins que mandou você aqui?
De uma hora para outra ele se lembra do nome de Terese e do fato
de que ela era casada.
– Sim.
– Então pergunte a ela. Ou à tal amiga que deu o telefonema.
Levei alguns instantes para digerir as novas informações.
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– Como se chamava essa amiga? – disse afinal.
– Não faço a menor ideia. Olha, quer saber de uma coisa? Eu apenas
assinei a porra daquele relatório. E, a esta altura do campeonato,
estou pouco me lixando. Já tenho minha pensãozinha de merda. Ninguém
pode fazer nada contra mim. Pois eu me lembro de tudo, sim.
Fui até o local do acidente. A amiga da Sra. Collins, uma ricaça aí,
tinha acionado o alto escalão. Um dos meus superiores já estava lá,
um filho da puta chamado Reginald Stubbs. Mas nem precisa perder
seu tempo procurando pelo infeliz. Faz três anos que ele bateu as
botas, comido pelo câncer, graças a Deus. Levaram o corpo da menina
em uma maca e correram com a mãe para o hospital. Isso é tudo o que
sei.
– Você viu a menina? – perguntei.
Ele ergueu o rosto do copo.
– O quê?
– Você disse que levaram a menina de maca. Viu o rosto dela?
– O corpo estava em um saco, porra – disse ele. – Mas, pela quantidade
de sangue, com certeza não tinha muita coisa para ver, mesmo
que eu fosse lá olhar.
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15
NA MANHÃ SEGUINTE, TERESE e eu fomos à casa de Karen Tower enquanto
Win ia consultar sua equipe jurídica. Precisávamos encontrar
meios legais de obter acesso aos arquivos do acidente e (só de pensar
nisso eu sentia arrepios) exumar o corpo de Miriam.
Tomamos um daqueles táxis pretos de Londres, que, se comparados
aos demais táxis do mundo, são um dos pequenos prazeres da vida.
Terese parecia surpreendentemente tranquila e focada. Eu já a havia
colocado a par da minha conversa com Nigel Manderson.
– Você acha que foi Karen quem chamou a polícia? – perguntou ela.
– Quem mais poderia ter sido?
Terese apenas balançou a cabeça e se calou. Seguimos em silêncio
por alguns minutos, até que, próximo a uma esquina, ela se inclinou
para a frente e falou ao motorista:
– Pode nos deixar ali.
Descemos do carro e seguimos pela calçada. Eu tinha ido poucas
vezes a Londres e não conhecia bem aquele bairro, mas tinha certeza
de que aquele não podia ser o endereço de Karen Tower.
O sol estava forte. Na esquina, Terese parou e levou as mãos acima
dos olhos para protegê-los do sol.
– Foi neste lugar que tudo aconteceu – falou.
Era uma esquina absolutamente comum.
– Nunca mais voltei aqui.
Eu não via motivos para que ela tivesse voltado, mas não disse
nada.
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– Saí da autoestrada por aquela rampa. Estava correndo um pouco
demais. O caminhão entrou na contramão ali – disse ela, apontando.
– Tentei desviar, mas...
Olhei a meu redor como se depois de 10 anos ainda fosse possível
encontrar alguma pista reveladora, alguma marca de derrapagem no
asfalto ou algo assim. Mas não havia nada. Terese seguiu em frente.
Fui atrás dela.
– A casa de Karen... Quer dizer, a casa de Karen e Rick, não é?, fica
logo depois daquela rotatória, à esquerda – falou ela.
– O que você acha que devemos fazer?
– Como assim?
– Quer que eu entre sozinho? – perguntei.
– Por quê?
– Talvez eu consiga tirar mais informações dela.
Terese fez que não com a cabeça.
– Não – disse. – Vamos entrar juntos, mas deixe que eu conduza a
conversa.
– Certo.
Quando enfim chegamos à casa, na Royal Crescent, já havia um
bom número de pessoas lá. Nada mais natural, embora eu não tivesse
pensado nisso. Rick Collins havia morrido. Decerto parentes e amigos
viriam dar os pêsames à viúva. Na soleira, Terese hesitou um instante,
mas depois apertou minha mão e entrou.
Senti quando ela retesou os músculos do corpo. Seguindo seu olhar,
deparei-me com uma cadela enroscada em um tapetinho. Era uma
bearded collie – igual ao cachorro de Esperanza, por isso identifiquei
a raça. Parecia velha e cansada, sequer se mexia. Terese soltou minha
mão e se ajoelhou para acariciá-la.
– Oi, menina – sussurrou. – Sou eu, lembra?
A cadela abanou o rabo como se isso lhe custasse um grande esforço,
mas o resto do corpo permaneceu imóvel. Lágrimas brotaram
nos olhos de Terese.
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– Esta é a Casey – disse ela. – Nós a compramos quando Miriam
tinha 5 anos.
A cadela enfim ergueu a cabeça, os olhos já embaçados pela catarata,
e lambeu a mão da ex-dona. Terese permaneceu ajoelhada a seu
lado. Casey ameaçou se levantar, mas foi dissuadida por um carinho
atrás das orelhas. Ainda retorcia a cabeça como se quisesse olhar
diretamente nos olhos da recém-chegada. Para facilitar, Terese se
posicionou à frente dela. Era um momento de ternura. De repente me
senti um intruso.
– Ela costumava dormir no quarto da Miriam. Entrava encolhidinha
embaixo da cama, depois ficava só com a cabeça de fora. Como se
estivesse de sentinela.
Ainda acariciando a cadela, Terese começou a chorar. Afastei-me
até um ponto em que podia protegê-las dos olhares curiosos, dandolhes
um pouco de privacidade.
Dali a alguns minutos, quando enfim se recompôs, Terese ficou de
pé e novamente tomou minha mão. Passamos à sala. Cerca de 15 pessoas
formavam uma fila.
Os cochichos e olhares começaram assim que nossa presença foi
percebida. Eu não havia me dado conta, mas lá estava a primeira esposa
na casa da atual, dando as caras no dia do velório do ex-marido,
depois de ter sumido por quase 10 anos. Aquilo ainda daria muito o
que falar.
As pessoas se afastaram e de trás delas surgiu uma mulher elegantemente
vestida de preto. Deduzi que fosse Karen. Era bonita, de porte
miúdo, e os olhos verdes pareciam de boneca. Um certo quê de Tuesday
Weld, para citar uma velha canção do Steely Dan. Eu não sabia o
que esperar, mas seus olhos brilharam quando viram Terese, que também
ficou visivelmente emocionada. As duas abriram um sorriso
triste, desses que damos para alguém muito querido que preferíamos
reencontrar em circunstâncias mais agradáveis.
Karen estendeu os braços e Terese a tomou nos seus. Elas ficaram
assim por alguns instantes, entrelaçadas, quase imóveis. Fiquei me
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perguntando que tipo de relação aquelas duas mulheres teriam e deduzi
que certamente se tratava de uma amizade bastante profunda.
Terminado o abraço, Karen gesticulou com a cabeça na direção de
outro cômodo e foi saindo. Terese me puxou pela mão para que eu
fosse junto. Passamos a uma espécie de sala íntima e Karen fechou as
portas de correr. As duas se acomodaram em um sofá como se já
tivessem feito aquilo um milhão de vezes e soubessem exatamente
onde se sentar. Nenhum sinal de constrangimento.
Terese se virou para mim e disse:
– Este é o Myron.
Estendi a mão e Karen a apertou com seus dedinhos miúdos.
– Meus sentimentos – falei.
– Obrigada – disse ela, virando-se para Terese e emendando: – É o
seu...
– É uma longa história – interrompeu Terese.
Karen não insistiu.
– Querem que eu espere lá fora? – perguntei.
– Não – respondeu Terese.
Fiquei onde estava. Ninguém sabia ao certo o que dizer e eu é que
não seria o primeiro a falar. Então permaneci em silêncio, tão resignado
quanto pude.
Foi Karen que, sem rodeios, disse afinal:
– Por onde você andou esse tempo todo, Terese?
– Por aí.
– Senti sua falta.
– Também senti a sua.
Silêncio.
– Eu tentei encontrar você – disse Karen. – E explicar. Sobre mim e
Rick.
– Não era importante – falou Terese.
– Foi o que Rick disse. Sabe, a coisa foi acontecendo aos poucos.
Você tinha sumido, então começamos a nos encontrar de vez em
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quando. Em busca de companhia. Demorou muito tempo até que
acontecesse alguma coisa entre nós.
– Não precisa se explicar.
– É, acho que não – disse Karen.
Nenhum sinal de culpa ou arrependimento, nenhum pedido de perdão
nas entrelinhas. Ambas pareciam bem resolvidas com relação ao
passado.
– Pena que a história de vocês tenha acabado dessa maneira – disse
Terese.
– Temos um filho chamado Matthew. Está com 4 anos.
– Eu sei.
– E sobre o assassinato? Como foi que você ficou sabendo?
– Eu estava em Paris – respondeu Terese.
Isso surpreendeu Karen. Ela recuou um pouco no sofá, piscando os
olhos.
– Era lá que você estava esse tempo todo?
– Não.
– Então não entendi.
– Rick me ligou – disse Terese.
– Quando?
Terese contou-lhe sobre o telefonema urgente de Rick. E o rosto de
Karen, que já lembrava uma máscara mortuária, empalideceu ainda
mais.
– Rick pediu que você fosse para Paris? – perguntou ela.
– Pediu.
– Para quê?
– Minha esperança era que você soubesse – respondeu Terese.
Karen fez que não com a cabeça.
– Já fazia um tempo que a gente não se falava muito. Estávamos atravessando
uma crise. Rick andava meio distante, mas eu achava, ou
esperava, que fosse por conta de uma história importante que ele
vinha investigando para o jornal. Você sabe como ele ficava nessas
ocasiões, não sabe?
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– É, sei. Há quanto tempo ele andava assim?
– Três ou quatro meses. Desde que perdeu o pai.
Terese se retesou.
– Sam?
– Achei que você soubesse.
– Não, não sabia.
– Pois é. Foi no inverno. Ele tomou um frasco inteiro de
comprimidos.
– Sam se suicidou?
– Estava doente, em estágio terminal. Mas não falava muito disso.
Rick não fazia ideia do estágio em que a doença estava. Acho que ela
piorou e Sam acabou escolhendo antecipar o inevitável. Rick ficou alucinado,
mas depois começou com a tal investigação. Ficava semanas
inteiras sem dar notícias. Quando eu perguntava do que se tratava, ele
se irritava. Depois voltava a ser gentil, mas não contava nada. Ou inventava
alguma mentira.
Terese ainda tentava digerir aquilo tudo.
– Sam era uma criatura tão doce... – falou.
– Não cheguei a conhecê-lo bem – disse Karen. – Fomos visitá-lo
apenas algumas vezes e, por causa da doença, ele não tinha condições
de vir para cá.
Terese engoliu em seco e tentou voltar ao assunto.
– Quer dizer então que o Sam se matou e o Rick se refugiou no
trabalho...
– É, mais ou menos isso.
– E ele não deu nenhuma pista sobre o que andava investigando?
– Não.
– Você não perguntou ao Mario?
– Sim, mas ele também não disse nada.
Não me dei o trabalho de perguntar quem era esse Mario. Certamente
Terese me contaria depois.
Terese prosseguiu, agora a todo vapor.
– E você não faz a menor ideia sobre o que Rick vinha investigando?
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Karen avaliou a amiga.
– Em que buraco você se escondeu, Terese?
– Em um bem difícil de achar.
– Talvez fosse isso que ele estivesse fazendo. Tentando encontrar
você.
– Não teria levado meses para descobrir.
– Tem certeza?
– E, mesmo que fosse isso, por que ele precisaria me encontrar?
– Não quero dar uma de mulher ciumenta – disse Karen –, mas
acho que o suicídio do pai pode levar uma pessoa a reavaliar suas
escolhas na vida.
Terese fez uma careta de descrença.
– Você acha que...
Karen deu de ombros.
– Duvido muito – disse Terese. – E, mesmo que você pense que
Rick estava tentando... sei lá, me reconquistar, por que ele diria que
era uma emergência?
Karen refletiu um instante.
– Onde você estava quando ele a achou?
– No meio do nada, no noroeste de Angola.
– E, quando ele falou que era urgente, você largou tudo e foi, não é?
– É.
Karen espalmou as mãos como se isso explicasse tudo.
– Rick não teria mentido para que eu fosse a Paris – argumentou
Terese.
Mas Karen não se deu por convencida. Estava triste quando
chegamos, mas agora parecia murcha. Terese olhou de relance para
mim. Assenti com a cabeça.
Já era hora de aumentar as apostas.
– Precisamos falar sobre o acidente – disse Terese.
As palavras atingiram Karen como uma arma de choque. Ela arregalou
os olhos e eles ficaram vidrados, sem foco. Fiquei me
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perguntando se ela sabia a que acidente Terese estava se referindo.
Pelo jeito, sim.
– O que tem o acidente?
– Você foi lá, não foi?
Karen não respondeu.
– Foi ou não?
– Sim, fui.
Terese pareceu um tanto surpresa com a resposta.
– Você nunca me contou.
– E por que contaria? Ou melhor, quando contaria? Nunca conversamos
sobre aquela noite. Nunca. Você despertou do coma e... Eu não
poderia simplesmente dizer “E aí, como está se sentindo? Eu estive lá,
no local do acidente”.
– O que você se lembra daquela noite?
– Que diferença isso pode fazer agora?
– Diga.
– Eu adoro você, Terese. E vou continuar adorando para sempre.
Algo havia mudado. Dava para perceber na expressão corporal de
Karen. Um enrijecer da postura, talvez. A melhor amiga saía de cena e
entrava a adversária.
– Também adoro você.
– Acho que não há um único dia em que eu não pense em você. Mas
você sumiu. Tinha lá seus motivos, sua dor, e eu podia entender. Mas
você sumiu. Construí uma vida com esse homem. Estávamos passando
por uma fase difícil, mas Rick era tudo para mim. Dá para você
entender?
– Claro.
– Eu o amava. Ele era o pai do meu filho. Matthew só tem 4 anos. E
alguém matou o pai dele.
Terese não disse nada, apenas esperou pelo que estava por vir.
– Pois neste exato momento nós estamos de luto e preciso lidar com
isso. Preciso enfrentar esse sofrimento e tentar manter minha vida de
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pé para proteger meu filho. Portanto, sinto muito, mas não vou falar
de um acidente de carro que aconteceu 10 anos atrás. Hoje, não.
Karen se levantou. Tudo fazia sentido, mas algo na voz dela soava
estranhamente oco, vazio.
– Estou tentando fazer o mesmo – disse Terese.
– Como assim?
– Proteger minha filha.
Novamente o efeito da arma de choque no olhar de Karen.
– Do que você está falando?
– O que foi que aconteceu com a Miriam?
Karen esquadrinhou o rosto de Terese. Em seguida olhou para mim,
como se eu pudesse oferecer alguma explicação. Mantive o olhar
firme.
– Você a viu naquela noite?
Mas Karen não respondeu. Abriu as portas de correr e sumiu entre
os visitantes.
134/348
16
CORRI PARA A ESCRIVANINHA assim que Karen saiu da sala.
– O que você está fazendo? – perguntou Terese.
– Bisbilhotando – respondi.
A escrivaninha era de um mogno bonito e sobre ela havia um
abridor de cartas dourado com uma lupa no cabo. A correspondência
aberta estava encaixada em pequenas divisórias verticais. Eu não me
sentia nem um pouco à vontade fazendo aquilo, mas também não me
remoía de culpa. Tirei do bolso o BlackBerry que Win me dera. Comecei
a abrir os envelopes e tirar fotos com a câmera do aparelho, excelente,
por sinal.
Encontrei alguns extratos de cartão de crédito. Não dispunha de
tempo para examiná-los um a um, mas, de qualquer modo, precisava
apenas dos números. Também havia contas de telefone (que me interessavam)
e contas de luz (que não interessavam). Abri as gavetas e
vasculhei o conteúdo de cada uma.
– O que você está procurando? – quis saber Terese.
– Um envelope em que esteja escrito “pista importantíssima”.
Eu estava contando com um milagre, claro. Alguma coisa sobre
Miriam. Fotos, talvez. De qualquer forma, os extratos, números de
telefone e contas provavelmente nos dariam alguma informação. Procurei
por uma agenda, mas não encontrei.
Topei com fotos de algumas pessoas que presumi serem Rick, Karen
e o filhinho deles, Matthew.
– Este aqui é o Rick? – perguntei.
Terese fez que sim com a cabeça.
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Fiquei sem saber exatamente o que pensar dele. Rick tinha um nariz
avantajado, olhos azuis e cabelos claros que ficavam no limite entre o
enrolado e o desgrenhado. Todo homem tem essa mania: vê a foto de
um concorrente e vai logo fazendo juízos e comparações. Percebi que
já ia embarcando nessa, então me contive. Guardei as fotos no mesmo
lugar e prossegui com a busca. Não havia mais fotos. Nenhuma filhinha
loura que ele tivesse escondido durante anos. Nenhuma fotografia
antiga de Terese.
Virei-me e vi um laptop sobre um aparador.
– Quanto tempo você acha que a gente ainda tem? – perguntei.
– Vou ficar vigiando a porta.
Abri o laptop. A tela se acendeu em segundos. Cliquei sobre o ícone
da agenda na barra de tarefas. Lá estava a rotina de Rick. Nada no último
mês. À direita havia apenas uma anotação de afazeres:
OPALA
HHK
4712
Eu não tinha a menor ideia do que aquela anotação poderia significar,
mas estava marcada como prioridade alta.
– Que foi? – disse Terese.
Li para ela o que havia encontrado e perguntei se sabia do que se
tratava. Não sabia. O tempo corria contra nós. Cogitei enviar todo o
conteúdo da agenda de Rick a Esperanza por e-mail, mas isso deixaria
rastros. Por outro lado, que importância isso poderia ter? Então me
lembrei de que Win possuía diversos endereços de e-mail anônimos.
Mandei para ele tanto os dados da agenda diária como os da de endereços.
Depois abri a pasta de mensagens enviadas e apaguei o
último e-mail.
Sou esperto ou não sou?
Lá estava eu, bisbilhotando a vida de um homem recentemente assassinado
enquanto a viúva o pranteava no outro cômodo. Parabéns,
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Myron. Talvez na saída você devesse dar um pontapé na cadelinha
também.
– Quem é esse Mario de que vocês falaram? – perguntei a Terese.
– Mario Contuzzi – disse ela. – O melhor amigo de Rick, produtor
assistente do jornal. Eles sempre trabalhavam juntos.
Procurei pelo nome dele na agenda de endereços. Bingo. Gravei os
números, o de casa e o do celular, em meu telefone.
De novo, a esperteza.
– Você sabe onde fica a Wilsham Street? – perguntei.
– Perto daqui, dá para ir a pé. Mario ainda mora lá?
Fiz que sim com a cabeça e disquei o número residencial dele. Um
homem com sotaque americano atendeu. Desliguei imediatamente.
– Ele está em casa – falei.
Que os detetives amadores estejam tomando nota.
– Precisamos nos apressar.
Rapidamente abri o arquivo de fotos. Havia muitas, mas nenhuma
que chamasse a atenção. Não seria possível enviar todas por e-mail
porque levaria horas. As imagens eram bastante comuns – o que,
naquele caso, significava comoventes. Karen parecia feliz ao lado do
marido. Rick também parecia feliz. Ambos irradiavam alegria junto do
filho. Posicionei o cursor sobre a pasta MATTHEW CHEGOU e as fotos rapidamente
foram exibidas em slide show. Fiz o mesmo com PRIMEIRO
ANIVERSÁRIO. De novo, fotos comuns e comoventes.
Na pasta PAPAI NO FUTEBOL, parei em uma das últimas imagens, em
que Rick e Matthew apareciam usando uniformes do Manchester United.
Rick, todo suado, sorria de orelha a orelha enquanto envolvia o
filho com o braço. Dava para perceber que ele estava ofegante, feliz
com a vitória. Matthew estava de uniforme de goleiro e luvas grandes
demais para suas mãozinhas e se aconchegava no pai. Não pude deixar
de pensar que aquele garotinho agora teria de viver sem seu pai
sorridente. Também me lembrei de Jack, outro garoto que teria de enfrentar
esse destino. E, por fim, pensei em meu próprio pai. Como eu
o amava e precisava dele! Fechei o arquivo.
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Terese e eu saímos rumo à porta principal da casa sem nos despedirmos.
Olhando para trás, vi o pequeno Matthew em uma cadeira
no canto, embrulhado em um terno escuro.
Meninos de 4 anos não combinam com ternos escuros. Combinam
com uniformes de futebol e abraços calorosos de pai.
www
Mario Contuzzi abriu a porta sem perguntar quem havia tocado a
campainha. Era um homem alto e esguio. Lembrava um weimaraner.
Apontou o queixo pontudo na direção de Terese e disse:
– Quanto sangue-frio...
– Prazer em revê-lo também, Mario.
– Um amigo que estava na casa de Karen acabou de ligar. Falou que
você apareceu por lá sem ao menos avisar. É isso mesmo?
– É.
– O que deu na sua cabeça? – disse Mario. E, virando-se para mim,
emendou: – E por que diabos resolveu levar junto esse merda aí? Logo
ele?
– Por acaso nos conhecemos? – perguntei.
Mario usava um desses óculos com aro de tartaruga que sempre me
cheiraram a gente que se esforçava para fazer tipo. Estava de camisa
social com alguns botões ainda abertos e calça de terno.
– Não estou com tempo para isso. Por favor, vão embora.
– Precisamos conversar – disse Terese.
– Tarde demais.
– Como assim, tarde demais?
Ele estendeu os braços e disse:
– Você foi embora, Terese, lembra? Tinha lá seus motivos, tudo
bem. A vida é sua. Mas você se mandou daqui e, agora que ele está
morto, quer bater um papinho comigo? Esqueça. Não tenho nada a
lhe dizer.
– Isso foi há muito tempo – disse ela.
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– É exatamente o que estou dizendo. Rick ficou esperando você voltar,
sabia? Esperou por dois anos. Você estava deprimida e atormentada,
o que era mais que compreensível. Mas isso não a impediu
de se jogar nos braços do Sr. Basquete aí, impediu?
Ele apontava para mim com o polegar. Era eu o “Sr. Basquete aí”.
– Rick soube disso? – perguntou Terese.
– Claro que sim. Achávamos que você estivesse no fundo do poço,
talvez vulnerável demais. Ficamos de olho em você. Acho que Rick
ainda tinha esperança de que você voltasse. Mas em vez disso você se
mandou para uma ilhazinha paradisíaca para ficar de sacanagem com
esse bola murcha.
Novamente ele apontou o polegar. Agora eu era o “bola murcha”.
– Vocês me seguiram? – disse Terese.
– Ficamos de olho em você, sim.
– Por quanto tempo?
Ele não respondeu. Subitamente sentiu necessidade de desenrolar a
manga da camisa.
– Por quanto tempo, Mario?
– Sempre sabíamos onde você estava. Não estou dizendo que não
fazíamos outra coisa na vida. Afinal, você passou seis anos naquele
campo de refugiados, não precisávamos ficar conferindo a toda hora.
Mas sabíamos do seu paradeiro. Por isso estou tão surpreso por vê-la
aqui agora, com esse palhaço das quadras. Achávamos que você já
tinha posto esse infeliz para correr há muito tempo.
Outra vez o polegar.
– Mario – chamei.
Ele olhou para mim.
– Se me apontar o polegar de novo, ele vai parar no seu intestino
grosso.
– Ah, o valentão está me ameaçando... – disse ele, com um sorriso
de sarcasmo. – Lembra meus tempos de escola.
Eu já estava pronto para tirar o assunto a limpo, mas achei que uma
briga não ajudaria em nada.
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– Temos algumas perguntas para lhe fazer – falei.
– E quem disse que vou responder? Acho que sua ficha ainda não
caiu. Essa mulher era casada com meu melhor amigo, depois foi vadiar
com você naquela ilha. Pode imaginar como Rick se sentiu?
– Mal? – falei.
Foi o que bastou. Virando-se para Terese, ele disse:
– Olha, não quero bancar o babaca irritadinho, mas você não tem
nada que fazer aqui. O que havia entre Rick e Karen era muito bom. E
você abriu mão disso há anos.
– Ele me culpava? – perguntou ela.
– De quê?
Ela não disse nada.
Os ombros de Mario murcharam, aparentemente na mesma proporção
de sua raiva.
– Não, Terese, ele nunca culpou você. Por nada disso. Eu, sim,
culpei você por tê-lo abandonado. Tudo bem, não tenho nada a ver
com isso. Mas ele nunca culpou você, nem por um segundo.
Ela permaneceu calada.
– Agora preciso me aprontar – disse Mario. – Estou ajudando Karen
com os preparativos. Preparativos... Até parece que é um
casamento.
Terese ainda parecia perplexa, então tomei a palavra:
– Você faz alguma ideia de quem possa ter matado Rick?
– Que foi, Bolitar, virou policial, é?
– Estávamos em Paris quando ele foi assassinado.
Virando-se para Terese, ele disse:
– Você esteve com Rick?
– Não deu tempo.
– Mas ele ligou para você?
– Ligou.
– Caramba!
Mario fechou os olhos. Ainda não havia nos convidado, mas fui entrando
e ele recuou um pouco, dando espaço. Eu esperava ver o
140/348
apartamento de um solteirão, não sei por quê, mas havia brinquedos
espalhados pelo chão e um chiqueirinho em um dos cantos, além de
mamadeiras na bancada.
– Eu me casei com a Ginny – disse ele a Terese. – Lembra-se dela?
– Claro. Que bom que você está feliz, Mario.
Ele parou um instante, talvez reavaliando as coisas, acalmando-se.
– Temos três filhos. Volta e meia a gente fala em comprar algo
maior, mas gostamos daqui. Além do mais, o preço dos imóveis em
Londres está absurdo.
Continuamos quietos.
– Quer dizer então que Rick ligou para você... – Mario disse a
Terese.
– É, ligou.
Ele balançou a cabeça.
– Você sabe de alguém que tivesse algum motivo para matá-lo? –
perguntei, quebrando o silêncio.
– Rick era um dos melhores repórteres investigativos do mundo.
Pisava no calo de muita gente.
– Alguém em particular?
– Não, até que não. Mas ainda não entendi o que isso tem a ver com
vocês dois.
Eu queria explicar, mas sabia que não tínhamos tempo.
– Você poderia nos dar só mais alguns minutos da sua atenção? –
pedi.
– Dar minha atenção? Como se eu tivesse algum interesse nisso?
– Por favor, é importante – emendou Terese.
– Só porque vocês estão dizendo que é?
– Você me conhece, Mario – disse ela. – Sabe que só estou pedindo
porque é importante mesmo.
Ele pensou um pouco.
– Mario?
– O que vocês querem saber?
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– O que o Rick andava investigando antes de morrer? – perguntou
ela.
Mario desviou o olhar e mordiscou o lábio inferior.
– Alguns meses atrás – disse –, ele começou a investigar uma
fundação chamada Salvem os Anjos.
– Do que se tratava?
– Francamente, não sei direito. Parece que começaram como um
grupo evangélico desses que protestam contra clínicas de aborto,
planejamento familiar, pesquisas com células-tronco, essas coisas.
Mas depois tomaram outro rumo. Rick estava obcecado para
descobrir tudo a respeito deles.
– E o que foi que descobriu?
– Não muito, acho. A estrutura financeira era meio estranha. Não
conseguíamos identificar as fontes. Mas, basicamente, o que eu disse:
eles eram contra aborto e pesquisas com células-tronco e defendiam
veementemente a adoção. Para falar a verdade, parecia um grupo
bastante coerente. Não vou tomar partido de quem opta pelo aborto
nem de quem o condena, mas acho que ambos os lados concordariam
que a adoção é uma alternativa viável. Ao que tudo indica, foi este o
rumo que eles tomaram: em vez de incendiar clínicas de aborto, passaram
a promover a adoção de crianças não desejadas.
– E Rick estava interessado nisso?
– Sim.
– Por quê?
– Sei lá.
– Mas o que o levou a investigar esse grupo?
– Também não sei direito... – disse Mario, as palavras sumindo aos
poucos no ar.
– Mas você desconfia de alguma coisa.
– Tudo começou quando ele voltou para casa, depois que o pai
morreu.
Mario virou-se para Terese.
– Você sabe que Sam morreu?
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– Karen me contou.
– Suicídio – disse ele.
– Sam estava doente, não estava?
– Estava. Huntington.
Terese ficou perplexa.
– Ele tinha a doença de Huntington?
– Não dá para acreditar, não é? Acho que ele não contou para ninguém
e, quando as coisas começaram a piorar... ele não quis enfrentar
o que estava por vir. Então abreviou a história.
– Mas... eu nunca soube disso.
– Nem o Rick. Na verdade, nem o próprio Sam, até certa altura.
– Como isso foi acontecer?
– Você sabe alguma coisa sobre a doença de Huntington? – perguntou
Mario.
Terese fez que sim com a cabeça.
– Fiz uma matéria sobre o assunto – disse. – Sei que é estritamente
hereditária. Um dos pais precisa ter a doença. Nesse caso, os filhos
têm 50% de chance de desenvolvê-la.
– Exatamente. Nossa tese era a de que... bem, o pai de Sam, avô de
Rick, tinha a doença, mas morreu na Normandia antes que os sintomas
começassem a aparecer. Portanto, Sam nunca soube de nada.
– E Rick? – perguntou Terese. – Ele fez os exames para saber se
tinha a doença?
– Não sei. Nem para Karen ele contou a história toda. Só disse que o
pai havia descoberto que tinha uma doença terminal. De qualquer
modo, ficou nos Estados Unidos por um tempo. Acho que para cuidar
dos assuntos de Sam, o espólio, essas coisas. Foi então que esbarrou
nesse grupo, Salvem os Anjos.
– Como?
– Não faço a menor ideia.
– Você disse que eles são contra as pesquisas com células-tronco.
Acha possível que isso tenha alguma coisa a ver com a doença de
Sam?
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– Pode ser, mas Rick basicamente pediu que eu fizesse o de sempre
e investigasse as finanças da fundação. Queria que eu descobrisse tudo
sobre o assunto e sobre as pessoas que comandavam o grupo. Até que,
a certa altura, ele falou para eu me afastar do caso.
– Ele desistiu de investigar?
– Não. Apenas pediu que eu me afastasse. Só eu. Ele, não.
– Você sabe por quê?
– Não, não sei. Um dia ele apareceu na minha sala, recolheu todos
os meus arquivos, depois disse algo realmente estranho.
Mario olhou para Terese, depois de volta para mim.
– Ele disse: “Você tem família. Precisa tomar cuidado.”
Esperamos que ele continuasse.
– Eu respondi o óbvio: “Você também tem.” Ele só deu de ombros.
Mas dava para ver que ele estava totalmente abatido. Você sabe como
ele era, Terese. Rick não tinha medo de nada.
– Era assim que ele estava quando falou comigo por telefone.
– Aí tentei fazer com que ele se abrisse comigo. Foi em vão. Ele me
deixou falando sozinho, saiu da sala e nunca mais tive notícias dele.
Até que me ligaram hoje.
– Alguma ideia quanto ao paradeiro desses arquivos?
– Ele costumava deixar cópias na redação.
– Talvez possamos descobrir alguma coisa se dermos uma olhada
neles – disse Terese.
Mario apenas a encarou.
– Por favor, Mario. Você sabe que eu não pediria isso à toa.
Ele ainda estava irritado, mas concordou:
– Amanhã bem cedo eu vejo se encontro alguma coisa, pode ser?
Olhei de relance para Terese, sem saber ao certo até onde podíamos
insistir. Aquele homem parecia conhecer Rick Collins até pelo avesso.
Deixei que ela decidisse.
– Rick vinha falando sobre Miriam recentemente? – perguntou
Terese.
144/348
Mario olhou para cima. Fez uma pausa. Ficamos esperando uma resposta
elaborada, mas ele disse apenas:
– Não.
Aguardamos, na expectativa de ele dizer mais alguma coisa. Não
disse.
– Acho que há uma chance – Terese começou a dizer – de Miriam
estar viva.
Se Mario Contuzzi sabia alguma coisa a respeito dessa história, só
poderia ser um psicopata. Não estou dizendo que as pessoas não sejam
capazes de mentir e enganar. Já vi os melhores do ramo fazendo
isso e, das duas, uma: ou eles enganam a si mesmos e acreditam piamente
na mentira que estão dizendo ou são psicopatas de carteirinha.
Caso Mario suspeitasse que Miriam estava viva, teria de pertencer a
uma dessas duas categorias.
Ele fez uma careta como se não tivesse ouvido direito. E, com uma
ponta de agressividade, falou:
– Que maluquice é essa agora?
Percebi que Terese havia precisado de todas as suas forças para
verbalizar o que dissera a Mario. Então assumi o controle e, tentando
aparentar o mínimo de sanidade mental, contei sobre as amostras de
sangue e os fios de cabelo louros. Mas não falei da garota no vídeo
gravado no aeroporto. A parte que estava contando a ele já era improvável
demais. Melhor apresentar os fatos que tinham comprovação
científica – um exame de DNA – e não apenas o aval da minha intuição,
baseada no modo de andar de uma garota que eu tinha visto nas
imagens granuladas de uma câmera de segurança.
Ele ficou calado por um longo tempo. Depois:
– Esses exames só podem estar errados.
Terese e eu não dissemos nada.
– Ou... espere aí! Estão achando que foi você quem matou Rick, não
estão?
– De início, sim, acharam que Terese tivesse alguma coisa a ver com
o assassinato.
145/348
– E você, Bolitar?
– Eu estava em Nova Jersey quando tudo aconteceu.
– Então suspeitaram de Terese, é isso?
– É.
– Vocês sabem como os policiais são. Gostam de confundir as pessoas,
de deixar a cabeça delas embaralhada. E não poderiam ter encontrado
uma maneira melhor de fazer isso. Dizer a você, Terese, que sua
filha talvez ainda esteja viva.
Foi minha vez de fazer careta.
– E de que modo isso ajudaria a confirmar as suspeitas deles?
– Como é que eu vou saber? Mas, quer dizer... sei que você adoraria
acreditar nessa hipótese, Terese. Aliás, eu também. Mas como isso poderia
ser verdade?
– “Uma vez eliminado o impossível, o que sobra, por mais improvável
que pareça, deve ser a verdade” – falei.
– Sir Arthur Conan Doyle – disse Mario.
– Exatamente.
– Você está disposto a ir tão longe assim, Bolitar?
– Até onde for preciso.
146/348
17
JÁ ESTÁVAMOS A UM QUARTEIRÃO de distância quando Terese disse:
– Preciso ver o túmulo da Miriam.
Tomamos um táxi e seguimos em silêncio. Chegando ao cemitério,
paramos diante do portão. Por que será que cemitérios sempre têm
muros e portões? O que exatamente eles estão protegendo?
– Quer que eu espere aqui fora? – perguntei.
– Quero.
Então fiquei do lado de fora, como se tivesse medo de pisar em solo
sagrado. Pensando bem, eu tinha.
Por segurança, mantive os olhos em Terese. Mas, quando ela se
ajoelhou diante do túmulo da filha, desviei o olhar e segui caminhando,
imaginando o que poderia estar passando por sua cabeça, nas
imagens que certamente lhe voltavam à lembrança. Péssima ideia
ficar pensando nisso. Então liguei para Esperanza em Nova York.
O telefone tocou seis vezes antes que ela atendesse.
– Já ouviu falar em fuso horário, espertinho?
Conferi a hora no celular e percebi que eram cinco da manhã em
Nova York.
– Opa, foi mal – falei.
– O que houve?
Decidi abrir o jogo e contar a ela sobre a menina de cabelos claros e
o exame de DNA.
– É a filha dela?
– Parece que sim.
– Que confusão... – disse Esperanza.
– Pois é.
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– Então, o que você quer de mim?
– Tirei algumas fotos. Contas de cartão de crédito, de telefone...
Mandei tudo por e-mail para o Win. Ah, também tem uma coisa estranha,
algo a ver com “opalas” na lista de afazeres.
– Opala, a pedra?
– Sei lá. Pode ser um código.
– Sou péssima com códigos.
– Eu também, mas talvez a gente tenha alguma luz. De qualquer
modo, primeiro precisamos descobrir o que Rick Collins andava
fazendo. Tem mais: o pai dele se suicidou.
Passei a ela todas as informações de que dispunha.
– Talvez a gente possa dar uma olhada nisso.
– Em um suicídio?
– É.
– E tentar descobrir o quê?
– Se houve alguma coisa suspeita, sei lá.
Seguiu-se um silêncio. Recomecei a andar.
– Esperanza?
– Eu gosto dela.
– De quem?
– Da Margaret Thatcher. De quem mais poderia ser? Da Terese,
cabeção. E você sabe como eu sou. Detesto todas as suas namoradas.
Refleti um instante.
– Você gosta da Ali – falei.
– Gosto. Ela é uma boa pessoa.
– Mas...
– Mas não é para você – disse ela.
– Por que não?
– Falta de intangíveis.
– Como assim?
– O que tornava você um atleta excepcional? – respondeu Esperanza.
– Não estou falando apenas bom atleta, mas um profissional dos
melhores, de primeira linha.
148/348
– Talento, esforço, genética...
– Muitas pessoas têm isso tudo. Mas o que distingue os excepcionais
dos quase excepcionais são os intangíveis.
– E Ali e eu...?
– Faltam os intangíveis.
Ouvi um bebê chorando ao fundo. O filhinho de Esperanza tinha
apenas 1 ano e meio.
– Hector ainda não dorme a noite inteira – disse ela. – Então você
pode imaginar como fiquei feliz quando o telefone tocou.
– Desculpe.
– Vou fazer o que você pediu. Se cuida. Diga a Terese para aguentar
firme. Vamos dar um jeito nisso.
Ela desligou antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa. De
modo geral, Win e Esperanza detestam quando me envolvo em
histórias assim. Mas dessa vez, por algum motivo, ambos vinham cooperando
ao máximo. Que estranho...
Um homem de óculos escuros, camisa verde e All Star preto de cano
alto passou caminhando displicentemente do outro lado da rua. Meu
alarme interno disparou. O sujeito tinha cabelos negros cortados
rentes ao crânio e a pele era escura também. Para mim, poderia ser
latino, árabe, grego ou italiano... sei lá.
Ele dobrou a esquina e sumiu. Esperei para ver se iria voltar. Não
voltou. Olhei ao redor para checar se mais alguém havia entrado em
cena. Algumas pessoas circulavam por perto, mas nenhuma fazia meu
alarme disparar.
Terese enfim voltou, os olhos já secos.
– Vamos de táxi? – falou.
– Você conhece bem essa região?
– Conheço.
– Tem alguma estação de metrô por aqui?
Ela fez que sim com a cabeça. Andamos dois quarteirões, Terese
mostrando o caminho.
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– Sei que é a pergunta mais idiota do mundo – falei –, mas você está
bem?
– Estou – disse ela. E depois: – Você acredita em coisas...
sobrenaturais?
– Tipo o quê?
– Fantasmas, espíritos, percepção extrassensorial...
– Não. Por quê? Você acredita?
Ela não respondeu diretamente.
– Esta foi só a segunda vez que visitei o túmulo da Miriam – disse.
Inseri meu cartão de crédito na máquina de bilhetes e Terese apertou
os botões necessários.
– Detesto ir lá. Não porque o cemitério me deixe triste. Mas porque
não sinto nada. Era de esperar que todo aquele sofrimento, todas as
lágrimas já derramadas naquele lugar... Você já parou para pensar
nisso quando estava dentro de um cemitério? Quantas pessoas já
choraram ali. Quantas pessoas foram lá se despedir de entes queridos.
Era de esperar que, sei lá, que todo o sofrimento que fica acumulado
se juntasse em um turbilhão de partículas invisíveis e produzisse algum
tipo de sensação cósmica. Uma sensação negativa, claro. Um
desconforto nos ossos, um frio na nuca, qualquer coisa.
– Mas você nunca sentiu nada disso.
– Nunca. A própria ideia de enterrar um morto e colocar uma pedra
com o nome dele por cima, tudo isso me parece um desperdício de espaço,
algo que herdamos de um passado repleto de superstições.
– No entanto, você quis voltar aqui hoje.
– Mas não para rezar.
– Então para quê?
– Você vai achar que fiquei maluca.
– Então conte.
– Quis voltar para ver se alguma coisa havia mudado ao longo da última
década. Para ver se desta vez eu sentiria alguma coisa.
– Não acho que seja maluquice.
150/348
– “Sentir” talvez não seja a palavra certa... Achei que voltar àquele
cemitério pudesse nos ajudar de alguma forma.
– Ajudar como?
Terese continuou andando.
– É o seguinte: achei que...
Ela parou e engoliu em seco.
– Que foi?
Piscando contra a luz do sol, ela respondeu:
– Também não acredito no sobrenatural. Mas sabe no que realmente
acredito?
Fiz que não com a cabeça.
– Acredito no laço entre mãe e filho. Não sei como dizer isso de
outra forma. Sou a mãe dela. A maternidade é o laço mais forte que
existe, certo? O amor de uma mãe pelos filhos é maior que qualquer
outro. Então eu deveria sentir alguma coisa, para o bem ou para o
mal. Deveria ser capaz de olhar para aquele túmulo e saber se minha
filha está viva ou não. Entende o que estou dizendo?
Meus instintos mandavam que eu dissesse algo meloso para
consolá-la, coisas do tipo “Como você poderia saber uma coisa dessas?”
ou “Não se martirize por isso”. Mas me contive a tempo. Tenho
um filho – pelo menos biologicamente. Ele já é adulto e agora está na
segunda missão fora do país, desta vez em Cabul. Fico preocupado
com ele o tempo todo e, mesmo não acreditando racionalmente que
isso seja possível, digo a mim mesmo que eu saberia caso algo acontecesse
a ele: teria um pressentimento, sentiria um frio na espinha,
qualquer bobagem dessa natureza.
– Entendo muito bem o que você está dizendo – falei.
Descemos por uma escada rolante que parecia interminável. Olhei
para trás. Nenhum sinal do homem de óculos escuros.
– E agora, o que a gente vai fazer? – perguntou Terese.
– Agora voltamos para o hotel. Você pode dar uma examinada nesse
material que encontramos na casa de Karen. Pense naquele código,
veja se ele lhe diz alguma coisa. Esperanza vai mandar por e-mail o
151/348
que descobrir. Aconteceu algo com Rick recentemente que mudou a
vida dele e fez com que a procurasse. O melhor que temos a fazer
agora é tentar descobrir o que ele vinha investigando nos últimos
meses, quem o matou e por quê. Por isso você precisa examinar as
coisas dele, para ver se algo chama sua atenção.
– O que você achou da nossa conversa com Karen?
– Vocês duas eram muito próximas, não eram?
– Muito.
– Então vou medir as palavras: tive a impressão de que ela não foi
totalmente franca. E você, o que achou?
– Até ontem eu colocaria minha mão no fogo por ela – disse Terese.
– Mas você tem razão. Karen está mentindo sobre alguma coisa.
– Sobre o quê? Você tem alguma ideia?
– Nenhuma.
– Então que tal tentarmos outra coisa? Pense no acidente e me
conte tudo de que se lembrar.
– Você acha que estou escondendo alguma coisa?
– Claro que não. Mas, depois de tudo o que você ficou sabendo,
talvez possa ver as coisas por outro ângulo, identificar algum detalhe
que lhe tenha escapado.
– Não, nada.
Terese olhou pela janela, mas só havia a escuridão do túnel para
ver.
– Passei os últimos 10 anos tentando esquecer aquela noite.
– Eu entendo.
– Não, não entende. Ao longo desses anos, eu repassei aquela noite
na minha cabeça todo santo dia.
Não falei nada.
– Examinei aquele acidente por todos os ângulos, imaginei todas as
possibilidades: se eu estivesse correndo menos, se tivesse escolhido
outro caminho, se tivesse deixado Miriam em casa, se não tivesse sido
tão ambiciosa... tudo. Não há mais nada a lembrar.
Descemos do trem e fomos caminhando rumo à saída.
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No saguão, meu celular vibrou. Era uma mensagem de Win:
LEVE TERESE PARA A COBERTURA. DEPOIS
VENHA PARA O QUARTO 118. SOZINHO.
Dois segundos depois, acrescentou:
POR FAVOR, POUPE-ME DE QUALQUER COMENTÁRIO
HOMOFÓBICO, AINDA
QUE SAGAZ, A RESPEITO DA ORIENTAÇÃO DE QUE VOCÊ VENHA
SOZINHO.
Win é a única pessoa que conheço que consegue ser mais verborrágica
nas mensagens de texto do que pessoalmente. Levei Terese para a
suíte na cobertura, onde havia um laptop com acesso à internet. Apontando
para ele, falei:
– Talvez você possa começar investigando a tal Fundação Salvem os
Anjos.
– Aonde você vai?
– Vou descer. Win quer falar comigo.
– Não posso ir junto?
– Ele pediu que eu fosse sozinho.
– Não estou gostando disso – falou Terese.
– Nem eu, mas prefiro não contrariá-lo.
– Esse seu amigo não bate muito bem da cabeça, bate?
– Win é perfeitamente lúcido. Só um pouco racional demais. Para
ele as coisas são pretas ou brancas. É o tipo de pessoa que acredita que
os fins justificam os meios.
– Os meios dele me parecem um tanto extremos.
– É verdade.
– Estou me referindo àquela ocasião em que ajudei você a encontrar
um doador.
Permaneci calado.
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– Win não está tentando proteger meus sentimentos, está?
– Win? Protegendo os sentimentos de uma mulher? Não combina
com ele.
– É melhor você ir logo.
– Já estou indo.
– Vai me contar o que ele disser?
– Provavelmente não. Se o Win quer poupar você de alguma coisa,
deve ter lá seus motivos. Acho que vai ter de confiar nele.
Ela assentiu com a cabeça e ficou de pé.
– Vou tomar um banho, depois entro na internet.
– Tudo bem.
Terese foi andando rumo ao quarto. Eu já estava prestes a sair
quando ela se virou para dizer:
– Myron?
Ela me encarava. Linda. Vulnerável e ao mesmo tempo forte. Parecia
estar se preparando para levar um golpe e minha vontade foi de
correr e protegê-la.
– Que foi? – perguntei.
– Eu te amo – disse ela.
Assim, sem rodeios. Encarando-me abertamente. Linda. Vulnerável
e ao mesmo tempo forte. Tive a impressão de que algo em meu peito
levantava voo. Fiquei ali, imóvel, temporariamente desprovido do
dom da fala.
– Sei que o momento não podia ser pior e não quero que isso interfira
no que estamos fazendo juntos. Seja como for, se Miriam estiver
viva ou se tudo isso não passar de uma brincadeira de péssimo gosto,
quero que você saiba: eu te amo. E quando essa história acabar, seja
do jeito que for, quero muito nos dar uma chance, a mim e a você.
Abri a boca, fechei-a, abri novamente.
– É que eu... meio que estou com outra pessoa.
– Eu sei. Como eu disse, o momento não poderia ser pior. Mas tudo
bem. Se você estiver apaixonado, fica tudo do jeito que está. Caso contrário,
estou aqui.
154/348
Terese não esperou por uma resposta. Deu as costas, abriu a porta
do quarto e sumiu dentro dele.
155/348
18
SEGUI ZONZO ATÉ o elevador.
Há uma canção não muito antiga do Snow Patrol mais ou menos assim:
“Aquelas três palavras... são ditas tantas vezes, mas não dizem
tudo.”
Bobagem. Elas dizem tudo.
Pensei em Ali no Arizona. Pensei em Terese, parada ali, dizendo que
me amava. Ela devia estar certa: melhor que aquilo não interferisse
em nada. Mas as palavras pairavam no ar. E me atormentavam.
As cortinas do quarto 118 estavam fechadas.
Eu já ia acendendo as luzes quando pensei melhor e mudei de ideia.
Win estava sentado em uma poltrona de veludo. Eu podia ouvir o gelo
rodopiando em seu drinque. Ele nunca se deixava afetar pelo álcool,
mas era cedo demais para beber.
Sentei-me em frente a ele. Somos amigos há muitos anos, desde a
faculdade. Ainda me lembro do dia em que vi a foto dele no livro de
calouros. A legenda informava seu nome, Windsor Horne Lockwood
III, e que ele vinha de algum colégio metido a besta dos subúrbios ricos
da Pensilvânia. Cabelos perfeitos e uma expressão arrogante.
Papai e eu tínhamos subido quatro lances de escada com minha bagagem.
Típico do meu pai. Ele me levara de carro de Nova Jersey até a
Carolina do Norte, sem abrir a boca uma única vez para reclamar,
sempre insistindo em carregar as sacolas mais pesadas. Quando
chegamos a meu quarto, nos sentamos um pouco para descansar e
começamos a folhear o livro de calouros. Eu apontei para a foto de
Win e disse: “Aposto que este eu não vou nem ver nos meus quatro
anos aqui.”
156/348
Eu estava errado, claro.
Por muito tempo achei que Win fosse indestrutível. Ele já havia
matado muita gente, mas ninguém que não tivesse feito por merecer.
Sei que é duro dizer uma coisa dessas. Mas o passar do tempo acaba
fazendo efeito sobre todos nós. O que parece excêntrico e perturbador
quando temos 20 ou 30 anos se torna quase patético aos 40.
– Vai ser difícil conseguirmos permissão para exumar o corpo –
Win foi logo dizendo. – Não temos justificativa para o pedido.
– Mas e os testes de DNA?
– As autoridades francesas não querem divulgar os resultados.
Também tentei o caminho mais curto: suborno.
– Ninguém aceitou?
– Ainda não. Alguém vai acabar aceitando, mas isso levará um
tempo, do qual acho que não dispomos.
Refleti um instante.
– Você tem alguma sugestão?
– Tenho.
– Sou todo ouvidos.
– Vamos subornar os coveiros. Fazemos a exumação por conta própria
hoje, na calada da noite. Só precisamos de uma pequena amostra.
Mandamos para nosso laboratório, comparamos com o DNA de Terese
e damos o assunto por encerrado.
Ele levantou os óculos.
– Mórbido, não? – falei.
– Porém eficaz.
– Acha que vale mesmo a pena?
– Por que não valeria?
– Já sabemos qual será o resultado.
– Sabemos?
– Percebi o tom de voz de Berleand. Ele falou que os resultados
eram inconclusivos, mas você e eu sabemos que não. Além disso, vi a
garota naquele vídeo da câmera de segurança. Tudo bem, não vi o
157/348
rosto e ela estava longe. Mas tinha o mesmo jeito de andar da mãe, se
é que você me entende.
– E tinha o mesmo derrière da mãe? Porque isso, sim, seria uma
prova contundente.
Não me dei o trabalho de responder.
Win suspirou e disse:
– Sei do que você está falando. Muitas vezes o jeito como uma pessoa
se porta revela mais sobre ela do que suas feições ou até mesmo sua
estatura.
– Pois é.
– Você e seu filho têm isso também – observou Win. – Quando ele
senta, sacode a perna do mesmo jeito que você. E, quando faz um arremesso,
os dedos escorregam da bola exatamente como os seus,
ainda que ele não pontue como você pontuava.
Acho que até aquele dia Win nunca havia feito qualquer menção a
meu filho.
– Seja como for, precisamos tocar essa história adiante – falei,
novamente pensando em Sherlock Holmes: eliminar o impossível. –
No fim das contas, o mais óbvio é que possa ter havido algum erro no
teste de DNA realizado na França. Precisamos tirar essa dúvida.
– Correto.
A ideia de violar um túmulo não me agradava nem um pouco, principalmente
sendo o túmulo de alguém que partiu tão cedo. Eu até consultaria
Terese antes, mas ela já havia deixado bem claro o que
pensava sobre a morte. Acabei concordando com a proposta de Win.
– Foi por isso que você pediu que eu viesse sozinho? – perguntei.
– Não.
Win deu um gole demorado, se levantou e reabasteceu seu copo.
Não se deu o trabalho de me oferecer uma dose. Sabia que não me dou
bem com álcool. Apesar de eu ter 1,93m e pesar 100 quilos, sou tão
fraco para bebida quanto uma adolescente que experimenta seu
primeiro coquetel.
– Você viu o vídeo da garota no aeroporto – disse ele.
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– Vi.
– E ela estava com o homem que atacou você. O da fotografia.
– Você sabe que sim.
– Sei.
– Então, o que houve?
Win apertou um botão de seu celular e levou o aparelho à orelha.
– Por favor, entre.
A porta do quarto anexo se abriu e uma mulher de tailleur azulescuro
veio a nosso encontro. Era alta, tinha ombros largos e cabelos
negros e brilhosos. Piscando, levou a mão aos olhos e disse:
– Por que essa escuridão toda?
O sotaque era inglês. Conhecendo Win como conheço, deduzi que se
tratava de uma coleguinha de Mee, por assim dizer. Mas não era o
caso. Ela atravessou a sala e se acomodou em uma poltrona.
– Esta é Lucy Probert – disse Win. – Trabalha para a Interpol aqui
em Londres.
Cumprimentei-a com uma frase qualquer, tipo “muito prazer”. Ela
balançou a cabeça e avaliou meu rosto como se estivesse diante de
uma pintura moderna incompreensível.
– Conte a ele – disse Win.
– Win me enviou a foto do homem que você agrediu.
– Não agredi ninguém – retruquei. – Fui ameaçado com uma arma.
Ela balançou a mão, dispensando solenemente meu comentário, e
prosseguiu:
– Minha divisão na Interpol trabalha com tráfico de crianças. Você
pode achar que o mundo está perdido, mas acredite: a situação é
ainda pior. Os crimes que investigo... bem, é espantoso ver o que as
pessoas são capazes de fazer. Seu amigo Win tem sido um aliado importante
nessa nossa luta diária.
Olhei para Win e, como sempre, não encontrei nenhuma pista na
expressão dele. Por muito tempo ele agiu como, digamos, um
“justiceiro”. Saía tarde pelos bairros mais perigosos de Nova York ou
da Filadélfia na esperança de ser atacado. Era a justificativa de que
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precisava para poder mutilar os criminosos. Lia nos jornais sobre um
pervertido que se safava por conta de uma formalidade qualquer no
julgamento ou descobria algum valentão que conseguia fazer a mulher
espancada ficar quieta e lhes fazia uma “visita noturna”, como gostava
de dizer. E houve o caso do pedófilo que os policiais sabiam que era
culpado mas foram obrigados a liberar sem terem conseguido
qualquer informação a respeito da garota que ele raptara. Win fez uma
de suas visitas. O sujeito falou. A garota foi encontrada, mas estava
morta. O pedófilo desapareceu para sempre.
Eu achava que Win já tivesse parado com isso, ou pelo menos diminuído
um pouco, mas então me dei conta de que estava enganado.
Ele vinha fazendo muitas viagens internacionais – agindo como um
“aliado importante” na luta contra o tráfico de crianças.
– Portanto – prosseguiu Lucy –, não pensei duas vezes quando ele
me ligou pedindo um favor. De qualquer modo, tratava-se de um pedido
razoavelmente inofensivo: jogar no sistema da Interpol a foto enviada
pelo capitão Berleand e descobrir a identidade do tal sujeito.
Procedimento comum, certo?
– Certo.
– Nem tanto. Na Interpol temos diversas maneiras de identificar
pessoas a partir de fotos. Temos, por exemplo, um software de reconhecimento
facial.
– Sra. Probert?
– Sim?
– Podemos pular a aula sobre tecnologias?
– Ótimo, porque não tenho vontade nem tempo de lhe dar uma. O
que estou querendo dizer é que esse tipo de pesquisa faz parte da rotina
na Interpol. Joguei a foto no sistema e fui embora para casa, certa
de que teria uma resposta na manhã seguinte. Então, Sr. Bolitar, fui
concisa o bastante?
Fiz que sim com a cabeça, dando-me conta de que não deveria tê-la
interrompido. Ela estava visivelmente agitada e eu não havia ajudado
em nada.
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– Pois bem. Hoje cedo, quando cheguei ao trabalho, achei que já
saberia a identidade do sujeito e poderia informá-la a vocês. Mas não
foi o que aconteceu. Em vez disso... como posso dizer educadamente?
Bem, tudo indica que eu tenha jogado bolos fecais no ventilador. Alguém
andou mexendo em minha mesa. Acessaram meu computador e
vasculharam o conteúdo dele. Não me pergunte como sei disso. Sei e
pronto.
Ela começou a procurar algo na bolsa. Encontrou um cigarro e o levou
à boca.
– Vocês, americanos, e seu antitabagismo. Se disserem qualquer
coisa sobre este cigarro...
Não dissemos nada.
Ela o acendeu, deu uma tragada demorada e soprou a fumaça.
– Em suma, aquela fotografia era confidencial, segredo de Estado,
ou seja lá qual for a terminologia que vocês preferirem.
– Você sabe por quê?
– Por que a foto era confidencial?
– Sim.
– Não, não sei. Tenho um cargo relativamente alto na Interpol. Se
fiquei de fora dessa, é porque se trata de algo muito importante. Sua
fotografia deixou o alto clero em polvorosa. Fui chamada à sala de
Mickey Walker, o chefão em Londres. Fazia dois anos que não tinha a
honra de pôr os pés lá. Ele queria saber onde eu havia conseguido a tal
foto e que motivos tinha para investigá-la.
– E o que você disse?
Ela olhou para Win e eu supus a resposta.
– Falei que havia recebido uma pista de uma fonte confiável e que o
homem da fotografia talvez estivesse envolvido com tráfico de
crianças.
– E ele perguntou o nome da fonte?
– Claro que perguntou.
– E você contou?
Win interveio e disse:
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– Eu teria feito questão.
– Não havia escolha – disse ela. – Teriam descoberto de qualquer
maneira. Bastava examinar minhas mensagens de e-mail e meus
telefonemas.
Olhei para Win. De novo, nenhuma reação. Lucy estava enganada:
eles não teriam chegado ao nome de Win, muito menos ao meu, mas
eu podia entender o lado dela. Estava claro que o caso era importante.
Não cooperar seria suicídio profissional – ou coisa pior. Win tinha
razão em revelar sua identidade.
– E agora? – perguntei.
– Eles querem falar comigo – respondeu Win.
– Sabem onde você está?
– Ainda não. Meus assessores jurídicos lhes comunicaram que eu
me apresentaria voluntariamente dentro de uma hora. Estamos registrados
neste hotel com nomes falsos, mas, se procurarem direito, vão
nos encontrar.
Lucy conferiu as horas no relógio.
– Preciso ir – disse.
Só então me lembrei do homem de óculos escuros, o que havia disparado
meu alarme interno no cemitério.
– É possível que a Interpol tenha colocado alguém para me seguir?
– Acho pouco provável.
– Você também está sob suspeita – argumentei. – Como sabe que
não foi seguida até aqui?
Ela olhou para Win.
– Ele é burro assim mesmo ou só tem preconceito contra mulheres?
Win refletiu um instante.
– É só preconceito, mesmo.
– Sou agente da Interpol – disse Lucy. – Claro que tomei minhas
precauções.
Se tivesse tomado desde o início, pensei com meus botões, as coisas
não teriam chegado àquele ponto. Mas fiquei quieto. Não era justo.
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Ela não poderia ter imaginado que uma consulta tão simples pudesse
ter tantas consequências.
Todos ficamos de pé. Lucy apertou minha mão, beijou o rosto de
Win e saiu. Win e eu nos sentamos novamente.
– O que você pretende dizer à Interpol? – perguntei.
– Não vejo motivos para mentir.
– É, tem razão.
– Portanto, vou dizer a verdade. Ou quase toda a verdade. Um
grande amigo meu, ou seja, você, foi atacado em Paris por aquele
homem e eu queria descobrir quem ele era. Posso alegar que menti
para Lucy e disse que o homem estava envolvido com tráfico de
crianças.
– O que, até onde sabemos, é uma possibilidade.
– Correto.
– Você se importa se eu contar tudo isso a Terese?
– Desde que não mencione o nome de Lucy...
Assenti com a cabeça.
– Precisamos descobrir quem é esse cara – falei.
Acompanhei meu amigo até o espetacular lobby do Claridge’s. Não
havia um quarteto de cordas tocando ali, mas era só isso que faltava. A
decoração recendia a tradição e muito dinheiro. Era um híbrido de
Velha Inglaterra e art déco, descontraído o bastante para acomodar
turistas de jeans e pomposo o suficiente para que a mobília e talvez os
relevos do teto torcessem o nariz se houvesse um. Eu gostava daquele
lugar. Win saiu e eu seguia para o elevador quando algo me deteve.
Um All Star preto de cano alto.
Parei e comecei a tatear os bolsos, olhando para trás com uma expressão
confusa, como se tivesse perdido algo. Myron Bolitar, o ator.
Enquanto fazia minha encenação, aproveitei para conferir de rabo de
olho o sujeito de tênis preto.
Os óculos escuros já não estavam mais lá. Agora havia uma jaqueta
azul e um boné de beisebol. Mas eu sabia que era o cara do cemitério.
E ele era bom nisso. De modo geral, as pessoas não se lembram de
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muita coisa. Se alguém tem cabelo curto e está de óculos escuros,
basta acrescentar um boné e uma jaqueta para confundir quem não
presta muita atenção.
Agora não restava dúvida: eu estava sendo seguido. Meu amigo do
cemitério atacava novamente.
Havia diversas maneiras de lidar com a situação, mas eu não estava
com paciência para sutilezas. Segui pelo corredor estreito que dava
acesso às salas de reuniões no subsolo do hotel. Era domingo, portanto
elas estariam vazias. Cruzei os braços, recostei-me contra o
vestiário à entrada e esperei que o sujeito chegasse.
Quando enfim ele apareceu, uns cinco minutos depois, peguei-o
pela camiseta e o empurrei para dentro.
– Por que está me seguindo?
Ele olhou para mim como se não tivesse entendido.
– Será por causa do meu queixo másculo? Dos meus belos olhos
azuis? Do meu bumbum malhado? Por falar nisso, acha que esta calça
me deixa gordo? Diga a verdade.
O homem me encarou por mais um segundo, talvez dois, depois fez
o que eu havia feito antes: atacou.
Espalmou a mão e tentou jogar meu rosto para trás. Bloqueei-o a
tempo, mas ele se virou para me dar uma cotovelada. Foi rápido, mais
do que eu previra, e acabou acertando meu queixo pela esquerda. Eu
tinha virado o rosto para amenizar o impacto, mas mesmo assim pude
sentir meus dentes bambearem. Ele continuou na ofensiva: uma
cotovelada, um chute, depois um soco no abdômen, que pegou em
cheio na parte inferior das minhas costelas. Aquilo ainda iria doer
muito. Quem assiste a lutas de boxe na TV sabe o que todo comentarista
diz: os golpes no tronco têm efeito cumulativo e a dor começa a
vir com força nos rounds posteriores. O que é só meia verdade, porque
a dor também é forte na hora. Tanto que faz a pessoa se contorcer e
baixar a guarda.
Eu estava em apuros.
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Parte do meu cérebro me recriminava pela estupidez de partir para
a briga sem ter uma arma ou Win como garantia. No entanto, outra
parte, bem maior, já havia entrado no modo “sobrevivência”. Mesmo
em brigas aparentemente mais bobas, seja em um bar ou em um jogo
de futebol, nossa adrenalina vai às alturas, porque o corpo tem consciência
daquilo que a cabeça talvez se recuse a aceitar: trata-se de
uma questão de sobrevivência. Podemos muito bem morrer ali.
Caí no chão e rolei para o lado. O vestiário era pequeno e o sujeito
sabia o que estava fazendo. Veio com chutes para cima de mim. Um
deles acertou minha cabeça. Como em um desenho animado, vi estrelas.
Pensei em gritar por ajuda, qualquer coisa para fazê-lo parar.
Rolei novamente, tentando me afastar e ao mesmo tempo prestando
atenção no timing do meu oponente. Então baixei a guarda, deixando
uma parte do corpo exposta. A intenção era atrair os golpes dele para
ali. E funcionou. Assim que o vi flexionar o joelho, rolei na direção
dele, curvei o tronco e preparei as mãos. O chute acertou a boca do
meu estômago, mas eu já estava preparado. Prendi o tornozelo dele
contra meu abdômen com ambas as mãos e rolei rapidamente. Ele
tinha duas opções. Deixar o corpo ir ao chão ou permitir que eu
quebrasse sua perna como se fosse um graveto seco.
Ele ainda desferiu alguns golpes enquanto caía, mas sem grande
efeito.
Eu estava zonzo, sentia dores por toda parte, mas agora tinha duas
grandes vantagens. Primeiro, ainda o prendia pelo tornozelo, embora
com menos firmeza. Segundo, agora que estávamos os dois no chão,
bem, o tamanho fazia diferença – isso, claro, sem nenhum trocadilho.
Eu apertava a perna dele com ambas as mãos e ele tentava se desvencilhar
com socos. Fui me aproximando com cuidado, protegendo a
cabeça contra o peito dele. A maioria das pessoas acha que o melhor a
fazer diante de uma saraivada de socos é se afastar. Pelo contrário. O
melhor é cravar o rosto contra o peito do oponente, diminuindo a
força dos golpes. Foi justamente o que fiz.
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Então ele ergueu os dois braços, na certa tentando me dar um telefone.
E ficou vulnerável. Não hesitei. Dei uma cabeçada contra o
queixo dele. O sujeito vacilou para trás e me joguei na direção dele.
Agora tudo se resumia a técnica, tamanho e alavancagem. Até então
eu levava a melhor nos dois últimos aspectos. Eu estava tonto por
causa dos golpes que levara, mas a cabeçada o havia afetado bastante
e sua perna ainda estava presa. Então torci-a cruelmente, e ele girou
no mesmo sentido.
Foi seu maior erro: ficar de costas para mim.
Larguei sua perna e pulei sobre ele, prendendo seu tronco com meu
peso e ao mesmo tempo tentando passar o braço direito por seu
pescoço. Ele sabia o que estava por vir. Começou a se debater, apavorado,
tentando me derrubar. Cravou o queixo contra o pescoço a fim de
bloquear meu braço. Então o golpeei na nuca, enfraquecendo-o o
bastante para que eu conseguisse puxar sua cabeça para trás. Ele
ainda lutou, mas não conseguiu impedir que eu abrisse espaço suficiente
para alcançar a garganta. Tudo pronto para a gravata final.
Agora era uma questão de tempo.
Foi então que ouvi um barulho, na verdade uma voz, gritando algo
em uma língua estrangeira. Minha primeira reação foi de soltá-lo e ver
do que se tratava, mas permaneci onde estava. Foi esse o meu erro.
Um segundo homem entrou no vestiário e acertou minha nuca,
provavelmente com a lateral da mão, em um clássico golpe de caratê.
Meu corpo inteiro começou a formigar, obrigando-me a diminuir a
força da gravata.
Ouvi o homem gritar novamente, na mesma língua de antes. Fiquei
confuso. Meu oponente enfim conseguiu se desvencilhar. Rolou para o
lado, arfando sofregamente. Agora eram dois contra um. Olhei para o
segundo homem e vi que ele apontava uma arma na minha direção.
Era o meu fim.
– Não se mexa – disse o homem, com um sotaque carregado.
Tentei encontrar um meio de sair dali, mas estava longe demais da
porta. Meu oponente ficou de pé. Ainda tinha dificuldade para
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respirar. Nossos olhares se cruzaram e havia algo inesperado na expressão
dele. Em vez de ódio, talvez respeito. Sei lá.
Olhei novamente para o que estava armado.
– Não se mexa – repetiu ele. – E não venha atrás de nós.
Então os dois saíram correndo.
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FUI AINDA CAMBALEANTE PARA o elevador. Tinha esperança de que ninguém
me visse, mas o elevador parou e uma família americana de seis
pessoas o aguardava. Todos arregalaram os olhos ao notar a camisa
rasgada, a boca ensanguentada e meu aspecto em geral, mas mesmo
assim entraram e me cumprimentaram. Por toda a subida, tive de
suportar a irmã mais velha implicando com o irmão, a mãe implorando
para que eles parassem, o pai tentando ignorá-los e os outros
dois irmãos trocando beliscões quando os demais não estavam
olhando.
Terese entrou em pânico quando abri a porta do quarto, mas reagiu
rápido. Ela me ajudou a entrar e ligou para Win. Meu amigo providenciou
um médico, que chegou logo e disse que nada havia sido fraturado.
Eu ia ficar bem. Minha cabeça doía e tudo o que eu queria era
dormir. Então o médico me deu algo para tomar e de repente tudo
ficou meio fora de foco. Depois disso, a única coisa de que me lembro
é de ter percebido a presença de Win no quarto escuro. Abri um olho,
depois o outro.
– Você é um idiota – disse ele.
– Muito obrigado, mas estou bem. Não precisa se preocupar.
– Devia ter esperado por mim.
– É meio tarde para dar conselhos.
Tentei sentar na cama. O corpo até queria colaborar, mas a cabeça
gritou em protesto. Apertei o crânio com ambas as mãos para que ele
não se partisse ao meio.
– Acho que descobri algo – falei.
– Sou todo ouvidos.
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As cortinas estavam abertas. Havia anoitecido. Olhei para o relógio
do celular. Já eram 10 horas, então me lembrei de uma coisa.
– O túmulo – falei.
– O que tem o túmulo?
– Estão exumando o corpo?
– Você ainda quer ir?
Disse que sim e fui trocar de roupa. Não avisei Terese. Tínhamos
conversado sobre o assunto antes e ela não via sentido em ir ao
cemitério. Win havia chamado uma limusine para nos buscar no hotel.
Fomos até um estacionamento particular e lá trocamos de carro.
– Tome isto – disse Win.
Ele me entregou um revólver pequeno, um Black Widow.
– Calibre 22? – perguntei.
De modo geral, Win preferia as armas maiores. Tipo, digamos, uma
bazuca ou um lança-mísseis.
– As leis britânicas sobre porte de armas são bastante severas.
Ele me passou um coldre para ser atado ao tornozelo.
– É melhor deixá-la escondida.
– Você também está com uma destas? – perguntei.
– Claro que não. Quer algo maior?
Não queria. Agradeci a oferta e prendi o coldre, que lembrava as
tornozeleiras dos meus tempos de basquete.
Eu imaginara que chegar ao cemitério seria mais... assombroso,
mas estava errado. Quando nos aproximamos, dois coveiros se encontravam
dentro do buraco e o trabalho estava quase terminado. Ambos
usavam casacos de plush verde-piscina que pareciam ter saído do
armário da minha tia Sophie, que morava em Miami. A maior parte do
serviço havia sido feita com o auxílio de uma pequena escavadeira amarela,
que agora, à direita da cova, parecia admirar o resultado de seu
esforço. Os dois funcionários precisavam apenas limpar o caixão o
bastante para que pudessem abri-lo um pouco, tirar algumas amostras
de dentro dele – ossos ou qualquer coisa assim – e depois fechá-lo e
cobri-lo novamente de terra.
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Verdade seja dita: aquilo já estava bastante assombroso.
Caía uma chuvinha fina. Aproximei-me da cova e olhei para dentro
dela. Win fez o mesmo. Estava escuro, mas nossos olhos já haviam se
adaptado o bastante para que pudéssemos distinguir as sombras. Lá
embaixo, debruçados sobre a urna, os dois homens prosseguiam no
trabalho.
– Você falou que havia descoberto algo – disse Win.
– Os homens que estavam me seguindo – respondi. – Falavam hebraico
e conheciam krav maga.
Krav maga é uma arte marcial israelense.
– E aparentemente eram muito bons – acrescentou Win.
– Entendeu aonde quero chegar?
– Bons em espionagem, bons em luta, falam hebraico e vão embora
sem matar você. É, tudo indica o Mossad.
– O que explica tanto interesse.
Um dos homens dentro da cova deixou escapar um palavrão.
– Algum problema? – perguntou Win.
– Esta merda está trancada!
Ele iluminou a urna com uma lanterna.
– Por que alguém trancaria um caixão? Nem na minha casa tenho
um cadeado tão parrudo assim! Estamos tentando algumas chaves.
– Arrombe – instruiu Win.
– Tem certeza?
– Quem vai ficar sabendo?
Os coveiros riram de um modo... bem, de um modo possível para
dois homens que estão profanando um túmulo.
– Tem razão – disse um deles.
Win virou-se novamente para mim.
– Então, que envolvimento você acha que Rick Collins poderia ter
com o Mossad?
– Não faço a menor ideia.
– E por que um acidente de carro que aconteceu 10 anos atrás poderia
despertar o interesse do serviço secreto israelense?
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– Também não faço ideia.
Win refletiu um instante.
– Vou ligar para a Zorra. Talvez ela possa ajudar.
Zorra era um travesti perigosíssimo que havia trabalhado para o
Mossad nos anos 1980 e já nos ajudara.
– Bem pensado – falei. – Se o sujeito que me atacou em Paris também
era do Mossad, isso explicaria muita coisa.
– Por exemplo, o chilique da Interpol por causa da consulta que
Lucy fez – disse Win.
– Mas, se ele era do Mossad, então o homem em quem atirei também
era.
Win ficou pensando naquilo.
– Ainda não temos como saber. Vamos falar com Zorra e ver o que
ela descobre.
Mais algumas marteladas e grunhidos e um dos coveiros anunciou:
– Consegui!
Olhamos para a cova. A lanterna nos deixava ver o esforço dos coveiros
para erguer a tampa do caixão, que parecia grande para uma
menina de 7 anos. Aquilo me surpreendeu, mas talvez explicasse
minha calma inicial ao chegar ali: eu não esperava encontrar o esqueleto
de uma menininha.
Não queria ver o que aconteceria a seguir, então me afastei. Tinha
ido apenas para observar, para me certificar de que conseguiríamos a
amostra de que necessitávamos. A história toda já era confusa o suficiente
para que acrescentássemos mais dúvidas a ela. Não queria deixar
nenhum furo que mais tarde, caso o resultado do teste fosse negativo,
desse margem a questionamentos do tipo “Como você sabe que
era o túmulo certo?” ou “Talvez os coveiros tenham mentido”. Precisava
eliminar o maior número possível de variáveis.
– Abrimos – anunciou um dos coveiros.
Vi quando Win se debruçou para olhar. Um sussurro veio das
profundezas:
– Deus do céu...
171/348
Depois, silêncio.
– Que foi? – perguntei.
– Um esqueleto – disse Win, ainda examinando a cova. – Pequeno.
Provavelmente de criança.
Todos ficamos ali, imóveis.
– Colham uma amostra – disse Win.
– Mas o quê? – perguntou um dos homens.
– Um osso ou algum pedaço de pele, se houver. Coloquem no saco
plástico.
Havia uma criança enterrada ali. Na verdade, eu não esperava por
isso. Olhei para Win e disse:
– Será que cometemos um grande erro?
Win deu de ombros.
– Exames de DNA não mentem.
– Mas, se esse aí não for o esqueleto de Miriam Collins, de quem
seria?
– Há outras possibilidades – disse Win.
– Tipo o quê?
– Minha equipe fez uma pequena investigação. Mais ou menos na
época do acidente de Miriam, uma menina de Brentwood desapareceu.
Muitos acharam que ela havia sido morta pelo pai. Mas nunca encontraram
o corpo. O pai está em liberdade até hoje.
Pensei no que Win tinha dito antes.
– Tem razão. É melhor não nos precipitarmos.
Win não disse nada.
Por fim encontrei coragem para olhar novamente dentro da cova.
Um dos homens, o rosto sujo de terra, me entregou a embalagem de
plástico.
– É todo seu, companheiro. Boa sorte. E pro inferno, vocês dois!
Win e eu fomos embora, levando conosco o ossinho frágil de uma
criança cujo sono havíamos perturbado no meio da noite.
172/348
20
JÁ ERA MADRUGADA QUANDO voltamos ao Claridge’s. Win foi direto
para o quarto, dor-Mee-r. Tomei um banho quente bem demorado,
abri o frigobar e sorri de orelha a orelha. Muitas caixinhas de achocolatado.
Obrigado, amigão.
Bebi uma delas, geladinha, e esperei pela onda do açúcar. Liguei a
TV e comecei a zapear – coisa de homem de verdade. Seriados americanos
da temporada passada.
A porta de Terese estava fechada, mas eu duvidava que ela estivesse
dormindo. Acomodei-me sozinho no sofá e respirei fundo várias
vezes. Olhei para o relógio: duas da manhã. Oito da noite em Nova
York. Cinco da tarde em Scottsdale, no Arizona.
Olhei para meu celular. Pensei em Ali, Erin e Jack, que a essa altura
já estavam no Arizona, um lugar que eu mal conhecia. Não era uma
região desértica? Por que, afinal, alguém iria querer morar lá?
Liguei para o celular de Ali. Depois de três toques, ela atendeu com
um preocupado alô.
– Oi – falei.
– Seu número não apareceu no identificador de chamadas – disse
ela.
– Troquei de aparelho, mas o número continua o mesmo.
Silêncio.
– Onde você está? – perguntou ela finalmente.
– Em Londres.
– Londres, Londres?
– Londres, Londres.
Ouvi uma voz ao fundo. Parecia a de Jack. Ali disse:
173/348
– Só um segundo, querido, estou no telefone.
Notei que ela não havia informado com quem estava falando, ao
contrário do que costumava fazer.
– Não sabia que você estava fora do país.
– Uma amiga ligou dizendo que precisava de ajuda.
– Uma amiga?
Só então me dei conta de onde havia me metido.
– É, uma amiga.
– Nossa, você foi rápido.
Eu queria dizer: “Não é nada disso que você está pensando.” Mas
parei para pensar um instante e disse:
– Eu a conheço há 10 anos.
– Sei. Só uma viagenzinha rápida para ver uma velha amiga, não é?
Silêncio. Então ouvi Jack novamente, insistindo em saber com
quem a mãe falava. As palavras dele saíam de algum buraco no Arizona,
atravessavam boa parte do continente, depois o Atlântico inteiro,
para dar um nó em meu coração.
– Preciso desligar, Myron. Você queria alguma coisa em especial?
Boa pergunta. Com certeza queria, mas aquele não era um bom
momento.
– Não, nada – falei.
Ali desligou. Fiquei encarando o celular, sentindo seu peso em
minha mão, depois pensei: espere aí, foi ela quem terminou comigo,
não foi? Fazia o quê? Dois dias, apenas?
E o que exatamente eu pretendia com aquela ligação? Por que havia
telefonado? Porque detesto situações mal resolvidas? Porque queria
fazer a coisa certa, fosse lá o que isso significasse naquele caso?
A dor dos golpes que eu levara de manhã começava a voltar. Fiquei
de pé e alonguei o corpo na tentativa de soltar os músculos. Olhei para
a porta do quarto de Terese. Fui até lá, abri uma fresta procurando
não fazer barulho e espiei. A luz estava apagada. Tentei ouvir a respiração
dela. Nada. Já ia fechando a porta quando ouvi:
– Por favor, não vá.
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– Tente dormir um pouco – falei.
– Fique, por favor.
Sempre fui muito cuidadoso com os assuntos do coração. Sempre
procurei fazer a coisa certa. Nada de encenações ou fingimentos. Com
exceção daquela fuga para o Caribe 10 anos antes, sempre me preocupei
com os sentimentos dos outros e com as consequências dos meus
atos.
– Não vá – insistiu ela.
Então entrei.
Quando nos beijamos, foi tempestade e redenção, uma entrega que
até então eu desconhecia. Foi como se eu estivesse parado ali, bem
quietinho, rendido, o coração tamborilando contra as costelas, o pulso
disparado, os joelhos bambos, os dedos dos pés retesados, os ouvidos
zunindo... o corpo inteiramente tomado de paz e felicidade.
Naquela noite nós sorrimos e choramos. Beijei mil vezes aqueles
lindos ombros nus. E, na manhã seguinte, ela não estava mais lá.
www
Mas, desta vez, só não estava na cama.
Encontrei-a tomando seu café na sala vizinha ao quarto. A cortina
estava aberta. Parafraseando uma velha canção, o sol da manhã no
rosto mostrava a idade dela – e a imagem me agradava. Terese estava
embrulhada no roupão do hotel, uma pequena fresta sugerindo toda a
beleza que se escondia do outro lado do tecido felpudo. Acho que
nunca vi algo tão belo em toda a vida.
Ela olhou para mim e sorriu.
– Olá – falei.
– Não precisa fazer charme. Já conseguiu me levar para a cama.
– Droga, fiquei acordado a noite inteira treinando esse “olá”.
– Bem, acho que o motivo de você ficar acordado foi outro. Quer
café?
– Por favor.
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Enquanto ela despejava o café na xícara, fui me acomodando muito
lentamente na cadeira. As dores da surra ressurgiam a todo vapor.
Pensei em ir pegar um dos analgésicos que o médico havia me receitado,
mas deixei para depois. Agora eu só queria me sentar ao lado
daquela mulher maravilhosa e tomar café em paz.
– Isto aqui é o paraíso – disse ela.
– É.
– Quem dera pudéssemos ficar para sempre.
– Acho que minha grana não ia dar.
Terese sorriu e tomou minha mão entre as dela.
– Quer saber uma coisa terrível? – perguntou.
– Diga.
– Parte de mim preferiria esquecer tudo isso e sumir no mundo com
você.
Eu entendia o que ela queria dizer.
– Sonhei tantas vezes com essa oportunidade de redenção e, agora
que ela chegou, por algum motivo acho que vai me destruir.
Erguendo o rosto, ela emendou:
– O que você acha que vai acontecer?
– Não vou deixar que ela a destrua – falei.
Terese abriu um sorriso triste.
– Acha que tem esse poder?
Ela estava certa. Às vezes digo coisas realmente estúpidas.
– O que você quer fazer? – perguntei.
– Descobrir tudo o que aconteceu naquela noite.
– Certo.
– Mas você não precisa se envolver mais nisso – disse ela.
– Preciso – respondi –, sobretudo depois do que aconteceu ontem.
– É verdade.
– Então, qual será nosso próximo passo? – perguntei.
– Acabei de falar com a Karen. Disse a ela que é hora de pôr as
cartas na mesa.
– E ela, como reagiu?
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– Não discutiu. Vamos nos encontrar daqui a uma hora.
– Quer que eu vá junto?
– Não. Desta vez precisamos conversar sozinhas.
– Tudo bem.
Ficamos ali, tomando nosso café, sem a menor vontade de falar ou
fazer o que quer que fosse.
Foi Terese quem quebrou o silêncio:
– Um de nós deveria dizer: “Sobre ontem à noite...”
– Vou deixar por sua conta.
– Foi bom pra caramba.
Sorri e disse:
– Foi mesmo. Eu sabia que devia deixar por sua conta.
Ela se levantou da mesa. Mulheres do mundo, deixem de lado as
rendas e os frufrus, esqueçam Victoria’s Secret, tanguinhas, fios dentais,
meias de seda, corpetes e baby-dolls. Não há nada que deixe uma
mulher bonita mais sexy que um roupão felpudo de hotel.
– Vou tomar um banho – disse Terese.
– É um convite?
– Não.
– Ah.
– O tempo está curto.
– Posso ser bem rápido.
– Eu sei. Mas a pressa é inimiga da perfeição.
– Ui, essa doeu.
Ela se abaixou para dar um selinho carinhoso em meus lábios, depois
disse:
– Obrigada.
Eu já ia dizer uma bobagem qualquer (tipo “não se esqueça de fazer
propaganda com as amigas” ou “faço tudo para satisfazer a clientela”),
mas algo em sua voz me fez mudar de ideia. Algo sofrido que me
abalou e me feriu. Então só apertei a mão dela e permaneci calado enquanto
a observava a caminho do banho.
177/348
21
WIN ME VIU E FOI logo dizendo:
– Até que enfim pegou, hein?
Pensei em reclamar, mas para quê?
– É – falei apenas.
– Detalhes, por favor.
– Cavalheiros não revelam detalhes.
Ele fez pirraça:
– Mas você sabe que eu adoro detalhes...
– E você sabe que eu nunca conto nada.
– Antes você me deixava espiar. Quando estávamos pegando a
Emily na faculdade, você deixava que eu visse tudo pela janela.
– Não era eu que deixava, era você que olhava. Eu consertava as
persianas, depois você ia lá e quebrava de novo. Você é um tarado,
Win, sabia?
– Alguns diriam que sou apenas um amigo interessado.
– Mas a maioria diria que você é um tarado.
Win deu de ombros.
– Ninguém é perfeito.
– Então – perguntei –, como estamos?
– Mandando bem com a mulherada.
– Além disso.
– Estive pensando em uma coisa... – disse Win.
– O quê?
– Talvez haja uma explicação mais simples para o sangue de Miriam
Collins estar na cena do crime. Aquela fundação, a Salvem os
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Anjos... Entre outras coisas, ela se preocupa com as pesquisas com
células-tronco, correto?
– De certo modo, mas sendo contra.
– E sabemos que Rick Collins talvez tenha descoberto que tinha a
doença de Huntington. O pai dele tinha, isso é certo.
– Sim.
– Hoje em dia as pessoas guardam o sangue do cordão umbilical
dos filhos. Congelam, ou algo assim. Esse sangue está cheio de célulastronco
e a ideia é que, no futuro, essas células possam vir a salvar a
vida da criança, talvez até a dos pais. É possível que Rick Collins tenha
guardado o sangue da filha e mais tarde, ao descobrir que estava
doente, tenha pensado em usá-lo.
– Mas células-tronco não curam a doença de Huntington.
– É verdade, ainda não.
– Você está dizendo o quê? Que Rick estava com o sangue congelado
quando foi morto e... sei lá, ele caiu no tapete?
Win deu de ombros e argumentou:
– Você acha isso mais absurdo do que Miriam Collins estar viva até
hoje?
– Mas e os fios de cabelo louros?
– Há muitas louras neste mundo. A garota que você viu no vídeo é
só uma delas.
Refleti um instante.
– Isso ainda não explica por que Rick foi assassinado.
– Verdade.
– Ainda acho que, seja lá o que tenha acontecido, começou com
aquele acidente de carro 10 anos atrás. Sabemos que aquele policial,
Nigel Manderson, mentiu.
– É – concordou Win.
– E Karen Tower está escondendo algo.
– E o tal Mario, o que você acha?
– O que tem ele? – perguntei.
– Está escondendo algo também?
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Parei um instante para pensar.
– Pode ser. Vamos nos encontrar hoje para examinar os arquivos do
Rick. Posso tentar descobrir mais alguma coisa.
– E agora temos os israelenses que talvez sejam do Mossad
seguindo você. Liguei para a Zorra. Ela vai consultar suas fontes.
– Ótimo.
– Por fim, há também seu contratempo em Paris e a tal foto que
deixou o alto escalão da Interpol em polvorosa.
– E sua conversa com eles, como foi?
– Eles perguntaram, eu respondi.
– Só não entendo uma coisa – falei. – Por que ainda não fui convocado
também?
Win sorriu e disse:
– Você sabe por quê.
– Estão me seguindo.
– Resposta correta.
– Está vendo alguma coisa?
– Carro preto na esquina da direita.
– Primeiro o Mossad, agora a Interpol.
– Meu amigo, você é mesmo muito popular.
– É porque sou um bom ouvinte. As pessoas gostam de ser ouvidas.
– De fato.
– Também sou muito divertido nas festas.
– E um dançarino de primeira. O que você quer que eu faça com
eles?
– Gostaria que os tirasse da minha cola por hoje.
– Feito.
www
Despistar alguém é relativamente fácil. No nosso caso, Win e eu embarcamos
em um carro com insulfilm e fomos para uma garagem subterrânea
com diversas saídas. O primeiro carro foi embora vazio.
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Chegaram outros dois em seguida. Então eu entrei em um e Win no
outro.
A essa altura Terese estava na casa de Karen.
Segui para meu encontro com Mario Contuzzi e em 20 minutos
cheguei ao apartamento dele. Ninguém atendeu à campainha. Conferi
as horas no celular. Eu havia chegado uns cinco minutos adiantado.
Fiquei pensando na história toda e no alvoroço que a foto de meu
agressor em Paris causara na Interpol.
Quem seria ele?
Eu já havia tentado de tudo para identificá-lo. Talvez fosse melhor
aproveitar aqueles minutos livres para tomar uma medida mais
extrema.
Liguei para o número particular de Berleand.
Dois toques bastaram para que alguém atendesse e dissesse algo em
francês.
– Gostaria de falar com o capitão Berleand.
– Ele está de férias. Posso ajudar em alguma coisa?
Férias? Tentei vislumbrar Berleand se deleitando nas praias de
Cannes, mas a cena não fazia sentido.
– Preciso muito falar com ele – insisti.
– Quem está falando?
Para que mentir?
– Myron Bolitar.
– Sinto muito, mas ele está de férias.
– Você poderia contatá-lo de algum modo e pedir que ligue para
mim? É urgente.
– Espere um instante.
Esperei.
Dali a um minuto outra pessoa veio à linha e, com um perfeito
sotaque americano e um tom áspero, disse:
– Posso ajudar em alguma coisa?
– Acho que não. Preciso falar com o capitão Berleand.
– Pode falar comigo, Sr. Bolitar.
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– Mas, pela voz, você não deve ser gente boa.
– Não sou. Muito engraçadinho da sua parte escapar da nossa vigilância
daquela maneira. Mas não estou achando graça nenhuma.
– Quem é você?
– Pode me chamar de agente especial Jones.
– Posso chamá-lo de superagente especial Jones? Onde está o capitão
Berleand?
– Berleand saiu de férias.
– Quando?
– Quando quebrou o protocolo mandando aquela foto para você.
Foi ele quem mandou, não foi?
Hesitei um pouco, depois disse:
– Não.
– Tudo bem. Onde você está, Bolitar?
Um telefone tocou dentro do apartamento de Mario Contuzzi.
Chamou uma vez, duas vezes, três.
– Bolitar?
Chamou seis vezes, depois desligaram.
– Sabemos que ainda está em Londres, mas onde?
Desliguei o celular e fiquei ali, contemplando a porta à minha
frente. O telefone que havia tocado tinha uma campainha comum; o
som não era de celular. Então teria que ser o fixo. Hum. Tateei a
porta. Parecia espessa e bastante sólida. Encostei a orelha nela, disquei
o número do celular de Mario e fiquei de olho no display do meu
aparelho. A ligação se completou alguns segundos depois.
Os trinados do celular de Mario surgiram distantes, do outro lado
da porta, bem diferentes da campainha forte que havia tocado pouco
antes. Senti um aperto no peito. Tudo bem, talvez aquilo não significasse
nada, mas hoje em dia ninguém sai de casa sem o celular. As
chances de que alguém que trabalha na televisão tivesse deixado o
aparelho em casa eram bastante remotas.
– Mario! – berrei.
Esmurrei a porta.
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– Mario!
Na verdade, não esperava que ele respondesse. Encostei novamente
a orelha à porta, tentando ouvir não sei bem o quê. Um gemido,
talvez. Um grunhido. Um pedido de socorro. Qualquer coisa.
Nem um ruído.
Comecei a avaliar minhas possibilidades. Não eram muitas. Então
recuei alguns passos e chutei a porta com toda a força. Ela nem se
mexeu.
– É reforçada com aço, companheiro – disse alguém. – Não há
chute que a derrube.
Virando o rosto, deparei-me com um homem de colete de couro
preto sem nenhuma camisa por baixo. O tipo físico dele não combinava
em nada com a roupa: seu corpo, bem à mostra, era ao mesmo
tempo magro e flácido. No nariz havia um piercing como esses de
touros e, no topo da cabeça, os poucos cabelos que ainda lhe restavam
espetavam-se para o alto em um estranho penteado moicano. Supus
que tivesse mais de 50 anos. Dava a impressão de que havia saído para
um bar gay em 1979 e só agora estivesse voltando para casa.
– Você conhece os Contuzzi? – perguntei.
O homem sorriu. Eu esperava algum desastre dental, mas, embora
o resto do corpo apresentasse os mais diversos estágios de decadência,
os dentes reluziam de tão brancos.
– Ah! – disse ele. – Você é americano.
– Sou.
– Amiguinho do Mario, é?
Diante das circunstâncias, não havia motivos para uma resposta
longa.
– Sou.
– Bem, o que posso dizer... De modo geral eles são um casal
bastante tranquilo, mas você sabe como é: quando o gato sai, os ratos
fazem a festa.
– Do que você está falando?
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– Ele estava com uma mocinha aí. Parecia dessas de vida fácil,
sabe? O som estava alto demais. Uma música horrorosa. Eagles.
Vocês, americanos, deviam ter vergonha.
– Fale mais sobre essa moça.
– Por quê?
Não havia tempo para maiores explicações. Então saquei minha
arma. Não o ameacei com ela, apenas tirei do coldre.
– Sou da polícia americana – disse. – Receio que Mario esteja correndo
perigo.
Se a arma ou minhas palavras haviam assustado o projeto de Billy
Idol, não dava para saber. Ele apenas sacudiu os ombros esqueléticos
e disse:
– Vejamos... Era jovem, loura... Não vi direito. Apareceu ontem à
noite quando eu ia saindo.
Jovem, loura. Meu coração disparou.
– Preciso entrar neste apartamento.
– Não adianta chutar, cara. O máximo que vai conseguir é quebrar o
pé.
Apontei a arma para a fechadura.
– Ei, espere aí! Você acha que ele pode estar mesmo em perigo?
– Acho.
Ele exalou um suspiro e, apontando, disse:
– Tem uma cópia da chave ali em cima.
Passei a mão sobre o batente da porta e, de fato, lá estava ela: a
chave. Coloquei-a na fechadura. Billy Idol se aproximou e só então
senti o fedor de cigarro que ele exalava, um cinzeiro ambulante. Abri a
porta e entrei, Billy Idol logo atrás de mim. Ambos paramos depois de
alguns passos, estupefatos.
– Meu Deus...
Não encontrei o que dizer. Fiquei ali, de olhos arregalados, incapaz
de me mexer. A primeira coisa que vi foram os pés descalços de Mario,
atados com fita adesiva à mesa de centro. O chiqueirinho e os bichos
de pelúcia que eu vira na véspera estavam espalhados em um canto.
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Imaginei se Mario teria ficado olhando para eles em seus últimos momentos
de vida.
Ao lado de seus pés jazia uma furadeira elétrica. Havia furos nos dedos
e em um dos calcanhares, pequenos círculos perfeitamente desenhados
em vermelho-escuro. Consegui obrigar minhas pernas a se
moverem e me aproximei. Mais buracos pelo corpo. No joelho. Nas
costelas. Lentamente, voltei os olhos para o rosto. Também havia furos
abaixo do nariz, através das bochechas e no queixo. Seus olhos
vidrados me encaravam. Mario sofrera muito antes de morrer.
Billy Idol novamente sussurrou:
– Meu Deus...
– A que horas você ouviu a música alta?
– O quê?
Não encontrei forças para repetir a pergunta, mas ele respondeu assim
mesmo.
– Cinco da manhã.
Mario havia sido torturado, e a música servira para abafar os gritos.
O sangue parecia razoavelmente fresco, mas eu não queria tocar em
nada para ter certeza. O assoalho estava coberto com o pó fino dos ossos.
Olhei para a furadeira e fiquei imaginando os ruídos estridentes
da máquina enquanto perfurava os músculos, as cartilagens, os ossos.
E os gritos de Mario.
Então me lembrei de Terese, que estaria a apenas algumas quadras
dali, na casa de Karen. Corri para a porta, gritando para Billy Idol:
– Chame a polícia!
– Espere aí! Aonde você vai?
Não havia tempo para explicações. Guardei a arma e, ainda correndo,
peguei o celular. Disquei o número de Terese. Um toque. Dois
toques. Três. Meu coração disparava no peito. Apertei o botão do elevador
não sei quantas vezes. A ligação estava no quarto toque quando
aconteceu: olhei de relance por uma janela e a vi, olhando para mim.
A moça loura da van.
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Ela me viu, deu meia-volta e saiu correndo. Não consegui ver direito
seu rosto. Na verdade, poderia ser qualquer moça loura. Mas não. Era
a garota da van. Disso eu tinha certeza.
Que diabos estaria acontecendo?
Minha cabeça começou a rodar. Eu já procurava por uma escada
quando o elevador enfim chegou. Entrei e apertei o botão do térreo.
A ligação para Terese caiu na caixa postal.
Não era para cair. Terese deveria estar na casa de Karen, que não
era fora da área de cobertura. E, ainda que ela estivesse no meio de
uma conversa muito séria, com certeza atenderia uma chamada
minha. Sabia que eu só iria ligar em caso de emergência.
Droga! E agora?
Pensei na furadeira. Pensei em Terese. Pensei no rosto de Mario
Contuzzi. Pensei na moça loura. As imagens rodopiavam em minha
cabeça quando a porta do elevador se abriu no térreo.
A que distância ficava a casa de Karen?
Duas quadras.
Corri para a calçada ao mesmo tempo que ligava para o Win, que
atendeu imediatamente. Antes que ele pudesse dizer “articule”, falei:
– Vá para a casa da Karen. Mario está morto. Terese não atende o
celular.
– Dez minutos – disse ele.
Desliguei e imediatamente senti o telefone vibrar. Olhei o nome na
tela. Parei.
Era Terese.
Atendi e disse:
– Terese?
Silêncio.
– Terese?
Então, do outro lado da linha, veio o zumbido estridente de uma
furadeira.
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A descarga de adrenalina me deixou sem ar. Fechei os olhos com
força, mas só por um segundo. Não havia tempo a perder. Minhas pernas
latejavam, mas corri ainda mais rápido.
O ruído da furadeira parou e a voz de um homem surgiu na linha:
– A vingança é uma merda, você não acha?
O sotaque inglês sofisticado, a mesma cadência que eu ouvira na
França: “Faça o que eu disser ou esta arma vai cuspir fogo.”
O homem do café em Paris. O da foto que Berleand havia mandado.
Ele desligou o telefone.
Peguei minha arma e segui correndo, com o celular na outra mão. O
medo é uma coisa estranha. Pode fazer milagres (todo mundo já ouviu
histórias sobre pessoas que conseguiram levantar um carro e salvar a
vida de alguém), mas também pode paralisar, dificultar a respiração,
debilitar o corpo e a mente. Correr fica tão difícil como se estivéssemos
em um pesadelo, fugindo através de um terreno pantanoso. Eu
precisava me acalmar, apesar do buraco que o medo havia aberto em
meu peito.
Agora eu podia avistar a casa de Karen mais adiante.
A moça loura se encontrava à porta.
Assim que ela me viu, entrou apressada. Era uma armadilha, claro.
Mas, diante das circunstâncias, o que eu poderia fazer? O barulho da
furadeira no outro lado da linha ainda atormentava meus ouvidos.
Mas certamente era o objetivo da ligação. Win havia pedido 10
minutos para chegar. A essa altura já teriam se passado o quê? Uns
três ou quatro, no máximo.
Deveria esperar por ele? Poderia me dar a esse luxo?
Então fui me aproximando da casa, o tronco abaixado, tentando ao
máximo não ser visto. Apertei o número de Win na discagem rápida.
– Cinco minutos – disse ele apenas, antes de eu desligar.
A moça loura já havia entrado. Eu não sabia quem mais estava com
ela, tampouco qual era a situação. Cinco minutos. Eu conseguiria esperar
cinco minutos. Seriam os mais longos de toda a minha vida, mas
eu conseguiria. Precisava esperar, não podia deixar que o pânico me
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dominasse. Agachei-me e me esgueirei até a janela mais próxima.
Tentei ouvir algo. Nada. Nenhum grito. Nenhuma furadeira. Mas isso
não me dizia se eu poderia me sentir aliviado ou se tinha chegado
tarde demais.
Fiquei ali, recostado contra os tijolos da parede, sob uma janela.
Tentei me lembrar da disposição dos cômodos. Aquela janela dava
para a sala de estar. Bem, e daí? Daí nada. Esperei. Era bom sentir o
peso da arma em minha mão. Armas sempre passam essa sensação,
sejam do tamanho que forem. Eu atirava bem, mas não era nenhum
perito. Não tinha tanta prática. Mas era capaz de mirar no centro de
um tórax e chegar bem próximo do alvo.
Pois bem, e agora?
Calma. Win já devia estar chegando. Ele era bom nessas coisas.
“A vingança é uma merda, você não acha?”
O sotaque sofisticado, a frieza. Pensei mais uma vez em Mario,
naqueles furos hediondos, na agonia inimaginável. Quanto tempo
aquele pesadelo teria durado? Por quanto tempo Mario tivera de
suportar a dor? Teria reagido de alguma forma ou simplesmente implorado
por uma morte rápida?
O som de sirenes vinha ao longe. Talvez a polícia já estivesse a caminho
do apartamento de Mario.
Como não uso relógio, consultei as horas no celular. Se a previsão
de Win estivesse correta, como de costume, ele ainda levaria três
minutos para chegar. O que fazer então?
Minha arma.
Será que a loura a teria visto? Dificilmente. Como Win tinha dito,
não é comum as pessoas portarem armas de fogo na Inglaterra. Quem
quer que estivesse naquela casa decerto não poderia prever que eu andasse
armado. Guardei a arma de volta no coldre do tornozelo.
Três minutos.
Meu celular tocou. O número de Terese outra vez. Atendi com um
hesitante alô.
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– Sabemos que você está aí fora – disse o homem com sotaque refinado.
– Você tem 10 segundos para atravessar aquela porta com as
mãos para o alto. Caso contrário, uma destas belas senhoras levará
uma bala na testa. Um, dois...
– Estou indo.
– Três, quatro...
Eu não tinha alternativa. Corri em direção à porta.
– Cinco, seis, sete...
– Não atire. Estou quase chegando.
“Não atire.” Dã. Por outro lado, que mais eu poderia dizer?
Girei a maçaneta. A porta estava destrancada. Entrei.
– Eu disse “com as mãos para o alto”.
Ergui os braços. O homem da foto me encarava do outro lado da
sala, o rosto coberto de esparadrapos, os olhos rodeados pelos hematomas
do nariz quebrado. Fossem outras as circunstâncias, eu teria ficado
feliz com aquela imagem, mas, para início de conversa, ele estava
armado. Além disso, Terese e Karen se encontravam agachadas diante
dele, com as mãos atadas às costas. Na medida do possível, ambas
pareciam bem.
Olhando à minha volta, vi mais dois homens, ambos com armas
apontadas para a minha cabeça.
Nenhum sinal da garota loura.
Permaneci absolutamente imóvel, com as mãos para o alto, tentando
parecer o menos ameaçador possível. Win já devia estar
chegando. Mais um ou dois minutos. Eu precisava ganhar tempo. Olhei
para o homem que havia me atacado em Paris e, procurando
manter a voz calma, falei:
– Olha, vamos conversar. Não há motivo para...
Ele encostou a arma na nuca de Karen, sorriu para mim e puxou o
gatilho.
O som foi ensurdecedor. Um pequeno jorro vermelho, um instante
de paralisia e silêncio e só então o corpo de Karen tombou, como uma
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marionete cujas cordas houvessem sido cortadas. Terese deu um grito.
Talvez eu também.
O homem começou a mover a arma na direção de Terese.
Não, não, não, não, não...
– Não!
Meus instintos assumiram o comando: “Salve a vida de Terese.”
Mergulhei na direção dele como se estivesse em uma piscina. Os dois
homens à minha direita e à minha esquerda dispararam, mas ambos
haviam cometido o erro comum de mirar na cabeça, e as balas passaram
alto demais. Pela visão periférica, percebi Terese se afastar rolando
enquanto o homem fazia sua mira.
Eu precisava ser rápido.
Teria de fazer várias coisas ao mesmo tempo: manter a cabeça
baixa, desviar das balas, atravessar a sala, sacar a arma do coldre,
matar o filho da puta. Já estava a meio caminho. Um zigue-zague teria
sido a melhor rota naquela situação, mas não havia tempo. O mantra
se repetia em minha cabeça: “Salve a vida de Terese.” Eu precisava alcançar
o homem antes que ele puxasse o gatilho outra vez.
Gritei o mais alto que pude, não por medo, mas para chamar sua
atenção, fazer com que pelo menos ele hesitasse ou se virasse para
mim, qualquer coisa que o impedisse, ainda que por uma fração de segundo,
de atirar em Terese.
Eu já estava bem próximo.
Perdi toda a noção de tempo. Talvez um ou dois segundos tivessem
transcorrido desde a execução de Karen, não mais que isso. Apenas alguns
passos me separavam do homem da foto, portanto não havia
tempo para pensar ou planejar o que quer que fosse.
Mas percebi que chegaria tarde demais. Estendi os braços, como se
com isso pudesse preencher o espaço entre nós. Não podia. Não estava
perto o bastante.
Ele puxou o gatilho.
Outro disparo. Terese foi ao chão.
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Meu grito se reduziu a um grunhido rouco de angústia. Foi como se
meu coração estivesse sendo esmagado. Continuei avançando, apesar
de o homem agora erguer a arma na minha direção. Não havia mais
medo, só o ódio me guiava. A arma já estava próxima, quase no meu
nariz, quando baixei o tronco e arremeti contra meu adversário. Ele
disparou novamente, mas errou.
Empurrei-o com força contra a parede, erguendo-o do chão, e ele
me deu uma coronhada nas costas. Em outro mundo ou outro tempo,
eu teria sentido uma dor excruciante, mas naquele momento aquilo
eram cócegas para mim. Eu já havia ultrapassado os limites da dor, já
não me importava com absolutamente nada. Caímos ruidosamente no
chão. Soltei-o e me levantei com um movimento rápido, tentando ganhar
espaço para alcançar o coldre.
O que foi um erro.
Estava tão determinado a sacar a arma e matar o canalha que acabei
me esquecendo de que não estávamos sozinhos. O homem que estivera
à minha direita veio correndo com a arma em punho. Pulei para
trás quando ele puxou o gatilho. Tarde demais.
O tiro me acertou.
Dor. O metal quente perfurava minha carne, roubando meu fôlego e
arremessando-me de costas no chão. O homem mirou outra vez, mas
outro tiro veio antes do dele, acertando seu pescoço com tamanha
fúria que por pouco não o decapitou. Ergui os olhos do corpo inerte, já
sabendo o que havia acontecido.
Win tinha chegado.
O segundo homem, à minha esquerda, virou-se a tempo apenas de
ver Win girar o tronco e atirar de novo. A bala enorme o atingiu em
cheio no rosto, reduzindo sua cabeça a pó. Olhei para Terese. Ela não
se mexia. O homem da foto, o homem que havia atirado nela, agora
corria para a sala íntima. Ouvi mais disparos. Alguém gritou, ordenando
que eu ficasse onde estava. Eu ignorei o comando e me arrastei,
indo atrás dele. O sangue jorrava. Não dava para ter certeza, mas deduzi
que a bala teria se alojado em algum ponto próximo ao estômago.
191/348
Atravessei a porta sem ao menos verificar se era seguro prosseguir.
Vá em frente, eu pensava, acabe com esse desgraçado. Ele já estava
próximo à janela. Todo o meu corpo doía e talvez eu já delirasse, mas
consegui estender os braços a tempo de agarrar uma de suas pernas.
Ele chutou, tentando se desvencilhar, mas não conseguiu e foi ao
chão.
Lutamos. Ele não seria páreo para minha raiva. Esmaguei um de
seus olhos com o polegar, debilitando-o. Cravei a mão em sua garganta
e apertei com toda a força. Ele começou a se debater, distribuindo
murros por meu rosto e meu pescoço. Aguentei firme.
– Parado! Solte o homem!
Vozes ao longe. Um alvoroço qualquer. Eu nem sabia ao certo se
aquelas vozes seriam mesmo reais. Pareciam o zunir do vento. Talvez
eu estivesse tendo alucinações. O sotaque era americano. Familiar,
até.
Eu ainda apertava a garganta do sujeito.
– Parado! Já!
Eu estava cercado. Seis, talvez oito homens. A maioria com armas
apontadas para mim.
Voltei os olhos para o assassino e percebi uma ponta de escárnio em
sua expressão. Meus dedos começavam a relaxar, talvez obedecendo à
ordem de soltá-lo ou talvez porque a bala no abdômen começasse a
roubar minhas forças. Larguei-o e ele tossiu até recuperar o fôlego.
Então ergueu sua arma.
Exatamente como eu esperava.
Eu já havia sacado a minha. Com a mão esquerda, agarrei seu pulso.
– Não! – gritou o americano de voz familiar.
Mas a essa altura eu sequer me importava em levar outro tiro.
Ainda apertando o pulso do sujeito, finquei o cano da arma sob seu
queixo e disparei. Algo úmido e pegajoso chuviscou em meu rosto.
Larguei a arma e me deixei cair sobre o corpo inerte à minha frente.
Os homens ao redor – muitos deles, a julgar pelo peso – se
lançaram sobre mim. Agora que eu já havia feito o que devia, minhas
192/348
forças e minha vontade de continuar vivo se esvaíam. Podiam me
algemar ou fazer o que fosse para me conter, mas não seria necessário.
Era o fim. Eles me colocaram de costas no chão. Virei o rosto e vi o
corpo imóvel de Terese. Uma dor esmagadora, que até então eu
desconhecia, me consumiu.
Seus olhos estavam fechados. Dali a pouco, muito pouco, os meus
também estariam.
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PARTE DOIS
22
SEDE.
Areia na garganta. Olhos que não se abrem. Ou talvez estejam
abertos.
Escuridão total.
Motor zumbindo. Sensação de haver alguém ao meu lado.
– Terese...
Acho que digo isso em voz alta, mas não tenho certeza.
www
Próximo fio de memória: a voz de alguém.
Parece muito distante. Não entendo uma única palavra. Ruídos,
apenas. O tom é de irritação. Ela vai se aproximando. Fica mais alta.
Agora está em meu ouvido.
Meus olhos se abrem. Vejo branco.
A voz não para de repetir a mesma coisa.
Algo como “Al-sabr wal-sayf”.
Não entendo as palavras. Teriam sentido? Talvez sejam de outro
idioma, não sei.
– Al-sabr wal-sayf.
Alguém está gritando em meu ouvido. Fecho os olhos com força.
Quero que pare.
– Al-sabr wal-sayf.
O mesmo tom de irritação, incessante. Acho que peço desculpas.
– Ele não está entendendo – diz alguém.
Silêncio.
195/348
www
Dor. Dor na lateral do corpo.
– Terese... – digo novamente.
Nenhuma resposta.
Onde estou?
Ouço outra voz, mas não entendo o que ela diz.
Sinto-me sozinho, isolado. Estou deitado. Acho que estou
tremendo.
www
– Vou explicar a você qual é a situação.
Ainda não posso me mexer. Tento abrir a boca, mas ela não obedece.
Abro os olhos. Tudo está fora de foco. Tenho a sensação de que
minha cabeça inteira está embrulhada em teias de aranha, espessas e
pegajosas. Tento arrancá-las. Não consigo.
– Você já trabalhou para o governo, não trabalhou?
É comigo que estão falando? Faço que sim com a cabeça, mas o
resto do corpo permanece imóvel.
– Então está a par da existência de lugares como este. Sabe que
sempre existiram. Pelo menos deve ter ouvido os boatos.
Nunca acreditei nesses boatos. Talvez depois do 11 de Setembro.
Antes, não. Acho que respondo “não”, mas talvez apenas em minha
cabeça.
– Ninguém sabe que você está aqui. Ninguém irá encontrá-lo.
Podemos mantê-lo aqui para sempre. Matá-lo na hora que quisermos.
Ou podemos soltá-lo.
Dedos em torno do meu bíceps. Outros no meu pulso. Tento me
desvencilhar. Em vão. Sinto uma picada no braço. Não consigo me
mexer. Não há nada que eu possa fazer. Lembro-me de quando tinha
6 anos e fui com meu pai a um parque de diversões desses que viajam
pelas cidades. Entrei sozinho na Casa dos Horrores. Afinal, já era um
196/348
rapazinho. Havia espelhos, cabeças de palhaço gigantescas, risadas
tenebrosas nos alto-falantes. De repente percebi que estava perdido.
Tentei voltar, mas não encontrei a saída. Uma cabeça de palhaço surgiu
em meu caminho. Eu comecei a chorar e dei meia-volta. Outra
cabeça enorme se pôs a zombar de mim.
É assim que me sinto agora.
Dei um grito e voltei de novo. Chamei por meu pai. Ele invadiu a
casa, rasgou uma parede de papelão, me encontrou e foi me consolar.
Papai, pensei. Ele vai me encontrar. A qualquer instante.
Mas ninguém apareceu.
www
– Como conheceu Rick Collins?
Conto a verdade. De novo. Estou exausto.
– E como conheceu Mohammad Matar?
– Não sei quem é esse.
– Mas tentou matá-lo em Paris. E o matou em Londres, pouco antes
de pegarmos você. Quem mandou você matá-lo?
– Ninguém. Ele me atacou.
Explico. Em seguida, algo horrível me acontece, mas não sei o que é.
www
Estou caminhando. As mãos amarradas às costas. Não vejo muita
coisa, só pequenos pontos de luz. Mãos em meus ombros. Empurramme
com força para o chão.
Deitado de costas.
Pernas amarradas. Cinto afivelado em torno do peito. Corpo imobilizado
contra a superfície dura.
Não consigo me mexer.
De repente os pontos de luz somem. Acho que dou um grito. É possível
que esteja de cabeça para baixo. Não tenho certeza.
197/348
Uma mão gigantesca e úmida em meu rosto. Tampa meu nariz,
cobre minha boca.
Não consigo respirar. Tento me debater. Pernas e braços
amarrados.
Totalmente imobilizado. Alguém está segurando minha cabeça. Não
posso sequer virá-la. A mão segura com mais força. Não há ar.
Pânico. Estão me asfixiando.
Tento inspirar. Minha boca se abre. Ar. Preciso de ar. Não consigo.
A água entra pela minha garganta, sobe pelo nariz.
Engasgo. Os pulmões ardem, prestes a explodir. Os músculos urram.
Preciso me mexer. Não consigo. Não há saída.
Não há ar.
Morrendo.
www
Ouço alguém chorando baixinho. Sou eu.
De repente, uma dor lancinante.
Minhas costas se arqueiam. Os olhos se arregalam. Eu grito.
– Deus, por favor...
A voz sai da minha boca, mas não a reconheço. Estou fraco, muito
fraco. Um fiapo de gente.
www
– Temos algumas perguntas para lhe fazer.
– Por favor, já respondi todas as perguntas.
– São outras.
– Depois posso ir?
O tom é de súplica.
– É sua única esperança.
www
198/348
Acordo assustado com uma luz forte acima de mim.
Os olhos piscam, o coração dispara. Não consigo respirar direito.
Não sei onde estou. Viajo para o passado recente. Qual é a última
coisa de que me lembro? Finquei a arma no queixo do desgraçado e
puxei o gatilho.
Há algo mais ali, nos arredores da minha memória, fora de alcance.
Talvez um sonho. Isto é comum: acordamos de um pesadelo e, por um
segundo, as imagens continuam vívidas, mas logo vão se dissipando
como fumaça, apesar do nosso esforço para retê-las. É o que está
acontecendo comigo agora: tento em vão congelar as imagens de um
pesadelo recente.
– Myron?
A voz é tranquila, modulada. Ela me assusta. Faz meus músculos se
retesarem. Eu me sinto terrivelmente envergonhado, mas não sei bem
por quê.
Até a meus próprios ouvidos minha voz parece submissa demais ao
dizer:
– Sim?
– Você não vai se lembrar do que aconteceu aqui. É melhor assim.
Ninguém acreditaria em você, de qualquer forma. E, mesmo que
acreditasse, nunca nos encontraria. Você não sabe onde estamos. Não
viu nossos rostos. E lembre-se de uma coisa: podemos ir atrás de você
a qualquer momento. Não só de você. De sua família também. Seus
pais, em Miami. Seu irmão, na América do Sul. Está entendendo?
– Estou.
– Vire essa página e tudo acabará bem para você, o.k.?
Respondo que sim com a cabeça. Meus olhos se reviram para trás. A
escuridão retorna.
199/348
23
ACORDEI ASSUSTADO.
O que não era comum. Meu coração disparava no peito. O pânico
mostrava as garras, dificultando a respiração. Tudo isso antes mesmo
que eu abrisse os olhos.
Quando enfim os abri e olhei ao meu redor, meu coração diminuiu o
ritmo e o pânico foi embora. Esperanza estava em uma cadeira, concentrada
em seu iPhone, os dedos dançando no teclado. Com certeza
ocupada com algum de nossos clientes. Gosto do nosso trabalho, mas
ela adora.
Fiquei quieto por alguns minutos, contemplando-a sem dizer nada,
porque a simples presença de um rosto familiar me fazia um bem
enorme. Esperanza estava usando brincos de argola e blusa branca
com terninho cinza. Seus cabelos negros haviam sido puxados para
trás das orelhas. As cortinas atrás dela estavam abertas. Já era noite.
– Que cliente você está atendendo? – perguntei.
Ao me ouvir, ela arregalou os olhos, largou o iPhone sobre a mesinha
e correu para o meu lado.
– Meu Deus, Myron! – exclamou. – Meu Deus...
– Que foi? Estou morrendo?
– Não, por quê?
– Você veio correndo. Geralmente é bem mais lenta.
Ela começou a chorar e beijou meu rosto. Esperanza jamais
chorava.
– É, só posso estar morrendo.
– Não seja idiota!
200/348
Esperanza secou as lágrimas com as mãos, me abraçou e de repente
disse:
– Não, espere aí. Mudei de ideia. Seja idiota, sim. Continue sendo
esse amor de idiota que sempre foi!
Olhando melhor, vi que estava em um quarto de hospital bastante
comum.
– Desde quando você está aí? – perguntei.
– Não faz muito tempo – respondeu ela, ainda abraçada a mim. –
Do que você se lembra?
Refleti. Karen e Terese sendo baleadas. O sujeito que atirou nelas.
Eu matando o sujeito. Engoli em seco e, criando coragem, perguntei:
– Como está Terese?
Esperanza soltou o abraço e se ergueu.
– Não sei – disse.
Não era bem essa a resposta que eu esperava.
– Como não sabe?
– É meio difícil de explicar. Qual é a última coisa de que você se
lembra?
– Minha última lembrança é de quando matei o desgraçado que
atirou em Terese e Karen. Depois, um bando de gente pulou em cima
de mim.
Ela apenas balançou a cabeça.
– Também levei um tiro, não levei?
– Levou – confirmou ela.
Isso explicava o hospital.
Esperanza se debruçou na cama e sussurrou em meu ouvido:
– Olhe, preste bem atenção. Se aquela porta se abrir, se uma enfermeira
entrar ou qualquer coisa assim, não diga nada na frente dela,
entendeu?
– Não.
– Ordens do Win. Obedeça e pronto.
– Tudo bem – disse. Dali a pouco perguntei: – Você viajou para
Londres só para ficar comigo?
201/348
– Não.
– Como não?
– Confie em mim, o.k.? Não se apresse. Do que mais você se
lembra?
– De nada.
– Nada desde que levou um tiro?
– Onde está Terese?
– Já disse, não sei.
– Isso não faz sentido. Como é possível você não saber de uma coisa
dessas?
– É uma longa história.
– Que tal começar a contá-la?
Esperanza me encarou com seus olhos verdes. Não gostei do que vi
dentro deles.
Tentando me sentar na cama, perguntei:
– Por quanto tempo fiquei apagado?
– Também não sei.
– Repetindo: como é possível você não saber de uma coisa dessas?
– Para início de conversa, você não está em Londres.
Congelei. Olhei ao redor pelo quarto, em busca de uma pista
qualquer. Encontrei no cobertor. Uma logomarca com o nome do hospital:
NEW YORK-PRESBYTERIAN. Aquilo era impossível.
– Estou em Manhattan?
– Está.
– Fui mandado para cá de avião?
Ela não disse nada.
– Esperanza!
– Não sei.
– Bem, há quanto tempo estou neste hospital?
– Talvez algumas horas, não tenho certeza.
– Você não está falando coisa com coisa.
– Também não sei da história toda, tá? Recebi um telefonema duas
horas atrás, dizendo que você estava aqui.
202/348
Eu estava confuso e as explicações dela não ajudavam em nada.
– Duas horas?
– É.
– E antes disso?
– Até o telefonema – disse Esperanza –, não fazíamos a menor ideia
de onde você estava.
– Não “fazíamos”?
– Nem eu, nem o Win, nem seus pais...
– Meus pais?
– Não precisa se preocupar. Menti para eles. Falei que você estava
na África, em um lugar em que era difícil conseguir uma ligação
telefônica.
– Nenhum de vocês sabia onde eu estava?
– Não.
– Quanto tempo faz isso? – perguntei.
Ela apenas olhou para mim.
– Quanto tempo, Esperanza?
– Dezesseis dias.
Caramba! Eu havia ficado perdido no mundo por 16 dias. Tentei
vasculhar a memória mais a fundo. Meu coração disparou e o pânico
me tomou novamente.
“Vire essa página e...”
– Myron?
– Lembro que fui preso.
– Certo.
– Você disse que isso foi há 16 dias?
– Sim.
– Vocês não acionaram a polícia inglesa?
– Eles também não sabiam onde você estava.
Eu tinha um milhão de perguntas a fazer, mas a porta se abriu, interrompendo
nossa conversa. Esperanza lançou um olhar de advertência
na minha direção. Fiquei mudo. Uma enfermeira entrou e disse:
– Ora, ora, finalmente você acordou.
203/348
Antes que a porta batesse, alguém a empurrou novamente.
Meu pai.
Algo parecido com alívio invadiu meu corpo assim que vi aquele
homem, o meu velho. Ele parecia arfar, decerto porque havia corrido
para ver o filho. Mamãe entrou em seguida. Minha mãe tem o hábito
de correr ao meu encontro, mesmo nas visitas mais banais, como se eu
fosse um prisioneiro de guerra recém-libertado. E foi o que fez, tirando
a enfermeira de seu caminho. Eu costumava revirar os olhos
sempre que ela agia assim, mas no íntimo gostava. Dessa vez não revirei
os olhos.
– Estou bem, mãe. Pode acreditar.
Papai ficou quieto por um tempo, como sempre fazia. Seus olhos estavam
úmidos e vermelhos. Dava para ver em seu rosto que ele não
havia engolido aquela história sobre eu estar na África e sem telefone.
Ele provavelmente havia ajudado a convencer minha mãe, mas sabia
que se tratava de uma mentira.
– Você está tão magrinho... – mamãe disse. – Não lhe deram comida
lá?
– Deixe o Myron em paz – interveio papai. – Ele está ótimo.
– Mas não parece. Está magro. Pálido. E por que está nessa cama de
hospital?
– Já disse – respondeu papai. – Não prestou atenção, Ellen? Intoxicação
alimentar. Um piriri, só isso. Logo, logo ele vai estar bem.
– O que você estava fazendo em Sierra Madre, afinal?
– Serra Leoa – corrigiu papai.
– Achei que fosse Sierra Madre.
– Confundiu com o filme.
– É aquele que Humphrey Bogart e Katharine Hepburn fizeram?
– Não, esse aí é Uma aventura na África.
– Ah, é – exclamou mamãe, finalmente percebendo a confusão.
Então se afastou da cama para dar espaço a papai. Ele se aproximou
de mim, afastou os cabelos da minha testa e beijou meu rosto,
204/348
arranhando-me com a barba por fazer. Era reconfortante sentir seu
cheiro de Old Spice.
– Você está bem? – perguntou.
Fiz que sim com a cabeça, mas vi que ele não acreditou.
De uma hora para outra, ambos me pareciam velhos demais. Mas a
vida é assim, não é? A gente passa um tempo sem ver uma criança e
fica espantado com o crescimento dela. A gente passa um tempo sem
ver um idoso e fica espantado com o envelhecimento dele. Acontece a
toda hora. Quando meus pais tão fortes teriam se tornado idosos?
Mamãe já tremia por conta do Parkinson. Estava cada vez pior. A
cabeça, sempre um tantinho excêntrica, começava a resvalar para algo
mais grave. Papai estava relativamente bem, apesar de alguns sustos
cardíacos, mas ambos me pareciam incrivelmente velhos.
“Seus pais, em Miami...”
De novo a palpitação e a dificuldade para respirar.
– Myron? – chamou papai, assustado.
– Estou bem.
Então a enfermeira assumiu o comando. Meus pais abriram caminho
para que ela colocasse um termômetro em minha boca e tomasse
meu pulso.
– O horário de visitas já terminou – informou ela. – Agora vocês
precisam ir.
Eu não queria que eles fossem. Não queria ficar sozinho. O medo
invadiu meu peito. Fiquei envergonhado por isso. Assim que a enfermeira
recolheu o termômetro, fabriquei um sorriso e, talvez animado
demais, falei:
– Tentem dormir um pouco. A gente se vê amanhã de manhã.
Olhei para meu pai e percebi em seu rosto a mesma descrença de
antes. Ele sussurrou algo para Esperanza, que assentiu e acompanhou
mamãe até o corredor. À porta, a enfermeira se virou para ele e disse:
– O senhor também precisa sair.
– Quero ficar sozinho com meu filho um instante.
Ela hesitou, depois disse:
205/348
– Dois minutos.
Agora estávamos a sós. Papai perguntou:
– Que foi que aconteceu?
– Não sei, pai.
Ele arrastou a cadeira para junto da cama e tomou minha mão.
– Você não acreditou que eu estivesse na África, acreditou? –
perguntei.
– Não.
– E a mamãe?
– Eu falava que você tinha ligado sempre que ela saía.
– E ela acreditava?
Papai deu de ombros.
– Nunca menti para a sua mãe. Então, sim, acho que ela acreditava.
Sua mãe já não está tão lúcida como antes.
Permaneci calado e a enfermeira voltou.
– Agora o senhor precisa ir.
– Não – protestou papai.
– Por favor, não me obrigue a chamar a segurança.
Mais uma vez o pânico se instalou em meu peito.
– Tudo bem, pai. Estou bem. Vá dormir.
Ele me fitou por um momento, depois se virou para a enfermeira.
– Querida, como você se chama?
– Regina.
– Regina do quê?
– Regina Monte.
– Eu me chamo Al, Regina. Al Bolitar. Você tem filhos?
– Duas meninas.
– Este aqui é meu filho, Regina. Pode chamar a segurança, se quiser.
Mas não vou deixar meu filho sozinho.
Pensei em intervir, mas permaneci calado. A enfermeira nos deu as
costas e foi embora. Não chamou nenhum segurança. Papai passou a
noite inteira na cadeira a meu lado. Pegou água para mim, ajeitou
minhas cobertas. Quando gritei durante o sono, ele me reconfortou,
206/348
afagou minha cabeça e disse que tudo ficaria bem. E, por alguns segundos,
eu acreditei.
207/348
24
WIN LIGOU BEM CEDO pela manhã.
– Vá para o escritório – falou. – Não faça nenhuma pergunta.
E desligou na minha cara. Ele às vezes me dá nos nervos.
Papai descera à confeitaria do outro lado da rua, porque o café da
manhã do hospital era tão atraente que, se fosse servido a macacos no
zoológico, eles com certeza o arremessariam contra os visitantes. Enquanto
ele estava fora, o médico passou no quarto e me deu um glorioso
atestado de saúde. Sim, eu havia levado um tiro. A bala havia atravessado
meu abdômen, acima do quadril, pelo lado direito, mas o
ferimento havia sido devidamente tratado.
– Foi alguma coisa que teria exigido 16 dias de internação? –
perguntei.
Ele me encarou de um modo estranho – afinal, eu havia surgido do
nada naquele hospital, inconsciente e com um tiro no abdômen, e
agora falava em 16 dias de internação. Aposto que ele estava avaliando
se deveria me encaminhar a um psicólogo.
– Hipoteticamente falando – acrescentei, lembrando-me da recomendação
de Win.
Depois disso, parei de fazer perguntas e comecei a apenas sacudir a
cabeça e concordar com tudo.
Papai ficou comigo enquanto providenciavam os papéis da alta.
Esperanza havia deixado um terno para mim no armário. Colocá-lo
fez com que me sentisse um pouco melhor. Queria tomar um táxi, mas
papai insistiu em me levar. Ele já foi um excelente motorista. Lembrome
de, ainda criança, admirar sua tranquilidade ao dirigir na estrada,
sempre ouvindo rádio e assobiando baixinho, movendo apenas o
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punho para girar o volante. Agora ele sempre deixa o rádio desligado,
franze as pálpebras para enxergar melhor e pisa no freio com
frequência.
Assim que chegamos ao edifício Lock-Horne, na Park Avenue (só
para lembrar, o nome completo de Win é Windsor Horne Lockwood
III), papai disse:
– Quer que eu vá com você?
Às vezes meu pai me deixa realmente boquiaberto. Ser um bom pai
requer bom senso e equilíbrio, mas como é possível que um homem se
saia tão bem nesses quesitos, e tão naturalmente? Papai sempre me
incentivou em tudo na vida, mas jamais exagerou na dose. Ficava feliz
com minhas conquistas, mas nunca fazia com que parecessem importantes
demais. Não exigia nada em troca de seu amor, mas ainda assim
eu sempre desejava agradá-lo de alguma forma. Sabia, como agora, o
momento certo de estar presente e o de me dar espaço.
– Não precisa. Estou bem.
Ele assentiu e beijei novamente seu rosto áspero, notando a flacidez
recente. Desci do carro e entrei no prédio. O elevador se abre diretamente
para meu escritório. Big Cyndi se encontrava à sua mesa. Usava
marias-chiquinhas e uma roupa que poderia ter saído do figurino de
Bette Davis em O que terá acontecido a Baby Jane?. Big Cyndi é...
bem, digamos que ela é big em todos os sentidos. Como disse antes,
ela tem 1,95m e pesa 130 quilos. Seus pés e mãos são enormes e a
cabeça é igualmente grande. Perto dela, a mobília parece ter sido comprada
em uma loja de brinquedos infantis – como em Alice no país
das maravilhas, a sala e todos os móveis parecem encolher ao seu
redor.
Ela se levantou ao me ver, quase derrubando a mesa, e exclamou:
– Sr. Bolitar!
– E aí, Big Cyndi?
Ela não gosta que eu a chame de Cyndi ou de... hum, Big. Insiste no
tratamento formal. Sou o Sr. Bolitar e ela é Big Cyndi – que, aliás, é
mesmo seu nome. Faz mais de 10 anos que o adotou legalmente.
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Com uma agilidade incomum para seu tamanho, Big Cyndi atravessou
a sala e me apertou em um abraço, paralisando-me como se eu
tivesse sido mumificado com fibras de isolamento térmico. No bom
sentido, claro.
– Ah, Sr. Bolitar!
Ela começou a choramingar, fazendo sons que lembravam as cenas
de acasalamento de alces que aparecem no Discovery Channel.
– Estou bem, Big Cyndi.
– Mas alguém atirou no senhor!
Sua voz mudava de acordo com o estado de espírito. Nas primeiras
semanas de trabalho, Big Cyndi não falava: preferia rosnar. Os clientes
reclamavam, mas sempre pelas costas dela e geralmente sem se
identificar. Pois agora ela havia falado com a estridência e infantilidade
de uma pré-adolescente, o que era mais assustador do que
qualquer rosnado.
– Eu também atirei nele. Só que ele ficou pior.
Ela desfez o abraço e começou a rir, cobrindo a boca com uma manzorra
do tamanho de um pneu de trator. O som das risadas ecoou pela
sala e criancinhas de três estados vizinhos devem ter corrido assustadas
para o colo das mães.
Esperanza surgiu à porta. Ela e Big Cyndi haviam sido parceiras de
luta livre nos campeonatos da ANIL (Associação Nossas Incríveis
Lutadoras). Inicialmente, em vez de “incríveis”, haviam pensado em
“amadas”, mas a sigla resultante acabou levando à escolha de outra
palavra.
Esperanza, com sua pele morena e roupas que poderiam ser consideradas
provocadoras (e, a julgar pela reação dos locutores, eram
mesmo), lutava sob a alcunha de Pequena Pocahontas, a beldade que
se valia apenas da técnica para combater as megeras que não hesitavam
em trapacear para levar a melhor. Quando isso acontecia, Big
Cyndi – ou Grande Chefe-mãe – corria em seu socorro e, juntas, elas
venciam as trapaceiras siliconadas e, em geral, apenas levemente
vestidas, para delírio da plateia.
210/348
Muito divertido.
– Temos muito trabalho pela frente – disse Esperanza.
Nosso espaço era relativamente pequeno. Havia apenas a recepção e
mais duas salas, uma para mim e outra para Esperanza. Ela havia
começado ali como secretária, ou “assistente”, ou qualquer outro
termo politicamente correto para “pau para toda obra”. Fazia a faculdade
de direito à noite e, mais ou menos na época em que pirei e
fugi para o Caribe com Terese, já era minha sócia na empresa.
– O que você falou para os clientes? – perguntei.
– Que você havia sofrido um acidente de carro no exterior.
Ótimo. Fomos para a sala dela. Os negócios haviam descarrilado um
pouco desde meu sumiço. Havia muitas ligações a fazer. Todas foram
feitas. Conseguimos manter a grande maioria dos clientes, mas alguns
acabaram nos deixando, ressentidos por passarem duas semanas sem
conseguir falar com seu agente. O que é bastante compreensível.
Neste negócio, o lado pessoal importa. Os clientes precisam de
atenção e de serem bajulados. Querem se sentir únicos, porque isso é
parte da ilusão deles. E quando seu agente some, ainda que por um
bom motivo, a magia se desfaz.
Eu queria perguntar sobre Terese e Win, um milhão de coisas, mas
me lembrei do que ele tinha dito ao telefone. Então mergulhei no trabalho
e confesso que isso me fez bem. Eu não saberia dizer o motivo,
mas estava um tanto aflito. Chegara ao ponto de roer as unhas, coisa
que não fazia desde a pré-adolescência, e procurar casquinhas de
machucado pelo corpo para futucar. De algum modo, o trabalho foi
terapêutico.
Assim que pude, fiz algumas buscas na internet com os nomes de
Terese Collins, Rick Collins e Karen Tower. De início pesquisei os três
nomes juntos, mas não encontrei nada. Depois, apenas o de Terese.
Sobre ela havia muito pouco, e tudo relacionado a seu trabalho na
CNN. Alguém ainda mantinha um site chamado “Terese, a TeleGata”,
com fotos e tudo, quase todas de rosto, além de alguns vídeos de noticiários,
mas fazia três anos que o site não era atualizado.
211/348
Em seguida abri o Google Notícias e busquei os nomes de Rick e
Karen.
Não esperava encontrar muita coisa, talvez um obituário, mas não
foi o que aconteceu. Havia dezenas de notícias, a maioria delas coletadas
de jornais do Reino Unido. Elas me deixaram horrorizado, mas
faziam sentido, mesmo que de uma forma bizarra.
REPÓRTER E MULHER ASSASSINADOS POR TERRORISTAS
Célula é desmontada e integrantes são mortos no tiroteio
Comecei a ler e dali a pouco Esperanza entreabriu a porta:
– Myron?
Ergui o indicador, sinalizando que ela esperasse um instante.
Ela se aproximou da mesa e espiou o que eu lia. Então suspirou e se
sentou.
– Você já sabia disso? – perguntei.
– Claro.
Segundo os artigos, “forças especiais de combate ao terrorismo internacional”
haviam enfrentado e “eliminado” o lendário terrorista
Mohammad Matar, também conhecido como “Dr. Morte”. Mohammad
havia nascido no Egito, mas fora educado nas melhores
escolas da Europa, inclusive na Espanha (daí o nome, composto de
um prenome islâmico e do verbo em espanhol, como uma espécie de
apelido), e de fato era médico, com formação nos Estados Unidos. Os
combatentes também haviam matado pelo menos três outros integrantes
da célula dele: dois em Londres e um em Paris.
Havia também uma foto do terrorista, a mesma que Berleand tinha
enviado para meu celular. Por um instante contemplei o homem que,
para usar o jargão dos jornalistas, eu havia eliminado.
As matérias informavam ainda que o repórter Rick Collins havia se
aproximado da célula de Matar com o objetivo de se infiltrar nela e
mais tarde denunciá-la, mas sua identidade havia sido descoberta. Ele
fora assassinado em Paris por Matar e seus “seguidores” e, apesar de
212/348
um deles ter sido morto, Matar conseguira despistar a polícia francesa
e seguir para Londres com o objetivo de apagar todos os rastros que
pudessem incriminar sua célula e delatar seu “perverso complô terrorista”.
Para isso, ele assassinara Mario Contuzzi, parceiro de Rick
Collins por muitos anos na CNN, e Karen Tower, esposa do jornalista.
Fora na residência do casal que ele e dois de seus companheiros
haviam encontrado seu fim.
Ergui o rosto e olhei para Esperanza.
– Terroristas?
Ela fez que sim com a cabeça.
– Isso explica o frisson da Interpol quando mostramos aquela foto.
– Sim.
– E Terese, onde está?
– Ninguém sabe.
Recostei-me na cadeira e tentei digerir aquilo.
– Estão dizendo aqui que os terroristas foram mortos por agentes
do governo.
– Sim.
– Só que não foram.
– É verdade. Foi você que os matou.
– Eu e Win.
– Correto.
– Mas não mencionaram nossos nomes.
– Não, não mencionaram.
Fiquei pensando nos 16 dias, em Terese, nos exames de DNA, na garota
de cabelos claros.
– Que diabos está acontecendo?
– Não sei dos detalhes – disse Esperanza. – Na verdade, nem procurei
me informar.
– Por que não?
Balançando a cabeça, ela disse:
– Às vezes você é tão tapado...
Esperei pelo que viria depois.
213/348
– Você levou um tiro. Win assistiu a tudo. E ficamos sem nenhuma
notícia sua por mais de duas semanas. Nem sabíamos se você estava
vivo ou morto. Nada.
Não me contive e abri um sorriso.
– E pode ir tirando esse risinho da cara.
– Você estava preocupada comigo.
– Estava preocupada com o meu negócio.
– Você me adora.
– Você me enche o saco.
– Mas uma coisa eu ainda não entendo – falei. – Por que não consigo
me lembrar de onde estava?
“Vire essa página...”
Minhas mãos começaram a tremer. Olhei para elas. Tentei fazê-las
parar, mas não consegui. Esperanza também as observava.
– Diga – falou ela. – Do que é que você se lembra?
Minha perna começou a formigar. Senti algo estranho no peito. O
pânico se instalou.
– Você está bem?
– Um pouco de água seria bom – falei.
Esperanza saiu e dali a pouco voltou com um copo. Bebi aos poucos,
como se receasse engasgar. Olhei para as mãos. Ainda tremiam. Eu
não conseguia acalmá-las. Que diabos havia de errado comigo?
– Myron?
– Estou bem – falei. – E agora, o que temos a fazer?
– Temos alguns clientes precisando de nós.
Olhei para ela.
Esperanza exalou um suspiro e disse:
– Talvez você precise de um tempinho.
– Para quê?
– Para se recuperar.
– Me recuperar de quê? Estou bem, já disse.
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– Ah, claro, seu aspecto está ótimo. Esse tremor aí nas suas mãos é
puro charme, não é? E esse tique no rosto que você arrumou? Muito,
muito sexy.
– Não preciso de “tempinho” nenhum, Esperanza.
– Precisa, sim.
– Terese está desaparecida.
– Ou morta.
– Está tentando me deixar abalado?
Ela deu de ombros.
– Mesmo que Terese esteja morta – falei –, preciso encontrar a filha
dela.
– Não no estado em que você está.
– Vai ter de ser.
Ela não disse nada.
– Que foi?
– Acho que você ainda não está pronto.
– Você não tem que achar nada.
Ela refletiu um instante.
– É, acho que não – disse.
– Então?
– Pois bem. Tenho um material novo sobre o médico que Collins
consultou, um especialista na doença de Huntington, e sobre a tal
Fundação Salvem os Anjos.
– Tipo o quê?
– Fica para depois. Se você está realmente falando sério, se de fato
está pronto, precisa ligar para este número aqui, deste aparelho.
Ela me entregou um celular e saiu da sala, fechando a porta. Examinei
o número. Não o conhecia, mas isso era de esperar. Liguei.
Dois toques depois, uma voz familiar atendeu:
– Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos, companheiro. Precisamos
nos encontrar em um local seguro. Acho que temos muito o que
conversar.
Era Berleand.
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25
O“LOCAL SEGURO” DE BERLEAND era um endereço no Bronx.
A rua era um buraco e o local em si, um antro. Conferi o endereço
novamente, mas não havia erro. Era uma boate de striptease com uma
placa que contradizia o que meus olhos viam: LUXO & PRAZER. Uma
placa menor, em letras de neon, acrescentava: RELAX DE ALTO NÍVEL
PARA EXECUTIVOS. No caso em questão, “alto nível” não era apenas um
paradoxo, mas também uma expressão irrelevante. Dizer que uma
boate de striptease é de “alto nível” é o mesmo que dizer que uma
peruca masculina é bonita. Pode até ser bonita, mas não deixa de ser
uma peruca.
O lugar era escuro e não tinha janelas, de modo que, quando
cheguei, ao meio-dia, o breu poderia muito bem ser o da meia-noite.
Um negro parrudo, de cabeça raspada, veio me receber.
– Em que posso ajudar?
– Estou procurando por um francês, 50 e poucos anos.
Ele cruzou os braços diante do peito e disse:
– Só às terças-feiras.
– Não, você não...
– Entendi, sim.
Segurando o riso, ele ergueu sua tora de braço – que tinha um D
tatuado em verde no bíceps – e apontou para a pista de dança. Era de
esperar que Berleand estivesse escondido em um canto discreto, mas
não, lá estava ele, de cara para o palco, os olhos grudados no... digamos,
entretenimento.
– É aquele o seu francês?
– É.
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O segurança se virou para mim. O crachá informava seu nome:
ANTHONY. Eu dei de ombros. Ele, fazendo cara de paisagem,
perguntou:
– Há mais alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor?
– Pode dizer que não pareço o tipo de homem que frequenta um
lugar desses, sobretudo durante o dia.
Anthony sorriu e disse:
– Sabe qual é o tipo de homem que não frequenta um lugar desses,
sobretudo durante o dia?
Esperei pela resposta.
– Os que são cegos.
Enquanto ele se afastava, fui ao encontro de Berleand, que estava
recostado no balcão do bar. Beyoncé berrava a plenos pulmões nas
caixas de som, dizendo ao namorado que ele não fazia ideia da mulher
que tinha, que havia uma fila de pretendentes esperando por ela e que
o infeliz era absolutamente substituível. Era uma indignação meio idiota.
Pelo amor de Deus, você é a Beyoncé. É linda, rica e famosa. Dá
carros e roupas caríssimas para os namorados. Não dá para acreditar
que seria difícil arrumar alguém.
No palco, a dançarina de seios à mostra rebolava de um modo que
poderia ser chamado de lânguido depois que ela tomasse uns dois
litros de café para acordar. Seu olhar de tédio dava a impressão de que
a moça estava assistindo à TV Senado e usando o poste à sua frente
não como um instrumento de trabalho, mas como um apoio para não
cair. Não quero dar uma de santo, mas não consigo entender qual é o
apelo desses lugares. Eles simplesmente não me dizem nada. Não que
as mulheres sejam feias – algumas são, outras não. Uma vez conversei
sobre isso com Win (falar sobre o sexo oposto com ele é sempre um
erro) e cheguei à conclusão de que não consigo me deixar levar pela
fantasia. Talvez seja uma deformação de caráter da minha parte, mas
preciso acreditar que a mulher que está comigo realmente me deseja.
Win está pouco se lixando. Eu até entendo o sexo pelo sexo, mas meu
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ego não permite que uma relação sexual se misture com comércio, ressentimentos
e problemas sociais.
Podem me chamar de careta.
Berleand estava usando sua jaqueta estilo anos 1980. A toda hora
ajeitava os óculos e sorria para a dançarina entediada. Sentei-me a seu
lado. Ele se virou para mim, limpou as mãos como de costume e me
avaliou por um instante.
– Você está horrível – disse.
– Mas você está ótimo – retruquei. – Hidratante novo?
Ele apenas jogou alguns amendoins na boca.
– Então, é este o seu “local seguro”?
Berleand deu de ombros.
– Mas por que aqui? – perguntei. Depois, pensando melhor: – Tudo
bem, já sei. Ninguém suspeitaria de um buraco desses, certo?
– Certo. Mas não é só isso. Também gosto de ver essas mulheres
nuas.
Ele se virou para a dançarina. Achei que já era hora de irmos ao
ponto.
– Terese está viva? – perguntei.
– Não sei.
Seguiu-se um momento de silêncio. Roí as unhas por um tempo, depois
comentei:
– Você bem que avisou. Disse que eu não estava preparado para enfrentar
a situação sozinho.
Berleand continuou olhando para a dançarina.
– Eu devia ter ouvido você.
– Não ia fazer muita diferença. Teriam matado Karen Tower e
Mario Contuzzi de qualquer maneira.
– Mas não teriam matado Terese.
– Pelo menos você pôs fim a essa história. A mancada foi deles, não
sua.
– Deles quem?
– Bem, até certo ponto, minha.
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Berleand tirou os óculos, grandes demais para seu rosto, e esfregou
os olhos.
– Há diversos nomes para nossa função. Segurança Nacional talvez
seja o mais conhecido. Como você já deve ter deduzido, sou uma espécie
de aliado francês nisso que seu governo tem chamado de “guerra
ao terror”. Os britânicos deveriam ter prestado mais atenção.
Uma garçonete peituda, com um decote que ia mais ou menos até
os joelhos, se aproximou e disse:
– Aceitam champanhe?
– Isso não é champanhe – devolveu Berleand.
– Hein?
– É produzido na Califórnia.
– E daí?
– Só existe champanhe francês. Não sei se você sabe, mas Champagne
é uma região da França, não é só o nome de uma bebida. Essa
garrafa que está na sua mão é o que as pessoas desprovidas de paladar
chamam de espumante.
A moça revirou os olhos.
– O senhor aceita um espumante?
– Querida, isso aí não deveria ser usado nem para lavar a boca de
um cachorro.
Berleand ergueu o copo vazio.
– Por favor, me traga mais um desses uísques absurdamente aguados
– pediu ele, virando-se para mim em seguida. – E você, o que vai
querer?
Dificilmente venderiam achocolatado ali.
– Uma Coca diet.
Esperei que a garçonete rebolativa se afastasse, depois disse:
– Então, o que aconteceu?
– Até onde diz respeito ao meu pessoal, o caso está encerrado. Rick
Collins tropeçou em um complô terrorista. Foi assassinado em Paris
pelos terroristas, que também mataram em Londres duas pessoas ligadas
a ele, antes de serem mortos. Por ninguém menos que você.
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– Não vi meu nome nos jornais.
– Queria o quê? Aplausos?
– Não é isso. Mas fiquei me perguntando que motivo haveria para
omitir meu nome.
– Pense bem.
A garçonete voltou.
– Korbel é champanhe, sabichão. E é produzido na Califórnia.
– Korbel deveria ser considerado desinfetante. Seria mais justo.
Ela nos entregou os drinques e foi embora.
– A intenção do governo não foi ganhar o mérito – continuou Berleand.
– Havia dois bons motivos para omitir seu nome. Primeiro, a
sua segurança. Até onde sei, Mohammad Matar tinha um problema
pessoal com você. Você matou um dos homens dele em Paris. Ele
queria que você o visse matar Karen Tower e Terese Collins, para
depois matá-lo também. Caso se tornasse público que foi você quem
deu cabo do Dr. Morte, os comparsas dele iam querer se vingar. Em
você ou em sua família.
Berleand sorriu para a dançarina e estendeu a mão para mim.
– Tem dinheiro trocado aí?
Abri a carteira.
– E o segundo motivo? – perguntei.
– Se você não estava lá, na cena dos assassinatos em Londres, então
o governo não precisa dizer por onde você andou nas duas semanas
em que sumiu do mapa.
A angústia voltou. Balancei a perna, olhei a meu redor, pensei em
me levantar. Berleand não fez qualquer comentário.
– Sabe para onde me levaram? – perguntei.
– Faço uma ideia. E você também.
– Não, não faço a menor ideia.
– Não se lembra de absolutamente nada que aconteceu nas duas últimas
semanas?
Não respondi. Senti um aperto no peito, não conseguia respirar
direito. Peguei minha Coca-Cola e comecei a beber pequenos goles.
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– Você está tremendo – observou Berleand.
– E daí?
– Você teve algum pesadelo na noite passada?
– Tive. Sonhei que estava em um hospital. Por quê?
– Já ouviu falar de “sono do crepúsculo”?
Pensei um pouco.
– Tem algo a ver com gravidez, não tem?
– Na verdade, com o parto. Era um procedimento bastante popular
nos anos 1950 e 1960. A tese era a seguinte: por que as mães deveriam
enfrentar dores tão terríveis para dar à luz? Então, injetavam nas mulheres
uma combinação de morfina e escopolamina. Em alguns casos,
a mãe apagava completamente. Em outros, como era para ser, a
morfina atenuava as dores e a combinação das duas drogas fazia com
que a mãe não se lembrasse de nada. Chamavam isso de amnésia induzida,
ou “sono do crepúsculo”. A prática não vingou, não só porque
muitas vezes o bebê nascia meio entorpecido, mas também porque na
época havia todo aquele papo de “viver o momento”. Não sei qual a
vantagem de viver o momento quando se trata de um parto doloroso,
mas também nunca dei à luz.
– E o que isso tem a ver comigo?
– Vou chegar lá. Tudo isso aconteceu nas décadas de 1950 e 1960.
Mais de meio século atrás. De lá para cá, a ciência teve muito tempo
para desenvolver outras drogas, muito mais eficazes. Imagine só o que
se pode fazer hoje! Em tese, é possível manter uma pessoa em cativeiro
por não sei quanto tempo, sem que ela se lembre de nada depois.
Berleand ficou olhando para a minha cara. Eu não era tão lento de
raciocínio assim.
– E foi o que aconteceu comigo?
– Não sei o que aconteceu com você. Você já ouviu falar nos “buracos
negros” da CIA, não?
– Claro que já.
– E acredita que eles existam?
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– Lugares para onde a CIA leva prisioneiros e ninguém fica
sabendo? É, acho que sim.
– Acha? Não seja ingênuo. O próprio Bush admitiu a existência
deles. Mas esses lugares não surgiram com o 11 de Setembro, nem desapareceram
depois das ações do Congresso. Imagine só o tipo de
coisa que podem fazer com um prisioneiro se depois ele for induzido a
uma amnésia! Podem interrogar alguém durante horas e obrigar a
dizer ou fazer o que quer que seja, porque o sujeito não vai se lembrar
de nada. Essas drogas faziam as mulheres se esquecerem das dores do
parto, e dizem que não há dor pior.
Minha perna começou a tremer contra minha vontade.
– Muito sinistro.
– Acha mesmo? Digamos que você prenda um terrorista. Há toda
uma polêmica sobre ser aceitável ou não torturar alguém quando você
sabe que a pessoa pode detonar uma bomba e matar muita gente.
Bem, e se ela não for se lembrar de nada? Será que isso faz da tortura
uma prática mais ética? Você provavelmente passou por um interrogatório
violento, meu caro amigo. Talvez até tenha sido torturado. Mas
não se lembra de nada. Nesse caso, a coisa aconteceu ou não?
– Como a árvore que cai na floresta quando não tem ninguém olhando
– falei.
– Exatamente.
– Ah, os franceses e sua mania de filosofar...
– Somos mais que a pequena morte de Sartre, sabia?
– Só que, infelizmente, não estou levando muita fé nessa história –
falei, ajeitando-me no banco.
– Também não tenho certeza de nada. Mas pense bem. Pense nas
pessoas que somem de repente e nunca mais aparecem. Nas pessoas
que são produtivas e saudáveis e de repente se veem mendigando na
rua, com distúrbios mentais ou tendências suicidas. Nos caras absolutamente
normais que, de uma hora para outra, começam a sofrer de
estresse pós-traumático ou falar que foram abduzidos por
extraterrestres.
222/348
“Vire essa página...”
Mais uma vez comecei a lutar para conseguir levar oxigênio aos pulmões.
Uma corda havia laçado meu peito.
– Não pode ser tão simples assim – falei.
– Não é. Como eu disse, pense nas pessoas que de repente ficam
psicóticas ou na gente absolutamente racional que sai por aí de uma
hora para outra dizendo ter passado por êxtases religiosos ou visto alienígenas.
Aí eu pergunto novamente: será que um trauma esquecido é
moralmente aceitável se for em nome de uma causa maior? Os homens
que comandam esses buracos negros não se veem como pessoas
do mal. Acham que estão agindo de forma ética.
Levei a mão ao rosto. Lágrimas rolavam e eu não sabia por quê.
– Veja a coisa pelo ponto de vista deles – continuou Berleand. – O
homem que você matou em Paris, o companheiro de Mohammad
Matar... O governo achava que ele estava prestes a dar com a língua
nos dentes e nos fornecer informações privilegiadas. Há muita dissidência
nesses grupos radicais. E por que diabos você teria se metido
nessa história? Tudo bem, você matou Mohammad Matar em legítima
defesa. Mas não seria de todo absurdo imaginar que você tivesse sido
enviado para matá-lo. Entende aonde quero chegar? Era bastante
razoável supor que você soubesse de algo que poderia evitar a morte
de muitas pessoas.
– Então... Eu fui torturado?
Berleand ajeitou os óculos, mas não disse nada.
– Mas... caso tudo isso realmente seja verdade, não é possível que
alguém acabe se lembrando de alguma coisa? – perguntei. – Um dia
alguém não poderia denunciar todo o esquema?
– Denunciar o quê? Sim, é possível que você recupere a memória,
mas o que vai fazer? Você não sabe onde estava. Não sabe quem o
prendeu. E, lá no fundo, bem no fundo, fica apavorado quando imagina
que eles podem voltar e pegá-lo outra vez.
“Seus pais, em Miami...”
223/348
– Então vai acabar ficando de bico calado, porque não tem escolha
– disse ele. – Além do mais, é possível que tudo isso seja feito em
nome do bem comum, para salvar vidas. Você nunca parou para
pensar em como o governo consegue desbaratar tantos complôs terroristas
antes que eles sejam levados a cabo?
– Torturando pessoas e apagando a memória delas?
A resposta de Berleand foi um dar de ombros complexo.
– Mas, se o método é tão eficaz – argumentei –, por que não o
usaram em Khalid Sheikh Mohammed, por exemplo, ou qualquer
outro terrorista da Al-Qaeda?
– E quem disse que não? Até hoje, apesar de todos os rumores, o
governo americano só admitiu a existência de três casos em que um
prisioneiro foi torturado com simulação de afogamento, e todos são
anteriores a 2003. Você acredita nisso? No caso de Khalid, o mundo
inteiro estava de olho. Foi isso que seu governo aprendeu com os erros
de Guantánamo. Não se pode fazer uma coisa dessas na cara de todo
mundo.
Dei mais um gole no refrigerante e olhei a meu redor. A boate não
estava lotada, mas também não estava às moscas. Havia homens de
terno, outros de jeans e camisa de malha. Brancos, negros e latinos.
Nenhum cego. Anthony, o leão de chácara, estava certo.
– E agora? – perguntei.
– A célula de Mohammad foi desmontada. Assim como, para muitos,
o plano que eles tinham em mente.
– Mas você não acredita nisso.
– Não.
– E por que não?
– Porque tudo indica que Rick Collins acreditava estar prestes a
descobrir algo muito importante. Algo que teria uma repercussão
enorme e de longo prazo. Meus superiores ficaram bastante zangados
quando lhe passei a foto de Matar. Aliás, foi por isso que me puseram
para escanteio.
– Desculpe.
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– Tudo bem. Agora eles estão à caça da próxima célula, do próximo
complô. Eu, não. Ainda quero investigar este. E tenho amigos que estão
dispostos a ajudar.
– Que amigos?
– Você já esteve com eles.
Refleti um instante.
– O Mossad.
Ele fez que sim com a cabeça, depois disse:
– Collins também havia pedido ajuda a eles.
– Era por isso que estavam me seguindo?
– De início suspeitaram que você o tivesse assassinado. Garanti a
eles que não. Collins obviamente sabia de alguma coisa, mas não revelava.
Ficava sempre em cima do muro. É difícil saber ao certo de que
lado ele vinha jogando nos últimos tempos. Segundo o Mossad, ele
parou de contatá-los e desapareceu uma semana antes de morrer.
– Você sabe por quê?
– Não tenho ideia.
Berleand baixou os olhos para o copo e mexeu o uísque com o
indicador.
– Mas por que você está aqui agora? – perguntei.
– Vim assim que o encontraram.
– Por quê?
Ele deu mais um gole demorado na bebida.
– Chega de perguntas por hoje.
– Como assim?
Berleand se levantou.
– Aonde você vai? – falei, levantando-me.
– Já expliquei a situação.
– E eu entendi: temos muito trabalho pela frente.
– “Temos”? Você não faz mais parte disso.
– Está brincando, não está? Para início de conversa, preciso encontrar
Terese.
Sorrindo, ele devolveu:
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– Posso ser franco?
– Não. Prefiro que continue me enrolando.
– Só perguntei porque não sou muito bom em dar notícias ruins.
– Tem se saído muito bem até aqui.
– Mas agora é diferente.
Berleand desviou o olhar para o palco, mas não creio que estivesse
olhando para a dançarina.
– Vocês, americanos, chamam isto de “choque de realidade”. Então,
vamos lá. Terese ou está morta, e aí não há mais como ajudá-la, ou,
como aconteceu a você, está detida em um buraco negro qualquer, o
que significa que você está de mãos e pés atados.
– Não, não estou – falei, em um tom que não poderia ser menos
convincente.
– Está, sim. Mesmo antes que eu falasse com Win, ele foi inteligente
o bastante para manter todo mundo de boca fechada a respeito de seu
sumiço. E por quê? Porque ele sabia que se alguém, seus pais ou quem
quer que fosse, fizesse alguma besteira, você nunca mais voltaria para
casa. Eles forjariam um acidente de carro e você estaria morto. Ou então
um suicídio. Com Terese Collins é ainda mais fácil. Eles podem
matá-la e dizer que ela voltou para Angola. Ou inventar um suicídio e
alegar que a morte da filha havia se tornado um fardo pesado demais
para ela. Não há nada que você possa fazer por Terese.
Sentei-me novamente.
– Você precisa cuidar de si mesmo – arrematou Berleand.
– Quer que eu fique fora disso?
– Exatamente. E, embora eu tenha falado sério quando disse que
você não tem culpa do que aconteceu, preciso lembrá-lo de que já o
adverti uma vez. Mas você não escutou.
Ele tinha razão.
– Uma última pergunta – falei.
– Diga.
– Por que você me contou tudo isso?
– Sobre o buraco negro?
226/348
– É.
– Porque, ao contrário do que eles possam pensar sobre os efeitos
da medicação que lhe deram, acho difícil que você não venha a se lembrar
de alguma coisa, Myron. Você vai precisar de ajuda. Não deixe de
ir atrás dela.
www
Não demorei a descobrir que Berleand talvez estivesse certo.
Quando voltei para o escritório, fiz algumas ligações para clientes.
Esperanza pediu sanduíches no Lenny’s e nós comemos juntos na recepção,
enquanto ela contava as novidades sobre Hector. Sei que há
poucos clichês maiores do que dizer que a maternidade muda uma
mulher, mas, no caso de Esperanza, as mudanças haviam sido gritantes
– e não exatamente benéficas.
Terminado o almoço, voltei para minha sala e fechei a porta. Não
acendi a luz. Só fiquei ali por um bom tempo, sentado, imóvel. Sei que
todo mundo tem seus momentos de contemplação e tristeza, mas
aquilo era diferente, mais profundo e pesado. Eu não conseguia me
mexer. Meus braços e pernas pareciam feitos de chumbo.
Já me meti em um bom número de encrencas na vida, então guardo
uma arma no escritório. Uma Smith & Wesson calibre 38, para ser
mais preciso.
Abri a última gaveta da mesa, peguei a arma e senti seu peso em
minha mão. As lágrimas começaram a rolar.
Sei que isso pode parecer melodramático. O coitadinho ali, deprimido,
com uma arma na mão e sem ninguém a seu lado. Pensando bem,
a cena chega a ser ridícula. Se houvesse uma foto de Terese sobre a
mesa, eu poderia tê-la pegado, bem ao estilo Mel Gibson em Máquina
mortífera, e enfiado a arma na boca.
Não foi o que fiz.
Mas foi o que pensei em fazer.
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A maçaneta da porta girou (não é hábito nosso bater antes de entrar)
e devolvi a arma à gaveta rapidamente. Esperanza entrou e olhou
para mim.
– O que você está aprontando? – perguntou.
– Nada.
– Estava fazendo o que quando entrei?
– Nada.
Ela arqueou uma sobrancelha.
– Estava brincando com sua espada embaixo da mesa?
– Agora você me pegou.
– Ainda está com um aspecto horrível.
– É o que dizem por aí.
– Em outras circunstâncias, eu mandaria você para casa, mas este
escritório já ficou abandonado por tempo suficiente. Além disso, não
acho que ficar sozinho em casa possa lhe fazer bem.
– Concordo. Mas você invadiu minha sala por quê?
– Preciso de motivo para invadir sua sala?
– Até hoje nunca precisou – falei. – Por falar nisso, por onde anda o
Win?
– Foi por isso que vim. Ele está no batfone.
Ela apontou para a mesinha atrás de mim. Era onde ficava um telefone
vermelho coberto por uma redoma de vidro que parece um portabolo.
Quem viu o seriado do Batman sabe por quê. O aparelho estava
piscando. Era Win.
– Onde você está? – fui logo dizendo.
– Bangcoc – respondeu ele, um tanto animado demais. – Que,
pensando bem, é um nome muito engraçado. Bang. Coc.
– Desde quando você está aí?
– Que importância isso tem?
– É que é um momento estranho para fazer turismo, só isso –
comentei. Então me lembrei: – Aquela amostra de DNA que pegamos
no túmulo de Miriam, o que aconteceu com ela?
– Foi confiscada.
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– Por quem?
– Homens com distintivos reluzentes e ternos mais reluzentes
ainda.
– Como foi que ficaram sabendo?
Silêncio.
A ficha caiu. Envergonhado, falei:
– Por mim?
Win não se deu o trabalho de responder.
– Você conversou com o capitão Berleand? – perguntou.
– Conversei. O que você acha?
– Acho que a teoria dele tem algum fundamento.
– Mas ainda não entendi. Por que diabos você está em Bangcoc?
– E onde deveria estar?
– Aqui, na sua casa, sei lá.
– Acho que não seria uma boa ideia neste momento.
Pensei no que ele estava dizendo.
– Esta linha... é segura?
– Bastante. E seu escritório sofreu uma varredura hoje de manhã.
– O que aconteceu em Londres, afinal?
– Você viu quando matei o Tweedledee e o Tweedledum que não vieram
do País das Maravilhas?
– Vi.
– Então o resto você sabe. Os agentes invadiram a casa. Não havia
como tirar você, então considerei que o melhor seria não ficar ali. Saí
do país imediatamente. Por quê? Porque a teoria de Berleand me
parece bastante plausível, como acabei de dizer. Não seria conveniente
para nenhum de nós dois que eu também fosse pego. Você
compreende?
– Claro. E agora, qual é seu plano?
– Ficar escondido por mais um tempo.
– A melhor maneira de garantir a segurança de todo mundo é irmos
até o fim dessa história.
– É isso aí, cumpade.
229/348
Adoro quando Win usa a linguagem das ruas.
– É por isso que acionei alguns dos meus colaboradores – continuou
ele. – Espero que alguém me diga que destino Terese Collins teve.
Sei que você sente algo por essa mulher, mas preciso ir direto ao
ponto: se ela estiver morta, não há mais o que fazer. Não temos mais
nenhum interesse no caso.
– Mas e a filha dela? Não vamos tentar encontrá-la?
– Se a mãe estiver morta, que sentido isso faria?
Refleti sobre o assunto. Win tinha razão. Eu entrara naquela
história para ajudar Terese e talvez fazer com que ela e a filha supostamente
morta se reencontrassem. Aquilo tudo ainda parecia uma
grande loucura, mas, se Terese estivesse mesmo morta, que sentido
haveria em continuar tentando?
De repente notei que estava roendo as unhas outra vez.
– E agora, o que vamos fazer? – perguntei.
– Esperanza disse que você está um trapo.
– Você não vai dar uma de babá também, vai?
Silêncio.
– Win?
Win era o maior especialista do mundo em manter a voz firme na
hora da emoção, mas dessa vez, talvez a segunda desde que nos conhecemos,
acho que o ouvi engasgar.
– Esses últimos 16 dias foram bastante difíceis – disse ele.
– Eu sei, meu amigo.
– Revirei o planeta inteiro à sua procura.
Permaneci calado.
– Fiz coisas que você jamais aprovaria.
Esperei pelo que estava por vir.
– E ainda assim não o encontrei.
Eu podia entender o que ele estava sentindo. Win tem mais contatos
e fontes de informação do que qualquer outro. É extremamente
rico e influente. E, verdade seja dita: o cara me adora. É valente, não
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tem medo de quase nada, mas decerto havia passado por maus bocados
durante meu desaparecimento.
– Mas agora eu estou bem – falei. – Volte para casa assim que
puder.
231/348
26
– COMA MAIS UM BOLINHO de carne – insistiu mamãe.
– Não, mãe, obrigado – falei. – Já estou satisfeito.
– Só mais um. Você está muito magrinho. Experimente o de porco.
– Para ser sincero, não gosto muito de bolinho de carne.
– Você o quê? – disse mamãe, chocada. – Mas você adorava o bolinho
de carne do Fong’s Garden!
– Mãe, o Fong’s Garden fechou quando eu tinha 8 anos.
– Eu sei. Mesmo assim.
“Mesmo assim.” O clássico ponto final de mamãe para os conflitos
familiares. Mas esse comentário sobre meu repúdio aos bolinhos de
carne não se deve à idade avançada. Minha mãe diz exatamente isso
desde que eu tinha 9 anos.
Estávamos na cozinha da casa em que eu passara a infância, em Livingston,
Nova Jersey. Hoje em dia fico parte do tempo aqui e parte no
luxuoso apartamento de Win no edifício Dakota, na esquina da Rua 72
com a Central Park Oeste. Quando meus pais se mudaram para
Miami, alguns anos atrás, comprei esta casa para eles. Assino embaixo
de qualquer explicação psicológica para minha decisão (morei com
meus pais até os 30 e tantos anos e, na verdade, ainda durmo no
mesmo quarto improvisado no porão desde a adolescência), mas, no
fim das contas, raramente fico aqui. Livingston é um ótimo lugar para
se criar uma família, mas não para solteirões que trabalham em Manhattan.
O apartamento de Win é bem mais conveniente em termos de
localização e pouco menor, em termos de área, que um principado
europeu.
Mas meus pais estavam em Nova Jersey, então eu ia ficar com eles.
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Sou de uma geração que culpa os pais por toda e qualquer infelicidade.
Não é o meu caso. Sou louco pelos meus pais. Adoro a companhia
deles. Não foi por falta de dinheiro que continuei morando em um
porão em Nova Jersey, mas porque gostava de estar ali, com eles.
Depois do jantar, jogamos fora as embalagens da comida – comprada
a caminho de casa –, lavamos a louça e conversamos um pouco
sobre meu irmão e minha irmã. Quando mamãe mencionou o trabalho
de Brad na América do Sul, senti uma leve pontada no estômago
– algo semelhante a um déjà-vu, porém bem menos agradável. E
comecei a roer as unhas de novo. Meus pais trocaram olhares.
Mamãe estava cansada. O que agora é bastante comum. Beijei-a no
rosto e fiquei olhando enquanto ela subia as escadas com dificuldade,
apoiando-se no corrimão. Lembrei-me do tempo em que ela escalava
essas mesmas escadas saltitando pelos degraus, o rabo de cavalo balançando
na nuca, as mãos nem sequer próximas da porcaria do corrimão.
Olhei para papai. Ele não disse nada, mas parecia vagar pelas
mesmas lembranças.
Fomos para a sala de estar e papai ligou a televisão. No passado ele
tinha uma poltrona reclinável horrorosa, de couro falso vermelhoescuro,
com costuras puídas de onde a estrutura de metal vazava. Meu
pai não era dos mais habilidosos, então volta e meia tapava os buracos
com fita adesiva prateada. Apesar de todas as críticas – bastante justas,
aliás – feitas aos norte-americanos em relação ao tempo que passamos
diante da televisão, preciso dizer que algumas das minhas melhores
lembranças de infância têm como cenário esta mesma sala, meu
pai na poltrona cheia de fita adesiva e eu no sofá, vendo TV juntos.
Aposto que não sou o único que ainda se lembra do horário nobre das
noites de sábado na CBS: Tudo em família, M.A.S.H., Mary Tyler
Moore, Bob Newhart, Carol Burnett... Papai ria com tanto gosto das
tiradas de Archie Bunker que eu acabava gargalhando junto, mesmo
sem entender grande parte das piadas.
Al Bolitar havia trabalhado duro em sua fábrica de Newark. Não era
daqueles que gostavam de jogar pôquer ou sair com os amigos para
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tomar cerveja. Seu refúgio era a própria casa. Gostava de relaxar com
a família. Ele havia começado do nada, era inteligentíssimo e decerto
tivera sonhos que iam muito além daquela fábrica – sonhos grandiosos
que ele nunca me contara. Eu era o filho. Não se sobrecarrega
um filho com coisas assim, por nada neste mundo.
Naquela noite ele adormeceu durante um episódio antigo de Seinfeld.
Fiquei um tempo observando aquele peito que subia e descia, os
fios brancos que surgiam em sua barba. Depois me levantei silenciosamente,
desci para o porão, deitei na cama e encarei o teto.
De novo o aperto no peito. Outra crise de pânico. Meus olhos se recusavam
a fechar. Quando as pálpebras cediam ao próprio peso e eu
enfim conseguia me entregar ao sono, os pesadelos me despertavam.
Minha mente logo os perdia, mas a sensação de medo não ia embora.
Fiquei ali, sentado no breu daquele porão, coberto de suor e apavorado
como uma criancinha.
Às três da manhã, tive um lampejo de memória. A cabeça mergulhada
na água. Os pulmões vazios. Essa lembrança durou menos de um
segundo, em seguida deu lugar a outra, auditiva:
“Al-sabr wal-sayf...”
Meu coração começou a saltar como se quisesse fugir do peito.
Dali a meia hora, subi as escadas pé ante pé e segui para a cozinha.
Apesar do esforço em não fazer barulho, sabia que meu pai tinha o
sono mais leve do mundo. Quando criança, sempre que eu acordava
de madrugada para ir ao banheiro, tentava passar pela porta do
quarto dele o mais silenciosamente possível, mas ele sempre acordava
assustado, como se alguém tivesse deixado um picolé cair sobre sua
virilha. Portanto, agora, embora eu já fosse um marmanjo de meia-idade
orgulhoso da própria valentia, sabia o que estava para acontecer
assim que eu alcançasse a cozinha:
– Myron?
Virei-me a tempo de vê-lo descer a escada.
– Eu não queria acordá-lo, pai.
– Bobagem – disse ele. – Eu não estava dormindo mesmo.
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Papai estava usando um cuecão largo que decerto já vira dias melhores
e uma camiseta cinza surrada dois números maior que o seu.
– Quer que eu faça uns ovos mexidos para nós? – ofereceu ele.
– Claro.
Enquanto comíamos, ficamos conversando sobre nada em especial.
Dava para perceber claramente que meu pai estava tentando disfarçar
a preocupação, o que fazia eu me sentir ainda mais protegido. Outras
lembranças vinham à tona. Meus olhos ficavam marejados e eu piscava
para afastar as lágrimas. As emoções eram tantas que a certa altura
eu não sabia mais o que estava sentindo. Foi quando me dei conta
de que ainda teria muitas noites em claro pela frente. Mas uma coisa
era certa: eu não podia mais ficar de braços cruzados.
Na manhã seguinte, liguei para Esperanza e disse:
– Antes de sumir, pedi que você investigasse umas coisas para mim,
não foi?
– Bom dia para você também.
– Desculpe.
– Tudo bem. Você estava dizendo que...
– Você estava investigando o suicídio de Sam Collins, aquele código
estranho que lhe passei, a tal Fundação Salvem os Anjos...
– Sim, estava.
– Preciso saber o que descobriu.
Por um instante achei que fosse levar mais uma bronca, mas Esperanza
certamente havia percebido algo em meu jeito de falar.
– Está bem – disse ela. – A gente se encontra daqui a uma hora e eu
lhe mostro o que consegui levantar.
www
– Desculpe pelo atraso – disse Esperanza. – Hector sujou minha
blusa e tive que trocar de roupa, depois a babá veio pedindo aumento,
Hector não desgrudava de mim e...
– Não se preocupe – falei.
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A sala de Esperanza ainda refletia um pouco de seu passado pitoresco.
Abrigava inúmeras fotos em que ela aparecia vestindo a minúscula
fantasia de Pequena Pocahontas, a princesa índia que era interpretada
nos ringues por uma latina. O cinturão do Campeonato Intercontinental
de Duplas (uma coisa espalhafatosa que, se presa à cintura
dela, provavelmente chegaria até seus joelhos) havia sido emoldurado
e agora adornava a parede atrás da mesa. As quatro paredes eram
pintadas de violeta e outra tonalidade de roxo cujo nome sempre me
escapa. A mesa, de um carvalho pesado e repleta de entalhes, havia
sido descoberta por Big Cyndi em um antiquário e, embora eu estivesse
presente no momento da entrega, até hoje não sei como aquilo
pôde passar pela porta.
Agora, no entanto, o tema principal da decoração era, para usar
uma palavra apreciada pelos políticos, a “mudança”. Fotos de Hector
em poses tão óbvias que beiravam o clichê se espalhavam por todos os
cantos: lá estava o menino sentado no colo de Papai Noel, fantasiado
de coelhinho da Páscoa ou posando em estúdio diante de um arco-íris.
Também havia uma foto de Esperanza com o marido, Tom, carregando
o filhinho em uma roupa branca de batismo, e outra em que o
trio posava ao lado de um personagem da Disney que eu desconhecia.
A mais visível de todas, no entanto, mostrava Esperanza e Hector a
bordo de um desses brinquedos de parque, talvez uma miniatura de
caminhão de bombeiros. Esperanza olhava para a câmera com o sorriso
mais largo e abobalhado que eu jamais poderia imaginar nela.
Esperanza havia sido o mais livre dos espíritos. Fora bissexual assumida
e bastante promíscua: saía com um homem, depois com uma
mulher, depois outro homem, e nunca ligava para a opinião de quem
quer que fosse. Começara a lutar porque era um jeito divertido de ganhar
dinheiro e, quando se cansou daquela vida, resolveu cursar a faculdade
de direito à noite, enquanto trabalhava de dia como minha
assistente.
O que vou dizer talvez pareça maldoso, mas a maternidade sufocou
parte desse espírito. Eu já tinha visto isso acontecer, claro, com outras
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amigas minhas. Até consigo entender, mas só até certo ponto. Meu
filho já era praticamente um adulto quando o conheci, então não passei
pelo momento transformador em que um bebê nasce e subitamente
o mundo se resume àquele pacotinho de três quilos. Pois foi o
que aconteceu a Esperanza. Se ela está mais feliz agora? Não sei. Mas
nossa relação havia mudado, como era de esperar, e meu lado egoísta
não gostava nada disso.
– A cronologia é a seguinte – começou ela. – Quatro meses atrás,
Sam Collins, pai de Rick, recebeu o diagnóstico de doença de Huntington.
Algumas semanas depois, ele se matou.
– Foi suicídio mesmo?
– É o que consta nos autos da polícia. Nenhuma circunstância
obscura.
– Tudo bem, continue.
– Depois do suicídio, Rick Collins foi falar com a Dra. Freida Schneider,
a geneticista do pai. Também há vários telefonemas para o
consultório dela. Tomei a liberdade de ligar para lá. A mulher é muito
ocupada, mas vai nos conceder 15 minutos hoje, no horário do
almoço. Meio-dia e meia em ponto.
– Como foi que você conseguiu isso?
– A MB Representações vai fazer uma polpuda doação para o Centro
de Saúde Terence Cardinal Cooke.
– Muito justo.
– Que será descontada do seu bônus.
– Tudo bem. O que mais?
– Rick Collins ligou para o CryoHope Center. Eles fazem muitas
pesquisas com sangue do cordão umbilical, armazenamento de
embriões, células-tronco, etc. O centro é administrado por cinco especialistas
de áreas diferentes. É impossível saber com qual deles Rick
conversou. Ele também ligou diversas vezes para a Salvem os Anjos. A
cronologia é a seguinte: primeiro ele fala com a Dra. Schneider quatro
vezes ao longo de duas semanas. Depois fala com alguém no CryoHope.
E de algum modo isso leva à Salvem os Anjos.
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– Ótimo – falei. – Acha que conseguiríamos marcar uma hora no
CryoHope?
– Com quem?
– Qualquer um dos especialistas.
– Um deles é ginecologista e obstetra – disse Esperanza. – Posso
dizer que você está precisando fazer um preventivo.
– Estou falando sério.
– Sei que está, mas não sei a quem procurar. Ainda estou tentando
descobrir para qual dos médicos Rick ligou.
– Talvez a Dra. Schneider ajude.
– Pode ser.
– Ah, e o tal código? Você descobriu alguma coisa?
– Não. Tentei “opala” no Google, mas a pesquisa teve milhões de
resultados, por causa da pedra. E, quando digitei “HHK”, a primeira
coisa que apareceu foi o site de um centro de assistência médica, uma
empresa de capital aberto que lida com investimentos na área do
câncer.
– Câncer?
– É.
– Não sei como isso se encaixa.
Esperanza franziu o cenho.
– Que foi?
– É que nada se encaixa em nada – disse ela. – Quer saber? Acho
tudo isso uma grande perda de tempo.
– Como assim?
– Aonde você pretende chegar, afinal? Uma geneticista atendeu um
velho com doença de Huntington. Que relação isso pode ter com terroristas
que matam pessoas em Paris e Londres?
– Não faço a menor ideia.
– Não mesmo?
– Não.
– Talvez porque uma coisa não tenha nada a ver com a outra – disse
Esperanza.
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– É provável.
– E nós? Não temos nada melhor para fazer?
– Mas é isto que a gente faz: investiga até conseguir algo. Essa
história toda começou 10 anos atrás, com um acidente de carro. Depois
há um grande vazio até que Rick Collins descobre que o pai tem a
doença de Huntington. Não consigo imaginar qual seja a ligação entre
as duas coisas, então só me resta refazer os passos dele.
Esperanza cruzou as pernas e começou a enroscar no dedo uma
mecha dos cabelos. Eles eram muito pretos, quase azuis, e sempre
pareciam recém-desalinhados com musse. Quando Esperanza enroscava
os cabelos, era porque estava preocupada.
– Que foi?
– Durante sua ausência – respondeu ela –, não liguei uma única vez
para Ali.
Balancei a cabeça.
– E ela também não ligou para mim, certo?
– Vocês não estão mais juntos?
– É o que parece.
– Você usou aquela frase que eu adoro?
– Não lembro mais que frase é essa.
Esperanza suspirou e disse:
– “Bem-vinda a Pé-na-Bunda. População: você.”
– Ah, não. Desta vez o mais adequado seria “população: eu”.
– Ah...
Ficamos em silêncio por um instante.
– Sinto muito – disse ela.
– Tudo bem.
– Win disse que você andou pegando a Terese.
Quase respondi que Win era o cara que Mee pegava, mas achei que
talvez ela interpretasse mal a piada.
– Não vejo qual é a importância disso – falei.
– Você não faria uma coisa dessas, sobretudo logo depois de terminar
com alguém, se não gostasse muito de Terese.
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– E daí?
– E daí que precisamos ir fundo nessa história, se for ajudar em alguma
coisa, mas também não podemos nos iludir.
– Como assim?
– É bem provável que Terese esteja morta.
Fiquei calado.
– Sei como você fica quando perde alguém querido – disse Esperanza.
– E não é nada bem.
– E quem não fica assim?
– Tem razão. Mas agora você também precisa lidar com tudo isso
que aconteceu a você, seja lá o que tenha sido. O fardo vai ser mais
pesado.
– Vou ficar bem, não se preocupe. Mais alguma coisa?
– Sim – disse ela. – Sobre aqueles dois sujeitos que você e Win
espancaram.
O técnico Bobby e o assistente dele, Pat.
– O que é que tem?
– A polícia de Kasselton esteve aqui algumas vezes. Prometi que você
ligaria quando voltasse. Aquele cara que Win aleijou é da polícia,
sabia?
– Sabia. Win me contou.
– Ele operou o joelho e está se recuperando. O outro, o que
começou a confusão, era dono de algumas lojas de eletrodomésticos,
mas não aguentou a concorrência com as grandes redes. Agora é gerente
da Best Buy de Paramus.
Fiquei de pé e disse:
– Tudo bem.
– Tudo bem o quê?
– Temos tempo antes do nosso encontro com a Dra. Schneider.
Vamos dar um pulinho nessa loja da Best Buy.
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27
A CAMISA POLO AZUL, UNIFORME dos funcionários Best Buy, se esticava
sobre a pança do técnico Bobby. Ele se inclinava sobre um aparelho de
TV, conversando com um casal de asiáticos. Procurei por marcas da
surra, mas não encontrei.
Esperanza estava comigo. Enquanto atravessávamos a loja, um
homem de camisa de lenhador, dessas de flanela xadrez, correu ao encontro
dela.
– Com licença – disse ele, radiante como se fosse Natal. – Você não
é... Caramba, você não é a Pequena Pocahontas?
Contive meu riso. Nunca deixo de me surpreender com a quantidade
de pessoas que ainda reconhecem Esperanza. Ela apenas me
lançou um olhar e se virou para o fã.
– Sou.
– Uau. Puxa, nem acredito. Uau... Quanta honra conhecer você
pessoalmente.
– Obrigada.
– Eu tinha um pôster seu no meu quarto. Quando eu tinha uns 16
anos.
– Fico muito lisonjeada...
– E ele acabou ficando meio manchado – acrescentou o fulano com
uma piscadela. – Você sabe do quê, né?
–... e enojada – completou ela, já acenando em despedida. – Tchau.
Fui atrás dela e disse:
– O pôster do cara ficou manchado. Vai dizer que você não ficou
nem um pouquinho tocada?
– É triste, mas até que fiquei.
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Retiro aqui o que disse antes sobre a maternidade ter domado o espírito
de Esperanza. Ela ainda era a melhor.
Deixamos o Sr. Sem Noção para trás e seguimos na direção do técnico
Bobby. Ouvi o asiático perguntar a ele qual era a diferença entre
uma TV de plasma e uma de LCD. Bobby estufou o peito e debulhou
um longo rosário de prós e contras do qual eu nada entendi. Em
seguida, o asiático indagou sobre os aparelhos DLP. Deles Bobby
gostava mais, então começou a explicar por quê.
Esperei.
Acenando a cabeça na direção do técnico, Esperanza disse:
– Parece que ele recebeu o que merecia.
– Não – retruquei. – A gente não bate em ninguém para lhe dar
uma lição. É só em caso de autodefesa, por uma questão de
sobrevivência.
Esperanza fez uma careta.
– Que foi?
– Win tem toda a razão – disse ela. – Você às vezes parece uma
mocinha.
Bobby sorriu para o casal de asiáticos e arrematou:
– Fiquem à vontade. Já volto para falarmos da entrega grátis.
Então veio na minha direção e, encarando-me, perguntou:
– O que você quer?
– Pedir desculpas.
Bobby ficou imóvel. Três segundos de silêncio e depois:
– Pronto, já pediu.
Então me deu as costas e voltou para os asiáticos.
– Mais leve agora? – arrematou Esperanza, desferindo um tapão no
meu ombro.
www
Freida Schneider era uma mulher baixa e atarracada, com um sorriso
cativante. Exibia com seu vestido simples e sua boina a
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sobriedade característica dos judeus ortodoxos. Nós nos encontramos
na lanchonete do Centro de Saúde Terence Cardinal Cooke. O prédio
ficava na Quinta Avenida, na altura da Rua 103. Esperanza permanecera
do lado de fora para fazer alguns telefonemas. A Dra. Freida perguntou
se eu queria algo para comer, eu agradeci e disse que não e ela
pediu um sanduíche elaborado. Fomos para uma mesa. Ela sussurrou
uma oração e depois abocanhou o sanduíche como se ele a tivesse
xingado.
– Só tenho 10 minutos – anunciou.
– Pensei que fossem 15.
– Mudei de ideia. Obrigada pela doação.
– Gostaria de fazer algumas perguntas sobre Sam Collins.
Freida Schneider engoliu seu pedaço de sanduíche.
– Foi o que sua sócia disse. O senhor decerto já ouviu falar sobre o
sigilo na relação entre médico e paciente. Posso pular essa parte, não
posso?
– Por favor.
– Sam Collins está morto. Que interesse o senhor tem nele?
– Ele se matou, não foi?
– O senhor não precisa de mim para saber de uma coisa dessas.
– O suicídio é comum entre pacientes com a doença de Huntington?
– O senhor conhece a doença de Huntington?
– Sei que é hereditária.
– Trata-se de um distúrbio neurológico de origem genética – disse
ela, entre uma mordida e outra. – Não mata diretamente, mas à medida
que evolui acarreta uma série de complicações graves, como
pneumonia, parada cardíaca e outras tantas que nem vale a pena mencionar.
Afeta não só o estado físico dos portadores, mas o psicológico e
o cognitivo também. A coisa é feia. Portanto, sim, o suicídio é bastante
comum. Estudos mostram que um em cada quatro portadores tenta se
matar, com uma taxa de sucesso de 7%. Por mais irônico que seja a
palavra “sucesso” em uma circunstância dessas.
– E foi esse o caso de Sam Collins?
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– Ele já sofria de depressão antes de receber o diagnóstico de Huntington.
É difícil dizer o que veio primeiro. A DH geralmente começa
com distúrbios físicos, mas também há casos em que se inicia com
problemas psiquiátricos ou cognitivos. Portanto, é possível que a depressão
de Sam Collins tenha sido o primeiro sintoma de uma DH não
diagnosticada. O que não tem lá muita importância. De um jeito ou de
outro, ele morreu por causa da DH. O suicídio é apenas mais uma das
complicações graves de que falei.
– Mas a doença é estritamente hereditária, não é?
– É.
– E, se um dos pais for portador, o filho teria 50% de chances de ser
também, não é isso?
– Para encurtar a conversa, digamos que sim.
– E, se nenhum dos pais for portador, nenhum dos filhos seria também,
certo? A família estaria livre.
– Sim, continue.
– Isso significa que um dos pais de Sam Collins era portador da DH.
– Correto. A mãe viveu até os 80 anos sem nenhum sintoma da
doença. Portanto, Sam Collins deve tê-la herdado do pai, que morreu
cedo, antes que pudesse apresentar qualquer sintoma.
Inclinando-me para a frente, perguntei:
– A senhora chegou a fazer os exames nos filhos de Sam Collins
para ver se tinham a doença?
– Isto não é da sua conta.
– Estou falando especificamente de Rick Collins. Que também está
morto. Na verdade, foi assassinado.
– Por um terrorista, segundo li nos jornais.
– Sim.
– No entanto, o senhor acha que o diagnóstico de DH de Sam
Collins tem alguma relação com o assassinato do filho dele.
– Acho.
Freida Schneider deu mais uma mordida e balançou a cabeça.
– Rick Collins tem um filho – falei.
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– Sim, eu sei.
– Talvez tenha uma filha também.
Isso fez com que ela parasse a meio caminho da mordida seguinte.
– Uma filha?
Eu não sabia ao certo como conduzir a conversa. Então disse:
– É possível que Rick Collins não soubesse que a menina estava
viva.
– O senhor se incomodaria de explicar um pouco melhor?
– É que só temos 10 minutos.
– Verdade.
– Então?
Ela suspirou.
– Sim, Rick Collins fez os exames.
– E?
– Descobrimos repetições CAG nos alelos HTT.
Apenas olhei para ela.
– Trocando em miúdos: infelizmente, deu positivo. A diagnose não
pode se basear apenas no exame de sangue, já que os sintomas costumam
levar anos, às vezes décadas, até se manifestarem. No entanto,
Rick Collins já apresentava coreia, uma espécie de tremedeira incontrolável
nas articulações. Pediu que mantivéssemos o resultado em segredo.
Naturalmente, concordamos.
Refleti um instante. Rick era portador da doença de Huntington e já
apresentava sintomas. Como seus últimos anos de vida poderiam ter
sido? O pai decerto havia feito a mesma pergunta, depois dera fim à
própria vida.
– E o filho de Rick? Também fez os exames?
– Fez, por insistência do próprio Rick. O que não é lá muito convencional,
devo admitir. Há muita controvérsia em torno desses testes,
sobretudo no caso de crianças. Por exemplo, que tipo de vida um garoto
terá se souber de antemão o sofrimento que o aguarda? Não será
um fardo pesado demais? Por outro lado, também é possível que ele
aproveite melhor a vida enquanto tiver saúde. Tem mais: caso seja
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comprovadamente portadora de DH, uma pessoa deve ou não ter filhos,
já que eles terão 50% de chances de desenvolver a doença? E,
mesmo assim, será que não valeria a pena arriscar? As questões éticas
são inúmeras.
– Mas Rick fez os exames no filho.
– Fez. Ele era jornalista por natureza. Queria saber de tudo. Por
sorte, o teste do menino deu negativo.
– Deve ter sido um grande alívio para o pai.
– Claro.
– A senhora já ouviu falar do CryoHope Center?
Ela pensou um pouco.
– Eles fazem pesquisas e armazenamento, eu acho. Banco de
células-tronco, coisas assim, não é?
– Rick Collins foi procurá-los depois que se consultou com a senhora.
Faz alguma ideia do motivo?
Ela fez que não com a cabeça.
– Não há cura para a DH, certo? – falei.
– Certo.
– Nem mesmo por meio das pesquisas com células-tronco?
– Só um instante, Sr. Bolitar. Vamos voltar um pouquinho. O senhor
disse que Rick Collins talvez tivesse uma filha.
– Sim.
– Pode me explicar melhor essa história?
– Ele chegou a contar à senhora que havia perdido uma filha em um
acidente de carro 10 anos atrás?
– Não, mas por que contaria?
Pensei um momento, depois disse:
– Quando o corpo de Rick foi encontrado em Paris, havia manchas
de sangue perto dele. Sangue de uma filha, segundo revelaram os
testes de DNA.
– Mas o senhor disse que a menina morreu. Não estou entendendo.
– Nem eu. Mas... o que a senhora pode me dizer sobre as pesquisas
com células-tronco?
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Ela deu de ombros.
– Ainda são muito especulativas – disse. – Em tese, é possível
transplantar células-tronco do cordão umbilical para que elas substituam
neurônios danificados. Os testes com animais têm sido
bastante encorajadores, mas ainda não foram feitos testes clínicos
com humanos.
– Mesmo assim. Para quem está à beira da morte, desesperado...
Nesse instante, uma mulher se aproximou da mesa.
– Dra. Schneider?
Ela ergueu a mão, sinalizando para que a mulher aguardasse um instante,
deu uma última mordida no sanduíche e se levantou.
– Sim, acho que uma pessoa que está à beira da morte é capaz de
fazer qualquer coisa. Tentar uma cura milagrosa ou até... bem, até
cometer suicídio. Seus 10 minutos acabaram, Sr. Bolitar. Volte outro
dia e terei prazer em lhe mostrar o nosso centro. Ficará surpreso com
o alcance e a qualidade de nosso trabalho. Mais uma vez, obrigada
pela doação. E boa sorte com o que está fazendo, seja lá o que for.
247/348
28
AS INSTALAÇÕES DO CRYOHOPE CENTER brilhavam, a mistura perfeita da
elegância de uma clínica médica de vanguarda com a de um banco de
elite. O balcão da recepção era alto, de uma madeira escura. Dirigi-me
a ele com Esperanza a meu lado. Notei que a recepcionista, que ostentava
aquele tipo de beleza das pessoas do interior, forte e saudável,
não usava aliança no dedo. Cogitei uma mudança de planos. Uma
mulher solteira. Eu poderia ligar o charme e ela responderia enfeitiçada
a todas as minhas perguntas.
Esperanza logo percebeu o que se passava na minha cabeça e olhou
torto na minha direção. Dei de ombros. De qualquer modo, dificilmente
a recepcionista saberia de alguma coisa.
– Minha mulher está grávida – falei, olhando de relance para
Esperanza. – Gostaríamos de conversar com alguém sobre o
armazenamento do sangue do cordão umbilical de nosso bebê.
A recepcionista abriu um sorriso ensaiado, entregou-nos um conjunto
de panfletos coloridos impressos em papel espesso e nos conduziu
até uma sala com poltronas de camurça. Nas paredes se viam
enormes fotos de crianças e um diagrama do corpo humano que fazia
pensar nas aulas de biologia do ensino fundamental. Começamos a
preencher um formulário. Fiquei na dúvida sobre o que colocar no
campo destinado ao nome – I. P. Daily ou Wink Martindale? No final,
acabei optando por Mark Kadison, que era um amigo meu: se alguém
dali telefonasse, Mark não faria mais do que dar uma boa risada.
– Boa tarde!
Um homem de jaleco e gravata entrou na sala. Usava um desses
óculos de aro escuro a que os atores recorrem quando querem parecer
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inteligentes. Apertou nossas mãos e se acomodou em uma das poltronas
de camurça.
– Então – falou –, em que estágio da gravidez a senhora está?
Olhei para Esperanza.
– No terceiro mês – respondeu ela, franzindo a testa.
– Parabéns. É sua primeira gestação?
– Sim.
– Bem, fico feliz que sejam sensatos o bastante para se informarem
sobre o armazenamento do sangue do cordão umbilical de seu bebê.
– O senhor pode nos dizer quanto isso irá custar? – perguntei.
– Mil dólares pelo processamento e envio, além de taxas anuais de
armazenamento. Sei que é caro, mas se trata de uma oportunidade
única. O sangue do cordão umbilical contém células-tronco que podem
salvar vidas no futuro. Simples assim. Elas podem ser usadas no
tratamento de anemias e leucemia. Podem combater infecções e
ajudar no tratamento de certos tipos de câncer. Estamos bastante
avançados nas pesquisas que um dia podem levar à cura de doenças
cardíacas, diabetes e mal de Parkinson. Ainda não chegamos lá, mas
quem pode prever o que acontecerá daqui a alguns anos? Já ouviram
falar dos transplantes de medula óssea?
– Por alto – falei.
– Os transplantes de sangue do cordão umbilical produzem resultados
não só melhores como também mais seguros, porque não é necessário
nenhum tipo de intervenção cirúrgica para a coleta do
sangue. No caso dos transplantes de medula, é preciso haver uma
compatibilidade HLA de 83%. Já para se usar o sangue do cordão umbilical,
67% é tudo de que precisamos. E isso já está acontecendo
agora. Muitas vidas têm sido salvas com os transplantes de células
provenientes de cordões umbilicais. Alguma dúvida até agora?
Ambos fizemos que não com a cabeça.
– Pois bem. O mais importante é o seguinte: a única oportunidade
para se colher o sangue do cordão umbilical é na hora do parto. Depois
não dá mais. Não será possível decidir fazer isso quando a criança
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já estiver com 3 anos ou na eventualidade, Deus queira que não, de
um filho adoecer.
– Mas como tudo é feito, afinal? – perguntei.
– O procedimento é simples e indolor. Assim que o bebê nasce, nós
colhemos o sangue do cordão umbilical, depois separamos as célulastronco
e as congelamos.
– E onde essas células ficam guardadas?
– Aqui mesmo – respondeu o homem –, com toda a segurança possível.
Temos vigias, geradores de energia e cofres. Como se fôssemos
um banco. A opção mais procurada, e seguramente a mais recomendável
no caso de vocês, é o que chamamos de “banco familiar”.
Em suma, vocês armazenam as células de seu bebê para uso da própria
família. Mais tarde elas poderão ser usadas pela criança, por um
irmão, por vocês mesmos ou outro parente: um tio, uma tia, o que for.
– Mas como vamos saber que as células colhidas serão compatíveis?
– Não há nenhuma garantia de compatibilidade, é importante que
vocês saibam disso. Mas é óbvio que as chances são bem maiores
entre familiares. Além disso, vocês aparentemente formam um casal
interracial. É mais difícil encontrar doadores compatíveis assim, o que
é um dado relevante para sua decisão. Ah, também é importante frisar
que, nesse caso, as células-tronco são retiradas do sangue do cordão
umbilical. O processo não tem nada a ver com toda essa controvérsia a
respeito do uso de células de origem embrionária.
– Vocês não armazenam embriões aqui?
– Sim, mas isso é outro assunto. Não tem nada a ver com o que vocês
estão buscando. O armazenamento de embriões é para casos de infertilidade,
coisas assim. Na coleta de células do cordão umbilical,
nenhum embrião é sacrificado. Só queria deixar isso bem claro.
Ele estampava no rosto um sorriso que ia de orelha a orelha.
– O senhor é médico? – perguntei.
O sorriso diminuiu ligeiramente.
– Não, mas temos médicos em nossa equipe.
– E qual é a especialização deles?
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– São todos expoentes em diversas áreas.
Ele nos entregou um panfleto e apontou para os cinco médicos.
– Um geneticista para as doenças hereditárias. Um hematologista
para os casos de transplante. Um ginecologista e obstetra, pioneiro na
área de infertilidade. Um oncologista da área pediátrica, que atualmente
pesquisa a utilização de células-tronco no tratamento do câncer
infantil.
– Bem, deixe-me fazer uma pergunta hipotética.
Ele se inclinou para a frente.
– Eu armazeno o sangue do cordão umbilical de meu filho. Alguns
anos depois, eu fico doente. Talvez ainda não haja cura para essa
doença, mas estou disposto a tentar um tratamento em fase experimental.
Nesse caso, posso usar o sangue que armazenei?
– O sangue é seu, Sr. Kadison. Pode ser usado da maneira que
quiser.
Eu não fazia a menor ideia de como prosseguir. Olhei para Esperanza,
mas ela não tinha nenhuma contribuição a dar.
– Posso falar com algum dos seus médicos? – perguntei.
– Há alguma pergunta que não fui capaz de responder?
Resolvi partir para um caminho diferente.
– Por acaso o senhor tem um cliente chamado Rick Collins?
– Como?
– Rick Collins. É um amigo meu. Foi ele quem recomendou vocês.
Só queria ter certeza de que ele é mesmo seu cliente.
– Essa informação é confidencial. O senhor há de compreender. Se
alguém perguntasse sobre o senhor, minha resposta seria a mesma.
Mais um beco sem saída.
– Já ouviu falar de uma fundação chamada Salvem os Anjos? –
perguntei.
Ele fechou a cara.
– Ouviu?
– Por quê?
– É só uma pergunta.
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– Bem, já expliquei todo o procedimento – disse ele, levantando-se.
– Não deixem de ler esses panfletos. Espero que escolham o CryoHope.
E boa sorte ao casal.
www
Quando chegamos à rua, falei:
– Você viu a pressa do cara?
– Vi.
– Foi Win quem levantou essa bola, de que talvez o sangue encontrado
na cena do crime fosse de um cordão umbilical.
– Isso explicaria muita coisa – disse Esperanza.
– Sei lá, ainda estou confuso. Digamos que Rick Collins tenha
mesmo guardado o sangue da filha, Miriam. Mas e depois? Depois
veio aqui, mandou... sei lá, que descongelassem o sangue, o levou para
Paris e deixou cair no chão quando foi assassinado, é isso?
– Não.
– Então o quê?
– Está faltando alguma coisa. Um elo na corrente, talvez mais de
um. É possível que Rick tenha mandado o sangue congelado para Paris.
Talvez estivesse participando de algum programa experimental
qualquer, testes com humanos ou qualquer outra coisa proibida pelo
governo americano. Não sei, mas... Será que isso é menos plausível
que a menina ter sobrevivido ao acidente e sumido do mapa durante
10 anos?
– Você viu a cara do fulano quando mencionamos a Salvem os
Anjos?
– Nada mais natural. Esse pessoal é radicalmente contra o aborto e
as pesquisas com células-tronco embrionárias. Você viu como ele fez
questão de bater nessa tecla? De que o sangue do cordão umbilical
não tem nada a ver com toda essa confusão?
Refleti um instante.
– Seja como for, precisamos dar uma investigada na tal fundação.
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– Ninguém atende o telefone por lá – disse Esperanza.
– Você tem o endereço?
– Fica em Nova Jersey – disse ela. – Mas...
– Mas o quê?
– Estamos andando em círculos, Myron. Até agora não descobrimos
nada. Acho que já é hora de cairmos na real. Nossos clientes não
merecem isso. Demos nossa palavra de que trabalharíamos em defesa
dos interesses deles. Mas não é isso que estamos fazendo aqui.
Permaneci mudo.
– Você é o melhor agente do mundo – prosseguiu ela. – Também
sou boa no que faço. Muito boa. Deixo você no chinelo em uma mesa
de negociações e sou muito mais capaz de fazer nossos clientes ganharem
dinheiro. Mas eles nos procuram porque confiam em você,
porque querem alguém que cuide bem deles. E nisso você é excelente.
Esperanza deu de ombros e aguardou o que eu tinha a dizer.
– É, eu entendo – falei. – Geralmente entro nessas confusões para
proteger os clientes. Mas desta vez a coisa é maior. Bem maior. Você
quer que eu dedique mais tempo aos nossos interesses pessoais. Eu
entendo. Mas preciso ir até o fim dessa história.
– Você tem complexo de herói – disse ela.
– Tenho, é? Mentira.
– Por causa disso você às vezes se arrisca às cegas. E é sempre melhor
saber para onde se está indo.
– Neste momento estou indo para Nova Jersey – falei. – E você,
para o escritório.
– Posso ir junto, se você quiser.
– Não preciso de babá.
– Que pena, porque já estou no cargo. É o seguinte: nós vamos juntos
ver qual é a dessa Fundação Salvem os Anjos. Se dermos com os
burros n’água mais uma vez, voltamos para o escritório e trabalhamos
a noite inteira. Fechado?
– Fechado.
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29
UM BECO SEM SAÍDA E TANTO.
Seguindo o GPS do carro, chegamos a um prédio comercial em Ho-
Ho-Kus, Nova Jersey, no fim de uma rua sem saída. Ao nosso redor,
uma oficina mecânica, uma escola de caratê chamada Garra de Águia
e um estúdio fotográfico cafona de doer em cuja fachada se lia:
OPHICINA DE PHOTOGRAPHIAS ALBIN LARAMIE ASSOCIADOS. Ao passarmos
por ela, apontei para a vitrine e disse:
– Se é uma oficina, isso significa que essas fotos foram consertadas?
Imagine só como eram antes.
As fotografias de casamentos eram tão granuladas que às vezes
ficava difícil distinguir o noivo da noiva. Também havia mulheres em
poses sensuais, quase todas de biquíni. As fotos de bebês embrulhados
em camisolões antigos tentavam reproduzir um clima vitoriano em
diferentes tons de sépia – chegava a dar medo. Sempre que vejo fotos
reais de bebês daquela época, não consigo deixar de pensar: “Seja lá
quem for essa criança, hoje ela está morta e enterrada.” Talvez eu seja
mais mórbido que a maioria, mas que tipo de pessoa pode gostar de
fotos assim?
Entramos no saguão do prédio e examinamos o quadro que
mostrava os números de cada sala. A Salvem os Anjos ficava na 3B.
Subimos, mas a porta estava trancada. Nela se via o espaço desbotado
onde antes houvera uma plaquinha.
A sala mais próxima era um escritório de contabilidade chamado
Bruno e Associados. Perguntei à recepcionista o que havia acontecido
a seus vizinhos.
– Ah, faz meses que eles saíram daqui – disse ela.
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Uma plaquinha no balcão informava o nome da moça: Minerva.
Fiquei imaginando que talvez fosse sobrenome.
– Foi logo depois que arrombaram a sala deles.
Arqueando uma das sobrancelhas, debrucei-me no balcão e disse:
– Arrombaram a sala deles?
Sou ótimo nos interrogatórios incisivos.
– É. Levaram tudo. Deve ter sido... – Minerva começou a dizer.
Então fez uma careta e berrou: – Bob, quando foi que invadiram a sala
aqui ao lado mesmo?
– Há três meses.
E isso foi tudo o que conseguimos com Minerva e Bob. Nos filmes,
os detetives sempre perguntam se o locatário deixou um novo endereço
para encaminhamento da correspondência. Nunca vi ninguém
fazer isso na vida real. Voltamos ao corredor e mais uma vez encaramos
a porta da sala vizinha. Ela não tinha nada a declarar.
– Pronto para voltar ao trabalho? – perguntou Esperanza.
Concordei. Voltamos à rua. Eu ainda tentava me acostumar ao sol
ofuscante quando ouvi Esperanza dizer:
– Ora, vejam só...
– Que foi?
Ela apontou para um carro do outro lado da rua.
– Dá uma olhada no adesivo do para-choque de trás.
Era um modelo bastante comum: oval, com fundo branco e as iniciais
de uma cidade qualquer que a pessoa tenha visitado escritas em
preto. Acho que a moda começou na Europa. O sujeito volta da Itália,
por exemplo, e cola um ROM no para-choque do carro. Hoje em dia,
quase tudo quanto é cidade tem um adesivo semelhante. É uma
maneira de demonstrar orgulho cívico, sei lá.
No caso em questão, as iniciais eram HHK.
– Ho-Ho-Kus – falei.
– Exato.
Imediatamente me lembrei do código que havia encontrado na casa
de Karen Tower.
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– Opala em Ho-Ho-Kus. Talvez 4.712 seja o número de uma casa.
– Ou talvez “Opala” seja um sobrenome.
Mas aquela não seria a única surpresa do dia. A caminho do nosso
carro, percebemos que um Cadillac Escalade havia estacionado atrás
dele, bloqueando nossa saída. Um sujeito parrudo de terno marrom
de gosto duvidoso veio em nossa direção. Tinha um rosto largo e anguloso
e cabelos cortados rente. Lembrava um atacante de futebol
americano da década de 1950.
– Sr. Bolitar?
Reconheci a voz. Já a tinha ouvido duas vezes antes. Uma quando
telefonei para Berleand, e outra em Londres, segundos antes de perder
a consciência.
Esperanza se interpôs no caminho como se quisesse me proteger.
Pousei a mão no ombro dela, indicando que não precisava se
preocupar.
– Agente especial Jones – falei.
Dois homens (agentes também, supus) desceram do Escalade. Deixaram
as portas abertas e se recostaram na lataria. Ambos usavam óculos
escuros.
– Você terá de vir comigo – disse Jones.
– Estou sendo preso? – perguntei.
– Ainda não. Mesmo assim, sugiro que venha comigo.
– Acho que vou esperar pela ordem de prisão – retruquei. – Aí eu
levo meu advogado comigo. Sabe como é, só para fazer as coisas como
manda o figurino.
Jones deu um passo à frente.
– Prefiro não fazer uma acusação formal. Mesmo sabendo dos
crimes que você cometeu.
– Foi testemunha ocular, não foi?
Jones deu de ombros.
– Para onde me levou depois que apaguei? – perguntei.
Ele simulou um suspiro.
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– Tenho certeza de que não sei do que você está falando. Mas não
temos tempo para isso agora, nem eu nem você. Vamos dar uma voltinha,
pode ser?
Ele já ia me puxar pelo braço quando Esperanza disse:
– Agente especial Jones, telefone para o senhor.
Esperanza lhe estendeu o celular. Jones franziu a testa, mas pegou o
aparelho. Olhei para Esperanza, igualmente desnorteado, mas não encontrei
nenhuma pista no rosto dela.
– Alô – disse Jones.
O volume do aparelho estava alto o bastante para que ouvíssemos
com clareza o outro lado da linha, de onde alguém disse:
– Cromo, estilo militar, logomarca da Gucci em alto-relevo no canto
inferior esquerdo.
Era Win.
– Hein? – disse Jones.
– Estou vendo a fivela do seu cinto pela mira do meu fuzil, embora
o alvo esteja uns oito centímetros abaixo – disse Win. – Talvez cinco
centímetros seja mais apropriado no seu caso.
Baixei os olhos para o cinto do sujeito. Nossa! Eu não fazia a menor
ideia do que fosse uma fivela de cromo em estilo militar, mas lá estava
a logomarca da Gucci gravada no metal, no canto inferior esquerdo.
– Gucci? – continuou Win. – Com salário de funcionário público?
Só pode ser falsificação.
Jones correu os olhos a seu redor, o celular pregado ao ouvido.
– Suponho que seja o Sr. Windsor Horne Lockwood – falou.
– Tenho certeza de que não sei do que você está falando.
– O que você quer?
– É simples. O Sr. Bolitar não vai a lugar nenhum com o senhor.
– Está ameaçando um agente federal. É um crime grave, Sr.
Lockwood.
– Bem – disse Win –, estou apenas comentando o seu senso fashion.
E, levando-se em conta o seu cinto preto e seus sapatos marrons,
a única pessoa que está cometendo um crime aqui é você.
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Jones ergueu os olhos e me encarou. Parecia estranhamente calmo
para alguém com um fuzil apontado para a virilha. Olhei de relance
para Esperanza, que não olhou de volta. Uma coisa era certa: Win não
estava em Bangcoc coisa nenhuma. Ele havia mentido para mim.
– Não quero confusão – disse Jones, e ergueu os braços. – Portanto,
tudo bem, não vou forçá-lo a vir comigo. Tenha um bom dia, Sr.
Bolitar.
Ele entregou o telefone a Esperanza, deu as costas e saiu andando
de volta ao carro.
– Jones? – chamei.
Imediatamente ele se virou e protegeu os olhos do sol com a mão.
– Você sabe o que aconteceu a Terese Collins?
– Sei.
– O que foi?
– Se você vier comigo, eu conto – respondeu ele.
Olhei para Esperanza, que devolveu o celular ao agente Jones. Win
disse:
– Que fique bem claro. Você não vai conseguir se esconder. Sua
família também não. Se acontecer algo a ele, será o fim de tudo e todos
que você ama. E não, isto não é uma ameaça.
Win desligou e Jones olhou para mim.
– Gente boa, esse seu amigo – disse.
– Você nem imagina.
– Então, vamos?
Segui para o Escalade e entrei.
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30
ATRAVESSAMOS A PONTE GEORGE WASHINGTON e voltamos para Manhattan.
Jones apresentou seus dois companheiros sentados à frente, mas
já não me lembro dos nomes. O Escalade pegou a saída para a Rua 79
e dali a pouco paramos no lado oeste do Central Park. Jones abriu a
porta do carro, pegou sua maleta e disse:
– Vamos dar uma caminhada.
Desci. O sol ainda estava forte.
– O que aconteceu a Terese? – perguntei.
– Antes você precisa saber do resto.
Na verdade, não precisava, mas não fazia sentido insistir. Ele me
contaria tudo na ordem em que quisesse. Jones tirou o paletó e o deixou
no banco de trás do carro. Pensei que os outros dois agentes desceriam
também, mas Jones deu um tapa no teto do veículo e eles
arrancaram.
– Só nós dois? – falei.
– Só nós dois.
A maleta do sujeito era antiga, retangular e com segredos em ambas
as trancas. Papai tinha uma idêntica na época de sua fábrica em Newark.
Servia para carregar contratos, contas e canetas, além de um
pequeno gravador.
Jones entrou no parque na altura da Rua 67. Passamos pelo Tavern
on the Green. Mal se viam as luzinhas nas árvores. Apertei o passo e,
alcançando o agente, falei:
– Isto está parecendo filme de espionagem.
– É só precaução. Talvez desnecessária. Mas, no ramo em que trabalho,
é melhor pecar pelo excesso.
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Achei aquilo um tanto melodramático, mas, como antes, julguei
melhor não criar caso. De uma hora para outra Jones havia assumido
um ar sombrio, reflexivo, sabe-se lá por quê. Agora observava as pessoas
a seu redor: os corredores, os patinadores, os ciclistas, as mamães
com seus carrinhos de bebê estilosos.
– Sei que isso pode parecer piegas – falou –, mas essa gente corre,
patina, trabalha, namora, ri e se diverte sem fazer a menor ideia de
como tudo isso é frágil.
– Já entendi – interrompi. – E você, agente especial Jones, é a
resignada sentinela que protege a todos, que sacrifica a própria vida
para que os cidadãos possam dormir em paz, certo?
Ele abriu um sorriso e disse:
– É, acho que mereci ouvir isso.
– Que foi que aconteceu a Terese?
Jones continuou andando.
– Quando estávamos em Londres – falei –, você me levou sob
custódia.
– Sim.
– E depois?
Ele deu de ombros.
– Depois, não sei. Há muitas hierarquias. Passei você a um agente
de outro departamento. Meu trabalho já havia sido feito.
– Muito conveniente do ponto de vista moral.
Jones fez uma careta, mas seguiu adiante.
– O que você sabe sobre Mohammad Matar? – perguntou.
– Só o que li nos jornais – respondi. – Ao que parece, era um cara
do mal.
– Mais que do mal. Era um extremista com formação acadêmica
sólida e que fazia outros terroristas borrarem as calças de medo.
Matar adorava a tortura. Acreditava que o único modo de eliminar os
infiéis era se infiltrando e vivendo no meio deles. Fundou uma organização
terrorista chamada Morte Verde. O lema deles é: “Al-sabr walsayf
sawf yudammir al-kafirun.”
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Um tremor percorreu meu corpo.
“Al-sabr wal-sayf.”
– O que isso significa? – perguntei.
– “A paciência e a espada extinguirão os infiéis.”
Sacudi a cabeça em uma tentativa de organizar os pensamentos.
– Mohammad Matar passou quase a vida inteira no Ocidente. Foi
criado principalmente na Espanha, mas também passou algum tempo
na França e na Inglaterra. Dr. Morte é mais que um apelido: ele se formou
em medicina pela Universidade de Georgetown, depois fez a
residência aqui, em Nova York. Passou 12 anos nos Estados Unidos,
sempre trocando de nome. Adivinha em que dia ele deixou o país?
– Não estou no clima para adivinhações.
– No dia 10 de setembro de 2001.
Ambos ficamos mudos por um tempo e, quase instintivamente,
tomamos a direção sul. Não, dali não conseguiríamos avistar as torres,
mesmo que elas ainda estivessem de pé. Mas pensar nelas era uma
forma de mostrar nosso respeito pelas pessoas que perderam suas
vidas.
– Quer dizer que ele estava envolvido naquilo? – falei.
– Envolvido? Difícil dizer. Mas Mohammad Matar sabia de tudo.
Não foi mera coincidência ele ter saído do país um dia antes. Segundo
uma testemunha, ele estava no Pink Pony no início de setembro. Já
ouviu falar desse lugar?
– Não é a boate de striptease em que os terroristas foram vistos
antes do dia 11?
Jones fez que sim com a cabeça. Um grupo atravessou nosso caminho.
Crianças entre 10 e 12 anos com camisas verdes com a insígnia
da escola pregada ao bolso. Uma professora puxava a fila e outra cuidava
da retaguarda.
– Você matou um líder terrorista importante – disse Jones. – Faz
ideia do que os seguidores dele fariam a você caso descobrissem a
verdade?
– Foi por isso que levaram os louros pela morte dele?
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– Foi por isso que omitimos seu nome.
– Fico muito agradecido.
– Está sendo irônico?
Nem eu mesmo sabia dizer.
– Se continuar aprontando por aí, a verdade vai acabar vindo à
tona. Qualquer hora dessas você tropeça em uma colmeia e um
enxame de jihadistas sai atrás de você.
– Vamos supor que eu não tenha medo deles.
– Então é um débil mental.
– O que aconteceu a Terese?
Paramos diante de um banco. Jones apoiou um dos pés no assento e
usou a coxa como base para abrir a maleta. Vasculhou o conteúdo e
dali a pouco disse:
– Um dia antes de matar Mohammad, você escavou o túmulo de
Miriam Collins durante a noite para realizar um teste de DNA, certo?
– Você quer o quê? Uma confissão?
Jones balançou a cabeça.
– Você não está entendendo – disse.
– Entendendo o quê?
– Nós confiscamos o material. Com certeza você já sabe disso.
Permaneci calado.
Jones retirou um envelope pardo da maleta.
– Aqui estão os resultados do teste que você queria.
Ergui o braço para pegar o envelope e por um instante Jones hesitou
em entregá-lo, como se cogitasse voltar atrás. Mas tanto ele quanto
eu sabíamos. Era para isso que eu estava ali. Por fim ele entregou o
envelope. Abri. Na folha de rosto havia uma foto da amostra óssea que
Win e eu havíamos colhido naquela noite. Virei a página, mas Jones já
havia retomado a caminhada.
– Os exames foram conclusivos. O esqueleto naquele túmulo pertencia
mesmo a Miriam Collins. O teste de DNA aponta Rick Collins
como pai e Terese Collins como mãe. Além disso, o osso da amostra
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era condizente com o tamanho e o desenvolvimento de uma menina
de 7 anos.
Li o relatório. Jones continuou andando.
– Isto aqui pode ser falso – falei.
– Pode – concordou ele.
– Como você explica o sangue encontrado na cena do crime em
Paris?
– Você acabou de levantar uma hipótese interessante.
– Que é?
– Talvez os resultados tenham sido forjados.
Parei.
– Você acabou de dizer que talvez tenhamos fabricado estes resultados.
No entanto... não seria mais lógico que os franceses tivessem
feito isso?
– Berleand?
Ele deu de ombros.
– E por que ele faria uma coisa dessas?
– Por que eu faria? Seja como for, você não precisa confiar na
minha palavra. O material que vocês colheram naquele cemitério também
está nesta maleta. Assim que terminarmos nossa conversa, posso
devolvê-lo para que você providencie um novo exame, se quiser.
A essa altura eu já estava tonto. Jones continuava sua caminhada. A
hipótese dele não era de todo absurda. Caso Berleand tivesse mentido,
tudo se encaixaria. Afinal, pensando racionalmente, o que seria mais
plausível? Que Miriam Collins tivesse sobrevivido ao acidente e
testemunhado o assassinato do pai ou que Berleand tivesse mentido
sobre os resultados do exame?
– Você acabou se envolvendo nesta confusão porque queria encontrar
Miriam Collins – disse Jones. – Pois já encontrou. Quanto ao
resto, deixe conosco. Seja lá o que mais estiver acontecendo, você
agora sabe que Miriam Collins está morta. Esta amostra óssea fornecerá
todas as provas de que precisa.
Balancei a cabeça e disse:
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– É fumaça demais para que não haja nenhum fogo.
– Tipo o quê? Os terroristas? Grande parte disso que você chama de
“fumaça” pode ser atribuída ao próprio Rick Collins, que tentou se infiltrar
na célula deles.
– E a garota de cabelos louros?
– O que tem ela?
– Vocês a capturaram em Londres?
– Não. Ela já havia fugido quando chegamos. Sabemos que você a
viu. Temos uma testemunha, um vizinho de Mario Contuzzi, que
afirma ter visto você correndo atrás dela.
– Quem era a moça, afinal?
– Uma integrante da célula.
– Uma adolescente loura? – exclamei. – Jihadista?
– Claro. Essas células costumam ser bem variadas: estrangeiros que
tiveram os direitos civis cassados, árabes de todo tipo e, sim, um ou
outro ocidental com alguns parafusos a menos. Sabemos que os
grupos terroristas vêm tentando recrutar um número cada vez maior
de ocidentais brancos, sobretudo mulheres. Por um motivo muito
simples: uma lourinha bonitinha pode ir a lugares que um marmanjo
árabe não pode. É comum essas garotas terem questões psicológicas
muito mal resolvidas. Sabe como é: há jovens que resolvem fazer
filmes pornôs, outras vão para a cama com terroristas.
Eu não sabia ao certo se acreditava naquilo.
Jones abriu um sorriso discreto, depois disse:
– O que mais o preocupa? Pode se abrir comigo.
– Muitas coisas – falei.
Ele balançou a cabeça.
– Não, Myron. A esta altura tudo se resume a uma coisa só, não é?
Você está se perguntando sobre o acidente de carro.
– A versão oficial é falsa – falei. – Conversei com Karen Tower
antes do assassinato dela. E com Nigel Manderson também. O
acidente não aconteceu do modo que eles disseram.
– É essa a sua fumaça?
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– É.
– Então, se eu soprar essa fumaça, você esquece tudo isso?
– Estavam escondendo algo sobre aquela noite.
– Então, se eu soprar essa fumaça, você esquece tudo isso? – repetiu
ele.
– Suponho que sim – respondi.
– Pois bem. Vamos avaliar algumas hipóteses.
Jones continuava caminhando.
– O acidente de 10 anos atrás. Você decerto está achando que...
Ele estacou e se virou para mim.
– Não, diga você o que está achando. Na sua opinião, o que eles podiam
estar escondendo?
Não respondi.
– O carro bateu. Quanto a isso não há dúvida, certo? Terese foi
levada para o hospital. Nisso você também acredita, suponho. Portanto,
na sua opinião, o que deu errado? Você acha que... me ajude
aqui, Myron... você acha que houve uma trama envolvendo a melhor
amiga de Terese Collins e pelo menos um ou dois policiais para que,
por um estranho motivo, a menina fosse raptada e criada em um cativeiro
qualquer durante todo esse tempo. Mas... e depois?
Permaneci calado.
– Na sua cabeça, também participo dessa conspiração, já que estou
mentindo sobre os resultados do exame de DNA. Só que agora você
poderá comprovar por conta própria que não estou.
– Eles estavam escondendo algo – falei.
– Sim, estavam – disse Jones.
Esperei que ele explicasse. A essa altura já havíamos alcançado o
carrossel do parque.
– Em grande parte o acidente aconteceu do modo que lhe contaram.
Um caminhão fechou o carro da Sra. Collins na A-40, ela deu um
puxão no volante e... bem, foi aí que a coisa desandou. Você também
já sabe dos antecedentes. A Sra. Collins estava em casa. Recebeu um
telefonema para ir até a emissora e apresentar o noticiário do horário
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nobre. Não havia planejado sair naquela noite. Portanto, até certo
ponto, acho compreensível que...
– Que...?
– Há um ditado popular grego que diz que o corcunda nunca
enxerga a própria corcova.
– O que isso tem a ver com Terese?
– Talvez nada. Esse ditado fala dos nossos erros. Não hesitamos em
apontar os erros dos outros. Quanto aos nossos, no entanto... Também
não sabemos avaliar nossas próprias qualidades, sobretudo quando há
uma bela recompensa à nossa frente.
– Você não está falando coisa com coisa.
– Claro que estou. Você quer saber o que eles estavam escondendo.
Mas não é óbvio? A morte da filha não teria sido castigo suficiente
para Terese Collins? Não sei dizer se eles estavam preocupados com as
consequências legais ou apenas com a culpa que aquela mãe teria de
carregar. Acontece que Terese Collins estava alcoolizada naquela
noite. Teria evitado o acidente se estivesse sóbria? Não sei. Ninguém
sabe. O motorista do caminhão também estava errado, mas se ela
tivesse reagido com mais rapidez...
Tentei digerir aquilo.
– Terese estava bêbada?
– O exame de sangue indica que sim, que ela estava acima do limite
permitido.
– Então é isso que eles estavam escondendo?
– É.
Dizem que é possível farejar uma mentira. Mas a verdade também
tem seu cheiro.
– Quem sabia disso? – perguntei.
– O marido. Karen Tower também. Guardaram segredo porque
temiam que a verdade pudesse destruir a Sra. Collins.
Era bem possível que eles não tivessem conseguido evitar isso, pensei.
E senti um aperto no peito tão logo me dei conta de outra verdade:
Terese provavelmente sabia. Mesmo que não tão claramente, sabia da
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própria culpa. Qualquer mãe ficaria arrasada com uma tragédia assim,
mas 10 anos já haviam se passado e lá estava ela, ainda tentando se
redimir.
O que Terese tinha dito em Paris? Que não queria reconstruir seu
mundo.
Ela sabia. Talvez inconscientemente. Mas sabia.
Parei onde estava.
– O que aconteceu a Terese?
– Então, Myron, a fumaça foi embora?
– O que aconteceu a ela? – insisti.
Jones se virou e, encarando-me, disse:
– Preciso ter certeza de que você vai deixar tudo isso de lado, está
bem? Não sou a favor dessa história de que os fins justificam os meios.
Conheço todos os argumentos contra a tortura e concordo com eles.
Mas o buraco dessa questão é bem mais embaixo. Digamos que você
prenda um terrorista que já tenha matado milhares de pessoas e que
ele tenha escondido uma bomba que poderá matar milhões de crianças.
Você não cobriria o sujeito de porrada até arrancar a informação
dele para salvar essas vidas? Claro que sim. Mesmo que fossem
só 10 crianças, não centenas ou milhares. A pessoa que não for capaz
de entender uma coisa dessas... Bem, eu ficaria com os dois pés atrás.
Ela também é extremista.
– Aonde você quer chegar?
– Quero que você retome sua vida – disse Jones, agora com certa
delicadeza, quase em tom de súplica. – Sei que você desconfia de mim.
Mas não gosto nem um pouco do que aconteceu a você. Por isso estou
lhe contando tudo isso. Estou protegido por todos os lados. Jones nem
é meu nome verdadeiro e estamos neste parque porque não tenho endereço
fixo. Até para seu amigo Win seria quase impossível me localizar.
Conheço sua vida pelo avesso. Conheço seu passado. Sei que teve
um problema no joelho e tentou seguir em frente. Não é comum ter
uma segunda chance e é exatamente isso que estou lhe oferecendo
agora.
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Ele correu os olhos pelo horizonte.
– Você precisa virar mais essa página. Tocar a vida adiante. Para
seu próprio bem – acrescentou ele. Depois apontou o queixo para determinada
direção e concluiu: – E o dela também.
Por um momento tive medo de ver. Mas por fim olhei na direção
que ele apontava, os olhos dardejando à procura do que seria. Então
fiquei paralisado. Com a mão trêmula, cobri a boca. Eu fazia o possível
para manter as pernas firmes enquanto meu peito ameaçava explodir.
Porque do outro lado de um gramado, com os olhos úmidos e, como
sempre, linda de morrer, estava Terese.
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31
NO ATAQUE EM LONDRES TERESE havia sido atingida no pescoço.
Eu novamente repousava a cabeça naqueles ombros adoráveis,
beijando-os devagar, quando vi a cicatriz. Não, Terese não havia sido
dopada e arrastada para um buraco negro. Fora levada a um hospital
nas imediações de Londres, depois embarcara para Nova York. Sofrera
ferimentos bem mais graves que os meus. Ainda sentia muitas
dores e se movia com dificuldade.
Agora estávamos no apartamento de Win no edifício Dakota, no
meu quarto, abraçados e olhando para o alto. Terese apoiava a cabeça
em meu peito. Eu podia sentir meu coração batendo contra o corpo
dela.
– Você acreditou no que Jones disse? – perguntei.
– Acreditei.
Deslizei a mão por suas costas e puxei-a para mais perto. Ela estremeceu
um pouco. Eu não queria perdê-la de vista nunca mais.
– Até certo ponto, eu sabia que estava me iludindo – disse ela. –
Nossa, como eu queria aquilo! Era uma oportunidade de redenção,
entende? Como se minha filhinha desaparecida estivesse viva em algum
lugar e eu tivesse a chance de resgatá-la.
Eu entendia o que ela estava sentindo.
– Então, o que vamos fazer agora? – perguntei.
– Agora só quero ficar quietinha aqui, com você, e deixar rolar.
Pode ser?
– Claro.
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Permaneci com os olhos grudados no teto durante mais um tempo,
mas depois, como não consigo simplesmente deixar um assunto de
lado, falei:
– Quando Miriam nasceu, você e Rick congelaram o sangue do
cordão umbilical dela?
– Não.
Mais um tiro n’água.
– Você ainda quer fazer o teste de DNA, só para ter certeza? –
perguntei.
– Não sei. O que você acha?
– Acho que devemos fazer.
– Tudo bem, então.
– Você terá de fornecer uma amostra do seu DNA – falei. – Para
comparação. Não temos o DNA do Rick, mas se pudermos confirmar
que a filha é sua... Quer dizer, suponho que você só tenha dado à luz
uma vez.
Silêncio.
– Terese?
– Só dei à luz uma vez – disse ela.
Mais silêncio.
– Myron?
– Diga.
– Não posso mais ter filhos.
Permaneci calado.
– Foi um milagre Miriam ter nascido. Mas logo depois do parto,
precisei fazer uma histerectomia de urgência, porque o médico
descobriu alguns miomas. Não posso mais ter filhos.
Fechei os olhos. Queria dizer algo para consolá-la, mas tudo o que
me vinha à cabeça parecia paternalista ou inútil. Então puxei-a um
pouco mais para perto. Não queria pensar no futuro. Queria apenas
ficar ali, abraçando-a.
Mais uma vez me lembrei do ditado iídiche: “O homem planeja e
Deus ri.”
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Percebi que ela tentava se desvencilhar do meu abraço. Puxei-a de
volta.
– Ainda é cedo demais para essa conversa? – perguntou ela.
Pensei um instante.
– Provavelmente, tarde demais.
– E isso significa que...?
– Que neste momento – falei – só quero ficar quietinho aqui, com
você, e deixar rolar.
www
Terese já estava dormindo quando ouvi alguém destrancar a porta
do apartamento. Olhei para o relógio da mesinha de cabeceira: uma
da manhã.
Vesti um roupão e fui para a sala. Win e Mee acabavam de chegar.
– Olá, Myron – disse Mee, com um breve aceno.
– Olá, Mee.
Ela passou para a sala ao lado e, tão logo ficamos sozinhos, Win
disse:
– Quando o assunto é sexo, gosto de Mee saciar primeiro.
Apenas olhei para ele.
– E o melhor de tudo é que não preciso de muito para Mee
satisfazer.
– Por favor, pare com isso – falei.
Win deu um passo à frente e me abraçou com força.
– Você está bem? – perguntou.
– Estou ótimo.
– Quer saber de uma coisa curiosa?
– O quê?
– Nunca ficamos tanto tempo longe um do outro desde os tempos
da Duke.
Fiz que sim com a cabeça, esperei que o abraço afrouxasse e olhei
para Win.
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– Você mentiu sobre Bangcoc – falei.
– Menti coisa nenhuma. Acho mesmo que o nome da cidade é
engraçado.
Só balancei a cabeça. Então fomos para outro cômodo do apartamento,
uma sala em estilo Luís-não-sei-das-quantas, com madeiras
pesadas, esculturas rebuscadas e bustos de homens usando perucas.
Sentamos nas poltronas de couro diante da lareira de mármore. Win
arremessou uma caixinha de achocolatado na minha direção e se serviu
de uísque de um decanter de cristal.
– Preferiria café – disse –, mas não quero Mee excitar demais.
– Aposto que seu estoque de trocadilhos já está acabando.
– Deus queira que sim.
– Por que você mentiu sobre Bangcoc?
– O que você acha? – devolveu ele.
A resposta era óbvia. Senti uma onda de vergonha me dominar
novamente.
– Entreguei você, não entreguei?
– Entregou.
– Desculpe – falei.
– Não tem nada de que se desculpar.
– Pensei que... sei lá, pensei que fosse mais forte.
Win bebeu um gole do uísque, depois disse:
– Você é a pessoa mais forte que eu conheço.
Esperei um instante, mas não pude me conter:
– Pensei que você fosse dizer “a sua força Mee impressiona”.
– Mas é aquela comissária de bordo que Mee impressiona.
Seguiu-se um silêncio tranquilo. Depois de um tempo, Win
perguntou:
– Você já consegue se lembrar de alguma coisa?
– Muito vagamente.
– Vai precisar de ajuda com isso.
– Eu sei.
– A amostra de osso ainda está com você, não é?
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Fiz que sim com a cabeça.
– Caso o teste de DNA confirme o que o tal agente Jones disse, vamos
pôr um ponto final nessa história?
– Jones me deu algumas respostas, quase todas.
– Mas...
– Na verdade, são muitos “mas”.
– Sou todo ouvidos.
– Liguei para o número que Berleand me passou – falei. – Ninguém
atendeu.
– Isso não chega a constituir um “mas”.
– Você conhece a teoria dele sobre o grupo de Mohammad Matar?
– Que o grupo continuará ativo mesmo com a morte do líder?
Conheço.
– Se isso for verdade, muita gente está em perigo. Não podemos
simplesmente cruzar os braços.
Win balançou a cabeça algumas vezes enquanto dizia:
– É, não podemos.
– Além disso, Jones acha que os seguidores de Matar virão atrás de
mim se descobrirem o que fiz. Não pretendo ficar esperando por eles,
com medo da minha própria sombra.
Win gostou mais deste último argumento.
– Prefere adotar uma abordagem proativa?
– Acho que sim.
Win balançou a cabeça.
– O que mais? – perguntou ele.
Dei um gole longo no achocolatado.
– Eu vi aquela garota de cabelos louros. Vi o modo de andar. Vi o
rosto.
– Ah, sim. E, como disse antes, notou semelhanças, talvez genéticas,
entre ela e a deleitante Sra. Collins, certo?
Suguei mais um pouco do achocolatado da caixinha.
– Você se lembra daquelas figuras que causavam ilusões de ótica e
nos deixavam intrigados quando éramos crianças? – disse Win. –
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Tinha uma em que era possível enxergar ao mesmo tempo uma velha
e uma donzela, lembra? E também aquela do coelho e do pato.
– Não foi isso que aconteceu.
– Myron, reflita comigo. Suponha que Terese não o tivesse chamado
a Paris. Suponha também que você estivesse indo a pé para o
escritório e a tal moça cruzasse seu caminho. Você não iria pensar
“Puxa, só pode ser a filha da Terese”, iria?
– Não.
– Portanto, há uma clara influência pelas circunstâncias aqui. Está
entendendo o que eu quero dizer?
– Estou.
– Por outro lado – prosseguiu ele –, isso não significa que você
tenha se enganado.
– É verdade.
– Quer saber? Acho até que pode ser divertido caçar um grupo
terrorista.
– Você vai nessa comigo?
– Ir co-Mee-go? Ainda não. Só depois que terminar este uísque.
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32
É INCRÍVEL COMO NOSSA MENTE pode ao mesmo tempo ser tão atrapalhada
e tão sagaz.
Nossa lógica nunca é linear. O raciocínio avança, recua, bate nas
paredes, faz curvas fechadas e se perde em desvios. Qualquer coisa
pode ser um elemento catalisador – e geralmente é algo que à
primeira vista não tem nada a ver com o assunto em questão, algo que
lança nosso pensamento para uma direção inesperada e fatalmente
resulta em uma solução que a lógica linear jamais teria suposto.
Pois foi isso que aconteceu comigo. Foi assim que pude começar a
juntar as peças do quebra-cabeça.
Terese abriu os olhos quando voltei ao quarto. Não comentei nada
sobre minhas suspeitas a respeito da garota loura, fossem elas influenciadas
pelas circunstâncias ou não. Não queria esconder nada de Terese,
mas não havia motivos para tocar no assunto por enquanto. Ela
estava tentando se curar. Para que mexer naquela ferida se eu ainda
não tinha certeza de nada?
Terese pegou no sono novamente. Abracei-a e fechei os olhos. Só
então me dei conta de como havia dormido mal desde que voltara
daquele apagão de 16 dias.
Os pesadelos me acordaram de repente às três da manhã. Meu coração
martelava o peito. Meus olhos lacrimejavam. Eu me lembrava
apenas da sensação de ter algo me pressionando, prendendo meu
corpo, algo tão pesado que chegava a bloquear a respiração. Levantei
da cama. Terese ainda dormia. Baixei a cabeça e beijei-a de leve.
Havia um laptop na saleta contígua ao quarto. Acessei a internet e
procurei por “Salvem os Anjos”. O site surgiu na tela. Num banner
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abaixo do nome da fundação, lia-se em letras menores SOLUÇÕES
CRISTÃS. Os textos falavam de vida, amor e Deus. Sugeriam a substituição
da palavra “escolha” por “soluções” e traziam testemunhos de
mulheres que haviam preferido a “solução adoção” ao “assassinato”.
Casais que haviam enfrentado problemas de fertilidade condenavam
as “experiências cruéis” que o governo pretendia fazer com “nossos
pré-nascidos”, enquanto a Salvem os Anjos podia ajudar um embrião
congelado a “cumprir seu destino primeiro: a vida”, seguindo o preceito
cristão de ajudar outros casais estéreis.
Eu conhecia esses argumentos, lembrava-me de quando Mario Contuzzi
os havia mencionado, dizendo que a fundação parecia ser contra
o aborto, mas que não chegava a ser radical. Eu tendia a concordar
com essa posição, então continuei minha pesquisa. A missão do
grupo, tal como estava escrito, era compartilhar o amor de Deus e salvar
“crianças pré-nascidas”. Havia uma profissão de fé descrevendo a
Bíblia como “a palavra integral e inequívoca de Deus” e ressaltando o
caráter sagrado da vida. Links conduziam a sites de adoção, informações
legais, calendários de eventos e recursos para mães biológicas.
Cliquei em DÚVIDAS FREQUENTES e examinei todo o conteúdo sobre
apoio às mães solteiras, adequação de casais estéreis ao recebimento
de embriões congelados, formulários a serem preenchidos, custos e
como fazer doações ou entrar para a equipe. Tudo muito impressionante.
Em seguida abri GALERIA DE FOTOS e, logo na primeira página, deparei
com as imagens de duas mansões bastante imponentes, usadas
como abrigos para as mães solteiras. Uma delas lembrava a sede de
uma fazenda do Sul dos Estados Unidos, toda branca, com colunas de
mármore e salgueiros imponentes ao redor. A outra seria perfeita para
um hotel: um casarão vitoriano de arquitetura rebuscada, com torres,
vitrais, uma enorme varanda na frente e mansarda em ardósia. As legendas
ressaltavam a confidencialidade do lugar e de seus residentes
– não havia nomes ou endereços –, enquanto as fotos, de tão lindas,
fariam qualquer pessoa cogitar uma produção independente.
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Abri a segunda página, e foi aí que se deu o momento catalisador de
lógica não linear em que a mente mostra toda a sua sagacidade.
Fotos de bebês, todas lindas, fofas e comoventes, imagens concebidas
para emocionar qualquer ser humano com um mínimo de sangue
nas veias.
Acontece que minha mente tem um fraco por contrastes. Se assisto
a uma stand-up comedy ruim, logo me lembro de como Chris Rock é
fenomenal. Se vejo um filme de terror sobrecarregado de efeitos especiais,
logo penso em Hitchcock e seu talento para provocar arrepios
com cenas em preto e branco. Pois diante daquelas fotos de tantos
“anjinhos salvos” não pude deixar de recordar outras, que vira antes:
os assombrosos bebês vitorianos exibidos na vitrine do estúdio fotográfico
de Nova Jersey. E em seguida me veio à cabeça outra coisa que
descobrira por lá: a possibilidade de que HHK fossem as iniciais de
Ho-Ho-Kus, como Esperanza havia apontado.
Ah, o cérebro humano: bilhões de sinapses espocando, estalando e
se misturando de modo aleatório por todos os lados. Nunca sabemos
ao certo como isso funciona, mas creio que, no meu caso, a sequência
tenha sido esta: Ophicina de Photographias Albin Laramie Associados,
HHK, Esperanza na época em que a conheci, o acrônimo ANIL,
de Associação Nossas Incríveis Lutadoras.
De repente tudo se conectou. Talvez nem tudo. Mas alguma coisa. O
bastante para que eu soubesse aonde ir na manhã seguinte: à vitrine
daquele estúdio cafona em Ho-Ho-Kus, também conhecido como
Ophicina de Photographias Albin Laramie Associados. Ou, para quem
estivesse fazendo uma anotação apressada, simplesmente OPALA.
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O homem do outro lado do balcão só podia ser Albin. Ele usava uma
capa. Uma capa brilhosa. Como se fosse Batman ou Zorro. A barba
lembrava um desenho feito no Traço Mágico e os cabelos pareciam
meticulosamente desgrenhados. Seu aspecto geral anunciava aos
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quatro ventos que o sujeito não era apenas um fotógrafo, mas “um
artista!”. Quando entrei, ele falava ao telefone e franzia o rosto em
uma carranca.
Adiantei-me até o balcão. Ele ergueu o dedo, sinalizando para que
eu esperasse.
– Ele não entende, Leopold! Que mais posso dizer? O imbecil não
sabe nada de ângulos, textura e cor. Não tem olho para a coisa!
Novamente ele ergueu o indicador para que eu esperasse mais um
pouco. Quando enfim desligou o telefone, exalou um suspiro teatral e
disse:
– Em que posso ajudá-lo?
– Olá – falei. – Sou Bernie Worley.
– E eu sou Albin Laramie – disse ele, levando a mão ao peito.
Apresentou-se com tanto orgulho e afetação que imediatamente me
lembrei de Mandy Patinkin em A princesa prometida. Só faltava ele
dizer que eu havia assassinado seu pai e que me preparasse para
morrer.
Abri um sorriso tedioso e disse:
– Minha mulher pediu que eu buscasse umas fotos.
– O senhor trouxe o recibo?
– Perdi.
Albin franziu a testa.
– Mas tenho o número da ordem de serviço, se ajudar.
– É possível.
Ele puxou o teclado de um computador, preparou os dedos e se
virou para mim.
– Pode dizer.
– Quatro, sete, um, dois.
Ele me olhou como se eu fosse a criatura mais estúpida na face da
Terra:
– Isso não é um número de ordem de serviço.
– Ah. Tem certeza?
– É o número de uma sessão.
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– Sessão?
Ele afastou a capa com ambas as mãos, como se fosse um pássaro
prestes a levantar voo.
– Uma sessão de fotos.
O telefone tocou e ele me deu as costas, como se o assunto estivesse
encerrado. Vi que corria o risco de perdê-lo. Então dei um passo para
trás e encarnei meu próprio personagem. Pisquei os olhos e abri a
boca em um círculo perfeito. Myron Bolitar, o Mocinho Pasmo. Albin
agora me observava com curiosidade. Caprichando na expressão de
perplexidade, comecei a perambular pela loja.
– Algum problema? – perguntou ele.
– Seu trabalho – falei. – É de tirar o fôlego.
A vaidade fez Albin se derreter na mesma hora. Não é comum um
homem adulto se comportar assim. Exaltei seu trabalho durante cerca
de 10 minutos, perguntando sobre sua inspiração e deixando que ele
tagarelasse sobre matizes, estilo, luz e coisas do gênero.
– Marge e eu temos uma filhinha – falei, balançando a cabeça e fingindo
admiração diante de uma monstruosidade vitoriana que transformava
um bebezinho que seria lindo na versão careca do meu tio
Morty. – Precisamos marcar uma hora para trazê-la aqui.
Albin ainda se derretia em vaidade dentro de sua capa. Nada melhor
que uma capa para um pavão como ele, pensei. Discutimos preços
– que, de tão altos, exigiriam que eu fizesse uma segunda hipoteca – e,
prosseguindo com a encenação, falei:
– Olha, foi este o número que minha mulher me passou. O número
da sessão. Ela disse que, quando eu visse as fotos, ficaria de queixo
caído. Será que posso dar uma olhada? É a sessão 4.712.
Se algo nele chegou a achar estranho que eu tivesse entrado ali para
buscar fotos e agora dissesse que queria ver o resultado de determinada
sessão, ele não se importou.
– Claro, claro, elas estão no computador. Vou confessar uma coisa:
não gosto nem um pouco de fotografia digital. No caso da sua filhinha,
vou usar uma câmera antiga. A textura nem se compara.
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– Maravilha.
– Apesar disso, uso uma câmera digital para armazenar na web.
Albin pressionou algumas teclas e apertou ENTER.
– Bem, não são fotos de bebê. Veja.
Ele girou o monitor na minha direção, exibindo um sem-número de
imagens em miniatura. Senti um aperto no peito antes mesmo que ele
clicasse sobre uma delas, ampliando-a na tela. Não havia dúvida.
Era a garota loura.
Fazendo o possível para parecer calmo, falei:
– Vou querer uma cópia.
– De que tamanho?
– Sei lá. Pode ser 20 x 30.
– Fica pronta em uma semana, contando a partir de terça.
– Preciso dela agora.
– Impossível.
– Mas seu computador está conectado a uma impressora colorida –
argumentei.
– Sim, mas a qualidade das fotos impressas nunca é boa.
Não havia tempo para explicações. Tirei a carteira do bolso e disse:
– Duzentos dólares por uma impressão dessa foto.
Os olhos de Albin se estreitaram, mas só por um instante. Ele finalmente
começava a desconfiar de algo, mas não era médico nem advogado,
era fotógrafo. Não precisava se preocupar com a privacidade
dos clientes. Entreguei as cédulas e ele se afastou rumo à impressora.
Foi então que notei um campo de informações pessoais na tela. Cliquei
nele.
– Algum problema? – perguntou Albin, tirando a foto da
impressora.
Eu me afastei do computador, mas já tinha visto o suficiente. A garota
estava registrada apenas com o nome de Carrie. O endereço?
Logo ali, do outro lado da rua. Aos cuidados da Fundação Salvem os
Anjos.
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Albin desconhecia o sobrenome de Carrie. Quando eu o pressionei,
admitiu que costumava tirar fotos para a tal fundação, mas só. Eles
forneciam apenas os prenomes. Atravessei a rua levando comigo a
foto impressa. A sala da Salvem os Anjos continuava fechada. Não me
surpreendia. Então fui até a sala vizinha, onde funcionava o escritório
de contabilidade, e mostrei a Minerva, minha recepcionista predileta,
a foto de Carrie.
– Você a conhece?
Minerva ergueu os olhos, mas não disse nada.
– Ela desapareceu – falei. – Estou tentando encontrá-la.
– Você é o quê, detetive?
– Sou.
Mais simples do que explicar a verdade.
– Maneiro.
– É. O primeiro nome dela é Carrie. Nunca a viu por aqui?
– Ela trabalhava aí ao lado.
– Na Salvem os Anjos?
– Quer dizer, não trabalhava exatamente. Foi estagiária. Por algumas
semanas no último verão.
– O que você pode me dizer a respeito dela?
– É uma moça bonita, não é?
Não falei nada.
– Não sabia o nome dela. Ela não era lá muito simpática. Para dizer
a verdade, nenhuma das estagiárias era. Muito amor por Deus e nem
tanto pelas pessoas de carne e osso, eu acho. Bem, o banheiro no fim
do corredor é para uso de todas as salas. Quando a gente se via por lá,
eu dava um “oi”, mas ela nem respondia. Era como se não estivesse
me vendo, sabe?
Agradeci a Minerva e voltei à sala 3B. Fiquei ali por um momento,
encarando a porta. De novo, o cérebro humano: os pensamentos rodopiavam
na cachola como pares de meias em uma secadora de roupa.
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Lembrei-me do site que havia visitado na véspera, pensei no nome da
organização. Examinei mais uma vez a fotografia de Carrie. Os cabelos
claros. O rosto bonito. Os olhos azuis, com um anel dourado em torno
das pupilas. Apesar disso, vi exatamente o que Minerva queria dizer.
Não havia dúvida.
Às vezes há semelhanças tão fortes nos rostos de duas pessoas que
só podem se tratar de traços genéticos – um anel dourado ao redor
das pupilas, por exemplo. Outras vezes, no entanto, notamos algo
mais parecido com um eco. Foi isso que vi no rosto da garota: um eco.
Um eco – e disso eu tinha certeza – da mãe dela.
De novo olhei para a porta. E de novo examinei a foto. À medida
que a ficha caía, senti o sangue gelar nas veias.
Berleand não havia mentido.
Meu celular tocou. Era Win.
– Saíram os resultados do teste de DNA – disse ele.
– Já sei. Terese é a mãe. O que Jones disse era verdade.
– Exatamente.
Baixei os olhos e encarei a foto um pouco mais.
– Myron?
– Acho que entendi – falei enfim. – Acho que sei o que está
acontecendo.
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33
VOLTEI PARA MANHATTAN. Mais especificamente, para o prédio do
CryoHope.
Não pode ser.
Esse era o pensamento que assombrava minha cabeça. Eu nem
sabia direito se queria estar certo ou errado, mas, como já disse antes,
se é possível farejar uma mentira, a verdade também tem seu cheiro.
Quanto ao “não pode ser”, novamente me lembrei de Sherlock
Holmes: “Uma vez eliminado o impossível, o que sobra, por mais improvável
que pareça, deve ser a verdade.”
Fiquei tentado a ligar para o agente especial Jones. Agora eu tinha
uma foto. A tal Carrie poderia ser uma terrorista, uma simpatizante
ou, na melhor das hipóteses, talvez estivesse sendo coagida. Mas ainda
era cedo para isso. Eu podia falar com Terese, discutir as possibilidades,
mas isso também me parecia prematuro.
Eu precisava ter mais certezas antes de reacender – ou eliminar de
vez – as esperanças dela.
O CryoHope Center tinha manobristas. Entreguei a chave do carro e
entrei no prédio. Rick Collins havia procurado aquele lugar logo após
descobrir que sofria da doença de Huntington, o que fazia sentido.
Tratava-se de uma instituição de ponta nas pesquisas com célulastronco.
Seria natural que ele tivesse procurado ali algum tipo de tratamento
que pudesse salvá-lo de sua sina genética.
Mas seu destino tinha sido bem diferente.
Lembrei-me do nome de um dos médicos listados no panfleto.
– Gostaria de falar com o Dr. Sloan – disse à recepcionista.
– Seu nome?
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– Myron Bolitar. Diga que é sobre Rick Collins. E uma garota chamada
Carrie.
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Quando voltei ao saguão, Win estava na porta, recostado à parede
com a desenvoltura de um Dean Martin se apresentando em um hotelcassino
de Las Vegas. A limusine o esperava do lado de fora, mas ele
seguiu andando comigo.
– E então? – falou.
Contei-lhe tudo. Ele ouviu com atenção, sem me interromper com
perguntas, depois disse:
– E qual será o próximo passo?
– Vou falar com Terese.
– Faz alguma ideia de como ela vai reagir?
– Nenhuma.
– Você pode esperar e pesquisar um pouco mais.
– Pesquisar o quê?
Ele tomou a foto das minhas mãos.
– A garota.
– Vamos fazer isso, mas depois. Agora preciso falar com Terese.
Meu celular tocou. A tela indicava “número desconhecido”. Acionei
o viva voz e atendi.
– Estava com saudade de mim?
Era Berleand.
– Você nunca mais ligou – falei.
– Se ligasse, aposto que você ia se meter de novo na investigação.
– Então por que ligou agora?
– Porque você está em uma encrenca danada – disse ele.
– Que foi que houve?
– Está no viva voz?
– Está.
– Win está aí com você?
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– Sim, estou – respondeu o próprio Win.
– Então, qual é o problema agora? – perguntei.
– Interceptamos algumas conversas bastante sinistras em Paterson,
Nova Jersey. O nome de Terese foi mencionado.
– O de Terese? – falei. – O meu não?
– Pode ser que sim. Havia muita interferência. Não dava para entender
tudo.
– Mas você acha que eles já sabem de nós?
– Tudo indica que sim.
– Faz alguma ideia de como isso aconteceu?
– Não, nenhuma. Os agentes da equipe de Jones, os que levaram
você sob custódia, são os melhores que há. Nenhum deles abriria o
bico.
– Mas um deve ter aberto – falei.
– Tem certeza?
Vasculhei a memória, procurando me lembrar de todos que estavam
presentes naquele dia em Londres e tentando identificar qual deles
poderia ter contado aos jihadistas que eu havia matado o líder deles.
Olhei de relance para o Win. Ele ergueu a fotografia de Carrie e arqueou
uma sobrancelha.
Uma vez eliminado o impossível...
– Ligue para seus pais agora – disse Win. – Vamos levá-los para o
condomínio Lockwood de Palm Beach. Quanto a Esperanza, vamos
colocar os melhores seguranças ao lado dela. Talvez Zorra esteja
disponível, ou Carl, aquele camarada da Filadélfia. Seu irmão ainda
está fazendo escavações no Peru?
Fiz que sim com a cabeça.
– Então ele está seguro.
Eu sabia que Win ficaria do nosso lado, do meu e de Terese. Ele
começou a dar telefonemas. Desativei o viva voz e retomei a conversa
no telefone:
– Berleand?
– Diga.
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– Jones sugeriu que talvez você tivesse mentido sobre o exame de
DNA em Paris.
Berleand permaneceu calado.
– Sei que você disse a verdade – falei.
– Sabe como?
Mas eu já havia falado demais.
– Preciso dar uns telefonemas agora. Ligo de volta assim que puder.
Desliguei e disquei o número dos meus pais, torcendo para que
papai atendesse. Mas foi mamãe, claro, quem pegou o fone.
– Oi, mãe, sou eu.
– Olá, querido.
Ela parecia cansada.
– Acabei de chegar do médico – disse ela.
– Tudo bem com a senhora?
– Isso você vai saber se entrar no meu blog hoje à noite.
– Espere aí. A senhora acabou de chegar do médico, certo?
Mamãe exalou um suspiro.
– Foi isso que acabei de dizer, não foi?
– Então. Perguntei se a senhora está bem de saúde.
– Pois é justamente esse o meu próximo tópico. Se quiser saber
mais, vai ter que ler.
– Por que a senhora não me conta de uma vez?
– Nada pessoal, meu querido. É que, escrevendo no blog, não preciso
ficar repetindo a mesma coisa sempre que alguém perguntar.
– A senhora faz um post em vez de falar com as pessoas?
– Para aumentar o número de acessos ao blog. Está vendo só como
funciona? Você ficou todo interessado.
Senhoras e senhores, minha mãe.
– Eu nem sabia que a senhora tinha um blog.
– Claro que tenho! Sou uma mulher do meu tempo, muito atual e
muito descolada. Também estou no MyFace.
Ouvi papai berrar do outro lado da linha:
– É MySpace, Ellen!
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– O quê?
– O certo é MySpace!
– Ah. Achei que fosse MyFace.
– Confundiu com Facebook. Você também tem uma página lá. No
Facebook e no MySpace.
– Tem certeza?
– Absoluta.
– Olha só o Bill Gates falando. De uma hora para outra, seu pai sabe
tudo de internet.
– E sua mãe está bem de saúde, sim! – papai berrou de lá.
– Não conte! – protestou mamãe. – Agora ele não vai entrar no
blog!
– Mãe, preciso falar com o papai. É importante.
Ele veio ao telefone. Expliquei o que estava acontecendo, rapidamente
e com o mínimo de detalhes possível. Como sempre, ele logo
entendeu. Não fez perguntas nem reclamou. Eu tinha acabado de
combinar com ele que mandaria alguém buscá-los para levá-los até
Palm Beach quando ouvi o bipe de uma nova ligação. Era Terese.
Despedi-me de papai e atendi.
– Estou a uns dois minutos daí – falei. – Não saia até eu chegar.
Silêncio.
– Terese?
– Ela ligou.
Terese estava chorando.
– Quem foi que ligou?
– Miriam. Acabei de falar com ela.
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34
TERESE JÁ ME ESPERAVA À PORTA.
– Que foi que aconteceu? – perguntei.
Terese tremia da cabeça aos pés. Ela deu um passo à frente e eu a
abracei, fechando os olhos. Sabia que aquela conversa seria devastadora.
Agora estava claro por que Rick Collins a havia avisado que se
preparasse. Agora fazia sentido o que ele dissera antes, que a vida de
Terese mudaria para sempre com o que ele tinha a contar.
– Meu telefone tocou. Eu atendi e uma garota disse: “Mamãe?”
Tentei imaginar a cena, Terese ouvindo aquilo da boca da própria
filha, acreditando tratar-se de alguém que ela amava mais que tudo na
vida e que poderia ter morrido por culpa sua.
– Que mais ela falou?
– Que foi pega como refém.
– Por quem?
– Terroristas. Pediu que eu não contasse isso a ninguém.
Fiquei calado.
– Depois um homem de sotaque forte tomou o telefone e disse que
ligaria mais tarde para informar as exigências.
Abracei-a ainda mais forte.
– Myron?
De algum modo conseguimos chegar até o sofá. Terese olhou para
mim com esperança e – sei como isto vai soar – amor. Meu coração
ruía no peito quando entreguei a ela a fotografia.
– Esta é a moça de cabelos claros que vi em Paris e Londres – falei.
Terese examinou a foto por um bom tempo sem dizer nada. Depois:
– Não estou entendendo.
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Eu não sabia ao certo o que dizer. Fiquei me perguntando se ela
percebia a semelhança física, se talvez já estivesse juntando as peças
também.
– Myron?
– Esta é a moça que eu vi – falei novamente.
Ela balançou a cabeça, negando.
Mesmo sabendo qual seria a resposta, perguntei:
– Que foi?
– Esta aqui não é a Miriam – disse ela.
Terese novamente baixou os olhos, secando-os com a mão.
– Mas talvez, sei lá... Talvez ela tenha feito uma cirurgia plástica ou
talvez tenha apenas mudado com o tempo. As pessoas mudam muito
com o tempo, não mudam? Miriam tinha 7 anos quando a vi pela última
vez...
Ela ergueu os olhos subitamente, tentando encontrar nos meus algum
tipo de confirmação.
Mas não era isso que eu tinha para dar. O momento havia chegado.
Sem mais rodeios, falei:
– Miriam está morta.
Ela empalideceu de repente e meu coração ruiu outra vez. Eu queria
tomá-la nos braços, mas sabia que não seria o mais indicado. Terese
ainda se debatia com a enxurrada de novas informações. Fazia o possível
para manter a lucidez, mas tinha consciência da importância de
tudo aquilo.
– Mas... e o telefonema?
– Seu nome foi mencionado em uma conversa que a polícia ouviu.
Acho que alguém está tentando atrair você para algum tipo de
armadilha.
Ela voltou os olhos para a fotografia.
– Então... tudo não passou de uma armação, é isso?
– Não.
– Mas você acabou de dizer que...
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Ela se esforçava para manter o foco. Eu me perguntava qual seria a
melhor maneira de contar a verdade, mas essa maneira simplesmente
não existia. Portanto, Terese teria de chegar a ela por si mesma, como
eu mesmo havia feito.
– Vamos voltar alguns meses no tempo – falei –, à época em que
Rick descobriu que estava doente.
Ela apenas ergueu os olhos.
– Na sua opinião, qual teria sido a primeira providência dele?
– Levar o filho para fazer os exames também.
– Certo.
– E...?
– Depois disso ele procurou o CryoHope. No início achei que a ideia
dele era tentar encontrar ali alguma espécie de cura.
– E não era?
– Não – falei. – Você conhece um médico chamado Everett Sloan?
– Não. Espere um pouco. Acho que já vi esse nome em um panfleto.
Ele trabalha no CryoHope, não é?
– Trabalha. Foi ele quem assumiu o lugar do Dr. Aaron Cox.
Terese não disse nada.
– Acabei de saber disso – falei. – Aaron Cox foi seu obstetra,
quando você e Rick tiveram a Miriam.
Terese apenas olhava para mim.
– Você e Rick enfrentaram problemas sérios de fertilidade. Você me
falou da dificuldade que teve para engravidar até que descobriu o que
chamou de “milagre da medicina”, muito embora a prática seja
bastante comum. A fertilização in vitro.
Ela continuou sem dizer nada, talvez porque não conseguisse.
– Por definição, na fertilização in vitro os óvulos são fecundados em
laboratório e, mais tarde, um embrião é transferido para o útero da
mãe. Você disse que tomava pergonal para estimular a ovulação, não
disse? Pois bem, em quase todos os casos o processo resulta em mais
de um embrião e, ao longo dos últimos 20 anos, esses embriões adicionais
vêm sendo congelados. Alguns são usados nas pesquisas com
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células-tronco. Outros são descongelados quando os pais querem fazer
uma nova tentativa. Ou então quando um deles morre e o outro quer
ter mais um filho. Ou então, sei lá, se um deles precisar fazer quimioterapia
e ficar estéril. Você sabe de tudo isso. Os aspectos legais são
bastante complexos nos casos que envolvem divórcio e custódia e
muitos embriões simplesmente são destruídos ou permanecem congelados
até que o casal se decida.
Engoli em seco. A essa altura Terese decerto já estaria entendendo
aonde eu queria chegar.
– O que vocês fizeram com seus embriões adicionais?
– Rick e eu já tínhamos feito quatro tentativas com fertilização in
vitro – disse ela –, mas nenhum dos embriões se desenvolveu. Você
nem imagina como era devastador. E, quando finalmente deu certo,
foi uma felicidade tão grande... – disse ela, a voz desaparecendo aos
poucos. Então continuou: – Foram só dois embriões adicionais. Nossa
intenção era congelá-los para quando quiséssemos ter outro filho, mas
depois tive o problema com os miomas e nunca mais pude engravidar.
De qualquer modo, o Dr. Cox disse que os embriões não haviam
sobrevivido ao processo de congelamento.
– Ele mentiu – falei.
Terese examinou mais uma vez a fotografia da moça de cabelos
claros.
– Existe uma fundação chamada Salvem os Anjos. Eles se opõem a
todo tipo de pesquisa com as células-tronco que utilize embriões ou
qualquer procedimento que cause a destruição deles. Eles já atuam há
quase duas décadas, trabalhando para que os embriões sejam, digamos,
adotados. Faz sentido. De um lado, há milhares de embriões
armazenados e, de outro, casais que poderiam gestá-los. Os aspectos
legais são complicados. A maioria dos estados norte-americanos não
permite adoção de embriões, porque, em certo sentido, a mãe adotiva
não passaria de uma barriga de aluguel. A meta dessa fundação, a
Salvem os Anjos, é que os embriões sejam implantados em mulheres
estéreis.
291/348
Só então Terese percebeu.
– Meu Deus...
– Não sei de todos os detalhes, mas parece que um dos residentes
do Dr. Cox era um grande defensor da Salvem os Anjos. Você se lembra
de um tal Dr. Jiménez?
Ela fez que não com a cabeça.
– A Salvem os Anjos começou a pressionar Cox desde o início do
CryoHope Center. Não sei se ele queria evitar a atenção da imprensa,
se havia dinheiro em jogo ou se ele endossava mesmo a causa da
fundação. Seja como for, Cox sabia que os embriões congelados dificilmente
teriam alguma utilidade, então... por que não? Por que deixálos
na geladeira para sempre ou jogá-los no lixo? Portanto, ele acabou
cedendo e permitindo a adoção dos embriões.
– Quer dizer que esta garota aqui... é minha filha?
– Biologicamente falando, sim.
Terese ainda não conseguia despregar os olhos do rosto na foto.
Não mexia um músculo sequer.
– Seis anos atrás, quando o Dr. Sloan assumiu o posto e descobriu o
que havia sido feito, ficou em uma situação difícil. De início cogitou
ficar de bico calado, mas sabia que isso seria não apenas ilegal, mas
também antiético. Então acabou optando por uma espécie de meiotermo.
Entrou em contato com Rick e pediu permissão para que os
embriões fossem adotados. Não sei o que se passou na cabeça do Rick,
mas acho que, entre destruir os embriões e dar a eles uma chance de
viver, ele optou pela vida.
– Mas eles não tinham de me consultar também?
– Você já tinha dado sua permissão antes, em algum momento. O
Rick, não. Além disso, ninguém sabia onde você estava. Então Rick
assinou a documentação. Não sei dizer se o que eles fizeram foi ilegal
ou não. Mas fizeram. Sloan só estava tentando arrumar a casa. Talvez
houvesse algum caso em que isso pudesse ajudar de alguma forma. E,
no de Rick, podia. Quando Rick descobriu que estava com a doença de
Huntington, quis informar as famílias que haviam adotado os
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embriões. Por isso voltou ao CryoHope. Então Sloan contou a ele toda
a verdade: os embriões haviam sido implantados anos antes por intermédio
da Salvem os Anjos. Não sabia quem eram os pais, então falou
que solicitaria os dados à fundação. Mas acho que Rick não quis
esperar.
– Acha que foi ele quem invadiu a sala da Salvem os Anjos?
– Faria sentido – falei.
Terese finalmente ergueu os olhos da fotografia.
– Então... onde ela está agora?
– Não sei.
– É minha filha.
– Biologicamente falando.
Uma expressão estranha tomou seu rosto.
– Não me venha com essa. Jeremy já estava com 14 anos quando
você soube da existência dele. Mas nem por isso você deixou de
recebê-lo como filho.
Primeiro pensei em dizer que meu caso era diferente, mas logo vi
que ela não estava de todo errada. Mesmo sendo o pai biológico de
Jeremy, nunca pude ser um pai de verdade: quando enfim o conheci,
já era tarde demais para influir de algum modo na criação do garoto.
Apesar disso, eu agora fazia parte de sua vida. Qual seria a diferença?
– Qual o nome dela? – perguntou Terese. – Quem a criou? Onde ela
mora?
– O primeiro nome é Carrie, mas não tenho certeza. Quanto ao
resto, não sei ainda.
Ela pousou a foto sobre o colo.
– Precisamos informar Jones sobre tudo isso – falei.
– Não.
– Se sua filha foi sequestrada...
– Você não acredita nisso, acredita?
– Não sei.
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– Seja franco comigo, Myron. Você acha que ela está envolvida com
esses monstros, que é uma dessas garotas com questões psicológicas
mal resolvidas que Jones mencionou.
– Não sei. Mas se ela for inocente...
– Ela é inocente, de qualquer forma. Ela não pode ter mais que 17
anos. Se está envolvida nisso tudo de alguma forma, é porque era
jovem e influenciável. Jones e os colegas dele nunca vão entender isso.
Vai ser o fim para ela. Você viu o que fizeram com você.
Não argumentei.
– Não sei por que ela está com eles – disse Terese. – Talvez seja
síndrome de Estocolmo, talvez ela tenha tido pais horríveis ou talvez
seja só uma adolescente revoltada. Como eu mesma fui, aliás. E como!
Mas nada disso tem importância. Ela é só uma menina. E é minha
filha, Myron. Você entende? Não é Miriam, mas é uma segunda
chance que a vida está me dando. Não posso simplesmente cruzar os
braços e abandoná-la em uma situação dessas. Por favor.
Permaneci calado.
– Eu posso ajudá-la. É como se... como se fosse o destino, sabe?
Rick morreu tentando salvar nossa filha. Agora é minha vez. No telefonema,
disseram que a única pessoa com quem eu poderia falar era
você. Myron, eu estou implorando: por favor, me ajude a salvar minha
filha.
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35
AINDA COM TERESE A MEU LADO, liguei de volta para Berleand.
– Jones deu a entender que você mentiu – falei. – Ou, de algum
modo, adulterou o teste de DNA.
– Eu sei.
– Sabe?
– Ele queria que você se afastasse do caso. E eu também queria. Por
isso não retornei sua ligação.
– Mas já tinha ligado antes.
– Para alertar você, só isso. E vou alertar de novo: fique fora dessa
história.
– Não posso.
Berleand suspirou. Lembrei-me de como nos conhecemos no aeroporto
de Paris, dos cabelos desgrenhados dele, dos óculos de aro
enorme e de nossa conversa no telhado do número 36 do Quai des Orfèvres.
Eu gostava daquele sujeito.
– Myron?
– Sim.
– Da outra vez que nos falamos... Você disse que sabia que eu não
havia mentido sobre o teste de DNA.
– Sim, disse.
– Deduziu isso por causa da minha cara de gente boa e do meu
enorme carisma?
– Não mesmo.
– Então se explique.
Olhei de relance para Terese, depois disse:
– Antes, preciso que você me prometa uma coisa.
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– Xiii...
– Tenho informações que interessam a você. E provavelmente você
tem informações que interessam a mim.
– Está sugerindo uma troca?
– Isso é só o aperitivo.
– Só o aperitivo – repetiu ele. – Então, antes que eu prometa o que
quer que seja, por que você não diz qual é o prato principal?
– É o seguinte: vamos unir forças, você e eu. Trabalhar juntos neste
caso. Jones e o resto precisam ficar de fora.
– E os meus contatos no Mossad?
– Não. Só você e eu.
– Entendi. Não, espere aí, não entendi nada.
Terese se aproximou de modo que pudesse entreouvir a conversa.
– Caso os planos de Matar ainda estejam em andamento – falei –,
vamos dar um jeito de acabar com eles. Só você e eu, mais ninguém.
– Porque...
– Porque quero deixar a garota loura de fora.
Seguiu-se uma pausa. Por fim, Berleand disse:
– Jones contou a você que examinou os ossos colhidos no túmulo
de Miriam Collins, não contou?
– Contou.
– Então você sabe que os resultados deram positivos para Miriam.
– Sim, eu sei.
– Então me esclareça, porque agora fiquei confuso. Que motivos você
teria para salvar a pele de alguém que pode ser uma terrorista
perigosa?
– Não posso contar, a menos que você concorde com nossa aliança.
– E chutar Jones para escanteio?
– Sim.
– Porque você quer proteger uma garota que provavelmente participou
dos assassinatos de Karen Tower e Mario Contuzzi, é isso?
– Provavelmente, como você mesmo disse.
– Mas é para isso que existem os tribunais de justiça.
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– Não quero que ela chegue a colocar os pés em um tribunal. Você
vai entender depois que eu contar o que descobri.
Berleand emudeceu novamente.
– Então, negócio fechado? – falei.
– Até certo ponto.
– Ou seja...
– Ou seja, você mais uma vez está pensando pequeno. Está preocupado
com uma única pessoa. Tudo bem, tem lá seus motivos e cedo ou
tarde vai acabar me contando. Acontece que o que está em jogo é a
vida de milhares de pessoas. Milhares de pais e mães, de filhos e filhas.
Na conversa que interceptamos, havia indícios de que algo
enorme está sendo arquitetado: não só um ataque, mas uma série
deles ao longo de muitos meses. Estou pouco me lixando para a vida
de uma garota quando outras tantas, milhares delas, estão correndo
risco.
– Então, o que você está prometendo exatamente?
– Você não me deixou terminar. Minha indiferença pela garota é a
mesma em ambas as hipóteses: para mim tanto faz se ela morrer na
cadeia ou sair livre de um processo judicial. Portanto, quanto à nossa
aliança... tudo bem, estou de acordo com ela. Vamos tentar resolver
isso sozinhos. Aliás, é mais ou menos o que tenho feito até agora. Mas,
se em algum momento não dermos conta do número de adversários
ou do armamento deles, eu chamo Jones de volta. Vou manter minha
palavra e ajudar você a proteger a garota. Mas a prioridade será impedir
que os jihadistas levem seu plano a cabo. Uma vida não vale milhares
de outras.
Refleti um instante, depois disse:
– Berleand, você tem filhos?
– Não. Mas, por favor, não me venha com essa história de amor paternal.
Chega a ser insultante.
Então foi ele quem parou para refletir.
– Espere aí, você está dizendo que a lourinha é filha de Terese
Collins?
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– De certa forma, sim.
– Explique isso melhor.
– Nosso acordo está fechado? – perguntei.
– Está. Mas com a condição que acabei de estipular. Agora diga, o
que foi que você descobriu?
Então abri todo o jogo: falei das visitas que tinha feito ao prédio da
Salvem os Anjos e ao estúdio de Albin Laramie, da adoção de embriões,
do “mamãe” que Terese ouvira pelo telefone. Ele me interrompeu
diversas vezes com perguntas. Respondi a todas da melhor
forma possível. Quando terminei, ele tomou a palavra:
– Em primeiro lugar, precisamos descobrir a identidade da garota.
Vamos fazer cópias da fotografia. Uma delas será enviada por e-mail a
Lefebvre. Se ela for americana, talvez estivesse em Paris em um desses
programas de intercâmbio. Lefebvre pode investigar.
– Tudo bem – falei.
– Você disse que ligaram para o celular de Terese?
– Sim.
– E o número de quem ligou? Provavelmente estava bloqueado, não
estava?
Nem precisei perguntar. Olhei para Terese e ela fez que sim com a
cabeça.
– Sim, estava.
– E a que horas foi a ligação?
Novamente olhei para Terese. Ela conferiu a relação de chamadas
recebidas no celular e me informou o horário.
– Ligo de volta em cinco minutos – disse Berleand, e desligou.
Win entrou na sala e disse:
– Tudo bem por aqui?
– Beleza.
– Seus pais já estão seguros. Esperanza e o escritório, também.
Assenti com a cabeça. O telefone tocou outra vez. Berleand.
– Acho que consegui algo – disse ele.
– Estou ouvindo.
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– A ligação para Terese foi feita de um celular descartável comprado
com dinheiro vivo em Danbury, Connecticut.
– É uma cidade bem grande.
– Talvez possamos encolhê-la um pouco. Você lembra que interceptamos
a conversa de uma possível célula terrorista em Paterson,
Nova Jersey?
– Sim, claro.
– Muitos desses contatos foram feitos do exterior ou para o exterior.
Alguns, no entanto, foram feitos por aqui mesmo, nos Estados Unidos.
Você sabia que os criminosos muitas vezes se comunicam por e-mail?
– Faz sentido.
– Porque os e-mails são relativamente anônimos. Essas pessoas
usam contas criadas em provedores gratuitos. O que muitas não
sabem é que hoje podemos descobrir onde essas contas foram criadas,
o que não costuma servir para muita coisa. Geralmente tudo é feito
em computadores públicos: uma biblioteca, um cibercafé, lugares
assim.
– E neste caso?
– Trata-se de uma conta de e-mail criada há oito meses na Biblioteca
Mark Twain, em Redding, Connecticut, que fica a uns 15 quilômetros
de Danbury.
Pensei nisso um instante.
– É, aí tem coisa.
– Também acho. E não é só isso. Essa biblioteca atende uma escola
de ensino médio chamada Carver Academy. Com sorte, sua “Carrie”
estuda lá.
– Você consegue descobrir isso?
– Estou esperando uma ligação. Enquanto isso, podíamos dar um
pulo em Redding e mostrar a fotografia da garota. Fica a mais ou
menos uma hora e meia daqui.
– Quer que eu vá dirigindo?
– Acho melhor – disse Berleand.
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NÃO FOI FÁCIL, MAS CONSEGUI convencer Terese a ficar, para o caso de
precisarmos de algo na cidade. Prometi que ligaria imediatamente se
descobríssemos qualquer coisa. Ela concordou, mesmo a contragosto.
Não seria recomendável irmos todos juntos, usar todas as fichas em
uma aposta só. Win ficaria por perto para proteger Terese, mas sobretudo
porque assim os dois poderiam investigar outras questões. A
mais importante delas provavelmente seria a Salvem os Anjos. Se localizássemos
os arquivos da fundação, poderíamos descobrir o nome
completo e o endereço de Carrie, bem como as coordenadas de seus
pais adotivos, substitutos ou seja lá qual fosse o termo adequado.
Durante a viagem, Berleand perguntou:
– Você já foi casado alguma vez?
– Não. E você?
Ele sorriu e disse:
– Quatro vezes.
– Uau.
– Todos terminaram em divórcio. Mas não me arrependo nem um
pouco de nenhum deles.
– E as suas ex-mulheres? Será que pensam o mesmo?
– Duvido muito. Mas agora somos amigos. Não tenho muito talento
para manter mulheres, só para conquistá-las.
Eu sorri.
– Você não me parece o tipo – falei.
– Porque não sou boa-pinta?
Apenas dei de ombros.
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– As pessoas superestimam a aparência – retrucou ele. – Sabe qual
é meu trunfo?
– Não me diga. É o seu senso de humor, não é? Segundo as revistas
femininas, o senso de humor é a qualidade mais desejável em um
homem.
– Ah, claro. E a conta bancária não tem importância nenhuma.
– Então não é o humor?
– Sou um cara bastante engraçado – disse Berleand. – Mas não é
isso.
– Então é o quê? – perguntei.
– Já lhe disse uma vez.
– Diga de novo.
– É o carisma. Meu carisma é quase sobrenatural.
Sorri e disse:
– Bem, não sou eu quem vai contrariá-lo.
Redding revelou-se bem mais bucólica do que eu havia imaginado,
uma cidadezinha pacata e despretensiosa da Nova Inglaterra, com antiquários
à beira da estrada, fazendas centenárias e a arquitetura colonial
do centro fazendo contraponto às mansões pretensiosas do
subúrbio.
À porta de um prédio modesto, uma placa informava: BIBLIOTECA
MARK TWAIN e, em letras menores: DOAÇÃO DE SAMUEL L. CLEMENS. Achei
aquilo interessante, mas não estávamos ali para fazer turismo. Fomos
direto para a mesa da bibliotecária.
Apesar do oceano que separava Berleand de sua jurisdição, deixei
que conduzisse a conversa, pois ainda era ele quem tinha um distintivo
para exibir.
– Olá – disse ele à bibliotecária Paige Wesson, como informava uma
plaquinha.
Ela ergueu os olhos com uma expressão de cansaço, como se Berleand
estivesse devolvendo um livro muito depois do prazo de entrega
e dando uma desculpa esfarrapada que ela já escutara um milhão de
vezes.
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– Estamos procurando por esta moça. Ela está desaparecida. Por
acaso a senhora a viu por aqui?
Berleand segurava a carteira de policial em uma das mãos e, na
outra, a foto de Carrie. A bibliotecária examinou a carteira primeiro.
– O senhor é de Paris – disse.
– Sim, sou.
– E isto aqui se parece com Paris?
– Nem de longe – concordou Berleand. – Mas o caso tem implicações
internacionais. A garota foi vista pela última vez na minha
jurisdição, em uma situação de perigo. Acreditamos que tenha usado
os computadores desta biblioteca.
Ela pegou a foto.
– Não, acho que não a vi.
– Tem certeza?
– Não, não tenho certeza de nada. Olhem a seu redor.
Olhamos. Quase todas as mesas estavam ocupadas por
adolescentes.
– Esta biblioteca recebe dezenas de estudantes todos os dias – disse
ela. – Não estou dizendo que esta moça nunca esteve aqui, apenas que
não a conheço.
– A senhora poderia consultar seu computador para ver se há alguma
Carrie inscrita como usuária da biblioteca?
– O senhor trouxe uma ordem judicial? – respondeu Paige.
– Poderíamos consultar o histórico de acessos dos últimos oito
meses?
– Repetindo: o senhor trouxe uma ordem judicial?
Berleand apenas sorriu e disse:
– Um bom dia para a senhora.
– Para o senhor também.
Já íamos saindo quando meu celular tocou. Era Esperanza.
– Consegui falar com uma pessoa da Carver Academy – disse ela. –
Não há nenhuma Carrie matriculada por lá.
– Droga! – exclamei.
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Agradeci a iniciativa dela, desliguei e passei a informação a
Berleand.
– Alguma sugestão? – perguntou ele.
– E se a gente se separasse e mostrasse a foto aos adolescentes que
estão aqui?
Corri os olhos pelo salão e avistei uma mesa distante com três garotos.
Dois deles usavam jaquetas de atleta com o nome bordado na
frente e mangas de couro falso, do mesmo estilo das que eu um dia
usei na Livingston High. O terceiro era o típico mauricinho: queixo
bem delineado, ossos angulosos, camisa polo, calças cáqui caras. Decidi
começar por eles.
Mostrei-lhes a foto.
– Conhecem? – perguntei.
Foi o mauricinho quem respondeu:
– Acho que o nome dela é Carrie.
Bingo.
– Alguém sabe qual é o sobrenome?
Os três fizeram que não.
– Ela é da escola de vocês?
– Não – disse o mauricinho. – Mas deve morar na cidade. Está
sempre por aí.
– Gostosa pra caramba – interveio um dos de jaqueta.
– Aquela bundinha... – acrescentou o mauricinho.
Franzi a testa. Dois projetos de Win.
Quando Berleand olhou em minha direção, fiz sinal para que ele se
aproximasse.
– Vocês sabem dizer onde ela mora? – perguntei.
– Não. Mas o Kenbo já traçou.
– Quem?
– Ken Borman. Já traçou ela.
– “Traçou”? – repetiu Berleand, confuso.
Olhei para ele, que por fim entendeu:
– Ah. Traçou.
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– Onde podemos encontrar esse tal de Kenbo? – perguntei.
– Está malhando na academia da escola.
Eles indicaram o caminho. Seguimos para lá.
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EU ESPERAVA QUE KENBO fosse maior.
Qualquer um que ouvisse o apelido do rapaz e soubesse que ele
havia “traçado” uma lourinha gostosa e agora estava malhando imaginaria
um desses garotões marombados de academia. Mas não foi o
que encontrei. Os braços de Kenbo eram dois caniços e sua pele era
muito branca. O cabelo caía como uma cortina espessa no rosto do
rapaz, cobrindo um dos olhos. Os fios eram tão retos e negros que só
poderiam ter ficado assim com tintura e ferro quente. Suas unhas estavam
pintadas de preto. No meu tempo, chamávamos esse visual de
gótico.
Assim que viu a fotografia, ele arregalou os olhos – ou pelo menos o
olho que estava exposto. O medo ficou estampado em seu rosto.
– Você a conhece – falei.
Kenbo ficou de pé, recuou alguns passos, nos deu as costas e partiu
em disparada.
Olhei para Berleand, que disse:
– Você não está achando que vou sair correndo atrás dele, está?
Então lá fui eu. Kenbo agora estava do lado de fora, correndo feito
louco pela propriedade relativamente ampla da Carver Academy. O
local onde eu havia levado o tiro ainda doía, mas nada que me impedisse
de correr. Eu via poucos alunos ao redor e nenhum professor, mas
com certeza alguém chamaria a polícia. Aquilo não ia acabar bem.
– Espere! – berrei.
Kenbo não esperou. Deu uma guinada para a esquerda e sumiu atrás
de um prédio de tijolinhos. O rapaz estava usando um modelo de
calça que era moda entre os adolescentes. Isso me dava certa
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vantagem. A cintura era larga demais e a toda hora ele precisava puxála
para cima. Apertei o passo e diminuí a distância entre nós. Senti
uma pontada no joelho, lembrete da minha velha contusão, mas ainda
assim consegui saltar uma cerca de arame. Kenbo agora atravessava
um campo de grama artificial. Não me dei o trabalho de chamá-lo
novamente, porque só desperdiçaria tempo e energia. Ele corria para
os limites da propriedade da escola, para longe de qualquer
testemunha, e isso era bom.
Quando chegamos à clareira de um bosque próximo, saltei na
direção das pernas do garoto e as agarrei com uma precisão que
mataria de inveja qualquer zagueiro de futebol americano profissional.
Kenbo foi ao chão, um tombo bem maior do que eu planejara, e
começou uma saraivada de chutes tentando se desvencilhar.
– Não vou machucar você! – gritei.
– Vá embora! Me deixe em paz!
Então montei sobre o peito do rapaz e imobilizei seus braços, como
se aquilo fosse uma brincadeira entre irmãos.
– Calma, rapaz. Calma.
– Saia de cima de mim!
– Só estou tentando localizar aquela garota.
– Eu não sei de nada!
– Ken...
– Saia de cima de mim!
– Prometa que não vai correr.
– Me solte! Por favor!
Eu estava imobilizando um estudante assustado e indefeso. Depois
disso, que mais me restava fazer? Afogar um gatinho? Saí de cima dele
e disse:
– Estou tentando ajudar sua amiga.
Ken se sentou no gramado. Havia lágrimas em seus olhos. Ele as
enxugou com o antebraço e escondeu o rosto.
– Ken?
– Que foi?
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– Essa garota está desaparecida, provavelmente correndo perigo.
Ele olhou para mim.
– Estou tentando encontrá-la.
– Você não a conhece?
Fiz que não com a cabeça. Berleand finalmente surgia ao longe.
– Vocês são da polícia?
– Ele é. Estou fazendo isso por motivos pessoais.
– Que motivos?
– Estou tentando ajudar...
Não havia outro modo de dizer isto.
– Estou tentando ajudar a mãe biológica a encontrá-la. Carrie desapareceu
e talvez esteja em uma grande enrascada.
– Mas não estou entendendo. Por que vocês vieram atrás de mim?
– Seus colegas contaram que você e Carrie andaram saindo juntos.
Kenbo baixou a cabeça outra vez.
– Na verdade, mais que apenas saindo.
– E daí? – retrucou ele.
– Queremos saber qual é o nome completo dela.
– Nem isso vocês sabem?
– Ela está em perigo, Ken.
Berleand ainda ofegava por causa da corrida. Levou a mão ao bolso
(achei que fosse pegar uma caneta para fazer anotações) e puxou um
cigarro. Muito útil diante das circunstâncias.
– Carrie Steward – disse o garoto.
Olhei para Berleand. Ele assentiu com a cabeça e, chiando, falou:
– Vou passar a informação.
Então pegou o celular e saiu andando com o aparelho no alto, em
busca de sinal.
– Por que você saiu correndo? – perguntei.
– Eu menti – disse Kenbo. – Menti para os meus amigos, entendeu?
Disse que transei com ela, mas não transei.
Esperei.
307/348
– A gente se conheceu na biblioteca. Ela era uma gata, sabe? Vivia
com outras duas louras e elas sempre ficavam me encarando, como
aquelas garotas de Colheita maldita. Dava até medo. Fiquei uns três
dias só observando, aí esperei até ela ficar sozinha e fui falar com ela.
Primeiro ela nem me deu ideia. Tudo bem, eu já tinha levado gelo
antes, mas nunca daquele jeito, de arrepiar. Mas aí eu pensei: o que é
que eu tenho a perder? Então continuei puxando papo. Peguei o iPod,
perguntei que tipo de música ela curtia e ela falou que não gostava de
música. Só podia ser mentira. Então coloquei Blue October para ela
ouvir. O rosto dela mudou na mesma hora. O poder da música, cara.
Ele se calou de repente. Olhei à minha volta. Berleand falava ao
telefone. Digitei rapidamente “Carrie Steward” e mandei por
mensagem de texto para Esperanza e Terese. Elas poderiam começar a
pesquisar também. Eu esperava que algum funcionário da escola
aparecesse a qualquer instante, mas ainda não via sinal de ninguém.
Ken e eu agora estávamos sentados no gramado, voltados para os prédios
da escola. O sol começava a baixar, colorindo o céu de um laranja
escuro.
– Então, o que aconteceu depois? – perguntei.
– Começamos a conversar. Ela falou que se chamava Carrie e quis
ouvir outras músicas. Mas ficava sempre olhando para os lados, como
se não quisesse que as amigas vissem que ela estava comigo. Fiquei
me sentindo mal pra caramba. Parecia que ela estava com vergonha
de mim. Mas tem gente na cidade que torce o nariz para os alunos da
minha escola, então achei que fosse isso. Pelo menos no início. Depois
desse dia a gente se encontrou outras vezes. Ela aparecia na biblioteca
com as amigas e a gente se mandava pelos fundos. Depois ficava lá,
conversando e ouvindo música. Um dia falei de uma banda que ia tocar
em Norwalk e perguntei se ela queria ir comigo. A garota ficou pálida,
parecia estar morrendo de medo. Aí eu falei que não tinha problema
se ela não quisesse ir e ela disse que ia dar um jeito. Mas, quando
eu me ofereci para buscar a menina em casa, ela pirou, cara. Pirou
mesmo.
308/348
Começava a esfriar. Berleand terminou suas ligações. Olhou na
nossa direção, refletiu um instante e decidiu continuar afastado.
– E depois?
– Aí ela falou para eu parar o carro no fim da Duck Run Road e
disse que iria me encontrar lá às nove. Cheguei alguns minutos antes e
estava escuro pra caramba. Nenhum poste de luz, nada. Então fiquei
ali, esperando. Quando deu nove e quinze, ouvi um barulho e de repente
alguém abriu a porta do carro e me deu um soco na boca.
Ken parou um segundo para enxugar as lágrimas que haviam
ressurgido.
– Perdi dois dentes – disse ele, apontando para as falhas. – Depois
me puxaram para fora do carro e começaram a me chutar. Não sei
quantos eram. Uns quatro ou cinco, sei lá. Tentei proteger a cabeça,
mas só ficava pensando que ia morrer. Depois me viraram de barriga
para baixo e me imobilizaram. Não dava para ver o rosto de ninguém.
E eu nem queria ver. Aí um deles puxou uma faca, colocou na minha
cara e disse: “Ela não quer ver você nunca mais, entendeu? E, se contar
a alguém o que aconteceu aqui, sua família morre.”
Ken e eu ficamos sentados quietos por um tempo. Olhei para Berleand
e ele fez que não com a cabeça. Nenhuma informação sobre Carrie
Steward.
– Então foi isso – disse Ken. – Nunca mais vi a Carrie. Nem as amigas
dela. Foi como se elas tivessem evaporado.
– Você contou a alguém sobre isso?
Ele negou com a cabeça.
– Como explicou os ferimentos?
– Falei que tinha me metido em uma briga depois do show. Você
não vai contar pra ninguém, vai?
– Não, fique tranquilo – falei. – Mas precisamos encontrá-la, Ken.
Você não faz nenhuma ideia de onde ela possa estar?
Ele ficou calado.
– Ken?
– Perguntei onde ela morava, mas ela não disse.
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Esperei.
– Mas um dia...
Ele respirou fundo.
– Um dia segui a Carrie depois que ela saiu da biblioteca.
Ken desviou o olhar.
– Então você sabe onde ela mora.
– Talvez sim. Sei lá. Acho que não.
– Pode me levar até onde ela foi nesse dia?
– Posso explicar onde é – disse ele –, mas não vou lá. Tudo o que eu
quero agora é ir pra casa.
310/348
38
ACORRENTE QUE BLOQUEAVA o caminho também sustentava uma placa
em que se lia PROPRIEDADE PARTICULAR.
Seguimos em frente e estacionamos perto da esquina. Não se via
nada além de plantações e bosques. Nossas diversas fontes ainda não
haviam descoberto nada a respeito de Carrie Steward. Talvez fosse um
pseudônimo, mas todos estavam pesquisando. Até que Esperanza
ligou e disse:
– Tenho algo que talvez possa interessar.
– Diga.
– Você mencionou um certo Dr. Jiménez, o residente que trabalhava
com o Dr. Cox no início do CryoHope Center, certo?
– Certo.
– Jiménez também tem ligação com a Salvem os Anjos. Compareceu
a um retiro que eles promoveram 16 anos atrás. Vou ver se consigo
descobrir mais sobre ele. Talvez ele possa nos dar alguma informação
sobre a adoção dos embriões.
– Ótimo, faça isso.
– Você acha que Carrie pode ser apelido?
– Sei lá. Talvez de Caroline.
– Vou dar uma pesquisada. Ligo de volta assim que descobrir algo.
– Mais uma coisa – falei.
Passei a ela o nome das ruas do cruzamento mais próximo.
– Dê uma olhada no Google e veja o que aparece.
– Só um instante. Bem, não há nada que indique nomes de moradores.
Parece que você está em uma propriedade rural ou algo assim.
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Não faço a menor ideia de quem seja o dono. Quer que eu tente
descobrir?
– Por favor.
– A gente se fala mais tarde.
Assim que desliguei, Berleand disse:
– Veja aquilo ali.
Ele indicava uma árvore de onde uma câmera era apontada para a
entrada da propriedade.
– Segurança de mais para uma fazenda.
– Ken falou desse acesso. Disse que Carrie tinha seguido a pé por
aqui.
– Se entrarmos, vamos ser vistos.
– Se é que essa câmera é de verdade mesmo. De repente é só para
assustar.
– Não – disse Berleand. – Se fosse uma câmera falsa, estaria mais à
vista.
Ele tinha razão.
– Mas acho que a gente devia entrar assim mesmo.
– É invasão de propriedade – lembrou Berleand.
– E daí? Não podemos ficar aqui de braços cruzados, certo? Deve
ter uma casa mais adiante.
Então tive uma ideia.
– Espere só um segundo.
Liguei de volta para Esperanza.
– Ainda está com o computador ligado?
– Estou.
– Abra o Google Maps e digite o endereço que passei antes.
Som de digitação rápida.
– Pronto – disse ela.
– Coloque na opção de fotos por satélite e dê um zoom.
– Espere aí... Espere aí... Pronto.
– O que apareceu na estradinha à direita da rodovia?
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– Muitas árvores, depois o telhado de uma casa grande, provavelmente
a sede da fazenda. A uns 200 metros de onde vocês estão, não
mais que isso. É só ela.
– Valeu.
Desliguei.
– Tem uma casa.
Berleand tirou os óculos, limpou as lentes, ergueu-as contra a luz,
limpou de novo.
– O que você acha que vamos encontrar lá? – disse.
– Quer saber a verdade?
– De preferência.
– Não faço a menor ideia – respondi.
– Acha que Carrie Steward pode estar lá?
– Só há um jeito de descobrir.
www
Com a corrente bloqueando o caminho, a opção era seguir a pé.
Liguei para Win e coloquei-o a par de tudo, para o caso de alguma
coisa sair errado. Ele checou mais uma vez a segurança de Terese e decidiu
ir nos encontrar. Berleand e eu havíamos resolvido que o melhor
a fazer era simplesmente caminhar até a casa e tocar a campainha.
Ainda estava claro, mas já era fim de tarde. Saltamos a corrente,
passamos pela câmera de segurança e fomos em frente pelo caminho
cercado de árvores. Ao que parecia, metade delas trazia placas de
ENTRADA PROIBIDA grampeadas no tronco. A estrada era de terra, porém
bem conservada, com alguns trechos de cascalho. Berleand fez uma
careta e foi andando como se não quisesse pisar no chão. A toda hora
limpava as mãos na calça e umedecia os lábios.
– Não gosto nada disso – falou.
– Não gosta de quê?
– Poeira, mato, insetos. Tudo muito sujo.
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– Ah, tá – falei. – E aquela boate de striptease era um exemplo de
higiene.
– Alto lá. Aquele clube oferecia relax de alto nível para executivos.
Você não leu a placa?
Mais adiante, avistei uma cerca viva e, do outro lado dela, a uma
distância razoável, uma mansarda de ardósia.
Um alarme tocou na minha cabeça. Apertei o passo.
– Myron?
Atrás de nós, o barulho de uma corrente caindo no chão e um
veículo avançando. Segui em frente, na esperança de ver melhor o que
havia adiante. Olhei de relance para trás quando um carro da polícia
nos alcançou. Berleand parou. Eu, não.
– Senhor, está invadindo uma propriedade particular.
Dobrei a curva à minha frente. Uma cerca protegia toda a casa. Mais
segurança. Mas agora, de onde estava, eu podia ver a mansão de
frente.
– Parado aí! O senhor já foi longe demais.
Não parei. Na fachada da mansão, uma placa confirmava a suspeita
que eu tivera ao avistar aquele telhado. O lugar que seria perfeito para
um hotel: um casarão vitoriano de arquitetura rebuscada, com torres,
vitrais, uma enorme varanda na frente e mansarda em ardósia.
Eu tinha visto aquela casa no site da Salvem os Anjos.
Era um dos abrigos para mães solteiras.
www
Dois policiais saltaram do carro.
Ambos eram jovens, muito bombados, e caminhavam com o suingue
arrogante dos policiais. Usavam chapéus da guarda florestal.
Sempre achei esses chapéus um tanto ridículos – e que deviam atrapalhar
bastante o trabalho dos policiais –, mas não fiz nenhum
comentário.
– Podemos ajudá-los em alguma coisa, senhores? – disse um deles.
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De acordo com a indicação em seu uniforme, tratava-se do policial
Taylor. Era maior que o outro, as mangas da camisa apertando como
torniquetes os bíceps inchados.
Berleand mostrou-lhe a fotografia e disse:
– Estamos à procura desta garota.
Taylor pegou a foto, examinou-a rapidamente e passou-a ao colega,
Erickson.
– E você é...? – perguntou.
– Capitão Berleand, da Brigade Criminelle de Paris.
Berleand passou seu distintivo e o documento de identificação a
Taylor, que os segurou com as pontas dos dedos, como se fossem um
saco de bosta de cachorro fresca. Avaliou os documentos por um instante
e depois, apontando o queixo na minha direção, disse:
– E seu amigo, quem é?
– Myron Bolitar – respondi, acenando para eles. – Muito prazer.
– Qual é seu envolvimento neste caso, Sr. Bolitar?
Eu já ia dizendo que se tratava de uma longa história, mas então me
dei conta de que não era tão longa assim.
– A garota que estamos procurando talvez seja filha da minha
namorada.
– Talvez? – disse Taylor, e então se virou para Berleand. – Então,
inspetor Clouseau, pode me dizer o que está acontecendo aqui?
– “Inspetor Clouseau” – repetiu Berleand. – Muito engraçado.
Porque sou francês, não é?
Taylor apenas o encarou.
– Estou trabalhando em um caso de terrorismo internacional – esclareceu
Berleand.
– Está, é?
– Estou. O nome dessa garota surgiu durante a investigação. Acreditamos
que ela mora aqui.
– Tem um mandado?
– O tempo urge.
– Pelo visto, não tem.
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Taylor exalou um suspiro e olhou para Erickson, que continuou a
mascar seu chiclete, sem nada acrescentar. Depois se virou para mim
e disse:
– Isso é verdade, Sr. Bolitar?
– É – respondi.
– Quer dizer então que a suposta filha de sua namorada de algum
modo está envolvida em um caso de terrorismo internacional?
– Sim.
Ele coçou o rosto. Tentei calcular a idade deles: provavelmente
ainda na casa dos 20, embora ambos parecessem adolescentes.
Quando foi que os policiais começaram a ficar tão jovens assim?
– Vocês sabem o que é este lugar? – perguntou Taylor.
Berleand balançou a cabeça, ao mesmo tempo que respondi:
– Um abrigo para mães solteiras.
Taylor balançou a cabeça e apontou para mim:
– Isto é uma informação confidencial.
– Eu sei.
– Mas o senhor está certo. Então deve saber que privacidade é assunto
importante aqui.
– Sim, nós sabemos.
– Se um lugar como este não puder ser um santuário para essas
moças, que lugar poderia? Elas vêm aqui justamente para ficar longe
dos curiosos.
– Eu entendo.
– E o senhor tem certeza de que a suposta filha da sua namorada
não está aí só porque está grávida?
Pensando bem, a pergunta tinha fundamento.
– Isto é irrelevante, como o capitão Berleand pode confirmar.
Estamos falando de um complô terrorista. Se a garota está grávida ou
não, isso não faz a menor diferença.
– As pessoas que administram este lugar nunca causaram
problemas.
– Suponho que não.
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– Além disso, estamos nos Estados Unidos. Se não foram convidados,
não têm o direito de entrar em uma propriedade particular sem
ordem judicial.
– Sim, eu entendo – falei e, olhando de volta para a mansão, perguntei:
– Foram eles que chamaram vocês?
Taylor franziu a testa. Achei que fosse dizer que aquilo não era da
minha conta. Em vez disso, olhou para a mansão e disse:
– Estranho. Não foram eles. Geralmente chamam, quando os moleques
vêm espiar ou coisas assim. Desta vez foi Paige Wesson, da biblioteca,
quem ligou. Além disso, alguém viu um de vocês perseguindo
um garoto na Carver Academy.
Taylor continuava a contemplar a casa como se ela tivesse acabado
de se materializar ali.
– Por favor, ouçam – interveio Berleand. – Este caso é muito
importante.
– Ainda assim, estamos nos Estados Unidos – repetiu Taylor. – Se
eles não querem recebê-los, vocês vão ter de respeitar. Portanto...
Ele olhou para Erickson.
– Acha que tem algum problema se a gente bater na porta e mostrar
a foto a eles?
Erickson pensou um pouco, depois fez que não com a cabeça.
– Vocês dois, fiquem aqui.
Eles passaram por nós, abriram o portão e foram em direção à casa.
Ouvi um barulho de motor por perto. Olhei para trás. Nada. Talvez
um carro tivesse passado na rodovia. O sol já havia se posto e
começava a escurecer. Olhei para a mansão. Nenhum movimento por
lá desde que havíamos chegado.
Barulho de carro novamente. Desta vez parecia vir em direção à
casa. Olhei, mas novamente não vi nada. Berleand se aproximou.
– Você não está com uma sensação ruim? – disse ele.
– Boa é que não é.
– Acho que devíamos ligar para o Jones.
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Taylor e Erickson já haviam alcançado os degraus da varanda
quando meu celular tocou. Era Esperanza.
– Encontrei uma coisa que você precisa ver – disse ela.
– O quê?
– Lembra que falei que o Dr. Jiménez tinha participado de um retiro
da Salvem os Anjos?
– Lembro.
– Descobri o nome de outras pessoas que também participaram.
Dei uma olhada no Facebook delas e acabei encontrando fotos do tal
retiro. Estou mandando uma para você agora. É de um grupo de pessoas.
O Dr. Jiménez é o da direita.
– Ótimo, vou liberar a linha.
Desliguei e o BlackBerry começou a vibrar. Abri o e-mail de Esperanza
e cliquei no anexo. A foto foi surgindo aos poucos. Berleand espiava
atrás de mim.
Taylor e Erickson já estavam à porta da mansão. Taylor tocou a
campainha e um adolescente louro atendeu. Não estávamos perto o
suficiente para ouvir. O policial disse algo e o garoto respondeu.
Por fim o download se completou. A tela era pequena; portanto, os
rostos também. Dei um zoom, movi o cursor para a direita e dei zoom
de novo. A imagem se ampliou, mas ficou granulada. Tentei ajustar a
nitidez. Uma ampulheta surgiu na tela e a imagem aos poucos foi se
definindo.
Olhei novamente para a porta do casarão vitoriano. Taylor deu um
passo à frente como se quisesse entrar. O garoto ergueu a mão. Taylor
olhou para Erickson com uma expressão de surpresa. Foi a vez de
Erickson se pronunciar. Parecia irritado. O garoto aparentemente se
assustou. O ajuste de nitidez ainda estava sendo processado. Dei alguns
passos na direção da casa.
O ajuste se completou. Olhei para a tela e finalmente vi o rosto do
Dr. Jiménez. Quase deixei o aparelho cair. Era um choque, mas,
pensando no que Jones tinha dito, as coisas começavam a fazer sentido.
Um sentido tenebroso.
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O médico (muito inteligente um homem de pele morena usar o
nome e talvez os documentos de um espanhol) era ninguém menos
que Mohammad Matar.
Antes que eu pudesse digerir o que tudo aquilo significava, o garoto
à porta berrou:
– Vocês não podem entrar!
– Filho – disse Erickson –, saia do nosso caminho.
– Não!
A resposta não pareceu agradar a Erickson, que afastou os braços
como se fosse empurrar o pirralho para o lado. Foi quando o garoto
puxou uma faca e, antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa,
ergueu-a acima da cabeça e cravou-a fundo no peito do policial.
Essa não.
Enfiei o celular no bolso e corri na direção da porta. Mas um estalo
súbito fez com que eu parasse.
Um tiro.
Erickson havia sido atingido. Com a faca ainda no peito, ele girou o
tronco e foi ao chão. Taylor ainda tentou sacar sua arma, mas não teve
chance. Outros disparos quebraram o silêncio do início da noite. O
corpo de Taylor se arqueou em um primeiro espasmo, depois em
outro e despencou sobre o do companheiro.
De repente o barulho de motores voltou, um carro em disparada
pela estrada de terra, outro vindo de trás da casa. Procurei Berleand.
Ele corria na minha direção.
– Vá para a mata! – berrei.
O som de pneus derrapando em uma parada brusca. Mais tiros.
Corri para a escuridão das árvores, afastando-me tanto do casarão
quanto da estrada. Se conseguíssemos chegar à mata, poderíamos nos
esconder. Um carro avançou, os faróis à nossa procura. Balas zuniam
aleatoriamente. Não me virei para ver de onde elas vinham. Assim que
encontrei uma pedra maior, mergulhei atrás dela. Olhei para trás.
Berleand ainda corria.
Mais disparos. E Berleand foi ao chão.
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Saí de trás da pedra, mas Berleand estava longe demais. Dois homens
correram na direção dele. Três outros, todos armados, saltaram
de um jipe e foram ao encontro dos companheiros, atirando a esmo na
mata. Uma das balas atravessou a árvore atrás de mim. Joguei-me no
chão a tempo de escapar de mais uma saraivada de tiros.
Alguns segundos de silêncio e depois:
– Você! Saia daí!
O homem tinha sotaque do Oriente Médio. Espiei sem me levantar.
A noite avançava rapidamente e eu já não conseguia enxergar com
nitidez, mas pude ver que pelo menos dois dos homens tinham pele
morena, cabelos castanhos e barbas compridas. Outros usavam lenços
verdes no pescoço, de modo que pudessem puxá-los para cobrir o
rosto se fosse preciso. Gritavam uns com os outros em uma língua que
eu não compreendia, mas que só podia ser árabe.
Que diabos estava acontecendo?
– Apareça ou seu amigo vai sofrer!
Esse certamente era o líder do bando. Ladrou algumas ordens e
apontou para a direita, depois para a esquerda. Dois homens se separaram
e vieram na minha direção. Outro voltou ao carro e usou os
faróis para iluminar a mata. Deitado com o rosto contra a terra, eu
sentia o coração martelar no peito.
Eu não estava armado. Idiota! Como eu era idiota!
Levei a mão ao bolso e tentei encontrar o telefone.
– Última chance! Vou começar pelos joelhos do seu amigo – berrou
o líder.
– Não dê ouvidos a ele! – gritou Berleand em seguida.
Meus dedos tocaram o aparelho no mesmo instante em que um
único disparo estalou no silêncio da noite.
Ouvi um grito de Berleand.
– Saia já daí! – ordenou o líder.
Finalmente encontrei a tecla de discagem rápida e liguei para Win.
Berleand agora gemia. Fechei os olhos com força, tentando bloquear
minhas emoções. Precisava pensar.
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– Não dê ouvidos a ele! – repetiu Berleand, agora com a voz
trêmula, como se estivesse chorando.
– O outro joelho!
E um segundo disparo.
Berleand urrou de dor, um som que lancinou meu âmago e fez minhas
entranhas se contraírem. Eu não podia desistir. Se me entregasse,
tanto eu quanto Berleand seríamos mortos. A essa altura Win decerto
já teria ouvido o que se passava. Ligaria para Jones e para a polícia. A
ajuda logo estaria a caminho.
Berleand chorava.
Dali a pouco, com a voz bem mais fraca, disse mais uma vez:
– Não... dê ouvidos... a ele!
Ouvi os homens na mata, não muito longe de mim. Eu não tinha
escolha. Precisava fazer alguma coisa. Olhei para o casarão vitoriano à
minha direita e algo parecido com um plano começou a surgir em
minha cabeça. Apertei os dedos contra uma pedra grande.
– Tenho uma faca! – anunciou o líder. – Vou arrancar os olhos dele!
Foi então que percebi um movimento na casa. Vi por uma das
janelas. Sabendo que não teria muito tempo, fiquei de pé e flexionei os
joelhos, pronto para entrar em ação.
Então arremessei a pedra o mais longe possível na direção contrária
à da casa. Ouvi o baque quando ela aterrissou na copa de uma árvore.
O líder virou o rosto para o lugar de onde viera o ruído. Os dois homens
na mata se precipitaram para lá, disparando suas armas. O jipe
manobrou de modo que os faróis os iluminassem.
Pelo menos era isso que eu esperava estar acontecendo.
Eu não havia ficado lá para ver. Arremessara a pedra e partira em
disparada pela mata rumo à lateral da casa. Agora me afastava dos
gemidos de Berleand e dos homens que tentavam me matar. A escuridão
se adensara e eu quase não via onde pisava, mas continuava correndo.
Os galhos fustigavam meu rosto. Eu os ignorava, ciente dos
poucos segundos que teria para agir. Sabia que agora tudo se resumia
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ao tempo, mas tinha a impressão de estar demorando demais para alcançar
a casa.
Sem interromper a corrida, peguei outra pedra.
– Vou arrancar o primeiro olho agora! – berrou o líder.
Ouvi Berleand gritar um pavoroso “Não!” e depois soltar um urro de
agonia.
Não havia mais tempo.
Então, aproveitando o impulso da corrida e puxando o braço em um
movimento tão forte que quase o deslocou, arremessei a pedra contra
a casa. Ela desenhou um arco na escuridão e, por um instante, achei
que fosse aterrissar próximo a uma bela janela panorâmica na lateral
direita do prédio.
Mas não.
Acertou em cheio a vidraça, reduzindo-a a uma pilha de estilhaços.
Instalou-se o pânico. Era o que eu queria. Então dei meia-volta e,
embrenhando-me mais uma vez na mata, voltei pelo caminho de antes
enquanto os homens armados corriam para o casarão. Virei o rosto a
tempo de ver dois adolescentes de cabelos claros, um rapaz e uma
moça, correndo para a janela quebrada. Talvez a moça fosse Carrie,
mas não havia tempo para conferir. Os homens gritaram algo em
árabe. Não vi o que aconteceu depois. Precisava tirar proveito do tumulto
para surpreender o líder por trás.
O jipe parou e o motorista desceu do carro, correndo com os outros
em direção à janela quebrada. Era esta a função principal de todos ali:
proteger a casa. Eu havia invadido o terreno deles. Espalhados, eles
agora tentavam se reorganizar em meio à confusão.
Correndo contra o relógio, eu de alguma forma chegara sem me
fazer notar a um novo esconderijo, mais perto do líder. Ele agora estava
a uns 50 ou 60 metros de mim, de costas, olhando para o casarão.
Quanto tempo levaria até que a polícia chegasse?
Mais do que poderíamos esperar.
O líder berrava ordens. Berleand jazia aos pés dele. Imóvel. E, o que
era pior, mudo. Não gemia nem chorava.
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Eu precisava chegar até ele.
Mas não sabia como. Assim que saísse da mata, ficaria completamente
vulnerável. No entanto, que mais eu poderia fazer?
Lancei-me na direção dele.
Ainda me encontrava a uns 40 metros de distância quando, alertado
por alguém, ele se virou para mim. Apesar da corrida frenética, tudo a
meu redor parecia se mover em câmera lenta. O líder também usava
um lenço verde no pescoço, como os bandidos dos filmes de faroeste.
Ostentava uma barba espessa. Era mais alto que os outros, talvez
1,90m, e mais forte também. Empunhava uma faca em uma das mãos
e, na outra, uma pistola.
Apontou a arma para mim. Meu primeiro pensamento foi me lançar
ao chão ou dar uma guinada, qualquer coisa para desviar do tiro, mas
logo percebi que nada disso adiantaria naquelas circunstâncias. Talvez
ele errasse o primeiro disparo, mas eu já estaria exposto e dificilmente
ele erraria o segundo. Além disso, o truque da vidraça quebrada já
dera o que tinha que dar e os outros homens, que agora corriam de
volta para o chefe, também atirariam em mim.
Só me restava esperar que o líder de algum modo entrasse em
pânico e errasse o alvo.
Encarei seus olhos. Eles demonstravam a calma que um homem só
alcança quando tem a certeza de estar fazendo o que se espera dele.
Eu estava perdido, sem dúvida. Ele não erraria o tiro. Foi então que,
quando ele estava prestes a puxar o gatilho, soltou um grito de dor e
olhou para baixo.
Berleand havia cravado os dentes na perna dele, como se fosse um
rottweiler raivoso.
O homem baixou a arma para a cabeça de Berleand. A descarga de
adrenalina me impulsionou. Voei na direção do agressor, os braços estendidos
para a frente. No entanto, antes que pudesse alcançá-lo, veio
o disparo. Vi o coice da pistola. O corpo de Berleand deu seu último
espasmo no momento em que me lancei contra o líder, atropelando-o.
Enquanto caíamos, joguei o antebraço contra seu nariz, que explodiu
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como um balão cheio de água quando chegamos ao chão, todo o peso
do meu corpo sobre ele. Meu rosto ficou molhado com o sangue
quente. O homem urrou de dor, mas continuava pronto para a briga.
Eu também. Desviei a tempo de uma cabeçada. Em seguida ele tentou
me prender em um abraço de urso. Foi seu grande erro. Assim que
começou a apertar, puxei rapidamente os braços. Ele ficou vulnerável.
Não hesitei. Pensei em todo o sofrimento que o filho da mãe havia
causado a meu amigo Berleand.
Era hora de acabar com aquilo.
Meu alvo não eram os olhos, nem o nariz, nem qualquer outra parte
mole que eu pudesse atingir para mutilá-lo ou incapacitá-lo. Na base
da garganta, logo acima da caixa torácica, há uma pequena área oca
em que a traqueia fica desprotegida. Foi justamente nesse ponto que,
usando dois dedos e o polegar como as garras de um animal, fui
comprimindo a garganta do sujeito. E foi também como um animal
que comecei a rugir enquanto puxava aquela traqueia, observando o
homem que morria nas minhas mãos.
Peguei a arma de sua mão inerte.
Os outros corriam na nossa direção. Ainda não haviam atirado por
medo de acertar seu líder. Rolei até o corpo à minha direita.
– Berleand?
Mas ele estava morto. Já não havia dúvida. Os enormes óculos de
nerd mal se equilibravam no rosto frágil e amolecido. Minha vontade
era chorar. Desistir de tudo, abraçá-lo e chorar.
Os homens já estavam perto. Ergui a cabeça. Eles não podiam me
enxergar direito, mas a luz que vinha do casarão delineava suas silhuetas.
Ergui a arma e atirei. Um deles caiu. Virei para a esquerda e
puxei o gatilho novamente. Outro foi ao chão.
Começaram a atirar de volta, então rolei até o líder e usei o cadáver
como escudo. Atirei uma terceira vez e mais um homem tombou.
Sirenes.
Com o tronco abaixado, corri para o casarão. Carros de polícia se
aproximavam a toda a velocidade. Ouvi um helicóptero, talvez mais de
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um. Disparos. Eles cuidariam da situação. O que eu queria naquele
momento era entrar na casa.
Passei por Taylor. Morto. A porta ainda estava aberta. O corpo de
Erickson jazia à frente dela, na varanda, a faca cravada no peito. Pulei
por cima dele para dentro da sala.
Silêncio.
Isso não era nada bom.
Ainda com a arma na mão, protegi minhas costas contra a parede e
segui avançando. O lugar precisava de reformas. O papel de parede
descascava em diversos pontos. A luz fora deixada acesa. De relance,
vi alguém correr por perto. Ouvi passos descendo uma escada. Tinha
que haver outro pavimento. Um porão.
Do lado de fora, os disparos continuavam. Alguém com um megafone,
talvez Jones, ordenava que os homens se rendessem. Provavelmente
o melhor a fazer fosse esperar. Afinal, seria quase impossível
que eu conseguisse tirar Carrie dali. O mais indicado seria ficar onde
estava e vigiar a porta para que ninguém entrasse ou saísse do casarão.
Sim, essa teria sido a estratégia mais inteligente: esperar pelo
desfecho da história.
E eu poderia ter feito exatamente isso. E nunca teria entrado
naquele porão caso o menino de cabelos claros não tivesse tentado
correr para lá.
“Menino” não é bem a palavra adequada. Ele tinha uns 17 ou 18
anos, não era muito mais jovem que os homens morenos que eu havia
matado ainda há pouco sem hesitar. Mas, quando esse adolescente de
calça cáqui e camisa social partiu para as escadas com uma arma em
punho, não atirei imediatamente.
– Parado! – gritei. – Largue a arma!
O garoto se virou, assustado. Seu rosto era a máscara da morte.
Então ele ergueu a arma e mirou em mim. Eu me joguei no chão, rolei
para a esquerda e me ergui já pronto para atirar também. Não queria
matá-lo, só incapacitá-lo. Então baixei a mira para a perna dele e
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disparei. Ele deu um grito e caiu. Mas ainda tinha a arma na mão e a
máscara da morte no rosto. Mirou em mim novamente.
Foi quando me lancei da sala para o corredor e me vi de frente para
a porta do porão.
O rapaz havia sido atingido na perna. Não conseguiria me seguir.
Então respirei fundo e, com a mão livre, abri a porta.
Escuridão total.
Com a arma encostada ao peito, me esgueirei contra a parede a fim
de me tornar um alvo menos fácil. Cruzei a porta lentamente,
movendo os pés com cuidado para sentir o caminho. Procurei por um
interruptor de luz, mas não encontrei. Ainda me esgueirando, fui descendo
a escada devagar, firmando os pés em cada degrau antes de
seguir para o próximo. Eu me perguntava quantas balas ainda restariam
no tambor. Não fazia a menor ideia.
Sussurros lá embaixo.
Alguém se escondia na escuridão. Mais de uma pessoa, provavelmente.
Os disparos já haviam cessado do lado de fora. Eu não tinha
dúvidas de que Jones e sua equipe haviam dominado a situação. De
novo pensei em fazer a coisa certa: voltar ao andar de cima e esperar
por reforços.
Mas não foi o que fiz.
Por fim alcancei o último degrau. E senti os pelos da nuca se eriçarem
quando ouvi o som de pessoas se movendo. Com a mão livre, tateei
a parede até encontrar o interruptor de luz, ou, mais precisamente, os
interruptores. Três, um ao lado do outro. Então firmei a arma, respirei
fundo e os empurrei ao mesmo tempo.
Mais tarde eu me lembraria de outros detalhes: as paredes grafitadas
com dizeres em árabe; as bandeiras verdes com o crescente
coberto de sangue; os pôsteres dos mártires da causa, preparados para
combate com metralhadoras ao ombro. Mais tarde eu me lembraria
também das fotos de Mohammad Matar em diversos estágios de sua
vida; uma delas havia sido tirada na época em que ele trabalhava
como residente de medicina sob o nome de Jiménez.
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Mas naquele momento tudo isso não passava de um grande pano de
fundo.
Pois ali, em um dos cantos do porão, vi algo que fez meu coração
parar. Pisquei, tentando enxergar melhor, mas ainda assim não acreditei
no que via, embora tudo fizesse o mais perfeito sentido.
Um grupo de adolescentes e crianças se comprimia contra uma
mulher grávida coberta por uma burca negra. Todos tinham olhos
muito azuis, que me fulminavam. De repente começaram a fazer um
barulho, como se estivessem rosnando em uníssono, e só então me dei
conta do que se tratava. Aquelas mesmas palavras, repetidas
incessantemente:
– Al-sabr wal-sayf.
Recuei alguns passos, perplexo.
– Al-sabr wal-sayf.
Em meu cérebro, as sinapses voltaram a espocar. Os cabelos claros.
Os olhos azuis. CryoHope. Mohammad Matar na pele do Dr. Jiménez.
Paciência. Espada.
Paciência.
Precisei reprimir um grito quando tudo se encaixou na minha
cabeça. A Salvem os Anjos não havia usado os embriões para ajudar
casais com problemas de fertilidade, e sim para criar uma arma infalível
para os terroristas, que permitiria que eles se infiltrassem no
Ocidente e dessem início a um jihad de proporções globais.
A paciência e a espada extinguirão os infiéis.
Os pares de olhos azuis foram se aproximando de mim, alheios à
arma que eu trazia na mão. Alguns prosseguiam com o mantra.
Outros soltavam gritos estridentes. Outros tantos, aterrorizados, se
abrigavam atrás da grávida de burca. Comecei a subir de volta a escada,
apressado, e uma voz conhecida me chamou do andar de cima:
– Bolitar! Bolitar!
Então dei as costas para aquela monstruosidade concebida no inferno
e segui em disparada pelos degraus que ainda me separavam da
porta, que atravessei com um salto e fechei o mais rápido que pude.
327/348
Como se isso ajudasse de alguma forma. Como se pudesse fazer com
que as coisas mudassem.
Jones estava lá, acompanhado de homens com coletes à prova de
bala. Percebendo minha expressão de terror, ele perguntou:
– O que houve? O que tem lá embaixo?
Mas não consegui articular as palavras para responder. Corri para
fora, na direção de Berleand, e me joguei ao lado de seu corpo inerte,
na esperança de que, de alguma forma, eu tivesse me confundido e ele
ainda estivesse vivo. Mas aquele desgraçado carismático, meu amigo,
estava mesmo morto. Abracei-o por um segundo, talvez dois. Não
mais que isso.
Eu ainda tinha uma missão a cumprir. Berleand teria sido o
primeiro a me lembrar disso se pudesse.
www
Eu precisava encontrar Carrie.
Enquanto corria de volta ao casarão, liguei para Terese. Ninguém
atendeu.
Rapidamente me juntei ao grupo que dava busca no interior da
casa. Jones e sua equipe já se encontravam no porão. Os adolescentes
e crianças estavam sendo conduzidos para o andar de cima. Olhei para
seus rostos tão cheios de ódio. Nenhum deles era o de Carrie. Encontramos
mais duas mulheres usando burcas pretas. Ambas estavam
grávidas. Enquanto os jovens eram levados para fora, Jones olhou
para mim com uma expressão de horror e descrença. Balancei a
cabeça, endossando sua perplexidade. Aquelas mulheres não eram
mães. Eram incubadoras, chocadeiras de embriões.
Vasculhamos todos os armários e gavetas. Encontramos manuais de
treinamento, vídeos, laptops, um horror atrás do outro. Mas nada de
Carrie.
Tentei ligar para Terese outra vez. De novo, ninguém atendeu. Nem
no celular, nem no telefone fixo do apartamento de Manhattan.
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Segui trôpego para fora da casa. Win havia chegado. Esperava por
mim na varanda. Assim que o vi, perguntei:
– Terese?
Ele balançou a cabeça:
– Ela se foi.
De novo.
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39
Província de Cabinda
Angola, África
Três semanas depois
FAZ MAIS DE OITO HORAS QUE ESTAMOS dentro de uma picape, percorrendo
a mais insólita das paisagens. Faz seis que não avistamos uma
única pessoa ou qualquer construção. Já estive em áreas remotas
antes, mas em nenhuma que ao menos se comparasse a esta.
Quando finalmente chegamos ao casebre, o motorista estaciona e
desliga o motor. Desce para abrir minha porta, me entrega uma
mochila e mostra o caminho que tenho de seguir a pé. Diz que no
casebre há um telefone, que eu ligue quando quiser que ele vá me
buscar.
Agradeço e sigo pelo caminho.
Seis quilômetros adiante, avisto a clareira.
Terese está lá. De costas para mim. Quando voltei ao apartamento
de Win naquela noite, ela havia partido, deixando um bilhete: “Te amo
demais.”
E só.
Ela agora está com os cabelos pretos. É melhor para mantê-la incógnita,
imagino. Mulheres louras costumam chamar muita atenção,
sobretudo aqui. Gosto dela assim. Observo-a caminhar e não consigo
deixar de sorrir. A cabeça ereta, os ombros jogados para trás, a postura
perfeita. De repente me lembro das imagens daquela câmera de
segurança, do modo de caminhar de Carrie, tão elegante e seguro
quanto o da mãe.
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Terese está acompanhada de três mulheres negras usando trajes
multicoloridos. Sigo na direção delas. Ao me ver, uma das mulheres
cochicha algo. Terese, curiosa, se vira para olhar. Ao pousar os olhos
em mim, seu rosto se ilumina – e acho que o meu também. Ela larga
no chão o cesto que vinha carregando e corre a meu encontro. Sem
hesitar. E corro para alcançá-la também. Ela me abraça forte e diz:
– Nossa, como senti a sua falta...
Retribuo o abraço, e só. Não quero dizer nada. Pelo menos não
agora. Quero apenas me derreter nesse abraço, desaparecer nele, passar
o resto da vida em seu calor. No fundo da alma sei que meu lugar é
ali, nos braços dela, e por alguns instantes me contento só com essa
paz.
Por fim pergunto:
– Onde está Carrie?
Terese me toma pela mão e me conduz até um canto da clareira.
Aponta para o campo, depois para outra clareira menor a uns 100
metros de distância. Lá está Carrie, sentada ao lado de duas moças
negras mais ou menos de sua idade. Parecem fazer algum trabalho.
Descascam ou colhem hortaliças, sei lá. As moças negras estão rindo.
Carrie, não.
Ela agora também está morena.
Viro o rosto para Terese, para aqueles olhos azuis com um anel
dourado em torno das pupilas. A filha tem os mesmos olhos. Mesmos
olhos, mesmo jeito seguro de andar. Um eco que a genética reproduzia.
Que mais ela teria herdado da mãe?
– Tive de fugir – disse Terese. – Você precisa entender. Ela é minha
filha.
– Eu sei.
– Eu precisava salvá-la.
Concordo com a cabeça.
– Naquele primeiro telefonema, ela deixou o número do celular
dela, não deixou?
– Deixou.
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– Você podia ter me contado.
– Eu sei. Mas ouvi o que Berleand disse. Pode ser que minha filha
não valha a vida de milhares de pessoas para os outros, mas vale para
mim.
Fico emocionado ao ouvir o nome de Berleand. Não sei bem o que
dizer a seguir. Sombreio o rosto com a mão e olho de volta para
Carrie.
– Você faz ideia de como foi a vida dela até aqui? – pergunto.
Terese não se vira para mim, sequer pisca.
– Ela foi criada por terroristas – diz.
– Pior que isso. Mohammad Matar fez sua residência médica no
Columbia-Presbyterian, justo na época em que a fertilização in vitro e
a armazenagem de embriões atingiram o auge. Ele viu ali uma oportunidade
para levar adiante um golpe avassalador. A paciência e a espada.
Aquela fundação, a Salvem os Anjos, era na verdade uma facção
de radicais terroristas que se apresentavam como cristãos em luta
contra o aborto. Mohammad mentiu e coagiu para conseguir embriões
e usou muçulmanas simpatizantes da causa como barrigas de aluguel.
A função delas era carregar os embriões no ventre até que nascessem.
Depois, ele e seus seguidores criavam as crianças e as doutrinavam
desde o primeiro dia de vida para se tornarem terroristas. Era tudo o
que elas recebiam. Carrie não tinha permissão para ter amigos, por
exemplo. Não conheceu o amor, nem mesmo quando bebê. Nunca
soube o que é carinho. Ninguém a abraçava, ninguém a consolava
quando tinha pesadelos. Ela e os outros eram instruídos diariamente a
matar os infiéis, mais nada. Eram criados como armas humanas, programados
para se infiltrarem na sociedade e ficar a postos até a guerra
santa final. Imagine só. Mohammad Matar escolhia embriões de pais
louros e de olhos azuis. Assim poderia espalhar suas armas humanas
sem que elas fossem notadas. Quem suspeitaria?
Olho para Terese esperando que ela esboce algum tipo de reação,
que vacile. Mas não. Ela apenas diz:
– O que aconteceu às outras crianças?
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– Algumas foram mortas. Outras estão sob custódia.
Ela começa a descer a colina.
– Você acha que, só porque Carrie não recebeu amor antes, nunca
vai saber o que é esse sentimento?
– Não foi isso que eu disse.
– Mas foi o que pareceu.
– Só estou narrando os fatos.
– Você tem amigos com filhos, não tem?
– Claro.
– Qual é a primeira coisa que eles dizem sobre o temperamento dos
filhos? Que cada um é assim ou assado, certo? Como se todo mundo já
nascesse de um jeito e não mudasse mais. A natureza vencendo a cultura.
Os pais tentam orientá-los, apontar o caminho certo, mas, no
fim, não podem fazer mais do que zelar por eles. Há crianças que têm
infâncias ruins e se transformam em adultos carinhosos e outras que
viram sociopatas. Você com certeza tem amigos que criaram os filhos
de maneira idêntica e, apesar disso, um é extrovertido e o outro,
tímido, ou um é pão-duro e o outro é esbanjador. Os pais logo
descobrem que sua influência só vai até certo ponto.
– Ela nunca recebeu nenhum tipo de amor, Terese.
– Mas agora recebe.
– Você não sabe o que ela é capaz de fazer.
– Não sei o que ninguém é capaz de fazer.
– Isso não é resposta.
– O que você quer que eu faça? Ela é minha filha. Vou cuidar dela,
porque é isso que os pais fazem. E vou protegê-la. De qualquer modo,
você está enganado. Lembra-se daquele garoto, Ken Borman, que você
conheceu na Carver Academy?
Faço que sim com a cabeça.
– Carrie gostava dele. Apesar do inferno que era obrigada a enfrentar
todos os dias, conseguiu estabelecer um vínculo emocional com o
garoto. Não sei como, mas conseguiu. Depois tentou fugir. Por isso foi
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levada para Paris com Mohammad Matar, para ser treinada
novamente.
– Ela estava presente quando Rick foi assassinado?
– Estava.
– Encontraram o sangue dela na cena do crime.
– Carrie contou que tentou defender o pai.
– Você acredita nisso?
Terese sorri para mim, depois diz:
– Eu perdi uma filha. Faria qualquer coisa, qualquer coisa, para têla
de volta. Dá para entender isso? Se você me contasse que Miriam
havia sobrevivido e por algum motivo se transformado em uma criatura
abominável, isso não mudaria nada do que eu sinto.
– Carrie não é a Miriam.
– Mas também é minha filha. Não vou desistir dela.
Carrie fica de pé e começa a descer a colina. Ela para e olha na
nossa direção. Terese sorri e acena para a filha, que acena de volta.
Talvez esteja sorrindo também, mas não tenho certeza. Como também
não tenho certeza de que Terese esteja cometendo um erro. Mas a
dúvida paira no ar. Ainda me lembro do adolescente de cabelos claros
descendo a escada pronto para atirar em mim e de como vacilei
naquele momento. Natureza versus cultura. Se, além de criadas por
Mohammad Matar, aquelas crianças – inclusive Carrie – fossem filhas
biológicas dele, ninguém hesitaria em matá-las. Quer dizer que a
genética muda tudo? Só pelo fato de a pessoa ter cabelos claros e olhos
azuis?
Sei lá. Estou cansado demais para pensar nisso.
Carrie nunca recebeu amor. E agora receberia. O que teria acontecido
se eu ou você tivéssemos passado pelo que ela passou? Seria melhor
que acabassem conosco, como se fôssemos uma mercadoria com
defeito? Ou o lado bom da natureza humana prevaleceria no final?
– Myron?
Olho para o rosto lindo de Terese.
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– Eu jamais desistiria de um filho seu – diz ela. – Por favor, não desista
da minha filha.
Não sei o que dizer. Tomo seu rosto nas minhas mãos, beijo sua
testa e, de olhos fechados, mantenho os lábios ali, sentindo os braços
que me apertam a cintura.
– Se cuida – digo enfim.
Eu me afasto e ela chora. Mas preciso voltar.
– Eu não precisava ter vindo para Angola.
Eu paro e me viro para ela.
– Poderia ter ido para Mianmar – diz Terese. – Ou para o Laos ou
qualquer outro lugar onde você nunca me encontraria.
– Então por que veio para cá?
– Porque queria que você me encontrasse.
Agora eu choro também.
– Por favor, não vá – diz ela.
Estou exausto. Não consigo mais dormir. Assim que fecho os olhos,
os rostos dos que morreram voltam à minha mente e uma infinidade
de gélidos olhos azuis me encara. Meu sono é só pesadelos e, quando
acordo, estou sozinho.
Terese caminha na minha direção.
– Por favor, fique comigo. Só esta noite.
Quero dizer algo, mas não consigo. As lágrimas aumentam. Terese
me puxa e me abraça e preciso de toda a força que ainda me resta para
não desabar. Deixo a cabeça cair nos ombros dela. Terese corre os dedos
por meus cabelos, tentando me acalentar:
– Pronto, pronto. Já passou.
E, seguro naquele abraço, eu acredito nela.
www
Nesse mesmo dia, em algum lugar dos Estados Unidos, um ônibus
alugado estaciona diante de um monumento nacional apinhado de
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turistas. Nele vai um grupo de adolescentes de 16 anos que estão no
terceiro dia de uma excursão. O sol está forte e o céu, azul.
As portas do ônibus se abrem e o grupo começa a descer, trocando
risinhos e mascando chicletes.
O último a saltar é um garoto de cabelos claros.
Tem os olhos azuis, com um anel dourado em torno das pupilas.
E, embora carregue nas costas uma mochila pesada, atravessa a
multidão com a cabeça ereta e os ombros jogados para trás, a postura
perfeita.
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CONHEÇA OUTROS TÍTULOS DO AUTOR
Cilada
Haley McWaid tem 17 anos. É aluna exemplar, disciplinada, ama esportes
e sonha entrar para uma boa faculdade. Por isso, quando certa
noite ela não volta para casa e três meses transcorrem sem que se
tenha qualquer notícia dela, todos na cidade começam a imaginar o
pior.
O assistente social Dan Mercer recebe um estranho telefonema de
uma adolescente e vai a seu encontro. Ao chegar ao local, ele é surpreendido
pela equipe de um programa de televisão, que o exibe em
rede nacional como pedófilo. Inocentado por falta de provas, Dan é
morto logo em seguida.
Na junção dessas duas histórias está Wendy Tynes, a repórter que
armou a cilada para Dan e que se torna a única testemunha de seu assassinato.
Wendy sempre confiou apenas nos fatos, mas seu instinto
lhe diz que Mercer talvez não fosse culpado. Agora ela precisa
descobrir se desmascarou um criminoso ou causou a morte de um
inocente.
Nas investigações da morte de Dan e do desaparecimento de Haley,
verdades inimagináveis são reveladas e a fragilidade de vidas aparentemente
normais é posta à prova. Todos têm algo a esconder e os
segredos se interligam e se completam em um elaborado mosaico de
mistérios.
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Harlan Coben mais uma vez deixa o leitor sem ar. Cilada fala de
culpa, luto e perdão em uma trama repleta de reviravoltas surpreendentes.
Nada é o que parece e tudo pode ser desfeito até a última
página.
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Não conte a ninguém
Há oito anos, enquanto comemoravam o aniversário de seu
primeiro beijo, o Dr. David Beck e sua esposa, Elizabeth, sofreram um
terrível ataque. Ele foi golpeado e caiu no lago, inconsciente. Ela foi
raptada e brutalmente assassinada por um serial killer.
O caso volta à tona quando a polícia encontra dois corpos enterrados
perto do local do crime, junto com o taco de beisebol usado para
nocautear David. Ao mesmo tempo, o médico recebe um misterioso email,
que, aparentemente, só pode ter sido enviado por sua esposa.
Esses novos fatos fazem ressurgir inúmeras perguntas sem respostas:
Como David conseguiu sair do lago? Elizabeth está viva? E, se estiver,
de quem era o corpo enterrado oito anos antes? Por que ela demorou
tanto para entrar em contato com o marido?
Na mira do FBI como principal suspeito da morte da esposa e
caçado por um perigosíssimo assassino de aluguel, David Beck contará
apenas com o apoio de sua melhor amiga, a modelo Shauna, da
célebre advogada Hester Crimstein e de um traficante de drogas para
descobrir toda a verdade e provar sua inocência.
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Não conte a ninguém foi o livro mais aclamado de 2001, indicado
para diversos prêmios, entre eles Edgar, Anthony, Macavity, Nero e
Barry. Em 2006 foi adaptado para o cinema numa produção francesa
vencedora de quatro Cesars (o Oscar francês), inclusive de melhor ator
e diretor.
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Confie em mim
A vida no subúrbio de Livingston parece perfeita. Ao olhar para
aquelas mansões, todos acreditam que as pessoas que vivem ali são
completamente felizes. Mas a verdade é que, como em qualquer lugar
do mundo, cada uma daquelas famílias tem a sua tragédia particular.
Mike e Tia Baye, preocupados com seu filho Adam, resolvem invadir
a privacidade do garoto e espioná-lo.
Betsy Hill sente-se culpada por não ter percebido as mudanças no
comportamento de seu filho Spencer e por não ter feito nada que
pudesse evitar seu suicídio.
Guy Novak cria sozinho Yasmin, mas, embora seja um pai extremamente
dedicado, não consegue impedir que um infeliz comentário de
um professor torne a infância da menina um inferno.
Lucas Loriman está gravemente doente e precisa de um transplante
de rim, mas sua mãe Susan guarda um segredo devastador que pode
arruinar a família.
Enquanto acompanha as dores, preocupações e angústias de cada
um desses personagens, você vai mergulhar numa aventura
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emocionante e cheia de mistérios, em que todas essas histórias, aparentemente
independentes, se conectam num final surpreendente e
arrebatador.
Em Confie em mim, Harlan Coben nos faz pensar sobre como pais
desesperados são capazes de ultrapassar todos os limites na tentativa
de proteger seus filhos.
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Desaparecido para sempre
Will Klein levava uma vida tranquila num subúrbio rico de Nova
Jersey até que seu irmão mais velho, Ken, some ao ser acusado de estuprar
e assassinar sua vizinha Julie Miller. Para a polícia, Ken tornase
um foragido internacional. Mas sua família, que nunca mais teve
notícias dele, prefere acreditar que ele morreu a aceitar que seja um
criminoso.
Pelo menos era o que Will pensava até que, 11 anos depois, no leito
de morte, a mãe lhe revela que seu irmão estaria vivo. Quando resolve
investigar melhor o caso, Will sofre outro grande choque: sua namorada,
Sheila – que sempre manteve seu passado em segredo –, desaparece
e as impressões digitais dela são encontradas na cena de um
crime no Novo México.
Será que essas tragédias poderiam ter algo em comum? Por seu envolvimento
com os principais suspeitos dos dois casos de assassinato,
Will se vê às voltas com o obstinado diretor-assistente Joseph Pistillo,
um dos agentes mais poderosos do FBI.
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Para tornar tudo ainda mais estranho e perturbador, ele passa também
a ser perseguido por um psicopata implacável que ressurge enigmaticamente
do seu passado.
Enquanto procura compreender esses acontecimentos com a ajuda
de seu amigo Squares, um iogue ex-partidário do nazismo, e de Katy, a
irmã mais nova de Julie, Will descobre que a verdade nem sempre é o
que parece ser – e raramente é o que gostaríamos.
Denso, avassalador e surpreendente, esse thriller traz revelações e
descobertas que se sucedem num turbilhão de emoções e não cessam
até a última página.
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CONHEÇA OS CLÁSSICOS DA EDITORA
ARQUEIRO
Queda de gigantes, de Ken Follett
Não conte a ninguém, Desaparecido para sempre, Confie em mim e
Cilada, de Harlan Coben
A cabana, de William P. Young
A farsa, A vingança e A traição, de Christopher Reich
Água para elefantes, de Sara Gruen
O símbolo perdido, O Código Da Vinci, Anjos e demônios, Ponto de
impacto e Fortaleza digital, de Dan Brown
Julieta, de Anne Fortier
O guardião de memórias, de Kim Edwards
O guia do mochileiro das galáxias; O restaurante no fim do universo;
A vida, o universo e tudo mais; Até mais, e obrigado pelos peixes! e
Praticamente inofensiva, de Douglas Adams
O nome do vento, de Patrick Rothfuss
A passagem, de Justin Cronin
A revolta de Atlas, de Ayn Rand
A conspiração franciscana, de John Sack
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Um comentário:

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